kelsen, leitor de karl marx: interpretaÇÃo … · resumo este artigo é ... à teoria marxista...

26
4877 KELSEN, LEITOR DE KARL MARX: INTERPRETAÇÃO POSITIVISTA DA NOÇÃO MARXIANA DE DIREITO, ESTADO E DEMOCRACIA KELSEN, READER OF KARL MARX: POSITIVE INTERPRETATION OF THE MARXIST CONCEPT OF LAW, STATE AND DEMOCRACY Éder Ferreira RESUMO Este artigo é resultado de pesquisa descritivo-bibliográfica, tendo como principais fontes as seguintes obras de Hans Kelsen: Socialismo y Estado; Teoria comunista del derecho y del Estado; e A democracia. O objetivo central da pesquisa foi identificar as críticas de Kelsen à concepção marxiana de direito, Estado e democracia. O trabalho consistiu no levantamento das críticas kelsenianas com posterior exposição dos argumentos que as sustentam. Como principal resultado pode-se citar que a crítica que Hans Kelsen interpõe à teoria marxista apóia-se na interpretação literal das definições de Estado e direito ao longo das obras de Marx. Sua crítica incide, principalmente, sobre o método; as relações entre realidade (infra-estrutura) e ideologia (superestrutura); e as contradições decorrentes de oscilação semântica no emprego de alguns termos como direito, Estado e democracia. PALAVRAS-CHAVES: DIREITO; ESTADO; DEMOCRACIA; SOCIALISMO; TEORIA MARXIANA ABSTRACT This article is the result of research-descriptive literature, with the main sources the following works of Hans Kelsen: Socialism and State; Theory communist of right and state; and Democracy. The central objective of the research was to identify the critical of Kelsen the marxist conception of law, state and democracy. The work consisted in the removal of the criticisms kelsenians with subsequent exposure of the arguments that contend.As the main result may be that a criticism of Hans Kelsen takes the Marxist theory is based on the literal interpretation of the definitions of state and right along the works of Marx. His criticism focuses, especially on the method, the relationship between reality (infrastructure) and ideology (superstructure) and the contradictions arising from fluctuation in the semantics of some terms such as employment law, government and democracy. Trabalho publicado nos Anais do XVII Congresso Nacional do CONPEDI, realizado em Brasília – DF nos dias 20, 21 e 22 de novembro de 2008.

Upload: haliem

Post on 16-Dec-2018

217 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

4877

KELSEN, LEITOR DE KARL MARX: INTERPRETAÇÃO POSITIVISTA DA NOÇÃO MARXIANA DE DIREITO, ESTADO E DEMOCRACIA

KELSEN, READER OF KARL MARX: POSITIVE INTERPRETATION OF THE MARXIST CONCEPT OF LAW, STATE AND DEMOCRACY

Éder Ferreira

RESUMO

Este artigo é resultado de pesquisa descritivo-bibliográfica, tendo como principais fontes as seguintes obras de Hans Kelsen: Socialismo y Estado; Teoria comunista del derecho y del Estado; e A democracia. O objetivo central da pesquisa foi identificar as críticas de Kelsen à concepção marxiana de direito, Estado e democracia. O trabalho consistiu no levantamento das críticas kelsenianas com posterior exposição dos argumentos que as sustentam. Como principal resultado pode-se citar que a crítica que Hans Kelsen interpõe à teoria marxista apóia-se na interpretação literal das definições de Estado e direito ao longo das obras de Marx. Sua crítica incide, principalmente, sobre o método; as relações entre realidade (infra-estrutura) e ideologia (superestrutura); e as contradições decorrentes de oscilação semântica no emprego de alguns termos como direito, Estado e democracia.

PALAVRAS-CHAVES: DIREITO; ESTADO; DEMOCRACIA; SOCIALISMO; TEORIA MARXIANA

ABSTRACT

This article is the result of research-descriptive literature, with the main sources the following works of Hans Kelsen: Socialism and State; Theory communist of right and state; and Democracy. The central objective of the research was to identify the critical of Kelsen the marxist conception of law, state and democracy. The work consisted in the removal of the criticisms kelsenians with subsequent exposure of the arguments that contend.As the main result may be that a criticism of Hans Kelsen takes the Marxist theory is based on the literal interpretation of the definitions of state and right along the works of Marx. His criticism focuses, especially on the method, the relationship between reality (infrastructure) and ideology (superstructure) and the contradictions arising from fluctuation in the semantics of some terms such as employment law, government and democracy.

Trabalho publicado nos Anais do XVII Congresso Nacional do CONPEDI, realizado em Brasília – DF nos dias 20, 21 e 22 de novembro de 2008.

4878

KEYWORDS: LAW; STATE, DEMOCRACY, SOCIALISM; MARXIST THEORY

1. Introdução

O presente trabalho é resultado de pesquisa científica cujo objetivo central consistiu no estabelecimento dos contornos da crítica de Hans Kelsen à teoria marxiana, no que tange às categorias “direito”, “Estado” e “democracia”, localizando suas dimensões, influências e ligações mais evidentes. Quanto aos objetivos, esta pesquisa pode ser classificada, pois, como descritiva, ou seja, “é um levantamento das características conhecidas que compõem o fato/fenômeno/processo” (SANTOS, 2006, p. 26).

Como o objeto científico da pesquisa constitui questão filosófica (crítica kelseniana a textos marxianos), as fontes utilizadas foram livros e artigos científicos de autoria de Hans Kelsen, Karl Marx e de interpretes seus. Desse modo, quanto às fontes e aos procedimentos de coleta de dados, esta pesquisa situa-se no rol das pesquisas bibliográficas.

Apesar de ser uma pesquisa despretensiosa quanto a seus objetivos – não se fecha sobre aspectos explicativos de causas de efeitos e as variações possíveis dessas ligações – sua importância reside no fato de que seu objeto – a crítica de Hans Kelsen à teoria marxiana – constitui assunto inexplorado na literatura nacional[1].

Vale destacar que Kelsen publicou três[2] importantes obras cuja discussão central incidia diretamente ou dependia do debate sobre as concepções de direito, Estado e democracia na obra de Karl Marx, a saber: Socialismo y Estado; Teoria comunista del derecho y del Estado; e A democracia, sendo que os dois primeiros textos não possuem versão traduzida para a língua portuguesa.

Em Socialismo y Estado, publicado pela primeira vez em 1923, Hans Kelsen intenta uma crítica à teoria política de Karl Marx centrada no exame do método, do conceito de Estado e da relação entre Estado e sociedade, mediante a interpretação d’O manifesto do partido comunista e de seus escritos políticos – principalmente A questão judaica e A guerra civil na França.

Já na obra Teoria comunista del derecho y del Estado (1955), Kelsen propõe uma crítica à teoria marxista apoiada na interpretação literal das definições de Estado e direito ao longo das obras de Marx. Sua crítica incide, principalmente, sobre o método; as relações entre realidade (infra-estrutura) e ideologia (superestrutura); e as contradições decorrentes da oscilação semântica no emprego de alguns termos como direito, Estado e democracia.

Por fim, na coletânea de textos denominada A democracia (1956), Kelsen, ao discutir os fundamentos da democracia, faz uma incursão acerca do “problema da economia e da democracia” que consiste na questão de determinar se existe uma relação essencial entre a democracia e um dos dois sistemas econômicos da modernidade: capitalismo e socialismo. Para tanto, a crítica kelseniana é focada, majoritariamente, no princípio da primazia do econômico sobre o político; na doutrina da transição (ditadura do proletariado como democracia); e na ausência de liberdade econômica no socialismo.

4879

A proposta desta pesquisa foi, após uma exploração inicial sobre o tema, identificar a crítica kelseniana à teoria de Karl Marx, a partir da obra Teoria comunista del derecho y del Estado, a qual sintetiza em seu primeiro capítulo o conjunto das críticas opostas ao textos marxianos nas três obras destacadas (Socialismo y Estado; Teoria comunista del derecho y del Estado; e A democracia).

Foram, pois, identificadas – no trecho selecionado da obra Teoria comunista del derecho y del Estado – todas as críticas elaboradas por Kelsen em desfavor das construções teóricas de Karl Marx. Essas críticas foram, então, dispostas conforme apareciam no desenvolvimento do texto kelseniano mediante a intervenção de observações acerca dos argumentos utilizados na formação de referidas críticas. Dentre essas observações, conforme se verificava a homogeneidade e a importância da discussão, foram introduzidos comentários sobre os argumentos e as análises empreendidas por Kelsen nas demais obras destacadas (Socialismo y Estado; e A democracia).

O fato de ter adotado uma obra – Teoria comunista del derecho y del Estado – como referência à crítica de Kelsen ao marxismo não prejudicou a pesquisa uma vez que – exceto pela maior tensão intelectual existente em Socialismo y Estado, pois fora produzida enquanto era construída a teoria pura do direito – as críticas teórico-políticas e teórico-jurídicas dirigidas ao marxismo permaneceram, ao longo das obras, globalmente invariáveis, garantindo uma caráter unitário à crítica kelseniana (MANERO, 1986, p.193)[3].

Antes de iniciar o percurso pelas críticas à teoria marxiana, é necessário lembrar que Kelsen é um intérprete formalista, isto é:

1. prefere sempre a interpretação literal e não se aventura a indagar a “vontade do legislador” (neste caso do autor criticado); 2. Tendenciosamente atribui às palavras significados não deduzidos do contexto, mas extraídos de uma linguagem extra-textual já codificada (a linguagem da Teoria Pura do Direito); 3. Não assinala quase nunca oscilações léxicas e imprecisões semânticas. (GUASTINI, 1989, p. 81 – livre tradução)

Isso quer dizer que a crítica kelseniana é limitada ao cotejamento de definições marxianas (como direito, Estado, democracia, por exemplo) situadas em diferentes obras, mas desconsiderando-se o contexto em que são empregadas. É, pois, em geral, uma crítica lógico-literal.

Outro aspecto que merece menção é o fato de que Karl Marx não elaborou “uma abordagem mais precisa e completa do próprio Direito, enquanto processo inserido no fluxo histórico-social” (WOLKMER, 2000, p.152), e que “toda vez que o intérprete ou Marx mesmo, em textos diferentes ou até no mesmo texto, põem, sob o termo único – Direito – coisas diversas e isoladas, em lugar da totalidade dialética do fenômeno jurídico” (LYRA Fº apud WOLKMER, 2000, p.152).

Feitas as advertências, os resultados podem ser conferidos nas páginas subseqüentes.

2. Apontamentos críticos de Hans Kelsen aos textos marxianos

4880

Hans Kelsen, no Capítulo I – La Teoria del Estado y del derecho de Marx-Engels – da obra Teoría Comunista del Derecho y del Estado, de 1955, centra sua crítica na opção epistemológica da teoria marxiana do direito e do Estado, a qual se desdobra em 28 pontos de crítica, levando em consideração a análise da realidade social soviética, a partir do conjunto das obras de Marx e Engels, em especial a Contribuição à crítica da economia política, O Capital e a Origem da família, da propriedade privada e do Estado.

Kelsen, já no prefácio da obra, indica que a crítica empreendida em relação à teoria comunista do direito e do estado possui caráter exclusivamente científico, isto é, isenta de juízos de valor, quer moral, quer político.

Meus estudos intentam uma crítica científica, isto é objetiva, que não envolve nenhum juízo de valor moral ou político em favor ou contra o sistema social comunista, o qual deve ser distinguido, como realidade social, de sua ideologia. É lógico que toda crítica pressupõe um valor; mas o valor pressuposto por uma crítica científica não é um valor moral ou político, mas sim lógico; o valor de verdade, não de justiça. (KELSEN, p. 9-10, 1957 – livre tradução)

No trecho acima, o jurista austríaco esclarece o tipo de ciência a que ele se refere, a ciência positiva, caracterizada pela cisão entre ciência e política e cujo método empregado é o lógico. Pretende, pois, que sua análise crítica seja objetiva, isto é, livre dos pré-juízos de ordem ético-política, diferentemente da proposta marxista de ciência.

Kelsen afirma, ainda, existir expressiva influência do materialismo histórico[4] sobre as ciências sociais no século XX, embora discorde de tal perspectiva sob a acusação de que, na União Soviética, tenha degradado a ciência ao papel de cúmplice do poder. Essa crítica inicial à não-objetividade da ciência na perspectiva do marxismo aparece estampada no trecho que segue:

Existe, por parte de quem se dedica às ciências sociais, certa propensão a reduzir as relações humanas que a ética e o direito apresentam como deveres, responsabilidades ou direitos estabelecidos por normas legais ou morais, a relações fáticas e de poder político ou econômico; e a caracterizar os juízos de valor sobre o bem e o mal, o justo e o injusto, como posições relativas a fatos observáveis mediante a psicologia individual ou social, em lugar de interpretá-los como juízos de conformidade ou desconformidade com uma norma que se propõe válida. (KELSEN, p. 13, 1957 – livre tradução)

Claro está, no texto de Kelsen, o corte epistemológico conferido à teoria jurídica em sua concepção: a norma como objeto de estudo do direito e, portanto, como limite à interpretação científico-jurídica, em cuja essência está assente a indiferença à historicidade, à legitimidade, à eficácia e ao resultado da aplicação da norma, dentre outros fatores considerados meta-jurídicos.

Mas antes de adentrar, com mais vagar, na discussão sobre o método, Hans Kelsen preocupa-se com as definições de “Estado” e “direito” no conjunto da obra de Marx e

4881

Engels. Tais definições ensejaram o primeiro ponto de crítica de Kelsen (1957, p. 22 – livre tradução): “o Estado e o Direito são fenômenos sociais pertencentes à infra-estrutura, ou seja, à base real, ou à superestrutura ideológica?”.

Para compreender o primeiro ponto de crítica kelseniana à teoria comunista do direito e do Estado, é necessário identificar o lugar da infra-estrutura e da superestrutura na teoria marxista.

De acordo com Kelsen (1957, p. 17 – livre tradução), a teoria marxista do direito está vinculada de modo inseparável da teoria do Estado, as quais se baseiam na idéia de que a produção econômica e suas relações sociais correspondentes determinam a origem e o fim do Estado, isto é, “nenhum de ambos fenômenos é um elemento essencial da sociedade humana; existem apenas sob condições econômicas específicas”. Essas condições, conforme aponta Wolkmer (2002, p. 146), referindo-se à crítica de Kelsen à Marx, coincidem com o contexto de uma sociedade dividida em duas classes antagônicas: os exploradores, proprietários dos meios de produção e os trabalhadores, explorados.

Nessa sociedade de classes, o Estado e o direito constituem uma máquina coercitiva que pretende conservar a exploração de uma classe sobre a outra, ou seja, Estado e direito são instrumentos de dominação da classe exploradora, a qual se torna, pois, classe dominante politicamente.

Kelsen (1957, p. 18 – livre tradução), interpretando a teoria marxista do direito e do Estado, afirma que, para Marx, “o poder político da burguesia é efeito de seu poder econômico; que a burguesia chega a ser a classe politicamente dominante porque é a classe economicamente dominante”.

Essa primazia da economia sobre a política, que caracteriza a interpretação materialista da sociedade, possui assento na metáfora marxiana acerca da superestrutura política e jurídica fundada a partir das relações de produção[5], que constituem a estrutura econômica da sociedade[6].

As ‘ideologias’ formam a superestrutura, enquanto a base, a infra-estrutura, representa a realidade social. [...] As ‘superestruturas’ são ‘formas de consciência social’ que Marx caracteriza mais adiante como ‘formas ideológicas nas quais os homens tomam consciência’ da realidade social. Admite-se habitualmente que Marx, ao referir-se a ‘superestruturas jurídicas e políticas’ refere-se ao direito e ao Estado. (KELSEN, 1957, p.19 – livre tradução)

Assim, a ideologia significa para Marx, segundo Kelsen (1957, p. 23), o conteúdo da consciência humana sobre a realidade (social) que se forma em sua mente; mas a consciência ideológica é falsa[7], justamente por ser determinada pela situação social do homem em cuja mente esteja refletida a realidade, especialmente pelos interesses da classe à qual ele pertença.

A isso equivale dizer que a existência social determina a consciência, no sentido de que uma mudança nas condições de existência material, nas relações sociais acarreta uma

4882

mudança nas idéias, concepções e conceitos humanos. Marx compara a consciência humana a um espelho que reflete a realidade, admitindo que a existência social provoque distorções neste espelho.

Uma ideologia é uma forma de consciência que reflete a realidade social de uma maneira deformada, que cria falsamente algo que não existe na realidade, que vela a realidade ou parte de dela em lugar de desvelar-lhe; é um engano e até um auto-engano e, sobretudo, é uma consciência ilusória. (KELSEN, 1957, p. 21 – livre tradução)

Marx admite, pois, haver uma contradição entre realidade e consciência ideológica, advertindo para a necessidade da ciência como meio de desvelar a realidade, superando a ideologia.

Hans Kelsen (1957, p.21) qualifica como “ingênua opinião epistemológica” a de que a consciência do homem reflita a realidade social, sintetizando-a em duas expressões marxianas ditas, por ele, famosas: “O modo de produção na vida material determina o caráter geral do processo social, político e espiritual da vida” e “Não é a consciência (Bewusstsern) dos homens que determina sua existência (Sein), mas pelo contrário sua existência social (gesellschaftliches Sein) que determina sua consciência” (Marx apud Kelsen, 1957, p.21-22 – livre tradução).

Mas o jurista austríaco, ao cotejar essas expressões, reconhece que ambas não são iguais. Identifica em cada uma delas o fator determinante e o determinado: na primeira, somente o modo de produção é determinante e o processo espiritual, o social e o político são determinados; na segunda, a existência social íntegra é determinante e somente é determinado o processo espiritual da vida (consciência). Organizando essa análise em uma tabela, temos:

Tabela 1 - Opinião epistemológica marxista

Expressão marxiana “ingênua” Fator determinante (infra-estrutura)

Fator determinado (superestrutura)

“O modo de produção na vida material determina o caráter geral do processo social, político e espiritual da vida.”

Modo de produção.

Processo espiritual, o social e o político.

“Não é a consciência (Bewusstsern) dos homens que determina sua existência (Sein), mas pelo contrário sua existência social (gesellschaftliches Sein) que determina sua consciência.”

Existência social íntegra.

Processo espiritual da vida (consciência).

Fonte: KELSEN, Hans. Teoría comunista del derecho y del Estado. Buenos Aires: Emecé Ed., 1957, p. 22.

4883

O direito e o Estado, segundo Kelsen (1957, p. 22), são instituições sociais e, como tal, constituem o processo social e político da vida. Assim, conforme a tabela 1, na primeira expressão, o direito e o Estado integram a superestrutura da realidade social, enquanto na segunda expressão integram a infra-estrutura social. Kelsen afirma haver, então, quanto à relação entre realidade e ideologia na teoria marxista, uma “estranha ambigüidade”, a saber, se Estado e direito pertencem à super- ou à infra-estrutura social.

Essa questão desdobra-se, então, conforme se oriente pela primeira ou pela segunda expressão da opinião epistemológica marxiana. Se considerarmos a segunda expressão, por exemplo, isto é, “Não é a consciência dos homens que determina sua existência, mas pelo contrário sua existência social que determina sua consciência”, resta impossível que haja uma consciência verdadeira, já que a consciência do homem é ideológica por estar determinada por sua existência social.

Esse constitui o segundo ponto de crítica kelseniana à teoria marxiana do direito e do Estado: “Não pode haver nenhuma teoria da realidade em geral, e da realidade social em particular que seja verdadeira, isto é, objetiva” (KELSEN, 1957, p. 22-23). Isso porque a afirmação de que “a existência social determina a consciência do homem” deve ser uma teoria verdadeira, isto é, não determinada pela existência social de que quem fez a afirmação.

Dessa constatação lógica kelseniana, surge o terceiro ponto de crítica que pode ser resumido na seguinte afirmação: “não se pode duvidar que Marx apresente sua teoria social como uma descrição não-ideológica, correta, da realidade social; como uma ciência” (KELSEN, 1957, p.23). Marx, segundo Kelsen, recusa que sua existência social tenha determinado sua consciência, ao produzir sua teoria social.

Ainda, no que se refere à relação entre realidade e ideologia na teoria marxista, Kelsen antecipa algumas discussões, adiantando que Marx pretende explicar as deficiências de uma consciência ideológica por meio da explicação das deficiências da realidade social sob as quais ela (consciência ideológica) foi erigida. Mas, se Marx admite que na sociedade comunista perfeita do futuro não haverá consciência ideológica e sim consciência, isto é, ciência; então, a ciência – conteúdo da consciência – deve ser concebida como ideologia, não no sentido depreciativo do termo, mas no sentido de que a consciência é diferente de seu objeto – a realidade social. Eis, assim, o quarto ponto de crítica kelseniana: “O vocábulo ideologia pode ser utilizado não apenas no sentido de uma consciência falsa, ilusória, mas também no sentido de uma consciência cientificamente correta” (KELSEN, 1957, p. 23 – livre tradução).

Outra questão suscitada por Kelsen no campo da contradição entre realidade e ideologia refere-se à descrição de Marx-Engel, n’O Manifesto do Partido Comunista, de que “uma parte da burguesia, e em particular uma parte dos ideólogos burgueses, que tenham se elevado a um nível suficiente para compreender teoricamente o movimento histórico em seu conjunto, convertem-se em proletariado” (MARX apud KELSEN, 1957, p. 23 – livre tradução).

Com essa conversão, os ideólogos burgueses passariam a produzir a verdadeira ciência do movimento histórico, ao invés de ideologia. Essa questão ensejou o quinto ponto de crítica de Kelsen à teoria marxista, que consiste em: “como é possível tal metamorfose, como podem os ideólogos escapar à lei fundamental segundo a qual sua existência

4884

social, ou seja, o fato de pertencer à classe burguesa, determina sua consciência social?” (KELSEN, 1957, p. 24 – livre tradução). Para o jurista austríaco, isto seria “um milagre”.

Mas, retornando à questão inicial, o direito e o Estado na teoria marxista integram a realidade social ou a consciência ideológica? Examinemos, pois, o Estado e o direito como realidade. Para apreciar essas duas categorias, Kelsen parte de uma constatação de Marx na Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, obra na qual a religião, ideologia típica e mais característica, aparece como “teoria geral deste mundo”, “consciência pervertida do mundo”, “o ópio do povo”, “uma ilusão” (MARX apud KELSEN, 1957, p.24 – livre tradução). Nesta obra, Marx afirma, ainda, segundo Kelsen, que a religião e a ciência constituem a existência teórica do homem em contraposição à sua existência prática (realidade).

A partir dessas considerações, Kelsen conclui que apenas podem constituir ideologias uma teoria, uma função do conhecimento, uma forma de consciência e não o seu objeto, isto é, a realidade.

Portanto, apenas determinada – falsa – teoria do Estado ou determinada – ilusória – filosofia do direito, não o Estado ou o direito, podem ser concebidos como ideologias. [...] Aqui o Estado é apresentado como uma realidade social sobre a qual se erige, como superestrutura ideológica, uma ilusória filosofia legal. (KELSEN, 1957, p. 24-25 – livre tradução)

Essa assertiva constitui o sexto ponto crítico de Kelsen à teoria marxista, ou seja, o Estado e o direito, segundo o jus-filósofo positivista, não podem ser considerados ideologias uma vez que integram a realidade social sobre a qual são produzidas determinadas teorias do Estado e filosofias do direito, respectivamente. Kelsen, na realidade, aproveitou a distinção marxiana entre ideologia e realidade, para distinguir Estado de teoria do Estado e direito de filosofia do direito. Essa distinção aparece claramente no texto de Wolkmer:

Kelsen adverte para certa balbúrdia que surge entre a “teoria especial do direito” (ideologia jurídica como função do pensamento e do imaginário dos juristas burgueses/certo modo invertido de interpretação das normas) e o Direito em si (criado por um legislador e aplicado pelos tribunais, não sendo produto de ideólogos e doutrinas “ideológico-especulativas”). (WOLKMER, 2000, p.147)

Nesse sentido, o Estado e o direito apresentam-se como realidade social, isto é, infra-estrutura sobre a qual se fundam as ideologias (teoria do Estado ou filosofia do direito). “O direito não é uma expressão falsa e ilusória, uma expressão que se encontra em contradição com o objeto que expressa. A expressão da realidade econômica que é o direito está em harmonia com a realidade, corresponde à realidade” (KELSEN, 1957, p. 25-26 – livre tradução).

4885

Marx rejeita, então, a idéia de que os soberanos produzem as leis que regulamentam a economia, afirmando que, ao contrário: “A legislação, tanto política, quanto civil, não pode senão expressar a vontade das relações econômicas” (MARX apud KELSEN, 1957, p. 26 – livre tradução).

Inicialmente, Kelsen critica a expressão “vontade das relações econômicas” atribuindo-lhe o predicado de “metáfora bastante problemática”. Depois, considerando que o direito seja expressão das relações econômicas; se essa expressão é correta, isto é, se corresponde à realidade econômica, não há que se falar em direito como ideologia (falsa correspondência com a realidade).

O direito é, pois, segundo Marx, reflexo das relações de produção, mas produz, também efeitos sobre a realidade, conforme se pode ler n’O Capital:

Ao fazer madurar as condições materiais e a combinação em escala social do processo de produção, [o direito] faz madurar as contradições e antagonismos do modo capitalista de produção, e com isto fornece, junto com os elementos para formar uma nova sociedade, a força para fazer explodir a antiga. (MARX apud KELSEN, 1957, p. 26 – livre tradução)

Kelsen (1957, p.27) acredita que Marx, ao acentuar essa harmonia entre a lei e as relações de produção, caracteriza a lei positiva como lei natural. Nesse sentido, Kelsen afirmou ser “uma ironia o fato de que Marx tome de Hegel precisamente esta negação do dualismo entre realidade [Wirklichkeit] e valor e apresente seus postulados ético-políticos revolucionários como leis de desenvolvimento que se realizam por uma vontade natural” (KELSE, 1982, p.184).

Para reforçar seu argumento, o filósofo do direito, cita um trecho em que Marx afirma que as leis inglesas que regulam as fábricas são produtos tão necessários à indústria moderna como os fios de algodão, os dispositivos automáticos e o telégrafo elétrico. Marx admite que se uma lei não estiver em harmonia com as condições reais de produção, perde sua eficácia.

Aí está enunciado o sétimo ponto da crítica de Kelsen à teoria de Marx: “a lei é um efeito da realidade econômica e tem, por sua vez, efeitos sobre essa realidade, ou seja, se a lei está dentro da cadeia de causas e efeitos, está dentro da realidade, e pertence, portanto à infra-estrutura da superestrutura ideológica” (KELSEN, 1957, p.27 – livre tradução).

Por outro lado, no Manifesto do Partido Comunista, Marx refere-se ao Estado e ao direito como categorias integrantes da superestrutura ideológica, juntamente com a religião, a moral e a filosofia[8]. Marx chegou a afirmar que o direito é apenas um “sintoma”, uma expressão de outras relações, nas quais está baseado o poder do Estado (relações de produção).

Disso decorre o oitavo ponto de crítica positivista sobre a teoria marxiana: “Se o direito forma parte da superestrutura ideológica como algo diferente da infra-estrutura e oposta a esta, que é a realidade social constituída pelas relações econômicas, não pode ser

4886

efeito dessas relações e, em especial, não pode ter, por sua vez, efeitos sobre elas” (KELSEN, 1957, p. 30 – livre tradução).

Ora, se o direito interage com a economia que constitui a base real – infra-estrutura da realidade social – direito e economia são integrantes da realidade social. Então não se aplica a esses fenômenos sociais, segundo Kelsen, os planos da infra- e superestrutura.

A questão desdobra-se, então, em outra (nona crítica de Kelsen a Karl Marx), a saber: “a ideologia é ‘realidade’ no mesmo sentido que as relações econômicas que Marx identifica com a realidade; e Marx necessita identificar a realidade com as relações econômicas a fim de opor estas relações, como ‘realidade’, àquelas que deseja desacreditar como ‘ideologia’; sobretudo a religião” (KELSEN, 1957, p.31 – livre tradução).

Ora, se há acontecimentos, por meio dos quais o direito é criado ou aplicado que influem na vida social, e do mesmo modo a vida social influi na formação do direito, então, de acordo com o jurista austríaco, na realidade social há elementos econômicos e legais em uma relação de interação ou interdependência. Assim, direito e Estado são da mesma ordem que as relações de produção (economia), constituindo estratagema da teoria marxiana o tratamento conferido às demais relações como ideologia, para criticá-las.

Em verdade, Kelsen entendeu haver uma verdadeira confusão entre direito e teoria do direito em Marx. Assim, reforçando a questão (sexto ponto de crítica) de que Estado e direito integram a realidade social e que as teorias sobre esses fenômenos é que podem receber, ou não, o predicado de consciência ideológica, Kelsen formulou o décimo ponto de crítica ao materialismo dialético:

Se a função característica de uma ‘ideologia’ consiste em representar erroneamente a realidade, refletir – como um espelho defeituoso – a realidade em forma desvirtuada, nem o Estado nem o direito como instituições sociais reais podem ser ideologias. Apenas uma teoria como função do pensamento, mas também da vontade, pode ser uma ideologia. (KELSEN, 1957, p. 32 – livre tradução)

Para explicar esse ponto considerado contraditório na teoria marxiana, o jus-filósofo positivista centra-se na análise do fenômeno “direito”. Segundo Kelsen, quando Marx aborda o “direito”, na verdade está se referindo a certa teoria do direito, a uma interpretação do fenômeno jurídico e não ao direito em si.

Isso ocorre porque Marx dedicou-se à crítica da moral e do direito, enquanto normas de vida produzidas pela classe dominante aplicáveis, por generalização/extensão à classe dominada, como meio de manter as condições sociais dadas e como instrumento de dominação. O direito enquanto norma, vale dizer, é o direito como valor moral, ordem justa. Daí a afirmação que o direito é uma ideologia, quando, em verdade, segundo Kelsen, a interpretação dos ideólogos burgueses acerca do direito é que se caracteriza como ideologia na medida em que, para eles, o direito é uma norma e, portanto, justo.

4887

Ou seja, o direito é ideologia porque o legislador, mesmo refletindo as relações econômicas, imagina que o direito criado é expressão de um princípio a priori, isto é, de um princípio que não possui influência da história, da cultura, da economia, enfim, de um princípio que possui validade universal. Essa imaginação deformada (teoria) de que o direito advém de princípios a priori é que constitui uma ideologia.

Então, a ideologia jurídica seria a idéia dos legisladores de que o direito é expressão de princípios a priori. Então, Kelsen interpõe o décimo primeiro ponto de crítica à teoria marxina do direito: “Mas há criadores de direito burguês e juristas burgueses que não crêem, nem fazem os demais crer, que o direito é a expressão de princípios a priori, pois não crêem na existência de princípios a priori de direito” (KELSEN, 1957, p. 33 – livre tradução).

Desse modo, Kelsen afirma que a confusão de Marx ocorre na medida em que ele, assim como os ideólogos burgueses, identifica direito com valores morais e, portanto, direito com justiça. Diferentemente, foi a postura adotada por Kelsen em sua Teoria Pura do Direito que, segundo o próprio autor, constitui uma teoria burguesa do direito de caráter anti-ideológico, uma vez que identifica o direito como norma, não em sentido moral, mas em sentido lógico, isto é, de vinculação entre condição e conseqüência nas regras de direito. Desse modo, para Kelsen, a ciência do direito descreve – como toda ciência – o seu objeto de conhecimento, o direito que é uma realidade: a realidade jurídica.

Assim, outra questão observada por Kelsen, que suscitou o décimo segundo ponto de crítica à teoria comunista do direito, diz respeito à relação entre direito e realidade:

Se a relação entre uma norma jurídica que prescreve ou permite certa conduta humana real que corresponde a essa norma, é comparada com a relação entre um objeto real e a sua imagem refletida em, ou por, um espelho, a norma jurídica como idéia na mente do homem, ou na consciência do homem, não representa o papel de espelho que reflete a imagem de um objeto depois que esse objeto tenha sido colocado ante o espelho. Pois primeiro há que se estabelecer a norma e só então pode haver uma conduta real que corresponda a essa norma, é dizer, uma conduta real similar à prescrita ou permitida pela norma jurídica. (KELSEN, 1957, p. 35 – livre tradução)

É que, para Kelsen, a conduta real é que reflete a norma, ou a conduta por ela descrita, não podendo, pois, ser o direito reflexo da realidade. A tabela abaixo pode esclarecer a questão:

Tabela 2 - Norma Jurídica e Conduta Real na metáfora marxiana do espelho

Teoria Objeto real Reflexo

Comunista (Karl Marx) Conduta humana (relações de produção) Direito

Positivista (Hans Kelsen) Direito (como norma posta) Conduta humana

Fonte: KELSEN, Hans. Teoría comunista del derecho y del Estado. Buenos Aires: Emecé Ed., 1957, p. 35.

4888

Conforme enuncia a tabela 2, Karl Marx pretende que o direito seja reflexo das relações de produção (infra-estrutura), mas Kelsen afirma que o direito é pré-existente às condutas humanas, exemplificando que a própria criação de normas jurídicas depende de uma norma anterior, ou seja, a conduta que é o reflexo da norma, não podendo haver distorção entre objeto real e reflexo, uma vez que a conduta deve guardar conformidade com a descrição da norma. Para Kelsen não há, pois, espaço para o emprego do termo “ideologia” – no sentido marxiano – no que tange à relação entre a conduta real e o direito como norma jurídica.

Nesse sentido – direito como norma posta – Kelsen fala em realidade jurídica, uma vez que o significado dos atos de conduta tem lugar no tempo e no espaço (regras espaço-temporal de aplicação de normas, isto é, territorialidade e vigência) e uma ordem jurídica somente é válida se a conduta humana por ela regulada corresponder exatamente a essa ordem.

Após definir “realidade jurídica”, Kelsen a diferencia da “realidade natural”: a partir desta, a conduta humana é interpretada de acordo com as leis de causalidade; e segundo aquela, de acordo com as normas jurídicas, conforme demonstra a tabela abaixo:

Tabela 3 - Realidade Jurídica e Natural

Espécie de Realidade Fato interpretado Paradigma de interpretação

Natural Conduta humana Leis de causalidade

Jurídica Conduta humana Normas Jurídicas

Fonte: KELSEN, Hans. Teoría comunista del derecho y del Estado. Buenos Aires: Emecé Ed., 1957, p. 36.

Diferentemente, Hegel, segundo Kelsen, embasado em uma perspectiva religiosa, no entanto, equipara a realidade jurídica à natural ao afirmar que a realidade natural surge em conformidade com uma norma divina, transcendente, ou seja, emanada do espírito universal – ser supremo. É que, para Hegel, o mundo real é o reflexo da idéia do espírito universal – deus.

Essa postura de Hegel é criticada por Marx que, ao contrário, como já fora mencionado, acredita que as idéias formuladas na cabeça do homem sobre a realidade natural são um mero reflexo dessa realidade. Nesse ponto, Kelsen concorda com Marx, embora não admita a aplicação desse mesmo raciocínio quanto à realidade jurídica, uma vez que a conduta real é a realização do direito – conduta conforme a norma jurídica.

Desse modo, Kelsen afirma que a teoria marxista da ideologia é duplamente contraditória: de um lado, porque considera direito e Estado ora como pertencentes à superestrutura, ora como à infra-estrutura; por outro lado, porque o antagonismo entre realidade e ideologia às vezes é apresentado como imanente à própria realidade. Kelsen apõe, assim, sua décima terceira crítica à teoria marxiana:

4889

Se a idéia é imanente à realidade e forma portanto parte dela, a realidade se compõe de dois elementos muito heterogêneos; e se a idéia adquire caráter de ‘ideologia’, como algo contraditório com a realidade, a especulação chega ao conceito absurdo de uma realidade contraditória consigo mesma. (KELSEN, 1957, p. 37-38 – livre tradução)

Essa crítica parte da formulação marxiana de que há uma contradição entre a forma visível em que aparecem as coisas (aparência) e a verdadeira essência, velada pela superfície ilusória, constituindo tarefa da ciência descobrir os fenômenos disfarçados pela aparência externa. Nesse sentido, a ideologia reflete apenas a aparência externa, com a crença de que esta seja a realidade (essência). Assim, Kelsen conclui que a contradição existe entre as formas de pensar a realidade, não na realidade em si, afirmando ser um “absurdo” que a realidade seja contraditória a si mesma.

Segundo Kelsen, essa construção deve-se ao fato de que tenha sido projetada na realidade uma ideologia que a contradiz. Desse modo, o jurista austríaco faz uma constatação, aqui caracterizada como a décima quarta crítica ao materialismo dialético:

A contradição em que pensa não é a contradição da realidade consigo mesma, mas a contradição de duas ideologias opostas. [...] Em conseqüência, não há autocontradição dentro da realidade representada pelo Estado, mas uma contradição entre duas ideologias, a capitalista e a socialista. (KELSEN, 1957, p. 40-41 – livre tradução)

A explicação de Kelsen dá-se a partir da análise de Marx quanto à contradição do Estado. Segundo Marx (apud KELSEN, 1957, p. 41 – livre tradução), o Estado pretende realizar a razão, havendo, então, uma contradição entre seu destino ideal e suas condições reais: “Desse conflito do Estado político consigo mesmo em todas as partes, pode fazer-se surgir a verdade social”.

Kelsen assevera que não é o Estado que pretende realizar a razão, mas uma teoria apologética do Estado (burguesa). Do mesmo modo, a contradição entre “realidade existente” (capitalismo) e “realidade verdadeira” (socialismo) revela o ideal marxiano. Assim, tais teorias do Estado constituem ideologias e não o Estado em si. Existe, na verdade, para Kelsen, uma contradição entre duas ideologias: a capitalista e a socialista.

Kelsen constata, então, haver duas versões da doutrina da ideologia na obra de Karl Marx, conforme se pode observar na tabela abaixo:

Tabela 4 – Versões da doutrina da ideologia em Marx

Doutrina da ideologia

Contradição essencial Ideologia Explicação

1ª Versão Superestrutura X Infra-estrutura

Direito Uma teoria ideológica apresenta o direito como norma.

2ª Versão Realidade social em autocontradição

Realidade existente

A realidade existente (aparência) oculta a realidade verdadeira

4890

(essência).

Fonte: KELSEN, Hans. Teoría comunista del derecho y del Estado. Buenos Aires: Emecé Ed., 1957, p. 41-2.

Explicitando o conteúdo da tabela 4, tem-se que, de acordo com a primeira versão, uma contradição básica entre a estrutura ideológica e a realidade, constituindo o direito uma ideologia, uma vez que se apresenta como norma, isto é, um valor moral; conforme a segunda versão, a realidade apresenta uma autocontradição entre “realidade existente” e “realidade verdadeira”, em que esta é ocultada por aquela e, nesse caso, a realidade verdadeira é uma norma correspondente ao ideal marxista de justiça.

É justamente com base na segunda versão da doutrina da ideologia que Kelsen formula o décimo quinto ponto de crítica a Marx, assim sintetizado: “Quando Marx aplica ao Estado a distinção entre a realidade existente, meramente externa, e a realidade verdadeira, oculta como Sollen, destino ideal da realidade, adota exatamente o mesmo esquema interpretativo que a doutrina do direito natural” (KELSEN, 1957, p. 42 – livre tradução).

A doutrina do direito natural, segundo Hans Kelsen, caracteriza-se por três elementos: 1º) pressupõe que a justiça/razão é imanente à realidade apresentada como natureza; 2º) é possível deduzir da natureza o direito justo/natural; 3º) constitui tarefa da ciência do direito descobrir referido direito natural oculto na natureza.

A comparação entre a doutrina comunista do direito e a doutrina natural pode ser encontrada na tabela abaixo:

Tabela 5 - Doutrina comunista e natural do direito

Doutrina do Direito

Imanência da Justiça

Justiça é dedutível

Tarefa da ciência Homem

Comunista Realidade econômica

Relações de produção

Desvelar a realidade verdadeira disfarçada pela realidade existente

Livre (pré-história)

Natural Realidade natural

Natureza Descobrir o direito natural ocultado na natureza

Livre (naturalmente)

Fonte: KELSEN, Hans. Teoría comunista del derecho y del Estado. Buenos Aires: Emecé Ed., 1957, p. 42.

O conteúdo da tabela 5 revela, segundo Kelsen (1957, p.43), que a teoria comunista do direito “é genuína doutrina de direito natural”. A conclusão kelseniana se dá pelo fato de que, tanto na doutrina do direito natural, quanto na comunista, somente se pode deduzir da natureza ou da realidade social uma pressuposição que tenha sido projetada

4891

previamente sobre ela, isto é, a justiça não é deduzida da natureza ou da realidade social, mas da consciência do jurista[9].

Quanto ao homem, a doutrina do direito natural o considera naturalmente livre, por vontade divina. E, como o homem é a imagem de deus, ele é, por natureza, bom/justo (existe uma identidade entre liberdade e justiça). Assim, o mal não tem origem na natureza do homem, mas fora dele. A serpente do Éden, de acordo com Kelsen, simboliza a exterioridade do mal. A postura de Marx parece ser coincidente com a adotada pela doutrina do direito natural, segundo Kelsen, na medida em que acredita que os defeitos da existência humana não têm origem na natureza humana, mas em circunstâncias exteriores à sua vida (relações de produção).

Igualmente, ambas as doutrinas acreditam na pré-existência de um estágio em que o homem era perfeitamente livre (estado de natureza ou pré-história) que se restabelecerá (Estado político desenvolvido ou comunismo).

Kelsen propõe, então, a décima sexta crítica à teoria comunista: “A filosofia social de Marx é, em seus pontos essenciais, uma doutrina de direito nacional” (KELSEN, 1957, p. 45 – livre tradução). Isto é, segundo Kelsen, o Estado (nacional) possui papel fundamental na teoria marxiana já que é nele que a liberdade será restabelecida mediante a coletivização (estatização) da propriedade dos meios de produção. Por isso, a teoria comunista do direito de Marx é considerada não apenas uma doutrina de direito natural, mas também de direito nacional.

Mas há, na teoria marxiana, uma identidade entre o Estado e a contradição entre as forças produtivas[10] e as relações de produção, uma vez que no comunismo o fim de tal contradição coincide com o fim do Estado. A harmonia, em que se encontram as forças produtivas e as relações de produção no comunismo, informa a inexistência de contradição da realidade consigo mesma, razão pela qual implica a inexistência de uma superestrutura ideológica.

Ademais, já fora mencionado que o Estado, na teoria comunista, é um poder estabelecido com a finalidade de manter o conflito entre a classe dominante e a dominada, nos limites da ordem, ou seja, o Estado é instrumento de dominação. Isso implica que a contradição da sociedade em si é a contradição entre as classes sociais (burguesia e proletariado).

Essa é a décima sétima questão posta por Kelsen como uma falha da teoria marxiana do direito e do Estado: “A contradição da sociedade, que é a condição de existência do Estado, é aqui a contradição entre duas classes, não a contradição entre as forças produtivas e as relações de produção” (KELSEN, 1957, p. 48 – livre tradução).

Em verdade, conforme Kelsen, essas contradições relacionam-se, e ambas, se consideradas no período de transição para o comunismo (ditadura do proletariado), revelam que o Estado como integrante da realidade social não representa necessariamente uma roupagem ideológica, porque, nessa etapa, o Estado não apresenta nenhuma classe de pretensões e se apresenta como a ditadura de um grupo sobre outro (não há divisão da sociedade em classes). Isto é, não há contradição entre o aparente e o verdadeiro, não deixando de existir, no entanto, o Estado.

4892

Durante essa transição de ditadura do proletariado, o poder político da sociedade é o poder da maioria (proletariado), conquistado pela revolução que é um meio exclusivamente político. Nesse caso, o poder político não advém do poder econômico, mas ao contrário, o poder econômico é efeito do poder político adquirido por meio da revolução, com a finalidade de arrancar da burguesia a propriedade dos meios de produção e concentrá-la no Estado (coletivização).

Com base nessa tese marxiana, Kelsen averigua a existência do décimo oitavo ponto controverso na teoria marxista do direito e do Estado: “isto significa a primazia do político sobre econômico, a qual é dificilmente compatível com uma interpretação econômica da sociedade” (KELSEN, 1957, p.50 – livre tradução).

É que, durante referida ditadura, enquanto não são totalmente abolidas as classes sociais (processo gradual), ainda existe, em certa medida, o proletariado como classe politicamente dominante e economicamente dominada e a burguesia como classe politicamente dominada e economicamente dominante, o que representa, segundo Kelsen, um abandono da interpretação econômica da sociedade.

Então, tomado o poder pelo proletariado e, uma vez abolidas a exploração e, por conseguinte, as classes e coletivizada a propriedade dos meios de produção, a interferência do poder estatal limitar-se-á a eliminação dos resquícios do sistema capitalista e a completar a socialização dos meios de produção.

O Estado, assim, é caracterizado como meio coercitivo de eliminação da exploração, o que instigou a décima nona crítica de Kelsen à teoria de Marx:

A contradição que resulta em definir o Estado como um mecanismo coercitivo para manutenção da exploração e, ao mesmo tempo, declará-lo como mecanismo coercitivo para a abolição da exploração. [...] De modo, pois, que a ditadura do proletariado é um Estado, mas ao mesmo tempo não é um Estado. (KELSEN, 1957, p. 53-55 – livre tradução)

Essa crítica refere-se à definição de “Estado” em dois momentos: no capitalismo e na ditadura do proletariado. No primeiro momento, o Estado é um mecanismo coercitivo pelo qual a burguesia mantém as condições de exploração da classe proletária; no segundo momento, o Estado é um aparelho coercitivo pelo qual o proletariado, até abolir-se, extirpa gradualmente a exploração. Mas, segundo Kelsen, se o Estado caracteriza-se essencialmente pela manutenção da exploração, não pode, em outro momento, caracterizar-se por sua abolição. Isto é, do ponto de vista lógico, se o Estado o é pela manutenção da exploração, não pode sê-lo por sua abolição.

Do mesmo modo, Kelsen identifica a existência de dois conceitos de democracia na teoria marxista do Estado, razão pela qual suscitou o vigésimo ponto de crítica a essa teoria:

A nova ‘democracia’ é em verdade uma ditadura. [...] o conceito de democracia se transforma, de governo da maioria sobre a minoria, em governo de interesse de todos, a cumprir-se mediante a opressão da minoria pela maioria. Se esta interpretação da

4893

ditadura do proletariado é correta, há na teoria política do marxismo dois conceitos contraditórios de democracia, assim como há dois conceitos contraditórios de Estado. (KELSEN, 1957, p. 56 – livre tradução)

O que ocorre é que Marx refere-se à ditadura do proletariado ora como dominação esmagadora da maioria sobre uma minoria, ora como governo em benefício da totalidade do povo. Há, pois, duas definições de democracia, as quais estão organizadas na tabela 6 abaixo:

Tabela 6 - Definições burguesa e proletária de democracia

Definição Essência Direitos da Minoria

Burguês-capitalista Governo da maioria Existência e participação no governo

Proletário-socialista Governo da maioria Não há direitos e a minoria deve ser eliminada

Fonte: KELSEN, Hans. Teoría comunista del derecho y del Estado. Buenos Aires: Emecé Ed., 1957, p. 56.

Conforme a tabela 6, na primeira definição, a democracia pressupõe o direito de a minoria participar na formação da vontade do Estado (conceito burguês-capitalista); enquanto na segunda, a minoria não só carece de tal direito, como deve ser abolida pela força (conceito proletário-socialista).

A ausência dos direitos da minoria (existência e participação) torna incompatível, na perspectiva kelseniana, a afirmação de que o regime de governo na ditadura do proletariado seja democrático, uma vez que a democracia pressupõe referidos direitos.

Cabe ressaltar, no entanto, que Hans Kelsen, no item Democracia e economia, da obra A democracia (1956), centra sua análise na questão de determinar se existe uma relação essencial entre a democracia e um dos dois sistemas econômicos característicos da civilização moderna: capitalismo e socialismo (problema da economia e da democracia). Para analisar tal questão, como lógico que é, Kelsen fraciona seus argumentos, na medida em que fraciona as teses das doutrinas capitalista e socialista do Estado e, por conseguinte, do direito.

Entretanto, Kelsen (2000, p.254), desde a introdução afirma que sua análise “tende a mostrar que nem o capitalismo nem o socialismo estão essencialmente relacionados, isto é, relacionados por sua natureza, a um sistema político definido”.

Antes de iniciar sua crítica, Kelsen trata de definir cada um dos sistemas econômicos, para, então, verificar sua compatibilidade, ou não, com a democracia. As definições de Kelsen encontram-se sistematizadas na tabela abaixo:

Tabela 7 - Sistemas econômicos da civilização moderna

4894

Sistema econômico

Propriedade dos meios de produção

Economia Relação entre Estado e economia

Capitalismo Privada Livre (Iniciativa/Concorrência)

Ausência de intervenção direta

Socialismo Estatal (Pública) Planificada Regulação/Controle

Fonte: KELSEN, Hans. A democracia. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p.253.

Kelsen identifica, conforme tabela 7, três características basilares dos dois sistemas econômicos da modernidade. Quanto ao capitalismo, destaca a propriedade privada dos meios de produção, a liberdade econômica expressa nas liberdades de iniciativa e concorrência e, por fim, a ausência de intervenção estatal direta na economia.

No que tange ao socialismo, os meios e processos de produção e distribuição são controlados pelo Estado, isto é, a economia é planificada pelo poder público nacional e os meios de produção são de propriedade comum, destacando-se como característica central a restrição econômica e um incisivo controle estatal da vida econômica. Cada um dos dois sistemas apresenta, pois, uma doutrina correspondente, no que concerne à democracia e à teoria política em geral.

De acordo com a doutrina capitalista, a democracia é incompatível com o socialismo, sendo a forma específica de governo do sistema capitalista. Conforme a doutrina socialista, por sua vez, a democracia verdadeira somente pode materializar-se no socialismo, sendo possível no sistema capitalista a existência de uma democracia meramente formal.

Kelsen (2000, p. 254) adverte, ainda, que a democracia enquanto forma de governo é um sistema político, isto é, “um processo ou método para a criação e aplicação de uma ordem social”. A isso equivale dizer que a democracia é um pressuposto para a elaboração e realização do direito.

Assim, afirma Kelsen, não há uma relação essencial entre um dado sistema e econômico e um dado sistema político, ou seja, em regra, não há incompatibilidade entre um sistema político democrático e os sistemas econômicos socialista ou capitalista.

Entretanto, mesmo admitindo-se a impossibilidade de democracia durante a ditadura do proletariado, Kelsen adverte que Marx trata a ditadura do proletariado como um período de transição no qual o Estado gradualmente extinguir-se-ia.

E, ao tratar da extinção do Estado, não foi feita uma descrição detalhada do processo e como (vigésimo primeiro) ponto de crítica, Kelsen observou:

O prognóstico foi formulado sem referência à possível situação internacional na qual o Estado proletário, por efeito da socialização dos meios de produção, vai se extinguindo. [...] Marx não se preocupava muito com a situação que, em sua opinião, haveria de apresentar-se em um futuro remoto. (KELSEN, 1957, p. 58 – livre tradução)

4895

Kelsen percebeu que a extinção do Estado era resultado da socialização dos meios de produção e abolição da exploração no seu interior, restando, segundo ele, como ponto cego da teoria marxiana do Estado a questão da situação internacional no contexto dessa extinção.

Além disso, a questão do futuro do direito, nas obras de Marx, também chamou a atenção de Kelsen. Muito embora Marx não tenha dedicado muita atenção à questão jurídica, a partir do conjunto de sua obra pode-se dizer, segundo Kelsen, que provavelmente o direito e o Estado estão essencialmente vinculados.

Nesse sentido, o direito, como ordem coercitiva e instrumento do Estado, somente existe em uma sociedade divida em classes, com um vínculo de exploração. Portanto, com o estabelecimento do comunismo, o direito passaria por certo progresso, não abandonando totalmente seu conteúdo burguês, até que, na mais elevada fase do comunismo, deixaria de existir.

Mas, pelas formulações marxianas, não resta clara a seguinte questão (vigésimo segundo ponto de crítica):

... nessa fase de evolução do comunismo não haverá direito, porque o direito é por sua natureza direito burguês, o que significa direito de classe. [...] também pode ser [...] que na perfeita sociedade comunista haverá direito, mas não direito burguês, ou seja, uma ordem coercitiva que garanta a exploração de uma classe por outra, à qual uma doutrina ideológica apresenta-se como realização da justiça. (KELSEN, 1957, p. 59 – livre tradução)

Do mesmo modo, no que se refere ao Estado, a teoria de Marx pode ser interpretada, segundo Kelsen, no sentido de que na futura sociedade comunista existirá Estado, mas não esse Estado que domina a sociedade, ao contrário, um Estado dominado pela sociedade, assim como existirá um direito justo.

Kelsen aponta, então, dois possíveis futuros para o direito e o Estado na teoria marxiana, conforme se pode observar na tabela abaixo:

Tabela 8 - Direito e Estado na futura sociedade comunista

Futura sociedade comunista

Fundamento

Existe direito e Estado

Se a propriedade coletiva dos meios de produção há de ser uma instituição da futura sociedade, deve haver um direito que garanta este status.

Não existe direito nem Estado

A ordem social não terá caráter coercitivo, nem sequer normativo, conforme a tendência anarquista das obras de Marx.

4896

Fonte: KELSEN, Hans. Teoría comunista del derecho y del Estado. Buenos Aires: Emecé Ed., 1957, p.63-64.

A tabela 8 informa que, segundo Kelsen, a teoria marxiana do direito e do Estado permite uma dupla projeção do futuro desses dois fenômenos que pode implicar ou sua extinção pelo fim da contradição básica da sociedade, ou uma alteração substancial em seu conteúdo, isto é, do nível da superestrutura ideológica para o de realidade verdadeira. Há, pois, uma imprecisão no que tange ao futuro do direito e do Estado.

Quanto à possibilidade de uma sociedade sem direito e sem Estado na teoria comunista, Kelsen não apenas a adjetiva como utópica[11], mas também apresenta duras críticas (vigésimo terceiro ponto de crítica):

[...] primeiramente, que a socialização dos meios de produção aumentará a produção [...]; e segundo, que as perturbações da ordem social são causadas somente pelas circunstâncias econômicas [...]. Nenhuma nem outra suposição encontra fundamento em nossa experiência social. (KELSEN, 1957, p. 64-65 – livre tradução)

Quanto à socialização dos meios de produção como fator de aumento da produção, Kelsen afirma que há uma tendência oposta – de redução – uma vez que Marx afirma que haverá, na futura sociedade comunista, o fim da divisão do trabalho, que constitui um dos meios mais eficazes de aumento quanti-qualitativo da produção.

No que tange à tese de que as “perturbações da ordem social” são causadas somente pelas circunstâncias econômicas, Kelsen informa que a psicologia criminal aponta as circunstâncias econômicas como uma de suas causas – mas não a única – juntamente com o sexo e a ambição, ocupando referidas circunstâncias o mesmo patamar de relevância, com a ressalva de que, resolvida a questão econômica, as demais devem representar um papel mais importante.

Além disso, Kelsen afirma que a tendência anárquica da teoria marxiana, por meio da negação do direito e do Estado burguês, é elemento básico da crítica social, apontando como vigésimo quarto ponto crítico o fato de que:

Esta crítica tem um caráter claramente moral; baseia-se numa evolução moral da realidade social e culmina com um postulado moral: a realização da liberdade e da igualdade. O caráter moral da crítica feita por Marx à realidade social existente manifesta-se na indignação fortemente emocional com que condena como escravidão a exploração capitalista, e a ideologia burguesa que pretende justificá-la. (KELSEN, 1957, p. 69 – livre tradução)

Kelsen qualifica a crítica marxista como moral e, portanto, não-científica na medida em que se baseia num ideal de igualdade e de liberdade. Nesse sentido, a teoria comunista apresenta uma suposta descrição do caminho evolutivo necessário (liberdade pré-

4897

histórica –escravidão capitalista – liberdade comunista) da sociedade, por meio da qual se tenta disfarçar um postulado político-moral apresentando-o como ciência, isto é, verdade objetiva.

Dessa constatação kelseniana, surge a vigésima quinta questão posta em relação à filosofia social de Marx:

Marx, ao fazer a crítica da ideologia, destrói por completo a autoridade da religião, mas não renuncia, para sua surpresa, à ajuda de uma autoridade efetiva. A única autoridade que sua crítica deixa intacta é a ciência. Para ele seu socialismo simula ser ciência e coroa com o halo desta autoridade seu produto: a sociedade comunista do futuro. (KELSEN, 1957, p. 73 – livre tradução)

Kelsen acusa, pois, Marx de, a pretexto de fazer ciência, fazer política, para tanto, protegendo o status da ciência como meio de desvelar a realidade social apresentada à mente humana de forma distorcida. Essa acusação constitui o vigésimo sexto ponto de crítica à teoria marxista: “Desse modo, a ciência se mescla desde o começo com a política. A ciência é destinada conscientemente a ser um instrumento da política. [...] A função da crítica científica ou ciência crítica de Marx é efetuar uma revolução social” (KELSEN, 1957, p. 73 – livre tradução). É o que Kelsen chamou de “confusão consciente de ciência e política”, ou ainda, de ideologia no sentido pejorativo empregado pelo próprio Marx na medida em que julga a realidade a partir de um valor previamente idealizado.

Kelsen, alertando para essa questão da confusão entre ciência e política, afirma que a ciência na perspectiva do materialismo dialético é “uma teoria política que propõe o problema – decisivo para o socialismo – de como devem agir os homens, porque devem agir precisamente desse modo e não de outro, e porque não se deve agir como a teoria política do capitalismo afirma que se deve agir” (KELSEN, 1982, p.183). Assim, fica evidente, de acordo com Kelsen, como a ciência marxiana converte-se em instrumento a serviço da proposta política socialista.

Outra questão (vigésima sétima), que não escapou à análise de Kelsen, refere-se à contradição entre a situação legal e a situação econômica no sistema do socialismo científico, assim expressa:

Não menos flagrante é a contradição, no sistema do socialismo ‘científico’, entre a situação legal da sociedade comunista do futuro, que presumidamente será de anarquia individualista, e a situação econômica, que consistirá na substituição da ‘anarquia da produção capitalista’ por uma produção altamente organizada sobre a base da propriedade coletiva dos meios de produção, concentrada necessariamente nas mãos de uma autoridade central. (KELSEN, 1957, p. 77 – livre tradução)

Kelsen destaca que uma interpretação econômica da realidade, como é o caso da teoria marxiana, não permite a separação entre o aspecto econômico da organização social

4898

(ralações de produção) e o político, ou seja, é impossível negar a autoridade no campo político e admiti-la no campo econômico.

Essa e as demais contradições identificadas por Kelsen na teoria comunista do direito e do Estado[12], deveriam constituir um princípio metodológico da dialética, como o é na filosofia de Hegel. Mas Karl Marx, ao rejeitar a identidade entre ser e pensamento, segundo Kelsen, rejeita também a idéia de que haja contradições lógicas inerentes à realidade compreensível. Essa formulação representa o décimo oitavo ponto de crítica de Kelsen à filosofia social de Marx e pode ser resumida na seguinte assertiva: “Mas no interior do quadro da filosofia materialista de Marx e Engels, que rejeitam tal identificação [entre ser e pensamento], é absurdo interpretar como contradições lógicas as forças antagônicas ou os interesses em conflito na sociedade” (KELSEN, 1957, p. 79 – livre tradução).

3. Considerações Finais

A crítica que Hans Kelsen interpõe à teoria marxista apóia-se na interpretação literal das definições de Estado e direito ao longo das obras de Marx. Sua crítica incide, principalmente, sobre o método; as relações entre realidade (infra-estrutura) e ideologia (superestrutura); e as contradições decorrentes de oscilação semântica no emprego de alguns termos como direito, Estado e democracia.

Percebe-se que essas críticas teórico-políticas e teórico-jurídicas formam uma unidade, visto que permaneceram invariáveis ao longo das obras kelsenianas (Socialismo y Estado; Teoria comunista del derecho y del Estado; e A democracia).

Isso, porque a crítica intentada por Kelsen limitou-se, quase integralmente, ao cotejamento de definições marxianas – como direito, Estado, democracia – situadas em diferentes obras e nos mais variados contextos, caracterizando-se como uma crítica lógico-literal.

Essa interpretação formalista de Kelsen ignora o fato de que Karl Marx não elaborou uma abordagem precisa e completa do direito, isto é, uma teoria jurídica propriamente dita, razão pela qual empregava indistintamente a expressão “direito” para designar fenômenos diversos.

Mas, não obstante essas constatações, que são preliminares à realização da pesquisa, destacam-se como críticas de Kelsen à obra de Karl Marx as seguintes:

1. Quanto ao método: a) o materialismo marxiano não permite o emprego da lógica dialética de Hegel, na medida em que rejeita a identidade entre “ser” e “pensamento” (realidade e ideologia); b) há uma confusão consciente entre ciência e política que caracteriza a ciência como instrumento político a serviço do socialismo; c) como a consciência é determinada pela existência, é impossível que haja uma teoria da realidade social que seja verdadeira, isto é, objetiva.

2. Quanto ao Estado: a) a contradição da definição marxiana, ora como superestrutura ideológica, ora como realidade social; b) seu futuro nas projeções de Marx, ora com a transformação de seu conteúdo (de aparelho de coerção sobre a sociedade para aparelho

4899

a serviço da sociedade), ora com sua extinção; c) sua função, ora como de manutenção da exploração de uma classe sobre a outra, ora como de abolição dela – exploração.

3. Quanto ao direito: a) a contradição da definição marxiana, ora como superestrutura ideológica, ora como realidade social; b) seu futuro nas projeções de Marx, ora com a transformação de seu conteúdo (de burguês-capitalista para proletário-socialista), ora com sua extinção; c) sua função, ora como de instrumento do Estado para manutenção da exploração de uma classe sobre a outra, ora como de realização da justiça (fim do caráter burguês do direito).

4. Quanto à democracia: a) a apresentação da ditadura do proletariado, ora como ditadura, ora como forma democrática de governo; b) a inconsistência da primazia do econômico sobre o político que, embora fundamente a impossibilidade de democracia no capitalismo, desmorona ao garantir que a revolução é o meio – exclusivamente político – de o proletariado tornar-se classe econômica dominante.

4. REFERÊNCIAS

BOTTOMORE, Tom. Dicionário do pensamento marxista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

GUASTINI, Ricardo. Marx y Kelsen. In: CORREAS, Óscar. El otro Kelsen. México: UNAN, 1989, p. 79-97.

KELSEN, Hans. Democracia e economia. In: ______. A democracia. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 253-297.

______. La teoría del Estado y del derecho de Marx-Engels. In: _____. Teoría comunista del derecho y del Estado. Buenos Aires: Emecé Editores, 1957, p. 17-80.

______. Socialismo y estado: uma investigación sobre la teoria política del marxismo. México: Siglo XXI Editores, 1982.

MANERO, Juan Ruiz. Sobre la crítica de Kelsen al marxismo. In: Doxa – Cuadernos de Filosofia del Derecho, n. 3, s/l., 1986, p. 191-231. Disponível em: <http://www.cervantesvirtual.com/servlet/SirveObras/02406177433793617422202/cuaderno3/numero3_14.pdf >. Consulta em: 16/12/2007.

4900

MARX, Karl. Crítica da filosofia do direito de Hegel. São Paulo: Boitempo Editorial, 2006.

______; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1996.

______. Prefácio. In: ______. O Capital: crítica da economia política. Livro I. v. I. 26. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, p. 15-21.

SANTOS, Antonio Raimundo. Metodologia científica: a construção do conhecimento. 6.ed. São Paulo: DP&A, 2006.

WOLKMER, Antonio Carlos. Uma discussão crítica: Kelsen, Marx e o direito. In: ______. Introdução ao pensamento jurídico crítico. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 146-170.

[1] No Brasil, a única obra expressiva – do ponto de vista da adesão acadêmica – que abordou esse tema foi a Introdução ao pensamento jurídico crítico de autoria de Antônio Carlos Wolkmer. E, nessa obra, cuja proposta foi “tão-somente apontar algumas linhas muito genéricas”, foram destinadas apenas cinco páginas para a apresentação preliminar da crítica kelseniana aos textos de Marx.

[2] Ressalte-se que essas obras aqui destacadas não as únicas nas quais Kelsen dedica-se a criticar/dialogar o/com o pensamento marxiano e marxista. A referência e uma análise das demais obras kelsenianas de crítica à teoria marxista podem ser encontradas em: GUASTINI, Ricardo. Marx y Kelsen. In: CORREAS, Óscar. El otro Kelsen. México: UNAN, 1989, p. 79-97.

[3] Segundo Manero (1986, p. 194), a unidade da crítica de Kelsen ao marxismo convive com três elementos diferenciadores, quais sejam: “(1) na implicação pessoal mostrada por Kelsen em relação ao socialismo; (2) no tratamento do sistema político soviético; (3) na posição adotada a respeito da possibilidade de integração de sua própria construção teórico-jurídica na concepção materialista da história”. Tais elementos não constituíram fatores relevantes no trabalho empreendido por esta pesquisa, já que seus objetivos foram, exclusivamente, identificar e comentar as críticas kelsenianas aos escritos de Marx.

4901

[4] Trata-se, segundo Kelsen (1957, p.13), de uma interpretação econômica da realidade social inaugurada por Karl Marx, que possui um caráter antinormativo e que permitiu uma reaproximação entre o direito e a sociologia jurídica.

[5] “As relações de produção são constituídas pela propriedade econômica das forças produtivas. No capitalismo, a mais fundamental dessas relações é a propriedade que a burguesia tem dos meios de produção, ao passo que o proletariado possui apenas a sua força de trabalho. A propriedade econômica é diferente da propriedade jurídica, pois está referida ao controle das forças produtivas” (BOTTOMORE, 2001, p. 157).

[6] Quanto à adoção do princípio da primazia do econômico sobre o político, no que se refere à doutrina marxista de que a democracia só é possível sob um sistema político socialista, Kelsen (2000, p. 254-256) esclarece tratar-se de uma aplicação da interpretação econômica da sociedade cujo resultado consiste na concepção de Estado e direito como superestrutura ideológica formada sobre a realidade constituída pelas relações de produção. A partir dessa concepção, a sociedade capitalista, caracterizada pela propriedade privada dos meios de produção, tem como classe econômica dominante uma minoria (burguesia) que se torna, pois, dominante politicamente. O governo numa sociedade capitalista não pode, então, ser democrático uma vez que é o governo de uma minoria sobre a maioria.

[7] Quanto ao significado atribuído por Marx à ideologia, por não coincidir com o sentido amplo de idéia, mas de falsa consciência, Kelsen (1957, p.20 – livre tradução) afirma ser de “franca desaprovação”.

[8] “Segundo este ponto de vista, o direito – e não uma ilusória filosofia jurídica – é uma superestrutura ideológica erigida sobre a realidade social, as relações de produção” (KELSEN, 1957, p. 29 – livre tradução).

[9] Para Kelsen, a realidade de Marx é “como a cartola de um mágico, tem um duplo fundo, do qual é possível sacar qualquer coisa mediante artes mágicas” (KELSEN, p. 1957, p. 42).

[10] “O conceito de forças produtivas de Marx abrange os meios de produção e a força de trabalho. O desenvolvimento das forças produtivas compreende, portanto, fenômenos históricos como o desenvolvimento da maquinaria e outras modificações do PROCESSO DE TRABALHO, a descoberta e exploração de novas fontes de energia e a educação do proletariado. Restam, porém, vários elementos cuja definição é discutida. Alguns autores encaram a própria ciência como uma força produtiva (e não as transformações dos meios de produção que dela resultam), e há quem considere o espaço geográfico como força produtiva” (BOTTOMORE, 2001, p.157).

[11] Kelsen (1957, p. 65) afirma, em tom de ironia, que a “predição de uma sociedade de justiça perfeita, sem Estado e sem direito, é uma profecia utópica, como o messiânico Reino de Deus, o paraíso do futuro”.

[12] “[...] o Estado é por sua própria natureza um instrumento para manter a exploração e, ao mesmo tempo, o Estado, como Estado proletário, é o instrumento específico para abolir a exploração; que o Estado proletário é uma ditadura e, ao mesmo tempo, é uma democracia; que o comunismo é a realização da liberdade individual e, ao mesmo

4902

tempo, é a organização da autoridade coletiva; apresentar a teoria do socialismo como uma ciência moralmente indiferente e, ao mesmo, proclamar em nome da ciência a verdadeira justiça, da liberdade e da igualdade; afirmar que não pode haver ciência objetiva e, ao mesmo tempo, gabar-se de haver promovido o socialismo de desejo utópico ao grau de ciência objetiva” (KELSEN, 1957, p. 79 – livre tradução).