metáfora do tubo (reddy)

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Faculdade de Letras - UFMG Departamento de Lingüística Linguagem e Biologia Cristina Magro REDDY, Michael F. The Conduit Metaphor - A Case of Frame Conflict in Our Language about Language. In: ORTONY, Andrew. Metaphor and Thought. Cambridge University Press, 1979. p.164-201. Traduzido e adaptado por Cristina Magro e Maíra Magro A Metáfora do Tubo: um caso de conflito conceitual na nossa linguagem sobre a linguagem Michael J. Reddy Eu gostaria de responder ao capítulo do Professor Schön tocando sua melodia algumas oitavas abaixo. Na minha opinião, ele tocou o conjunto de notas perfeito. “Colocação de problema” deveria de fato ser considerado o processo crucial, em oposição a “resolução de problema”. E “as histórias que as pessoas contam a respeito de situações problemáticas” de fato estabelecem ou “medeiam” o problema. E os “conflitos conceituais” entre várias histórias deveriam ser estudados detalhadamente, precisamente porque tais conflitos são freqüentemente “imunes à resolução apelando- se para fatos”. É difícil pensar em um melhor começo do que esse para progressos genuínos nas ciências sociais e do comportamento. Ao mesmo tempo, parece-me que Schön só conseguiu tocar essas excelentes notas em suas oitavas mais altas, de forma que a freqüência fundamental mal pode ser ouvida — apesar de que, para meus ouvidos ao menos, o tipo de pensamento de Schön é uma música real e há muito esperada. De forma bastante simples, o que eu acho que está faltando é a aplicação da sabedoria de Schön — essa consciência do paradigma — à comunicação humana. Pode parecer previsível que eu, como um lingüista, adote essa posição. Mas, se o faço, dificilmente seria uma estreita mentalidade disciplinar que me incita a fazê-lo. Em 1951, Norbert Wiener, um dos criadores da teoria da informação, e o “pai da cibernética”, disse quase que terminantemente: “A sociedade só pode ser entendida através de um estudo de suas facilidades de mensagens e comunicações.” (Wiener, 1954, p.16). Eu nunca tinha pensado nessa colocação como referente a coisas como o tamanho e a adequação do sistema telefônico, por exemplo. Wiener estava falando essencialmente sobre os processos básicos da comunicação humana — como eles funcionam, que tipos de truques estão neles, quando e porque eles têm tendência de serem bem sucedidos ou fracassarem. Os problemas da sociedade, governo e cultura dependem essencialmente de algo como a contabilidade diária de tais sucessos ou fracassos na comunicação. Se existem muitos fracassos, ou tipos sistemáticos de fracassos, os problemas se multiplicarão. A sociedade de comunicadores quase perfeitos, apesar de não ser isenta de interesses conflitantes, poderia ser capaz de evitar muitos dos efeitos destrutivos e divisórios desses inevitáveis conflitos. O que está por detrás do termo restruturação de conceitos, de Schön, e do termo tradução, de Kuhn (Kuhn, 1970a) parece ser justamente isso: melhor comunicação. Minorar dificuldades sociais e culturais requer uma melhor comunicação. E o problema com o qual nos defrontamos é, como melhorar a nossa comunicação? Mas, se chegamos a dizer isso, então está mais do que na hora de ouvirmos o bom conselho de Schön. Não adiantará nada planejar grande rapidez para solucionar o problema da comunicação inadequada. A tarefa mais urgente é começarmos imediatamente a perguntar sobre como aquele problema se apresenta a nós. Pois a colocação de problemas, não a resolução de problemas é o processo crucial. Que tipos de histórias as pessoas contam sobre seus atos de comunicação? Quando esses atos se perdem, como elas descrevem o que está errado e precisa de reparo? Neste capítulo, vou apresentar evidências de que as histórias que os falantes de

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Metáfora do tubo

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  • Faculdade de Letras - UFMG

    Departamento de Lingstica Linguagem e Biologia

    Cristina Magro

    REDDY, Michael F. The Conduit Metaphor - A Case of Frame Conflict in Our Language about Language. In: ORTONY, Andrew. Metaphor and Thought. Cambridge University Press, 1979. p.164-201. Traduzido e adaptado por Cristina Magro e Mara Magro

    A Metfora do Tubo:

    um caso de conflito conceitual na nossa linguagem

    sobre a linguagem

    Michael J. Reddy

    Eu gostaria de responder ao captulo do Professor Schn tocando sua melodia

    algumas oitavas abaixo. Na minha opinio, ele tocou o conjunto de notas perfeito.

    Colocao de problema deveria de fato ser considerado o processo crucial, em

    oposio a resoluo de problema. E as histrias que as pessoas contam a respeito

    de situaes problemticas de fato estabelecem ou medeiam o problema. E os

    conflitos conceituais entre vrias histrias deveriam ser estudados detalhadamente,

    precisamente porque tais conflitos so freqentemente imunes resoluo apelando-

    se para fatos. difcil pensar em um melhor comeo do que esse para progressos

    genunos nas cincias sociais e do comportamento. Ao mesmo tempo, parece-me que

    Schn s conseguiu tocar essas excelentes notas em suas oitavas mais altas, de forma

    que a freqncia fundamental mal pode ser ouvida apesar de que, para meus

    ouvidos ao menos, o tipo de pensamento de Schn uma msica real e h muito

    esperada.

    De forma bastante simples, o que eu acho que est faltando a aplicao da

    sabedoria de Schn essa conscincia do paradigma comunicao humana.

    Pode parecer previsvel que eu, como um lingista, adote essa posio. Mas, se o

    fao, dificilmente seria uma estreita mentalidade disciplinar que me incita a faz-lo.

    Em 1951, Norbert Wiener, um dos criadores da teoria da informao, e o pai da

    ciberntica, disse quase que terminantemente: A sociedade s pode ser entendida

    atravs de um estudo de suas facilidades de mensagens e comunicaes. (Wiener,

    1954, p.16). Eu nunca tinha pensado nessa colocao como referente a coisas como o

    tamanho e a adequao do sistema telefnico, por exemplo. Wiener estava falando

    essencialmente sobre os processos bsicos da comunicao humana como eles

    funcionam, que tipos de truques esto neles, quando e porque eles tm tendncia de

    serem bem sucedidos ou fracassarem. Os problemas da sociedade, governo e cultura

    dependem essencialmente de algo como a contabilidade diria de tais sucessos ou

    fracassos na comunicao. Se existem muitos fracassos, ou tipos sistemticos de

    fracassos, os problemas se multiplicaro. A sociedade de comunicadores quase

    perfeitos, apesar de no ser isenta de interesses conflitantes, poderia ser capaz de

    evitar muitos dos efeitos destrutivos e divisrios desses inevitveis conflitos.

    O que est por detrs do termo restruturao de conceitos, de Schn, e do

    termo traduo, de Kuhn (Kuhn, 1970a) parece ser justamente isso: melhor

    comunicao. Minorar dificuldades sociais e culturais requer uma melhor

    comunicao. E o problema com o qual nos defrontamos , como melhorar a nossa

    comunicao? Mas, se chegamos a dizer isso, ento est mais do que na hora de

    ouvirmos o bom conselho de Schn. No adiantar nada planejar grande rapidez para

    solucionar o problema da comunicao inadequada. A tarefa mais urgente

    comearmos imediatamente a perguntar sobre como aquele problema se apresenta a

    ns. Pois a colocao de problemas, no a resoluo de problemas o processo

    crucial. Que tipos de histrias as pessoas contam sobre seus atos de comunicao?

    Quando esses atos se perdem, como elas descrevem o que est errado e precisa de

    reparo?

    Neste captulo, vou apresentar evidncias de que as histrias que os falantes de

  • Linguagem e Biologia A Metfora do Tubo 2 Depto. de Lingstica - FALE/UFMG Michael J. Reddy

    ingls contam sobre a comunicao so largamente determinadas pelas estruturas

    semnticas da linguagem. Essa evidncia sugere que o ingls tem uma estrutura

    preferencial para conceitualizar a comunicao e pode enviesar processos de

    pensamento na direo deste quadro conceitual, apesar de nada alm do senso comum

    ser necessrio para visualizar um modelo diferente, mais acurado.1. O que vou fazer

    ento tentar convenc-los daquilo que pode ser uma premissa perturbadora: que

    meramente abrindo nossas bocas e falando ingls ns podemos ser arrastados para um

    conflito conceitual muito real e muito srio. Minha crena que esse conflito

    conceitual tem um impacto considervel nos nossos problemas sociais e culturais. Se

    somos profundamente incapazes de realizar melhoras essenciais na comunicao

    humana, apesar da ampla variedade de tecnologias de comunicao hoje disponveis,

    provvel que seja porque esse conflito conceitual nos levou a tentar solues

    imperfeitas para o problema.

    claro que impossvel fazer tais afirmaes sem trazer mente as

    especulaes e os argumentos de muitos personagens do sculo vinte

    especialmente Whorf (1956) e Max Black (1962d), com sua refutao relutante mas

    completa das idias de Whorf. Existe uma velha brincadeira sobre a hiptese de

    Whorf que diz que, se ela fosse verdadeira, ento seria improvvel por definio.

    Porque se dois seres humanos no s falaram lnguas radicalmente diferentes, mas

    tambm passaram a vida pensando e percebendo o mundo de maneiras diferentes, a

    certa altura eles iriam estar ocupados demais jogando pedras e projteis uns nos

    outros para sequer chegarem a se sentar e estabelecer essa sua diferena como um

    fato. A pitada de verdade desta piada pode ser encontrada na observao de Schn de

    que conflitos conceituais so imunes a resoluo por apelo aos fatos. Como diz ele,

    1 N.T.: Nossa traduo aproximada dos exempos, dada em p de pgina, vai mostrar que as mesmas observaes so vlidas para o portugus falado no Brasil, ao menos.

    Novos fatos tm um modo de serem ou absorvidos ou desconsiderados por aqueles

    que vem situaes problemticas atravs de esquemas conceituais conflitantes.

    Agora, nos ltimos anos, eu venho colecionando fatos novos e falando sobre eles com

    muitas pessoas diferentes. Lentamente, nesse perodo de tempo, esses novos fatos

    deram incio a uma mudana conceitual no meu pensamento sobre a linguagem. Eu

    sempre estive interessado na observao de Uriel Weinreich de que A linguagem

    sua prpria metalinguagem. Mas depois da minha prpria mudana conceitual

    entendi que, como uma metalinguagem, o ingls, pelo menos, era o seu prprio pior

    inimigo. E entendi que existia algo mais que misticismo nas idias de Whorf. Nesse

    ponto, e o que bastante curioso, quando tudo parecia cair nos seus devidos lugares

    para mim, ia ficando muito mais difcil conversar com os outros sobre esses fatos

    novos. Pois agora eu estava falando atravs do abismo do conflito conceitual.

    Menciono essas coisas logo no incio porque quero sugerir que a discusso que

    se segue uma oportunidade maravilhosa para ocorrer uma dessas falhas na

    comunicao que estamos preocupados em evitar. mais ou menos como a piada

    sobre Whorf. Se tenho razo no que diz respeito aos esquemas conceituais, ento pode

    muito bem ser difcil convenc-los, pois os esquemas sobre os quais estou falando

    existem em vocs e resistiro mudana. Da minha parte, ao escrever isso, fiz

    esforos extenuantes para lembrar como eram as coisas para mim antes de mudar

    conceitos, e quanto tempo levou para que os fatos novos fizessem sentido para mim.

    Ao mesmo tempo, gostaria de pedir que vocs, por sua vez, se fizessem receptveis ao

    que pode ser uma sria mudana na sua percepo. Para usar os termos de Schn, ns

    estamos forosamente engajados na restruturao de conceitos, e um esforo especial

    necessrio.

  • Linguagem e Biologia A Metfora do Tubo 3 Depto. de Lingstica - FALE/UFMG Michael J. Reddy

    A metfora do tubo

    O que os falantes de ingls dizem quando a comunicao falha ou se perde?

    Observemos os exemplos de (1) a (3), que so bastante tpicos,

    (1) Try to get your thoughts across better. (2) None of Marys feelings came through to me with any clarity. (3) You still havent given me any idea of what you mean..2

    e faamos como Schn sugeriu vamos tom-los como histrias de formulao de

    problemas, como descries de o que est errado e o que precisa ser melhorado.

    Essas metforas esto nos exemplos? Essas metforas do as direes para as tcnicas

    possveis de resolues de problemas? Apesar de (1) a (3) no conterem metforas

    novas, existe em cada caso uma metfora morta. Afinal de contas, literalmente, ns

    no passamos pensamentos quando falamos, no ? Isso soa como telepatia mental

    ou clarividncia, e sugere que a comunicao transfere corporeamente processos de

    pensamento. Na verdade, ningum recebe pensamentos de outros diretamente nas suas

    mentes durante o uso da linguagem. Os sentimentos de Mary, no exemplo (2), podem

    ser percebidos diretamente somente pela Mary; eles no chegam a ns quando ela

    fala. Nem algum pode literalmente te dar uma idia pois essas esto trancadas

    dentro do crnio e do processo de vida de cada um de ns. Com certeza, ento,

    nenhuma dessas trs expresses deve ser tomada inteiramente em valor nominal. A

    linguagem parece ajudar uma pessoa a construir os pensamentos de algum uma

    rplica que pode ser mais ou menos exata, dependendo de muitos fatores. Se

    pudssemos na verdade mandar pensamentos uns para os outros, teramos pouca

    necessidade de um sistema de comunicao.

    2 (1) Tente me passar melhor o que voc est pensando. (2) Nenhum dos sentimentos de Mary chegou a mim de modo claro. (3) Voc ainda no me deu uma idia clara do que voc quer dizer.

    Se h metforas mortas nos exemplos de (1) a (3), ento elas todas parecem

    envolver a assero figurativa de que a linguagem transfere pensamentos e

    sentimentos humanos. Note que essa assero, mesmo na sua forma presente e normal,

    nos leva j a um ponto de vista distinto sobre os problemas na comunicao. Uma

    pessoa que fala mal no sabe usar a linguagem para mandar seus pensamentos s

    pessoas; e, ao contrrio, um bom locutor sabe como transferir perfeitamente os seus

    pensamentos via linguagem. Se segussemos esse ponto de vista, a prxima pergunta

    seria: O que um locutor fraco deve fazer com seus pensamentos para transferi-los com

    mais acuidade por meio da linguagem? O surpreendente que, querendo ou no, a

    lngua inglesa segue esse ponto de vista. Ela fornece, na forma de uma abundncia de

    expresses metafricas, respostas a essa e outras perguntas, cujas respostas so

    perfeitamente coerentes com a suposio de que a comunicao humana promove a

    transferncia fsica de pensamentos e sentimentos. Se existissem apenas algumas

    poucas dessas expresses envolvidas, ou se elas fossem randmicas, figuras de

    linguagem incoerentes saindo de seus diferentes paradigmas ou se elas fossem

    abstratas, no particularmente imagens grficas ento algum poderia rejeit-las

    com sucesso como sendo analogias inofensivas. Mas, na verdade, nenhuma dessas

    circunstncias atenuantes entra em jogo.

    Solues tpicas para os problemas na comunicao do locutor inbil so ilustradas nos exemplos de (4) a (8).

    (4) Whenever you have a good idea practice capturing it in words. (5) You have to put each concept into words very carefully. (6) Try to pack more thoughts into fewer words. (7) Insert those ideas elsewhere in the paragraph. (8) Dont force your meanings into the wrong words..3

    3 (4) Quando voc tiver uma boa idia exercite sua habilidade de capt-la em

    palavras.

    (5) Voc deve colocar cuidadosamente as idias dentro de palavras.

  • Linguagem e Biologia A Metfora do Tubo 4 Depto. de Lingstica - FALE/UFMG Michael J. Reddy

    Naturalmente, se a linguagem transfere pensamentos a outros, ento o container

    lgico, ou o transmissor para esse pensamento so as palavras, ou agrupamentos de

    palavras como frases, sentenas, pargrafos, e assim por diante. Uma rea de

    dificuldade possvel ento o processo de preenchimento desse container, a

    insero. O locutor pode geralmente no ter prtica ou no ser cuidadoso nisso, e

    ento ser repreendido atravs de (4) ou (5). Como (6) mostra, ele poderia deixar de

    colocar significaes suficientes. Ou, de acordo com (7), ele poderia colocar as

    significaes certas, mas no lugar errado. O exemplo (8), que pressiona mais

    seriamente o senso comum, indica que ele estaria colocando nas palavras significados

    que de algum modo no servem para elas, provavelmente deformando, assim, esses

    significados. Pode tambm ser, claro, que o locutor ponha significado demais nas

    palavras. E existem expresses para isso tambm.

    (9) Never load a sentence with more thoughts than it can hold. 4

    Em geral, essa classe de exemplos implica, falando ou escrevendo, que os humanos

    colocam seus pensamentos e sentimentos internos nos sinais externos da linguagem.

    Uma listagem mais completa pode ser encontrada no Apndice deste texto.

    A lgica do esquema conceitual que estamos considerando uma lgica que

    daqui em diante chamaremos de metfora do tubo nos levaria agora afirmao

    grotesca de que palavras tm faces internas e faces externas. Afinal, se

    pensamentos podem ser inseridos, deve haver um espao dentro onde o

    significado pode residir. Mas com certeza a lngua inglesa, mesmo podendo ser

    (6) Tente embutir mais pensamentos dentro de menos palavras. (7) Insira aquelas idias em qualquer outro lugar no pargrafo. (8) No force seus sentidos nas palavras erradas.

    culpada por quaisquer sinuosidades metafsicas, no poderia ter nos envolvido nesse

    evidente tipo de nonsense. Bem, uma reflexo rpida haveria de nos cutucar

    lembrando que contedo um termo usado quase como sinnimo de idias e de

    significado. E memria5 uma palavra bastante significativa6 nesse contexto.

    Inmeras expresses deixam claro que a lngua inglesa v as palavras como contendo

    ou deixando de conter pensamentos, dependendo do sucesso ou fracasso do locutor no

    processo de insero.

    (10) That thought is in practically every other word. (11) The sentence was filled with emotion. (12) The lines may rhyme, but they are empty of both meaning and feeling. (13) Your words are hollow you dont mean them..7

    Ou, em geral, h uma outra classe de exemplos que implicam que as palavras contm

    ou transmitem pensamentos e sentimentos quando a comunicao bem sucedida.

    Ns afirmamos, sem pestanejar, que o significado est exatamente nas palavras.

    Outros casos sero encontrados no Apndice.

    Pode ser que o problema numa falha de comunicao no esteja no locutor.

    4 (9) Nunca encha uma sentena com mais significados do que ela pode aguentar.

    5 Em ingls recollection, que memria, lembrana. Em ingls a palavra tem uma srie de associaes interessantes, uma delas podendo ser coleo, ajuntamento: re-collection No portugus a idia de memria como coleo, arquivo, algo que se armazena ou o prprio local de armazenagem tambm comum, como se pode ver nos exemplos: a) Tenho seu rosto guardado/arquivado na minha memria. b) Quero guardar/arquivar para sempre essa memria. 6 O ingls, aqui, permite uma associao exemplar, que o autor usa indicando-a graficamente: meaning-full, literalmente cheio de sentido

    7 (10) Aquele pensamento est em praticamente uma palavra sim outra no. (11) Esta sentena est cheia de emoo. (12) Os versos podem at rimar, mas so vazios de sentido e sentimento. (13) Suas palavras so ocas aposto que voc no quer mesmo dizer isso.

  • Linguagem e Biologia A Metfora do Tubo 5 Depto. de Lingstica - FALE/UFMG Michael J. Reddy

    Pode ser que, de algum modo, o ouvinte que tenha errado. No esquema da metfora

    do tubo, a tarefa do ouvinte deve ser de extrao. Ele deve encontrar o significado

    nas palavras e tir-lo delas, de modo que ele chegue em sua cabea. Muitas

    expresses mostram que a lngua inglesa realmente v isto desta maneira.

    (14) Can you actually extract coherent ideas from that prose? (15) Let me know if you find any good ideas in the essay. (16) I dont get any feelings of anger out of his words..8

    Curiosamente, meu trabalho inicial com essas expresses me sugere que mais fcil

    culpar o locutor por fracassos na comunicao quando falamos e pensamos em termos

    da metfora do tubo. Afinal, receber e desembrulhar um pacote to passivo e to

    simples o que poderia dar errado? Um pacote pode ser difcil ou impossvel de se

    abrir. Mas, se no danificado, e aberto com sucesso, quem pode deixar de encontrar

    as coisas certas dentro dele? Desse modo, existem poderosas expresses grficas

    culpando particularmente os escritores por tornarem o pacote difcil de ser aberto,

    como de (17) a (19).

    (17) That remark is completely impenetrable. (18) Whatever Emily meant, its likely to be locked up in that cryptic little

    verse forever (19) He writes sentences in such a way as to seal up the meaning in them..9

    Mas, alm de dizer que leitores e ouvintes no prestam ateno no que est nas

    palavras, a metfora do tubo oferece pouca explicao para a falha em encontrar

    suficientes pensamentos ou os pensamentos certos naquilo que algum diz. Se

    8 (14) Voc acha que pode mesmo extrair idias coerentes daquela prosa?

    (15) Conte-me se encontrar alguma idia boa nesse ensaio. (16) Eu no consigo captar nenhum sentimento de raiva nas suas palavras.

    9 (17) Aquele comentrio completamente impenetrvel. (18) O que quer que Emily tenha querido dizer, provvel que esteja trancado naquele verso enigmtico para sempre.

    algum descobre pensamentos demais, no entanto, ns temos uma expresso

    maravilhosamente absurda repreendendo-o por isso.

    (20)Youre reading things into the poem.10

    Espero que tenha ficado claro aqui o poder do esquema conceitual em impor

    consistncia de base racional, mesmo quando os resultados so vazios. Ns devemos

    ver esse leitor como tendo sorrateiramente feito uso desse poder de inserir

    pensamentos em palavras quando deveria ter-se restringido somente extrao. Ele

    enfiou aqueles pensamentos nas palavras por conta prpria, e ento virou as costas e

    fingiu que j os encontrou l. Talvez pelo fato de o problema de significado em

    excesso ocorrer mais freqentemente na leitura, ns nunca desenvolvemos a expresso

    correspondente para a fala hearing things into the poem. Ao invs disso, ns

    usamos reading things into para ambas as modalidades. Mais uma vez, outros

    exemplos se encontram no Apndice.

    Talvez devssemos fazer uma pausa neste ponto e propr algum mecanismo de

    generalizao do que vimos at agora. No so as sentenas numeradas acima o

    importante, mas as expresses em itlico. Essas expresses poderiam aparecer em

    muitos enunciados diferentes e adquirir formas muito diferentes, e ns no temos

    ainda uma maneira de isolar o que fundamental nelas. Note, por exemplo, que em

    todos os exemplos ocorreu uma palavra como idias, ou pensamentos, ou significado,

    ou sentimento, que denotam material conceitual ou emocional interno. Tirando o que

    parecem ser restries menores a co-ocorrncias estilsticas, estes e outros termos

    como eles podem ser livremente substitudos uns pelos outros. Ento, irrelevante

    (19) Ele escreve as frases de modo a vedar o significado dentro delas.

    10 Em portugus seria algo equivalente a Voc est lendo coisas demais neste poema. Logo abaixo, o autor chama ateno para o fato de que no se diz em ingls

  • Linguagem e Biologia A Metfora do Tubo 6 Depto. de Lingstica - FALE/UFMG Michael J. Reddy

    para um exemplo qual deles est presente, e seria muito til ter alguma abreviao

    para o grupo inteiro. Vamos imaginar cada pessoa como tendo um repertrio de

    material mental e emocional. Isso nos permitir dizer que qualquer termo denotando

    um item do repertrio, abreviado IR11, servir, digamos, como um objeto em (1) e

    produzir um enunciado como exemplo. Subjazendo (1), (2), e (3), ento, esto o que

    chamaremos expresses nucleares, que podem ser escritas como se segue:

    (21) get RM across [subjacente a (1)] (22) RM comes through (to someone) [subjacente a (2)] (23) give (someone) RM [subjacente a (3)]12

    Os parnteses em (22) e (23) indicam complementos opcionais. Os exemplos de (4) a

    (20), alm de um termo do grupo IR, contm todos um outro termo como palavra,

    frase, ou poema. Essas palavras, pelo menos nos seus sentidos bsicos, designam

    padres fsicos externos de marcas e sons que de fato circulam entre falantes. Tais

    energias, ao contrrio dos pensamentos em si, so recebidas corporeamente, e so

    aquilo que os tericos da informao chamariam de sinal. Se adotamos esse nome

    genrico para o segundo grupo, e o abreviamos como s, ento as expresses nucleares

    para (4)-(6) so,

    (24) capture RM in s [subjacente a (4)] (25) put RM into s [subjacente a (5)] (26) pack RM into s [subjacente a (6)]13

    escutando coisas demais no poema.

    11 N.T. No tratamento dos dados do ingls, mantivemos RM, abreviatura de repertoire member.

    12 (21) passar IR (para algum) [subjacente a (1)] (22) IR chegar (a algum) [subjacente a (2)]. (23) dar (a algum) IR [subjacente a (3)]

    13 (24) captar IR em s[subjacente a (4)].

    No Apndice, a expresso nuclear sempre dada primeiro, seguida ento por um ou

    dois exemplos. Obviamente, cada expresso dessas deve ser responsvel por um

    grande nmero de sentenas diferentes.

    A metfora do tubo e as expresses nucleares que a incorporam merecem

    muito mais investigao e anlise. Minha listagem das expresses nucleares est longe

    de ser completa, e as reverberaes lgicas desse paradigma afetam tanto a sintaxe

    quanto a semntica de muitas palavras que no so, elas prprias, parte das expresses

    nucleares. Mais tarde voltaremos a essa reverberao, que afeta o grupo s inteiro.

    Afora isto, no entanto, temos que nos contentar em fechar esta discusso com uma

    breve caracterizao de mais alguns tipos de expresses nucleares.

    Nossos exemplos at agora foram retirados das quatro categorias que

    constituem o quadro conceitual maior da metfora do tubo. As expresses nucleares

    nessas categorias implicam, respectivamente, que: (1) a linguagem funciona como um

    tubo, transferindo pensamentos corporeamente de uma pessoa a outra; (2) escrevendo

    e falando, as pessoas inserem seus pensamentos ou sentimentos em palavras; (3) as

    palavras cumprem essa transferncia empacotando os pensamentos e sentimentos e os

    veiculando a outros; e (4) ouvindo ou lendo, as pessoas retiram pensamentos e

    sentimentos das palavras. Alm dessas quatro classes de expresses, h muitos

    exemplos bons que tm implicaes diferentes, apesar de claramente relacionadas. O

    fato de que estranho ao senso comum pensar em palavras como tendo interiores

    torna bastante fcil para ns abstrair da verso estrita, maior da metfora, na qual

    pensamentos e emoes esto sempre contidas em algo. Ou seja, o quadro conceitual

    maior v idias como existindo seja dentro das cabeas humanas, ou, pelo menos,

    dentro de palavras enunciadas por humanos. O quadro menor no toma as palavras

    (25) colocar IR dentro de s. [subjacente a (5)]

  • Linguagem e Biologia A Metfora do Tubo 7 Depto. de Lingstica - FALE/UFMG Michael J. Reddy

    como containers e permite que idias e sentimentos fluam, desalgemados e

    completamente desincorporados, num tipo de espao ambiental entre as cabeas

    humanas. Neste caso, a linguagem do tubo deixa de ser a de conduites selados de

    pessoa a pessoa, e passa a ser a de fontes geradoras individuais que permitem que

    contedos mentais escapem para ela, ou entrem a partir dela nesse espao ambiental.

    De novo, parece que essa extenso da metfora auxiliada pelo fato de que, em algum

    lugar, somos perifericamente atentos para o fato de que na verdade palavras no tm

    interiores.

    Em todo caso, qualquer que seja a causa da extenso, h trs categorias de

    expresses no quadro terico menor. As categorias implicam, respectivamente, que:

    (1) pensamentos e sentimentos so projetados pela fala ou escrita num espao de

    idias externo; (2) pensamentos e sentimentos so reificados nesse espao externo,

    de forma que eles existem independentemente de qualquer necessidade que os seres

    humanos tenham para viver, pens-los ou senti-los; (3) esses pensamentos e

    sentimentos reificados podem, ou no, encontrar seu caminho de volta nas cabeas

    dos seres humanos. Alguns exemplos notveis das expresses do quadro menor so,

    para a primeira categoria

    put RM down on paper (27) Put those thoughts down on paper before you lose them!

    pour RM out (28) Mary poured out all of the sorrow she had been holding in for so long.

    get RM out (29) You should get those ideas out where they can do some good14

    (26) embutir IR dentro de s [subjacente a (6)]

    14 pr IR no papel (27) Ponha essas idias no papel antes que voc as perca! pr IR para fora

    E, para a segunda categoria,

    RM float around (30) That concept has been floating around for decades.

    RM find way (31) Somehow, these hostile feelings found their way to the ghettos of Rome

    find RM EX LOC (32) Youll find better ideas than that in the library. (33) John found those ideas in the jungles of the Amazon, not in some

    classroom.15

    (EX LOC16 deve ser entendido como uma expresso locativa qualquer

    designando um lugar qualquer dentre os seres humanos, ou seja, um locativo externo).

    E para a terceira categoria,

    absorb RM (34) You have to absorb Aristotles ideas a little at a time.

    RM go over someones head (35) Her delicate emotions went right over his head.

    get RM into someones head (36) How many different concepts can you get into your head in one

    (28) Paula ps para fora toda dor que ela estava segurando por tanto tempo. trazer RM para fora (19) Voc devia trazer essas idias pra fora, onde elas nos possam ser teis.

    15 RM circular (30) Aquele conceito est circulando por a h dcadas. RM encontrar lugar (31) De alguma forma, aqueles sentimentos hostis encontraram seu lugar nos guetos de Roma encontrar/achar RM LOC EX (32)Voc vai encontrar/achar idias melhores do que essas na biblioteca. (33) Joo encontrou/achou essas idias na rua, e no em qualquer banco de escola.

    16 N.T. No exemplos do portugus utilizamos LOC EX, abreviando locativo externo.

  • Linguagem e Biologia A Metfora do Tubo 8 Depto. de Lingstica - FALE/UFMG Michael J. Reddy

    evening?17

    Vejam mais exemplos no Apndice.

    O paradigma dos fabricantes de utenslios

    Para pesquisarmos os efeitos da metfora do tubo nos processos cognitivos dos

    falantes, precisamos de uma maneira alternativa de conceber a comunicao humana.

    Precisamos de uma outra histria para contar, um outro modelo, de forma a que as

    implicaes mais profundas da metfora do tubo possam ser ressaltadas por contraste.

    Em outras palavras, para nos dedicarmos restruturao do modelo da comunicao

    humana precisamos, em primeiro lugar, de um modelo para opormos ao que

    conhecemos.

    Para comear essa outra histria, eu gostaria de sugerir que, conversando uns

    com os outros, somos como pessoas isoladas em ambientes ligeiramente diferentes.

    Imaginemos ento, para construirmos essa histria, um composto enorme do formato

    de uma roda de um vago como na figura abaixo:

    17 absorver IR

    (34) Voc vai ter que absorver as idias de Aristteles pouco a pouco IR bater (35) As idias dele bateram direto na minha cabea. enfiar IR na cabea de algum (35) Quantos projetos diferentes voc quer enfiar na minha cabea de uma vez s?

    Cada setor da roda um ambiente, com dois aros e parte da circunferncia

    formando suas paredes. Todos os ambientes tm coisas em comum uns com os outros

    gua, rvores, pequenas plantas, pedras , coisas desse tipo mas nenhum deles

    exatamente igual ao outro. Eles contm diferentes tipos de rvores, plantas, terreno,

    etc. Em cada um desses setores vive uma pessoa que precisa sobreviver em seu

    ambiente, prprio e especial. No centro da roda h um maquinrio que pode transmitir

    pequenas folhas de papel de um ambiente para o outro. Suponhamos que essas

    pessoas aprenderam a usar esse maquinrio para trocar conjuntos rudimentares de

    instrues entre si instrues para fazer coisas importantes para sua sobrevivncia

    como ferramentas, talvez, ou abrigos, comidas, coisas assim. Mas no h, nessa

    histria, nenhuma maneira de essas pessoas se visitarem nos ambientes uns dos outros,

    ou mesmo de trocarem amostras das coisas que elas construram em seus prprios

  • Linguagem e Biologia A Metfora do Tubo 9 Depto. de Lingstica - FALE/UFMG Michael J. Reddy

    ambientes. Isto crucial aqui. As pessoas podem somente trocar esses conjuntos

    rudimentares de instrues impresses estranhas, rabiscadas em folhas de papel

    especiais que aparecem numa abertura no eixo central da roda e podem ser

    depositadas em outra abertura nada alm disso. De fato, uma vez que no h

    nenhuma maneira de se gritar atravs das paredes desses setores, as pessoas somente

    sabem da existncia umas das outras indiretamente, por uma srie cumulativa de

    inferncias. Esta parte da histria, a regra da impossibilidade de visita e da troca de

    material nativo, chamaremos de o postulado da subjetividade radical.

    Nesta analogia, o contedo de cada ambiente, o material nativo, representa o

    repertrio de uma pessoa. Eles esto aqui no lugar dos pensamentos internos,

    sentimentos, e percepes que no podem, eles mesmos, ser enviados a ningum por

    qualquer meio que conhecemos. Esses materiais so nicos, com os quais cada pessoa

    deve trabalhar para sobreviver. As impresses representam sinais da comunicao

    humana, as marcas e sons que podemos, de fato, enviar uns aos outros. Teremos que

    ignorar a questo de como o sistema de instrues se tornou estabelecido, apesar de

    esta ser uma parte interessante da histria. Devemos simplesmente assumir que ele

    atingiu algo como um estado estvel, e procurar ver como funciona.

    Suponhamos que uma pessoa A tenha descoberto uma ferramenta muito til

    para ele. Digamos que ela tenha aprendido a construir um ancinho e descobriu que

    pode us-lo para limpar as folhas mortas e outros entulhos sem prejudicar as plantas

    vivas. Um dia, essa pessoa A vai at o eixo do maquinrio e desenha, da melhor forma

    possvel, trs conjuntos idnticos de instrues a respeito deste ancinho, e os deposita

    nas aberturas correspondentes para as pessoas B, C, e D. Como resultado essas trs

    pessoas, que vivem em ambientes ligeiramente diferentes, recebem agora essas

    curiosas folhas de papel, e comeam a trabalhar tentando construir o que cada uma

    delas pode a partir daquelas instrues. O ambiente da pessoa A tem muita madeira,

    que provavelmente o motivo pelo qual ela tem muita folha para varrer, em primeiro

    lugar. O setor B, por outro lado, tem mais pedras, e a pessoa B usa muita pedra em

    suas construes. Ela at achou um pedao de madeira para servir de cabo, mas logo

    comeou a fazer o pente do ancinho de pedra. O pente do ancinho original feito por A

    era de madeira. Mas como nunca lhe ocorreu que qualquer outra coisa a no ser

    madeira poderia estar a sua disposio ou ser adequado para isso, A nem procurou

    especificar, em suas instrues, que o pente era de madeira. Quando a pessoa B estava

    j pela metade na confeco do pente de pedra para seu ancinho, ela o conectou

    experimentalmente com o cabo e de repente se deu conta de que aquela coisa, o que

    quer que aquilo fosse, com certeza ia ficar muito pesado e difcil de manejar. Durante

    algum tempo ela tentou imaginar seus possveis usos, e ento decidiu que devia ser

    um instrumento para soltar do terreno pedrinhas pequenas limpando um campo para o

    plantio. Ela ficou maravilhada com o fato de que A devia ser muito grande e forte, e

    tambm com o tanto de pedrinhas pequenas com que A tinha que lidar. B ento decide

    que duas pontas grandes tornariam o ancinho tanto mais leve quanto mais adequado

    para desencavar pedras maiores.

    Bem feliz, tanto com seu tira-pedras de lmina dupla, quanto com suas novas

    idias sobre como seu/sua companheiro(a) A devia ser, a pessoa B fez trs conjuntos

    idnticos de instrues sobre seu tira-pedras e os inseriu nos lugares adequados para

    A, C e D. A pessoa A, claro, agora comea a montar um tira-pedras seguindo as

    instrues de B, s que o faz inteiramente de madeira e tem que alterar um pouco o

    desenho para fazer um pente duplo suficientemente forte. Ainda assim, em seu

    ambiente quase sem pedra nenhuma, ela no consegue ver exatamente a utilidade para

    aquela coisa, e se preocupa com que B tenha interpretado mal seu ancinho. Ento ela

    desenha um segundo conjunto de instrues mais detalhadas para o pente do ancinho,

    e os envia para cada um. Enquanto isso, num outro setor, a pessoa C, que est

  • Linguagem e Biologia A Metfora do Tubo 10 Depto. de Lingstica - FALE/UFMG Michael J. Reddy

    particularmente interessada em limpar um brejo, criou, com base nesses conjuntos

    diversos de instrues uma enxada. Afinal de contas, quando voc est lidando

    com lama e grama de brejo, precisa de algo que corte rente no fundo as razes. E a

    pessoa D, a partir do mesmo conjunto de instrues, acabou fazendo um arpo. Ela

    tinha um laguinho e muito peixe.

    Apesar de acharmos que seria bastante interessante conhecer C e D, os heris

    principais dessa histria so A e B. Vamos ento voltar a eles para o clmax da grande

    conversao sobre o ancinho na qual, para a surpresa de todos, alguma comunicao

    ocorre. A e B, que tiveram intercmbios produtivos no passado, e portanto no se

    importam de investir pesado em suas comunicaes, ficaram envolvidos com o

    problema do ancinho por um longo tempo. Suas instrues simplesmente no

    combinam. B at abandonou sua hiptese original de que A um homenzarro que s

    lida com pedrinhas. Isso simplesmente no se adequa s instrues que ele recebe. A,

    por sua vez, est ficando to frustrado que est quase desistindo. Ele se assenta perto

    do mecanismo central e, num tipo de acesso de raiva inconsciente, esfrega duas

    pedrinhas juntas. Subitamente ele para. Segura essas pedras na frente de seus olhos e

    parece estar pensando furiosamente. Ento ele corre para o mecanismo e comea a

    rabiscar novas instrues o mais rpido possvel, usando desta vez smbolos icnicos

    bastante inteligentes para madeira e para pedra, que ele espera que B compreenda.

    Logo A e B ficam extasiados. Todos os tipos de conjuntos de instrues anteriores,

    no apenas sobre ancinhos, mas sobre outras coisas tambm, agora fazem perfeito

    sentido. Eles se elevaram a um novo plat de inferncia um sobre o outro, e cada um

    sobre o ambiente do outro.

    Para efeito de comparao, vamos tomar agora essa mesma situao de novo,

    do ponto de vista da metfora do tubo. Em termos do paradigma da subjetividade

    radical para a comunicao humana, o que a metfora do tubo permite a troca de

    material entre os ambientes, incluindo os prprios instrumentos. Em nossa histria,

    teramos que imaginar uma tecnologicamente fantstica mquina duplicadora

    localizada no mecanismo central. A poria seu ancinho numa cmara especial, apertaria

    um boto, e rplicas instantneas e perfeitas do seu ancinho apareceriam em cmaras

    semelhantes para que B, C, e D as usassem. B, C, ou D no teriam que construir nada

    ou adivinhar nada. Se B quisesse comunicar com C e D sobre o ancinho de A, no

    haveria qualquer desculpa para ele enviar outra coisa que no fosse uma rplica exata

    daquele ancinho para essas pessoas. Ainda haveria diferenas entre os ambientes, mas

    aprender sobre elas agora uma questo trivial. Tudo o que B j enviou a A foi

    construdo basicamente de pedra, e A ento perfeitamente consciente dessa

    qualidade de seu vizinho. Mesmo se essa mquina maravilhosa falhar agora e de

    novo, de modo que os artefatos cheguem danificados, ainda assim os objetos

    danificados parecero objetos danificados e no outra coisa. Um ancinho quebrado

    no se torna uma enxada. Pode-se simplesmente devolver o objeto danificado, e

    esperar a outra pessoa enviar uma outra rplica. Deveria estar claro que uma tendncia

    irresistvel do sistema, visto pela metfora do tubo, sempre ser: sucesso sem esforo.

    Ao mesmo tempo, deveria ser igualmente bvio que, em termos do paradigma dos

    fabricantes de utenslios, e do postulado da subjetividade radical, chegamos

    exatamente concluso oposta. A comunicao humana quase sempre ir degringolar,

    a menos que se despenda nela energia pra valer.

    Essa comparao, ento, ilumina um conflito bsico entre a metfora do tubo e

    o paradigma dos fabricantes de utenslios. Ambos os modelos oferecem uma

    explicao do fenmeno da comunicao. Mas eles chegam a concluses totalmente

    diferentes sobre o que, naquele fenmeno, so os estados mais naturais de coisas, e

    sobre o que menos natural, ou mais limitado. Em termos da metfora do tubo, o que

    requer explicao o fracasso na comunicao. O sucesso parece ser automtico. Mas

  • Linguagem e Biologia A Metfora do Tubo 11 Depto. de Lingstica - FALE/UFMG Michael J. Reddy

    se pensamos em termos do paradigma dos fabricantes de utenslios, nossa expectativa

    precisamente a oposta. Incompreenses parciais, ou divergncia de leituras de um

    nico texto no so aberraes. Essas so tendncias inerentes ao sistema, que podem

    apenas ser contornadas por esforo contnuo e por enorme quantidade de interao

    verbal. Nesta viso, as coisas naturalmente sero dispersadas, a menos que se gaste

    energia para junt-las. Elas no so, como a metfora do tubo quereria, naturalmente

    conjugadas, com uma populao ameaadora de loucos desmiolados fazendo de tudo

    para dispers-las.

    Como muitos intelectuais apontaram (Kuhn, 1970a; Butterfield, 1965), tais

    mudanas na noo do que uma coisa faz naturalmente, ou seja, daquilo que ela faz

    se deixamos funcionar por sua conta, so o material do qual revolues cientficas so

    feitas. Se a terra fica parada nalgum ponto central, ento so os movimentos dos

    corpos celestiais que precisam ser teorizados e preditos. Mas se o sol que est num

    ponto central, ento precisamos teorizar sobre o movimento da terra. A esse respeito,

    a situao atual um pouco curiosa. O paradigma dos fabricantes de utenslios est

    bastante de acordo com uma conexo j postulada h muito tempo entre informao,

    no sentido matemtico, e a expresso da entropia na segunda lei da termodinmica

    (Cherry, 1966, p.214-17). A segunda lei afirma que, se deixadas funcionarem por sua

    prpria conta, todas as formas de organizao sempre iro diminuir com o tempo. A

    comunicao humana bem sucedida envolve um crescimento em organizao, que no

    pode ocorrer espontaneamente ou graas sua prpria unidade. Portanto, a mudana

    de ponto de vista do paradigma dos fabricantes de utenslios parece apenas fazer com

    que o modelo da comunicao humana se afine com um paradigma previamente

    existente nas cincias fsicas. Mas mesmo assim, matematicamente, informao

    expressa como entropia negativa, associao essa sempre envolvida com muita

    discusso e confuso. Pode ser que essa confuso brote, pelo menos em parte, da

    posio dominante ocupada pela metfora do tubo na nossa linguagem. Pois a

    metfora do tubo est definitivamente em conflito com a segunda lei.

    Mas eu no quero argumentar muito veementemente nem a favor nem contra

    qualquer um desses modelos apresentados neste artigo. No quero pretender nem

    apelo aos fatos a estas alturas. Pois a verdadeira questo aqui em que medida a

    linguagem pode influenciar os processos de pensamento. Para mim, do meu ponto de

    observao agora, parece que o paradigma dos fabricantes de utenslio e o

    subjetivismo radical simplesmente formam uma viso coerente, senso comum do que

    ocorre quando falamos um senso comum que encontra suporte em tudo desde esta

    segunda lei da termodinmica at os estudos recentes em inteligncia artificial ou

    psicologia cognitiva. Mas minha afirmao maior verdadeira que a metfora do

    tubo uma estrutura semntica real e poderosa na lngua inglesa, que pode influenciar

    nosso pensamento ento se segue que o senso comum sobre linguagem pode

    ficar confuso. Confesso que levei quase cinco anos para chegar ao subjetivismo

    radical como senso comum. O que estava no meio do caminho no era nunca um

    contra-argumento, mas, ao invs disto, uma simples inabilidade de pensar claramente

    sobre a questo. Minha mente parecia adormecer em momentos cruciais, e foi apenas

    o crescente peso de mais e mais evidncias que finalmente forou-a a ficar acordada.

    H, portanto, a probabilidade de que argumentos sobre esses modelos no sejam

    necessrios, ou alternativamente, se necessrios, possvel que caiam em ouvidos

    surdos at que o efeito enviesador da metfora do tubo tenha sido contornado. Mais

    importante, ento uma pesquisa da evidncia de que a metfora do tubo pode

    influenciar e de fato influencia nosso pensamento.

    Patologia semntica

    Vamos assumir agora, para efeitos de argumentao, que concordamos que a

  • Linguagem e Biologia A Metfora do Tubo 12 Depto. de Lingstica - FALE/UFMG Michael J. Reddy

    comunicao funciona como o paradigma dos fabricantes de utenslio sugere, e no

    como a metfora do tubo pretende. Alm disso proponho assumirmos que as

    implicaes conflitantes dos dois quadro conceituais so teoricamente interessantes ou

    mesmo importantes. Voc pode bem atribuir a mim essas coisas e ainda sustentar que

    as expresses da metfora do tubo na lngua cotidiana no influenciam nem

    confundem, na verdade, nossos processos cognitivos. Afinal, todos ns conseguimos

    processar mudanas mentais e pensar sobre a linguagem em termos do paradigma dos

    fabricantes de utenslio aqui mesmo, nesta discusso. A metfora do tubo no nos

    impediu de fazer isso. Onde ento, de fato, est o problema? Como pode ser que algo

    problemtico surja de um modelo que somos capazes de descartar to facilmente?

    Esta a pergunta para a qual eu gostaria que nos dirigssemos agora. A metfora do

    tubo pode de fato enviesar nosso pensamento? Se sim, como?

    Para comear, preciso esclarecer que nenhum falante de ingls, nem mesmo

    seu autor, descartou a metfora do tubo. Pensar em termos do paradigma dos

    fabricantes de utenslio brevemente pode, talvez, nos ter tornado mais conscientes da

    metfora do tubo. Mas nenhum de ns vai descart-la at que tenhamos conseguido

    trazer uma srie inteira de mudanas interligadas na lngua inglesa. A lgica do

    modelo conceitual corre como fios em muitas direes atravs do tecido sinttico e

    semntico de nossos hbitos de fala. Tornarmo-nos apenas conhecedores disto no vai

    alterar em nada a situao. No parece tampouco que algum pode adotar e

    desenvolver um quadro conceitual novo e ao mesmo tempo continuar ignorando o

    tecido da linguagem. Pois em todos os lugares ns continuamos correndo atrs dos

    antigos fios, e cada um de ns vai puxar um pouco a conversao e o pensamento de

    volta para o padro anteriormente estabelecido. Independente do quanto isso possa

    parecer uma coisa do outro mundo, h evidncias excessivamente convincentes de que

    isso tem ocorrido e continua a ocorrer.

    A afirmao exata que estamos fazendo aqui importante. Tem a ver, eu acho,

    com uma das maneiras pelas quais as pessoas comumente interpretam mal a hiptese

    de Whorf. No afirmo que no podemos pensar momentaneamente em termos de um

    outro modelo do processo da comunicao. Eu argumento, em vez disso, que esse

    pensamento permanecer breve, isolado, e fragmentrio frente a um sistema

    imbricado de atitudes e afirmaes contrrias.

    Ainda no consegui juntar dados estatsticos significativos sobre o nmero de

    expresses nucleares que surgem da metfora do tubo. Na verdade, na medida em que

    o prprio conceito de expresso nuclear um tanto quanto frouxo, e na medida em

    que difcil, em alguns casos, decidir se uma expresso deveria ou no ser listada,

    no tenho certeza de se uma estatstica pesada poder algum dia ser construda.

    Apesar disso, a contagem atual das expresses da metfora do tubo est beirando 140.

    Se algum procurar formas alternativas de falar de comunicao que podem ser ou

    metaforicamente neutras, ou metaforicamente opostas ao modelo do tubo a lista

    das expresses marcar entre 30 ou 40. Uma estimativa conservadora apontaria ento

    que pelo menos setenta por cento do aparato metalingstico inteiro da lngua inglesa

    diretamente, visivelmente, e graficamente baseado na metfora do tubo.

    Qualquer que seja a influncia sobre os trinta por cento restantes, parece ser

    enfraquecida alm desta proporcionalidade direta por fatores diversos. Primeiro, essas

    expresses tendem a ser abstraes latinas, multissilbicas (comunicar, disseminar,

    notificar, divulgar, e assim por diante) que no so nem grfica nem metaforicamente

    coerentes. Assim, elas no apresentam um modelo alternativo do processo de

    comunicao, que deixa a noo de pr as idias em palavras como o nico conceito

    disponvel. Em segundo lugar, a maioria deles pode ser usado com o aposto em

    palavras (em s, genericamente falando), perdendo assim sua neutralidade e dando

    um suporte extra metfora do tubo. Communicate your feelings using simpler

  • Linguagem e Biologia A Metfora do Tubo 13 Depto. de Lingstica - FALE/UFMG Michael J. Reddy

    words, por exemplo, evita a metfora do tubo, enquanto Communicate your feelings

    in simpler words, no18. E, finalmente, na medida em que as etimologias so

    relevantes, muitas dessas expresses tm razes que brotam diretamente do modelo do

    tubo (expressar, disseminar, etc.). Veja Parte I do Apndice para essa listagem.

    A ilustrao mais simples, e talvez mais convincente de nossa dependncia das

    expresses nucleares da metfora do tubo so um teste que pode ser feito por qualquer

    um de ns. Familiarize-se com as listagens do Apndice. Ento comece a ficar atento

    para a metfora do tubo, e tente evit-la. Toda vez que voc se descobrir usando uma,

    veja se pode substitu-la por uma expresso neutra, ou alguma circunlocuo. Minha

    experincia dando aulas que tm que ver com esse assunto tem sido de meus

    estudantes constantemente me chamarem a ateno por eu estar usando as expresses

    sobre as quais estou ensinando. Se falo com muito cuidado, com ateno constante,

    at consigo me sair bem evitando-as. Mas o resultado um ingls muito pouco

    idiomtico. Em vez de entrar numa sala de aula e perguntar Vocs tiraram alguma

    coisa daquele artigo? eu tenho que dizer Vocs conseguiram construir algo

    interessante com base no texto indicado? Se olharmos bem, ouso afirmar que mesmo

    o presente artigo traz expresses da metfora do tubo. Terminei a seo precedente

    com um quadro conceitual menor, exemplo da categoria trs, (141) no Apndice,

    quando escrevi: Os argumentos cairo em ouvidos surdos. Falando na prtica, se

    voc tenta evitar todas as expresses bvias da metfora do tubo em seu uso, voc fica

    praticamente emudecido quando comunicao o assunto em pauta. Voc pode falar

    para o seu aluno mais teimoso: Tente comunicar com mais efetividade, Reginaldo,

    mas sua fala no teria nem de longe o impacto de Reginaldo, voc tem que aprender

    a pr seus pensamentos em palavras.

    18 Comunique seus sentimentos usando palavras mais simples e Comunique seus sentimentos em palavras mais simples.

    Mas mesmo se voc conseguisse evitar todas essas metaforices do tubo,

    ainda assim no estaria livre do esquema conceitual do tubo. Os fios desse tecido,

    como eu j disse, esto por toda parte. Para ver que elas vo mais fundo do que serem

    apenas uma lista de expresses, eu gostaria de ressuscitar um conceito da semntica

    pr-transformacional. Em seu Principles of Semantics, Stephen Ullmann (1957,

    p.122) usa o termo patologia semntica. A patologia semntica surge sempre que

    dois ou mais sentidos incompatveis capazes de figurar significativamente no mesmo

    contexto se desenvolvem em torno do mesmo nome. Por algum tempo, minha

    ilustrao favorita para isto na lngua inglesa era o delicado e difcil problema de se

    distinguir sympathy de apology. Ou seja, Im sorry pode significar ou I

    empathize with your suffering ou I admit fault and apologize.19 Algumas vezes as

    pessoas esperam que peamos desculpas quando apenas pretendemos ser solidrios

    com algo que est andando errado, e neste caso, dizendo Im sorry, pode ser a

    evasiva perfeita ou uma brecha para uma briga. Outras vezes, as pessoas pensam que

    estamos pedindo desculpas quando elas no vem razo nenhuma para tal e

    respondem com Thats alright, it wasnt your fault.20

    medida que fui estudando a metfora do tubo, todavia, passei a me basear

    neste exemplo cada vez menos. Continuei cruzando com termos que eram ambguos

    entre o que chamamos aqui membros do repertrio, e o que chamamos sinal. Eu

    encontrava uma palavra que, em seu sentido bsico, se referia a algum agrupamento

    de marcas ou sons que trocamos uns com os outros. Mas logo eu a usava em uma

    sentena e me dava conta de que podia se referir igualmente bem e com a mesma

    19 Sympathy= condolncias; apology= desculpas. Sinto muito pode tanto significar Estou solidria com voc neste seu sofrimento quanto Reconheo meu erro e peo desculpas.

    20 Tudo bem, no foi erro seu.

  • Linguagem e Biologia A Metfora do Tubo 14 Depto. de Lingstica - FALE/UFMG Michael J. Reddy

    freqncia a segmentos do pensamento ou emoes humanas. Considere a palavra

    poema, por exemplo. Nos exemplos de (37) a (39),

    (37) The poem was almost illegible. (38) The poem has five lines and forty words (39) The poem is unrhymed,21

    essa palavra claramente se refere ao texto, a sinais envolvendo seja marcas ou sons.

    Para efeitos de maior clareza, vamos considerar que o que est operando aqui a

    palavra-sentido POEMA1 (para uma definio operacional de a palavra-sentido, ver

    Reddy, 1973). Notem agora que, nos exemplos de (40) a (42),

    (40) Donnes poem is very logical (41) That poem was so completely depressing (42) You know his poem is too obscene for children,22

    o referente mais provvel no um texto, mas os conceitos e emoes reunidos na

    leitura de um texto. Eu disse mais provvel aqui porque possvel imaginar

    contextos nos quais o referente realmente, de novo, um texto. Suponhamos, por

    exemplo, que a sentena (41) tenha sido enunciada por um professor de caligrafia

    sobre uma cpia apressada de um poema qualquer, feita por uma criana. Tirando

    esses contextos excepcionais, todavia, poema nestes exemplos se refere a material

    conceitual e emocional. O funcionamento da palavra-sentido aqui eu chamarei

    POEMA2. O exemplo (43) pode ser lido seja com POEMA1 seja com POEMA2

    (43) Marthas poem is so sloppy!23

    21 (37) O poema estava quase ilegvel

    (38) O poema tem cinco linhas e quarenta palavras (39) O poema no tem rima.

    22 (40) O poema de Donne muito lgico (41) Aquele poema era totalmente deprimente (42) Voc sabe que o poema dele obsceno demais para crianas.

    fcil ver que essa ambigidade do termo poema est intimamente

    relacionada com a metfora do tubo. Se as palavras na lngua contm as idias, ento

    POEMA1 contm POEMA2 e ento ocorre uma metonmia, que um processo de

    extenso de sentido que s perde em importncia para a metfora. Ou seja, quando

    duas entidades so sempre encontradas juntas em nossa experincia, o nome de uma

    delas em geral a mais concreta ir desenvolver um sentido novo que se refere ao

    outro. Assim como ROSA1 (= a flor) desenvolveu ROSA2 (= o tom de vermelho

    rosado) por metonmia, do mesmo modo POEMA1 deu origem a POEMA2. Pois, em

    termos da metfora do tubo, os dois so vistos como existindo juntos, o segundo

    dentro do primeiro, reunindo todas as condies para o aparecimento da metonmia.

    Desde que estejamos satisfeitos com a metfora do tubo, ento essa ambigidade no

    problemtica, e no , certamente, uma patologia semntica.

    Mas consideremos agora o que acontece com o idealista lingstico que quer

    pensar em comunicao em termos do paradigma dos fabricantes de utenslio e do

    subjetivismo radical sem fazer quaisquer mudanas na lngua inglesa. Neste novo

    modelo, as palavras no contm as idias, de forma que POEMA1 no contm

    POEMA2. Na maioria dos casos h apenas POEMA1, um texto, com que se preocupar.

    Mas por causa das diferenas entre os repertrios de pessoa a pessoa, e por causa da

    difcil tarefa de reunir esses materiais mentais e emocionais com base nas instrues

    num texto, bvio para nosso terico que havero tantos POEMA2 quantos forem

    seus leitores ou ouvintes. Esses POEMA2 internos somente se parecero uns com os

    outros depois de as pessoas despenderem energia conversando umas com as outras e

    comparando suas anotaes. Agora no h a menor base para uma extenso

    metonmica de POEMA1 a POEMA2. Se tivssemos visto a linguagem em termos do

    23 (43) O poema de Marta to mal feito!

  • Linguagem e Biologia A Metfora do Tubo 15 Depto. de Lingstica - FALE/UFMG Michael J. Reddy

    paradigma dos fabricantes de utenslio historicamente, esses dois conceitos

    profundamente diferentes nunca seriam acessados pela mesma palavra. Falar de uma

    srie inteira de entidades levemente ou terrivelmente diferentes como se fossem

    apenas uma resultaria, obviamente, num desastre comunicacional.

    Vemos, ento, que as coisas deram uma virada complicada para nosso idealista

    lingstico. Esta ambigidade da palavra poema para ele uma patologia semntica

    real e severa. Outros falantes, que aceitam a metfora do tubo, podem perfeitamente

    no dar bola para isso. Mas ele no. Esse problema baratina a prpria distino que

    ele mais est preocupado em fazer e em levar outros a fazerem. Mais complicado

    ainda o fato de que esta patologia global. No um desenvolvimento isolado na

    linguagem, envolvendo apenas a palavra poema. Eu discuti poema aqui como um caso

    paradigmtico de uma classe inteira de palavras em ingls que denotam sinais.

    Exemplos anlogos so disponveis para todos as palavras s discutidas anteriormente

    palavra, frase, sentena, ensaio, novela, e etc. Mesmo a palavra texto tem dois

    sentidos, como fica evidente em (44) e (45):

    (44) I am tired of illegible texts (45) The text is logically incoherent.24

    Alm disso, todos os nomes prprios de textos, poemas, peas, novelas,

    discursos parecem poder compartilhar esta ambigidade. Observem:

    (46) The Old Man and the Sea is 112 pages long (47) The Old Man and the Sea is deeply symbolic25

    Na medida em que me tornei consciente desta patologia semntica sistemtica,

    24 (44) Estou cansada de textos ilegveis.

    (45) O texto logicamente incoerente.

    25 (46) O Velho e o Mar tem 112 pginas.

    difundida, me tornei, claro, menos impressionado com as dificuldades causadas por

    Im sorry26. Pois aqui havia um caso que envolvia mais palavras que qualquer

    patologia que eu j tinha ouvido. Alm disso, este caso mostrou que as estruturas

    semnticas poderiam ser completamente normais com respeito a uma certa viso da

    realidade, e, ao mesmo tempo, patolgicas com relao a uma outra. Ou, em outras

    palavras, aqui h uma forte evidncia de que a linguagem e as vises da realidade tm

    que se desenvolver de mos dadas. Finalmente, notei tambm que esta patologia nova,

    potencial, afetava o que poderia ser chamado de morfosemntica das palavras

    envolvidas. Suponhamos, por exemplo, que ns pluralizemos a palavra poema. Como

    mostrado em (48)

    (48) We have several poems to deal with today,

    a pluralizao produz uma forma cujos referentes mais naturais so uma

    multiplicidade de POEMA1, ou seja, uma srie de textos diferentes. Seria bem pouco

    natural enunciar (48) e querer dizer que h diversos POEMA2 internos, o POEMA2 de

    Michael, o POEMA2 de Mary, o POEMA2 de Alex, e etc., todos construdos a partir

    do mesmo poema, e que deveriam ser discutidos num determinado dia. O que isto

    significa que, apesar de POEMA1 pluralizar com a mudana morfolgica, o outro

    sentido, POEMA2, perdido nesta mudana. No caso de nomes prprios, a

    pluralizao ainda mais problemtica. Para a maioria dos nomes de textos, no h

    morfologia definida para o plural. Como haveria nosso subjetivista-radical-em-

    desenvolvimento pluralizar The Old Man and the Sea? Ser que ele diria Our

    internal The Old Man and the Sea-s? Ou seria Our internal The Old Man and the

    (47) O Velho e o Mar profundamente simblico.

    26 Sinto muito, exemplo tratado anteriormente.

  • Linguagem e Biologia A Metfora do Tubo 16 Depto. de Lingstica - FALE/UFMG Michael J. Reddy

    Sea27? Observem que no ajudaria muito usar (49) ou (50)

    (49) Our versions of the poem. (50) Our versions of The Old Man and the Sea.28

    Pois, em (49), a palavra poem significa POEMA1, ento esta frase se aplica s

    variantes do texto que no o que ele quer dizer. Por outro lado, se poem significa

    POEMA2, ento nosso subjetivista radical continua com problemas. Agora parece que

    h um POEMA2 adequado e correto, disponvel para todos ns, que contudo ns

    devemos, por questes de gosto, modificar levemente. O subjetivismo radical, a

    absoluta impossibilidade de transferir qualquer POEMA2 correto, completamente

    abafado por (49) e (50). Este fato importantssimo, de que h um POEMA1 mas

    necessariamente muitos POEMA2 no pode ser expresso de jeito nenhum nem

    facilmente, nem consistentemente ou naturalmente.

    Essa discusso, apesar de no tratar de tudo o que teria que ser tratado, fornece

    uma ilustrao inicial do que aconteceria a algum que realmente tentasse descartar a

    metfora do tubo e pensar sria e coerentemente em termos do paradigma dos

    fabricantes de utenslio. Essa pessoa encontraria dificuldades lingsticas srias, para

    dizer o mnimo, e claramente teria que criar uma nova linguagem medida que

    reestruturasse seu pensamento. Mas, claro, ela faria isso somente se ela

    compartilhasse nossa conscincia atual do poder enviesador da metfora do tubo. At

    onde eu sei, nenhum dos pensadores que tentaram apresentar teorias alternativas da

    linguagem e da natureza do significado tiveram essa conscincia. Entretanto, a

    metfora do tubo passou-os para trs, sem que eles sequer soubessem o que estava

    27 Como pluralizar o nome de um livro: Nossos O Velho e o Mar-es internos? ou Nossos O Velho e o Mar internos?

    28 (49) Nossas verses do poema. (50) Nossas verses de O Velho e o Mar.

    acontecendo. claro que os problemas causados por essa confuso em esttica e

    crtica so numerosos, e fcil documentar minhas afirmaes analisando trabalhos

    nesta rea. Todavia, uma documentao mais convincente de fato, a documentao

    mais convincente que algum poderia desejar s vai ser encontrada na histria do

    desenvolvimento da teoria matemtica da informao. Aqui, se que alguma vez

    aconteceu, tanto com uma lgebra destituda do sentido de informao e com

    mquinas processuais sendo usadas como modelo, o efeito da metfora do tubo

    deveria ter sido evitado. Mas, na verdade, no foi. E a base conceitual da nova

    matemtica, apesar do mesmo no ter acontecido com a matemtica em si, foi

    completamente obscurecida pelas patologias semnticas da metfora do tubo.

    O quadro conceitual da teoria matemtica da informao tem muito em comum

    com nosso paradigma dos fabricantes de utenslio. Informao definida como a

    habilidade de fazer selees no randmicas para um conjunto de alternativas.

    Comunicao, que a transferncia desta habilidade de um lugar a outro, concebida

    como ocorrendo da seguinte maneira. O conjunto de alternativas e um cdigo

    relacionando estas alternativas a sinais fsicos so estabelecidos, e uma cpia de cada

    colocada tanto no terminal de envio quanto no terminal de recebimento do sistema.

    Este ato cria o que conhecido como um contexto compartilhado aprioristicamente,

    um pr-requisito para atingir qualquer comunicao que seja. Na extremidade de

    transmisso, a seqncia de alternativas chamada a mensagem escolhida para

    comunicao com a outra extremidade. Mas essa seqncia de alternativas no

    enviada. Ao invs disso, as alternativas escolhidas so sistematicamente relacionadas

    pelo cdigo a alguma forma de padres de energia que podem viajar rapidamente e

    reter sua forma enquanto viajam ou seja, os sinais.

    O problema com esses sistemas que as alternativas, elas mesmas, no so

    mveis e no podem ser enviadas, enquanto os padres de energia, os sinais, sim,

  • Linguagem e Biologia A Metfora do Tubo 17 Depto. de Lingstica - FALE/UFMG Michael J. Reddy

    so mveis. Se tudo vai bem, os sinais, quando chegam na extremidade de

    recebimento, so usados para duplicar o processo de seleo original e recriar a

    mensagem. Ou seja, usando as relaes entre o cdigo e a cpia do conjunto original

    de alternativas, o terminal de recebimento pode fazer as mesmas selees que eram

    feitas antes na extremidade de transmisso quando a mensagem era gerada. A

    quantificao possvel neste modelo somente porque se pode estabelecer medidas de

    quanto os sinais recebidos limitam as escolhas possveis das alternativas preexistentes.

    Em termos do nosso paradigma de fabricantes de utenslio, o conjunto pr-

    definido de alternativas da teoria da informao corresponde quilo que chamamos de

    repertrio. Os ambientes das pessoas no conjunto roda-de-vago tm todas muito em

    comum se no fosse assim seu sistema de instrues no funcionaria de jeito

    nenhum Os sinais da teoria matemtica so exatamente o mesmo que nossos sinais

    padres que podem viajar, que podem ser intercambiados. No mundo do conjunto,

    eles so as folhas de papel enviados para diante e para trs. Notem, agora, que na

    teoria da informao, assim como em nosso paradigma, as alternativas as

    mensagens no esto contidas nos sinais. Se fosse para os sinais chegarem no

    terminal de recebimento, o conjunto de alternativas chegaria estragado ou perdido, e

    as selees adequadas no poderiam ser feitas. Os sinais no tm capacidade de trazer

    alternativas com eles; eles no carregam nenhuma rplica, por menor que seja, da

    mensagem. A noo inteira de informao como o poder de fazer selees descarta

    a idia de que sinais contm a mensagem.

    Agora, isto pode ser excessivamente claro quando falado assim desta maneira.

    E parece que permanece claro enquanto a teoria da informao for restrita a

    aplicaes simples, tcnicas. Mas como a maioria de vocs sabe, esta teoria foi

    aventada como sendo uma ruptura potencial para a biologia e as cincias sociais. E

    foram feitas numerosas tentativas de estender sua aplicabilidade de forma a incluir a

    linguagem e comportamento humanos (ver Cherry, 1966). Tais tentativas, claro, no

    eram simples e meramente tcnicas. Elas exigiam uma compreenso muito clara, no

    tanto da matemtica desta teoria, mas dos seus fundamentos conceituais. De maneira

    geral, essas tentativas todas acabaram sendo um fracasso. Eu acho que a razo para

    esses fracassos foi a interao da metfora do tubo com os fundamentos conceituais

    da teoria da informao. To logo as pessoas se aventuraram para longe da bem

    definida e original rea da matemtica, e foram foradas a se basear mais na

    linguagem ordinria, o insight essencial da teoria da informao foi embaralhado, sem

    chance de recuperao.

    O impacto destrutivo da linguagem ordinria sobre quaisquer extenses da

    teoria da informao comea com os prprios termos que os seus criadores (Shannon

    & Weaver, 1949), escolheram para nomear partes do paradigma. Eles chamaram o

    conjunto de alternativas, ao qual nos referimos aqui como sendo o repertrio, de

    alfabeto. verdade que na telegrafia o conjunto de alternativas de fato um alfabeto

    e a telegrafia era seu exemplo paradigmtico. Mas eles deixaram bastante claro que

    a palavra alfabeto era para eles uma cunhagem tcnica que deveria se referir a

    qualquer conjunto de estados alternativos, comportamentos, ou o que voc quiser.

    Mas esta pea de nomenclatura problemtica quando estamos tratando de

    comunicao humana. Durante anos eu ensinei teoria da informao numa forma no

    matemtica para futuros professores de ingls, usando o termo alfabeto. Isto sempre

    pareceu confundi-los, apesar de eu nunca ter conseguido saber porqu, at que um

    ano, um estudante levantou a mo e disse, Mas voc no pode chamar de sinais estas

    alternativas. O que me parece estranho, em face disto, que Weaver, particularmente,

    que era muito preocupado com a aplicao da teoria comunicao humana, no

    pareceu ter percebido isso. Isso confunde toda distino importante entre sinais e

    membros de repertrio. Substituir o termo alfabeto pelo atual, repertrio, facilitou em

  • Linguagem e Biologia A Metfora do Tubo 18 Depto. de Lingstica - FALE/UFMG Michael J. Reddy

    muito meu ensino.

    Mas um outro erro terminolgico faz parecer ainda mais provvel que os

    prprios Shannon e Weaver nunca tiveram muita clareza da importncia dessa

    distino para seu sistema. Considerem a escolha do termo mensagem para

    representar a seleo de alternativas do repertrio. Mensagem, como os exemplos

    abaixo mostram, padece da mesma patologia semntica que poema.

    (51) I got your message (MESSAGE1), but had no time to read it.

    (52) Okay, John, I get the message (MESSAGE2); lets leave him alone.29

    Para a teoria da informao, isso extremamente confuso, porque MENSAGEM1

    significa literalmente um conjunto de sinais, enquanto MENSAGEM2 significa os

    membros do repertrio envolvidos na comunicao. Para o pensamento da metfora

    do tubo, no qual enviamos e recebemos MENSAGEM2 dentro da MENSAGEM1, a

    ambigidade trivial. Mas para uma teoria baseada inteiramente na noo de que uma

    mensagem (MENSAGEM2) nunca enviada a nenhum lugar, esta escolha de palavras

    leva a um colapso do paradigma. Shannon e Weaver eram bastante cuidadosos em

    indicar que os sinais recebidos no eram necessariamente o sinal transmitido por

    causa das possveis intervenes de distoro e rudo. Mas eles escreveram, felizes, a

    palavra mensagem no lado direito, o lado da recepo, do seu famoso paradigma

    (Shannon & Weaver, 1949, p.7). No final das contas eles deveriam ter escrito

    mensagem reconstruda l. Na sua teoria, algo reconstrudo naquele lado direito

    que, espera-se, se parea com a mensagem original do lado esquerdo. Essa

    ambigidade de mensagem devia t-los levado a ver esta palavra como um desastre, e

    nunca considerar a possibilidade de us-la.

    29 (51) Recebi sua mensagem (MENSAGEM1) mas no tive tempo de l-la.

    (52) Tudo bem, Joo, captei a mensagem (MENSAGEM2); vamos deix-lo sozinho.

    Se eles no o fizeram, acredito que seja por causa de seus processos de

    pensamento respondendo ao efeito enviesante da metfora do tubo. Weaver, ao que

    parece, no podia ter a teoria clara em sua mente quando falava de comunicao

    humana, e usou expresses da metfora do tubo quase constantemente. Com que grau

    de preciso, ele perguntou, os smbolos transmitidos veiculam o significado

    desejado? [o itlico meu] (p. 4). Ou ele comparou duas mensagens, uma das quais

    fortemente carregada com sentido e a outra que puro nonsense. (p. 8) Na

    verdade, parece que ele ainda pensava que MENSAGEM2, os membros do repertrio,

    eram enviados pelo canal, apesar de isto arruinar com a noo de informao como

    poder seletivo. Weaver escorrega significativamente quando descreve a ao do

    transmissor. Ele muda, ele disse, a mensagem em sinal [aqui o itlico de

    Weaver] (p. 7). Na verdade, esta uma descrio estranha. Um cdigo uma relao

    entre dois sistemas distintos. Ele no muda nada em nenhuma outra coisa. Ele

    meramente preserva no segundo sistema o padro da organizao presente no

    primeiro sistema. Marcas ou sons no viram pulsos eletrnicos. Nem h pensamentos

    e emoes magicamente metamorfoseados em palavras. De novo, isso o pensamento

    da metfora do tubo. No h qualquer justificativa na teoria da informao para se

    falar sobre comunicao desta maneira.

    Vale a pena notar que Shannon, que na verdade veio da matemtica, pode ter

    tido uma compreenso mais coerente do que Weaver. A certa altura de sua exposio,

    Shannon usou exatamente os termos certos da linguagem ordinria. Ele escreveu: O

    recebedor ordinariamente realiza a operao inversa da realizada pelo transmissor,

    reconstruindo a mensagem a partir do sinal. (p.34). Mas ainda assim no parece que

    ele percebeu o estrago feito no paradigma pelas metaforices do tubo dele prprio e de

    Weaver.

    Quase exatamente o mesmo pode ser dito de outras maneiras de falar

  • Linguagem e Biologia A Metfora do Tubo 19 Depto. de Lingstica - FALE/UFMG Michael J. Reddy

    associadas teoria da informao. Elas violentam a teoria, apesar de sustentar e

    apoiar admiravelmente a metfora do tubo. Considerem codificar e decodificar. Essas

    palavras significam pr os membros do repertrio em cdigo, e ento tir-las fora do

    cdigo, respectivamente. Ou pensem no termo contedo informativo. A teoria

    concebe informao como o poder de reproduzir uma organizao por meio de

    selees no randmicas. Sinais fazem algo. Eles no podem conter nada. Se a

    metfora do tubo fosse capaz de influenciar processos de pensamento, ento porque

    uma gerao inteira de tericos da informao falou desse modo confuso e nocivo?

    Teramos que supor que Weaver e muitos pesquisadores que o seguiram eram

    simplesmente auto-destrutivos profissionalmente. Parece mais fcil acreditar que a

    lngua inglesa tinha o poder de baratin-los.

    Uma antologia recente, que reuniu esforos de psiclogos e socilogos para

    criar uma teoria da comunicao para interaes humanas, diz na introduo que os

    investigadores ainda tm que estabelecer uma definio de comunicao

    completamente aceitvel (Sereno & Mortensen, 1970, p.2). E segue dizendo:

    Os modelos baseados numa concepo matemtica descrevem comunicao como anloga a operaes de uma mquina processadora de informao: um evento ocorre, no qual uma fonte ou emissor transmite um sinal ou mensagem atravs de um canal para um destinatrio ou recebedor. [itlico da antologia]. (p.71)

    Observem a afirmao transmite um sinal ou mensagem. Aqui, vinte e um anos

    depois de Shannon e Weaver, a mesma confuso persiste a mensagem pode ser

    ou no enviada? E essa confuso persiste em quase todos os artigos do volume.

    Considerem ainda mais um exemplo s. A teoria [da informao] estava preocupada

    com o problema de definir a quantidade de informao contida numa mensagem a ser

    transmitida (p. 62). Observem que aqui a informao est contida numa

    mensagem transmitida. Se o autor quis dizer MENSAGEM1, ento ele est

    pensando em termos da metfora do tubo, e est dizendo que a informao est

    contida nos sinais. Se ele quis dizer MENSAGEM2, ento ele est dizendo que os

    membros do repertrio, que so transmitidos dentro dos sinais, tm dentro deles

    alguma coisa chamada informao, que pode ser medida. De qualquer modo, o insight

    da teoria da informao teria sido soterrada.

    Implicaes sociais

    Gostaria de concluir com algumas observaes sobre as implicaes sociais da

    situao que descrevi. Se a lngua inglesa tem uma idia menos do que acurada de seu

    prprio trabalho, e se ela tem o poder de enviesar processos de pensamento na direo

    de seu modelo, qual o impacto prtico que isso tem? Vimos evidncias de que a

    metfora do tubo pode confundir srias tentativas de se construir uma teoria mas

    isso tem alguma importncia para o homem comum, para a cultura de massa, para a

    elaborao de polticas federais?

    Preciso limitar-me a sugerir dois modos pelos quais a metfora do tubo

    importa para todos os falantes do ingls. Para discutirmos o primeiro deles, eu

    gostaria de voltar para as histrias contadas numa seo anterior e acrescentar uma

    conseqncia final.

    Aconteceu que um certo ano um mgico do mal, especialista em hipnose, voou

    sobre o complexo dos fabricantes de utenslio. Olhando para baixo ele viu que, apesar

    das formidveis desvantagens, A, B, C e D estavam at que se saindo bem com seu

    sistema de envio de instrues. Eles estavam bem alertas para o fato de que comunicar

    dava muito trabalho. E seus sucessos eram extremamente recompensadores para eles,

    porque mantiveram um inigualvel sentido de surpresa e deslumbramento de que eles

    pudessem sequer fazer aquele sistema funcionar. Era quase um milagre dirio, que

    aprimorou seus respectivos padres de vida imensamente. O mgico malvado ficou

  • Linguagem e Biologia A Metfora do Tubo 20 Depto. de Lingstica - FALE/UFMG Michael J. Reddy

    muito aborrecido com isto, e decidiu fazer a pior coisa que ele poderia pensar em

    fazer com A, B, C e D. E o que ele fez foi hipnotiz-los de uma maneira especial de

    forma que, aps terem recebido um conjunto de instrues e batalhado para construir

    alguma coisa baseada nelas, eles imediatamente se esqueciam disto. No seu lugar,

    plantou neles uma memria falsa de que o objeto tinha sido enviado a eles diretamente

    por uma outra pessoa, atravs de um mecanismo maravilhoso no eixo central de seu

    complexo. E, claro, isto no era verdade. Eles prprios ainda tinham que construir

    os objetos a partir de seus prprios materiais mas o mgico tornou-os cegos para

    isto.

    Como se pode verificar, a sagacidade do mgico do mal era enorme. Pois

    mesmo apesar de o sistema de comunicaes do complexo no ter mudado nem um

    pouco, objetivamente falando, ele rapidamente caiu em desuso e decadncia. E junto

    com sua desintegrao, desintegrou-se o esprito de harmonia e progresso coletivo que

    tinha sempre caracterizado as relaes de A, B, C e D. Pois agora, uma vez que eles

    iriam sempre se esquecer de que eles prprios tinham montado um objeto construindo

    uma responsabilidade amplamente compartilhada por sua forma, era fcil ridicularizar

    o remetente por quaisquer defeitos. Eles tambm comearam a gastar menos e menos

    tempo trabalhando para montar coisas, porque, uma vez baixado o bloqueio mental,

    eles no tinham qualquer sentimento de recompensa por um trabalho bem feito. To

    logo eles terminavam uma montagem a hipnose teria efeito, e subitamente bem,

    mesmo estando eles cansados, ainda assim o trabalho pesado e criativo de montar a

    pea teria sido realizado por um outro companheiro qualquer. Qualquer bobo poderia

    pegar um produto acabado de dentro da cmara do eixo. Assim, eles acabaram por ter

    raiva de qualquer atividade de montagem que envolvesse trabalho real, e portanto a

    abandonaram. Mas este no era o pior efeito previsto pelo mgico do mal ao

    pronunciar suas peculiares palavras. Pois, de fato, no se passou muito tempo at que

    cada uma das pessoas comeasse a entreter, privadamente, a idia de que todos os

    outros tinham ficado loucos. Um enviaria instrues para os outros por algum

    dispositivo do qual ele estaria particularmente orgulhoso, como ele sempre tinha feito.

    S que agora, claro, ele acreditava que tinha enviado no instrues, mas a coisa em

    si. Ento, quando os outros enviassem de volta para ele instrues, para confirmar que

    tinham recebido a sua, ele montaria o objeto, se esqueceria, pensaria que eles tinham

    mandado de volta a coisa em si, e ento se horrorizariam com o que acabavam de ver.

    Ele tinha mandado para eles um maravilhoso utenslio, e eles lhe retornaram grotescas

    pardias. O que poderia de fato explicar isso? Tudo o que tinham que fazer era

    remover seu objeto com sucesso da cmara do maquinrio Como que podia eles

    mudarem o objeto de maneira to grosseira realizando uma operao de uma

    simplicidade quase estpida? Seriam eles imbecis? Ou haveria alguma maldade no seu

    comportamento? No final, A, B, C e D todos chegaram, privadamente, concluso de

    que os outros tinham ou se tornado hostis ou loucos varridos. O que quer que tenha

    acontecido, no importava muito. Nenhum deles continuou a levar a srio o sistema

    de comunicao.

    Dentre outras coisas, esta continuao tenta esboar alguns dos efeitos sociais

    e psicolgicos de se acreditar que a comunicao um sistema de sucesso sem

    esforo, quando, na verdade, um sistema de ter que despender energia. Tenho

    certeza de que ningum deixou de se dar conta de que, na medida em que a parbola

    se aplica, o mgico do mal a lngua inglesa, e suas palavras hipnticas so o vis

    imposto sobre nossos processos de pensamento pela metfora do tubo. Esse modelo

    de comunicao objetifica o significado de forma enganadora e desumanizante. Ele

    nos influencia a falar e pensar sobre pensamentos como se eles tivessem o mesmo tipo

    de realidade externa, intersubjetiva que tm os abajures e mesas. Ento, quando esse

    pressuposto se prova dramaticamente falso em operao, parece no haver nada a ser

  • Linguagem e Biologia A Metfora do Tubo 21 Depto. de Lingstica - FALE/UFMG Michael J. Reddy

    responsabilizado exceto nossa prpria estupidez ou maldade. como se ns

    tivssemos um computador muito grande, muito complexo mas tivssemos

    recebido o manual de instrues errado. Acreditamos coisas erradas sobre ele,

    ensinamos a nossas crianas as coisas erradas sobre ele, e simplesmente no

    conseguimos um uso pleno ou mesmo moderado de seu sistema.

    Um outro ponto desta histria que vale a pena enfatizar que, na medida em

    que a metfora do tubo v a comunicao como exigindo um gasto de energia

    mnimo, ele localiza esse gasto quase totalmente no falante ou escritor. A funo do

    leitor ou ouvinte trivializada. O paradigma subjetivista radical, por outro lado, torna

    claro que os leitores e ouvintes encaram uma dificuldade e uma tarefa altamente

    criativa de reconstruo e testagem de hipteses. provvel que fazer este trabalho

    requeira bem mais energia do que a metfora do tubo nos levaria a prever.

    Mas estamos ainda muito longe destes efeitos no que diz respeito poltica

    governamental. Voltemos, ento, para o segundo exemplo do impacto da metfora do

    tubo, que nos ajudar a cobrir esta falha. A expresso empregada em (53), nmero

    114 do Apndice, (53) Youll find better ideas than that in the library,30

    derivada da metfora do tubo por uma cadeia de metonmias. Ou seja, pensamos nas

    idias como se elas existissem nas palavras, que esto claramente l, sobre as pginas.

    Assim as idias esto l, nas pginas, por metonmia. Agora as pginas esto nos

    livros e de novo, por metonmia, esto tambm as idias. Mas os livros esto nas

    bibliotecas, com o resultado final de que as idias, tambm, esto nas bibliotecas. O

    efeito disto, e de muitas outras expresses nucleares do quadro conceitual menor,

    sugerir que as bibliotecas, com seus livros, e fitas, e filmes, e fotografias, so os

    repositrios reais de nossa cultura. E se isto verdade, ento naturalmente ns e o

    30 (53) Voc vai encontrar idias melhores do que esta na biblioteca.

    perodo moderno estamos preservando nossa herana cultural melhor do que qualquer

    outra poca, porque temos mais livros, filmes, fitas, e assim por diante, armazenados

    em mais e em maiores bibliotecas.

    Suponhamos agora que abandonamos a metfora do tubo e pensemos nesta

    mesma situao em termos do paradigma dos fabricantes de utenslio. Deste ponto de

    vista, claro que no h idias nas palavras, e portanto nenhuma idia nos livros, nem

    em quaisquer fitas ou gravaes. No h idias ou algo que o valha em quaisquer

    bibliotecas. Tudo o que est armazenado nesses lugares so estranhos pequeninos

    padres de marcas ou relevos, ou partculas magnetizadas capazes de criar estranhos

    padres de rudo. Agora, se um ser humano aparece sendo capaz de usar essas marcas

    e sons como instrues, ento este ser humano pode montar dentro de sua cabea

    alguns padres de pensamento ou sentimento ou percepo que se parece com os de

    seres humanos inteligentes que no esto mais vivos. Mas esta uma tarefa difcil,

    pois esses seres que no vivem mais viram um mundo diferente do nosso, e usaram

    instrues de linguagem um pouco diferentes. Assim, se esse ser humano que adentra

    uma biblioteca no tiver sido ensinado na arte da linguagem, de forma a ser rpido e

    preciso e exaustivo na aplicao das instrues, e se ele no tem um repertrio

    bastante cheio e flexvel de pensamentos e sentimentos do qual tirar coisas, ento no

    parece possvel que ele reconstrua em sua cabea qualquer coisa que merea ser

    chamada de sua herana cultural.

    Obviamente, o paradigma dos fabricantes de utenslio deixa claro que no h

    qualquer cultura nos livros ou bibliotecas e que, na verdade, no h cultura nenhuma a

    menos que ela seja cuidadosamente, e com muito esforo, reconstruda nos crebros

    humanos de cada gerao nova. Tudo o que preservado nas bibliotecas uma mera

    oportunidade de efetuar essa reconstruo. Mas se as habilidades lingsticas e o

    hbito de se envolver na reconstruo no so igualmente preservados, ento no

  • Linguagem e Biologia A Metfora do Tubo 22 Depto. de Lingstica - FALE/UFMG Michael J. Reddy

    haver qualquer cultura, no importa quo grande e completas as bibliotecas possam

    se tornar. No preservamos idias construindo bibliotecas e gravando vozes. O nico

    jeito de preservar cultura treinar as pessoas a reconstru-la, a faz-la crescer de

    novo, como a prpria palavra cultura sugere, no nico lugar em que ela pode crescer

    dentro de ns mesmos.

    A diferena de ponto de vista aqui entre a metfora do tubo e o paradigma dos

    fabricantes de utenslio sria, se no profunda. Os humanistas parecem estar

    morrendo nos dias de hoje, e administradores e governantes parecem sentir pouco

    remorso em deixar isto ocorrer. Ns temos o maior, o mais sofisticado sistema de

    comunicao de massa em qualquer sociedade de que temos notcia, e ainda, de algum

    modo, comunicao de massa se torna mais e mais sinnimo de menos comunicao.

    Por que isso assim? Uma razo, ao menos: pode ser que ns estejamos seguindo

    nosso manual de instrues para uso do sistema da linguagem com muito cuidado

    mas seguindo o manual errado. Temos a viso equivocada, influenciada pela metfora

    do tubo, de que quanto mais sinais criarmos, e quanto mais sinais preservarmos, mais

    idias transferiremos e armazenaremos. Negligenciamos a habilidade humana

    crucial de reconstruir padres de pensamento com base nos sinais, e esta habilidade

    vai naufragar. Afinal de contas, extrao um processo trivial, que no requer

    ensino alm do nvel mais rudimentar. Temos, portanto, de fato, menos cultura ou

    certamente nenhuma cultura mais do que outras, menos inclinadas mecanicamente,

    que j existiram. Humanistas, aqueles tradicionalmente incumbidos de reconstruir a

    cultura e de ensinar outros a reconstru-la, no so necessrios no esquema da

    metfora do tubo. Todas as idias esto l na biblioteca para quem quiser entrar l e

    peg-las. No paradigma dos fabricantes de utenslios, por outro lado, os prprios

    humanistas so os repositrios, e o nicos repositrios reais de idias. Nos termos

    mais simples, a metfora do tubo deixa idias humanas escapulirem dos crebros

    humanos de forma que, uma vez que tivermos tecnologias de gravao, no

    precisamos mais de humanos.

    Estou sugerindo, ento, que do mesmo modo que uma renovao urbana

    enganou os polticos discutidos no artigo de Schn, a metfora do tubo est nos

    levando por uma via tecnologicamente e socialmente cega. Aquela via cega so os

    sistemas de comunicao de massa acoplados com uma negligncia massiva dos

    sistemas internos, humanos, responsveis por nove dcimos do trabalho na

    comunicao. Pensamos que estamos capturando idias em palavras, e passando-as

    por um funil para entreg-las ao maior pblico na histria do mundo. Mas se no h

    idias dentro desta infinita enxurrada de palavras, ento tudo o que estamos fazendo

    reprisar o mito de Babel encenando-o, desta