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UNEB- UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO- CAMPUS I
Izabel Cristina Silva Xavier
O SER HUMANO NA OBRA “MEMORIAL DO CONVENTO”,
DE JOSÉ SARAMAGO
Salvador 2012
IZABEL CRISTINA SILVA XAVIER
O SER HUMANO NA OBRA “MEMORIAL DO CONVENTO”,
DE JOSÉ SARAMAGO
Monografia apresentada como requisito parcial para obtenção da graduação em Pedagogia, com habilitação em Gestão e Coordenação do Trabalho Escolar, do Departamento de Educação da Universidade do Estado da Bahia, sob a orientação do Profº Dr. Luciano Sérgio Bomfim.
Salvador
2012
IZABEL CRISTINA SILVA XAVIER
O SER HUMANO NA OBRA “MEMORIAL DO CONVENTO”,
DE JOSÉ SARAMAGO
Monografia apresentada como requisito parcial para obtenção da graduação em Pedagogia, com habilitação em Gestão e Coordenação do Trabalho Escolar, do Departamento de Educação da Universidade do Estado da Bahia, sob a orientação do Profº Dr. Luciano Bomfim.
Aprovada em: 04 de abril de 2012.
BANCA EXAMINADORA
______________________________________________ Professor Dr. Luciano Sérgio Ventin Bomfim- UNEB
______________________________________________ Professor Dr. Alex Sandro Leite- UNEB
AGRADECIMENTOS
Aos familiares e amigos, sempre.
A meu esposo José Carlos Santos Santana e meu filho pela força que me
deram em todos os momentos e que, mesmo sabendo da minha necessidade de
que estivessem, momentaneamente, ausentes, souberam fazerem-se presentes e
alegrar a caminhada destes estudos.
Aos professores que se permitiram acreditar numa formação para além das
exigências momentâneas da sociedade. A todos estes que buscaram não só
ensinar-me o que é pesquisa, ensino, educação, mas que acreditaram ser possível
uma formação pedagógica que ousasse analisar as condições sociais nas quais se
encontra mergulhada. A todos estes e a cada um, meu muito obrigada.
Ao professor Dr. Luciano Sérgio Bomfim, da Universidade do Estado da
Bahia, sem o qual este trabalho dificilmente teria sido desenvolvido.
Ao professor Dr. Márcio Gimenes de Paula, da Universidade Federal de
Sergipe, pelas importantes contribuições na escrita deste texto.
Ao professor Dr. Alex Sandro Leite, da Universidade do Estado da Bahia,
pelos comentários decisivos para o direcionamento deste trabalho.
Ao Laboratório de Estudos e Pesquisas Marxistas (LEMARX-UFBA) pelos
importantes momentos de diálogos sobre as obras de K. Marx.
À senhora Ana Lúcia Messeder Rocha, sem a qual nada disso teria
começado.
À família Chaves, em especial Renato, Conceição e Oswaldo que, mesmo
sem cogitarem, foram os que deram possibilidade de continuidade a este estudo.
À senhora Aline Gois Jesus do Nascimento, secretária do Colegiado de
Pedagogia- UNEB, pela importante colaboração para a conclusão deste curso.
RESUMO Este trabalho tem por objeto o ser humano e sua condição humana expressos na obra Memorial do Convento, de José Saramago. Este estudo foi alicerçado na visão materialista histórica marxista. Embasando-se nesta forma concreta de analisar o ser humano e sua sociabilidade é que foi examinada a dominação exercida por um ser humano sobre os outros. Através desta dominação um ser humano passa a exercer poder sobre os outros e ter seus desejos atendidos por estes. Para o exercício deste poder há a necessidade de, nesta relação, um ser o senhor e os outros seus escravos. Estando sobre o domínio de “seu” senhor, o ser humano passa a ter sua condição humana subjugada e determinada por este. Assim é na obra Memorial do Convento, um ser, rei de Portugal no século XVIII, senhor que nas terras portuguesas tudo pode. Seu desejo de ter construído um convento em Mafra/Portugal é o fato histórico do qual parte esta análise. As condições de vida do ser humano trabalhador, descritas por Saramago na obra, são o ponto chave para a compreensão da forma com que busca a melhoria de seu bem maior, a vida.
Palavras-chave: Ser humano- Condição humana- Dominação.
RÉSUMÉ
Ce travail a pour objet l'être humain et la condition humaine, qui s'exprime dans le livre commémoratif do Convento de José Saramago. Cette étude a été mise à la terre en vue marxiste matérialiste historique. S'appuyant sur cette voie concrète de l'analyse des compétences humaines et sociales est que la domination a été examiné par un humain sur l'autre. Par cette règle, un être humain commence à exercer un pouvoir sur les autres et ont leurs vœux exaucés par eux. Pour exercer ce pouvoir, il ya un besoin dans cette relation, l'un étant le capitaine et les autres esclaves. Être sur le terrain de «son» Monsieur, l'être humain est remplacé par leur condition humaine et déterminé dépassés par cette. Ainsi, le travail est Memorial do Convento, un roi du Portugal au XVIIIe siècle, l'homme portugais terres qui peuvent tout faire. Son désir d'avoir construit un couvent de Mafra / Le Portugal est le fait historique dont une partie de cette analyse. Les conditions de vie de l'ouvrier humain, décrites par le travail de Saramago, sont la clé pour comprendre la façon dont cherche à améliorer son beaucoup plus grand, la vie. Mots-clés: Humain- Humain condition- Domination.
SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO........................................................................................................10 2 O LIVRO MEMORIAL DO CONVENTO.................................................................12 2.1 Historicizando a obra ..................................................................................;....12 2.2 As relações sociais de produção em Portugal do Séc. XVIII........................19 2.3 A leitura de Saramago sobre Portugal do Séc. XVIII......................................33 3 CONDIÇÃO HUMANA ...........................................................................................44 3.1 O ser humano e a sociabilidade humana .......................................................44 3.2 Estranhamento do ser humano .......................................................................53 3.3 O ser humano e sua condição humana...........................................................62 4 A CONDIÇÃO HUMANA NA OBRA MEMORIAL DO CONVENTO .....................74 4.1 A dialética do Senhor e do Escravo...............................................................74 4.2 A dialética do senhor e do Escravo na obra “Memorial do Convento”......88 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................107 6 REFERÊNCIAS ....................................................................................................110
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1 INTRODUÇÃO Este estudo tem como principal foco analisar o ser humano e sua condição
humana, tendo como base a obra literária Memorial do Convento, de José
Saramago. Para isso, os conceitos serão abordados a partir da análise materialista
histórica proposta por Marx. Isto porque acreditamos que alicerçados nela
conseguiremos entender a processualidade da sociabilidade humana e esta no
tempo e lugar históricos descritos na obra.
Apesar de estarmos tratando de uma obra fincada no século XVIII e no país
Portugal, este é um trabalho de relevante importância para o entendimento do
conceito de ser humano e como socialmente este se torna passível de ter sua
condição humana subjugada a outros seres humanos. Este estudo busca contribuir
para que o profissional, especialmente da área de educação, entenda a relevância
dos condicionantes sociais na determinidade da vida humana. Com isso, possa fazer
um paralelo entre o estudo aqui apresentado e a realidade em que vive, desvelando
assim a razão da desigualdade entre os seres humanos.
Memorial do Convento é uma obra que tem como cenário o país Portugal e a
forma com que as relações sociais eram desenvolvidas no país no século XVIII. Para
seu estudo sentimos a necessidade de entender primeiramente do conceito de
relações sociais e como estas se correlacionavam com a formação social
portuguesa e seu modo de produzir. Isto porque este trabalho busca entender o
conceito que esta sociedade tinha de ser humano e, para isso, esse foi o caminho
que escolhemos.
Buscamos ao longo do texto circunscrever a obra Memorial do Convento em
cada tópico trabalhado por acreditar que desta forma alcançaríamos nosso objetivo
ao tratar do ser humano num livro de tal densidade como este. Assim, é que pouco a
pouco fomos desvelando aspectos da formação social portuguesa e a visão do autor
ao passo que academicamente buscávamos entendê-los.
A base sustentadora desta análise assenta-se no estudo das relações sociais
de produção. Isto porque para tratar do conceito de ser humano foi-nos preciso
circunscrevê-lo no Portugal do século XVIII e como este era retratado pelo autor
Saramago. Após delinear sobre que bases assentava-se a formação social
portuguesa buscamos apresentar nossa visão da leitura de Saramago sobre esta
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época de seu país. Com isso intencionávamos apresentar os possíveis ângulos e
direções da narrativa do autor usaríamos em nossa análise.
Ao demarcar as premissas de que partimos para analisar a obra foi-nos
possível iniciar o desenvolvimento do capítulo em que abordaríamos a condição
humana. Nele, buscamos demarcar não só o conceito de ser humano, como também
sua sociabilidade, a forma como torna-se passível de estranhamentos e, por
conseguinte, os condicionantes sociais da época e lugar em que vive.
Deste modo, buscamos evidenciar o tema de forma a que abarcasse
diferentes conceitos que se complementavam e, ao mesmo tempo, nos auxiliariam a
circunscrever o objeto de nosso estudo. Buscamos, a cada tópico trabalhado no
capítulo, correlacioná-lo com a obra, para que assim fixássemos o conceito de ser
humano e sua condição humana neste objeto de estudo. Desta forma acreditamos
ter sido possível apresentar os fatos delineados por Saramago de maneira paulatina
e contextualizada com os estudos desenvolvidos.
Com o desenvolvimento do capítulo sobre a dialética da dominação hegeliana
buscamos mostrar como esta se apresenta na obra Memorial do Convento, ou seja,
como que o ser humano tornou-se passível dos condicionantes sociais lhe
(im)postos e passou a neles circunscrever sua condição humana. Devemos lembrar
que é um estudo demarcado nas relações sociais advogadas na sociedade
portuguesa descritas na obra e, também, pela nossa ótica da leitura de Saramago
deste período e lugar históricos.
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2.0 O LIVRO MEMORIAL DO CONVENTO
2.1 Historicizando a obra
Com a proposta de historicização da Obra Memorial do Convento, de José
Saramago, pretendemos elucidar elementos básicos dessa complexa obra, para
que, tendo ou não lido esse livro, o leitor consiga ambientalizar-se em seu contexto.
O foco dessa exposição, além de possibilitar uma visão geral da obra, assenta-se
sobre a necessidade de caracterizá-la a partir de especificações que nos auxiliem a
entender sua relação com os determinantes sociais que submetem as personagens
à condição humana em que vivem. Antes mesmo de tratar de enredo, narrador,
personagens e foco narrativo, buscaremos contextualizar aquilo que consideramos a
primorosidade da obra: a forma como esta relaciona o ser humano à sua essência, a
forma como concatena o desenvolvimento do trabalho nas relações sociais.
Esta é uma obra que poderia ser considerada um romance histórico por ter
seu enredo baseado num recorte da história de Portugal no século XVIII. Ao
buscarmos uma conceitualização do que seria um romance histórico, demos
privilégio às afirmações de D’Onofrio (2002:116) por explicitar que a etimologia da
palavra ‘romance’ remete à diferenciação entre a fala comumente tida como norma
culta na Idade Média e aquelas que se derivavam de diferentes dialetos europeus.
Deste modo, toda fala que remetia à norma culta provinha do latim, ao passo
que aquelas à margem dessa originavam-se de dialetos não valorizados socialmente
e que não encaixavam-se nos padrões da língua socialmente instituídos. Sendo
assim, a fala, apoiada no latim “puro”, era considerada literatura oficial e aquelas
histórias contadas oralmente em outros dialetos passaram a ser designadas
romances, como narrativas à margem do que era padrão na época.
Diante da diversidade de temáticas nos diferentes romances, estes passam a
ser designados de acordo com ramificações próprias, desde romance pitoresco a
existencialista. Entre essas ramificações encontramos o romance histórico que, de
acordo com Mantolvani (2010:24.), seria aquele em que “a História aparece como
experiência das massas e como processo contínuo de mudanças(...)”. em outras
palavras, como um reconto da História oficialmente difundida, invertendo a atribuição
de valor conferida aos fatos históricos e colocando as massas no centro da
discussão.
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Ao estudarmos a obra Memorial do Convento buscamos correlacioná-la à
discussão proposta por Mantolvani (2010:20) de que este é um livro que transcende
o enquadramento de romance histórico. Isto porque desvela o que esconde-se na
história “oficial”, e busca, através da criação ficcional, dar à mesma uma conotação
mais real, de história feita por homens reais e não apenas para eles.
A autora faz uso do conceito de “ficção historiográfica” para denominar o
romance que se baseia em fatos oficialmente divulgados, mas que vão além deles,
transcendendo-os. Para ela estes são romances que contestam “a historiografia
oficial, o discurso ‘já dito’, ‘bem-sucedido’, consolidado como o ‘todo já dito’ do
discurso Universal da História dos vencedores(...)” (MANTOLVANI, 2010:34.). Dessa
forma, configuram-se como romances que buscam, na releitura da “historiografia
oficial”, incluir na mesma a história dos vencidos.
Como fio condutor, da obra Memorial do Convento, temos a caracterização de
duas construções: uma é a edificação de um convento, como sinônimo de
ostentação e religiosidade, a outra é a elaboração de uma máquina voadora,
chamada Passarola. Essas duas construções, ao longo de toda a obra, se fazem
presentes no cotidiano das personagens, delimitando, na primeira construção, a
condição a que o povo é submetido para construí-la, na última, o sonho e a vontade
de edificar, transgredindo as condições impostas e os ditames sociais da época.
Ter essas duas construções como fio condutor da obra permite-nos
empreender uma análise mais profunda sobre o trabalho humano e,
consequentemente, seu desenvolvimento e imersão sócio-cultural. Através da
minuciosa descrição do autor podemos comparar o nível de desenvolvimento das
forças produtivas (necessárias a cada construção), as relações sociais que se
formam no universo de cada uma delas e como estes condicionantes agem sobre os
indivíduos e/ou grupos sociais. Não menos importante é o destaque dado ao
processo de desenvolvimento do trabalho pelo ser humano, fato este que
abordaremos em situação oportuna, até por ser um dos focos deste estudo. Por
hora, voltemos à abordagem das construções.
A primeira construção, a do convento, assume características de monumento,
tendo na figura do rei seu idealizador, esse que detém o poder e a riqueza
necessários para promover a obra que perdura por décadas da história portuguesa.
A segunda construção, a da Passarola, é arquitetada por um padre (Pe. Bartolomeu
Gusmão que transcende os ditames de sua época, que podemos considerar como
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progressista, à frente de seu tempo histórico), que busca no alicerce do
conhecimento a forma de construir algo novo, algo que, literalmente, dará asas ao
ser humano. Esse construtor, em contraponto com o anterior, não manda, não dita,
não detém a riqueza de muitos em favor próprio e busca fazer parte, associar-se
com os demais trabalhadores, seus amigos, para empreender um sonho,
fortalecendo assim a comunhão entre aqueles que trabalham.
O autor inicia a narrativa abordando como se originou a idealização do
convento em Mafra, ou seja, inicia o livro pelos eventos historicamente postos.
Paralelamente perpassa a este dado concreto na história de Portugal o processo de
elaboração da Passarola. Esta elaboração é um evento historicamente fictício, mas
que, no conjunto da obra, destaca-se como um dado agregador de elementos que
nos permite comparar o processo de construção de uma obra com a outra, a
condição humana frente a cada uma destas formas de objetivar o trabalho.
Somente após a Passarola pronta e tendo alcançado sua finalidade (voar) é
que o autor dedica considerável espaço narrativo à descrição da edificação do
convento. É interessante observar que uma mesma personagem, Baltasar Sete-sóis,
será o elo entre as duas construções, devido ao fato de trabalhar em ambas.
Também buscaremos delinear esse ponto em momento posterior.
Ao escrever sobre o processo de edificação do convento o autor apresenta-
nos eventos históricos oficialmente divulgados e que serão um dos focos centrais da
narrativa, como podemos observar no trecho que se segue:
Prometo, pela minha palavra real, que farei construir um convento de franciscanos na vila de Mafra se a rainha me der um filho no prazo de um ano a contar deste dia em que estamos... e ninguém ali sabia quem iria ser posto à prova, se o mesmo Deus, se a virtude de frei António, se a potência do rei, ou, finalmente, a fertilidade dificultosa da rainha.(Saramago, 2009:14).
A palavra do rei é descrita como detentora de todo o poder de materializar qualquer
desejo. Por meio de sua palavra empenhada, haveriam os frades franciscanos de ter
a possibilidade de angariar o convento que tanto almejavam. Pelo
desejo/necessidade de ter um herdeiro não importava ao rei no que viesse a
empenhar sua palavra, essa é a expressão máxima Daquele que tudo pode nas
terras portuguesas.
Paralelamente a esta apresentação de eventos históricos, o autor reconstrói
estes fatos, invertidamente, de forma a dar às personagens entre o povo vez e voz.
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Essa, a nosso ver, é uma tentativa de restituir a esses seu lugar nos fatos
oficialmente divulgados e, ao mesmo tempo, denunciar a forma como foram
relegados à condição de meros espectadores da história. O autor “brinca” com as
palavras ao associar a construção do convento ao rei e sua promessa. Na realidade
quem o constrói, de fato, são centenas de pessoas que nada têm haver diretamente
com a promessa real, mas que edificam a obra com o seu trabalho por estar sob o
julgo do rei:
Deve-se a construção do convento de Mafra ao rei D. João V, por um voto que fez se lhe nascesse um filho, vão aqui seiscentos homens que não fizeram filho nenhum à rainha, e eles é que pagam o voto, que se lixam, com perdão da anacrónica voz. (Ibid: 259).
Ao denunciar a forma com que muitos pagam pelos ditames de alguns, Saramago
nos revela como a condição humana da gente trabalhadora estava sob as
determinações daqueles que tomavam as decisões no país. Aqui notamos
claramente a visão do autor sobre o ser humano trabalhador, aquele que, formando
a massa do povo, é doutrinado pelo clero e dirigido pelos grupos sociais no poder.
No entanto, ao posicionar-se intencionalmente na tarefa de recontar essa história
(do ponto de vista de personagens que estão entre o povo) Saramago desvela-nos
as “verdades” a que estes estão submetidos.
Ao abordamos a questão da submissão, não poderíamos deixar de notar que
esta só era possível devido ao fato de haver uma estrutura ideológica que legitimava
a dominação de um grupo sobre os demais. Neste contexto, perpassando partes
significativas do enredo, Saramago descreve um dos papéis da Igreja como
legitimadora da ordem social e reafirmadora de sua posição de domínio enquanto
instituição ideológica na sociedade portuguesa.
Em busca da preservação da dominação a Igreja faz uso dos chamados
autos-de-fé para julgar, à sua maneira, aqueles que traziam alguma ameaça a esta
estrutura político-ideológica. Como bem demarca o autor, os autos-de-fé chegavam
a adquirir um caráter grotesco de espetáculo em Portugal, como uma forma de
eliminar possíveis resistências. Estes, sendo um ritual de afirmação da fé católica,
aconteciam como um momento de catarse religiosa, como bem observado neste
trecho da obra:
(...) hoje é dia de alegria geral... olhar esta cidade saindo de suas casas, despejando-se pelas ruas e praças, descendo dos altos, juntando-se no
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Rossio para ver justiça a judeus e cristãos-novos, a hereges e feiticeiros, fora aqueles casos menos correntemente qualificáveis, como os de sodomia, molinismo, reptizar mulheres e solicitá-las, e outras miuçalhas passíveis de degredo ou fogueira. (...) está o Rossio cheio de povo, duas vezes em festa por ser domingo e haver auto-de-fé(...). (Ibid:50).
Essa catarse religiosa, além das características fundamentais de firmar os laços
entre o povo e a fé católica, também adquiria aspectos sádicos, visto que inúmeras
pessoas lotavam estes espaços para assistir às sentenças. Estas eram destinadas
aos condenados e era uma forma de reafirmar o poder dos sentenciadores sobre o
destino da própria sociedade.
Desta forma, marcar presença no cumprimento das sentenças, seja apenas
com chicotadas, degredo do país, ou até mesmo sentenças de morte a céu aberto e,
à luz do dia, era algo socialmente instituído. Saramago, assim, descreve uma época
em que o poder da Igreja era tão central que não podia ser questionado, uma época
em que a Inquisição era a sentença de Deus nas ações violentas dos seres
humanos sobre seus iguais.
Este é um livro em que suas principais personagens são tipicamente
portuguesas, com poucas exceções, como o preceptor da filha do rei, de origem
italiana. O autor mistura na obra personagens conhecidos historicamente (rei, rainha,
preceptor, padre...) e outros completamente desconhecidos (Blimunda, Baltasar,...).
Estes, em relação àqueles, desempenham, muitas vezes, o primeiro plano do
desenvolvimento da mesma.
Ao elevar personagens secundários a uma importância maior até mesmo que
a do próprio rei, Saramago inverte a atribuição de valor aos grupos ou classes
sociais no livro. As atitudes, feitos e vivências das personagens comuns assumem
na narrativa uma relevância superior, como se a historiografia destas fosse tão ou
mais importante que a daquelas provenientes do alto clero ou nobreza. Como se, ao
narrar o cotidiano das pessoas comuns, sem títulos, sem poder político ou religioso,
sem capital ou terras acumuladas recontasse a história desse próprio povo e,
portanto, fizesse uma revisão “histórica” da própria História.
Figuras, como o rei D. João V, ao serem personificadas por Saramago,
passam a ter uma vivência cotidiana, com qualidades e defeitos ético-morais
descritos em todos os pormenores. Estas personagens nos são apresentadas como
seres humanos “reais” que são, sem pompas dignas de elevação perante outros
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seres humanos, nem melindres por parte do narrador ao longo do desenvolvimento
da obra.
É assim que Saramago usa os fatos históricos divulgados oficialmente com
uma qualidade descritiva e riqueza de detalhes, conseguindo fazer com que os
personagens, (sejam eles fictícios ou não), passem a serem vistos, pelo leitor,
primeiro como verdadeiramente humanos, e, depois, pelo papel social que
desenvolvem no referido enredo.
Neste romance o autor relata o período de construção do convento em Mafra,
Portugal. De acordo com BAKHTIN (2010) este pode ser considerado um romance
de percurso, visto que, entre o início e o fim do mesmo, transcorrem mais de
quarenta anos. A obra é marcada por um longo deslocamento no tempo e no
espaço, fazendo uso da história oficial de Portugal para contar a história dos
portugueses. Assim, ao entrelaçar história oficial com ficção, o autor cria um ângulo
novo de percepção deste período histórico, buscando retratar a condição humana e
os caminhos que os portugueses percorreram no desenvolvimento de sua história.
Percebemos que Saramago tem por objetivo rever conceitos pré
estabelecidos sobre o país, a sociedade e o ser humano português. Ao escolher a
plebe oprimida como centro do “fazer a história”, o autor evidencia seu lado
humanista, existencialista e a favor de um grupo social, o daqueles que não são
lembrados pela história oficial.
Para a concretização deste intento o autor utiliza como recurso, na maior
parte da obra, a presença de um narrador onisciente, que tudo sabe, que tudo vê e
que, por isso mesmo, pode esmiuçar toda e qualquer intencionalidade das
personagens, bem como suas ações feitas e por fazer. Assim, é esse narrador
saramaguiano ao esmiuçar a existência de suas personagens: distante a tal ponto
que transcende a temporalidade, conhecendo cada um na totalidade de seu
passado, presente e futuro. É como se aqui ele compartilhasse dos poderes que
delega à personagem Blimunda: a capacidade de tudo ver, até mesmo o que não se
mostra ou não se sabe ainda que exista.
Esta é uma obra que eleva a dignidade humana ao centro da preocupação
ontológica do ser, e que permite-nos compreender o porquê de relegar ao rei de
Portugal uma “semi-importância” no decorrer de todo o romance e enaltecer as
qualidades daqueles que são explorados. Isto não porque o rei tenha menos
dignidade que estes, mas como uma forma de registrar que todos são seres
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humanos passíveis de semelhantes condições de expressão de humanidade,
independente da posição sócio-econômica que ocupam na estrutura social.
Há também, na obra, uma forte descaracterização da aura de boa samaritana
da Igreja e uma profunda análise da indisfarçada industrialização da fé que ela
proporcionava. Da mesma forma que desmistifica essa aura, o autor ironiza a prática
de atos de violência para assegurar o poder que esta exerce no país, aproveitando-
se dos autos-de-fé como um “reforço piedoso e outras utilidades” (Ibid:96) para si e
as “necessidades” da ordem política vigente, tendo esta el-rei como expressão
máxima.
Ao longo do romance fica evidente para o leitor o preconceito social a que os
indivíduos são submetidos e como fazemos uso dele para estranhar e destituir os
outros de direitos iguais aos nossos. Ao contextualizar a obra Memorial do Convento
tivemos o cuidado de não prender nossa atenção apenas a detalhes descritivos da
obra. Isto por acreditarmos que os mesmos desviar-nos-iam de nosso objetivo maior,
qual seja, não só apresentar a mesma para nosso leitor, mas também identificar nela
os condicionantes sociais a que as personagens encontravam-se submetidas.
Desta forma é que buscamos, sinteticamente, ambientalizá-lo com a obra.
Para correlacioná-la aos condicionantes sociais que impedem ou não o indivíduo de
exercer plenamente sua essência humana em comunhão com seus pares, faz-se
necessário, a partir de agora, delimitarmos as relações sociais de produção que
davam sustentação à formação social portuguesa na época em que o enredo da
obra desenvolve-se. Esta é a razão para o convite a acompanhar-nos nesta jornada.
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2.2 As relações sociais de produção em Portugal no Séc. XVIII
Vimos, até o momento, uma breve contextualização da obra Memorial do
Convento. Para a continuidade da análise é necessário que entendamos as relações
sociais de produção vigentes no século XVIII, época em que Portugal é retratado na
obra. Com este intento, iniciaremos por analisar o que são relações de produção e
relações sociais, conceituando-os ora separadamente ora em conjunto (de forma
proposital) para que consigamos entendê-los em sua gênese.
Ao buscarmos conhecer as relações sociais e as relações de produção,
identificando e analisando o porquê desta última ser parte indissociável da primeira,
temos como foco compreender a relação direta do trabalho com a condição humana
e a inserção do ser humano na sociedade1. Isto porque este tem no trabalho a força
motriz que media sua relação com a natureza e, consequentemente, entre ele e
seus pares2.
Diferentemente do animal, que encontra na natureza as condições ideais para
sua vida e descendência, o ser humano, para sobreviver3 e se desenvolver4 tem de
retirar dela e transformar o que era natural naquilo que tem necessidade. Nesse
processo de transformação do natural em algo pertencente a si mesmo (algo
elaborado para e por si) o ser humano humaniza a natureza, a transforma naquilo
que passa a ser natural para ele, ou seja, constrói seu mundo sob o mundo natural.
Através desse processo, o ser humano coloca em prática a maneira que vai
conhecendo para resolver seu conflito com a natureza: manejando-a e cultivando-a
em benefício próprio e de seus pares5.
1 O autor-chave para entendermos essa relação direta é MARX (2001, 2009) o qual, analisando a
sociedade em que vivia e traçando um paralelo com as organizações sociais anteriores a ela, encontrou no trabalho a unidade edificante das relações sociais de produção. 2 Ao ter que subtrair da natureza para multiplicar sua existência o ser humano encontra-se
condicionado a ela, haja vista sem a natureza não poder viver. No entanto, ter o trabalho como forma de intermediação entre si e a natureza lhe possibilita libertar-se de sua condicionalidade. 3 Ter saciadas suas condições mínimas de subsistência.
4 Ampliar suas possibilidades de existência.
5Desenvolvendo a natureza e sendo parte dela, o ser humano consegue, assim, seu lugar no mundo, um mundo cultural edificado no natural, através da criação simbólica e de seu trabalho. Este, sendo para o ser humano a forma de transformar a natureza, determina a maneira pela qual ele mantém-se no mundo, ou seja, o ato de retirar e transformar o natural para si, a forma como faz isso e a finalidade de tal ato. Ao desenvolver o trabalho, recriando e adaptando o mundo às suas necessidades, o ser humano também se transforma. É este processo de ação-interação-ação que o impulsiona a ampliar ainda mais seu próprio trabalho.
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Contudo, para realizar tal trabalho, o ser humano precisa desenvolver os
instrumentos6 necessários a esta transformação e saber como usá-los. Com base
nos estudos de POLITZER et al. (1954), acreditamos na importância destes7 para o
desenvolvimento das forças produtivas nas relações sociais de produção de uma
determinada sociedade. Os instrumentos de produção, como materiais necessários,
determinam o próprio trabalho, como descrito pelos autores:
é a natureza deles, com efeito, que determina o número de homens necessários para dado trabalho, os conhecimentos técnicos indispensáveis, assim como os hábitos de trabalho que o produtor adquire ao utilizá-los. O aspecto manual do trabalho, assim como o seu aspecto intelectual, dependem da natureza dos instrumentos de produção. (POLITZER et al., 1954:217).
Assim, o tipo de instrumento e a qualidade deste determinam todas as outras
instâncias do ato de trabalhar. De acordo com os autores, independente de ser um
trabalho manual ou não este tem relação direta com a natureza dos instrumentos
que serão utilizados8.
Em consonância com os estudos dos referidos autores chegamos à
conclusão de que, sendo os instrumentos fatores determinantes do trabalho, eles o
condicionam, fazendo com que as forças produtivas necessárias para transformar
algo natural em cultural estejam diretamente relacionadas aos instrumentos exigidos
para tal ato. É a partir dos instrumentos que possui que o ser humano consegue
realizar o trabalho.
Até este ponto versamos sobre o ser humano9 como se sozinho ele
conseguisse sobreviver e se desenvolver. No entanto, o ser humano é um ser
6 Poderíamos denominar tais instrumentos de ferramentas, porém correríamos o risco de minimizar
seu próprio conceito. Isto porque uma nomeação não traduz exatamente a denominação da outra. 7 Os instrumentos permitem ao ser humano tirar e transformar a natureza. No entanto, para os
considerarmos como força produtiva, é relevante que levemos em conta a necessidade de termos aqueles que os usarão, as experiências destes em seu manuseio e a forma com que os utiliza. Somando essas três necessidades à existência dos instrumentos podemos falar em forças de produção. Assim, os instrumentos têm papel fundamental nas forças produtivas por determinar o ritmo de trabalho, a forma como este será desenvolvido e os conhecimentos necessários à sua manipulação para desenvolvê-lo. Por último, mas não menos importante, determina também a quantidade de indivíduos necessários para dar conta do trabalho e o tempo que será gasto do desenvolvimento até a conclusão do mesmo. 8 Por exemplo, se em determinada época e lugar o ser humano necessitava construir uma casa e, entre
os instrumentos necessários para o desenvolvimento de tal trabalho havia apenas pás, enxadas e picaretas a existência desses instrumentos determinava o tempo, o ritmo, a quantidade de trabalhadores e a experiência necessária. No entanto, se houvessem disponíveis instrumentos, como: trator, retro escavadeira, etc. os determinantes desse trabalho já seriam outros. 9 Utilizamos a expressão no singular por assim acreditar didatizar explicativamente a relação deste
com a natureza, retratando no conceito ser humano o conjunto de homens e mulheres.
20
essencialmente social, não vive, sobrevive ou desenvolve-se sozinho, pois “todos
somos ligados uns aos outros, numa teia intricada das relações que tecem o nosso
próprio ser”. (LARA, 1986:124). Como um ser em comunhão, um ser que encontra
na relação com o outro sua plenitude, o ser humano vive e convive eminentemente
em sociedade. Sendo o ser humano um ser social, sobrevivendo e desenvolvendo-
se com os outros, a relação entre este e a natureza, a cultura que desenvolve,
também é social, é produto de sua relação com o outro. Ou seja, ele não vive para si
e por si apenas, mas para si e por si em e para a sociedade10.
Produzindo e utilizando os instrumentos o ser humano também transforma-se
na medida em que transforma a natureza, seja aperfeiçoando os instrumentos
necessários a seu trabalho, seja criando novos ou ampliando seus conhecimentos
de como manipulá-los. Foi por isso que dissemos anteriormente que o ser humano é
submisso à natureza (ele precisa dela, parte dela para edificar-se) e ao mesmo
tempo liberto dela (ao desenvolver os instrumentos necessários para manipular a
natureza ele também se transforma, eleva-se)11.
Ao desenvolver o trabalho circunscrito em suas relações sociais o ser humano
termina por conferir a estas a qualidade de também relações de produção. Não
havendo produção fora da esfera social chegamos então ao que sentenciamos
anteriormente: “as relações de produção são parte indissociável das relações
sociais”, existindo por e para elas12.
No entanto, o ser humano tanto pode trabalhar em comunhão com o outro
como explorando seu trabalho em benefício próprio. A depender do tipo desta
relação entre a humanidade e entre estes e o trabalho é que teremos uma noção
clara do que é fundamental nas relações sociais de produção: a propriedade dos
meios para produzir13. É a propriedade destes meios14 que determina se o ser
10
É desta forma que MARX (2009) chega ao conceito de divisão do trabalho. Uma vez que o ser humano não vive sozinho ele também não produz sozinho e, se os instrumentos são determinantes para o desenvolvimento do trabalho, estes terminam por ser o fator preponderante para o ser humano dividir o trabalho entre seus pares, entre os que utilizarão os instrumentos para produzir. 11
O trabalho do ser humano sobre a natureza lhe confere a possibilidade de ter satisfeitas as suas necessidades. Para isso precisa encontrar sua forma específica de buscar no natural sua satisfação e esta forma se dá pelo trabalho. Sendo o ser humano um ser social que desenvolve trabalho, este termina por ser determinante nas próprias relações entre ele e os demais de sua espécie. 12
Esta inter-relação nos possibilita a capacidade de, através da historicização das relações sociais encontrarmos nelas as forças produtivas preponderantes em cada sociedade.
13 Os meios para produzir são tudo aquilo necessário na produção, desde a matéria prima,
passando pelos instrumentos para manipular esta matéria, a forma como distribuímos e
21
humano terá uma relação de igualdade para com o outro no trabalho ou se será
dominado por ele, tendo sua força explorada.
A forma de propriedade dos meios de produção determina as relações sociais
que serão advogadas em determinadas sociedades, daí classificarmos estas a
depender de quem exerce a propriedade dos meios de produção15. A determinação
de como socialmente seria produzido redirecionou o desenvolvimento das próprias
relações sociais. Ao organizar-se a divisão entre aqueles que trabalham
manualmente e os que “pensam”, elevando esses últimos à hierarquia superior aos
primeiros16 modificou-se claramente a forma com que estes se relacionariam.
Estas relações sociais de produção cindidas, hierarquizadas, não englobam
apenas a propriedade dos meios de produção, mas também os condicionantes a
que estão submetidos os diferentes grupos sociais e a forma como essa sociedade
divide o produto de sua produção. Assim, falar em relações sociais de produção é
tratar da formação social humana e desnudar o MODO pelo qual esta produz. Ao
conhecer o modo de produção dominante em determinada esfera social, circunscrita
no tempo e no espaço, conseguimos entender a própria sociabilidade humana17.
HARNECKER (1970:14), ao descrever como se organiza um modo de
produção, afirma que o mesmo é uma totalidade composta por partes e bem
demarca que “todo MODO DE PRODUÇÃO é constituído por uma ESTRUTURA
GLOBAL formada por três estruturas regionais(...)”. Estas estruturas regionais
armazenamos o produto final até a forma como entregamos este produto à sociedade. Desta forma, quem detém a propriedade dos meios de produção detém o poder de produzir, determina o que será produzido, como, quando, por quem, em qual momento, sob que condições e a que preço. 14
Quando estes meios de produção pertencem a toda a sociedade os homens trabalham em nível de equiparação de igualdade com o outro, como nas comunidades primitivas descritas por MARX e ENGELS (2009) e reafirmadas por PONCE (2007), ao buscar entender a relação entre sociedade e educação. No entanto, quando estes meios de produção estão sob o poder de grupos buscando sobrepor-se aos demais grupos, temos então uma relação de exploração da força de trabalho. 15
Utilizamos para isso o conceito que foi engendrado por MARX, desde a Ideologia alemã (2009). Por milênios a propriedade foi de todos e denominamos esta organização social de comunidade. Ao termos a propriedade no poder de determinados grupos esta deixa de ser comum e passa a ser privada, modificando assim as formas das relações sociais de produção. 16
A partir daí tivemos diferentes relações sociais de produção, assentadas na propriedade privada (seja na figura do Estado, como na sociedade egípcia, seja na figura de indivíduos detentores do “direito” de tê-las), numa divisão do trabalho mais específica e fundamentalmente na exploração do ser humano pelo ser humano. O detalhamento de cada estágio destas relações não será abordado aqui para não desvincular-se de nosso objetivo maior que é o de tratar daquelas desenvolvidas em Portugal no século XVIII. 17
Para este fim necessitamos, antes de tudo, compreender que modo de produção é uma totalidade e, de acordo com POLITZER et al. (1954), advinda da união entre forças produtivas e relações sociais de produção. Este é uma totalidade por englobar toda e qualquer estrutura da sociedade em que se circunscreve. Associando os estudos de POLITZER et al. (1954) com os de HARNECKER (1970) chegamos ao entendimento de que modo de produção envolve diferentes níveis da realidade social.
22
seriam econômica18, jurídico-política (que legaliza a estrutura) e outra ideológica19
(aquela que confere legitimidade à estrutura).
Partindo das colocações da autora, acreditamos que, independente de qual
estrutura domine o modo de produção numa determinada sociedade, esta sempre
lançará mão das ideias para velar o que não pode, de seu lugar como dominante,
ser revelado por receio de sucumbir. Entendemos que a estrutura ideológica
perpassa todas as outras, como se ela fosse o escudo protetor das demais
estruturas regionais que compõem o modo de produção.
Dessa forma, chegamos à compreensão de que os diferentes níveis da
realidade social abarcam a estrutura econômica, jurídico-política e todo o conjunto
de ideias que legitimam esta realidade20. As estruturas político-jurídicas e
econômicas21, através de instituições próprias, criam e/ou manipulam razões
ideológicas para mascarar essa realidade de dominação e exploração na sociedade.
Deste modo, retratar a estrutura dominante que impera sobre determinados
modos de produção sociais atende bem a nossos propósitos de entendimento da
formação social portuguesa do século XVIII. Isto porque nos possibilita compreender
a estrutura social de Portugal nessa época, haja vista que a economia determinava o
modo de produção do país, contudo a estrutura jurídico-política era quem o
dominava. Lembremos nós de que Portugal, neste referido tempo histórico, está sob
o regime político absolutista, concentrando na figura de um rei a direção de toda a
sociedade, fato este que delinearemos em seus detalhes posteriormente.
Neste ponto de nossa análise faz-se necessário ampliar o campo de visão
para o contexto europeu da época. Isso porque no restante desse continente
18 Para a autora, a estrutura econômica é sempre a que determina o modo de produção, isto porque é de onde advém a base material da riqueza produzida pelo próprio sistema. É esta estrutura que lança as bases, impulsiona e dita as regras de como a sociedade vai produzir, gerar riqueza. 19 Analisando estas proposições marxianas interpretadas por HARNECKER (1970) e confrontando-a com os estudos de CHAUÍ (1984) percebemos que a descrição desenvolvida por aquela, do que seja estrutura ideológica, não atende à complexidade dos propósitos a serem alcançados por esse trabalho. Isso porque a referida autora associa estrutura ideológica às idéias e costumes, minimizando assim o papel principal dessa estrutura que é o de mascarar o real escondendo a exploração social. 20
ALTHUSSER (1985) classifica esta forma de velamento como aparelho ideológico a serviço da manutenção do status quo e da exploração do ser humano pelo seu semelhante. 21
Mesmo sendo a estrutura econômica determinante da organização de um modo de produção, nem sempre ela domina o sistema. Isto porque é a responsável direta pela produção de bens materiais, mas não quer dizer que tenha de ser sempre responsável pela reprodução do sistema, ou seja, da contínua condição de sua existência em determinado tempo histórico.
23
aconteciam mudanças na totalidade social que são relevantes ao entendimento do
desdobramento do modo de produção em Portugal nesse período.
Conforme afirma LARA (1986), a Europa do século XVIII vivenciava um
período de grande efervescência22, proporcionada pela revolução científica ocorrida
no século XVII23. À luz da modernidade, o ser humano passa a questionar o poder
ditatorial da Igreja e, em contrapartida, o absolutismo dos reis por boa parte do
continente europeu. Esses questionamentos chocam-se com o contexto social
português da época, haja vista estar esta formação social mergulhada na égide
doutrinária da Igreja. Esta que por sua vez reafirmava o poder absoluto do rei que,
em seu bojo, conferia a ela lucros e poder como forma de tê-la como aliada.
Percebemos então o quanto esse contexto português difere daquele que se
passa em boa parte da Europa na época. Enquanto que, em países como Inglaterra
e França, as idéias iluministas questionavam a forma pragmática da Igreja de
doutrinar o mundo em favor de seus próprios interesses e dos grupos dominantes,
Portugal não acompanhava, pelo menos não de forma incisiva, essa tendência a ir
de encontro ao poder instituído. Ao contrário, percebendo a possível ameaça, rei e
representantes do clero unem-se ainda mais buscando salvaguardar seus
interesses. A prova cabal dessa união é a instauração do Santo Ofício como julgador
de toda forma de perturbação à ordem instituída e que Saramago demarca
incisivamente em trechos como o que segue:
Dizem que o reino anda mal governado, que nele está de menos justiça, e não reparam que ela está como deve estar... dos julgamentos do Santo Ofício não se fala aqui, que esse tem bem abertos os olhos, em vez de balança um ramo de oliveira, e uma espada afiada onde a outra é romba e com bocas. Há quem julgue que o raminho é oferta de paz, quando está muito patente que se trata do primeiro graveto da futura pilha de lenha, ou te corto, ou te queimo(...). (SARAMAGO, 1997:191).
22 A França desponta como grande potência política e a Inglaterra como potência econômica. Este é um período de alianças entre nações em busca de salvaguardar seu poderio econômico. 23
Cientistas como LAVOISIER, LAMARC e PASTEUR desenvolvem a química moderna e esses conhecimentos trazem um grande crescimento econômico para a Europa. Espalham-se neste período as idéias iluministas, a concepção antropocêntrica de analisar a realidade. A visão dos iluministas era a de buscar compreender o mundo à sua volta sem o auxílio dos dogmas religiosos.
24
O Santo Ofício surge como uma forma de julgar as ações e possíveis ideias do povo
em Portugal destinando à fogueira aqueles que vão de encontro à estrutura
ideológica e político-jurídica vigentes24 no país.
Vale lembrar que as ideias antropocêntricas da modernidade não chegam ao
mesmo tempo e com a mesma intensidade a todas as partes da Europa. Países, a
exemplo da Inglaterra, despontam no cenário europeu como um daqueles que
conseguiram melhor se adequarem às mudanças sociais e figuram como grandes
potências da época.
Circunscrevendo as relações sociais de produção na Europa desse período,
percebemos que as mesmas assentavam-se sobre bases liberalistas do capitalismo
moderno, sem a mesma velocidade em todos os países europeus, mas tornando-se
pouco a pouco hegemônica. Nessa configuração, notamos que a propriedade dos
meios de produzir encontrava-se sob o domínio do grupo burguês25. Este configura
um grupo dominante na sociedade, detentor das manufaturas e primeiras indústrias,
explorando a força de trabalho das camadas populares e intensificando as práticas
de pagamento assalariado pelo trabalho desenvolvido.
Desta forma chegamos ao enquadramento das relações sociais que vigoram
na Europa do século XVIII: relações assentadas na propriedade privada dos meios
de produção em favor de um grupo social, no caso a burguesia. Trata-se, portanto,
de relações voltadas para a acumulação de bens e capital e exploração dos
trabalhadores. O desenvolvimento dessas relações desencadeia um processo de
expansão, culminando no aperfeiçoamento da indústria e da economia liberalista de
mercado.
Ao buscar delimitar a atuação portuguesa neste contexto expansionista
econômico-industrial percebemos que autores, como: SÉRGIO (1985), GARCIA
(1989) e MARQUES (1998) concordam que o país encontrava-se assentado na
estrutura econômica de bases liberalistas do capitalismo. No entanto, a forma como
24Isto porque, cientificamente, o ser humano busca racionalizar o que antes era-lhe proibido de fazer. Cresce a crença antropocêntrica questionando a ordem idealista vigente na sociedade até então, ou seja, indo de encontro à estrutura ideológica que sustentava o domínio da estrutura jurídico-política na Europa. Na esfera política autores como LOCKE, ROUSSEAU, VOLTAIRE e SMITH embasam o pensamento da época, instituindo o contrato social entre os homens, criticando o Estado absolutista e dando à economia a autonomia necessária para impulsionar a lucratividade burguesa. Decorrem deste período histórico profundas transformações no campo da economia, política e estrutura social, caracterizando-se mais tarde como modernidade, como Idade Moderna. 25Grupo que ascendia socialmente e a quem interessava a disseminação do antropocentrismo, revolução científica e cada vez maior desenvolvimento capitalista.
25
buscou difundir sua manufatura e indústria foi tímida em comparação com as nações
em que estas estavam mais desenvolvidas. Isto porque apoiou o desenvolvimento
industrial e manufatureiro apenas no período em que se encontrava em crise
econômica, necessitando disputar mercados para conseguir manter o equilíbrio entre
o que vendia e o que comprava.
Desde finais do século XVII “defendia a indústria como sendo de grande
importância para o futuro de Portugal. A sua doutrina veio de encontro de uma crise
económica profunda, que durava desde 1669, e apoiou diversas iniciativas privadas
que pretendiam fomentar novas fontes de receita para o País”. (MARQUES,
1998:355). Buscando fortalecer a economia portuguesa engendrou planos de
crescimento da indústria e apoiou-se nos empreendedores que buscavam reinserir o
país no competitivo comércio internacional.
Este fomento à indústria e a manufatura nacionais durou apenas até serem
descobertas minas de ouro no Brasil. A partir de então “(...) surgiram maiores
dificuldades para as recém-criadas indústrias. Voltou a prosperidade baseada nas
exportações de vinho, azeite, açúcar, tabaco, etc., sendo fácil pagar em ouro o
déficit da balança comercial”. (Ibid:355). Uma vez tendo com que pagar suas dívidas
e adquirir tudo quanto necessitasse o país voltou a mergulhar naquele tipo de
comércio que mais conhecia e que tradicionalmente conhecia os domínios, a
comercialização de artigos agrícolas.
Tendo poder econômico para comprar produtos de melhor qualidade não
havia porque se privar das importações e continuar lançando mão de estratégias
protecionistas para seu frágil parque industrial. Os dirigentes do país não viam mais
necessidade em apoiar “a fraca qualidade de muitos artigos manufacturados(...)”
(Ibid:355) que produzia. Com isso, “a política de industrialização teve de ser
abandonada(...)”. (Ibid:355). Pagava-se alto para produzir-se no país artigos
manufaturados e industriais quando os mesmos já poderiam vir de fora com melhor
qualidade e preços mais atrativos. Assim é que, ao abrir os portos aos produtos das
nações amigas Portugal fechou muitas portas para seu desenvolvimento interno.
Voltando seus interesses comerciais para a agricultura “(...) o comércio
português com os países estrangeiros dependeu principalmente das colônias”.
(Ibid:357). Estas forneciam para o país muitos dos produtos que este exportava para
diferentes nações européias. Dentre os produtos agrícolas que produzia
internamente o grande chamariz português “(...) do século XVIII foi, sem dúvida
26
alguma, o vinho, que trouxe prosperidade ao País mas o encadeou também à
Inglaterra”. (Ibid:357). Com a nação inglesa Portugal fez diferentes acordos, entre
eles o que assegurava a livre entrada do vinho português em suas terras em troca
dos tecidos que esta industrialmente produzia.
Como bem observado por SÉRGIO (1985) “estabelecera-se em Lisboa uma
feitoria inglesa, e o Porto viu uma colônia importante de comerciantes de vinho e de
armadores britânicos”. (Ibid:115). Este vinho, apesar de ser produzido em Portugal
era feito por ingleses que no país moravam e vivenciavam “(...) uma situação de
privilégio na sociedade” (Ibid:116), pois tinham direitos que outros estrangeiros não
possuíam.
Desta forma, mesmo sendo em terras portuguesas que o vinho era produzido,
este, não era de todo pertencente ao país. Isto porque, sendo os ingleses os
organizadores da produção e, ao mesmo tempo, detentores do direito pleno de
escoá-la para suas divisas era como se fizesse do país apenas “seu quintal” de
plantio. Os meios de produção e a circulação da mercadoria eram de pleno controle
inglês e não português.
Deste período SÉRGIO (1985) ressalta que Portugal servia apenas como via
de transporte entre os produtos coloniais e os países estrangeiros, ao passo que
financiava a prosperidade industrial daqueles que comprava a produção. Nesse
cenário europeu Portugal se configura mais como um grande financiador do
desenvolvimento das forças produtivas de outros países do que impulsionador desse
mesmo processo em sua sociedade.
O tratado feito com a Inglaterra “(...) consagrava o desenvolvimento da
produção vinícula(...) mas por outro lado não permitiu o fomento industrial que foi
assim descurado”. (GARCIA, 1989:155). Como bem demarca o autor, em troca do
“(...)desenvolvimento de uma importante burguesia comercial e rural(...)” (Ibid:155),
Portugal entrega ao controle inglês as bases de seu modo de produção.
Uma vez tendo grande parte da produção agrícola escoando para as terras
britânicas e, ao mesmo tempo enriquecendo esta nação com a importação de seus
produtos, Portugal termina por figurar-se como financiador da industria alheia. Em
contrapartida torna-se concomitantemente produtor ‘rural’, atendendo aos interesses
ingleses de liberação de sua economia à serviço da deles.
Com isso, suas relações de produção circunscrevem-se mais como
subservientes que propriamente independentes no modo de produção que vigora na
27
Europa do século XVIII. Em sua relação com o restante da Europa, Portugal figura
como dependente. Mas, como isto é possível se, devido aos minérios que possui, é
um país rico?
Ter ouro e prata faz de Portugal um país com poder de compra. Ter uma
manufatura e industria desenvolvida fazem da Inglaterra, por exemplo, um país com
poder de produção. Como estas são relações sociais pautadas no modo de
produção capitalista, em que a ordem é o acúmulo de riquezas, países que seguem
o exemplo inglês têm mais chances de potencializarem seu desenvolvimento. Isto
porque produzem para vender e vendem para acumular, ao passo que países como
Portugal só fazem esvaziar suas divisas.
Assim, vivenciando esta situação de “(...) dependência econômica(...) em
relação à Inglaterra” (Ibid:155), Portugal, ao invés de desenvolver-se, contribuía para
a acumulação do capital da economia britânica. GARCIA (1989) ressalta que os
ingleses ainda fizeram uso de “outras formas de acumular riquezas(...) quer através
de empréstimos, quer através de controlo das viagens para comércio que Portugal
estabelecia com o resto da Europa”. (Ibid:155). Detendo o controle das entradas e
saídas no país a Inglaterra cercava a economia portuguesa a asfixiando para que a
sua própria respirasse melhor.
Com base no que assinalamos sobre a economia portuguesa, chegamos à
conclusão de que esta, apesar de determinante, não era a que dominava o modo de
produção do país. Isto porque todo o direcionamento deste (e, portanto, da
economia) estava a cargo da estrutura jurídica-política, que, por sua vez, colocava-o
sob o controle “das nações amigas” que lhe fornecia o que não produzia.
Esta estrutura dominante, através das estratégias que desenvolvia,
encarregava-se de reproduzir continuamente a forma como o país direcionaria seu
modo de produção. Desta forma, as “(...) leis de funcionamento e
desenvolvimento(...)” (HARNEKER, 1970:17) desta estrutura eram decisivas para a
manutenção do modo de produção português. Mas, que estrutura jurídica-política
era esta?
Esta estrutura jurídica-política de Portugal organizava-se no tipo de estado
nacional conhecido como absoluto, daí a denominação de absolutismo. Ao retratar
esse período da história portuguesa Tengarrinha (2000:109) ressalva que o país
consegue chegar a essa unidade graças à união de seus segmentos sociais na luta
pela sucessão do trono português com a Galícia, no século XIV. Com essa união
28
social em torno do rei, este passa a ter poder total, governando sozinho26. Sendo o
rei o único que decidia, concentrava-se em sua figura toda a organização jurídico-
política do país27.
Não podemos perder de vista que essa sobreposição jurídico-política do rei
deve-se, sobretudo, ao seu reconhecimento como soberano por todas as camadas
da sociedade e pelo impulso econômico lhe proporcionado pelo colonialismo. Nas
palavras do próprio Alvim (2010:28) “foi este incremento e desenvolvimento da
economia colonial que permitiu ao pequeno reino de Portugal manter sua relevância
no cenário econômico e geopolítico do Ocidente no século XVIII”.
Avançando no tempo e nos aproximando de Portugal, tal como se
circunscreve no século XVIII, percebemos que o mesmo mantém essa estrutura
política e jurídica centralizada nos mandos reais e conquistada desde o século XIV.
Tengarrinha (2000:107), analisando a história de Portugal no “conjunto das
coordenadas políticas, culturais, religiosas” revela-nos que o reinado de D. João V28
reafirma o absolutismo e chega mesmo a considerar suas ações político-jurídicas
como paternalistas.
Graças ao apoio material advindo de suas colônias, como também explicitado
por ALVIM (2010) e descrito por Saramago (1997:229/230), o reinado de D. João V
consegue fortalecer suas instituições e impulsionar a economia. É relevante
observar que, à nossa percepção, o autor entrelaça as ações político-jurídicas do rei
com seu intento de reforçar as relações entre o país e a Igreja, empregando em
larga escala o ouro colonial a serviço da arte e cultura religiosa.
Desta forma, as riquezas coloniais portuguesas estavam duplamente à
disposição: por um lado como financiadoras de outros países, por outro como
mantenedora da Igreja. Conforme exposto mais acima desvendamos como ocorria
este financiamento, o que não tínhamos inferido ainda era sobre o quanto o clero fez
26 Teóricos como MAQUIAVEL respaldam a centralização de todas as decisões na figura de um só rei, ao associar o poder absoluto deste à harmonia do corpo humano Dizia ele que o corpo era harmonioso, pois só tinha um cérebro e a este estavam subordinados todos os outros órgãos. O Estado deveria ter apenas um centro de decisões e todas as pessoas deveriam ser subordinadas a ele, não o sendo poderiam ser eliminadas para não enfraquecer o poder real. 27 Essa estrutura tem relação direta com a economia, pois o rei passa a ter o poder de interferir e decidir os rumos que a mesma tomará no país. Essa intervenção do Estado na economia ficou conhecida como mercantilista, tendo como motor econômico a acumulação de capital. 28 Rei de Portugal entre 1706 e 1750, época histórica em que desenvolve-se o enredo da obra Memorial do Convento, de José Saramago (2009).
29
uso dessa aliança para reafirmar seu poderio e salvaguardar, ao mesmo tempo, a
posição da nobreza que tanto o favorecia.
Nessa linha de pensamento chegamos à noção de como a Igreja funcionava
como uma instituição de poder que ideologicamente mantinha as relações sociais de
produção vigentes em Portugal na primeira metade do século XVIII. Essa vigência
ideológica era dominante sobre qualquer outra no país, pois velava com maestria e
em larga escala, não só seus próprios interesses como também toda a estrutura do
modo de produção da época.
Conforme Tengarrinha (2000:130), o período histórico do reinado de D. João
V pode ser considerado como “(...) Portugal Barroco(...). Nesse particular, importa
recordar(...) o quadro particularmente enfático da ‘organização social e estilo de vida’
do Portugal(...), onde o casticismo e a cristalização social são tônicas dominantes.29”
Na formação social dessa época a mobilidade era quase nula, reafirma-se os rituais
da Corte e a centraliza em Lisboa, tendo na noção de hierarquia a tônica para julgar
qualquer membro social. Outra questão de valor para nosso estudo diz respeito à
dualidade do homem português, dividido entre o pensamento antropocêntrico,
difundido pela Europa e em voga na época, e os mandos ideológicos da Igreja
impondo-lhe uma visão teocêntrica do mundo.
A partir dessas premissas barrocas, em contraste com a efervescência
capitalista, conseguimos perceber o porquê do atraso português (em relação ao
desenvolvimento de seus instrumentos para produção). Este é um país que tem
suas relações sociais ainda inseridas num modo de “ver” o mundo pela ótica em
vigor na Idade Média, ao passo que suas relações de produção são fincadas no
modo de produção capitalista que nega esta forma de sociabilidade. A partir destas
considerações conseguimos correlacionar estas relações e perceber a dualidade
entre elas. Esta dualidade justifica o “atraso” social e a sagacidade com que os
grupos dominantes estrangeiros exploram tudo o que lhes conferem lucratividade no
país.
O pouco estímulo ao desenvolvimento das forças produtivas portuguesas
deve-se também a própria forma de ser do modo capitalista de produção, em que
uma nação busca suprimir o desenvolvimento da outra para tê-la como mercado
consumidor do que produz. Assim, o fraco desenvolvimento manufatureiro e
29
O autor refere-se à “cristalização social em torno da Corte e das elites aristocráticas que nela pontificavam
desde meados de seiscentos”. (TENGARRINHA, 2000, p. 144).
30
industrial português favorece o desenvolvimento destes nas “ nações amigas”. Para
que ele continue como está, estas nações buscarão fazer todo e qualquer acordo
com a estrutura jurídica-política, que domina Portugal, a fim de salvaguardar seus
interesses. Desta forma é que, ao não incentivar o desenvolvimento das forças
produtivas internas, o país abre caminho para que as outras nações o façam, à custa
de suas finanças. Esta falta de incentivo faz com que suas forças produtivas sejam
consideradas como retrógradas e pouco desenvolvidas, em comparação com
aquelas que “mandam” na produção industrial.
Vimos anteriormente que o desenvolvimento das relações sociais de
produção não se dava da mesma forma nos diferentes países europeus. Assim,
enquanto temos a Inglaterra despontando como grande potência industrial, enviando
ao restante do mundo conhecido boa parte de tudo aquilo que produzia, temos um
Portugal com características medievais em plena modernidade, o que muito
beneficia as demais nações dominantes.
Por outro lado, o desenvolvimento dos instrumentos de trabalho de Portugal
no século XVIII ainda poderia ser comparado com o que aconteceu no século
passado. Temos uma predominância no país de trabalhadores ligados à agricultura,
as casas de ofício e um comércio de produtos, vinculado praticamente à produção
interna do país e com pouco aperfeiçoamento tecnológico.
Estes foram elementos bem explorados por SARAMAGO (2009), em sua obra
Memorial do Convento, ao ressaltar a importância que o país dava às mercadorias
importadas, tal como descreve a
(...)cama que veio da Holanda quando a rainha veio da Áustria, mandada fazer de propósito pelo rei, a cama, a quem custou setenta e cinco mil cruzados, que em Portugal não há artífices de tanto primor, e, se os houvesse, sem dúvida ganhariam menos. (SARAMAGO, 2009:16).
O autor enfatiza a valoração conferida não só ao produto (cama) como também à
qualificação da mão-de-obra (artífices) e seu caráter de país importador. Mostra-nos
que, mesmo havendo trabalhadores que se equiparassem aos estrangeiros ainda
assim não seriam elevados a mesma condição de reconhecimento, pelo simples fato
de serem da própria terra. Na análise empreendida por Alvim (2010:28) “o país
tornou-se um atrativo mercado procurado por ingleses, franceses, italianos,
espanhóis e alemães(...) foi precisamente no reinado de D. João V que Portugal
31
atingiu uma posição de prestígio e importância que não desfrutava desde a época de
D. Manuel e da chegada ao Oriente”.
Nesse ínterim Tengarrinha (2000:119) ressalta que, “no domínio interno, a
cidade de Lisboa progredia como mercado de interesse internacional: o tráfico
ultramarino, as manufaturas, (...) referenciam um reinado longo e próspero que só
entrará em declínio com a doença do rei”. Diante do exposto pelos autores e das
análises que empreendemos anteriormente podemos concluir que, numa conjuntura
internacional Portugal era bem quisto como país fornecedor de matérias primas e
produtos advindos das colônias e, ao mesmo tempo, como consumidor de muito do
que os países com forças produtivas mais desenvolvidas produziam.
Até o momento conceituamos as relações sociais de produção, fizemos uma
breve contextualização dessas relações na Europa no século XVIII e buscamos
circunscrever Portugal neste período. Para darmos continuidade à nossa análise faz-
se necessário, a partir daqui, ampliar nosso foco de visão. Isto porque necessitamos
compreender que análise Saramago, autor de Memorial do Convento, faz do país e
o quê dessa formação social lhe serve de base para a escrita da obra.
Por isso é que elegemos como próximo ponto de descrição a leitura
saramaguiana do Portugal do século XVIII e o convidamos a mergulhar conosco
neste imbricado caminho. Ressaltamos de antemão que, esta não será uma tarefa
fácil, haja vista estarmos em busca de “ver” pelos olhos de outrem a formação social
de um país distinto do nosso e, para complicar, numa época remota de nossa
história.
32
2.3 A leitura de Saramago sobre Portugal do Séc. XVIII
Iniciamos, na primeira parte deste capítulo, nosso estudo buscando situá-los
num panorama geral da obra literária Memorial do Convento. Esta ação foi
necessária para apresentar o enredo do livro e os caminhos que buscamos trilhar ao
estudá-lo. Assim, direcionamos nossa visão interpretativa para os condicionantes
sociais a que as personagens da obra estavam submetidas no Portugal da primeira
metade do século XVIII.
Após esta explanação sentimos a necessidade de conceituar as relações
sociais de produção no país, na época da obra, uma vez que este entendimento é
de fundamental importância para os desenlaces de nossa análise. Uma vez
realizada a contextualização da obra chegamos ao entendimento de que não
poderíamos deixar de abordar a leitura que o autor Saramago faz do país neste
período30. Isto porque estamos analisando um romance escrito por um autor que
está fora do tempo histórico em que o enredo se passa.
Ao buscar empreender esta análise sobre a leitura de Saramago do Portugal
do século XVIII, o fizemos tendo como foco a visão, que interpretamos na obra, da
formação e estrutura social do país na referida época. Esta análise parte do que o
autor registrou no enredo do romance sobre o povo português e sua organização
social.
Ao longo deste estudo, percebemos que a leitura saramaguiana do país
centrava-se no meio social das cidades de Lisboa e Mafra, tendo a primeira como
foco norteador. Esta percepção baseia-se em três fatos principais: ser Lisboa a
cidade sede do governo português, ser Mafra a cidade escolhida para a construção
do convento e, por último, a percepção de que as demais localidades do país estão
sendo representadas pelas narrativas das personagens que delas vinham e se
dirigiam para Mafra/Lisboa.
Em diversas passagens, ao descrever os hábitos, costumes e situações de
vida dos habitantes de Mafra e, principalmente, Lisboa, o autor o faz conferindo a
estes uma unidade cultural, a qual subentendemos como característica
30
É com esse pensamento que iniciamos o que estamos denominando de tentativa de aproximação do entendimento da leitura que Saramago faz sobre Portugal no século XVIII. Dizemos tentativa por ser clara a visão de que nossa análise será uma das muitas interpretações que poderiam haver sobre a intencionalidade de um autor, como Saramago.
33
predominante do povo português e não apenas tratando estas características sociais
como de habitantes desta ou daquela cidade. O faz como se ao escrever sobre os
que estavam em Lisboa/Mafra estivesse fazendo-o de toda uma nação e assim
recontando a história da organização social portuguesa da época.
Desta forma, chegamos à conclusão de que a visão de Saramago do país
(Portugal) gira em torno da forma de ser português dos habitantes, principalmente
de Lisboa, generalizando, quando necessário, para todo o país. O entendimento do
porque Lisboa ser o cerne da questão guia-se por caminhos da formação político-
social de Portugal na referida época, haja vista que era a capital do país, lugar de
concentração da Corte real e de onde partiam todas as orientações administrativas e
comportamentais para as demais localidades portuguesas31.
Nossa análise da forma como o autor retrata a cidade de Mafra é a de que o
faz tendo como base o próprio convento que ali será erguido. Isto porque antes da
possibilidade dele existir identificamos que, em suas narrativas, esta cidade
despertava pouco interesse político-econômico à administração do país. Neste
período, ou seja, antes do convento, o autor descreve Mafra como uma localidade
em que a estrutura de sua economia era a agricultura de subsistência, obtendo
através do cultivo da terra a principal fonte de renda e promoção da satisfação das
necessidades básicas da população.
Com o início da monumental obra do convento percebemos que, em
diferentes passagens do enredo, o autor menciona o abandono destas terras
cultiváveis para que as pessoas fossem trabalhar na construção do convento. A
princípio este abandono é caracterizado como “espontâneo”, haja vista a percepção
destas pessoas de que, ao trabalhar na edificação do convento teriam maiores
condições de subsistência do que aquelas provenientes do trato da terra.
Posteriormente descreve que este abandono, antes sendo “voluntário”, passa
a ser praticamente obrigatório devido à intensificação da construção do convento e a
necessidade crescente de mais trabalhadores. A partir de então grande parte da
fonte de renda dos habitantes de Mafra advém desta, aludindo ao fato de grande
maioria da população estar a se dedicar a elevação do convento. Contrastando com
31
Ampliando sua visão sobre o povo português o autor cita diferentes cidades do país, como Évora, Monte Junto, Celeiros, Torres Vedras, Alentejo, entre outras. Contudo, a análise do modo de vida dos habitantes dessas cidades surge tendo como fio condutor uma ação/presença de personagens relacionadas ou à Mafra ou Lisboa.
34
Mafra temos Lisboa, sendo-nos apresentada como cidade administrativa, lugar em
que residiam grupos de diferentes camadas sociais, morada oficial do rei D. João V
e sua corte e de onde este administrava o país e suas colônias.
Ao relatar sobre a importância destas para a economia portuguesa ALVIM
(2010:45) ressalva que as riquezas advindas delas fortaleceram ainda mais a
centralização do poder na figura real. A partir dessa prosperidade econômica
consegue D. João V, além de exercer o poder, o fazer sem preocupar-se com
incômodos e interferência de demais níveis estruturais da sociedade. O
fortalecimento político-econômico alicerça ainda mais o poder absoluto do rei e o
domínio de sua administração jurídico-política ao modo de produção português
desse período.
Por outro lado, aproveitando sua ótima localização portuária, o país
centralizava em Lisboa o comércio ultramarino do Estado português, fato que não
passou despercebido pelo autor que buscava retratar não só as transações
comerciais como também a voracidade dos comerciantes, o mercado do porto da
cidade, o domínio de estrangeiros no comércio e o excesso de importações que
chegavam ao país através de seu porto.
Somamos estes fatos às inúmeras passagens da obra em que há o
desvelamento das estratégias mercantilistas daqueles que dominavam o comércio
de produtos em Portugal. Estes faziam do lucro desmedido a bandeira para explorar
as necessidades do povo que via-se sem saídas diante do “(...) preço, que ia baixar,
não baixa, se for preciso deita-se fogo a um celeiro ou dois, mandando em seguida
apregoar a falta que o trigo ardido já está fazendo, quando julgávamos que havia
tanto e de sobra”. (Ibid:59/60). Ações como estas são o que o autor denomina de
“mistérios mercantis”. Mistérios estes que depõem claramente sobre a forma
encontrada pelos comerciantes de valorizar os produtos que comercializam, de
manter elevado o preço destes, de capitalizar-se cada vez mais em face ao consumo
supostamente necessário.
Ao definir nosso entendimento do modo de produção em vigor no país não
poderíamos deixar de citar o desenvolvimento de suas forças produtivas, haja vista
serem elas o motor deste e ter o autor dedicado rico trecho da obra a demarcá-lo.
Como já vimos, as forças produtivas dizem respeito ao desenvolvimento dos
instrumentos para o trabalho, os indivíduos que os usarão, o conhecimento para
manipulá-los, a experiência em sua manipulação e a forma com que os utilizarão.
35
Ora, tendo o autor demarcado bem que Portugal era uma “(...) terra de
analfabetos, de rústicos, de toscos artífices(...)” (Ibid:230) estes não encontravam-se
preparados para fazer uso de instrumentos mais desenvolvidos, nem tão pouco
tinham conhecimentos necessários para os desenvolver. Não havendo instrumentos
que possibilitem o avanço das forças produtivas, nem tão pouco quem no país os
conheça, saibam como usar e tenham experiência em seu manejo, como fazia então
o país para manter seu modo de produção?
Para isso fazia uso de sua balança comercial favorável (devido ao
extrativismo mineral advindo das colônias) para “importar” para o país os
instrumentos de que necessitava e a mão-de-obra qualificada para atender à suas
necessidades. Desta forma é que imigra para o país uma gama de diferentes
profissionais, como Saramago bem demarca ao assinalar que “(...) o arquitecto é
alemão(...) italianos são os mestres dos carpinteiros e dos alvenéus e canteiros(...)
negociantes ingleses, franceses, holandeses(...)” (Ibid:230) e que dos portugueses
espera-se apenas “(...) a força bruta, ciência pouca”. (Ibid:230). Partindo destas
premissas é que ousamos aferir que o modo de produção capitalista vigente em
Portugal encontra-se aprisionado pelo lento desenvolvimento de suas forças
produtivas e que só consegue manter algum fôlego graças ao extrativismo
empreendido em suas terras ultramarinas.
A forma como o autor nos apresenta a cidade de Lisboa demonstra nos faz
atentar para a forma como a fartura e a escassez caminham lado a lado. Sendo
cidade de morada dos nobres e família real eram constantes os banquetes, as festas
e abundante a diversidade culinária para a realeza.
Situações essas de excessos e desperdícios que contrastavam diretamente
com a pobreza da população, fato este que o autor especifica bem ao analisar as
alternativas do povo à fome: “mas lá estão os caldos da portaria, as esmolas das
irmandades, é difícil morrer de fome em Lisboa, e este povo habituou-se a viver com
pouco” (Ibid:88). A riqueza de uns, velamento justificando esta divisão social entre os
que podem ter e os que nem tanto. Até mesmo os soldados, pertencentes ao grupo
que Althusser (1985) denomina de aparelho repressor do Estado, passavam fome e,
por vezes, havendo a oportunidade, desertavam para o lado do inimigo ou fugiam
para suas casas buscando fugir dela.
Outra característica da cidade fica bem demarcada pelo autor ao referir-se à
sujeira de suas ruas e maus cheiros provenientes desta. Ao descrever como a rainha
36
caminhava pelas ruas sobre tábuas dispostas no chão pelos criados, evitando assim
que esta tivesse contato com a sujeira, Saramago nos mostra a dimensão da falta de
limpeza da cidade e
(...) estando as ruas sujas, como sempre estão, por mais avisos e decretos que as mandem limpar, vão à frente da rainha os mariolas com umas tábuas largas às costas, sai ela do coche e eles colocam as tábuas no chão, é um corropio, a rainha a andar sobre as tábuas, os mariolas a levá-las de trás para diante; ela sempre no limpo, eles sempre no lixo... (Ibid:113).
Este costume de manter as ruas sujas revela o quão esta característica estava
impregnada na sociedade lisboeta que, mesmo tendo decretos reais para que
mantivessem as ruas limpas, ainda assim não o faziam.
Ao expressar que, diante da situação de sujeira das ruas, a rainha andava
“sempre no limpo” e seus criados “sempre no lixo”, subentendemos a condição a que
o ser humano era submetido na sociedade, a depender do grupo a que “pertencia”
nesta estrutura social. O fato de a ela ser-lhe “dado” o direito de andar sobre tábuas
e a eles ser-lhes “dado” o dever de manipular estas para a passagem de sua alteza,
revela a situação de desigualdade, subtração de direitos e estranhamento a que
estavam submetidos os indivíduos nesta organização social.
Em paralelo o autor descreve a cidade como tendo “(...) uma igreja a cada
esquina, um convento por quarteirão(...)” (Ibid:30/31), demonstrando assim a
oficialidade da instituição religiosa no país e o forte apelo ideológico ao qual o povo
estava submetido. Fatos como este levam Saramago a retratar a contradição do
povo português ao explicitar que “(...) nunca se viu gente tão crente e tão
desordeira(...)” (Ibid:265) por “(...) ficarem tudo entre o pecado e a penitência(...)”
(Ibid: 86). A vontade de fazer algo e, ao mesmo tempo, a repressão moral religiosa
contrapondo-se a esta vontade caminham lado a lado no pensamento do indivíduo
português.
Outra contradição também se eleva na obra, mas esta relacionada não só à
moral como também a estrutura da sociedade. O autor descreve a diferença entre a
quantidade de pecados e penitências atribuídos e dadas ao povo e à nobreza, tendo
esta última pouca repreenda pelas muitas pecadoras ações que pratica e
demonstrando assim o quão interpretativos podem ser os pecados, pela visão moral
religiosa, a depender de quem esteja-se julgando. Esta interpretação dos atos e
37
ações empreendida por essa visão moral religiosa, que é dominante no país, termina
por contribuir para alicerçar a própria estrutura social vigente.
Saramago narra como os costumes e ritos da igreja durante as missas
exerciam papel formador no imaginário do povo português e contribuiam para a sua
reprodução na esfera social. Descreve a clara divisão de gêneros durante a missa,
separando de um lado da Igreja os homens e de outro as mulheres. Mais adiante,
mostra como esta divisão consagrava-se nos lares portugueses, uma vez que as
relações familiares no seio da sociedade eram marcadas pela segregação entre o
feminino e o masculino.
Percebemos o quanto esta divisão entre gêneros durante as missas refletia
nas mesmas divisões nos lares e também no trabalho. Havia comumente, nas
relações sociais portuguesas, espaços de homem/espaços de mulher, trabalhos de
uns/trabalhos de outros. Esta divisão contribuía para que não fosse reconhecida a
unidade primeira, a igualdade entre os seres humanos.
Sarcasticamente o autor ironiza, ao analisar que “(...) quando Adão e Eva
foram criados, tanto sabia um como sabia outro, e quando os expulsaram do
paraíso, não consta que tenham recebido do arcanjo uma lista de trabalhos de
homem e trabalhos de mulher(...)”. (Ibid:234). Concordando com o autor inferimos
que esta divisão do trabalho entre os gêneros não é algo natural, ou seja,
proveniente expressamente do fato de terem nascido homem ou mulher, mas sim
fruto da organização social a que estão submetidos.
Mas, já que estamos a analisar algumas das questões de gênero na obra, não
podemos deixar de mencionar também o lugar da mulher na sociedade portuguesa.
A ela era-lhe proibida a saída de casa sozinha, devendo sempre ser acompanhada
pelo pai (quando solteira) ou marido (quando casada) e, na falta desses, alguém que
os representasse mostrando o quão bem guardados eram “seus” tesouros.
Porém, como nem toda prisão pode ser contumaz ao ponto de sufocar,
recebem as mulheres a jurisdição plena de seu corpo durante a quaresma. Esta
liberdade era para que visitassem, sozinhas ou acompanhadas de outras com igual
intenções, as diversas igrejas da cidade (momento em que aproveitavam para fazer
com o seu corpo o que era-lhes proibido ao longo do ano).
Esta é uma sociedade que relega à mulher a posição de subalternidade
perante o homem. Independente de qual posição social ocupe na estrutura social, à
38
mulher é conferido um papel secundário em relação àquele desempenhado pelo
homem, como se o mundo fosse deste e ela parte de sua propriedade.
Em determinada passagem da obra o autor faz alusão ao fato da mulher ser
considerada como “vaso de receber” (Ibid:11), como se fosse um “cântaro à espera
da fonte” (Ibid:12). Em sua obra Saramago destina à personagem da rainha D. Maria
Ana toda a materialização desta carga estereotípica e preconceituosa contra o
feminino na sociedade portuguesa.
A rainha personifica tudo aquilo que socialmente espera-se da mulher: recato,
devoção, humildade, subserviência, dever de prover herdeiros ao homem e,
principalmente, a sujeição de suas vontades, de sua liberdade em prol do bem estar
deste. Não é a toa que encontramos na obra trechos em que o autor divaga sobre o
“(...) horror de ser rainha, pela dó de ser mulher, pelas duas mágoas juntas(...)”
(Ibid:114), como se esta sofresse duas vezes, sofresse duas pesadas cargas
sociais.
Em contraponto a esta caracterização da rainha o autor lança a personagem
Blimunda, mulher do povo, que busca, a todo o momento, seu lugar de igual perante
aqueles com quem está e por onde passa. Através dos atos desta personagem
expressa a força do feminino que, mesmo tendo sua condição de igualdade
subjugada socialmente, luta em busca de sua afirmação enquanto tal.
Muito poderíamos escrever sobre as diferenças entre as personagens D.
Maria Ana e Blimunda, sobre a aceitação de uma do papel que é-lhe relegado
socialmente e a luta da outra por superá-lo. Com este intento, dados na obra para
comparação não nos faltaria, contudo, temos ciência de que este não é um dos
objetivos neste momento.
Por isso, sobre o papel da mulher, nos contentamos com o que já delineamos
até o momento. Desta forma, damos prossegmento à análise pela forma com que
Saramago correlaciona a relação entre personagens de diferentes grupos sociais e o
trabalho que cada uma desenvolve.
Ao descrever as mãos de três personagens de grupos sociais distintos o faz
mostrando o quanto as características destas “falam” sobre o ser humano em si. Isto
porque estas características dizem respeito a como o ser humano faz uso das mãos
para desenvolver trabalho. Assim, estas características têm relação direta com a
posição social que estas personagens ocupam na sociedade portuguesa. Vejamos:
39
Sentaram-se todos em redor da merenda, metendo a mão no cesto,..., agora o cepo que é a mão de Baltasar, cascosa como um tronco de oliveira, depois a mão eclesiástica e macia do padre Bartolomeu Lourenço, a mão exacta de Scarlatti, enfim Blimunda, mão discreta e maltratada, com as unhas sujas de quem veio da horta e andou a sachar antes de apanhar as cerejas. (SARAMAGO, 1997:171).
Ao descrever a mão de cada personagem nesta roda de degustação de frutas o
autor o faz de forma a que, pelas características de cada uma, entendamos o tipo de
trabalho que realizam e, consequentemente, subentendamos a sua relação com a
posição que lhes é destinada nesta formação social. Mas, por que chegamos ao
entendimento de que o tipo de trabalho tem relação direta com a estratificação social
portuguesa?
Para esta resposta faz-se necessário que entendamos com clareza o que é
trabalho e como o desenvolvimento deste é utilizado para diferenciar uns dos outros
na sociedade portuguesa. LESSA (1996), ao buscar tornar acessível a seu leitor o
que denominou de “A Ontologia de Lukàcs”, aponta que o trabalho está diretamente
relacionado com a questão de SER da espécie humana. Sendo um ser de
consciência, um ser capaz de acumular conhecimentos sobre a realidade na qual
vive, um ser dotado de capacidade de antever suas ações antes de pôr-se a
concretizá-las (ou não), o ser humano faz uso dela como forma mediadora de sua
relação com a natureza.
Para que nossa consciência organize, planeje e, dentre as muitas
possibilidades, escolha que ação desenvolver é necessário que esteja em
comunhão com a parte sensível de seu ser, o corpo. É este corpo que permite ao ser
humano materializar as ações que idealizou, que permite à consciência ter
experiências sensitivas da realidade para buscar compreendê-la.
É a consciência que faz uso do ‘material’ que chega-lhe através dos sentidos
e age para conseguir da natureza a satisfação de suas necessidades. Contudo,
como afirma BOMFIM (1996:08), “(...) o indivíduo singular não se limita a responder
às necessidades e desafios postos pela realidade(...) Isto significa dizer que além de
responder, ele se pergunta sobre tais desafios e necessidades(...)”. Se o ser humano
se limitasse apenas a responder estes desafios e necessidades não ultrapassaria o
universo dos instintos. No entanto, ao se questionar sobre o que, como e para quê
faz, distingue-se assim deste universo, eleva-se a um “pôr-se consciente na
realidade, consciente da razão do porquê do seu fazer, consciente do próprio fazer”
40
(Ibid:08). Dessa forma, o ser humano consegue não só a satisfação de suas
necessidades, como também conscientizar-se do processo que realiza para
consegui-la.
Marx (2009) afirma que a forma do ser humano conseguir esta satisfação de
suas necessidades dá-se pela via do trabalho que desenvolve. Esta é a forma
encontrada pela espécie humana para seus indivíduos “exteriorizarem(...) seu
determinado modo de vida. Como exteriorizam(...) a sua vida, assim os indivíduos o
são. Aquilo que eles são coincide, portanto, com a sua produção, com o que
produzem e também com o como produzem”. (Ibid:24/25). Debruçando-nos
novamente sobre a descrição das características das mãos, sua relação com o
trabalho que os indivíduos desenvolvem e posição social que ocupam na sociedade
portuguesa.
Ao descrever as características da mão de Baltasar (personagem que, com
seu trabalho, construirá a Passarola) e de Blimunda o autor nos impele a perceber
que o trabalho que realizam necessita de contato manual direto, ou seja, mãos de
quem movimenta a terra, molda o ferro. Na formação social na qual vivem, realizar
estes tipos de trabalho os definem como trabalhadores “comuns”. Isto porque é uma
sociedade mergulhada na teoria de que o trabalho manual tem menos valor que o
trabalho intelectual.
Esta teoria embasa-se na definição aristotélica das quatro causas (causa
material, formal, eficiente e final), bem descritas por CHAUÍ (1984) ao nos mostrar
como este filósofo buscou entender o conceito de movimento. Transpondo esta
definição para a qualificação do trabalho, aqueles indivíduos que se ocupam em
ditar as finalidades do trabalho são quistos como superiores socialmente. Os
indivíduos que se ocupam com a produção direta do objeto são vistos como
socialmente inferiores. Observemos:
Um aspecto fundamental dessa teoria da causalidade consiste no fato de que as quatro causas não possuem o mesmo valor, isto é, são concebidas como hierarquizadas, indo da causa mais inferior à causa superior. Nessa hierarquia, a causa menos valiosa ou menos importante é a causa eficiente (a operação de fazer a causa material receber a causa formal, ou seja, o fabricar natural ou humano) e a causa mais valiosa ou mais importante é a causa final (o motivo ou finalidade da existência de alguma coisa)”. (Ibid:08).
Essa concepção hierárquica das causas especifica o entendimento da qualificação
do trabalho na sociedade, classificando aquele que se desenvolve pelo manipular e
41
transformar a matéria em algo como menos valoroso em relação aquele tido como
razão dessa manipulação e transformação da matéria. Neste contexto é que as
mãos e trabalhos de Baltasar e Blimunda passam a caracterizar aqueles
provenientes de um grupo social que tem seu ato de realizar trabalho desprivilegiado
socialmente perante outros grupos sociais.
Em contraponto a esta forma desvalorizada de qualificar o trabalho realizado
encontramos a caracterização da mão “eclesiástica e macia” (Saramago, 1997:171)
do padre Bartolomeu, denotando, pela eclesiástica, seu pertencimento ao grupo
social do clero e, pela maciez, aludindo ao fato de não fazer uso dela para o
trabalho. Sendo seu trabalho não manual, este só pode estar qualificado como
aquele responsável pela causa da finalidade, ou seja, aquele que hierarquicamente
tem seu trabalho considerado como superior aos dos já mencionados.
Esta oposição entre o trabalho de Baltasar/Blimunda (manual) e o do padre
(não manual) demarca bem a sentença proferida por Marx (2009) ao tratar da
divisão do trabalho na sociedade. para ele esta divisão deu-se primeiramente
através da separação entre o trabalho manual e intelectual. Scarlatti, músico que é,
tendo sua mão descrita como “exacta” denota a precisão com que faz uso dela para
manipular o instrumento musical, desenvolvendo com ela trabalho, contudo um
trabalho que ao mesmo tempo é eficiente e com finalidade e, tendo desta forma,
reconhecida sua elevação social ao lado ou servindo à nobreza.
Nesta análise da hierarquia social no país encontramos na obra contumazes
passagens que verberam sobre a distinção entre os grupos humanos pela posição
social que ocupavam na sociedade. “Muitas casas de madeira tinham sobrados, em
baixo acomodavam-se as bestas e os bois, em cima as pessoas de muita ou alguma
distinção, os mestres da obra, os matriculadores e outros senhores da vedoria-geral,
e oficiais da guerra que governavam os soldados”32 (Ibid:215). Aqueles que
detinham socialmente alguma posição de destaque tinham privilégios que não eram
concedidos aos demais habitantes. Isto seja em Mafra, Lisboa ou qualquer outra
localidade do reino.
Esta “distinção” mantinha a separação dos indivíduos pela qualificação social
do trabalho que desenvolviam. Esta mesma distinção permitia que situações, como a
32
Este trecho, no contexto da obra, remete ao fato de, estando em Mafra diversos trabalhadores advindos de
outras localidades, reservarem-se para eles os sobrados existentes na cidade, ou seja, as melhores casas. Esta era
a acomodação conferida àqueles que tinham algum tipo de posição social, enquanto que as casas mais simples
ficavam à disposição dos inúmeros trabalhadores “comuns”.
42
descrita por Saramago em relação à venda de terrenos para a obra do convento, se
materializassem: “tinha este pároco feito um bom negócio de terrenos ...e, ou por
valerem elas muito, ou por muito valer o proprietário, fez-se a avaliação pelo alto,
cento e quarenta mil réis, nada que se possa comparar com os treze mil e
quinhentos réis que foram pagos a João Francisco.” (Ibid:120). No contexto do
enredo João Francisco é um trabalhador “comum”, enquanto que o padre é um
trabalhador à serviço da igreja, logo, à este último, relega-se maior distinção de valor
que em relação ao primeiro e, como bem frisa o autor, não se sabe se
verdadeiramente o padre ganhou mais pela quantidade de terras que possuía ou
pela distinção de QUEM era.
Ao alinhavar, no percurso histórico das personagens e enredo, as vicissitudes
dessa formação social, nossa inferência é a de que o autor busca com isso
demarcar as bases de sua leitura do então Portugal do século XVIII. O faz
mostrando-nos o quão o ser humano era condicionado pelas relações e papéis
sociais que desenvolvia e a que estava submetido. A partir da análise aqui
empreendida, na tentativa de capitar sua visão do país na referida época,
percebemos que Saramago não só busca recontar a história portuguesa, mas o faz
de forma a que compreendamos a condição daqueles que encontravam-se
subjugados socialmente à ordem vigente.
Este é nosso entendimento da leitura que Saramago faz do Portugal no
século XVIII. Este é nosso entendimento de como o autor “vê” a formação social do
país na referida época e busca retratá-la em sua obra. É com esse entendimento
que finalizamos desta primeira parte de nossa análise. A partir desse ponto iremos
debruçar nossa atenção ao (re)conhecimento ontológico do ser humano. Isto porque
acreditamos que, ao compreendermos o ser humano em sua essência teremos
embasamento suficiente para dar continuidade a análise de Memorial do Convento.
43
3. A CONDIÇÃO HUMANA
3.1 O ser humano e a sociabilidade humana
Esta busca pela definição ontológica do ser humano deve-se à necessidade
de pontuarmos de que bases partimos para analisar a condição humana e esta na
obra Memorial do Convento. Ao nos debruçarmos sobre a busca pelo entendimento
do que este seja tivemos como foco o ser enquanto indivíduo e pertencente à
totalidade humana.
Poderíamos, nesta análise, abordar o conceito de ser humano de diferentes
maneiras, contudo, sabendo da necessidade de conceituá-lo de forma a que
venhamos a vislumbrar seu percurso histórico, quem de fato é pela processualidade
da vida que desenvolve, é que escolhemos a abordagem materialista histórica
proposta por Marx e Engels (2009).
Marx e Engels (2009), ao delimitarem as premissas das quais partem para
conceber historicamente o ser humano, salientam que o fazem tendo em vista “(...)
os indivíduos reais, a sua ação e as suas condições materiais de vida(...)” (Ibid:23).
Em contraposição ao pensamento de sua época (que privilegiava o conhecer
abstrato, partindo das ideias e representações), os autores buscam conhecer o
cotidiano real dos indivíduos. Atentam para a necessidade de conhecer
empiricamente quem é este ser humano, sob quais condições vive, sejam elas lhe
condicionadas ou engendradas por si. Isto porque, desta forma, partindo do que se
processa na realidade, é que poderiam conhecer de fato os elementos que norteiam
o processo histórico da existência humana.
Com base nesta visão dos indivíduos pelo que são (aqueles que existem de
fato e não aqueles que imaginamos ser), tomaremos como princípio norteador deste
estudo o estar no mundo do ser humano. Este será nosso ponto inicial para
conhecermos a sua história e, ao buscarmos desmistificar como este ser vive, se
organiza, se relaciona com os seus pares e com o natural acreditamos chegar ao
conhecimento de si na totalidade.
Em se tratando do estar no mundo da espécie, de acordo com SARTRE
(1987), o ser humano é o que é. Sua existência precede à essência porque primeiro
ele existe para depois conhecer-se e desenvolver-se. Devemos ter claro que esta
visão de Sartre da existência humana é fundamentalmente ateísta: não há um Deus
que dá um sopro e nos manda ao mundo para sermos “gauche na vida” (ANDRADE,
44
2003), para sermos uma existência a andar à esquerda da realidade. Ao contrário,
“(...) o homem existe, encontra a si mesmo, surge no mundo e só posteriormente se
define(...) de início, não é nada: só posteriormente será alguma coisa e será aquilo
que fizer de si mesmo”. (SARTRE, 1987:06). A sua existência é o precedente para
que venha a se conhecer no processo daquilo que engendra no real em busca de
sua satisfação.
O estar no mundo do ser humano encontra na natureza a realidade de não
conseguir pronto para si tudo aquilo que necessita para sua manutenção e
desenvolvimento. Ao contrário, precisa constantemente lançar-se em busca de como
alcançar o que poderá lhe trazer a satisfação.
Com isso, temos a primeira distinção entre a espécie e as demais existentes
na natureza, haja vista que para ter suas necessidades satisfeitas é preciso que o
ser humano crie/desenvolva as condições para tal. Este é um elemento da
processualidade de sua vida que não há entre os animais. Enquanto o ser humano
desenvolve algo para intermediar sua relação com o natural, os animais nada criam,
pois tudo o que precisam no natural conseguem.
Com base na leitura de Marx (2001) inferimos que a relação do ser humano
com o real é ao mesmo tempo condicional e não condicionada. É condicional por ser
ele um indivíduo biologicamente natural, possuindo necessidades que, uma vez não
satisfeitas leva-lhe a óbito, como a qualquer outro animal. Ao mesmo tempo é não
condicionada por ter ele a aptidão para modificar o que está ou criar algo que venha
a conferir-lhe a possibilidade de “saltar” sobre esta realidade lhe (im)posta.
Diferentemente de outros animais, o ser humano possui a capacidade de
antever suas ações, de premeditar os atos que desenvolverá e, a partir desta ação
abstrata antes da ação concreta, conseguir antever os atos que possivelmente
venha a desenvolver, decidindo se atuará de fato ou não. Esta ação abstrata tem
uma relação articulada para com a ação concreta e vice-versa, uma vez que a
abstração parte de uma percepção sensível do real e a concretização parte de uma
abstração prévia do perceptível desta realidade.
Essa capacidade de abstrair sobre acontecimentos, necessidades e
situações, de equacionar as possibilidades de realização e escolher entre elas para
a sua materialização, ou não, somente o ser humano é dotado dentre as espécies
na natureza. Os demais animais encontram-se numa relação instintiva para com ela,
45
o ser humano ultrapassa essa relação ao fazer uso consciente do que percebe do
real e abstrai para adequá-lo as suas necessidades.
Esta capacidade de adequação/criação lhe é permitida por ser ele um SER de
consciência33, um ser capaz de avaliar as probabilidades possíveis do real. Para
essa avaliação lança mão dos conhecimentos e experiências vividos por si ou lhe
transmitido por seus iguais, compara estas experiências com a situação real atual e
vislumbra possíveis alternativas para ela. Ou seja, antes mesmo de materializar
qualquer alternativa na realidade o ser humano a projeta em sua consciência.
Esta capacidade humana é a base ontológica de sua sociabilidade. É o que
não só lhe diferencia dos animais como lhe permite desvencilhar-se da
determinidade do real. Ao edificar na realidade posta um mundo fruto de si mesmo,
através de seu processo de criação/transformação/adequação, este mundo torna-se
para si seu mundo social no natural. Com isso o ser humano passa a reconhecer-se
em seu próprio processo de desenvolvimento, ou seja, na própria historicidade de
sua existência.
Deste modo, Marx e Engels (2009) são bem claros ao delinear que o ser
humano distingue-se dos animais quando começa “(...) a produzir os meios de
subsistência..., passo que é requerido pela sua organização corpórea”. (Ibid:24).
Estando imerso numa realidade que lhe é estranha o ser humano, fazendo uso das
suas potencialidades corporais (postura ereta, liberdade das mãos, racionalidade,
etc.), passa a elaborar objetos que permitem-lhe adaptar esta realidade às suas
necessidades.
Com isso, passa a tê-los como intermediários entre si e o real, processando
assim, seu estar no mundo da forma que lhe é intrinsecamente particular, “(...) uma
forma determinada de exteriorizar(...) a sua vida, de um determinado modo de
vida(...)”. (Ibid:24). Esta forma de relacionar-se com o real é algo que não
encontramos em nenhuma outra espécie na natureza, é a maneira única de estar no
mundo do ser humano.
Sendo assim, o que o ser humano é relaciona-se diretamente com a forma
com que materializa no real suas condições de vida, haja vista não as ter encontrado
prontas para si. Estes autores chegam à conclusão de que a conceitualização do ser 33
Estando nós mergulhados na materialidade do ser não podemos deixar de ressaltar a importância de situarmos a consciência no corpo, haja vista ela ser parte integrante da totalidade do ser. Assim falar em consciência é falar do ser humano integral, corpo e mente como partes indissociáveis do que do ser humano.
46
humano “(...) coincide, portanto, com a sua produção, com o que produz(...) e
também com o como produz(...)”. (Ibid:25). Ao produzir algo que medie sua relação
com o natural e venha a possibilitar a satisfação de suas necessidades o ser
humano determina também a forma como processará a sua vida. Este é um ser que
é o que faz de si e este fazer materializa-se pela forma encontrada para produzir o
que necessita.
Deste modo, o ser humano é um ser que encontra naquilo que produz a forma
para a manutenção de sua vida, no entanto, o quê e como produzirá dependerá das
necessidades e circunstancias reais existentes. Esta é “(...) uma forma determinada
de exteriorizarem(...) a sua vida, de um determinado modo de vida dos mesmos”.
(Ibid:24). Sua maneira própria de estar no mundo e de encontrar a si mesmo no seu
desenvolvimento.
Nesse ínterim, Ser e sociabilidade do ser confundem-se e se complementam
o tempo todo, como partes indissolúveis de um mesmo processo. Sendo um ser
social, um ser que vive na e para a sociedade, o ser humano (inter)relaciona-se com
os demais de sua espécie, troca com os mesmos sua produção, seu saber. Com
isso esta produção, que é individual, torna-se social na medida em que é feita não
só para si, mas também para a mediação das satisfações das necessidades de
outros. O ser humano com seus pares está imbricado numa relação de
(in)dependência de sua produção individual e que torna-se ao mesmo tempo social.
Estas relações entre os indivíduos geram a forma de sociabilidade humana,
característica unicamente de sua espécie e, ao mesmo tempo, historicamente
determinada. Na medida em que “(...) determinados indivíduos, que são
produtivamente ativos de determinado modo... entrarem em determinadas relações
sociais e políticas” (Ibid:30) produzem de acordo com as necessidades e condições
determinadas por estas relações que encontram-se socialmente instituídas.
Desta forma, é uma produção circunscrita dentro dos “(...) limites, premissas e
condições materiais que não dependem da sua vontade”. (Ibid:30). A produção do
ser humano, que traduz quem ele é, encontra-se não só condicionada no tempo e no
espaço em que se processa como também pelas próprias relações socialmente
postas e historicamente encontradas.
A produção do ser humano concentra-se para a satisfação das necessidades
naturais ou frutos das relações sociais em que vive. O desenvolvimento dos meios
para produzir geram novas possibilidades dentro do real natural e social. Com isso
47
Marx e Engels (2009) delineiam que “(...) a própria primeira necessidade satisfeita, a
ação da satisfação e o instrumento já adquirido da satisfação, conduz a novas
necessidades(...)” (Ibid: 41/42) historicizando em seu desenvolvimento a vida
humana e edificando a sua sociabilidade nas relações que empreende.
Essa sucessiva produção material da vida acarreta paralelamente a produção
de novas categorias (organização social, divisão do trabalho, etc.) nas relações entre
os seres humanos. Estas categorias produzidas passam a se reproduzir na vida
coletiva sendo também geradoras de novas necessidades de categorias,
complexificando assim a sociabilidade humana já instituída. “A produção da vida(...)
surge agora imediatamente como uma dupla relação: por um lado como relação
natural, por outro como relação social(...)”. (Ibid:42/43). Ao desenvolver os
instrumentos para mediar sua necessidade de satisfação no natural o ser humano
media ao mesmo tempo sua própria relação social, pois esta também torna-se para
si uma necessidade. Desta forma, a produção material de sua vida é também o
processo pelo qual produz-se socialmente.
Esta complexificação das relações sociais imbrica ainda mais a
(in)dependência do ser humano para com o outro. Isto porque passa a necessitar
dividir (cada vez mais) o processo de desenvolvimento do trabalho (entre seus
pares) para dar conta da produção dos meios que lhes trarão a satisfação que
almejam das novas necessidades instituídas.
Deste modo, não só produzem sua forma de estar no mundo como a
reproduzem continuamente conferindo-lhe uma solidez e rigidez próprias daquelas
que encontra no natural. A forma como se organizam as relações sociais e se
processa a divisão do trabalho entre aqueles que sob seu julgo vivem “(...)
condiciona o estado da sociedade, e, portanto, a ‘História da humanidade’(...)”.
(Ibid:37). Desta forma, não há como entender o conceito de ser humano sem
interpretar a historicidade da sociabilidade humana, ou seja, destas relações
organizativas e divisíveis do processo de trabalho, produção humana esta que é o
retrato de quem é este ser.
Desta forma, o mundo humano é fruto do trabalho empreendido, sua atividade
vital através da qual promove sua adaptação ao mundo, transforma-o, relacionando-
se com seus pares e, com isso, desenvolve a si mesmo enquanto indivíduo e gênero
da espécie humana.
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O ser humano tem na natureza sua realidade concreta, no entanto, uma vez
que esta não lhe é dada, para dela conseguir seus meios de subsistência e suas
formas de expressão no mundo o faz realizando trabalho, transformando o que
existe em algo que existe para si.
Essa forma de processar seu estar no mundo é que assegura à espécie todas
as suas demais características, sejam elas a linguagem, a arte, a formação social,
etc. Sob o trabalho que desenvolve é que o ser humano edifica suas relações
sociais. Pelo trabalho é que o (a) homem/mulher tornam-se humanos, tornam-se
livres do determinismo natural.
Na obra Memorial do Convento, quando o autor explicita “(...) todos os
homens são reis, rainhas são todas as mulheres e príncipes os trabalhos de todos”
(Saramago, 2007:74) o faz denotando a importância do trabalho para o homem e a
mulher. Pela via deste mulher/homem tornam-se capazes de prover sua existência,
tornam-se detentores de uma forma de buscar sua liberdade do determinismo
natural. Nesta particularidade humana encontra-se sintetizada a diferenciação da
espécie em relação às demais.
Sendo assim, o ato de realizar trabalho, independente do qual seja e sua
finalidade, é uma ação propriamente humana. Ao projetar, ao pensar em e como
realizar o ato, antes mesmo de concretizá-lo, o ser humano exterioriza ao mundo
aquilo que lhe é intrínseco, o trabalho. Assim é que Marx chega ao entendimento de
ser este a base fundante da existência humana: ter no desenvolvimento do trabalho
sua forma de se relacionar com o mundo, sua forma de conhecer a si mesmo, a
materialização do seu ser, de sua essência.
Para viver e sobreviver na natureza o ser humano precisa aprender a como
tirar proveito do que nela existe. Esta aprendizagem dá-se à medida que, numa via
de mão dupla, transforma e apreende sobre o que transformou. Nessa constante
mediação com a natureza, ao mesmo tempo em que nela vive (mantendo sua
essência) e a ela transforma (produzindo sua existência), o ser humano desenvolve
a sua própria humanização. Estamos, pois, no terreno próprio do concreto, do fazer-
se enquanto existe.
A vivência social pelo trabalho torna o ser humano mais humano, o educa a
Ser humano à medida que entre estes vivem produzindo para si e os demais. Este
estar e ser social ensina-lhes o que sua espécie já conhece do processo de
transformação da natureza, os impele a seguir neste processo de transformação e,
49
contudo, ao mesmo tempo, os condiciona a viver em prol do que foi instituído
socialmente para perpetuar a espécie.
Ao desenvolver o trabalho, objetivando seu produto, este passa a determinar
também a própria realidade humana e sua relação com a natureza, determinação
esta que a consciência humana não tinha como prever, em sua totalidade, no
momento da prévia-ideação. Isto porque só depois desta objetivada, do objeto
tornar-se concreto e ser inserido na realidade natural e humana, é que este
desencadeia sequências de causa e efeito no seio da realidade como um todo.
O ser humano, ao buscar conhecer a totalidade do real e como adaptá-la a si,
tem na mediação, caracterizada pelo trabalho, o elemento constitutivo de sua forma
de relacionar-se com o mundo. Desta forma, o (processo de) trabalho torna-se sua
essência propriamente dita, aquilo que lhe é mais necessário para assegurar seu
estar no mundo.
Fazemo-nos pelo trabalho. Nenhum outro vivente faz isso, é por esta
característica que definimos o nosso devir humano, o que fomos, somos e
seremos. O trabalho nos diferencia na natureza, possibilitando-nos elaborar algo
novo, algo que não estava na realidade naturalmente. Só produzimos este algo por
sermos humanos, conhecedores de nossa história, de nosso percurso histórico na
realidade existente e fazermos uso deste, associado a nossa busca pro sanar as
necessidades atuais assegurando a perpetuação da espécie.
Saramago explicita em sua obra que o ser humano é que movimenta o
mundo, com o seu trabalho ele interfere na realidade mudando o existente e a si
mesmo. Ao comparar o mundo a uma nora34 o autor relaciona que é o trabalho que
faz o mundo andar, que o movimenta e “(...) faltando os homens, o mundo pára”.
(Saramago, 2007:66). Não havendo a espécie humana o mundo permanece em seu
eterno devir das esferas inorgânica e biológica, no devir do próprio natural. São os
homens e as mulheres que juntos, realizando trabalho erigem o mundo social, o
mundo para si.
Desta forma, a realização do trabalho é eminentemente social, seja em sua
fase abstrata ou concreta e tem haver com o devir humano e não com o natural.
Esta prática distingue-nos na natureza, possibilitando aos “(...) homens constituírem
um ambiente e uma história cada vez mais determinada pelos atos humanos e cada
34
Aparelho para tirar água dos poços, cisternas, rios, etc., cuja peça principal é uma grande roda de madeira em
volta da qual passa uma corda a que estão presos alcatruzes. (FERREIRA, 1988).
50
vez menos determinadas pelas leis naturais(...)” (Lessa, 1996:63). É esta a nossa
distinção primeira, esta capacidade de produzir algo que interfira diametralmente na
natureza e na própria humanidade.
Em outras palavras, este devir humano, que torna o que é feito por muitos nos
feitos de um, nos feitos da espécie, é o responsável pela capacidade de manter e
elevar continuamente a espécie no real, o responsável pela reprodução social
humana. Isto porque ao desenvolver o trabalho, gerando inovadoras possibilidades,
a espécie humana se complexifica e, exponencialmente esta complexidade, articula
novas formas de relações sociais (e com o meio em que vivemos) em busca da
constituição de nosso ser PARA-si enquanto gênero humano.
Esta constituição de nosso ser PARA-si origina e complexifica os atos sociais
movendo a reprodução social, enriquecendo as relações e promovendo uma
unidade social, humanamente possível. Contudo, apregoar esta unidade não
significa dizer que deixa de haver diferenciação entre indivíduo e gênero humano,
haja vista ser a consciência “(...) sempre aquela de indivíduos concretos”. (Ibid:91).
Ao se complexificar as relações sociais potencializa-se também a consciência
individual de cada ser humano. Não há como “falar” em gênero humano sem
reconhecer em seu desenvolvimento o indivíduo humano e assim, analogamente,
indivíduo e gênero estão intrinsecamente associados, ontologicamente parte de uma
única totalidade que é a humana.
Quando Saramago apregoa que “(...) o ser humano sozinho nada pode”
(Saramago, 1997:68) e, ademais, que “(...) importante é o trabalho de todos,
independente de qual seja(...)” (Ibid:74) refere-se justamente a este enquanto social.
A consciência de cada indivíduo agindo em conjunto em prol da espécie,
independente do modo como cada um realiza este trabalho.
Sabemos então que o trabalho é uma especificidade humana, que diferencia
o ser humano dos outros animais, interferindo conscientemente na realidade,
transformando-a e fazendo a si mesmo no processo de transformação. Pelo trabalho
o ser humano se humaniza, desenvolve suas relações sociais, edifica seu mundo e
com isso “muda o curso do existente na realidade”. LESSA reitera que esta
característica expressa a generalidade humana, aquilo que lhe é mais comum, “(...)
é a forma concreta historicamente determinada, da universalidade humana”. (Lessa,
1996:66) e vai mais além ao afirmar que “Lukàcs denominou devir humano dos
homens o processo histórico de constituição da generalidade humana”. (Ibid:66).
51
Nesta busca por entender o conceito de ser humano e sua sociabilidade
abordamos neste estudo a visão fundamente marxiana e engelsiana de ser, gênero,
espécie humana. O que somos, como nos definimos e nossa complexidade concreta
e abstrata foi assim elucidada pelo entendimento do que estes autores entendem
por ser humano. Embasados nesta concepção é que partimos agora ao
entendimento de como nós, seres da mesma espécie, nos estranhamos mutuamente
no interior de nossas relações sociais, fator este de importância para o
desvelamento da condição humana.
52
3.2 O estranhamento do ser humano
Pensar o estranhamento do ser humano a partir das considerações postas
por Lukàcs sobre o pensamento de Marx nos fez correlacionar este fenômeno com
as relações sociais de produção. Mas, o porquê disto? A este ponto, pode o leitor
estar se perguntando, o que tem haver o fenômeno aqui estudado com as relações
sociais de produção vistas anteriormente?
Para o entendimento da correlação de um estudo com o outro é preciso ter
claro que para Marx e Lukàcs o estranhamento não é um fenômeno que ocorre
independente das relações sociais. De acordo com os autores é no seio destas
relações que o estranhamento se materializa e se consubstancializa como forma
desumana de ver e agir de um Ser humano para com o outro. Mas, como assim?
A depender da forma como a sociedade está previamente organizada e se
afirma como e para os indivíduos, ou seja, como as relações sociais se constituem e
se reproduzem, há uma tensão constante entre aquilo que é comum a todos (ser
genérico) e aquilo que é comum às particularidades (grupos, indivíduos). O
estranhamento assim é produto desta tensão, é produto de como no seio das
relações sociais institui-se a forma com que o indivíduo será visto ou não como ser
constituidor de generalidade humana e terá esta generalidade afirmada ou negada.
Desta forma, a depender das relações sociais de produção em vigor na
sociedade historicamente determinada o fenômeno do estranhamento toma forma e
dimensões diversificadas com características próprias. Se esta forma e dimensões
serão maiores ou menores dependerão de como as relações sociais se processam.
Por isso é que Lessa (1996) frisa constantemente que Lukàcs atentava para o fato
de que o fenômeno do estranhamento “(...) nada tem de natural, é puramente
social(...) é uma negação da essência humana socialmente posta, é uma negação
do homem pelo próprio homem”. (Ibid:106). O fenômeno do estranhamento, assim,
tem relação direta com a forma que as relações humanas se processam no interior
da sociedade.
A processualidade destas relações materializa com intensidade ou não a
forma negativa do ser humano ser visto/quisto por seus iguais, ou seja, materializa o
fenômeno do estranhamento. É como se no seio das relações sociais “houvesse” a
possibilidade de destituir o indivíduo de sua identidade genérica, ou seja, daquilo
que o identifica enquanto ser na totalidade da esfera social da espécie humana. E,
53
ao ser destituído desta identidade genérica estivesse este passível de ser “vítima” da
forma estranhada com que as relações sociais desenvolvem-se historicamente.
Assim, o estranhamento é prodígio das relações sociais, modifica-se
constantemente a depender de como estas se processam no interior das
sociedades. Para Marx e Lukàcs o estranhamento faz parte das relações sociais e,
como já vimos, sendo estas indissociadas das relações de produção está então
diretamente imbricada com o MODO de produção em vigor em cada sociedade. A
maior ou menor manifestação e intensidade do estranhamento dar-se-á a depender
das relações sociais de produção em vigor em cada sociedade.
Ora, nossa intenção, na totalidade deste estudo, é analisar as relações
sociais de produção em Portugal do século XVIII para então entender a condição
humana a que estavam submetidas às personagens no livro Memorial do Convento,
certo? Perseguindo este objetivo precisamos entender então como se processa o
fenômeno do estranhamento do ser humano no interior desta sociedade.
Desta forma, é que direcionaremos nosso olhar para o entendimento do
estranhamento do ser humano no modo de produção capitalista e, a partir disso,
correlacionar este entendimento para o que nos foi narrado na obra Memorial do
Convento. Contudo, antes de realizar tal intento, é preciso que o leitor atente para o
significado conceitual do estranhamento do ser humano para Marx (2001). Isto
porque ao buscarmos entendê-lo nos estudos do autor chegamos ao entendimento
de que este é proveniente da alienação que perpassa todo o sistema.
Para Marx (2001) o interior das relações sociais é passível de gerar
estranhamentos que só as características destas relações podem explicá-los. No
entanto, mesmo este fenômeno se materializando em quaisquer relações sociais é
especificamente no modo de produção capitalista que ele se expande a proporções
nunca vistas. Isto porque a alienação gerada por este modo de produção transforma,
intensifica e universaliza o estranhamento que se origina e se desenvolve
continuamente nestas relações. Mas, como assim?
Embasados em Marx (2001) entendemos a alienação como base
sustentadora do modo de produção capitalista. Isto porque é através da forma
estranhada com que o ser humano trabalhador vê a si mesmo, as relações sociais
que mantém e o trabalho que desenvolve que permite a reprodução do próprio
sistema. Buscaremos descrever nessa exposição como a alienação se processa e o
54
porquê, embasados em Marx (2001), acreditamos ser ela a forma mais perversa de
estranhamento para o gênero humano conhecido até hoje.
A alienação é um fenômeno concreto decorrente da forma material em que a
sociedade está organizada. Não esqueçamos que temos socialmente instituída a
divisão verticalizada da propriedade material, divisão esta que a concentra nas mãos
de alguns em detrimento da totalidade humana. O ser humano, ao reproduzir
continuamente o direito de uns possuírem e a maioria não, aliena-se do próprio
direito de também possuir. Com isso, essa alienação concreta perpassa toda e
qualquer outra relação entre os seres humanos e o desenvolvimento de sua
produção.
Esta alienação, que se dá no plano real, para que continue a permitir tal
divisão da propriedade, necessita desenvolver, ao mesmo passo em que se produz,
uma justificação plausível que lhe permita a contínua reprodução. Com isso, faz uso
ideológico de formas justificadoras de si mesma e o ser humano, ao embriagar-se de
tais justificativas, introjeta em si aquilo que lhe é externo, permitindo que tal véu
encubra-lhe a reflexão sobre tal alienação. Assim é que o que se passa no concreto
ganha, aos olhos do ser humano, uma roupagem abstrata e invertidamente
reproduz-se continuamente no seio das relações sociais.
Já dissemos que a propriedade tornou-se apropriada por alguns indivíduos ou
grupos de indivíduos, sendo plenamente justificada e “aceita” socialmente. O que
ainda não dissemos é que esta apropriação dissemina-se também no campo da
produção, no seio do desenvolvimento do trabalho. Isto porque, sendo alguns
indivíduos detentores da propriedade que deveria ser de todos, terminam por
acharem-se no direito de também tornarem-se donos da produção proveniente do
trabalho desenvolvido pelos demais. A produção, que é desenvolvida pela maioria,
torna-se pertencente à minoria e esta minoria, salvaguardando seus interesses,
organiza a forma com este trabalho será desenvolvido como bem deseja.
A alienação, sendo o próprio fenômeno do estranhamento, é também
decorrente da forma com que o trabalho encontra-se organizado no sistema
capitalista de produção e, consequentemente, geradora de relações sociais também
alienadas. Como bem observa BOMFIM (1996:77) “o estranhamento do trabalhador
é(...) determinado pela forma como o trabalho está organizado”. A organização do
trabalho não é realizada por aqueles que verdadeiramente desenvolvem o trabalho.
55
Ao contrário, ela é teleologicamente posta por aqueles que nos acostumamos a
chamar de capitalistas.
Estes capitalistas pensam em como ordenar a forma com que o trabalho será
desenvolvido tendo um único objetivo: angariar através deste mais e mais
riqueza/capital e, desta forma, “o trabalho surge(...) tão somente sob a forma de
atividade de aquisição”. (Marx, 2001:72). De acordo com Bomfim (1996:75) é preciso
“pontuar, na produção capitalista(...) que o objeto abstrato da produção, a sede por
mais capital, é o que move a utilização da força de trabalho(...)”. Este objeto
abstrato, ou seja, o capital, reflete-se na teleologia que move a organização do
trabalho tendo como fim unicamente o seu acúmulo.
Com este objetivo o capitalista torna-se o mediador da produção, ou seja,
aquele que teleologicamente definirá como, quando e porque a produção será
desenvolvida. Se o objetivo é gerar riqueza/capital esta mediação da produção não
se preocupa em atender as necessidades reais do gênero humano. Isto porque
podem haver necessidades que não se traduzem em acúmulo de riqueza/capital e
estas, necessariamente, não se tornam foco da produção. Com isso, “(...) o interesse
dos capitalistas se opõe ao interesse da sociedade”. (Marx, 2001:85). Como se os
interesses de um indivíduo/grupo pudesse se sobrepor aqueles de todo o gênero.
O que possibilita ao capitalista materializar seu objetivo teleologicamente
posto é o desenvolvimento do trabalho para que a produção gere riqueza/capital.
Este trabalho, no sistema, fica a cargo de outro indivíduo da espécie humana, o
trabalhador. Denotamos relativa importância a esta afirmação, pois, sem o trabalho,
sem o processo de desenvolvimento de trabalho, não há riqueza. Logo, sem o
trabalhador não há produção, contudo “(...) a economia política compreende o
trabalhador como simples animal, burro de carga, cujas necessidades se limitam
exclusivamente a necessidades corporais”. (Ibid:74). Vemos aqui que o papel do
trabalhador foi deslocado de centro da questão do desenvolvimento do trabalho para
mero meio para a produção. Como este papel pode ter se invertido? Como um
indivíduo/grupo tão importante para a produção torna-se subjugado as decisões de
outro?
O trabalhador que é essencial para o desenvolvimento do trabalho não fica
para si com os “louros” da produção que desenvolve. Isto porque estes lhe são
tirados pelos capitalistas, havendo no sistema uma contumaz usurpação de tudo o
que envolve o processo de produção pela força de trabalho do trabalhador.
56
Esta usurpação não envolve apenas as riquezas geradas pelo ser humano,
mas também a possibilidade de ascensão de seu ser Em-si para o seu ser Para-si.
Ao processar o trabalho o ser humano tem nele a possibilidade de elevar sua
consciência, contudo, ao fazê-lo sob a organização posta pelo capitalista o
trabalhador não consegue efetivar esta elevação por tornar-se alienado do que,
porque e como faz. Esta alienação do trabalho se dá porque este
“(...) é exterior ao trabalhador, ou seja, não pertence à sua característica; portanto, ele não se afirma no trabalho, mas nega-se a si mesmo, não se sente bem, mas infeliz, não desenvolve livremente as energias físicas e mentais, mas esgota-se fisicamente a arruína o espírito”. (Ibid:114).
O trabalho que o trabalhador realiza não é para si e a generalidade humana, mas
sim para o capitalista. Este trabalho desenvolvido não pertence a si nem a sua
generalidade, mas a outro ser. Com isso não há como haver identificação entre
trabalhador e trabalho desenvolvido, mas sim um estranhamento cada vez mais
intenso possibilitando que o trabalhador não se afirme, não objetive seu trabalho
como para si, mas para o outro. Desta forma ele não consegue elevar-se, mas
apenas operacionalizar o que lhe é imposto pelo capitalista, destruindo-se
continuamente enquanto indivíduo e ser genérico.
A simples objetivação do trabalho em si não consegue fazer pela consciência
do trabalhador o que o seu “uso” em conjunto faria, ou seja, ele, enquanto indivíduo,
empregar sua teleologia e capacidade objetivadora em trabalho consciente Para-si
e, consequentemente, para a generalidade humana. Por isso é que Marx chega ao
entendimento de que “a importante distinção entre até que ponto os homens
trabalham com máquinas ou como máquinas não foi objeto de atenção(...)” (Ibid:75)
do sistema capitalista.
O trabalhador sendo destituído da possibilidade de fazer uso total de sua
consciência se iguala a uma máquina para apenas produzir para outrem e, desta
forma, é que ele se aliena. Ao tornar alienada de si a forma com que seu trabalho é
organizado, o trabalhador passa a não se reconhecer no produto que desenvolve, ou
seja, naquilo que se empenhou em objetivar. Para Marx este
“(...) trabalho externo, o trabalho em que o homem se aliena, é um trabalho de sacrifício de si mesmo, de martírio(...), a exterioridade do trabalho para o trabalhador transparece no fato de que ele não é seu trabalho, mas o de
57
outro, no fato de que não lhe pertence, de que no trabalho, ele não pertence a si mesmo, mas a outro”. (Ibid:114).
O trabalho objetivado pelo trabalhador lhe sendo externo não pertence a si, não se
consubstancializa a partir de seu interior para fora de si, mas lhe é imposto
externamente por outro ser. Este trabalho lhe sendo externo não lhe possibilita
reconhecer a si mesmo e o que produz, alienando-se duplamente no processo. Uma
vez se aliena por conta do trabalho não ser para si, outra vez por o fruto de seu
trabalho não lhe pertencer e, com isso, chegar a ter a si mesmo pertencente a outro.
Neste ínterim “(...) o trabalho alienado tira do homem o elemento da sua
produção, rouba-lhe do mesmo modo a sua vida genérica, a sua objetividade real
como ser genérico, e transforma em desvantagem a sua vantagem sobre o
animal(...)”. (Ibid:117). Sendo um ser da esfera social o ser humano tem a
capacidade de inovar na realidade, consubstancializando sua consciência
plenamente para realizar seu intento e com esse o de toda a humanidade. No
entanto, ao alienar-se sob o modo de produção capitalista o ser humano trabalhador
perde a capacidade de por em atividade esta característica que o eleva entre os
animais nivelando-se aos mesmos.
Contudo, para que o “ciclo de posse” do capitalista se complete, este aparece
não só como o mediador da produção, mas também como “responsável” pela forma
e valor com que a mesma circulará na sociedade. O trabalhador encontra-se desta
forma submetido ao capitalista em primeira instância. Esta submissão faz com que
ele oferte à única “coisa” de que é dono, sua força de trabalho. Esta força, ao ser
intensificadamente empregada na produção, reproduz ainda mais a alienação
sofrida pelo trabalhador.
Ao empregar sua força de trabalho na produção o trabalhador gera a riqueza
para o capitalista através do que chamamos de mais-valia. Grosso modo podemos
defini-la como sendo o excedente da produção. Isto porque ao ter sua jornada de
trabalho intensificada o trabalhador produz para o capitalista mais do que este
utilizou de recursos no custo da produção. Assim, de forma autômata o trabalhador
faz com que o “dono” da produção ganhe lucratividade sobre o que utilizou de
recursos para promover a mesma. É este lucro que impulsiona o capitalista a
comprar a força de trabalho do trabalhador para gerar mais riqueza/capital para si.
Com isso o capitalista sai fortalecido dessa relação com o trabalhador,
relação esta de compra e venda de força de trabalho para produzir mais-valia
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gerando mais capital “pertencente” unicamente ao capitalista. Por isso é que Marx
(2001:110) afirma que “(...) a penúria do trabalhador aumenta com o poder e o
volume de sua produção”. Sua força de trabalho-mercadoria é comprada pelo
capitalista para gerar sobre valores/lucro não importando com isso as condições
humanas a que este encontre-se submetido para produzir, desde que produza cada
vez mais. O trabalhador assim nada mais é que uma também mercadoria para o
capitalista, um mero objeto de seu intento primeiro: acumular riqueza.
Toda a produção desenvolvida pelo trabalhador não lhe pertence, esta passa
a ser propriedade privada do capitalista. Marx busca deixar claro que a propriedade
privada em si não é a causadora da alienação do trabalhador e, se aparece como
tal, é apenas pela forma feitichizada com que a realidade no sistema se mostra. Ao
contrário, o que permite a existência da propriedade privada é a instância alienada
em que o trabalhador se encontra. Instância esta que faz com que, em seu pensar,
tome por direito tudo pertencer ao capitalista e seja si destituído do mesmo direito de
também possuir riqueza/capital.
É a alienação que possibilita ao capitalista ser visto pelo trabalhador como
senhor de direitos que tudo pode no sistema por “possuir” a riqueza que movimenta
a produção. Este feitichismo faz com que o trabalhador denote a si e ao trabalho que
desenvolve importância mínima no processo e eleve os instrumentos de produção
como “verdadeiros” responsáveis pela geração de riqueza/capital. O maquinário
aparece assim como O indispensável para se produzir e, sendo este também
propriedade do capitalista, todo o produto da produção passa a ser também por
direito seu.
Esta realidade alienada, estranhada, nas relações de produção do sistema
reproduz-se também nas relações sociais no seio do próprio sistema. Estranhando-
se naquilo que deveria ser sua realização enquanto ser humano o trabalhador
multiplica este estranhamento em TODAS as suas relações. Sendo o trabalho
categoria que alicerça o gênero humano e este encontrando-se sendo realizado de
forma alienada interfere completamente na forma com que o ser humano pensa
sobre si e sobre o outro. Desta forma é que, na permanência da reprodução do
sistema, toda a especificidade do gênero humano encontra-se também estranhada,
alienada.
As relações que o trabalhador desenvolve com os de sua classe e os demais
da esfera social capitalista é um reflexo da alienação que sofre no desenvolvimento
59
de sua força vital. Logo, estas são relações corrompidas que minam o
desenvolvimento pleno do indivíduo e do gênero humano.
Nestas relações o trabalhador não é o possuidor de vontades, aspirações e
criador teleológico, ao contrário, ele é tido como uma bateria que alimenta as
vontades de outros. Uma bateria usada para fazer funcionar todo um sistema que
cria um mundo alheio ao próprio gênero humano, um mundo em que a máxima é o
bem do capital. BONFIM (1996:107) assiná-la que o trabalho do trabalhador é
impulsionado para gerar capital e a teleologia do capitalista também o é, pois, “a
especificidade da alienação capitalista é a condição estranhada do ser humano-
tanto do trabalhador como do capitalista”.
Desta forma encontram-se ambos alienados de si enquanto gênero humano,
pois, ao ser a teleologia e a objetivação do trabalho, além de separadas entre
capitalistas e trabalhadores, serem direcionadas para a geração do capital deixam
ambas de caracterizarem-se como edificantes do ser humano. Deixam ambas de
agir em prol da especificidade do gênero para atender ao capital e o que lhes era
primordial: atender as necessidades humanas, passa a ser um objetivo secundário,
quando muito. Necessidades estas que não se encerram apenas no que é básico
para a sobrevivência, mas também na busca por conhecer cada vez mais a
realidade em que vivemos e modificá-la continuamente em Nosso favor, não de algo
que nos é estranho.
De acordo com Marx (2001:74) “uma nação que procura desenvolver-se
espiritualmente com maior liberdade não pode continuar vítima das suas
necessidades materiais, escravo do seu corpo. Acima de tudo, precisa de tempo
livre para criar e usufruir da cultura”. Para o atendimento destas necessidades o
indivíduo precisa ter tempo para usufruir o que o gênero humano já
criou/desenvolveu e conhece da realidade até o momento. Ter tempo para lançar-se
em busca do desconhecido objetivando suas percepções e elaborações mentais,
conhecendo a si mesmo ao desenvolver esse processo e devolvendo à esfera social
o produto desse desenvolvimento.
Sendo continuamente explorado nas relações sociais de produção do sistema
é como se o indivíduo aniquilasse em si suas possibilidades e igualasse-se ao seres
naturais na realidade em busca de sobrevivência, mínima sobrevivência. O
estranhamento é assim um fenômeno que alcança, na esfera capitalista, proporções
universais. Proporções estas em escalas elevadas que só contribuem para a
60
desumanidade ontológica do ser humano. É por isso que Marx (2001) assiná-la que
a alienação é a forma mais perversa de estranhamento do ser humano já
materializada na sociedade.
“A consciência que o homem tem da própria espécie altera-se por meio da
alienação, de modo que a vida genérica se transforma para ele um meio” (Ibid:117) e
não num fim. “Toda a auto-alienação do homem, de si mesmo e da natureza
manifesta-se na relação que ele postula entre os homens, para si mesmo e para a
natureza”. (Ibid:119). A alienação consegue fazer com que o ser humano deixe de
ver a si e a sua espécie como um objetivo primeiro e passe a conferir ao ser
estranho a si, ao capital, toda a sua teleologia e objetivação. Esta forma estranhada
de ver a si mesmo e sua espécie se reproduz continuamente no interior do sistema
de modo de produção capitalista levando o ser humano a intensificação máxima de
sua desumanidade.
O que expomos sobre o estranhamento e como ele se materializa nas
relações sociais nos possibilitará entender a condição humana dos
indivíduos/grupos no seio social. Este entendimento nos embasará na análise que
empreendemos sobre a condição humana das personagens na obra Memorial do
Convento, mas estas são proposições que nos comprometemos a investigar mais
adiante certos de sua companhia nesta jornada.
61
3.3 O ser humano e sua condição humana
Para analisar a condição humana fomos impelidos a entender o conceito de
ser humano e a forma com que este torna-se passível de estranhar-se, ao trabalho
que desenvolve e à seu semelhante. Analisamos este fenômeno do estranhamento
especificamente dentro das relações sociais capitalistas de produção por acreditar
que conhecendo como este se processa no interior deste sistema colaboraria para
que entendêssemos sua processualidade na sociedade.
Correlacionando o que estudamos até o momento sobre o ser humano com a
condição humana deste, circunscrevendo-a na obra Memorial do Convento,
decidimos por tornar foco de nossa análise o desvelamento feito pelo autor das
condições do ser humano trabalhador na sociedade portuguesa da época. Isto
porque acreditamos que, direcionando nosso olhar para a categoria do trabalho e
como este é descrito nas relações sociais desta sociedade, conseguiremos elencar
elementos para nosso entendimento do ser humano e sua condição humana posta.
Percebemos que para abordar a condição humana do ser humano
trabalhador o autor fez uso de diferentes passagens do enredo da obra que tratam
da construção do convento em Mafra. Com isso desejamos afirmar que estas
passagens tornaram-se “ambientes” privilegiados, contudo, salientamos que não são
as únicas e, para efeito deste estudo, serão as mais abordadas.
Iniciamos nossa análise pelas diferentes passagens em que o ser humano e
seu trabalho são comparados com o ser e a processualidade de ser das formigas.
Esta comparação se dá pela forma automática, repetitiva e extenuante do uso de
suas forças com que o trabalhador se vê obrigado a desenvolver continuamente seu
trabalho.
Desejamos lembrar que esta comparação feita pelo autor não busca
desmerecer o trabalho desenvolvido pelo ser humano e sim denunciar a forma com
que o modo vigente de produção anula a complexidade do gênero humano e, ao
fazer isso, o iguala às formigas. Desta forma, sob as relações sociais em que se
circunscreve o ser humano trabalhador, este é quisto apenas como máquina de
trabalhar e, como tal, a processualidade de seu trabalho assemelha-se a forma
instintiva de ser das formigas. Vejamos:
62
“(...) e os homens avançaram para o terreno revolvido, com carros de mão e pás, enchendo aqui(...) despejando ali(...) ao passo que outros homens, de enxada aos ombros, desciam(...) enquanto mais homens lançavam cestos para dentro e depois os puxava para cima, cheios de terra(...) outros homens iam por sua vez encher carros de mão, que lançavam no aterro, não há diferença nenhuma entre cem homens e cem formigas, leva-se isto daqui para ali(...) e depois vem outro homem que transportará a carga até a próxima formiga(...)” (Saramago, 1997:120).
Esta passagem na obra é descrita por um narrador-personagem que a tudo assiste a
certa distância e, da forma como os seres humanos encontram-se trabalhando, os
compara às formigas.
Esta forma de processar o trabalho faz uso de forma intensa das forças
físicas do ser humano trabalhador e não das reais possibilidades de concretização
da complexidade humana. Com isso “a realização do trabalho surge de tal modo
como desrealização(...)” (Marx, 2001:110) como perda para o ser humano, ao passo
que serve apenas para manter minimamente as condições de subsistência deste
para que continuamente realize o trabalho empreendido por outro.
É a mesma relação que vimos anteriormente quando Marx (2001) aponta a
forma alienada de objetivação do ser humano trabalhador. Quanto mais a
objetivação de seu trabalho exige de sua força física e de sua subjugação à ordem
instituída mais ele se aliena do trabalho para continuar a desenvolvê-lo.
Diante da condição menosprezada em que vivem e da baixa remuneração
recebida há personagens que descrevem o desejo de melhorar suas condições de
vida, acreditando que pela via do trabalho alcançarão tal intento: “meu nome é
Francisco Marques, nasci em Cheleiros(...), tenho mulher e três filhos pequenos,
toda a minha vida foi trabalhar de jornal, e, como da miséria não via jeito de sair,
resolvi vir trabalhar para o convento(...)”. (Saramago, 1997:235). Contudo, dentro
das relações sociais de produção em que ele vive a satisfação deste desejo de
melhorar não passa de formas de manter basicamente sua subsistência.
Isto porque, como já vimos, “o trabalhador torna-se tanto mais pobre quanto
mais riqueza produz(...)”. (Marx, 2001:111). Esta é uma sociedade alicerçada na
exploração do trabalho de pessoas como a personagem Francisco Marques em prol
de alavancar riquezas para outros. Desta forma por mais que esta personagem, ou
seus iguais, busquem empregar sua força de trabalho na tentativa de melhoria de
suas condições de vida estas não passarão de simples formas para manter o que
está posto: a contínua exploração de seu trabalho.
63
Necessitando lançar-se constantemente em busca de sua sobrevivência o ser
humano trabalhador não consegue arguir a necessidade de superar as bases destas
relações sociais. Isto porque estas aparecem para ele como naturais, como se
sempre tivesse sido assim e outra forma não haja de viver. Desta forma ele reproduz
constantemente as condições estranhadas de vida, condições estas que lhe gastam
as forças e sucumbe a consciência, como bem entendido por Marx (2001).
Afora as questões acima elencadas, ainda temos a situação de fome
vivenciada pelos habitantes de determinadas cidades portuguesas. Estas situações
aparecem descritas através da fala de personagens como Julião Mal-Tempo, “(...)
sou natural do Alentejo e vim trabalhar para Mafra por causa das grandes fomes de
que padece a minha província, nem sei como resta gente viva(...)” (Saramago,
1997:237). Situações como esta contribuem para que as pessoas sujeitem-se a
qualquer imposição de realização de trabalho e não se sintam na posição de “exigir”
o que seria seu por direito.
Se não bastassem as más condições de vida e a exploração de seu trabalho
os trabalhadores ainda precisam dispensar boa parte da remuneração recebida para
se manterem na cidade em que tiveram de buscar trabalho: “(...) tenho de pagar o
que como aqui na casa do pasto e o púcaro de vinho que bebo, a vida boa é para os
donos das vendas de comida(...) eu por necessidade vivo e necessitado continuo”.
(Ibid:235). A exploração de seu trabalho lhe dá “direito” de receber certo valor pelo
trabalho empreendido, valor este que se dilui na manutenção de suas necessidades
básicas e que o mantém refém da roda-viva da exploração.
Mais uma vez o autor compara o ser humano às formigas, contudo nesta as
trás numa posição de certa “superioridade” perante os seres humanos que
trabalham na obra do convento. Isto porque estas, enquanto realizam suas
atividades laborais tem, por si mesmas, uma atitude instintiva que lhes permitem
decidir se podem continuar trabalhando ou não. Fato este que não acontece entre
aqueles seres humanos que trabalham continuamente na edificação do convento,
conforme descrito abaixo:
“Esta chuva de hoje não tem sido tão forte que mandassem os olheiros recolher toda a gente, sequer os carros de mão, menos afortunados que as formigas, que essas, estando o céu de aguagem, levantam a cabeça a farejar os astros, e recolhem aos buracos, não são nenhuns homens para terem de trabalhar à chuva”. (Saramago, 1997:220).
64
Uma formiga sabe que para a manutenção de seu bem estar, havendo chuva, à
necessidade de parar de trabalhar e abrigar-se. O ser humano também o sabe, mas
porque não agem em benefício próprio? Isto acontece por devotar seu corpo, suas
forças e seu bem estar ao trabalho. Independente das condições em que o
desenvolvimento deste se estabelece, sob a organização do trabalho instituída, os
trabalhadores continuam a trabalhar, salvo se receberem ordens para o interromper,
por receio de perder o meio de manutenção de seu sustento.
Também não poderíamos deixar de abordar a condição humana frente à
comparação entre o processo de trabalho empreendido nas duas principais
construções no livro Memorial do Convento. Numa, a Passarola, é um trabalho que
se aproxima de uma edificação do ser humano, busca realizá-lo enquanto ser,
noutra, o convento, é um trabalho que o aliena, o destitui da consciência plena de
sua ação na realidade.
Mesmo sendo a Passarola uma construção que é, por nós entendida como,
mais edificante da condição humana, ainda assim, ela é também alienante, pois a
divisão do trabalho para seu empreendimento obedece à lógica do modo de
produção da sociedade. Isto porque a elaboração da mesma é desenvolvida por três
das principais personagens da obra: Padre Bartolomeu, Baltasar Sete-Sóis e
Blimunda Sete-Luas, cada um contribuindo com seu trabalho para a construção,
contudo de forma também cindida.
Ao comparar Baltasar com o padre Bartolomeu o autor demarca bem a razão
desta cisão: “(...) têm ambos a mesma idade(...), porém são duas diferentes vidas, a
de Sete-Sóis trabalho e guerra(...) a de Bartolomeu Lourenço(...) de tanto estudo e
memória(...)” (Saramago, 1997: 62). A parte teleológica do desenvolvimento do
trabalho fica a cargo do padre, tido como o inventor da máquina, seu idealizador, a
parte objetiva do trabalho fica a cargo de Baltasar e Blimunda que, esta, devido ao
caráter supra real de suas capacidades, é tida como “o olho que tudo vê” e
responsável por recolher o combustível que fará voar a Passarola, as vontades
humanas.
Blimunda figura também como trabalhadora manual da Passarola e colabora
constantemente com o trabalho de Baltasar chegando muitas vezes a direcionar
como este se processará: “(...) enquanto o padre Bartolomeu Lourenço não chega,
construímos aqui a forja(...) vais a um ferreiro, vês como é feito, se à primeira não
sair bem, sairá a segunda, se não conseguires à segunda, conseguirás à
65
terceira(...)” (Ibid: 143). Este é um direcionamento do trabalho que nos é passado
como colaborativo e incentivador das potencialidades de Baltasar, não como ordem
que efetivamente devam ser seguidas.
Sendo a construção da Passarola também reprodutora da condição
estranhada do ser humano, como a classificamos como mais edificante da condição
humana? Isto se deve ao fato do trabalho que as três personagens empreendem
para sua elaboração ser desenvolvido de forma conjunta e sem ser um trabalho
contratado por outro, sem o produto final ser apropriado por outro. Desde o momento
que ela é idealizada até seu produto final ela é fruto da vontade deste grupo em vê-
la voar, uma vontade particionada, mas ainda assim uma vontade.
Ao longo da descrição da construção não percebemos na obra a menção ao
padre Bartolomeu realizar trabalhos manuais para sua edificação, assim como não
observamos Baltasar idealizar a sua elaboração, cada um preserva a sua
contribuição. Contudo esta é uma contribuição que parte de uma necessidade
escolhida pelo grupo. Esta é uma elaboração que não obedece diretamente à lógica
do capital de produção, mantém-se, a nosso ver, fora das relações de troca,
exploração da força de trabalho e do objetivo de gerar riquezas para outrem.
Não nos passa despercebido o fato de que para edificar a Passarola o grupo
recebe a proteção do rei, porém, claro para nós está o intento do rei de averiguar se
o padre conseguirá ou não objetivar o que idealizou. Esta construção é tida para ele
como um brinquedo novo, incomum que deseja ver pronto e não, à princípio, como
forma de angariar mais riquezas: “(...) de El-rei não falemos, que sendo tão moço
ainda gosta de brinquedos, por isso protege o padre(...)” (Ibid: 93). Na medida em
que este não chega a ver a Passarola pronta, nem tão pouco chega a lhe ser
participado que ela pode de fato voar entendemos que sua participação na
construção resumiu-se a proteção política ao padre e a ceder o espaço para sua
elaboração.
Ao processualizar seu trabalho na edificação da Passarola encontramos um
Baltasar que passa a reconhecer-se no que faz, apesar de este objeto não ter sido
teleologizado por ele. A princípio, quando é convidado a ser o construtor da
Passarola, ele duvida de sua capacidade: “eu não sei nada, sou um homem do
campo, mais do que isso só me ensinaram a matar, e assim como me acho, sem
esta mão(...)” (Ibid:68). Baltasar age como se o empreendimento fosse por demais
engenhoso para suas habilidades. Ao ter sua condição de maneta elevada,
66
comparada com a condição de Deus e, portanto, plenamente capaz de realizar
qualquer intento, ele sente-se confiante e impelido a dar tudo de si na elaboração da
máquina de voar: “(...) se Deus é maneta e fez o universo, este homem sem mão
pode atar a vela e o arame que hão de voar”. (Ibid:69).
Percebemos, na processualidade de seu trabalho na construção da
Passarola, que Baltasar torna-se um artífice engajado, conhecedor de todas as
etapas do processo de objetivação da produção a qual se dedica e que tinha em
sua arte a capacidade de dar vida ao invento engendrado pelo padre. Sua técnica,
seu manejo era tão importante quanto o conhecimento do inventor, o trabalho de um
sendo a complementação do outro, facetas de um mesmo processo.
A cada nova peça que objetivava Baltasar orgulhava-se do que fazia e de si
mesmo. Ao desenvolver o trabalho para construir a Passarola descobria suas
próprias potencialidades, crescia enquanto ser humano na efetivação de seu
trabalho. A materialização da Passarola era para si a representação, no real, de sua
capacidade enquanto ser humano.
Ao longo do enredo da obra, Baltasar Sete-Sóis torna-se uma personagem
elo entre a construção da Passarola e a do convento. Isto porque trabalha nas duas,
mas como assim? Ao finalizar o processo de construção da Passarola e tendo esta
comprido seu objetivo primeiro: voar, Baltasar, já em Mafra, vê a necessidade de sair
em busca de outros trabalhos que lhe possibilite manter suas necessidades de
subsistência e as de Blimunda. Com isso termina por procurar trabalho onde em
Mafra mais se está empregando pessoas: na obra do convento.
Nesta construção Baltasar é só mais um dos muitos trabalhadores que lá
estão conhecendo da obra apenas a mínima parte que lhe cabe no quebra-cabeça
do convento. Na obra da Passarola ele tinha noção do todo na objetivação do
trabalho, reconhecia-se em seu trabalho. Na obra do convento ele apenas conhece
a mecânica tarefa que tem a fazer continuamente e que é um grão de areia no todo
da edificação. Na construção da Passarola ele era um ser humano que buscava a
elevação de seu ser genérico ao buscar conhecer as reais possibilidades de suas
capacidades. Na edificação do convento ele torna-se mais um dos muitos
trabalhadores alienados, apenas cumprindo seu “dever” para a conclusão do produto
final para um dono, para aquele que se apropria de todo o trabalho empreendido, o
rei.
67
Ao procurar trabalho nas obras do convento sua realidade de ser humano
maneta vem à tona novamente, contudo, desta vez, não é ele quem duvida de si
mesmo, ao contrário, ele já têm ciência de sua capacidade. Como não tem maneiras
de provar que, tal como seu corpo se apresenta, ele fez uma máquina voar, se vê
passível da análise do outro, do empregador. Este mede suas capacidades
minimamente, sem creditar à um homem maneta a possibilidade de pleno
desenvolvimento de suas capacidades humanas.
O ser humano que foi capaz de, com seu trabalho, construir uma máquina
para voar agora terá sorte se conseguir provar que pode vir a tornar-se um dos
muitos trabalhadores responsáveis pelo trabalho de carregar materiais em carros de
mão. Trabalho este que não podem escolher como, quando e nem sob que
condições o irão desenvolver, haja vista estar sendo organizado por e para outro.
Um trabalho que o aliena a cada ação que objetiva, que lhe cansa as forças e nada
acrescenta a sua elevação como ser humano.
Diante de seus esforços para provar-se enquanto Ser capaz, Baltasar, mais
tarde, é promovido à boieiro: “durante muitos meses, Baltasar puxou e empurrou
carros de mão, até que um dia se achou cansado de ser mula de liteira(...) e, tendo
prestado públicas e boas provas perante oficiais do ofício, passou a andar com uma
junta de bois(...)” (Ibid:242). Com isso torna-se responsável pelo direcionamento de
um conjunto de animais no carregamento de materiais de um lugar para o outro.
Feliz pela nova conquista, a promoção, o reconhecimento de sua capacidade
na realidade de maneta em que se encontra, Baltasar não consegue perceber o
também caráter alienador deste novo trabalho. Ao contrário, vai para casa regozijado
pela nova posição que ocupa na divisão do trabalho que está posta: “quando nessa
noite chegou a casa, ia tão contente como quando, em garoto, descobrira o primeiro
ovo no ninho, quando homem estivera com a primeira mulher(...) e de madrugada
sonhou com os seus bois e a mão esquerda, nada lhe faltava(...)” (Ibid:243). O
orgulho pelas conquistas no reconhecimento de sua capacidade ludibria a
consciência de sua condição humana como um todo.
Não percebe que continuará executando o mesmo trabalho de “mula de
liteira”, contudo ao invés de usar como instrumento o carro de mão, passará a guiar
os bois. Continuará a levar e trazer o que lhe mandarem, daqui para ali, alienando-
se naquilo que, assim como na Passarola, deveria lhe angariar frutos mais
edificantes de si enquanto ser.
68
Os comandantes da construção decidem que a varanda do convento tem de
ter como piso uma única pedra de mármore, grande o suficiente para compor todo o
espaço. Com este intento, lá são enviados os boieiros e suas juntas de bois, entre
eles Baltasar, para buscar a descomunal pedra. Ao todo vão-se seiscentos homens
e conjuntos de bois na jornada, tendo como única garantia de retorno sua aptidão
física para o carregamento da pedra, sem saber o porque tem esta de ser única,
sem saber o porque suas vidas foram postas em jogo para o bom regalo de outros.
Nas vicissitudes do caminho chegam a temer que a força de seus músculos não
sejam o bastante para reter a pedra, temor este que o autor registra ao se questionar
sobre o “(...) que é realmente um homem quando só for a força que tiver, quando
mais não for que o medo de que lhe não chegue essa força(...)” (Ibid: 259).
Mas estas são outras histórias que nos comprometemos a contar em tempo
oportuno. Por ora nos contentemos com o até aqui exposto sobre esta peregrinação
em busca da pedra para a varanda do convento de El-rei, cientes de que ela
retornará a ser objeto de nossa análise.
Redirecionemos nosso olhar para a forma com que o autor busca dar vez a
estes seres humanos trabalhadores em sua obra. A forma com que nos aponta
como, mesmo sendo estes os mantenedores da sociedade com o desenvolvimento
de seu trabalho, ainda assim não são por ela reconhecidos e valorizados por seus
feitos. Mas, o porquê disso acontecer?
Vimos anteriormente como, na sociedade, o real aparece para os indivíduos
apresentado de forma invertida (FEUERBACH, 2007), ideologizada (CHAUÍ, 1984),
encobrindo o que alicerça o modo de produção desta, a exploração do trabalho do
outro. Sabemos que os exploradores deste trabalho não têm interesse em que os
explorados venham a ter ciência da importância de seu papel e o quanto dependem
deles.
Para isso buscam maneiras de mantê-los na constante luta por sua
sobrevivência, cada vez mais pobres, dependentes das condições que lhe são
impostas e doutrinados para acreditar que a forma com que os grupos se
apresentam na sociedade é legítima e “natural”. Esta é a real condição humana do
ser humano trabalhador nesta esfera social, uma condição de produtor sem ter
direito ao fruto do que produz. No lugar deste têm de se contentar com a mínima
parte que lhes é destinada, apenas para que mantenham-se não como são, mas
como estão.
69
Saramago discorre sobre como os humanos que verdadeiramente trabalham
na sociedade deveriam ter valorizado o trabalho que empreendem e minimamente
reconhecida sua importância. Em Memorial do Convento os grupos que submetem o
trabalhador à condição humana em que vivem são representados pelo clero, rei e
sua Corte. À medida que o trabalhador “carrega-os” sobre os ombros, sustentando
as “necessidades” destes, debilita a si mesmo, empobrece ao produzir cada vez
mais riqueza e ideologicamente mantém-se crente de que o mundo é para ser desta
forma mesmo.
Mas será esta a única alternativa para o ser humano trabalhador?
Na obra, à medida que retrata dos seres humanos trabalhadores, o autor
busca deixar registrado um nome de cada um, por letra do alfabeto, valorizando e
enaltecendo estes que vivem do trabalho e que por ele têm demarcada sua condição
humana na sociedade. Uma condição “(...) sobretudo se atribulada, principalmente
se miserável(...)” (Saramago, 1997:244) e que não encontra na história oficial
registros de seus feitos, pois esta está destinada aqueles que lhe exploram as forças
e a necessidade de manter-se sobrevivendo.
Com o desejo de vislumbrar saídas para esta ordem social instituída, seja no
enredo da obra, seja em nossa realidade concreta, há a necessidade de
recapitularmos alguns fatos para elencarmos outros. Diante do que estudamos até o
momento entendemos a especificidade da espécie humana, seu caráter genérico e
individual como partes indissociáveis de sua busca pela perpetuação da espécie.
Vimos que a característica do trabalho diferencia o ser humano das outras
espécies e que, ao desenvolver este, ele desenvolve também suas relações sociais,
edifica seu mundo social. Estudamos como no interior destas relações o ser humano
é passível de sofrer ou destituir o outro de identidade, negando-lhe sua condição
primeira, a de ser como si, e, como este fenômeno de estranhamento se materializa
e se generaliza nas relações sociais vigentes no modo de produção capitalista.
Vimos que, sob a ordem do modo de produção vigente e as relações sociais
em que a espécie se circunscreve atualmente, a transformação e reorganização do
real não busca atender plenamente as necessidades humanas genéricas e elevar a
consciência (individual e coletiva) da espécie. Ao contrário, são relações sociais
pautadas no uso da capacidade do ser humano para desenvolver processos de
trabalho que alavancam os interesses de determinados grupos sociais em busca
pela acumulação de um bem material que não está à serviço da humanidade como
70
um todo. Marx (2001) aponta que enquanto a sociedade viver sob tal égide não há
como haver o pleno desenvolvimento do ser humano, isto porque para que este
capital seja acumulado esta organização social faz uso da exploração do trabalho de
um ser humano por outro.
Sabemos que a divisão do trabalho e a apropriação da riqueza produzida são
alicerces do fenômeno do estranhamento no sistema capitalista. A exploração do
trabalho alheio em benefício daqueles que efetivamente não objetivam o trabalho é
para Marx (2009) um dos pontos chaves para entendermos as bases de sustentação
do sistema capitalista e o porquê do estranhamento resultante desta
processualidade ser tão danoso ao ser humano.
Com isso a generalidade humana torna-se incompleta, pois os indivíduos e as
relações que mantém são cindidas e por isso estranhadas, alienadas do devir da
espécie. Essa incompletude não consegue elevar a condição humana do ser
humano sob as determinações sociais de produção em que vive. Torna-se assim
uma condição humana fracionada, sem perspectivas de atender as necessidades
plenas de desenvolvimento da espécie.
No percurso até este momento de desenvolvimento do sistema capitalista
temos elementos concretos, elencados neste estudo, que nos permitem arguir
quanto a sua ineficácia para a complexidade humana de existência. Desta forma,
sendo ele um entrave para o salto ontológico da espécie, não há como ser mantido.
É preciso que a vontade humana o faça sucumbir e, de sua aniquilação, venhamos a
edificar uma nova organização social pautada na elevação plena da espécie.
Partindo destas premissas é que Marx (2001) vislumbra a necessidade de
superação da ordem social vigente, desta ordem social que deixa de privilegiar o ser
humano para acumular uma das criações humanas, o capital. Uma ordem social que
eleva a criatura (capital) acima de seu criador (o ser humano) e que por isso não
pode se perpetuar sob vistas de vir a sucumbir a generalidade humana. Marx deixa
como legado esta vislumbração e nos faz atentar para o fato de que a ordem social
capitalista é fruto das relações humanas como as demais que a precederam e, por
isso, passível de ser modificada para buscar atender de fato aos interesses de todo
o gênero humano.
Assim, o ser humano, que tem na totalidade capitalista sua condição humana
desumanizada, não reconhecida e nem tão pouco objeto primeiro da
processualidade do trabalho, necessita lançar-se na busca pela superação de tal
71
ordem a fim de reafirmar-se enquanto ser, tomar “a tarefa prática de mudar o rumo
da história no sentido desejado”. (Lessa, 1996:119). Isto porque a “generalidade
humana autêntica está(...) associada à superação do capital”. (Ibid:119). Enquanto a
exploração do trabalho for o motor que movimenta a sociedade humana esta não
será humana em sua plenitude, será apenas a negação de si mesma.
Para superar a ordem vigente é preciso que tenhamos claro que ela é fruto do
percurso histórico da humanidade e, tendo sido edificada por ela pode também vir a
ruir. A História é o percurso da existência da espécie humana. Por si só ela é
mutável, passível de alterações conforme o desejo e a necessidade do gênero.
Nada no mundo dos homens é “ineliminável”, sólido e permanente. O capitalismo,
enquanto organização social, faz parte da história vivida pelo humano, não é um
poder suprassumido que existe independente deste. Ele é enquanto vontade
humana e, como tal, passível da decisão do gênero de mantê-lo ou não.
Saramago (1997), sabendo desta necessidade, incute no enredo de Memorial
do Convento o conhecimento do poder da vontade humana. Para ele é a vontade do
ser humano que movimenta o mundo e “(...) onde couber uma, cabem milhões, o um
é igual ao infinito”. (Ibid:126). Para que bem entendamos a complexidade desta
afirmação e da vontade humana faz-se necessário que conheçamos o que a
vontade tem haver com a existência humana. Isto porque não há como buscar uma
superação da ordem social instituída sem mergulharmos numa compreensão mais
profunda do que é a existência humana. Compreendê-la para distingui-la de sua
face que temos materializada na realidade social, comparar a realidade alienada que
vivemos com a verdadeira realidade humana que buscamos.
O existencialismo concebe, em suas premissas, que o ser humano existe e
faz ele mesmo sua história. É ele o único responsável por seus atos e não atos. As
possibilidades existem, se serão experimentadas, vividas depende unicamente do
ser humano. Não há uma segurança numa figura supra terrena que coordena o
desenvolver do ser e que o mesmo possa responsabilizar caso falhe ético e
moralmente. Ele mesmo é quem faz-se e ao fazer-se define o destino de toda a
humanidade consigo. Estes são preceitos também apontados por Lessa (1996) ao
afirmar que as decisões e ações de um ser humano geram processos de
causalidade e efeitos que interferem no devir de toda a humanidade.
Saramago (1997) traz que a vontade é o que impulsiona os seres humanos a
buscar e trilhar os caminhos desejados. Sem a vontade de conhecer a realidade de
72
nada nos adiantaria possuir a capacidade de teleologizar sobre o real. Buscar a
superação desta condição humana estranhada sem ter noção do que seja o ser
humano, a processualidade de sua existência e o poder de sua vontade é reafirmar
a ordem que está posta.
Contudo a vontade humana sozinha nada pode se a condição de Ser do ser
humano continuar sob o julgo de relações sociais tão desumanas, tão passíveis de
negar a si mesmo enquanto espécie. É sob o julgo destas relações sociais que
vivem as personagens da obra Memorial do Convento. Para que esta ordem seja
superada os atributos humanos têm de ser (re)apropriados como um todo em busca
de sua emancipação. Mas, como? É no que nos lançamos a descobrir no próximo
capítulo.
73
4. A CONDIÇÃO HUMANA NA OBRA MEMORIAL DO CONVENTO
4.1 A dialética do Senhor e do Escravo
Até este ponto da redação buscamos concatenar nossos estudos da seguinte
forma: primeiramente nos preocupamos em apresentar um breve panorama da obra
Memorial do Convento, para que entendêssemos um pouco de seu enredo. Após
esta explanação atentamos para a necessidade de situarmos a obra em seu
contexto histórico35. Concluídos os alicerces que sustentam esta primeira análise
partimos para o entendimento da visão do autor Saramago (1997) ao buscar
escrever uma obra sobre seu país Portugal circunscrito nestas relações sociais de
produção descritas.
De posse deste material analisamos o conceito de ser humano e sua
sociabilidade para entender se as relações sociais que processavam-se no Portugal
da época atendiam a complexidade da generalidade humana. Ao correlacionarmos
um estudo com o outro percebemos que a direção tomada pelas relações sociais em
vigor não atendiam às necessidades complexas de nossa espécie, isto por não as
ter verdadeiramente como foco36.
Ao manter-nos entre os limites de nossos objetivos, buscamos analisar como
esta condição se traduz na processualidade da vida do ser humano trabalhador, em
específico, daquele descrito na obra Memorial do Convento. Dando segmento a esta
análise sentimos a necessidade de entender o que sustenta estas relações sociais,
para que assim desnudemos os condicionantes que submetem ou não o ser humano
a estas relações.
É neste contexto de busca que se insere este capítulo: entender o que faz o
ser humano trabalhador manter-se nesta processualidade de vida. Uma existência
submetida às determinações do outro ser humano que não trabalha, mas se
apropria de tudo o que é resultado de seu trabalho37.
35
Para isso conhecemos um pouco sobre as relações sociais de produção e, em específico, como estas se processavam no cenário português da época do livro. 36
Ao contrário do que deveriam, estas são relações sociais que privilegiam o objeto (capital) e não o sujeito (espécie). Com isso o ser humano (trabalhador e não trabalhador), que deveria buscar seu pleno desenvolvimento e o da espécie, utiliza suas energias para gerar um objeto/capital indiferente e estranho a si. 37
Para este entendimento elegemos como norteador de nossas inferências os estudos de HEGEL (1992), em específico o capítulo da obra Fenomenologia do espírito, independência e dependência da consciência-de-si: dominação e escravidão.
74
Neste ponto da análise, faz-se necessário esclarecermos nossa intenção ao
abrirmos precedente para os estudos de um autor tão idealista quanto Hegel em
nossa abordagem materialista marxiana da obra Memorial do Convento. A princípio
pode parecer uma contradição, como se água e óleo não se misturassem. No
entanto, devemos ter em mente que, uma vez sendo estas duas substâncias
líquidas, alguma propriedade em comum devem ter. Assim também analisamos a
produção intelectual de Hegel em face da obra de Marx: apesar de partirem de
pontos de vistas diferentes (um abstratamente, o outro fincado no concreto, como se
deve ser) possuem algo em comum.
Nos propósitos deste texto, a interseção entre os estudos de ambos os
autores, deve-se fundamentalmente aquela que se traduz na compreensão do
porque uma consciência se subjuga à outra. Paralelamente a esta subjugação, a
importância do caráter formativo do trabalho para aquela que serve a quem lhe
domina. Deste modo, esclarecimentos feitos, continuemos nossa jornada.
É do capítulo da dialética da dominação, na obra hegeliana, que deriva o título
escolhido para nosso texto e também o porquê de mantermos a nomeação de
dialética38. Conhecedores da densidade de tal proposta buscamos apoio em
diferentes autores que também procuraram entender a significação de tal
empreendimento e que iremos denominando em momentos oportunos.
Ao buscarmos entender o conceito de ser humano estudamos um pouco da
visão de Lukàcs e Marx sobre este ser cognoscente39. Ao elevar a compreensão que
possuía da realidade o ser humano eleva também o conhecimento que tinha de si
mesmo e a dialeticidade deste processo o impulsiona numa busca cada vez mais
complexa pelo conhecimento de si e do seu entorno.
A cada nova experiência, neste processo, o ser humano imagina conhecer a
verdade (em si) do que vivencia, contudo ao confrontar esta verdade com uma
reflexão crítica, ele se questiona se nesta verdade se encerra realmente todo o
saber. Surge então uma possível negação da verdade perceptível e imaginada e a
dúvida entre a verdade e a suposta (in)verdade impulsiona a consciência humana a
uma nova busca, ou seja, buscar os fundamentos do saber.
38
Isto por acreditarmos que este conceito é o que melhor traduz o ir e vir em busca de conhecer o todo, ou seja, a verdade em si até que se depare com a inverdade em si mesma e recomece todo o processo. 39
Tivemos o cuidado de pontuar os detalhes da visão destes autores do que seja consciência, como abstrata e concretamente ela busca se desenvolver na tentativa de conhecer o que lhe é exterior.
75
Desta forma é que também a consciência passa a se auto conhecer,
desenvolvendo-se num processo de busca constante pelo saber no saber, elevando
a si mesma. Sua forma de primeiro conhecer parte do que HEGEL (1992) denomina
de certeza sensível40. Esta é uma experiência sensorial e que nos é fundamental na
busca pelo entendimento do real, contudo, se todo o conhecimento da realidade (e
de nós mesmos) se resumisse a esta percepção empírica, este nos bastaria, seria
para nós o todo41.
Para que nos aproximemos do conhecer é necessário que esta certeza
sensível (Hegel, 1992), percepção do concreto (Lessa, 1996) seja pela nossa
consciência abstraída e exteriorizada, novamente abstraída e exteriorizada
sucessivamente. Com isso, ao entendimento do real, que era unicamente empírico,
soma-se a capacidade abstrativa e exteriorizadora da consciência42.
Nesta processualidade tudo o que “aparece” à consciência é um fenômeno,
algo que lhe surge e necessita ser abstraído e exteriorizado para ser conhecido. Até
mesmo a reflexão sobre si lhe é um fenômeno, pois este é seu processo de
autoconhecimento, sua necessidade de conhecer a si mesma.
Contudo, diferentemente do real que “lhe salta aos olhos”, a consciência não
consegue ver a si mesma pelo sensorial que possui. Desta forma, como então ela
poderá experienciar a si mesma para abstrair dialeticamente o que conhece de si?
Para que venha a de fato conhecer-se a consciência precisa aparecer para si
mesma. É na lógica desta necessidade que lhe surge o outro, um ser dotado de
também consciência, que lhe será ‘útil’ como uma ponte entre si e o que precisa ‘ver’
de si. Para esta sua ‘materialização’ no outro a consciência precisa sair de si, fazer-
se presente na outra destituindo-a de identidade, para que lhe seja apenas si.
Este perder-se caracteriza-se pela exteriorização de si num outro. Ao sair de
si permite-se deixar de ser uma plenitude encerrada em si mesma para aventurar se
encontrar no outro. Sendo o outro uma consciência também plena e dialeticamente
40
Aquele conhecimento que chega a nós pelo que sentimos da realidade. 41
Faz-se necessário lembrar que para Lukàcs, como expresso por Lessa (1996), esta percepção primeira do concreto não dá conta de explicar o real em sua totalidade. PEIRCE (2005), ao tratar da moderna semiótica, nos revela que nossa evolução adaptativa permitiu-nos aperfeiçoar nossos sentidos para perceber da realidade aquilo que era essencial para assegurar nossa sobrevivência e perpetuar a espécie. Isto não significa que esta percepção seja uma transmutação fiel do real, mas uma forma de captar dele o que nos permite permanecer nele. 42
Uma consciência que era de si apenas conhecedora do que “lhe aparecia” torna-se capaz de transmutar este conhecimento em um saber que faça sentido para si enquanto Ser em busca do saber real.
76
desenvolvedora do mesmo processo abre assim o precedente para que a outra
consciência se encontre em si e ambas se percam ao encontrarem-se no outro43.
Configura-se então entre as duas consciências a necessidade de “(...)
suprassumir a outra essência independente, para assim vir-a-ser a certeza de si
como essência”. (Hegel, 1992:126). Ao mesmo tempo em que são independentes
(enquanto encerradas em si mesmas) são dependentes uma da outra para “verem” a
si mesmas e passarem a ter a certeza do que sejam.
Ao ver na outra a si mesma refletida, a consciência pode ampliar o que sabe
sobre si, pois si lhe aparece, se torna passível de também ser abstraída para ser
exteriorizada. Por isso é que seu saber do outro será um saber a partir de si mesma.
Necessita negar a identidade dele para “enxergar” a si mesma enquanto consciência
exteriorizada, passível de ser perceptível e assim impulsionar o processo de auto
conhecer-se.
Então, a consciência consegue, através do outro, ver a si e “enxergar” a
verdade de si. Contudo, não lhe basta ter esta certeza, haja vista ela ainda não
poder ser considerada Verdade, pois é apenas uma certeza de si para si.
Para que esta sua certeza seja-lhe considerada Verdade há a necessidade
de que ela seja confirmada pela outra consciência de si44. Com essa nova
necessidade a consciência então percebe a importância de retornar a si, de se “(...)
suprassumir do seu ser-Outro(...) e deixa o Outro livre, de novo”. (Hegel, 1992:126).
Isso porque somente a outra sendo de novo consciência independente é que
poderia vir a lhe confirmar como Verdade.
Esse processo de retorno a si é um agir de uma consciência em busca de ser
(re) afirmada, reconhecida enquanto tal pela outra. Um agir de uma que é ao mesmo
tempo, seu agir e o da outra, haja vista a outra ser também independente “(...)
encerrada em si mesma, nada [havendo] nela que não seja mediante ela mesma”.
(Ibid:127). [Acréscimo nosso].
Só foi possível a uma consciência negar a outra (se perder nela aparecendo a
si mesma) por esta outra lhe permitir, no passo em que fazia o mesmo consigo. “O
43
Lembremos que, de acordo com Hegel, estamos diante de duas consciências independentes, donas de si mesmas e que esta destituição de sua identidade só pode lhe acontecer como algo permitido por si, algo concedido justamente por dialeticamente necessitar da mesma permissão. 44
Aquela consciência independente a quem negou, aquela a quem destituiu de identidade e só vê o que é de si.
77
movimento é assim, pura e simplesmente, o duplo movimento das duas
consciências-de-si”. (ibid:127). Cada uma fazendo em si o que exige da outra.
Estando agora as duas livres novamente é que uma consciência-de-si lança-
se para a outra em busca de que esta lhe (re) afirme enquanto Verdade de si. Por
isso é que Hegel descreve ser a “(...) consciência-de-si em si e para si quando e
porque é em si e para si para uma Outra”. (Ibid:126). Ou seja, ela só existe de fato
enquanto Verdade se existir na e para a outra.
Este processo de (re) afirmação o autor denomina de necessidade de
reconhecimento, a consciência só saber de fato que é por estar sendo afirmada em
seu Ser pela outra consciência-de-si. Ver-se refletida na outra, passando a ter uma
certeza sobre si mesma, passível de (in)certeza que lhe entusiasma a ampliar o que
conhece de si enquanto consciência não lhe basta, é empírico demais. Para que
esta certeza seja-lhe ciência de fato, é preciso que outra essência humana a
reconheça como tal, “(...) pois, o que deve acontecer, só pode efetuar-se através de
ambas as consciências”(Ibid:127) para que venha de fato a ser considerado saber
humano.
Esse reconhecimento Hegel nos apresenta como o resultado de um jogo de
forças entre as duas consciências. Cada consciência vindo para fora de si45,
contudo, mantendo-se firmemente em si46, em busca de ser para-si47. O resultado
desta busca ela alcança no ato de se suprassumir no outro. “Cada extremo é para o
outro o meio termo, mediante o qual é consigo mesmo mediatizado e concluído”
(Ibid:127), ou seja, cada consciência-de-si é para a outra a forma de alcançar a si
mesma e desta forma se “(...) reconhecem como reconhecendo-se reciprocamente”.
(Ibid:127).
Ora, mas se este reconhecimento entre as consciências-de-si é recíproco, o
porque então estamos buscando entender a verticalidade deste entre uma e outra,
tal como expressa na dialética do senhor e do escravo?
Acontece que, mesmo afirmando que o reconhecimento para ser completo
deve ser recíproco, Hegel delineia que, no estágio inicial de seu processo, este se
dá pela via da “(...) desigualdade entre ambas [as consciências-de-si](...)”. (Ibid:127).
45
Quando se projeta na outra. 46
Está na outra, mas é unicamente si mesma. 47
Conhecer a si mesma no outro.
78
Como se a estas, opostas que são uma a outra, só interessasse a si mesmas e nada
mais.
Sendo a singularidade objeto primeiro do processo de reconhecimento, por
esta via, não há como uma consciência-de-si reconhecer plenamente a outra, pois o
Eu (neste momento) é mais importante que o Nós. Cada consciência quando
confrontada com a outra atenta apenas para si nesta relação e assim, “o que é Outro
para ela, está como objeto inessencial, marcado com o sinal do negativo”. (Ibid:128).
Neste primeiro momento, reconhecer a plenitude da outra consciência, e de si
mesma neste reconhecimento, não é objeto de interesse da consciência-de-si, daí a
outra tornar-se negativa para si.
Elas estão se “vendo” pela primeira vez e, tanto para uma como para a outra,
elas não são, em parte, uma extensão de si mesmas, mas objetos unicamente
independentes. “São consciências que ainda não levaram a cabo(...) o movimento
da abstração absoluta(...)”. (Ibid:128). Este movimento permite que ambas as
consciências ultrapassem esta “primeira impressão” que têm uma da outra. Mas, no
momento, o que vale para cada uma é a certeza que tem de si, somente si, e, com
isso, “(...) sua própria certeza de si não tem verdade nenhuma(...)” (Ibid:128) já que é
apenas verdade encerrada em si mesma.
Para que esta verdade viesse a se transmutar em absoluta seria necessário
que “(...) seu próprio ser-para-si lhe fosse apresentado como objeto
independente(...)”. (Ibid:128). Ou seja, sem necessitar se projetar no outro para ter
“(...) certeza de si mesmo” (Ibid:128), Fosse, desde o princípio, Ser-para-si.
Como isso não ocorre neste primeiro momento entre as consciências-de-si
elas não conseguem desfazer-se da certeza que têm de si mesmas e abstrair
completamente o seu ser mostrando-se “(...) como pura negação de sua maneira de
ser objetiva(...)” (Ibid:128). Negar a si mesma, neste caso, seria negar o que
conhece (ou o que passou a conhecer) de si, negar aquilo que foi-lhe posto pela
certeza sensível para que, desta forma, abstraísse o seu vir-a-ser-outro, no
movimento da abstração absoluta, sem interferências do imediatismo proporcionado-
lhe pelo sensorial.
Encerradas que estão na certeza que têm de si lançam-se para a outra como
se esta lhe fosse estranha, independente, desejando-lhe a morte e, para isso,
arriscando a própria vida neste intento. “Devem travar esta luta, porque precisam
elevar à verdade, no Outro e nelas mesmas, sua certeza de ser-para-si”. (Ibid:128).
79
Certeza esta que ainda não lhes é verdade completa por ser reconhecida apenas
por si. Através desta luta e, por conseguinte, na vitória que almeja, conseguirá que
outra consciência lhe reconheça como vê a si e, assim, alcançará a liberdade do
imediatismo determinado pela certeza que suprassumiu no ser-Outro.
Nesta luta de morte KOJÈVE (2002) afirma ser cada consciência puro desejo.
Desejo de vir de fato a ser para-si, constituir a sua realidade sob a realidade que
está posta, elevando este desejo à categoria de desejo propriamente consciente,
desejo constitutivo de sua realidade humana.
São duas consciências-de-si independentes em busca pelo reconhecimento
por parte da outra para que o que acredita que é venha de fato a ser-para-si
verdade. Cada uma vê na outra a possibilidade de afirmar-se e inicialmente ambas
não medem esforços para alcançar tal intento. Kojève (2002) afirma que se ambas
continuarem lutando com tal afinco o resultado da luta não será positivo para
nenhuma delas, mas por quê?
Uma vez que lutam por reconhecimento há a necessidade de haver um
vencedor (para ser reconhecido) e um vencido (para reconhecer). Se ambas
continuarem lutando até a morte teríamos como prováveis resultados uma delas vir a
morrer e, com sua morte, não reconhecer a outra como vencedora ou ambas
morrerem e desta luta nada de humano se solidificar, pois já não há consciências
humanas para serem objetivadas.
Desta forma, é que percebendo o fim a que se destina a luta, lançar-se à
morte já não interessa a uma das duas consciências e, assim, ela opta pela vida,
pela manutenção do que percebe ser-lhe mais precioso. Com esta decisão
evidencia-se na luta um vencedor48 e um vencido, a que abdicou da luta para
preservar a si.
A consciência que venceu é declarada pela outra como vencedora, é
reconhecida em sua vitória. Desta forma, “(...) mediante essa experiência se põem
uma pura consciência-de-si, e uma consciência que não é puramente para si, mas
para um outro(...)”. (Hegel, 1992:130). Assim, nesta primeira forma de
relacionamento entre as duas consciências-de-si, uma se torna “(...) a consciência
independente(...) outra a consciência dependente(...) uma é o senhor, outra é o
escravo”. (Ibid:130).
48
Aquela consciência que lutou até o fim, mantendo sua tenaz vontade de sacrificar-se até as últimas conseqüências.
80
A consciência que optou por viver é quem passa a reconhecer sua oponente
como vencedora, como a que tudo arriscou pela necessidade de ser reconhecida
como tal. A consciência ganhadora da luta, para ter seu desejo objetivado, suprime o
desejo da que venceu e, com o fim da luta, passa a torna-se a senhora e a outra sua
escrava. Esta, uma vez tendo, temerosamente, sucumbido diante de sua oponente,
vê na que se torna senhora a constante ameaça à segurança de sua vida e por isso
subjuga-se a ela justamente por este temor.
O ser humano dotado da consciência que venceu a luta torna-se o senhor-de-
si para-si, torna-se humanizado de fato e tem no ser humano que foi vencido o
escravo que passará a intermediar a realização de seus desejos e necessidades. “O
senhor é a consciência para si essente(...) uma consciência para si(...)
mediatizada(...) por meio de uma outra consciência(...)” (Ibdi:130). Ele torna-se um
ser que, tendo consciência-de-si, busca tudo para-si, busca sua satisfação plena,
mas esta só lhe chega a partir de outro, é uma satisfação intermediada.
Para ter esta plenitude ou ao menos o que considera plenitude, o senhor
consciência-de-si para si, senhor do escravo e, por meio deste, da natureza, passa a
ser o dominante, pois tudo sucumbe à sua vontade. “O senhor é a potência que está
por cima desse ser(...) é a potência que está sobre o Outro; logo, o senhor tem esse
Outro por baixo de si: este é o silogismo [da dominação]”. (Ibid:130). Esta sua
plenitude só lhe é oportunizada por ter naquele que tornou-se seu escravo o
reconhecimento de que é.
Contudo, este reconhecimento parte apenas do escravo para seu senhor. Não
é um reconhecimento mútuo, visto que, para o senhor, uma vez o escravo tendo
desistido da luta para preservar sua vida, este optou por algo que permanece no
domínio do natural. Esta opção do escravo, aos olhos do senhor, não o dignifica
plenamente como ser humano, pois que este, ao invés de buscar elevar-se da
determinidade do real, mantém-se justamente nela. Deste modo, para o senhor, o
escravo não é digno de ser também reconhecido.
Com isso, o senhor equipara o escravo a um ser natural, um ser não
merecedor de ser reconhecido, um ser como a processualidade de ser do animal,
coisa como tudo o mais que lhe aparece e que ele domina. Assim, a relação do
senhor para com o escravo torna-se verticalizada e nesta processualidade da
desigualdade é que a primeira passa a exercer plena autonomia sobre tudo à sua
volta. Ele é, e, por ser, pode tudo.
81
O escravo por sua vez, ao reconhecer no outro seu senhor, dedica a vida que
lutou para preservar para atender a quem lhe domina. Torna-se uma consciência-de-
si que não age de acordo com seus desejos e necessidades, mas com os de outro,
vive na dependência deste outro, vive para este. Sua sujeição é completa, seja pelo
medo que tem por sua vida, seja por reconhecer o poder do senhor, seja por passar
a realizar apenas o que for de vontade deste.
Um é diametralmente o oposto do outro, o que no senhor vimos como a
personificação plena da autonomia, neste (escravo) vemos a completa sujeição, a
heteronomia materializada no seu ser dependente. Enquanto aquele tem o mundo a
seus pés, este tem o mesmo mundo sob sua cabeça e envolto em seu pescoço o
cordão sufocante do medo.
A condição de submissão que é imposta ao escravo, iniciada abstratamente49
pelo receio que tem do senhor, se completa ao ser este obrigado a moldar, a tratar o
natural para adequá-lo às necessidades de seu senhor. O escravo cumpre esta
tarefa que lhe é imposta transformando o natural naquilo que é desejado pelo
senhor, aquilo que satisfará seu dominador. A forma que encontra para realizar este
intento é através do trabalho, mediando com este a relação do senhor com a
natureza e consigo mesmo.
Ao moldar o natural e transformá-lo em coisas humanas o escravo encontra
no que objetiva um pouco de si, já que a objetivação deste é a materialização de sua
consciência50. O senhor, que tudo pode, não trabalha, acredita não necessitar, já
que possui outro que tudo executa sob seus ditames. No entanto, a condição de não
trabalhador lhe é proporcionada por ter no trabalho exercido pelo escravo a
satisfação de seus desejos e necessidades. Sem a mediação deste ele nada teria,
pois nada sabe fazer.
O senhor relaciona-se com seu escravo de forma desigual, reconhecendo-se
e sendo reconhecido como superior a ele. Para o senhor o escravo é tal coisa como
aquelas a que manda elaborar para seu deleite. No entanto, esta é uma relação de
incompletude, um ciclo que não se fecha, pois o senhor não reconhece aquele que
lhe trás reconhecimento. Para que este de fato se efetive “(...) falta o momento em
49
Inicia-se abstratamente, contudo, advém de uma situação concreta, ou seja, parte da luta travada entre ambas
as consciências. 50
Mesmo que uma materialização imposta, sem ser para si, mas para o outro.
82
que o senhor opera sobre o outro o que o outro opera sobre si mesmo(...)” (Ibid:131).
É uma relação de mão única, sem trocas equiparadoras, vamos ver o por que?
Ao não reconhecer o escravo como ser digno de também possuir seu
reconhecimento, o senhor quebra a cadeia do reconhecimento. Com isso, a luta que
fora travada inicialmente para lhe trazer a plena satisfação de seu desejo neste
reconhecimento não se completa, torna-se cindida e como tal não pode satisfazê-lo
completamente. Na relação que impõe ao escravo só pode ver-se senhor, pois ao
contrário, se também reconhecesse o escravo como humano como si, não haveria
superioridade de um para com o outro.
Na certeza em que sua verdade se encerra não há lugar para nenhum outro
além dele, não há lugar para nenhum outro tipo de reconhecimento além deste que
se preconiza na dominação que impõe ao escravo. Sua realidade de senhor torna-se
uma realidade insatisfeita, incompleta e busca compensá-la na constante
degradação que impõe ao escravo e ao seu mundo.
Acontece que este escravo, que o senhor vê como não digno de seu
reconhecer, é o mesmo que lhe afirma enquanto consciência-de-si para-si. “A
consciência inessencial é, nesse reconhecimento, para o senhor o objeto que
constitui a verdade da certeza de si mesmo”. (Ibid:131). O senhor, independente que
é, se realiza através de um ser que lhe é dependente. Cria-se para ele um impasse,
pois “(...) não está certo do ser-para-si como verdade(...)” (Ibid:131), não está mais
certo, pois quem lhe (re) afirma como essa verdade de si é uma consciência, que
para ele, está abaixo de si.
Todo o esforço que o senhor empreendeu na luta de morte não alcança assim
seu intento primeiro, satisfazê-lo plenamente na promoção do ápice do
reconhecimento de si. Regozijado com seu reinado percebe sua permanência na
incompletude, mas, encerrado que está em sua posição de dominante, não
consegue mais ver a si sem esta condição e, desta forma, não pode mudar, torna-
se assim um insatisfeito conservador de sua própria insatisfação.
Para a retomada do curso do reconhecimento é necessário que outra
consciência-de-si destitua o senhor do patamar em que se encontra e, desta forma,
o reconhecimento, que no momento encontra-se cindido, passe a ter nova
possibilidade de se efetivar como necessário é. Ora, mas se o senhor não tem
pretensão alguma de deixar de ser senhor e se a outra consciência-de-si que existe
é seu escravo, como o reconhecimento absoluto poderá se efetivar?
83
De acordo com Hegel (1992), estando o senhor encerrado em si mesmo,
incapaz de dar ao reconhecimento o curso necessário, só há uma forma de este vir a
proceder, pela via do escravo. Este “(...) sentiu a angústia(...) através de sua
essência toda, pois sentiu o medo da morte(...) ai se dissolveu interiormente, em
si(...) tremeu em sua totalidade; e tudo que havia de fixo(...) vacilou”. (Ibid:132). O
escravo é uma consciência-de-si que ainda não se reconhece para-si e que, durante
a luta de morte, conheceu a angústia de perder a vida e, por esta angústia, abalou
todas as estruturas de seu ser descobrindo a necessidade de mudar para manter o
que prezava.
Ao negar a si mesmo enquanto consciência-de-si e transformar-se numa
consciência-de-si para outro, o escravo se transmutou e com este ato,
inconscientemente, passou a conhecer a mutabilidade da existência humana como
uma capacidade adaptativa. Ele é “(...) o fluidificar-se absoluto de todo o
subsistir(...)” (Ibid:132). Ele tornou-se escravo não por um querer, mas por uma
necessidade, esta que não é para si permanente, haja vista não a ter desejado
desde o princípio, mas uma necessidade transitória, passível de mudança em busca
de que a consciência alcance o fim desejado.
Na transitoriedade de sua condição de independente para escravo51,
inicialmente, ele não se reconhece como ser essente, mas sim ao outro que lhe
subjuga. “(...) para a consciência escrava, o senhor é a essência(...) a verdade(...)”.
(Ibid:132). Para ele a essência da realidade humana se encerra na figura do senhor,
não enxerga ainda a si como capaz de fazer-se essência pela mudança.
Neste estágio em que se encontra não crê em si mesmo enquanto “(...) puro
ser para-si(...)” (Ibid:132), não crê que através do serviço que implementa para seu
senhor pode vir a suprassumir este seu ser dependente. “Servindo, suprassume em
todos os momentos sua aderência ao ser-aí-natural; e, trabalhando-o; o elimina”.
(Ibid:132). Na mediação que faz entre o senhor e o natural o escravo passa a ter, no
desenvolvimento do trabalho (imposto) que realiza, a possibilidade de alcançar sua
elevação e, por conseguinte, sua satisfação.
Ao moldar o natural criando algo, não para si, mas para seu senhor, o escravo
retém em si o desejo de Ter em favor do desejo de ter do outro. Esta retenção faz
51
Lembremos que até travar a luta de morte ele era uma consciência independente e, após a luta, tornou-se
dependente.
84
com que não venha a buscar a satisfação de si por algo que consome, mas que
canalize seu desejo para a construção deste algo consumível pelo outro.
Assim, o escravo tem no processo de desenvolvimento do trabalho, que
empreende para outro, a satisfação de ver “aparecer” para si sua consciência-de-si
objetivada no que produz. Enquanto o senhor reconhece a si na subjugação que
impõe ao outro, o escravo passa a reconhecer a si naquilo que elabora.
O reconhecimento do senhor é linear, constante no medo que o escravo tem
de perder a vida. O reconhecimento de si do escravo, ao contrário, é potencializador,
pois vai elevando-se à medida que descobre novas e melhores formas de
desenvolver seu trabalho, transformando a si mesmo neste processo.
Na relação do senhor e do escravo somente aquele que teve a capacidade de
mudar uma vez, de consciência-de-si (independente) para consciência em função de
outro (dependente) é que pode vir a conseguir tal proeza novamente, pois já
conhece o caminho. O senhor não precisou mudar em momento algum da relação,
permanece no estágio estático de si buscando apenas sua manutenção. O escravo
é quem tem interesse em equilibrar a relação, deixando a condição que assumiu
para si de submisso e que lhe assegurou a permanência da vida. Ao escravo
interessa a retomada da liberdade que um dia teve, somente ele sabe o valor que
ela tem, pois somente ele, nesta relação, a perdeu e pela reconquista dela
conseguirá novamente alterar toda a estrutura de seu ser.
Esta nova mudança de sua consciência lhe assegura a condição de
autonomia plena. Esta sua autonomia é mais edificante que a do senhor, pois ela é
fruto da sujeição, do medo que teve de perder a vida, do encontrar-se a si pelo
trabalho que desenvolve para outro. Ela é uma autonomia plena, pois não precisa
aparecer num outro para existir, ela é fruto da “(...) transformação(...) puramente
subjetiva, revelada só a ele, muda, não se comunicando aos outros.” (Kojève,
2002:30). Essa transformação é totalmente abstrata e choca-se com o mundo
concreto em que se objetiva, pois uma consciência que tende a se reconhecer como
autônoma não pode permanecer como escrava.
Sabemos então que o escravo irá transcender de sua condição de submissão
a de ser independente, mas como de fato esta transcendência se materializará?
Kojève (2002), ao buscar interpretar estas afirmações de Hegel chega ao
entendimento que o escravo alcançará a transcendência de sua condição de
submissão nos fatores que o elegeram como escravo e o mantém na servidão. O
85
primeiro deles reside no fato de, na experiência da luta de morte, ter experienciado a
angústia que é vir a perder sua existência e, por essa angústia, transformou-se de
consciência autônoma em servil.
Por essa angústia alterou todo o seu ser, mudou e somente ele, nesta relação
entre consciências, pode vir a fazê-lo novamente, pois tem em sua existência a
capacidade de transformar-se, a capacidade de negar o que é em busca de outro vir
a ser. “Por um lado, ele não se identifica com o que é; quer transcender-se por
negação de seu estado dado. Por outro, tem um ideal positivo a atingir: o ideal da
autonomia, do Ser-para-si, que ele encontra na própria origem de sua sujeição(...)”
(Kojève, 2002:25). O escravo encerra em si o que foi (consciência livre), o que é
(consciência servil) e o que quer vir a ser (consciência autônoma plena). Esta é a
condição primeira para que venha a se suprassumir, ou seja, transcender a si
mesmo.
Na realidade de submissão que vive para seu senhor o escravo encontra o
segundo fator que alavancará sua transcendência de escravo, a sua transformação
pelo trabalho que empreende para o outro. Este trabalho tem a característica de
educá-lo, moldá-lo pouco a pouco, transformar em si “(...) sua ligação com a
existência natural(...)” (Ibid: 26). Mas, como assim?
Vimos que o escravo, por apegar-se à vida, mantém-se na esfera do natural,
do orgânico. Por isso o senhor o iguala a um animal, a uma coisa. Esse apego ao
natural vai-se modificando na medida em que necessita moldá-lo para o consumo de
seu senhor. No ato de transformação do natural o escravo molda, ao mesmo passo,
o natural que nele existe.
Não é uma eliminação (deixar de ser), mas uma transformação (modificar o
que é). Se fosse uma eliminação a consciência escrava tornar-se-ia algo que
também não reconheceria, seria uma consciência completamente nova, iniciada na
eliminação e, portanto, nascida da eliminação. Ao transformar o que é a consciência
escrava mantém em si a consciência que foi e consegue, na modificação que fez de
si, o elemento para continuar sendo ao passo em que buscou dar novos rumos a
este ser, como se mudasse os caminhos que trilha.
Hegel especifica os estágios seguidos pelo escravo para (re)encontrar a si
mesmo. Para o autor, o medo que o escravo sente de seu senhor, o serviço
empreendido para este e o fazer a si pelo trabalho que objetiva para o deleite do
outro são os pilares, que juntos, e ao mesmo tempo, transformam dialeticamente o
86
ser do escravo. Desta forma é que “(...) a consciência, mediante esse reencontrar-
se de si mesma, vem-a-ser sentido próprio”. (Hegel, 1992:133). Tendo estes pilares
como sustentáculos a consciência escrava eleva-se e se reencontra como
independente, mas não como o ser que era antes e durante a luta que travou, mas
um novo ser independente, um ser que tem de fato consciência-de-si para-si.
De escravo do natural ele se torna seu senhor, pois no trabalho obrigado que
realiza aprende e apreende como sucumbir o natural a si, libertando-se não só da
natureza como de si mesmo e, com isso, de seu senhor.
“O futuro e a História não pertencem portanto ao senhor guerreiro, que ou
morre ou se mantém indefinidamente identificado consigo, mas pertencem ao
escravo trabalhador”. (Kojève, 2002:26). Pelo trabalho o escravo supera sua própria
condição de submisso de um senhor que não trabalha e, por não trabalhar, é quem
verdadeiramente depende de si.
Estudamos até o momento a análise hegeliana sobre a dialética da
dominação. Através dela, pudemos delinear o que, na ótica do autor, sustenta a
relação verticalizada e desigual entre aquele que é reconhecido como senhor e o
que necessita se subjugar a este como escravo. O que necessitamos agora, e
vamos fazer, é entender o que esta dialética do senhor e do escravo tem haver com
nossos estudos sobre o ser humano na obra Memorial do Convento.
87
4.2 A dialética do Senhor e do Escravo na obra memorial do Convento
Na obra Memorial do Convento a dialética da dominação, tal como descrita
por Hegel (1992), se materializa nas relações sociais (e) de produção, que alicerçam
a formação social portuguesa no século XVIII. Estudamos anteriormente o que são
estas relações e como elas se processam no seio do modo de produção vigente no
país. Chegamos à conclusão que estas são relações calcadas no modo de produção
capitalista, ao qual só interessa o acúmulo de riquezas.
Tivemos a oportunidade de explicitar, na análise empreendida, que, neste
sistema, os grupos sociais, independente das camadas estratificadoras de cada um,
subdividem-se basicamente entre capitalistas e trabalhadores52. O que não vimos
naquele momento foi que esta subdivisão corresponde à mesma subdivisão
característica da dominação de um ser humano sobre o outro ser humano, ou como
Hegel preferiu especificar, entre a dominação de uma consciência-de-si sobre a
outra.
Correlacionando a dialética da dominação com o enredo de Memorial do
Convento percebemos que na relação entre dominador e dominado o rei D. João V
figura como o senhor e os diferentes trabalhadores como seus escravos.
Lembremos que Hegel ao descrever a dialética o fez expondo-nos a luta de morte
entre uma consciência e outra, expondo-nos a relação entre um senhor e um
escravo.
Ao fazermos a correlação do que estudamos com a obra saramaguiana em si
não podemos tomar a figura do rei como único senhor. No enredo do livro ele nos
aparece como senhor entre os senhores, aquele que em Portugal exerce o maior
domínio, contudo não sendo o único. Mas, o que desejamos com esta explicitação?
Simples, queremos retomar o que escrevemos anteriormente sobre o rei, sua Corte
e o clero. Estes, no contexto da obra, configuram-se como representantes do grupo
senhorial, aqueles que, sendo senhores na formação social portuguesa, tudo
almejam, tudo podem exigir dos que não são.
Esta dominação de uns grupos sobre os outros é concreta, parte do real, se
objetiva nas relações socialmente desenvolvidas. No entanto, é uma dominação
52
No momento, a relação mútua entre a dialética da dominação e as relações desiguais entre capitalistas e trabalhadores atendem aos propósitos deste texto. O que não significa que estamos isentos de estudos futuros que nos permitam explicitar e analisar melhor o porquê de nossa inferência e correspondência entre os termos.
88
concreta que se justifica abstratamente. Mas, como assim? O que desejamos dizer
com isso?
Ao estudarmos as relações sociais de produção de Portugal, na referida
época, vimos que estas, além de terem como lastro o modo de produção capitalista,
politicamente se justificam pelo modo absolutista do Estado, que por sua vez faz uso
da estrutura ideológica para se firmar enquanto tal. Assim, o rei, senhor entre os
senhores, é aquele que “foi escolhido por Deus” para lhe representar socialmente e,
por isso, exercer domínio absoluto.
Pode parecer redundante o que apregoaremos nas linhas a seguir, no
entanto, há momentos em que faz-se necessário reafirmarmos determinados
conceitos para que eles de fato reverberem em sua totalidade. Assim é que,
analisando a sociedade a entendemos como formada por indivíduos humanos e,
desta forma, suas apresentações e representações sociais concretas só podem ser
instituídas humanamente. Com isso desejamos enfatizar que acreditamos, assim
como SARTRE (1987), não haver um ser externo a estas relações que escolha algo
para a humanidade, ou seja, o que está posto socialmente advém das relações de
um ser humano para com o outro.
Ser o rei o escolhido para representar a sociedade como ser supremo foi uma
escolha humana, concreta, mas que “aparece” para os demais indivíduos como não
concreta porque “(...) estabelece Deus como um ser anteposto(...)” (FEUERBACH,
2007:40) ao ser humano. Coloca-se para a transcendência a explicação do porque
da dominação e, com isso, “Deus”, enquanto ser “(...) não-humano, não determinado
materialmente(...) ser transcendente(...) intocável(...)” (Ibid:40) passa a justificar o
que socialmente foi posto: a dominação de um ser humano pelo outro.
São relações que se produzem no real e que fazem uso de discursos
ideológicos para se reproduzirem continuamente nestas mesmas relações e nas que
delas advirem. Desta forma, é que o que parte do concreto (do real), socialmente
instituído, materializa-se para o indivíduo social como algo superior a si (supra-real)
e, portanto, não mais proveniente das relações sociais, mais instituído “sabiamente”
por uma “consciência” divina que supra-domina a todos.
Com base nesta leitura da dominação que está instituída é que entendemos o
que Saramago nos apresenta ao longo do enredo. Em diferentes momentos explicita
como os representantes do clero, fazendo uso de sermões ideológicos, doutrinam o
ser humano trabalhador a fazer o que concretamente é exigido dele: empreender
89
sua força de trabalho moldando o mundo natural para seu senhor. Através do uso
contínuo destes sermões ideológicos os senhores portugueses justificam ao ser
humano trabalhador a dominação que exercem. Com isso preservam a única forma
de ser que conhecem: a de senhor de escravos e, a favor desta preservação, todos
os meios são válidos para mascarar a realidade posta.
Assim, é que lemos, em diferentes passagens da obra, a importância do papel
do clero nesta dialética da dominação em Portugal. A cada desejo de seus senhores
que necessita ser empreendido pelos trabalhadores, aqueles buscam, não só
justificar, como também mostrar a estes a “necessidade” de tudo ser mantido como
está. Semeia-se assim a mascaração da dominação que materializa-se no plano
concreto da vida do ser humano.
Necessitando de mais trabalhadores em Mafra, as missas (em diferentes
cidades) passam a ter o papel de convocá-los para, de “vontade própria”, seguirem
para a cidade. Ideologicamente estes sermões mostram que construindo na terra o
convento franciscano, objeto atual do desejo de seus senhores, o ser humano
trabalhador alcançará sua recompensa no céu. No plano concreto, quando muito,
ele alcançará apenas a manutenção de sua sobrevivência para continuar
trabalhando à espera do regojizo supraterrestre.
Entenderemos como a dialética da dominação se materializa nas relações
sociais portuguesas deste período histórico no que será descrito a seguir: “(...) eu se
vim para Mafra foi porque o vigário da minha freguesia apregoava nas igrejas que
quem viesse passava a ser criado de el-rei, isto dizia ele, não sofrem privações de
boca e andam com as carnes tapadas, ainda melhor que no paraíso(...)” (Saramago,
1997:238). Tornando-se criado de el-rei na construção desejada por este, o ser
humano trabalhador poderia vir a conseguir aquilo que lhe asseguraria a
manutenção da vida: alimento e vestimenta para proteção do corpo.
O que ele não percebe é que independente de ir de “vontade própria” ou não
edificar o convento, ele é um criado a serviço do rei, sua condição de contínua
necessidade da manutenção de suas necessidades básicas é um indicativo disto. O
trabalho que realiza não lhe trás o retorno suficiente para que despreocupe-se desta
condição, ao contrário, mantém-no justamente nesta situação para que possa vir a
se submeter novamente.
Por isto é que Saramago faz com que a mesma personagem desconstrua o
que foi-lhe dito pelo vigário, “(...) saiu-me tudo mentira, do paraíso não falo(...), mas
90
de Mafra sim, se não consigo morrer de fome é porque gasto tudo quanto ganho,
roto ando como andava, e, quanto a ser criado de el-rei, ainda espero não morrer
sem ver a cara de meu amo(...)”. (Ibid:238). Estando em Mafra, ao trabalhador cabe
formar o objeto do desejo do senhor e, por este trabalho empreendido, receber
minimamente para que continue sua tarefa e permaneça nas mesmas condições de
dantes. Esta é uma situação de vida que o obriga a sucumbir-se novamente à
realidade posta, mantendo-o na circularidade da condição humana precária em que
vive. Ser criado do rei aqui é trabalhar para seus senhores e nada mais.
A depender da situação posta ou necessidade senhorial o clero manipula
ideologicamente o ser humano trabalhador para alcançar os fins pretendidos por seu
grupo social. O que não pode passar à nossa percepção é a importância da
pregação clerical como “(...) excelente mestra de argumentação(...)” (Ibid:164) que,
através da capacidade de “(...) expor, contrapor e concluir(...)” (Ibid:134) direciona a
massa trabalhadora aos intentos dos senhores. Havendo oportunidade,
retornaremos a estas pregações para melhor exemplificá-las, não havendo fica aqui
o indicativo de onde podem encontrá-las na obra para assim arguí-las por si mesmos
(Ibid:264/265/303/321).
O ser humano trabalhador acredita que pela via do maior emprego de sua
força de trabalho conseguirá alcançar melhores possibilidades de vida. Com isso,
submete-se a todo e qualquer mando dos senhores construtores do convento de
Mafra e, desta forma, coloca-se numa situação de subjugação cada vez maior às
ordens do senhor.
Por outro lado, encontramos aqui o ponto central em que a dialética da
dominação se realiza. O trabalhador, mesmo empreendendo sua força de trabalho
para outrem, não o faz apenas porque o dizem que é para fazer. Ao contrário, o faz
buscando justamente no trabalho desenvolvido o elemento que, na relação de
dominação socialmente instituída, trará a melhora às suas condições de vida.
Ao ser convocado pelos senhores (sejam eles o rei ou outro a seu mando)
para ir à Mafra trabalhar no convento o trabalhador vai, não pela força da
convocação em si, mas pela alternativa que ela lhe apresenta de vir a transcender
às condições de vida que lhe foram (im)postas. O trabalhador, consciente disto ou
não, busca constantemente desvencilhar-se das amarras sociais as quais encontra-
se subjugado.
91
O rei D. João V, por seu próprio mando e desejo, não consegue fazer com
que os trabalhadores desenvolvam o trabalho para si. É preciso que ofereça algo em
troca e, circunscritamente no modo de produção em que se encontram, este algo é o
valor pago pelo trabalho desenvolvido. Valor este que o trabalhador intenciona usar
como impulsionador de sua melhora de vida.
Sabendo deste intento do trabalhador, o que o senhor faz? Articula maneiras
para que este valor, que será recebido pelo trabalhador, mantenha-o apenas dando
voltas em torno da própria luta pela sobrevivência. Assim é que a destinação do
valor recebido mal dá para cobrir as necessidades básicas de alimentação,
segurança e vestimenta deste que o recebe.
Empreendendo seu trabalho, recebendo um valor por ele e mesmo assim não
avançando no alcance da qualidade de sua vida, o que faz o trabalhador? Velado
que está pela dominação, não percebe que a causa de seu infortúnio encontra-se
verdadeiramente na própria dominação. Não vendo a dominação de uns sobre os
outros como ela verdadeiramente é: causadora de toda a desigualdade na qual
encontra-se mergulhado, o trabalhador só encontra uma saída, acreditar que ainda
não subjugou sua força de trabalho o bastante para receber suficientemente por ela.
Com isso, o trabalhador sujeita-se ainda mais aos mandos do rei. Sujeição
esta não porque ele É o senhor e nada mais, mas sim por reconhecer que, nas
terras portuguesas, em seu contexto histórico, este (ou o que este possui) é o
passaporte para que alcance o objeto de sua (s) necessidade (s). Novamente
retornamos aqui ao desejo. Nesta relação entre rei/trabalhadores (senhores e
escravos) tudo é desejo: o do senhor em manter o trabalhador como está para fazer
o que lhe convier, o do trabalhador em buscar pelo trabalho que executa o meio para
a realização de si.
HEGEL (1992), ao descrever o desejo na dialética da dominação, delineia que
o senhor é puro desejo e o escravo é o retrato da supressão de seus desejos em
prol do senhor. Contudo, nossa leitura, fincada no concreto, na visão marxiana desta
relação, não pode contentar-se com esta máxima hegeliana. Para nós, na obra
Memorial do Convento, o contínuo objetivo do trabalhador de melhorar as condições
de sua vida (dentre os condicionantes sociais lhe imposto) é o que o sustenta e o
move a continuar empreendendo o trabalho para o rei e seus demais senhores.
Nesta lógica, o alcance deste objetivo é seu máximo desejo, um desejo que
92
perseguirá constantemente, que na busca pela sua objetivação chega a exaurir sua
própria força.
A partir deste pensamento é que retornamos ao esforço empreendido por
muitos trabalhadores, cerca de seiscentos, no transporte da descomunal pedra que
serviria como piso da varanda do convento franciscano. Subjugando-se as ordens
do senhor, mas tendo como objetivo a superação de sua condição socialmente
instituída, os trabalhadores vão buscar a pedra. Vão andando, descalços, sujeitos as
intempéries e qualquer outra sorte, dando tudo de si e do fruto de seu trabalho para
trazê-la e voltam com ela carregada.
Ao chegarem com a pedra em Mafra, “quando entram no terreiro, foi como se
estivessem chegando duma guerra perdida, sujos, esfarrapados, sem riquezas.
Toda a gente se admirava com o tamanho desmedido da pedra, Tão grande. Mas
Baltasar murmurou, olhando a basílica, Tão pequena”. (Ibid:266). Tanto trabalho,
tanto esforço das vidas humanas para cumprir com o solicitado e, no entanto, em
nada este intento contribuiu para a elevação destes seres humanos trabalhadores.
Continuam da mesma forma que foram, sendo, no entanto, mais pobres ao
chegarem, por que será?
Estes trabalhadores, que buscavam através do trabalho empreendido a
superação das dificuldades materiais em que viviam, não encontram no valor/objeto
recebido a compensação pela soma de força despendida, nem tão pouco nele a
possibilidade de melhoria. O esforço que realizaram pode até valer o almejado por
ele, contudo, as relações sociais dominadoras em que vivem não pagam por este
esforço o que ele realmente vale.
Estas são relações sociais alicerçadas na verticalização entre os que nela
vivem e, para sua contínua reprodução, não pode permitir que os trabalhadores
tenham mais do que o pouco lhes “dado”. Assim é que todo o esforço que fizeram
para trazer a pedra pouco lhes dá de retorno e, desta forma, o que é grande torna-se
pequeno aos olhos dos seres humanos trabalhadores. Mesmo grandiosa, a
construção do convento os mantém na processualidade da necessidade de
lançarem-se novamente a outras submissões em busca de seu objetivo (melhorar de
vida nas condições postas).
Havendo na formação social portuguesa um grupo senhorial, os integrantes
destes lutam entre si em busca de serem reconhecidos como senhores entre os
senhores. Daí a importância da hierarquia, a diferenciação entre ser príncipe ou
93
menor fidalgo expressa diretamente pelo título que recebem. Por outro lado estes
tornam-se também dependentes daquele que é pra si o senhor entre os senhores, o
rei D. João V. Em sua relação imediata com o ser humano trabalhador, um infante
ou bispo é o senhor, contudo na relação que estes desenvolvem com o rei, todos
passam a ser consciências dependentes dele e, portanto, escravos que vivem para
satisfazer a si.
Sendo o senhor entre os governantes D. João jubila-se em seu reinado. Para
ele não há possibilidade de existência de outra realidade que não seja esta e, para
defendê-la lança-se em guerra contra tudo e todos que coloquem-se em seu
caminho. Assim é que encontramos na obra Memorial do Convento o estado de
guerra entre Portugal e Espanha, por exemplo, em defesa dos interesses do senhor,
deste ou daquele país, em defesa da única forma de existência que conhecem e que
fugazmente lhes satisfaz: serem dominantes.
Por isso é que, a bel prazer, o rei declara guerra ou paz entre seu país e as
demais nações. Hoje guerreia-se contra a Espanha, amanhã pacifica-se com a
mesma casando seus filhos entre si para salvaguardar os interesses de cada
senhor: acordos comerciais entre reis, entre senhores, em busca de atender os
interesses de cada um. Que importa se sua única filha, D. Maria Bárbara, tornando-
se princesa espanhola, iria embora para outra terra? Que lhe importa saber se
realmente D. José, seu filho, deseja casar com a estranha que está sendo-lhe
apresentada? Lembremos que para ter seus desejos realizados o senhor suprime os
desejos de outros e com isso alcança a satisfação no que quer.
Em busca desta satisfação ao rei pouco importa os sentimentos da rainha,
irmãos ou filhos em relação a si e o que deseja. Em comparação a seus desejos os
dos outros torna-se nada e, a depender de suas necessidades, e em nome do que é
melhor para o reino, ou seja, para si, ele os manipula como bem entende. A rainha
cumpre para ele o papel daquela que lhe garantirá a descendência real, a ela não
cabe questionar suas traições conjugais por entre os conventos portugueses, pois
estas são buscas pela satisfação de seus desejos como senhor e, como tal, não há
limites matrimoniais.
Vemos aqui a dialética da dominação materializar-se também nas relações de
gênero. Entre o homem e a mulher, na processualidade das relações sociais em
Portugal, independente de estarem se materializando entre rei e rainha, o que
verbera é a verticalização entre aquele que se comporta como senhor e aquela que
94
é relegada à posição de sua escrava. Toda e qualquer intencionalidade da rainha
deve girar em torno de seu sol, o rei, seu senhor.
Contudo, não nos enganemos com esta aparente submissão plena dela para
com seu esposo. Uma vez estando, no plano concreto, impedida de ousar desejar o
que não é lhe permitido por seu senhor esta encontra na transcendência (lhe
permitida pelos sonhos) a possibilidade de pensar numa vida conjugal diferente da
que tem com o rei. Assim é que constantemente, consciente ou não, sonha com uma
relação mais íntima com o infante D. Francisco e estes sonhos somente cessam
quando percebe que este senhor não é muito diferente daquele com quem se casou.
Esta dominação entre as relações de gênero perpassam toda a estratificação
social portuguesa na obra Memorial do Convento. Como exceção à regra surge-nos
apenas a relação entre Baltasar Sete-Sóis e Blimunda Sete-Luas, mas que aqui não
procuraremos nos alongar na tentativa de não perder o fio condutor do estudo.
Analisando outros elos da sociedade portuguesa não devemos perder de vista
que esta, assim como as demais, se calca no modo de produção capitalista que, por
sua vez, têm por base a desigualdade. Este modo de produção tem por elemento
fundante a dominação de um ser humano por outro e, com isso, para a reprodução
deste, há a necessidade de que a mesma perpasse toda e qualquer relação social,
independente de ser ela entre os que se intitulam senhores ou não. Isto faz com que
um senhor concorra diretamente com o outro na busca por manter seu poder.
Desta forma é que encontraremos na obra Memorial do Convento diferentes
passagens em que um senhor também subjuga-se a outro que reconheça ter mais
poder que si. Mesmo desejando assumir o lugar de seu irmão no trono o infante D.
Francisco sabe da necessidade de manter-se sob o julgo do rei, seu senhor. No fim,
é tão escravo deste quanto o ser humano trabalhador que vive para o mesmo.
Em sua relação com o rei, ele é mediato para este, no entanto, em sua
relação com o trabalhador, assume a postura de senhor e faz sobre este o que o rei
faz sobre si, como descrito neste trecho da obra: “levantemos agora os nossos
próprios olhos, que é tempo de ver o infante D. Francisco a espingardear, da janela
do seu palácio, à beirinha do Tejo, os marinheiros que estão empoleirados nas
vergas dos barcos, só para provar a boa pontaria que tem(...)”. (Saramago,
1997:83). No contexto que se apresenta D. Francisco é um príncipe nesta terra,
figurando como um dos senhores de tudo que nela existe e de todos que nela
95
habitam. Este, como bom representante senhorial, busca a efêmera satisfação de
seus desejos, não importando quais sejam, afinal ele tudo pode.
Em sua posição de dominante têm aqueles que o servem e trabalham para si,
e seu reino, como meros meios para alcançar sua satisfação e, desta forma, vê a
estes, objetos que para si são, como essências coisidadas, seres-coisa que “pode”
dispor como bem entender. Tendo em sua mente o outro por esta definição não há
nada mais natural do que ter como passatempo atirar com espingarda em
marinheiros nos barcos a certa distancia de sua morada, estes que para ele são
meros alvos num jogo de acertos.
Ele se alegra pelo que pratica e regojiza-se quando acerta alguém-objeto.
Para ele é só um desejo satisfeito e nada mais, somente uma forma de provar-se
como senhor e atirador certeiro que é. Por isso é que “(...) quando acerta e eles vão
parar no convés, sangrando todos, um que outro morto, e se a bala errou não se
livram de um braço partido, dá o infante palmas de irreprimível júbilo(...)”. (Ibid:83).
Vejamos agora a postura dos criados que ao infante servem e que com ele se
encontram neste espaço escolhido para a prática de seu esporte: “(...) enquanto os
criados lhe carregam outra vez as armas, bem pode acontecer que este criado seja
irmão daquele marinheiro, mas a esta distancia nem sequer a voz do sangue é
possível ouvir, outro tiro, outro grito e queda(...)”. (Ibid:83). Para estes nem mesmo a
possibilidade daqueles lhes serem seus familiares é capaz de causar qualquer
alteração em sua postura de servidor.
Isto porque na relação que se estabelece, ele é o criado, serviçal à disposição
dos mandos de seu senhor (tanto quanto aqueles que nos barcos se encontram).
Sua postura tem de corresponder à postura de D. Francisco, uma postura que
reafirma o que ali acontece como normal e direito de seu senhor praticar. O que sua
consciência como criado “(...) faz é justamente o agir do senhor, para o qual
somente é o ser-para-si, a essência;”. (HEGEL, 1992:131). Sendo o senhor a
essência, tudo o que provier de seus atos é tomado pelo criado como positivo,
natural de acontecer, mesmo que este ato “natural” atente contra seus próprios
entes.
Ainda nesta ação praticada por D. Francisco temos mais duas posturas de
outras personagens passíveis de serem por nós analisadas nesta relação de
domínio do senhor para com seus súditos. Uma delas é a postura dos próprios
marinheiros que, vendo seus companheiros caindo a seu lado continuam
96
trabalhando sem imporem-se à situação. Esta postura assemelha-se a dos criados
pessoais do infante, a postura de uma consciência à total serviço de seu senhor.
Contudo aqui há um elemento a mais que necessita por nós ser explorado: a
questão de o infante estar atentando contra a vida, o bem mais importante para
estes que no momento são seus alvos na busca por satisfação.
A nosso entender, mesmo tendo estes a necessidade de preservação de seu
bem maior (ou o que acreditam ser), a vida, ainda assim mantém-se sob a linha de
fogo, pois lhes foi ordenado que o fizesse, que continuassem trabalhando como se
nada estivesse acontecendo. Materializa-se assim na consciência do ser humano
trabalhador a contradição entre a manutenção da vida e a submissão. A forma que
este encontra para resolvê-la é apostando que consigo nada acontecerá. Apega-se
desta forma a esta certeza para resolver a contradição interna (seu desejo de
proteção) e externa (subjugar-se a ordem posta pelo senhor) que se lhe apresenta e,
assim, torna-se passível de ser o próximo a ser atingido ou não na roleta russa do
tiro ao alvo.
Temos ainda neste contexto descrito por Saramago a necessidade de atentar
para o posicionamento do contramestre, aquele que está a organizar e ditar como
devem proceder aos marinheiros. O autor salienta que este “(...) não se atreve a
mandar descer os marujos para não irritar sua alteza e porque, apesar das baixas, a
manobra tem de ser feita(...)”. (Saramago, 1997:83). Este, vendo os mesmos sendo
alvejados, não tem interesse em se indispor com o príncipe e ordena que continuem
trabalhando.
Ordena a continuidade do trabalho como se suas vidas não estivessem em
risco, pois o que estão empreendendo, aos olhos do senhor, é mais importante que
estas. A atitude do contramestre denota bem o pouco valor que dá àqueles que
consigo trabalham. Esta é uma forma de ver o outro pela ótica da consciência
senhorial, aqui sendo reproduzida na consciência daquele que é um trabalhador
tanto quanto os que estão consigo. Em sua posição de ordenador do trabalho alheio
o contramestre não percebe que reproduz a forma estranhada de tratar seu
semelhante, atitude típica descrita por (FREIRE, 1994:05) ao delinear a “(...) verdade
do opressor resid[indo] na consciência do oprimido”. [Acréscimo nosso]. Consciente
ou não o contramestre age como se a consciência do dominador estivesse no
dominado dominando os outros dominados.
97
Redirecionando nosso olhar aos objetivos da classe senhorial é importante
rememorarmos sobre o que vimos na dialética da dominação em relação à
satisfação do (s) desejo (s). A luta que o senhor travou em busca de reconhecimento
é a objetivação de um desejo, o de ser reconhecido. Tendo vencido e alcançado seu
intento este percebe que o desejo satisfeito não lhe trás satisfação plena e em
busca desta lança-se em busca de novas satisfações de desejos.
Desta forma, a satisfação do desejo é a mola mestra que impulsiona o senhor
a buscar manter sua posição de dominante na relação com o outro. Assim também
acontece em Memorial do Convento, assim também, o rei e demais senhores dos
grupos sociais dominantes, em sua relação com aqueles, que por “necessidade”,
para si trabalham, buscam, no consumo daquilo produzido por seus súditos, a
satisfação de seus desejos mais desejados. A voracidade com que consomem
traduz o tamanho de suas vaidades, pois tudo se resume em “(...) desejar, ter é
vaidade”. (Ibid:291). Ter aparece aqui como vaidade de ser quem é.
Tendo seus desejos plenamente atendidos, nada havendo sob a terra
portuguesa e do fruto do trabalho dos portugueses que não esteja à sua disposição,
o rei se vê num impasse sobre o que fazer com tudo o que possui. Sendo assim,
“medita(...) no que fará à tão grandes somas de dinheiro, a tão extrema riqueza, medita hoje e ontem meditou, e sempre conclui que a alma há-de-ser a primeira consideração, por todos os meios devemos preservá-la sobretudo quando a podem consolar os confortos da terra e do corpo”. (Saramago, 1997:230).
Estando ele usufruindo de tudo o que concretamente pode ter direciona seus
objetivos e riqueza para aquilo que abstratamente acredita necessitar resguardar, os
cuidados com o espírito. Lembremos que estamos entre terras portuguesas, lugar de
muita fé, que frutifica em preocupação com a transcendência e, aos olhos dos
senhores, quanto mais materializarem esta “preocupação” no real melhor para a
cimentarem os seus poderes perante o outro.
Esta preocupação do rei em resguardar os cuidados com o espírito não se dá
de forma como verdadeiramente direcionam os preceitos da religião que diz seguir.
É uma preocupação consigo mesmo, com o desejo de ter reconhecido, naqueles
que domina, a ideia de que está mais próximo que eles da transcendência.
Enquanto dominador incute no imaginário dos dominados que as ações que pratica
“em nome” da transcendência são ‘verdadeiramente’ para ela.
98
Desta forma, em busca de reafirmar o seu poder enquanto rei, é que a
construção do convento de Mafra (que surgiu como uma simples promessa de erição
de um lugar específico para os frades franciscanos) toma contornos cada vez mais
dispendiosos e elevados. O planejamento inicial da construção altera-se diversas
vezes, sendo que a cada mudança busca-se com a ampliação, os gastos e
acréscimos de adornos enaltecer a grandiosidade Do rei face aos desígnios da
religião.
Este passa a regojizar-se em ter para-si a verdade de que és magnânimo por
angariar o reconhecimento de seu poder ao “construir” tamanha obra. Este
reconhecimento não parte apenas dos cidadãos portugueses, mas de todos aqueles
que enaltecem a grandiosidade da construção e, com isso, daquele a quem ela
pertence. Esta sua demonstração de poder necessita ser reconhecida por todas as
esferas em que seu poder alcança.
Assim é o rei consegue do papa o título de fidelíssimo, assim é que sua Corte
acompanha-o em todas as situações em que publicamente necessite reafirmar-se
enquanto tal, o senhor dos senhores, assim como de todo o resto. O reconhecimento
de si como potência máxima no real conhecido, que também adviria da conclusão do
convento em Mafra, é o suficiente para que o rei gaste tudo o que tem e está por vir
na obra. Em busca deste reconhecimento nada pode transpor-se entre si e a
realização de seu desejo.
Neste ponto do estudo cabe analisar, “quanto pode um rei”? (Ibid:295). Ao
perceber que corria o risco de vir a falecer e não ter ele próprio inaugurado a obra
magna de Portugal, D. João busca formas de apressar a construção. Desta forma,
el-rei ordena “(...)que a todos os corregedores do reino se mande que reúnam e
enviem para Mafra quantos operários se encontrarem nas suas jurisdições(...) ainda
que por violência(...) e que sob nenhum pretexto os deixem ficar(...) porque nada
está acima da vontade real(...)”. (Ibid:293). Contra estas ordens reais não há
justificativa que não obrigue os trabalhadores portugueses de serem levados,
mesmo à força, ao canteiro da obra.
Deste modo, “(...) os homens, que nunca viram o rei, os homens que o rei
nunca viu, os homens, mesmo não o querendo vêm, entre soldados e quadrilheiros,
soltos se são de ânimo pacífico(...) atados(...) se rebeldes(...) e(...) em Lisboa sua
majestade espera que cada um cumpra seu dever”. (Ibid:296). Servidores que são
de sua majestade lhes cabem apenas empreender o que é de desejo de seu senhor,
99
não se reconhecessem como seres dignos de recusar sua ordem e, por isso têm a
obrigação de seguirem as decisões do mesmo.
A esta peregrinação dos trabalhadores para Mafra coincide a época do
casamento dos príncipes portugueses com os da Espanha. D. João V, sua Corte e
representantes do clero seguem para os limites entre um país e outro para selar a
aliança entre os senhores destes casando seus filhos entre si.
Da janela de sua carruagem a princesa portuguesa, D. Maria Bárbara, vê
passar diferentes grupos de homens, amarrados uns aos outros, sendo guiados por
soldados como escravos. Intrigada com o que pode estar acontecendo ela chama
um de seus guardas e manda averiguar o que se passa.
A esta contextualização da descrição feita pelo autor na obra inferimos que
este desejo em saber o porquê destes homens estarem amarrados denota que a
princesa, enquanto senhora, reconhecesse nestes que vão amarrados algo que os
iguala a si, mas como assim? Neste momento a princesa vê aqueles homens não
como trabalhadores, mas como seres humanos e, nesta qualidade, não passíveis do
tratamento que estão recebendo, a menos que haja alguma explicação plausível
para tal ato.
Há, de alguma forma, o reconhecimento por parte dela de que eles não são
meras peças num tabuleiro. Inferimos que, a depender da resposta que seu guarda
traria, ela intencionava interceder pelos grupos de seres humanos.
No entanto, com o retorno de seu guarda e a resposta que este lhe dá faz
com que a princesa perca pelos grupos de seres humanos atados todo o interesse.
Mas, por quê? Ao saber que se trata de trabalhadores, sendo forçadamente sendo
transportados (sob ordens do senhor rei, seu pai) para trabalharem nas obras do
convento a princesa desiste de qualquer ação que possivelmente teria.
Isto porque passa a figurar como dominante no imaginário da princesa a
verticalização de posições que ela e os trabalhadores ocupam na formação social
em que foi criada. Ao saber que são trabalhadores estes passam a não serem
‘merecedores’ de sua atenção e, portanto, não dignos de interesse. Lembremos que
para ela, enquanto representante da classe senhorial, os trabalhadores são meras
coisas que utilizam para a obtenção de seus desejos.
Com isso, vai-se a princesa despreocupadamente para seu casamento.
Ficam-se, na condição em que se encontram, todos aqueles que por ventura sejam
considerados aptos a trabalharem na edificação do convento. Fica-se suspensa,
100
nesta relação desigual entre senhores e escravos, a igualdade que poderia haver se
ambos fossem considerados, de fato, senhores de si e merecedores de
reconhecimento mútuo.
Até o momento abordamos a dialética da dominação, na obra Memorial do
Convento, analisando as questões de gênero, os grupos sociais e como as relações
entre dominador e dominados permeavam o andamento da construção do convento
em Mafra. Cabe a nós agora vislumbrar se esta dialética da dominação se aplica ou
não às relações sociais alicerçadoras da outra construção descrita na obra, à da
Passarola.
Escrevemos anteriormente que a Passarola foi o nome dado a uma máquina
de voar arquitetada pelo padre Bartolomeu Lourenço e construída por Baltasar Sete-
Sóis e Blimunda Sete-Luas. Naquele momento da escrita, evidenciamos que esta
era uma construção que sintetizava o sonho e a vontade de edificar, transgredindo
as condições impostas e os ditames sociais da época53. Cientes de que, no decorrer
do desenvolvimento deste texto, muitas certezas tornaram-se passíveis de novas
inquietações é que nos propomos a apresentar, nas linhas que se seguem, nossa
interpretação da construção da Passarola por outros comparativos ângulos.
O primeiro destes ângulos refere-se à relação existente entre os construtores
da máquina de voar e as relações sociais dominantes no Portugal setecentista. O
segundo ângulo refere-se ao caráter real e ficcional que Saramago cruza para
descrever os meios de produção, que possibilitaram à Passarola lançar vôo. Por
último, abordaremos nossas próprias certezas iniciais, descritas acima, sobre a
Passarola em contra ou justaposição à dialética hegeliana.
Já sabemos que as relações sociais que vigoravam em Portugal no século
XVIII eram aquelas alicerçadas no modo de produção capitalista. Sua base
fundamental é a desigualdade entre os indivíduos e grupos sociais, daí o
analisarmos a partir da dialética da dominação entre senhor e escravo. O que
desejamos pontuar agora é se a sociabilidade que permeava as relações entre os
construtores da Passarola seguia este modelo social dominante ou não.
A princípio, Saramago apresenta-nos a construção da Passarola como objeto
de desejo apenas do padre Bartolomeu Lourenço. Esta apresentação se faz a partir
da própria fala atribuída a este personagem: “o homem primeiro tropeça, depois
53 Para maiores esclarecimentos recorrer à página 13 deste trabalho.
101
anda, depois corre, um dia voará(...)”. (Saramago, 1997:63). Esta afirmação denota
seu interesse pela busca da forma de como “dar asas” ao ser humano, ou seja, de
como encontrar uma maneira deste voar. A elaboração da Passarola é fruto da
vontade do padre em fazê-la existir e, ao mesmo tempo, de seu esforço na busca
por conhecimentos que lhe permita materializá-la. Neste princípio o padre é para
nós, se esta possibilidade for possível, o senhor e o escravo de si mesmo.
Senhor no sentido de que o desejo é seu, parte de si para si mesmo. Não há,
a nosso ver, em momento algum, explícito na obra, a intenção do padre em edificar
a Passarola senão pelo desejo de provar a si mesmo, o desejo de ser reconhecido
como inventor de algo que na historiografia humana ainda não se tinha
conhecimento. Para ele, “(...) voar é sair da terra para o ar, onde não há chão que
nos ampare os pés, Faremos como as aves, que tanto estão no céu como pousam
na terra(...)”. (Ibid:64/65). Deseja a Passarola por acreditar ser possível ao ser
humano voar, assim como as aves e fará tudo que estiver a seu alcance para
materializar este desejo.
Seu desejo, desde já, foge as características do modo de produção da época,
em que um objeto é pensado/produzido para ser trocado por outro objeto ou algo
que lhe seja intermediário (dinheiro/moeda). Se há neste desejo intenção de troca
ela se dá mais no campo da subjetividade, ou seja, no reconhecimento que teria dos
outros, do que na forma padrão de troca, ou seja, intercâmbio de objetos. Em seu
trabalho solitário de busca pela forma de objetivar este desejo o analisamos também
como escravo de si mesmo. Mas, como assim?
O desejo do padre pela máquina de voar parte de uma percepção concreta da
realidade, ou seja, de sua análise do vôo das aves. A partir desta percepção ele
elaborará planos, engendrará ideias que permitam-lhe adequar este vôo, percebido,
ao ser humano. Ao transpor estes planos para o papel, dar forma à ideia abstraída,
ou seja, ao objetivar a ideia através de desenhos geométricos e cálculos
matemáticos ele realiza trabalho54.
Acontece que, de acordo com a dialética hegeliana, o senhor, enquanto tal,
deseja, mas, utiliza outro como intermediador entre o desejo e sua objetivação.
Neste momento da fomentação da máquina de voar, o padre figura para si mesmo
54
Para estudos mais aprofundados sobre este aspecto da percepção, ler: LESSA, Sérgio. A Ontologia de Lukàcs. Maceió: EDUFAL, 1996.
102
como este outro, como escravo de si mesmo, pois “(...) compreendi (...) que eu
deveria perseverar contra a minha própria ignorância, sem ajudas(...)”. (Saramago,
1997:65). Levemos em consideração que em seu tempo histórico a ideia de uma
máquina de voar não era creditada como possível de existir, assim, seus estudos
sendo divulgados poderiam lhe render sérios problemas com as forças repressoras
da época. Sua única alternativa então é realizar ele mesmo o trabalho intelectual e
manual. Torna assim seu ser escravo de seu próprio desejo, uma vez que neste
momento somente ele poderá dar conta do projeto que ambiciona.
Estando o prospecto da máquina pronto a situação muda. O padre percebe
que sozinho não poderá dar conta de conseguir os recursos para a viabilização de
sua construção, ampliar os conhecimentos científicos que possui sobre o que
atualmente denominamos de aviação e, ao mesmo tempo, ele mesmo fazer uso dos
instrumentos de trabalho para construí-la. Outro forte agravante é que ele se quer
conhecia a maneira como manejar os instrumentos necessários à construção efetiva
da Passarola.
Assim, é que a organização do trabalho para a construção da máquina de
voar toma novos contornos. Assim é que um trabalho, até então solitário, passa a
necessitar ser particionado. Assim é que o padre percebe a necessidade de ter
quem colabore com o invento, que até o momento era unicamente seu. Desta forma,
convida Baltasar Sete-Sóis para que atue especificamente naquela parte do trabalho
que ele desconhecia e acredita não ser capaz de realizar e, juntamente com
Baltasar, trabalha Blimunda, sua companheira.
Deste modo, estas três personagens, que anteriormente ao projeto da
Passarola já nutriam uma relação de amizade, estendem esta também as relações
de trabalho. Este passa a ser um processo que tem na figura do padre seu
organizador, mas não o tem como único destinatário do que será produzido, ou seja,
a produção que está sendo empreendida é fruto do trabalho dos três, para os três.
Percebemos, ao longo da tessitura do enredo, que o autor mantém a figura do
padre como senhor da construção, uma vez que o projeto partiu de si e os recursos
para viabilizá-lo também. No entanto, diferentemente das relações de trabalho
dominantes no modo de produção em vigor, este não busca fazer uso da força de
trabalho das demais personagens apenas para benefício próprio. Nossa inferência é
a de que o padre busca tornar a Passarola um sonho possível de ser sonhado
103
também por Baltasar e Blimunda, com isso, abre a possibilidade dos mesmos
apropriarem-se dela também como sua.
Contrariando a dialética da dominação, dominador e dominado aqui (se assim
pensássemos em classificar o padre frente a Baltasar e Blimunda) aparecem não
como forças desiguais, mas sim pela horizontalidade que conferem à relação de
trabalho que empreendem. Nesta linha de pensamento, o sonho e a vontade de
edificar unem estes que trabalham na efetivação da Passarola.
Uma vez analisadas as relações que permeavam a construção da Passarola
nos dedicaremos a entender o segundo ângulo que nos propomos: o
intercruzamento do real e ficcional nos meios de produção da Passarola. Sendo um
trabalho realizado pelo ser humano em comunhão com o outro, a Passarola tem,
desta forma, os meios para sua produção também seguindo um regime de
colaboração.
A princípio poderíamos supor que os meios de produção utilizados na
máquina de voar pertenceriam unicamente ao padre Bartolomeu, isto porque este é
o provedor de recursos e matéria-prima para sua elaboração. No entanto, nesta
singular produção não estão envolvidos apenas meios de produção tidos como
reais, a exemplo, maquinário, instrumentos, etc. É verdade que o padre Bartolomeu,
com os recursos que possui ou que tenta conseguir, busca sanar as necessidades
básicas dos companheiros de trabalho e o provimento de todo material necessário, a
priori, à sua construção. Contudo, a esta o autor acrescenta um elemento que
chamaremos de ficcional, mas que fará toda a diferença na produção da Passarola.
Para que a máquina de voar alcance seu objetivo ela necessitará de um meio
produtivo que independe do padre e tão pouco do fazer de Baltasar, mas que
encontra em Blimunda sua provedora particular. Ela, com sua capacidade de ver
além da matéria, consegue angariar para a Passarola as vontades55 humanas que
serão o combustível desta máquina de voar. Através das duas mil vontades que
recolhe dentro de frascos, Blimunda consegue prover a Passarola daquilo que
nenhum dos outros dois construtores poderia conseguir sozinhos.
55
RIBEIRO (2006:15), ao descrever o caráter de imaterialidade das vontades humanas, revela que Saramago as compara ao éter, uma substância com o poder de possibilitar o alcance de um objetivo. Saramago (1997:171) trás, a partir da fala da personagem do padre Bartolomeu Lourenço, que as vontades humanas são aquelas que funcionarão como uma força contrária à gravidade e assim provedora do vôo da Passarola.
104
Baltasar, por sua vez, através das técnicas que vai empreendendo ao longo
do trabalho que desenvolve, faz uso de sua experiência para elaborar instrumentos
que o padre (com seus recursos) não pôde conseguir. Isto porque são instrumentos
demasiados específicos ou de tamanhos consideráveis que, se fossem
encomendados chamariam a atenção das pessoas ao redor. Assim, Baltasar
percorre diferentes oficinas, no lugarejo em que estão construindo a Passarola, para
aprender como fazer a coifa e demais objetos que necessitarão para o término do
trabalho.
Chegamos então à conclusão de que cada uma das personagens envolvidas
na produção da Passarola contribui de forma específica com uma parte dos meios
necessários à produção desta máquina. A propriedade dos meios de produção
encontra-se em comunhão entre seus responsáveis, tanto quanto as relações
sociais de trabalho que são desenvolvidas em seu empreendimento.
Assim, é que chegamos ao último ângulo proposto para análise: se nossas
certezas iniciais sobre a construção da Passarola confirmam-se ou não em nossa
leitura da dialética hegeliana. Desde já, afirmamos que a palavra que bem descreve
nosso entendimento desta construção, face à dialética da dominação, é a da
contradição.
Em primeiro lugar porque a construção da Passarola, inserindo-se no
contexto das relações sociais vigentes no tempo e lugar do enredo, não poderia
deixar de ter traços destas. Ou seja, mesmo sendo relações sociais que diferem
daquela predominante na ordem social, ainda assim, carrega em si elementos dela.
Isto fica bem explícito para nós na passagem da obra em que o padre Bartolomeu
decide levar seu amigo Scarlatti para conhecer a Passarola e entra em conflito com
Baltasar, que defende a manutenção do segredo sobre a construção56. Buscando
lançar mão de uma solução para o impasse, de preferência que lhe favoreça, o
padre se impõe como O inventor e, portanto, aquele que teria mais poder de
decisão, e, diante desta “lembrança”, consegue impor-se57.
56 “O padre Bartolomeu Lourenço pediu ao italiano que esperasse fora e entrou. (...) Baltasar, trouxe comigo um visitante a ver a máquina (...) Eu é que sou o inventor da passarola, eu decido do que convém (...)”. (Ibid:169). 57 Entre outras passagens, a que descreveremos a seguir também denota o resquício da verticalidade nas relações entre os construtores da Passarola. Esta se passa quando o padre Bartolomeu diz a Scarlatti: “(...) são eles quem está construindo a obra (...) eu explico o que devem fazer, eles executam (...)”. (Ibid:170).
105
Em contraponto, comparando a construção da Passarola com a do convento,
podemos inferir que as relações sociais empreendidas na primeira (principalmente
nas questões relacionadas à divisão/organização do trabalho e apropriação do
produto deste) são de caráter emancipador em relação àquelas descritas na
construção do convento. Isto porque nossa leitura da obra é a de que o autor buscou
retratar o que poderíamos chamar de alternativas à relação de dominação entre um
ser humano e outro.
Com isso, aludimos que nossas afirmações iniciais, apesar de possuírem
alguns elementos passíveis de justaposição com a dialética da dominação hegeliana
(e esta em Memorial do Convento), se mantêm devido ao seu caráter de
contraposição frente às condições impostas socialmente. Aferimos que, se as
relações na Passarola possuem estes traços, isso se dá justamente por as
personagens que a desenvolvem estarem mergulhadas nas características de
hierarquia e desigualdade, marcas fiéis do modo de produção vigente.
Sendo assim, acreditamos que a palavra contradição, que fizemos uso para
descrever as relações desenvolvidas na construção da Passarola frente à dialética
da dominação, verbera com maestria nesta análise. Isto porque nos mostra que
algo que acreditamos ser único pode conservar em si elementos de outros.
Saramago, ao buscar descrever o aspecto transgressor, não deseja com isso
maquiar a “realidade” e fazer-nos acreditar que este anula os ditames socialmente
instituídos, mas sim nos mostrar que há alternativas para estes.
106
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este estudo teve como propósito fundamental analisar o conceito de ser
humano a partir da visão do autor José Saramago (2007) sobre este na obra
Memorial do Convento. Restringimos esta análise aos condicionantes sociais que
imputem ao ser uma condição humana característica da processualidade das
relações sociais desenvolvidas em Portugal no século XVIII. A escolha desta época
e lugar histórico para estudo deveu-se ao fato de serem neles que se apresentava o
enredo da referida obra.
Acreditamos que o recorte que buscamos incutir à obra nos auxiliou a
entendê-la melhor, assim como rever nossas posições frente aos acontecimentos
que desenrolam-se na mesma. Isto porque, ao iniciarmos este estudo, tínhamos por
objetivo traçar os condicionantes sociais que o ser humano estava submetido e, ao
mesmo tempo, mostrar a forma encontrada por estes para transcender a estas
“amarras”. Analisando a obra com atenção, e a partir dos estudos que fomos
ampliando, percebemos que esta transcendência não materializa-se de fato no plano
concreto descrito na obra. Se havia alguma transcendência esta se dava no plano
do abstrato, na vontade do ser humano em, ao menos em sonho, realizar seus
desejos.
Elencar como norteadores de nossa análise os capítulos, da forma em que
encontram-se concatenados, foi de fundamental importância para nosso crescimento
nesta pesquisa. É como se cada capítulo complexificasse a temática ao passo em
que a enriquece e, desta forma, contribuísse não só para o avanço do estudo, como
também para nossa elevação enquanto pesquisadores.
Embasar nosso estudo nas obras marxianas nos ajudou a compreender
melhor a temática e ter coragem para circular entre as obras dos mais diversos
autores sem medo de cair-nos em contradição. Marx, por sua abordagem
materialista histórica, sua forma de buscar analisar o ser humano a partir do que
realmente é, foi-nos o lastro sustentador de nossa leitura saramaguiana. Tendo seus
estudos como sustentadores de nosso trabalho nos permitimos, por exemplo,
abordar os estudos de Hegel (1992) sobre o ser, sem com isso, nos fixarmos em sua
forma idealista de análise.
107
Para alcançar nosso objetivo elencamos como categorias centrais de estudo
a formação social de Portugal no século XVIII, o modo de produção vigente no país
neste período histórico e a descrição da condição humana, principalmente a do ser
humano trabalhador, feita pelo autor Saramago ao longo da obra. A partir destas
categorias conseguimos delimitar o enredo da obra e conseguir “enxergar” nele os
objetivos que nos propomos.
Assim, escolhemos como primeiro tópico da discussão uma breve introdução
sobre o estudo e, a partir do segundo capítulo, evidenciar o estudo das categorias
escolhidas. Para isso buscamos longo no primeiro tópico apresentar uma
contextualização da obra Memorial do Convento para demarcar de qual obra
estamos tratando, além de oportunizar ao leitor não familiarizado com a mesma a
possibilidade de vir a entender sobre o que buscaríamos tratar nesta análise.
Feita a contextualização partimos para um dos tópicos mais complexos da
obra, a delimitação das relações sociais de produção assentadas em Portugal no
século XVIII. Sem o entendimento de como estas estavam organizadas e se
reproduziam nesta sociedade não haveria como entender a forma com que o autor
Saramago busca nos apresentar sua visão de ser humano, nem tão pouco os
condicionantes sociais a que estes estavam submetidos. Assim é que buscamos
explicitar sobre o tema embasando-o nos estudos de Marx (2001; 2009) e demais
autores, que partiram de seus estudos, para entender como uma organização social
e modo de produção encontram-se imbricados numa formação social.
Ao buscar entender as relações sociais de produção de Portugal no século
XVIII chegamos ao entendimento de que para entendê-las na diversidade de sua
processualidade necessitávamos, primeiramente, analisá-las em separado. Isto por
que suas relações de produção estavam assentadas no modo de produção
capitalista por estes serem a voga da vez em se tratando de impulso econômico, não
só em Portugal, como em toda a Europa. Contudo, a processualidade de suas
relações sociais não expressavam completamente a forma com que o modo de
produção capitalista advoga para uma sociedade. isto porque culturalmente
Portugal, no século XVIII, era um país carregado de traços da formação social
processualizada na Idade Média.
Vimos que um modo de produção não consegue mudar de forma rápida e
abrupta as relações sociais que processam-se no interior da sociedade. é desta
forma que temos, no continente europeu, diversos países que têm o modo de
108
produção capitalista como determinante de sua estrutura econômica, contudo,
diferem uns dos outros pelas relações sociais que internamente desenvolvem-se em
seus territórios. Esta é uma característica que diferencia uma nação da outra e, no
caso de nosso estudo, vai marcar a forma de ser das relações sociais de produção
portuguesas no século XVIII.
Ao analisarmos cada uma das relações (produção e sociais) em separado
pudemos entender como conseguíamos analisar o Portugal desta época como
contraditório. Isto porque, ao mesmo tempo em que analisávamos o país como
circunscrito no modo de produção capitalista percebíamos que o mesmo conservava
características do modo de produção feudal, anterior ao capitalista. Esta percepção
foi-nos fundamental para entendermos a processualidade de ser do ser humano na
obra Memorial do Convento e assim buscar descrevê-lo neste estudo.
A partir do entendimento das relações sociais de produção vigentes no
Portugal do século XVIII buscamos circunscrever neste estudo a leitura que
fazíamos sobre a visão de Saramago de seu país, da forma de ser do povo
português e o quanto estes encontravam-se condicionados socialmente. Para isso
fomos elencando diferentes passagens da obra que traduzissem o intuito deste
estudo e, desta forma, corroborassem para que entendêssemos melhor a obra.
Entendemos que, ao longo da obra, o autor buscou detalhadamente nos
mostrar a dominação exercida por um ser humano sobre os outros no país na
referida época. Esta dominação assumia a forma da satisfação plena de seus
desejos sobre a supressão dos desejos dos outros em seu benefício. Acreditamos
que, ao escrever sobre esta dominação e o poder de um rei sobre todo um país o
autor buscou explicitar como esta dominação se materializa e se justifica ao mesmo
tempo.
Ter-nos possibilitado analisar esta dominação, descrita na obra, a partir da
forma concreta com que ela se processa e se reproduz, ou seja, analisando-a
material e historicamente, foi-nos crucial para seu entendimento. Ao analisar a obra
sob este viés acreditamos que conseguimos entender não só o conceito de ser
humano a partir de uma visão marxiana, mas também a forma com que este
desenvolve suas relações. Ter realizado este estudo abriu um leque de
possibilidades de outras análises sobre a temática, as quais nos propomos a
enveredar posteriormente e que só farão acrescer ao estudo aqui empreendido.
109
Referências
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