renda mínima e necessidades na tradição marxista

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Artigos Temticos / Thematic Articles

Programa de renda mnima e o debate sobre necessidades na tradio marxista / Minimum income transfer program and the debate on needs in the Marxist traditionAdriAnA Azevedo MAthis* MAriA AntniA CArdoso nAsCiMento** verA LCiA BAtistA GoMes***

Resumo: Resultados de investigaes sociais, realizadas em vrios pases, concernentes aos programas de transferncia de renda mnima, ressaltam controvrsias relacionadas eficcia na reduo da pobreza, ao carter assistencial e a concepo no universal e condicional de implantao, que remetem aos desafios relacionados natureza das polticas pblicas e programas sociais, particularmente os implantados na Amrica Latina e no Brasil. Este artigo produto da interlocuo entre a reflexo terica e os dados empricos proporcionada pelo projeto Desigualdades sociais e programas de transferncia de renda mnima na Amaznia: a experincia do Par e do Amap, que tem explicitado as contradies presentes no programa Bolsa Famlia e Bolsa Trabalho. Tem como objetivo apresentar uma reviso da literatura, que tem se debruado sobre as concepes de necessidade e renda mnima, bem como salientar a contribuio de Marx e de autores marxistas acerca da discusso de necessidades sociais a partir de uma perspectiva humanista.

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Assistente social, mestre e doutora em Servio Social pela UFRJ. Professora da UFPA. E-mail: [email protected] Assistente social, mestre em Desenvolvimento Sustentvel do Trpico mido pelo Ncleo de Altos Estudos Amaznicos da UFPA e doutora em Servio Social pela PUC/SP. Professora e vice-coordenadora do PPGSS da UFPA. E-mail: [email protected] Assistente social, mestre em Servio Social pelo PPGSS/UFPA e doutora em Sociologia do Trabalho pela Universit de Picardie Jules Verne - Amiens/Frana. Professora e coordenadora do PPGSS/UFPA. E-mail: [email protected]

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Programa de renda mnima e o debate sobre necessidades na tradio marxista Programa de renda mnima e o debate sobre necessidades na tradio marxista

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Palavras chaves: Necessidades. Programas de renda mnima. Marxismo. Abstract: Results from social research in several countries addressing minimum income transfer programs have generated controversies around the efficacy of poverty reduction. These programs have an assistential character and are not universally accepted and not even the conditionality of implementation. This paper examines the challenges related to the nature of public policies and social programs, in particular those established in Latin America and Brazil. This article is the product of combining theoretical reflections and empirical data resulting from the project Social Inequalities and minimum income transfer programs in the Amazon: the experience of Par and Amap States. It explains the contradictions present in the programs of Family Grant and Job Grant. The objective of this paper is to present a review of the literature, showing a particular view of the concepts of need and minimum income, taking into consideration the contribution of Marx and Marxist authors regarding the discussion of social needs from a humanist perspective. Keywords: Needs. Minimum income programs. Marxism.

IntroduoO presente artigo tem como objetivo apresentar uma reviso da literatura que tem se debruado sobre as concepes de necessidade e renda mnima, bem como salientar a contribuio de Marx e de outros autores marxistas acerca da discusso de necessidades sociais a partir de uma perspectiva humanista. Os estudos sobre os Programas de Transferncias de Renda Mnima no Brasil e, na Amrica Latina, se inserem no contexto do debate acerca do combate pobreza absoluta dentro da lgica da focalizao dos gastos sociais, proposta pelo Banco Mundial, no incio da dcada de 1990, com expanso nas duas ltimas dcadas. Tal preocupao se prope erradicar a pobreza extrema atravs de programas focalizados que ampliem o acesso dos pobres aosSER Social, Braslia, v. 12, n. 27, p. 8-32, jul./dez. 2010

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servios bsicos de infraestrutura e criem condies para um crescimento das rendas familiares. Desse modo, a reduo da pobreza pela metade, entre 1990 e 2015, aparece nos relatrios do referido banco como uma das grandes metas do desenvolvimento do milnio. Alguns resultados de investigaes sociais voltadas para esses programas, no Brasil, afirmam que eles vm demonstrando ser um instrumento bastante eficaz na reduo da desigualdade de renda. No caso do Programa Bolsa Famlia, afirma-se que o mesmo tem se apresentado como uma contribuio significativa s famlias pobres que o acessam no contexto das diferentes polticas de aes de proteo social adotadas pelo governo brasileiro a partir de 20031. Os resultados dos estudos, majoritariamente, desenvolvidos pelas regies (Sudeste, Sul, Centro-Oeste e, mais recentemente, pelo Nordeste) apresentam controvrsias em relao ao referido programa, tanto pelo carter assistencial quanto pela concepo no universal e condicional de implantao, que remetem aos desafios relacionados natureza das polticas e programas sociais historicamente implantados no Brasil. a luz deste debate que o projeto de pesquisa Desigualdades Sociais e Programas de Transferncia de Renda Mnima na Amaznia: a experincia do Par e do Amap se localiza, tendo como preocupao terico-cientfica problematizar as desigualdades regionais que marcam o Brasil, diferenciando as regies Sudeste e Sul das regies Norte e Nordeste as quais apresentam indicadores que mostram condies aviltantes de vida e trabalho de seus habitantes, colocando-os como um dos principais pblicos-alvo das polticas pblicas e dos programas sociais, como o Bolsa Famlia. Dados que informam a recorrncia, desde 2007, de expressivo cancelamento de benefcios do Programa Bolsa Famlia nos estados do Par e do Amap, por1

A ttulo de ilustrao, o estudo sobre Transferncia de Rendas e Metas do Milnio, da Rede de Informao e Ao pelo Direito a se Alimentar - IFAN (2009), e a pesquisa sobre Avaliao dos movimentos sociais sobre o Bolsa Famlia e Segurana Alimentar, do Instituto Brasileiro de Anlises Sociais e Econmicas IBASE.

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descumprimento das contrapartidas, mostram, ao invs da reduo, uma ampliao da pobreza. Este artigo produto da interlocuo entre a reflexo terica e os dados empricos proporcionada pelo referido projeto, possibilitando a explicitao das contradies presentes no mencionado programa. Sua organizao apresenta, inicialmente, uma reviso da literatura que tem se debruado sobre as concepes de necessidade e renda mnima e, posteriormente, expe a contribuio de Marx e de autores marxistas acerca da discusso de necessidades sociais a partir de uma perspectiva humanista.

o debate sobre Programas de Transferncia de RendaA ruptura de determinados princpios caros s prticas dos Estados de bem-estar social, como a universalizao dos direitos sociais e a proteo social bsica generalizada, ocorre na dcada de 1980 nos pases do capitalismo avanado, provocando o debate internacional sobre Programas de Transferncia de Renda num contexto de polticas pblicas de transferncia monetria para famlias ou indivduos. Tal proposta produto de grandes transformaes que esto ocorrendo na economia, com profundos rebatimentos sobre o mundo do trabalho e nas condies de vida das populaes. Nesse sentido, constata-se a emergncia de temas que compem o processo de mundializao do capital (CHENAIS, 1996) e da reestrurao produtiva, como a privatizao, a descentralizao do financiamento dos programas sociais e a focalizao do gasto social com a institucionalizao de programas sociais dirigidos, exclusivamente, populao mais pobre, priorizando aes bsicas de educao, sade e nutrio (UG, 2004). Segundo essa perspectiva, faz-se necessrio cortar gastos e desativar programas sociais na perspectiva dos direitos e criarSER Social, Braslia, v. 12, n. 27, p. 8-32, jul./dez. 2010

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novos programas seguindo o princpio da seletividade e da focalizao das aes pblicas nos segmentos mais necessitados da populao, uma vez que a diminuio da pobreza absoluta constitui tambm uma condio de estabilidade econmica e poltica. O combate pobreza absoluta dentro da lgica da focalizao dos gastos sociais visvel nos relatrios do Banco Mundial, que evidenciam, desde o incio da dcada de 1990, uma preocupao com a erradicao da pobreza extrema e da fome no mundo, atravs de programas focalizados que ampliem o acesso dos pobres aos servios bsicos de infraestrutura e criem condies para um crescimento das rendas familiares. Desse modo, a reduo da pobreza pela metade, entre 1990 e 2015, aparece como uma das grandes metas do desenvolvimento do milnio. Ug (2004, p. 55), ao analisar os Relatrios do Banco Mundial dos anos 1990, 2000 e 2001, salienta que: possvel identificar uma teoria social implcita delineada em seus relatrios, que, por um lado, sugere um tipo especfico de poltica social e, por outro, descreve e reafirma o modelo de sociedade caracterstico da atual configurao da ordem social, ou seja, do Welfare State e derrocada do mundo comunista.

Segundo Silva e Silva (1997, p. 16), na maioria das vezes, o conceito de renda mnima utilizado num sentido geral do termo, e existem vrias denominaes utilizadas para definir os programas de transferncia de renda, tais como: renda mnima, renda mnima garantida, renda mnima complementar, renda mnima substitutiva, renda mnima de insero, dividendo social, dividendo nacional, renda bsica, renda cidad, renda social, salrio tecnolgico, salrio robtico, etc. Com base no quadro de classificao geral de renda proposto pela referida autora, identificam-se trs correntes tericas que portam diferentes vises sobre a concepo da garantia deSER Social, Braslia, v. 12, n. 27, p. 8-32, jul./dez. 2010

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renda mnima, que transitam de um polo mais conservador para um polo mais progressista, tais como: de um lado, identificam-se as correntes de inspirao liberal, que concebem a garantia de uma renda mnima como mecanismo de proteo social para assistir determinadas situaes de pobreza sem comprometer o mercado (Renda Mnima Universal e Imposto Negativo); de outro lado, registram-se as correntes de inspirao distributivista e progressista, que advogam a garantia de uma renda mnima como mecanismo de repartio de renda ou um novo modo de distribuio de renda (Renda Mnima de Existncia de Bresson, Renda Social e Segundo Cheque); e, por ltimo, as correntes que propem uma combinao de insero profissional e articulao da renda mnima com outras rendas, programas e servios adotados pelo atual sistema de proteo social, a partir de uma lgica de complementao (RMI da Frana e Renda Mnima de Milo). A proposta de Imposto Negativo, defendida pela maioria das correntes liberais, compreende um tipo de renda compensatria generalizada oferecida a toda pessoa, com exceo dos desempregados, cuja renda familiar seja inferior a um montante fixado (linha de pobreza) acima da qual as pessoas pagam o imposto de renda (SILVA e SILVA, 1997, p. 50). A primeira iniciativa brasileira em torno de um programa de garantia de renda mnima, com base no Imposto de Renda Negativo, de inspirao liberal, foi de autoria do senador Eduardo Suplicy (1991), a qual incentivou a concepo e a institucionalizao dos programas de renda mnima, em nveis locais, tais como: o Programa de Garantia de Renda Familiar para a Educao, o Bolsa Escola, no Distrito Federal, e o Programa de Garantia de Renda Mnima Familiar de Campinas, Ribeiro Preto e Santos, no estado de So Paulo. Vale ressaltar que, a princpio, apesar da enorme aceitao por parte dos parlamentares do Senado Federal do Brasil, a proposta de Suplicy era uma nota dissonante no espaoSER Social, Braslia, v. 12, n. 27, p. 8-32, jul./dez. 2010

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poltico brasileiro voltado para uma experincia de proteo social de cunho mais universalizante instituda na Constituio de 1988 (TELLES, 1998; LAVINAS, 2004; AZEVEDO, 2005). A partir dessa discusso, desenvolve-se um debate sobre os delineamentos de uma poltica de renda mnima no Brasil e uma anlise sobre os fundamentos tericos subjacentes ao processo de unificao dos programas de garantia de renda mnima existentes na sociedade brasileira e, qui, em toda a Amrica Latina. Essa discusso sobre a poltica de renda mnima, no Brasil, na dcada de 1990, est relacionada com o quadro de contradio social expresso pela nova dinmica poltica e econmica da sociedade brasileira, marcada pelo processo de reestruturao produtiva neoliberal e pela reedio das polticas sociais de carter compensatrio e assistencialista a exemplo do que ocorria no mbito internacional. Independentemente das mudanas nas estratgias das polticas em torno da consolidao de uma renda mnima na Amrica Latina, nos discursos dos formuladores da poltica as divergncias giram somente em torno de determinadas questes pontuais de ordem prtica, como a unidade a ser beneficiada (se deve ser o indivduo ou a famlia), a questo das contrapartidas dos beneficirios e da incondicionalidade ou no no recebimento do benefcio. Observa-se que o Programa de Transferncia de Renda Mnima Bolsa Famlia, como foi concebido e implementado no Brasil, est aqum da proposta de renda bsica de cidadania. Van Parijs (1997) defende uma renda bsica, incondicional, paga em dinheiro e no na forma de servios, de forma sistemtica, a partir de recursos controlados pelo poder pblico da comunidade em questo, para todos os cidados, individualmente, independentemente da sua situao financeira ou exigncia deSER Social, Braslia, v. 12, n. 27, p. 8-32, jul./dez. 2010

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trabalho. J a proposta de renda social de Gorz (1996), pelo seu carter anticapitalista, advoga a garantia de uma renda suficiente como mecanismo de partilha de tempo de trabalho num universo de reduo de emprego e sustenta um modelo de sociedade alternativa, em que todos possam repartir as oportunidades de trabalho. Para esse autor, trata-se de pensar a coero ao trabalho e do trabalho e abolir as formas de assalariamento da sociedade capitalista. Diferentemente das propostas de inspirao liberal, as propostas distributivistas no se limitam apenas cobertura de necessidades materiais, mas compreendem necessidades propriamente humanas, como a necessidade de tempo livre para o desenvolvimento de projetos pessoais e sociais. A proposta da poltica de renda mnima, como foi apropriada pela maioria dos governos dos pases latino-americanos, apresenta uma srie de interrogaes: em primeiro lugar, a complementao de renda como foi proposta difere consideravelmente de uma concepo de alocao universal (como uma renda social incondicional para assegurar a cada um o direito de participar da riqueza social), visto que essa compensao monetria condicionada e limitada temporariamente; em segundo lugar, no existem ainda informaes factveis, a partir de pesquisas dos institutos oficiais do governo e das universidades, de que esse programa de complementao de renda, na forma como est sendo implementado nos territrios perifricos, esteja favorecendo uma articulao dessa poltica de renda mnima no conjunto das polticas sociais; e, por ltimo, no resta dvida de que a complementao de renda pode representar para o trabalhador uma alternativa de garantia de um mnimo de subsistncia (o que aumenta consideravelmente o seu poder de negociao no mercado de trabalho). Todavia, essa complementao no reforaSER Social, Braslia, v. 12, n. 27, p. 8-32, jul./dez. 2010

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os direitos trabalhistas2 conquistados historicamente e no invalida e nem questiona a relao capital-trabalho prpria da sociedade capitalista de produo. possvel observar tambm na literatura consultada que, na maioria das vezes, a discusso sobre necessidades sociais aparece lateralmente e quase sempre a polmica fica restrita s questes pontuais, como o provimento dos mnimos sociais de existncia, e, raramente, se estende para a compreenso de um conceito de necessidades sociais mais amplo. Alm de que no fica explcita, nos discursos dos formuladores dos programas, tanto no plano internacional como no nacional, a diferena conceitual entre mnimos sociais de existncia, necessidades bsicas e necessidades sociais. A maior parte das propostas de programas de renda mnima de inspirao liberal no questiona a organizao do trabalho na sociedade capitalista. Tambm parece evidente que essas propostas de cunho liberal no ultrapassam os limites da sociedade capitalista e suas aes so orientadas por uma lgica de substituio de programas e servios sociais que incidem, principalmente, no suprimento de determinadas necessidades indispensveis sobrevivncia daqueles mais desfavorecidos socialmente e incapacitados para o trabalho. Desse modo, a discusso sobre a renda mnima gira em torno das necessidades orgnicas impostas pela condio biolgica do ser. Na maioria dos casos, o princpio da eficincia est pautado na seletividade e na implementao dos direitos atinentes condio de consumidor, contribuindo para uma difuso mercantilista das necessidades sociais na atualidade.

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Dados do Projeto de pesquisa Desigualdades Sociais e Programas de Transferncia de Renda Mnima na Amaznia: a experincia do Par e do Amap indicam que a concepo dos beneficirios do Bolsa Famlia reitera a tradicional noo de ddiva, expressa na ajuda do presidente aos pobres.

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o conceito de necessidades em marx e Agnes HellerA discusso sobre a questo das necessidades j est posta nos Manuscritos Econmicos e Filosficos de 1844 de Marx e reaparece na Ideologia Alem, a partir de outro prisma de anlise, quando Marx apresenta a sua concepo de histria e os trs aspectos intrnsecos da atividade social e defende, claramente, a ideia da satisfao das necessidades orgnicas do ser como a condio bsica de toda a histria.O primeiro pressuposto de toda a existncia humana e, portanto, tambm de toda a histria, a saber, o pressuposto de que os homens precisam estar em condies de viver para poderem fazer a histria. Mas, para viver, preciso, antes de mais nada, comer e beber, morar, vestir, e ainda algumas coisas mais. O primeiro ato histrico , portanto, engendrar os meios para a satisfao dessas necessidades, produzir a vida material mesma, e isto um ato histrico, uma condio bsica de toda a histria que ainda hoje, como h milnios, precisa ser preenchida a cada dia e a cada hora to somente para manter os indivduos vivos (...) Em segundo lugar, a primeira necessidade satisfeita, a ao de satisfao e o instrumento da satisfao j adquirido levam a novas necessidades e esse engendramento de novas necessidades o primeiro ato histrico. (...) A terceira circunstncia, o que j de antemo entra no desenvolvimento histrico, a de que seres humanos que renovam a sua prpria vida diariamente comeam a fazer outros seres humanos, isto , a se reproduzirem a relao entre homem e mulher, pais e filhos, a famlia. (MARX, 1989, p. 194-195)

Nos Manuscritos de 44 ou Manuscritos de Paris, ao fazer a sua crtica diviso do trabalho na sociedade capitalista e ao apresentar a sua compreenso de uma sociedade comunista, d os primeiros indcios de uma sociedade alternativa ao capitalismo, distinta da concepo de trabalho alienado:a diviso do trabalho nos oferece logo o primeiro exemplo de que, enquanto os homens se encontram na sociedade natural, enquanto pois exige a ciso entre o interesse comum privado, portanto enquanto a atividade no est dividida voluntariamente mais sim naturalmente, o prprio ato do homem se toma umSER Social, Braslia, v. 12, n. 27, p. 8-32, jul./dez. 2010

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poder alheio que est frente a ele, que o subjuga ao invs de ele domin-lo. Pois assim que o trabalho comea a ser dividido, cada um tem uma esfera da atividade exclusiva e determinada que lhe impingida e da qual no pode fugir; ele caador, pescador ou pastor ou crtico e tem que continuar ao passo que na sociedade comunista, onde ningum tem uma esfera da atividade exclusiva, mas pode se treinar em qualquer ramo de seu agrado, a sociedade regula a produo geral e me torna com isso possvel fazer hoje isso, amanh aquilo, de manh caar, de tarde pescar, noite cuidar do rebanho, depois da refeio fazer crtica como me aprouver, sem jamais me tomar caador, pescador, pastor ou crtico. (MARX, 1989, p. 199)

Nos Grundrisse, o autor amadurece a noo de indivduo social e a questo do livre desenvolvimento das individualidades para o desenvolvimento das potencialidades e capacidades humanas. De acordo com o autor, do advento da sociedade burguesa e do triunfo da civilizao industrial surgem novas necessidades humanas e tais necessidades so, na maioria das vezes, impostas por condicionamentos sociais e ditadas por um trabalho alienante. Marx afirma que somente a ordem burguesa, com a potencializao da produo social, atravs da ampliao da produo de bens e servios em larga escala e da capacidade de suprimir as necessidades dos homens em sociedade, permite o livre desenvolvimento de indivduos sociais. Agnes Heller (1998) aprofunda o debate sobre a influncia dos condicionamentos sociais na determinao das necessidades e desenvolve a sua anlise distinguindo, de imediato, as necessidades alienadas prprias da sociedade capitalista (necessidade de dinheiro, necessidade de poder, de posse), de carter quantitativo, daquelas necessidades humanas concretas, de carter qualitativo e historicamente determinado. Segundo Heller, as principais descobertas de Marx, registradas no conjunto de sua obra, esto assentadas sobre o conceito de necessidade, entretanto, adverte para a tarefaSER Social, Braslia, v. 12, n. 27, p. 8-32, jul./dez. 2010

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inglria de procurar ao longo da obra marxiana uma definio ou mesmo uma descrio desse conceito. Nos Manuscritos de 1844, Marx desenvolve uma classificao histrico-filosficoantropolgica do conceito de necessidades e faz uma distino entre as necessidades naturais, biolgicas, dirigidas conservao da vida e as necessidades socialmente determinadas, humanas de contedo social. Para a autora, esse conceito vai ser melhor desenvolvido nos Grundrisse, em que Marx vai diferenciar as necessidades naturais e necessrias manuteno da vida (alimentao, vesturio, moradia etc), que variam de acordo com as condies naturais e a cultura de cada pas, daquelas necessidades produzidas pela sociedade e historicamente datadas. Na interpretao de Heller, as necessidades naturais no constituem um conjunto de necessidades, seno um conceito limite, trata-se do limite da simples existncia. Nesse sentido, o ar que respiramos uma condio da existncia humana. Para diferenciar o conjunto de necessidades, Heller prefere utilizar os termos: 1) necessidades existenciais, que se referem s necessidades primrias (necessidade de se alimentar, necessidade sexual, necessidade de contato social, necessidade de atividade); e 2) necessidades propriamente humanas, aquelas necessidades que portam desejos e intencionalidades dirigidas para determinado objeto ou ao (necessidade de atividade cultural, necessidade de realizao, necessidade de reflexo, amizade, amor). Desse modo, as necessidades necessrias vida no so apenas dirigidas mera sobrevivncia, mas tambm surgem historicamente. Nelas prevalecem os elementos culturais, morais, os quais tm a ver com o costume de cada povo pertencente a uma determinada classe ou sociedade. Apesar do conceito de necessidade necessria vida no se referir somente s necessidades materiais, pode-se afirmar que as necessidadesSER Social, Braslia, v. 12, n. 27, p. 8-32, jul./dez. 2010

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necessrias so aquelas necessidades sempre crescentes, geradas mediante a produo material (HELLER, 1998, p. 35). Sendo assim, com o aumento da produtividade, tais necessidades, originariamente de luxo, podem se converter, com o passar do tempo, em necessidades necessrias vida. De acordo com Heller, as necessidades portam paixes, valores, desejo consciente e uma inteno dirigida para um determinado objeto que motiva a ao. Assim sendo, parece evidente que as necessidades so, ao mesmo tempo, pessoais (s o indivduo deseja conscientemente) e sociais. Na sociedade capitalista, a relao monetria e a fora do dinheiro determinam a quantificao das necessidades em detrimento das necessidades e capacidades humanas. Nos Manuscritos de 1844, o problema da quantificao das necessidades prprias da sociedade moderna (contraposta ao sistema de necessidades das comunidades naturais) se apresenta como pura alienao, enquanto que, nos Grundrisse, o problema da alienao aparece sob outro aspecto. Trata-se de uma forma alienada, mas necessria de desenvolvimento. Ambos os textos de Marx discutem o problema do empobrecimento das necessidades no capitalismo e a reduo e homogeneizao das necessidades. Como indica Heller (1998), a necessidade do ter a que se reduzem todas as necessidades e as converte em homogneas. Para as classes dominantes, esse ter possesso efetiva, consiste na necessidade dirigida possesso da propriedade e de dinheiro em medida cada vez maior. A necessidade de ter do trabalhador, pelo contrrio, afeta a sua mera sobrevivncia. Nessa discusso, a autora enfatiza a categoria de interesse que vai marcar a compreenso da reduo das necessidades no capitalismo. Nos Manuscritos de 1844, o trao essencial da superao da alienao precisamente o desaparecimento doSER Social, Braslia, v. 12, n. 27, p. 8-32, jul./dez. 2010

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interesse. Nos textos posteriores, Marx distingue as categorias de interesse e utilidade, ao mesmo tempo, refuta tanto as categorias de interesse individual como a categoria de interesse social e geral. Desse modo, essas categorias existem apenas como representaes de classe. Essa anlise sobre as antinomias da produo capitalista, apontada por Marx na sua crtica sociedade burguesa, gera, de um lado, reduo e homogeneizao das necessidades e, de outro lado, cria as condies para o aparecimento das necessidades radicais contrapostas s necessidades de valorizao do capital. Parece correto afirmar que, a partir do desenvolvimento do capitalismo, do seu carter antinmico, ao mesmo tempo em que crescem todas as formas de desigualdades, contraditoriamente, emergem as necessidades radicais. Desse modo, a sociedade capitalista a que provoca a manifestao das necessidades radicais, produzindo deste modo seus prprios coveiros; necessidades que so parte constitutiva orgnica do corpo social do capitalismo, mas de satisfao impossvel dentro desta sociedade e precisamente por isso motiva a prxis que transcende a sociedade determinada. (HELLER, 1998, p. 106)

O fio condutor do trabalho de Marx a convico de que as necessidades nascem com o trabalho e, de acordo com Heller, o trabalho na sociedade capitalista visto como negao e alienao, entretanto, a sociedade capitalista no produz apenas alienao, mas a conscincia da alienao que faz surgir as necessidades radicais. Marx aponta a necessidade de maior tempo livre dos indivduos como uma necessidade radical, que no necessariamente ser satisfeita nos marcos do capitalismo, mas numa sociedade futura que possa transcender o sistema capitalista. Ainda no que diz respeito teoria das necessidades, segundo Heller, cada sociedade tem um sistema de necessidades prprio e caracterstico e, portanto, tem a ver com a cultura de cadaSER Social, Braslia, v. 12, n. 27, p. 8-32, jul./dez. 2010

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sociedade. Nas sociedades capitalistas, a estrutura das necessidades est subordinada lgica do sistema de produo de mercadorias e, desse modo, as necessidades so manipuladas e reduzidas s de posse, nas quais predominam as relaes de interesse. Assim, uma determinada necessidade no se converte em manipulada por suas qualidades concretas, mas em funo de determinados fatores que devem ser levados em considerao, como o aparecimento de novos objetos de necessidades em consonncia com o processo de produo de mercadorias e valorizao do capital. Desse modo, o aumento das necessidades e a orientao para satisfaz-las obedecem ao mecanismo da produo capitalista. Da mesma forma, a satisfao das necessidades dos indivduos passa por uma escolha individual a partir de sua personalidade e, ao mesmo tempo, influenciada pelo lugar que o sujeito ocupa na diviso social do trabalho. Ademais, na realidade, o problema da satisfao das necessidades dos indivduos se apresenta como um fim quando no passa de um meio para a satisfao das necessidades ditadas pelo sistema de produo de mercadorias. Assim como, na atualidade, determinadas necessidades manipuladas, pelo menos nos pases capitalistas desenvolvidos, no so somente restritas s classes dominantes, mas extensivas maioria da populao. A anlise de Heller sobre a questo das necessidades continua contempornea ao colocar em destaque a estrutura do sistema de necessidades das sociedades capitalistas e se fundamentar no conceito de necessidades radicais, vislumbrando uma transformao ou reestruturao desse sistema, que transcende necessariamente a sociedade capitalista. Isso no quer dizer que a autora defenda o imobilismo social e, nem tampouco, que faa uma apologia ao sistema capitalista, poisO sistema de necessidades capitalista pertence ao capitalismo; apesar disso, precisamente esta sociedade pura a que desenvolveSER Social, Braslia, v. 12, n. 27, p. 8-32, jul./dez. 2010

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as foras produtivas at o ponto de superar a diviso do trabalho; assim mesmo pode criar, e cria, necessidades pertencentes ao seu ser, mas no ao seu sistema. Por isso, somente as necessidades radicais podem motivar que os homens para satisfaz-las realizem uma formao radicalmente distinta da precedente, cujo sistema de necessidades radicalmente novo se diferenciar dos passados. (HELLER, 1998, p. 117)

Nesse sentido, parece evidente que a realizao das necessidades bsicas dos indivduos, no limite do capitalismo, ser determinada a partir de uma srie de fatores relacionados com o grau de desenvolvimento cultural, econmico, poltico e social de cada sociedade e est em consonncia com a capacidade de cada sociedade, em particular, de dispor dos recursos necessrios para obter bens e servios de forma mercantilizada. Numa srie de entrevistas concedidas a Ferdinando Adornato, reunidas e publicadas no Brasil com o ttulo Para Mudar a Vida: Felicidade, Liberdade e Democracia, Heller refora determinadas categorias-chave que foram trabalhadas anteriormente e constituem a base de seu pensamento. A autora sintetiza, de forma clara, a sua teoria de necessidade assentada no conceito de necessidades radicais, ou carecimentos radicais (dependendo da traduo):por carecimento radical entendo todos os carecimentos nascidos na sociedade capitalista, em consequncia do desenvolvimento da sociedade civil, mas que no podem ser satisfeitos dentro dos limites dessa sociedade. Portanto, os carecimentos radicais so fatores de superao da sociedade capitalista. (Entretanto), obvio que nem todos os carecimentos podem ser considerados revolucionrios, pois se assim o fossem no teria sentido falar de carecimentos radicais, j que, nesse caso, todos os carecimentos seriam radicais. (HELLER, 1982, p. 134-135)

Em seguida, ela ratifica a sua percepo ao dizer que carecimento radical aquele que, numa sociedade socialista, poderia ser satisfeito por todos os homens. Ao refletir sobre aSER Social, Braslia, v. 12, n. 27, p. 8-32, jul./dez. 2010

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estrutura do sistema de necessidades nas sociedades capitalistas, Heller explicita claramente o carter antinmico do capitalismo: ao mesmo tempo em que gera situaes de desigualdades sociais e restringe o acesso dos indivduos a determinadas necessidades bsicas, propicia, tambm, o aparecimento de necessidades no sentido de uma transformao e reestruturao do sistema. A partir da exposio das ideias da autora, pode-se deduzir que a construo de uma escala de necessidades universais ou a reestruturao do sistema de necessidades na sociedade capitalista supe, necessariamente, diferenciar necessidades dirigidas somente para a possesso de bens de consumo e necessidades geradas pelos movimentos sociais contra a manipulao do sistema social. Em vrias passagens, Agnes Heller faz referncia a determinadas ideias defendidas pelos tericos frankfurtianos, em particular ao conceito de necessidades manipuladas de Marcuse. No que se refere ao conceito de necessidades manipuladas utilizado por Marcuse, a autora vai defender um ponto de vista distinto ao afirmar que:se eu aceitasse as manipulaes do sistema capitalista, no usaria o termo manipulao. Com efeito, essa expresso j inclui em si mesmo um juzo de valor negativo. E precisamente a realizao de novos carecimentos a nica alavanca capaz de indicar o limite e a carncia do sistema de manipulao, sem que isso, naturalmente, signifique renunciar aos carecimentos que o capitalismo despertou em seu desenvolvimento. (HELLER, 1982, p. 140)

Ao realizar essa crtica, Heller no desconhece a fora coercitiva do sistema e as limitaes registradas no desenvolvimento das capacidades e potencialidades dos indivduos. Entretanto, a autora, coloca em evidncia (algo que Marcuse trabalha lateralmente) a prpria estrutura contraditria inerente constituio do capitalismo, que, ao mesmo tempo, propicia alienao, reificao e tambm possibilita o desenvolvimento de necessidades radicais noSER Social, Braslia, v. 12, n. 27, p. 8-32, jul./dez. 2010

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interior da sociedade. Em sntese, Heller reconhece a importncia das anlises tericas da Escola de Frankfurt, concernentes ao problema da alienao das personalidades dos indivduos nas sociedades industriais e a importncia desse estudo para a compreenso da percepo das necessidades no mundo atual.

A contribuio de marcuse para o debate sobre necessidades sociaisA partir dessas consideraes, torna-se imprescindvel um exame de determinados textos da obra de Marcuse que contemplam elementos importantes na exposio dos condicionamentos sociais alienantes presentes na sociedade capitalista contempornea. Marcuse, contemporneo de Adorno e de Horkheimer na Escola de Frankfurt, no seu livro que foi traduzido para o portugus primeiro como Ideologia da Sociedade Industrial, editado no Brasil no final da dcada de 1960, e recentemente publicado com o ttulo original O Homem Unidimensional, parte da contradio e do nexo dialtico entre as condies existentes na realidade (alienadas e reificadas) e as possibilidades de satisfao das necessidades. Ao desenvolver o conceito de sociedade unidimensional, ele tambm trata da questo das necessidades a partir das exigncias e dos padres crticos da sociedade industrial, e diz que: a intensidade, a satisfao e at o carter das necessidades humanas, acima do biolgico, sempre foram pr-condicionados (MARCUSE, 1969, p. 26). Na concepo do autor, pode-se distinguir dois tipos de necessidades: as necessidades falsas e as necessidades verdadeiras. As necessidades falsas so aquelas superimpostas ao indivduo por interesses particulares, perpetuam a labuta, a agressividade, a misria e a injustia e so determinadas por foras externas, independentes do controle dos indivduos e se apresentam comoSER Social, Braslia, v. 12, n. 27, p. 8-32, jul./dez. 2010

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produtos da sociedade industrial repressiva. As necessidades verdadeiras tm a ver com o direito indiscutvel satisfao das necessidades vitais - de alimento, roupa e teto ao nvel alcanvel de cultura (MARCUSE, 1969, p. 26-27). Com relao ao segundo tipo, como diz o autor, parece difcil determinar o seu grau de veracidade ou falsidade, pois essas necessidades obedecem ao interesse social predominante e acompanham os padres de satisfao da sociedade dominante. Na compreenso de Marcuse, a ruptura com o padro racional, produtivo e tcnico da sociedade industrial est relacionada com o grau da conscincia de servido dos indivduos em relao a esse modelo de sociedade. Contudo, na percepo do autor, esse processo de ruptura com os padres estabelecidos pela sociedade industrial, atravs dos seus diversos mecanismos de controles sociais, no tem sentido, considerando o grau de alienao da sociedade. Os indivduos reproduzem, de forma espontnea, as necessidades superimpostas pela sociedade e, frequentemente, so obrigados a abrir mo de sua autonomia em funo das necessidades do sistema. Marcuse admite que os indivduos agem como receptculos pr-condicionados, os mecanismos de controle ditados pelos meios de informao. Para ele, as necessidades mais comuns dos indivduos (descansar, distrair-se, comportar-se, amar, odiar, consumir) so criadas e reforadas pelos controles sociais impostos. Contudo, esse processo, por mais racional que possa parecer, porta uma irracionalidade que faz parte do contexto da civilizao industrial desenvolvida, no qual os indivduos introjetam, reproduzem e perpetuam os controles sociais exercidos pela sociedade. Nesse sentido, a prpria noo de alienao questionvel, visto que:os indivduos se identificam com a existncia que lhes imposta e tem nela seu prprio desenvolvimento e satisfao. EssaSER Social, Braslia, v. 12, n. 27, p. 8-32, jul./dez. 2010

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identificao no uma iluso, mas uma realidade. Contudo, a realidade constitui uma etapa mais progressiva da alienao. Esta se tomou inteiramente objetiva. O sujeito que alienado engolfado por sua existncia alienada. H apenas uma dimenso, que est em toda parte e tem todas as formas. As conquistas do progresso desafiam tanto a condenao como a justificao ideolgica; perante o tribunal dessas conquistas, a falsa conscincia de sua racionalidade se toma verdadeira. (MARCUSE, 1969, p. 31)

Trata-se da absoro da ideologia pela realidade, o que no significa o fim da ideologia, como j notou Marcuse, pois a sociedade unidimensional, mais do que as suas predecessoras, gera padres de pensamentos e comportamentos unidimensionais, que tm a ver com o prprio processo de produo, e so redefinidos de acordo com a racionalidade do sistema. Desse modo, o pensamento unidimensional sistematicamente promovido pelos elaboradores da poltica e seus provisionadores de informao em massa (MARCUSE, 1969, p. 34), e a principal tarefa desses meios de comunicao satisfazer as necessidades que tomam a servido aceitvel e aparentemente imperceptvel. Com a mecanizao e a automatizao da produo, muda o ritmo e a velocidade do trabalho na sociedade industrial e a classe trabalhadora submetida a um trabalho exaustivo, entorpecedor e desumano. Essas alteraes no carter do trabalho e nos instrumentos de produo contribuem para a reduo da autonomia profissional do trabalhador e para a criao de outro modo de escravizao do trabalho, que modifica, substancialmente, a atitude e a conscincia do trabalhador em relao s suas necessidades, aspiraes, atividades de lazer e padro de vida. Essas modificaes, provocadas pela automatizao da produo, apresentam, predominantemente, um carter negativo e so responsveis por uma srie de problemas atuais enfrentados pela classe trabalhadora, tais como acelerao do trabalho, desemprego tecnolgico, impotncia e resignao por parte dos trabalhadores.SER Social, Braslia, v. 12, n. 27, p. 8-32, jul./dez. 2010

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Marcuse faz questo de reforar, na sua anlise sobre a sociedade industrial, a manipulao dos pensamentos, sentimentos, aspiraes e necessidades dos indivduos e a dificuldade que encontram de pensar, sentir e agir por si mesmos. Nesse modelo de sociedade, no qual os indivduos so guiados pelos meios de comunicao de massa, registra-se uma expanso da alienao livre e consciente das formas estabelecidas de vida (MARCUSE, 1969, p. 72). No resta dvida de que o progresso tcnico traz consigo uma ampliao das necessidades de vida e possibilita a satisfao de necessidades de um maior nmero de pessoas, entretanto, ainda predomina a escassez de recursos para a realizao universal das necessidades individuais. Marcuse admite que o incremento na produtividade e a progressiva substituio de meio natural incontrolvel por um meio tecnolgico controlado aumentam o nmero de necessidades sociais, porm, trata-se, to somente, de necessidades alienadas, subordinadas a um trabalho alienado. Contudo, tanto Marcuse quanto Heller, ao fazerem referncia ao conceito de necessidades humanas e sociais baseados na teoria marxiana no utilizam o termo conjugado necessidades humanas bsicas, pois, na perspectiva marxista, o conceito de necessidades humanas, sociais e historicamente produzidas extrapola a construo de uma escala de necessidades bsicas identificadas na imediaticidade da sociedade burguesa. De acordo com essa interpretao, as necessidades bsicas podem ser sociais, pois o seu atendimento tem a ver com as condies morais da poca e com o nvel de organizao da fora poltica dos trabalhadores, entretanto, as necessidades sociais ultrapassam o padro bsico de incluso social necessrio para a reproduo fsica dos trabalhadores. Desse modo, faz-se necessrio apontar determinadas controvrsias na definio e determinao do conceito de mnimosSER Social, Braslia, v. 12, n. 27, p. 8-32, jul./dez. 2010

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sociais de existncia e sua relao com os conceitos de necessidades bsicas e necessidades sociais.

Consideraes FinaisNo plano internacional, principalmente nos pases que vivenciaram prticas do Estado de Bem-Estar Social, a questo do desenvolvimento da discusso sobre os mnimos sociais e as necessidades bsicas parece ser um consenso e apresenta significativos avanos. Contudo, na realidade brasileira, essa polmica est longe de ser resolvida e apresenta srias interrogaes e imprecises tericas e prticas. Os dados empricos sobre o Programa Bolsa Famlia indicam que as propostas de renda mnima, na sua grande maioria de cunho liberal, no ultrapassam os limites da sociedade capitalista e suas aes so orientadas por uma lgica de substituio de programas e servios sociais e incidem, principalmente, no suprimento de determinadas necessidades indispensveis sobrevivncia daqueles mais desfavorecidos socialmente e sem acesso reduzida oferta de emprego. Desse modo, a discusso sobre a renda mnima gira em torno das necessidades orgnicas impostas pela condio biolgica do ser. No mbito internacional, embora as evidncias apontem determinadas mudanas em relao s primeiras propostas liberais, principalmente nos pases avanados do capitalismo, no que tange proposta de percepo de uma renda mnima universal para todo o cidado, independentemente de sua vinculao a qualquer tipo de trabalho, o valor atual da renda concedido ao cidado, na maioria dos programas registrados, continua sendo muito restrito e, na maioria dos casos, no cobre as suas necessidades bsicas. No Brasil, a discusso sobre necessidades bsicas e mnimos sociais assume uma dupla interpretao: a primeira interpretao,SER Social, Braslia, v. 12, n. 27, p. 8-32, jul./dez. 2010

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mais ampla e cidad, est pautada num padro bsico de incluso e compreende os mnimos sociais como padro societrio de civilidade em que a produo do Servio Social tem se destacado no conjunto dos estudos orientados por uma leitura crtica; a segunda, mais restrita, concebe os mnimos sociais como polticas sociais voltadas para cobrir carncias. Essa ltima interpretao sobre renda mnima vai influenciar a formulao e implantao do Bolsa Famlia, em que a complementao de renda proposta no programa difere consideravelmente de uma concepo de alocao universal (por exemplo, uma renda social incondicional para assegurar a cada um o direito de participar da riqueza social) visto que essa compensao monetria condicionada e limitada temporariamente. As pesquisas sobre os impactos de Programas de Garantia de Renda Mnima nas condies de vida das famlias brasileiras beneficiadas, particularmente os dados coletados a partir da realidade do Par e do Amap, apontam para o fato de que o benefcio pago quase sempre destinado alimentao, moradia, educao e consumo de equipamentos para facilitar as tarefas domsticas. Alm disso, a natureza de benefcio condicionado faz com que os usurios experimentem diariamente a angstia da instabilidade do rendimento, cuja expresso o cancelamento do benefcio. Contudo, fica claro que a complementao de renda assegurada pelo programa satisfaz parcialmente as necessidades bsicas da populao, pois garante apenas parte do consumo necessrio para a sobrevivncia dos indivduos. No satisfaz, portanto, um conjunto de bens pblicos indispensveis manuteno de sua subsistncia, e tampouco contribui para o desenvolvimento de necessidades sociais que esto alm das necessidades de sobrevivncia.SER Social, Braslia, v. 12, n. 27, p. 8-32, jul./dez. 2010

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Fundamentada nessa discusso, compreende-se que o debate sobre as necessidades, a partir do referencial marxista, pode iluminar o atual contexto de reorientao das polticas pblicas sociais (com claro objetivo de reduo da pobreza e no das desigualdades sociais) e de reordenamento dos processos produtivos, especialmente em funo do desemprego, da recesso econmica, da precarizao do trabalho e da desregulamentao de direitos trabalhistas em curso.Submetido em 30 de maio de 2010 e aceito para publicao em 03 de novembro de 2010.

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