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  • 7/26/2019 o Seculo Entrevistas

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    Betty Milan

    O SCULO(entrevistas)

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    SUMRIO

    Prefcio

    O sculo das mulheres,por Alain Mangin 9

    A CIDADE

    Paul Virilio 21

    A GUERRA

    Pierre-Marie Gallois 39

    A TERRA

    Pierre Gourou 59

    O DESTERRO

    Grard Chaliand 73

    A VIDA

    Franois Jacob 93

    AS MULHERES Michle Sarde 109

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    O SEXO Catherine Millot 131

    A LNGUA

    Claude Hagge 147

    A ARTE

    Georges Mathieu 159

    A COMUNICAO

    Dominique Wolton 181

    Agradecimentos 195

    Notas 197

    Fontes 240

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    O SCULO DAS MULHERES

    Quero o discurso que d o primeiro tiro

    quando existe a maior das dvidas.

    MONTAIGNE

    Este sculo, o vigsimo, foi o nosso. Nasceu e mor-

    reu, em pleno dia, do choque dos imprios. Marcado por

    um relgio implacvel o tiquetaque da morte , como se a

    corda tivesse sido estirada para amplificar a onda criminosa

    desde sua primeira vibrao. E, para ser ainda mais violen-

    to, o sculo como um artilheiro comprimindo dinamite

    numa exgua cmara de exploso foi curto: setenta e sete

    anos. Saiu armado dos canhes doKaiser no dia 28 de julho

    de 1914 e, no dia 21 de dezembro de 1991, foi atirado porGorbatchev numa cova em Alma Ata, na sia (1).

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    este sculo que Betty Milan investiga, valendo-seda entrevista mtodo em que ela se exercita de maneira

    exemplar, por no rivalizar com o entrevistado e construir

    com ele um dilogo esclarecido. Os temas do livro so dez:

    A CIDADE, A GUERRA, A TERRA, O DESTERRO, A

    VIDA, AS MULHERES, O SEXO, A LNGUA, A ARTE e

    A COMUNICAO.

    Esta variedade temtica faz pensar na frase de Mon-

    tesquieu: Minha alma a tudo se entrega. S que, para

    sustentar a curiosidade, preciso uma cultura slida, que

    alie as cincias duras s cincias humanas e esttica. sua

    maneira, a autora coloca em prtica o que, segundo um dosseus interlocutores, Pierre Gourou, ser o trao distintivo

    do prximo sculo: a palavra registrada. Por que, alis, ter

    escrito o prximose ns j estamos nele? Mas no nos enga-

    nemos, a autora por demais escritora para ignorar que essa

    palavra registrada no tem como entrar num livro, desafiar

    a corroso do tempo, se no for estilizada. o que ela faz,

    sem nunca trair o pensamento do entrevistado.

    O feito tanto maior se considerarmos que todos os

    dilogos ocorreram em francs. O fato de Betty Milan mo-

    rar em Paris no deixa de ser uma explicao, mas incom-

    pleta. A Frana apresentava a vantagem de ter estado nocentro do turbilho, de ser o vencedor e o vencido. Com

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    vinte anos de intervalo (2 ), tanto conheceu a vertigem davitria quanto a humilhao da derrota. Nisso, est mais

    prxima da Alemanha com a abjeo a menos do que da

    Inglaterra, que, alis, s se manteve beira do abismo por

    causa de um homem, Winston Churchill. E h quem diga

    que a histria se faz sem eles!

    A Alemanha e a Inglaterra, por razes que lhes so

    prprias, bem como a Itlia, poderiam ter servido aos pro-

    psitos da entrevistadora. J mais difcil imagin-la nos

    Estados Unidos, porque o papel desse pas ao contrrio dos

    outros no se define pelo sentimento trgico da vida,

    para retomar a frmula de Miguel de Unamuno (3).A Frana bem sabe como frgil a alegria de viver.

    Sabe que os 14 de julho (4)derrapam no sangue da guilho-

    tina. Que, em vez do trigo, o belo vero de 1914 (5)ceifou

    a juventude europeia nos campos onde ela caa. Claro que

    a Frana no pode se entregar ao otimismo. E como pode-

    ria, se pensarmos que o novo sculo, o vigsimo primeiro,

    j comea com o massacre da ex-Iugoslvia, os genocdios

    da frica Oriental, a interdio feita pelos talibs s afegs,

    proibidas como diz Michle Sarde de se tratar nos hospi-

    tais do pas? No por acaso que o pintor Georges Mathieu

    se declara otimista, mas logo qualifica de desesperado o seuotimismo. A pirueta metafsica a ningum engana.

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    A entrevistadora se ocupou dos francfonos porquedomina o cdigo deles e, consequentemente, capaz de

    fazer perguntas mais agudas e espontneas. E a razo da

    escolha de cada um dos seus interlocutores qual ? Como

    todo verdadeiro escritor, a autora sensvel palavra, ele-

    gncia do discurso, sua consistncia ntima, s inf lexes da

    voz, em suma, tessitura secreta do ser. No foi o sucesso

    miditico que a levou a eleger um ou outro entrevistado.

    Alguns so frequentemente vistos nas telas da televiso fran-

    cesa. Outros, nem tanto. Seja como for, as entrevistas nos

    fazem adivinhar o quanto eles e Betty Milan gostaram do

    encontro. Acho que ela faria suas as palavras de Montaigne(1533-1592): ... bom aprender o terico com os que co-

    nhecem a prtica.

    Last but not least, ainda outro elemento determinou as

    escolhas da autora: a capacidade que o entrevistado tinha de

    ultrapassar o quadro nacional, e o europeu, para nos descorti-

    nar o mundo e fazer ver o universal. Nenhuma considerao

    neste livro sobre a civilizao industrial, ou o irrisrio ps-

    moderno uma catchword, como diriam os anglfonos ,

    ou ainda a periferia. Os Estados Unidos seriam perifricos

    sob pretexto de que um partido de devotos em ruptura com

    o catolicismo h 400 anos confunde o frum e o confes-sionrio, o pblico e o privado? E a Frana da Terceira Re-

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    pblica (1870-1940) seria perifrica por ter recusado o direitode voto s suas cidads? Elas s o obtiveram em 1945, e foi

    um general de direita, de Gaulle, quem acabou com o pre-

    conceito. As brasileiras para no falar das neozelandesas (6)

    j o exerciam h muito tempo. Mas sejamos tolerantes e

    raciocinemos pelo absurdo. Quem quiser manter a noo de

    periferia deve pens-la de outra maneira e considerar que, no

    arco-ris das naes e das culturas, cada uma, mais cedo ou

    mais tarde, ser chamada de perifrica. O mundo um cr-

    culo cujo centro est em todo lugar e a circunferncia em

    parte alguma, como dizia Pascal (1623-1662). Ou, citando

    Michle Sarde: O esprito paira em todo lugar.Nenhum dos interlocutores presentes neste livro

    precisou esperar a globalizao noo exclusivamente

    mercantil para descobrir a priso em que vivemos. Do-

    minique Wolton e Claude Hagge, por exemplo, mostram

    os limites da identidade e os fins clandestinos da globaliza-

    o. Gourou nos leva para os trpicos da sia e da Amrica

    e se preocupa com a diminuio do campesinato, que, no

    longo prazo, poder provocar a fome no mundo. O urba-

    nista Virilio constata a existncia de uma terceiromundia-

    lizao das cidades do planeta, as revoltas urbanas que a

    ela se seguem e se propagam por procurao televisiva.O general Gallois est interessado no desequilbrio geo-

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    estratgico da sia, nas aberraes geopolticas da fricaNegra; enquanto Grard Chaliand, cuja famlia s esca-

    pou por milagre do genocdio armnio, sublinha os limites

    da mestiagem das imigraes contemporneas. Gourou e

    Virilio, Gallois e Chaliand j marcam com uma cruz ver-

    melha no mapa-mndi os campos de batalha do futuro.

    Os outros entrevistados tm a mesma preocupao

    com o universal. No caso de alguns, isso evidente: a psi-

    canalista Catherine Millot, que compara a sexualidade aos

    partidos totalitrios; o geneticista e Prmio Nobel de Medi-

    cina Franois Jacob, cuja disciplina est a servio dos meca-

    nismos universais da vida; o linguista Claude Hagge, quevive como um drama a desapario de uma lngua, por sa-

    ber que qualquer dialeto uma estilizao insubstituvel do

    mundo. Milita na entrevista pelo trilinguismo, consideran-

    do que o ingls deve ser a terceira lngua , alis, apaixo-

    nante descobrir o porqu. Dominique Wolton por demais

    discreto para insistir que a vida comunicao e esta ser a

    questo central do sculo XXI. Michle Sarde nos introduz

    no combate das mulheres, na aventura da outra metade da

    humanidade. Pena que a entrevista no seja mais longa. No

    caso do pintor Georges Mathieu, o universal bvio, ainda

    que sua arte seja mais reconhecida na sia e nas Amricasdo que na Frana.

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    Todos esses autores se preocupam com o universal,porque so filhos de Montaigne, o mais moderno dos fran-

    cfonos, o escritor que j no sculo XVI o das guerras

    de religio se instrua com os ndios brasileiros de passa-

    gem pelos portos franceses e neles encontrava uma sabedo-

    ria nova. Betty Milan, invertendo a situao, interroga os

    franceses sobre o pas dela, o Brasil. Seremos ns to sbios

    quanto esses longnquos ancestrais das f lorestas da Amaz-

    nia? Sabe-se l...

    Os interlocutores deste livro conhecem o Brasil. Di-

    retamente, como Gourou e Mathieu, ou atravs de leitura.

    E a entrevistadora, que no confunde nacionalismo compatriotismo por conhecer bem as consequncias desastro-

    sas do primeiro e por saber que o segundo se sustenta na

    memria criadora, e no nas crispaes de identidade , faz

    sem ufanismo e sem subservincia as perguntas que so im-

    portantes para ela.

    Os entrevistados respondem confessando s vezes os

    limites do seu conhecimento, mas nenhum nos deixa indi-

    ferentes, porque nenhum complacente, mesmo quando se

    deixa levar por um entusiasmo pelo Brasil Mathieu e o

    barroco brasileiro ou ainda Wolton, que detecta nos com-

    patriotas de Betty Milan um senso agudo da comunicao.Talvez isso seja devido sociedade multirracial e s suas

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    complexidades, capacidade do povo brasileiro mais doque a de suas elites de oferecer ao mundo uma imagem ar-

    rebatadora. A sia poderia tomar o Brasil como exemplo.

    No h s elogios nas entrevistas, h crticas tambm.

    Gourou contesta o objetivo de fazer da Amaznia um pro-

    longamento industrial e agrcola de um pas sem fim. Por

    outro lado, volta-se contra a ideia de que a Amaznia seja

    o pulmo da Terra, quando na verdade o clima do pla-

    neta determinado pela distribuio das massas ocenicas.

    Gallois reservado sobre a assinatura pelo governo brasi-

    leiro do Tratado de Tlatelolco (7), interditando a construo

    das armas nucleares na Amrica Latina. De que ser feito oamanh?, pergunta-se ele. Regozija-se, no entanto, com a

    sabedoria do Brasil, que, ao contrrio da Frana e da Argen-

    tina, no esposou as teses da coalizo anti-iraquiana. Assim

    vm e vo as questes e as respostas, to pertinentes quanto

    inesperadas. Aparece, atravs disso, o interesse dos franceses

    pelo que o Brasil poderia ter sido no sculo XVI, uma Fran-

    a Equinocial (8 ), no fosse o gosto pela disputa teolgica

    ou, como ns hoje diramos, disputa ideolgica.

    J que estamos considerando os acordos e os desacor-

    dos, autorizo-me aqui a opinar uma nica vez sobre uma

    das entrevistas: a de Claude Hagge. Betty Milan perguntase ele distingue os bilngues dos biculturais. A resposta do

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    professor do Collge de France sentenciosa: Quem dizbilngue diz bicultural. Ser isso verdade? Podemos apren-

    der uma outra lngua, saber at o dicionrio de cor. Da a

    ser bicultural, compreender verdadeiramente o Outro, os

    seus meandros secretos, h uma grande distncia. Lawrence

    da Arbia (9)escreveu um texto luminoso sobre este tema.

    Seja como for, a minha gerao sabe que a Frana foi mar-

    tirizada durante cinco anos por oficiais nazistas bilngues.

    Obviamente, eles no eram biculturais!

    Este sculo, que alguns chamaram de era das tiranias

    o sculo de Hitler (1889-1945) e de Stlin (1878-1953), de

    Mao (1893-1976) e Pol Pot (1925 ou 1928-1998) , ser elenegativo a ponto de dizermos que foi o dos assassinos? Dira-

    mos que sim, no fosse a revoluo feminista pacfica uma

    das nicas desde o neoltico a no merecer a palavra horror.

    O homem sendo uma causa perdida, resta a mulher.

    Restam as mulheres. delas que nos fala Michle Sarde

    numa entrevista to densa quanto sutil. O interesse do leitor

    a ativado pela cultura cosmopolita da interlocutora. Ela

    nos oferece comparaes interessantes entre os diferentes

    feminismos que renovam o mundo ocidental a Decla-

    rao dos Direitos da Mulher de Olympe de Gouges, que

    foi guilhotinada; o feminismo das sufragistas inglesas, queapontaram como ridcula a sociedade masculina impla-

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    cvel; e o das americanas, frequentemente to exacerbadasque morreriam pela causa.

    Sendo a natureza humana o que , as mulheres iro

    salvar o mundo, como imaginava Andr Breton? J seria

    timo se o tornassem mais moderado. E, para chegar a tan-

    to, no precisariam elas renunciar figura do duplo mascu-

    lino e assumir triunfalmente o feminino nico? A prpria

    emancipao poderia ajud-las nisso. Seno, a lei de ferro

    do poder, cujos mecanismos so eternos a duplicidade e a

    chantagem, o cinismo e a violncia , as esmagar.

    Michle Sarde atribui mulher uma aptido para ne-

    gociar e diz que so menos agressivas do que o homem. Porque no valorizar este menos, a diferena entre elas e ns?

    ALAINMANGIN

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    A VIDA

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    FRANOIS JACOB

    Franois Jacob nasceu em 1920 na cidade de Nancy. Em ju-

    nho de 1940, no segundo ano da Faculdade de Medicina

    que ele cursava para se tornar cirurgio , alistou-se nas for-as livres da Frana (32). Quatro anos depois, foi gravemente

    ferido na Normandia. Terminada a guerra, recebeu a Gran-

    de Cruz da Legio de Honra e voltou ao curso mdico, em-

    bora no pudesse mais se especializar em cirurgia, como

    queria. Em 1950, ingressou no Instituto Pasteur, no servio

    do professor Andr Lwoff (1902-1994), e, passados quinze

    anos, recebeu o Prmio Nobel pela contribuio ao estudo

    do cdigo gentico e a descoberta do RNA mensageiro,

    juntamente com seu mestre Lwoff e o bioqumico Jacques

    Monod (1910-1976). autor do livro A lgica da vida. Uma

    histria da hereditariedade, lanado na Frana em 1970 e pu-blicado no Brasil, assim como O rato, a mosca e o homem. De

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    1982 a 1988, foi presidente do Conselho de Administraodo Instituto Pasteur, do qual professor emrito, ttulo igual

    ao que tem no Collge de France.

    A cincia e a ideologia

    Betty Milan:O senhor comeou os estudos de medici-

    na com a inteno de ser cirurgio. Interrompeu-os para

    se alistar na Resistncia, nas Foras Francesas Livres, as deCharles de Gaulle. Depois da guerra, se tornou geneticista

    em vez de cirurgio. Por qu?

    Franois Jacob:Fui gravemente ferido e j no havia como

    me dedicar cirurgia. Tenho um brao e uma perna defeituo-

    sos. Quando voltei para a faculdade, quis trabalhar s como

    mdico interno. Eles no aceitaram. Fiquei to desgostoso

    que resolvi fazer outras coisas. Fiz um pouco de jornalismo,

    de cinema... No fim, me decidi pela pesquisa gentica. O

    que ocorria na Unio Sovitica interferiu na minha deciso,

    o lissenkismo. Como voc sabe, para Lyssenko (33), a noo

    de espcie era uma ideia burguesa. Fez l umas experin-cias, que permitiram transformar uma espcie noutra e de-

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    pois se valeu delas para atacar a gentica. Esta, segundo ele,era incompatvel com o materialismo dialtico. Conseguiu

    convencer o Comit Central e o Estado sovitico inteiro.

    Por causa de Lyssenko, muitos geneticistas russos foram de-

    portados para a Sibria e morreram. Era um charlato, mas

    tambm na Frana, e em vrios pases da Europa ocidental,

    as ideias dele foram sustentadas pelos comunistas...

    BM:O senhor ento escolheu a gentica tambm para se

    opor intolerncia...

    JACOB: Sim, porque achava incrvel que, na metade do

    sculo XX, fosse possvel rejeitar trinta anos de uma cinciaslida e at condenar as pessoas morte...

    BM:Ns estamos no fim do milnio e, embora a noo

    de raa tenha desaparecido do vocabulrio cientfico, ela

    continua a ser usada pelos que querem encontrar um funda-

    mento biolgico para diferenas culturais. Seria possvel ex-

    plicar por que os cientistas desautorizaram a noo de raa?

    JACOB: No sculo XIX, quando comearam a falar de

    raa, diziam que havia quatro ou cinco raas; depois, pas-

    saram para nove ou doze; e, finalmente, para 65. Quanto

    mais caractersticas a gente estuda, mais raas encontra. Porisso, os bilogos j no falam em raa, e sim em populao.

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    Trabalham comparando a diversidade dos caracteres, que to grande no interior de uma mesma populao quanto

    entre duas populaes diferentes. O conceito que tem va-

    lor operatrio o de espcie, que permite saber se os seres

    podem ou no se acasalar e engendrar. O de raa no tem

    valor operatrio. O Brasil , alis, um timo exemplo da

    maneira como os caracteres se diluem... Em 1995, estive no

    Rio de Janeiro para as cerimnias do centenrio de morte

    de Pasteur. E inclusive assisti ao Carnaval.

    A cincia e a arte

    BM:O senhor diz que a cincia, como a arte, uma das

    grandes aventuras da humanidade. O que h de comum

    entre o cientista e o artista? E o que h de diferente?

    JACOB:O que existe de comum o fato de que no comeo

    de tudo h um esforo de imaginao. Dele tanto depende a

    cincia quanto a poesia, s que o cientista obrigado a con-

    frontar a realidade imaginada com a realidade em si, enquanto

    o poeta pode fazer qualquer coisa. A diferena est em que

    na cincia existe um progresso contnuo. As descobertas deNewton foram superadas pelas de Einstein. A biologia do s-

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    culo XIX menos boa do que a de hoje, que, por sua vez, sermenos boa do que a do prximo sculo. Na cincia, a gente

    determinada pela ideia do progresso, est certa de que faz coi-

    sas mais avanadas do que os outros fizeram. J na arte no faz

    sentido algum falar em progresso. A escultura da Grcia cls-

    sica ou do Egito no menos boa do que a escultura moderna.

    Picasso no melhor do que um pintor do sculo passado...

    Os sucessos do Instituto Pasteur

    BM:Verdade... Gostaria que nos detivssemos na cincia.

    No sculo passado, Pasteur revolucionou a medicina com a

    crtica da Teoria da Gerao Espontnea. Depois, os alunos

    dele descobriram a vacina contra a tuberculose, a BCG. A

    biologia molecular, de que o senhor um dos principais

    expoentes, desenvolveu-se no Instituto Pasteur. O vrus da

    Aids tambm foi isolado a por Montagnier. Como explicar

    essa tradio de sucesso cientfico?

    JACOB: H vrios fatores. Um deles a maleabilidade do

    Instituto. Quando Pasteur encontrou a vacina contra a raiva

    e a Academia de Cincias o instigou a criar um Instituto, eleno quis que este se ligasse universidade. Porque havia sido

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    reitor e conhecia os empecilhos. Criou uma instituio pri-vada capaz de se autofinanciar, produzir vacinas e vend-las

    para pagar a pesquisa. A maleabilidade do Instituto Pasteur

    permitiu que respondssemos com rapidez aos imperativos

    da pesquisa, que a biologia molecular se desenvolvesse e o

    vrus da Aids fosse isolado... At o fim da guerra, o Instituto

    pde financiar a pesquisa com a venda das vacinas. Depois,

    passou a receber do Estado uma parte dos recursos. Isso por

    no ter conseguido industrializar os antibiticos.

    BM: A primeira parte do sculo foi dominada pela fsica;

    a segunda, pela biologia. Quais as principais descobertas dabiologia no sculo XX?

    JACOB:No comeo do sculo, a gente sequer conhecia

    os genes. A gentica no existia. Conhecamos as clulas e

    tnhamos a impresso de que tudo se passava na massa gela-

    tinosa que existe dentro delas, o protoplasma. Depois, des-

    cobrimos a protena e a importncia dos hormnios. Com

    isso, a viso sobre os seres vivos mudou e houve um grande

    progresso na segunda metade do sculo, com o nascimento

    da biologia molecular, que procura explicar as proprieda-

    des dos seres pela estrutura e pelas interaes das molculas

    que os compem ns antigamente s sabamos falar dafora vital...

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    BM:Qual a maior descoberta da biologia molecular?JACOB:A maior delas foi o famoso DNA, que o por-

    tador da herana gentica. Inmeros sucessos da biologia

    molecular se devem ao trabalho com as bactrias. J nos

    anos 30, os bilogos perceberam que todos os organismos

    eram feitos das mesmas molculas, porm demorou at pas-

    sarmos das bactrias para os organismos mais desenvolvidos.

    O DNA do homem mil vezes mais complexo do que o

    da bactria. A passagem s pde ser feita no momento em

    que aprendemos a manipular o DNA dos organismos mais

    desenvolvidos. Nos anos 70, conseguimos isolar os genes,

    reproduzir a estrutura dos genes de qualquer organismo etransferi-los de um organismo para outro.

    BM:Como foi descoberto o sistema de regulao da ati-

    vidade dos genes, o achado que valeu ao senhor o Pr-

    mio Nobel?

    JACOB: Trabalhei no comeo com os bacterifagos os

    vrus das bactrias e com a sntese de protena. Verifica-

    mos que existia um vrus que permanecia no interior da

    bactria sem se manifestar, mas que em certas condies

    podia ser ativado e matar a bactria. Por outro lado, veri-ficamos que a sntese da protena resultava da colocao de

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    certos produtos no meio de cultura. Percebemos depois queas mesmas leis vigoravam nos dois casos e tudo dependia de

    um sistema de regulao que tanto podia bloquear a ativi-

    dade de um gene quanto desbloque-la, deixando-o se ma-

    nifestar. Era a prova da existncia de sistemas de regulao

    da atividade do gene.

    A mutao dos genes na origem do cncer

    BM:Como se chegou ideia de que a mutao dos genespode levar a um cncer?

    JACOB:Comeamos a compreender o cncer h apenas

    alguns anos. Sabamos que uma doena do sistema de re-

    gulao. Uma bactria uma clula isolada que se multiplica

    independentemente. J uma clula humana seja ela da pele,

    do fgado ou do pulmo sabe que faz parte de um rgo,

    de um organismo, e que portanto no deve se multiplicar

    de qualquer maneira. A clula sabe, porque h sistemas que

    a informam os sistemas reguladores. Consequentemente,

    a clula mantida numa ordem precisa, que a do corpo.

    De tempos em tempos, esses sistemas se alteram. Foi o quemostramos atravs das bactrias. Observando as suas muta-

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    es, pudemos estudar os sistemas e formular a hiptese deque era a alterao dos sistemas que estava na base do cncer.

    Agora, j est provada a existncia de sistemas constitudos

    de certo nmero de genes que regulam a expresso celular,

    ou seja, agenciam a diviso da clula e a sua diferenciao o

    processo que faz com que uma clula venha a ser da pele, por

    exemplo, ou do fgado. Passamos a conhecer os genes que

    esto implicados na diviso celular e a compreender como a

    mutao deles pode levar a um cncer.

    BM:O que faz o sistema se desregular?

    JACOB:Desregula-se por uma mutao, cuja causa des-conhecida ou conhecida, como no caso da ao dos raios

    ultravioleta sobre a pele. Os raios quebram os genes que

    regulam a diviso celular e provocam uma leso em que a

    diviso anrquica.

    A gentica preditiva

    BM: Atravs da gentica, possvel saber se o indivduo vai

    ou no ter uma determinada doena. Seria possvel falar dosprincipais achados da gentica preditiva?

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    JACOB:H casos em que, olhando os genes de um recm-nascido, chegamos a prever a incidncia de uma doena gra-

    ve que ocorrer por volta dos 40 anos, a doena de Hunt-

    ington (34), por exemplo. H outros em que podemos afir-

    mar que h maior ou menor possibilidade de o indivduo ter

    uma determinada doena. Examinando os genes do senhor

    X e do senhor Y, podemos afirmar que, se o primeiro tiver

    um cncer, este no ser do pulmo, mas da prstata. Se o

    segundo tiver um cncer, este no ser da prstata, e sim

    do pulmo. Ou seja, h casos em que nos dado ter cer-

    teza da doena. Outros em que nos limitamos a predizer a

    sua possibilidade.

    BM:Quais os problemas ticos implcitos na gentica pre-

    ditiva?

    JACOB: O assunto muito complicado. O fato de sa-

    bermos que um dia vamos morrer difcil de suportar,

    mas o que torna a morte suportvel que a gente no sabe

    quando ela vai ocorrer. H um filme de Ren Clair que se

    chamaAconteceu amanh. Trata-se da histria de um sujeito

    que encontrou um fantasma, foi gentil com ele e passou a

    receber todas as noites do fantasma o jornal do dia seguinte.

    Com isso, podia jogar na bolsa e ganhar, apostar no cavalocerto etc. Vida boa, at que um dia l no jornal o anncio

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    da sua morte. Fica desesperado, tenta no passar pelo lugaronde vai ser acidentado, porm no consegue. O acidente

    horrvel; s que o sujeito no morre, porque interessava ao

    cineasta mostrar que os jornais tambm mentem etctera

    e tal...

    BM: Voltando questo tica...

    JACOB:A questo saber se a gente deve ou no fazer a

    pesquisa gentica, que s tem interesse quando existe uma

    soluo teraputica. No caso da doena de Huntington, por

    exemplo, no se pode fazer nada pelo indivduo. De que

    adianta fazer a pesquisa? vlido se perguntar se as informa-es que concernem ao indivduo devem ou no ser trans-

    mitidas a ele.

    BM:A gente tem o direito de no transmitir a informao?

    Freud afirmou peremptoriamente que ningum tinha o di-

    reito de no lhe dizer que estava com cncer...

    JACOB: Mas com que direito a gente diz? Os padres e

    os filsofos precisam discutir longamente essa questo...

    legtimo se perguntar se o mdico deve informar o doente

    ou a famlia. Para evitar, por exemplo, que o doente tenha

    filhos. Isso tudo complicado... E ao patro dele, o que omdico deve informar?

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    Sexo aos 100 anos

    BM:Quais as consequncias das descobertas que a bio-

    logia fez no sculo XX e qual o papel dessa cincia no

    prximo sculo?

    JACOB:A cincia feita para produzir conhecimento an-

    tes de produzir as aplicaes do conhecimento. Para obter

    dinheiro, os cientistas afirmam que vo curar o cncer,

    quando o que de fato interessa a eles saber por que o

    mundo tal como . O mundo extraordinrio. Por ra-

    zes bastante simples, alis. Pelo fato, por exemplo, de que preciso ter dois para fazer um terceiro. Por que dois e

    no quatro ou cinco?

    BM: O fato que o conhecimento cientfico trouxe be-

    nefcios...

    JACOB:Sim, a durao da vida aumentou. Acho no en-

    tanto que nunca seremos imortais...

    BM: Felizmente.

    JACOB:Pois . Acredito que no ultrapassaremos os 100,

    110 anos. Mas possvel que aos 90 anos j no tenhamosmais dor em todo lugar do corpo e que aos 100 possamos

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    fazer sexo como aos 20. Vamos ter uma vida mais longa emais agradvel, porque dominaremos um nmero maior

    de doenas. Verdade que outras novas vo aparecer. Por

    isso, alis, no podemos prever o futuro. Sabemos que as

    coisas vo mudar, porm no sabemos exatamente como.

    Por acaso algum pensou na Aids antes de a doena apare-

    cer? E precisamente porque no h como prever; no pr-

    ximo milnio a pesquisa cientfica continuar a ser uma

    boa profisso.

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    A COMUNICAO

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    DOMINIQUE WOLTON

    Nasceu em 1947 e trabalha em Paris no CNRS Centre Natio-

    nal de la Recherche Scientifique (Centro Nacional de Pesquisa

    Cientfica) (68), no qual dirige o Laboratrio de Comunicaoe Poltica e a revista Herms, que referncia internacional

    na rea de mdia. Depois de ter estudado a mudana dos cos-

    tumes e da vida cotidiana em A nova ordem sexual (1974),

    tornou-se coautor de Os desgastes do progresso: os traba-

    lhadores diante da mudana(1977) e deAs redes pensantes:

    telecomunicao e sociedade(1978). Desde ento, publicou

    outros livros, dentre os quais Internet, e depois?, A ltima

    utopia, preciso salvar a comunicao, Pensar a comunica-

    o e O elogio do grande pblico(1990), seu trabalho mais

    conhecido no Brasil, onde costuma fazer palestras e partici-

    par de seminrios.

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    Betty Milan: Gostaria que o senhor falasse das principaismudanas introduzidas pela comunicao no decorrer do

    sculo XX.

    Dominique Wolton: A comunicao indissocivel do

    movimento de emancipao dos indivduos, da liberdade de

    conscincia, da liberdade de expresso: no existe democra-

    cia sem liberdade de informao e de comunicao. Exis-

    tem portanto dois movimentos paralelos um de ordem

    cultural e outro de ordem poltica. O interessante analisar

    como esses dois movimentos se articularam na democracia

    de massa. No podemos pensar na emancipao do Oci-

    dente sem pensar no rdio e na televiso. Sou um dos rarospesquisadores favorveis comunicao de massa por consi-

    derar que est associada democracia. A crtica que fao aos

    intelectuais que eles so pela democracia de massa, mas

    paradoxalmente desprezam o rdio e a televiso.

    BM:O senhor no acha que o desprezo est ligado ao

    fato de que no sabem fazer uso dos meios de comunica-

    o de massa?

    WOLTON: Essa a tese otimista. Acho que as elites so

    sobretudo elitistas e se sentiram despossudas pelo rdio e

    pela televiso. Acharam que a cultura de massa ia colocarem questo a cultura do livro, o que no verdade. Cada

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    uma dessas culturas desempenha um papel. O desafio li-gar a democracia de massa com a comunicao de massa.

    Ns precisamos nos perguntar quais so as informaes, os

    divertimentos, os jogos, a cultura que devemos dar s pes-

    soas para que elas se sintam simultaneamente consumidoras,

    cidads, membros de uma coletividade nacional...

    BM: Foi exatamente o que aconteceu durante a Copa do

    Mundo de 1998, na Frana.

    WOLTON: Claro. A funo principal da mdia estabelecer

    o lao social. graas a ela que as pessoas tm o sentimento

    de pertencer a uma comunidade nacional. Quando as pes-soas escutam o rdio ou veem televiso, h uma comunho

    entre elas. Isso vale tanto para os grandes eventos esportivos

    e religiosos os deslocamentos do papa, que tm uma au-

    dincia enorme quanto para os grandes eventos sociais

    milhares de pessoas assistiram ao enterro da princesa Diana

    em 1997.

    BM: No fosse a comunicao, a mensagem de Diana, que

    era to importante, no teria sido transmitida.

    WOLTON: O interessante que Diana favoreceu muitas

    identificaes contraditrias e complementares. Acho quea fora da democracia est nisso. Ningum foi obrigado a

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    assistir ao enterro dela, isso foi inteiramente espontneo,porque as pessoas a amavam. E o fato de amar Diana no

    quer dizer que sejamos idiotas, quer dizer que ela era um

    smbolo da sociedade moderna: bela, jovem, aristocrtica,

    frgil e forte, tradicional e moderna, sempre em ruptura

    com a ordem estabelecida, revoltada e sentimental... Ela

    contava pelas contradies, pela sua dimenso humana, e

    no pela publicidade.

    BM: Numa de suas ltimas entrevistas, o escritor alemo

    Ernest Junger disse que ns vivemos uma revoluo seme-

    lhante que Plato viveu, mas no sentido contrrio. Platoassistiu passagem de uma cultura oral, a da Grcia antiga,

    para uma cultura escrita. Hoje, com a importncia do au-

    diovisual, a escrita tende a estilizar a oralidade. Acho que,

    sem essa estilizao, a escrita est condenada morte. O

    senhor, o que pensa disso?

    WOLTON:Eu no acredito que o audiovisual possa ameaar

    gravemente o estatuto da escrita. Verdade que a inf luncia da

    internet vai generalizar uma escrita quase to fcil quanto a

    linguagem audiovisual. As pessoas veem nisso um progresso

    eu j no estou to convencido, porque a fora da escrita

    est na sua dif iculdade. Tanto no que diz respeito ao ato deescrever quanto ao de ler. Paradoxalmente, a internet vai

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    valorizar a verdadeira escrita. As pessoas vo se dar conta deque a escrita existente num livro de uma natureza diferen-

    te, porque implica a dificuldade.

    BM: Isso signif ica que h uma razo masoquista para ler?

    WOLTON: Masoquista no. Trata-se do gosto pelo esfor-

    o, pelo exerccio impossvel da expresso de si. Na escrita,

    h sempre uma frustrao. Ou porque a gente no escreve

    exatamente o que queria, ou porque o receptor no l o que

    a gente desejava que ele lesse, e sim outra coisa. Nisso est a

    riqueza da comunicao.

    BM: possvel mesmo que a gente leia para poder ler outra

    coisa, inventar o que est no texto. A escrita af inal permite

    mais inveno do que a imagem...

    WOLTON: Claro, se existe uma hermenutica, por isso.

    A interpretao da Bbliaj dura dois mil anos. Isso quer di-

    zer que os pequenos textos do Velho Testamentoso de uma

    riqueza infinita... O imaginrio do homem se inscreve no

    texto e o reinterpreta.

    BM: A manipulao da informao moderna supe um

    conjunto de mecanismos de aprendizagem complexa e deadaptao rpida e no est ao alcance de todos. Por isso

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    mesmo, pode criar um conf lito violento na sociedade, podeengendrar grandes tenses. Como o senhor v isso?

    WOLTON: As desigualdades sociais reaparecem na comu-

    nicao. Por isso, sou favorvel mdia de massa, porque a

    a mesma mensagem enviada a todo mundo. Isso no basta

    para chegar a uma igualdade social, mas tem a vantagem

    de fazer que todos participem da mesma coisa. Por isso,

    temo, na evoluo dos sistemas audiviosuais, a tendncia a

    considerar que o rdio e a televiso so meios de categoria

    inferior e que todos os programas interessantes deveriam

    aparecer na mdia temtica (69). Isso perigoso, porque tudo

    o que cultural no ser mostrado ao povo. Ento, teremosum sistema de comunicao com duas velocidades uma

    para os pobres e outra para os ricos. A histria do rdio e

    da televiso at agora felizmente evitou isso. O que inte-

    ressa justamente o leque de programas. H, por exemplo,

    sessenta programas numa semana, voc s est interessado

    em dez, mas os outros cinquenta existem e tm tanta legi-

    timidade quanto os que voc quer ver. O interesse de um

    jornal que a gente tem tudo no mesmo dia. O leitor est

    interessado s no esporte, mas, de repente, descobre outra

    coisa, porque ela est no jornal. preciso dar o mximo

    de informao a todo o mundo e cada um que leia o quequiser. A desigualdade aumentaria amanh se a gente de-

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    cidisse que para o povo ser s crime e sexo e para a elite,economia, poltica, religio...

    A aldeia global

    BM:Fala-se muito em aldeia global. O senhor acha que ela

    existe? Pergunto isso porque os valores de um chins, de

    um brasileiro, de um esquim so diferentes, e a mensagem,

    sendo decodif icada a partir de cdigos diferentes, no pode

    ser compreendida da mesma maneira. A cultura chinesa nointerpreta da mesma forma que a brasileira ou a esquim...

    WOLTON: A questo perfeita e a resposta est nela.

    Existe uma aldeia global do ponto de vista tcnico, mas

    do ponto de vista da recepo a diversidade extraordi-

    nria, e isso significa que pode acontecer o inverso do que

    a comunicao pretende. O objetivo dela aproximar as

    pessoas. E da o que acontece? Quando elas se aproximam,

    percebem que existem mais diferenas entre elas do que

    semelhanas. A dificuldade da comunicao no gerir a

    semelhana, mas a diferena. A questo saber a que dis-

    tncia devo me manter de algum que diferente de mimpara no entrar em conflito. Ora, na aldeia global, vamos

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    nos tornar progressivamente mais visveis uns para os ou-tros, e essa visibilidade no vai mostrar mais semelhana,

    ela vai mostrar mais diferena. A, vamos deparar com um

    problema poltico, vamos ter que evitar o dio suscitado

    pela aproximao.

    O imperialismo americano

    BM: Os Estados Unidos difundem, sob todas as formas

    possveis, a sua retrica, os seus comportamentos, os seusproblemas, a sua violncia compulsiva... Como um buraco

    negro, eles absorvem as grandes culturas da civilizao oci-

    dental e liberam uma energia catica nos domnios cultural

    e moral. Isso tudo atravs dos meios de comunicao de

    massa. Como se opor a esse poder?

    WOLTON: A comunicao o problema mais srio do

    prximo sculo. A questo toda a regulamentao. Os

    americanos dizem que preciso desregulamentar. Querem

    isso para difundir livremente a cultura americana. Ora, a re-

    sistncia das identidades nacionais fundamental. A Europa

    reivindica a exceo cultural, a revalorizao do direitoautoral, a regulamentao das indstrias, a preservao do

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    servio pblico. O risco de que a Europa perca a sua iden-tidade no existe, porque a Europa muito mais antiga do

    que os Estados Unidos, mas a dominao pode ocorrer. O

    risco no grave para a Europa, mas o para as outras reas

    culturais do mundo, a frica, a sia, a Amrica Latina, que

    tm menos recursos tcnicos e culturais para resistir.

    A Europa no mundo da mdia

    BM: As grandes civilizaes chinesa, indiana, muul-mana no esto ameaadas no que diz respeito perda da

    identidade cultural, por causa da tradio, da demografia e

    da proteo lingustica (chins, indiano e rabe). A Europa

    parece estar mais sujeita descaracterizao do que a sia.

    O que o senhor acha disso?

    WOLTON: A fora da globalizao tal que mesmo as

    grandes civilizaes esto ameaadas. So as mesmas men-

    sagens audiovisuais que circulam.

    BM: Mais ameaadas do que a Europa?

    WOLTON:Sim, porque ns, europeus, somos pequenos,mas temos dez lnguas. Portanto, o problema da comuni-

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    cao e das diferenas culturais, ns conhecemos. No nosentendemos mesmo entre ns. A gente se entende para fazer

    a Europa econmica. Agora, para chegar Europa poltica,

    muito difcil. E ser ainda mais difcil chegar Europa

    cultural. Acho que a batalha da Europa contra os Estados

    Unidos vai ser til para o mundo inteiro.

    BM: Mas a Europa pode se tornar presa dos Estados Unidos

    por causa da sua riqueza material...

    WOLTON: bem por isso que os Estados Unidos querem

    ter a mo posta sobre a Europa. Porque, para a indstria

    da comunicao americana, ns somos o primeiro mercadodo mundo: 360 milhes de habitantes com alto nvel de

    vida e bom nvel cultural perfazem um mercado importan-

    te. Quanto mais rapidamente obrigarmos os americanos a

    aceitar as identidades das outras culturas, mais rapidamente

    salvaguardaremos a possibilidade de uma comunidade in-

    ternacional respeitosa das diferenas.

    O Brasil no mundo da mdia

    BM: E o senhor acha que o Brasil pode desempenhar

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    um papel importante nessa batalha contra a dominaoamericana?

    WOLTON: Essencial. Vou dizer por qu. Vocs so nume-

    rosos, so multirraciais, tm uma inteligncia extraordin-

    ria da comunicao. Na Amrica Latina, o Brasil equivale

    Europa. A Globo uma televiso privada que se com-

    porta como uma televiso pblica, porque h uma espcie

    de responsabilidade coletiva. A TV Globo alcana pblicos

    de todos os nveis, e isso muito difcil. H uma incrvel

    inteligncia acumulada no Brasil, onde h ndios, negros,

    rabes, europeus...

    BM: Como o senhor explica o fenmeno Paulo Coelho?

    WOLTON:Acho que a mistura que ele faz constitutiva

    de uma nova identidade.

    BM: Existe o fenmeno Paulo Coelho e h o da msica

    popular brasileira, que atingiram o mundo inteiro.

    WOLTON: Sim, pela sensualidade, doura, vitalidade,

    ambiguidade...

    BM: A ambiguidade um valor essencial na comunicao?

    WOLTON: Acho que sim, porque ela permite as iden-tificaes.

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    O futuro

    BM: Antigamente, a informao circulava de maneira

    orientada e seletiva. Ela hoje circula aleatoriamente. Pode-

    mos ter acesso a mensagens oriundas de todos os pontos do

    mundo a qualquer momento. Quais sero, na sua opinio, as

    consequncias desse fato no novo milnio, tanto na organi-

    zao das sociedades quanto na vida das pessoas?

    WOLTON: Primeiro, quero fazer publicamente um cum-

    primento a voc. Suas questes so muito bem construdas,denotam uma grande cultura... E agora volto pergunta.

    Uma informao o resultado do trabalho de um ser hu-

    mano, de um jornalista, que, diante da desordem do mun-

    do, decide reter uma ou outra informao. O trabalho do

    jornalista um trabalho fundamental, que d a dimenso

    humana da comunicao. O fato de podermos hoje obter

    informaes que nos vm do fim do mundo o prodgio da

    tcnica. Mas no o banco de dados acessvel por satlite

    ou por internet que vai fazer a revoluo. Esta produto

    do trabalho de quem filtra os dados. Vou dar um exemplo.

    Todas as manhs, a Comisso Europeia d uma entrevistacoletiva para todos os correspondentes dos pases da Unio

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    Europeia radicados em Bruxelas. a mesma mensagem. Sque os diferentes correspondentes a recodif icam em funo

    do seu pblico, ou seja, no existe uma informao mun-

    dial, o que existe uma informao mediatizada por uma

    cultura nacional, por um homem ou por uma mulher.