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 Dossier de Apoio

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Material de apoio à leitura da obra de Saramago, fornecida pela companhia de teatro Éter, muito bom auxílio.

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  • Dossierde Apoio

  • TNDM II

    Projecto Teatro, Educao e Comunidade 07/08

  • Memorial do Convento // Dossier de Apoio

    01Projecto Teatro, Educao e Comunidade 07/08

    Ficha Tcnica

    Sinopse

    Apresentao das Personagens

    Contextualizao Cronolgica

    Dicionrio de Termos

    Provrbios e expresses populares

    Jos Saramago - Uma Escrita com Ideias

    Memorial do Convento

    Biografia Jos Saramago (1922)

    Discurso de Jos Saramago, na entrega do Prmio Nobel

    Bibliografia em Lngua Portuguesa

    A histria do Palcio Nacional de Mafra

    Excertos de textos sobre Jos Saramago

    Blimunda, o Orfeo no feminino ou passagem de Blimunda por Itlia

    Palavras para uma homenagem nacional

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    ndice

  • Ficha Tcnica

    de Jos Saramagoadaptao dramatrgica Filomena Oliveira e Miguel Realencenao Filomena Oliveira

    [orgnica sonora]direco e msica original David Martinsmasterizao e operao Bruno Oliveiraarranjos para piano Sandra Nunesarranjos para voz Andreia Lopes

    guarda-roupa Flvio Tom e Cludia Fariaadereos Joo Maisconcepo e construo da passarola Flvio Tom e Joo Tiagoassistente tcnico/montagem Joo Tiagocriao e adaptao do espao Carlos Arrojaestruturas cnicas e desenho 3D Carlos Brunodireco tcnica David Martinsdesenho de luz Carlos Arroja, David Florentino e Paulo Cunha

    [cenografia e criao do espao cnico]coordenao Vito e Carlos Arrojaequipa de montagem Bruno Oliveira, Bruno Ribeiro, Carlos Bruno, Joo Mota e Z Pedro

    comCludia Faria, Paulo Campos dos Reis,Flvio Tom, Joo Mais e Filipe Arajo

    produo TNDM IIem colaborao com o Palcio Nacional de Mafra

    durao 1h20 // M/12

    TNDM II

    02 Projecto Teatro, Educao e Comunidade 07/08

  • Memorial do Convento // Dossier de Apoio

    03Projecto Teatro, Educao e Comunidade 07/08

    Sinopse

    Ansiando por um filho que tarda, o rei D. Joo V avisado por frei Antnio de S. Jos:Mande V. Majestade fazer um convento de franciscanos em Mafra e Deus vos dardescendncia. O desejo real desencadear uma epopeia de homens, um esforo hercleode milhares de trabalhadores arregimentados em todo o pas, de arquitectos, engenheiros emateriais, vindos do estrangeiro e pagos a peso do ouro do Brasil, esgotando-o.Unidos por um amor natural, Blimunda e Baltasar renem-se a Bartolomeu de Gusmo e aoseu sonho de voar. A passarola, mquina voadora, misto de barco e de pssaro, nasceu do saber cientfico deBartolomeu, da fora de trabalho de Baltasar e dos poderes de Blimunda, recolhendo as vontades humanas (as nuvens fechadas) que alimentaro a mquina e a faro voar. Sobreas obras do Convento de Mafra ter passado o Esprito Santo, dizem os padres e acredita opovo. Voar, nesse tempo, no sendo obra de Deus, s poderia s-lo do demnio, e assim seanuncia o fim trgico das trs personagens maravilhosas.

  • Apresentao das personagens

    O reiD. Joo V (1689-1750), filho de D. Pedro II e da rainha Maria Sofia de Neuburg. Foi proclamadorei em 1 de Janeiro de 1707 e casou com a princesa Maria Ana de ustria, de quem teve seisfilhos. O seu reinado estendeu-se por um longo perodo e foi controverso: por um lado, considerado um perodo de boa governao, por outro, de m administrao das riquezasque a descoberta de minas de ouro e pedras preciosas no Brasil trouxeram ao reino.

    A gente que construiu o conventoEsta personagem colectiva o povo que trabalha s ordens do rei, cumprindo aqui a suapromessa de levantar um convento em Mafra aquando do nascimento de um filho parasuceder ao trono. O povo aqui enaltecido pelo autor e individualizado no Cap. XIX, aoatribuir a vrias personagens um nome para cada letra do alfabeto.

    Baltasar MateusSoldado na Guerra da Sucesso espanhola, um mutilado de guerra, tendo perdido a moesquerda. natural de Mafra e ao regressar a Portugal conhece Blimunda, na procisso deum auto-de-f, em Lisboa, no Rossio. Juntos vivem uma histria de amor. Baltasar um dosque participa na construo da Passarola.

    BlimundaFilha de Sebastiana Maria de Jesus, condenada ao degredo para Angola, conhece Baltasarna procisso do auto-de-f. Blimunda tem a capacidade especial de ser vidente e acaba porajudar na construo da Passarola, contribuindo para isso com os seus poderes mgicos.

    Padre Bartolomeu Loureno de GusmoUm Padre que tinha um sonho: voar. Para isso, constri uma Passarola, com a ajuda deBaltasar e de Blimunda e do msico Scarlatti. Apesar da amizade com o rei, nem isso o livrada perseguio do Santo Ofcio. Morre louco, em Toledo, para onde havia fugido.Bartolomeu Loureno de Gusmo (Santos-Brasil, 1685 - Toledo, Espanha, 1724) foi o inventor do aerstato por ar aquecido. Doutorou-se na Faculdade de Cnones de Coimbra e

    TNDM II

    04 Projecto Teatro, Educao e Comunidade 07/08

  • Memorial do Convento // Dossier de Apoio

    05Projecto Teatro, Educao e Comunidade 07/08

    dedicou-se aos estudos sobre a Passarola que 'voou' pela primeira vez em 1709.

    Domenico ScarlattiScarlatti (1685-1757) foi compositor, cravista e organista italiano, filho de AlessandroScarlatti. Assinou mais de 500 sonatas para cravo, bem como peras e cantatas. Em"Memorial do Convento" funcionrio da corte, contratado para dar lies infanta D. MariaBrbara. Numa das lies, Scarlatti conhece Bartolomeu Loureno, nascendo entre os doisuma grande cumplicidade.

    Contextualizao Cronolgica

    1697 // Descoberta de ouro no Brasil1702 // Incio da Guerra da Sucesso de Espanha1704 // Portugal envolvido na Guerra da Sucesso de Espanha1706 // Incio do reinado de D. Joo V1708 // Casamento de D. Joo V com D. Maria Ana de ustria1723 // Febre amarela, em Lisboa1724 // Fuga de Bartolomeu de Gusmo de Lisboa para Espanha1728 // D. Joo V incompatibiliza-se com a Santa S1729 // Casamento do prncipe herdeiro D. Jos; Descoberta de diamantes

    em Cerro do Frio (Brasil)1732 // Descoberta de diamantes na Baa (Brasil)1734 // Descoberta de jazidas de ouro em Mato Grosso (Brasil)1735 // Concluso da obra do Convento de Mafra1737 // Representao da pea "Guerras de Alecrim e Manjerona", de

    Antnio Jos da Silva1739 // Antnio Jos da Silva queimado num auto-de-f

    1750 // Morte de D. Joo V

  • Dicionrio de Termos

    arrbido // monge do convento da Arrbida

    auto-de-f // cerimnia em que se promulgavam as sentenas do tribunal da Inquisio com

    o significado de sano pblica por crimes de heresia ou equivalentes. Em Portugal, o

    primeiro auto-de-f realizou-se a 20.09.1540 e o ltimo a 07.02.1773

    degredo // exlio

    herege // cristo baptizado que pe em causa algumas verdades da f catlica

    molinismo // doutrina professada pelo telogo espanhol Molina: a perfeio espiritual reside

    na contemplao de Deus, sem qualquer tipo de obras exteriores

    relaxado ao brao secular // entregue justia

    reptizar // provocar, seduzir

    sambenito // hbito que os condenados vestiam quando eram levados para os autos-de-f

    Provrbios e expresses populares

    "O sol, quando nasce, para todos." (Cap.III)

    "Mas tem cada coisa seu tempo." (Cap. VII)

    "uma mo lava a outra" (Cap. IX)

    "dai a Csar o que de Deus, a Deus o que de Csar" (Cap. XIII)

    "que de loucos todos temos um pouco" (Cap. XVI)

    "pelo dedo se conhece o gigante" (Cap. XVII)

    "mas o que nenhuma dvida tem, no durar o bem sempre" (Cap. XIX)

    "o mal e o bem face vem" (Cap. XXI)

    "nem sempre galinha, nem sempre sardinha" (Cap. XXII)

    " para todos a chuva quando cai" (Cap. XXII)

    "mas as mulheres no se medem aos palmos" (Cap. XXIII)

    TNDM II

    06 Projecto Teatro, Educao e Comunidade 07/08

  • Memorial do Convento // Dossier de Apoio

    07Projecto Teatro, Educao e Comunidade 07/08

    Jos Saramago - Uma Escrita com Ideias

    A mais importante singularidade dos romances de Jos Saramago reside na exposio econcretizao narrativa de uma ideia que alimenta a totalidade de cada romance. Em Levantado do Cho, tematiza-se a histria do Alentejo e o fracasso da Reforma Agrria,o destino histrico e o sofrimento daquela terra magoada; O Ano da Morte de Ricardo Reissintetiza-se num encontro com Fernando Pessoa; em Evangelho Segundo Jesus Cristotrava-se o debate sobre os grandes limites civilizacionais da Europa e a interrogao sobrea origem da religio, cuja poder litrgico e fora sagrada h um sculo que se tm vindo aesvaziar; em Jangada de Pedra, a interrogao sobre a existncia de uma real alternativamediterrnica ao poder frio da tecnologia e do mercantilismo da Europa do Norte; emEnsaio sobre a Cegueira, levanta-se o debate sobre a origem e os limites do Poder; emTodos os Nomes, problematiza-se o labirinto da existncia humana contabilista e buro-crtica das actuais sociedades desenvolvidas; em Histria do Cerco de Lisboa, discute-sea raiz da nossa identidade nacional, sempre dependente do estrangeiro; em Manual dePintura e Caligrafia, inquire-se sobre a fundamentao da representao esttica; em ACaverna, Saramago questiona a sociedade actual que substitui o poder da realidade factu-al pelo poder da imagem audio-visual e electrnica. Dito de outro modo, Jos Saramago no um romancista social e ideologicamente neutro; diferentemente, um escritor que explo-ra a filosofia, a religio, a poltica e a histria como alimento do contedo dos seusromances, empenhando-se activamente na denncia e transformao dos aleijes da nossasociedade. Onde Saramago presume existir injustia, a pe a sua pena ao servio da suaviso de justia e de igualdade sociais. esta a profunda singularidade da escrita e doescritor: para Jos Saramago no basta escrever uma simples histria, mais uma simpleshistria que nada acrescenta ao nosso conhecimento do mundo, mas, partindo de vivas pre-ocupaes existenciais actuais, intenta retomar antigos temas da religio, da filosofia, daHistria, dando-lhes um novo sentido, no raro contaminado de uma sede de justia social.Colocar em questo o passado cristalizado, insuflando-lhe uma nova ideia, que o avive e oactualize, eis o modo habitual de escrita de Jos Saramago.Em Memorial do Convento, publicado em 1982, a interrogao sobre o sentido da Histriade Portugal e sobre o divrcio entre o amor, a vida feliz e o progresso da cincia, por umlado, e a absolutizao do poder poltico num pequeno grupo social, constitui uma dasprimeiras narrativas em que se evidencia o novo estilo exuberante, barroco, fustico e

  • festivo de Jos Saramago. Mesmo pertencendo ao Partido Comunista Portugus, a partir dadcada de 80 Saramago nunca escreveu segundo um cnone literrio, no seguiu as modasem vigor, no foi realista, existencialista, estruturalista, ps-modernista, seguiu-se a siprprio, soube ser apenas ele prprio, inventando o estilo literrio mais singular no actualpanorama da literatura portuguesa. Foi este estilo e o contedo profundamente humano dassuas histrias que lhe valeram, em 1998, a atribuio do primeiro Prmio Nobel daLiteratura para um autor portugus, consagrando a sua mpar arte da palavra e elevando oseu nome universalidade da Histria da Literatura de todos os tempos e lugares.Deste modo, em Memorial do Convento, Saramago explora no o facto em si prprio nasua unvoca brutalidade histrica (e este, normalmente, que constitui a atmosfera tradi-cional do romance histrico, corrente a que Saramago, e com razo, diz no pertencer), masa mentalidade colectiva do tempo histrico de que o facto expresso singular, evidencian-do que se ele assim aconteceu, de outro modo poderia ter acontecido. Como o campo das possibilidades mais extenso do que o campo do real, J. Saramago move-se naquelecampo, explorando contnuas hipteses de relaes, transformando em principais factosque na realidade seriam subsidirios, inventando factos historicamente inexistentes masque, na lgica da realidade social do tempo, poderiam ter acontecido, sem nunca deixar deentrelaar a realidade concreta com as possibilidades que o esprito do tempo permite. Afico histrica institui-se, assim, como reveladora da rede intrnseca de possibilidades con-tidas (mas no consumadas) em cada facto histrico importante ou em cada sociedade, ouseja, mais do que Histria historivel em livros oficialmente aceites, cabe fico iluminaro sentido da Histria, evidenciando a pluralidade de caminhos humanos passveis de serem(ou terem sido) percorridos e de como, a cada momento, cada escolha, cada opo (inconsciente ou forada) por entre um imenso leque de possveis, tem como consequncia cultural desenhar a personalidade futura de um pas. Assim, o romance ganhaem Jos Saramago um estatuto ensastico de permanente abertura de horizonte culturalsegundo interrogaes radicais de carcter filosfico, que desafiam, seno subvertem, oparadigma conceptual por que habitualmente interpretamos o mundo, forando a romancea tornar-se, mais do que a narrativa de uma histria, um texto inquiridor das regras e modelos do acto fundador da palavra.A "revoluo saramaguiana" na fico portuguesa concretiza-se atravs de uma obra cujashistrias narradas se dirigem, no recriao e ao divertissement, no mera narrao deatmosferas histricas, no auto-consciencializao social da imagem de Portugal hoje, noao memorialismo subjectivista, mas, sim, interrogao problemtica dos fundamentos

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    08 Projecto Teatro, Educao e Comunidade 07/08

  • Memorial do Convento // Dossier de Apoio

    09Projecto Teatro, Educao e Comunidade 07/08

    filosficos da nossa civilizao, gerando uma literatura que se metamorfoseia num estadohbrido de todos os gneros narrativos e de todos os estilos possveis, ou seja, umaLiteratura no de palavras, mas Fundadora da Palavra.

    Fontanelas, 13 de Janeiro de 2007 // Filomena Oliveira/Miguel Real

    Miguel Real e Filomena Oliveira falam sobre a forma como a Histria se molda bem aos palcos

    Memorial do Convento

    O espectculo que o Teatro Nacional D. Maria II est a apresentar no Palcio de Mafraj foi visto por milhares de estudantes e continua a receber marcaes de escolas

    Texto de A. Ribeiro dos Santos

    Aos escritores Filomena Oliveira e Miguel Real pareceu-lhes que o romance "Memorial doConvento", de Jos Saramago, tinha os ingredientes necessrios para fazer uma boa peade teatro. Feita a proposta ao autor, que a aceitou, a adaptao foi levada a bom termo eresultou num primeiro espectculo estreado em 1999 no Teatro da Trindade em resultadode uma colaborao entre aquele espao, o Teatro de Sintra e a Companhia de Teatro deAlmada. Essa primeira verso, protagonizada por Teresa Gafeira e Jorge Sequerra, deu ideiaa Filomena Oliveira de fazer uma nova verso, readaptada para o pblico pr-universitrio eque seria apresentada no espao do prprio Palcio de Mafra, onde a aco do romancedecorre.

    Trata-se de uma verso reduzida - para cinco actores apenas - mas cuja vertente didcticatem atrado sucessivas levas de estudantes, agradados pelo enrgico desempenho dos intrpretes e pelo envolvimento esttico que o espectculo proporciona. "Memorial do

  • Convento" j viu a sua carreira prolongada por duas vezes, desde a estreia, e continua a receber marcaes de escolas.

    Mas esta no a primeira vez que os criadores se inspiram em episdios histricos comofonte para o seu trabalho. Na qualidade de escritor de romances histricos, Miguel Real considera a Histria de Portugal um manancial inesgotvel de material para recriaoliterria. "A nossa uma Histria rica em mitos, vitrias, fracassos e tragdias, e povoadade personalidades marcantes - quer sejam reis ou marinheiros, homens ou mulheres - queultrapassam a sua individualidade e podem figurar como smbolos de um tempo", explica,acrescentando: "Temos vrios exemplos, desde D. Afonso Henriques, Vasco da Gama, tpicos heris picos, a D. Nuno lvares Pereira ou D. Sebastio, heris trgicos. TemosPedro e Ins, um romance trgico de amor, temos Leonor Teles e D. Fernando, que so personagens operticas, D. Joo V e D. Joo VI, dignos protagonistas de peras bufas E a todas estas personagens de puro efeito dramtico correspondem episdios igualmentedignos de serem levados cena."

    Os criadores garantem que no se sentem intimidados ao reescrever factos histricos -antes pelo contrrio. " fortemente estimulante retratar num pedao de histria a totalidadedo ser de Portugal, evidenciando tanto os aleijes e as virtudes da existncia do nosso pas,quanto as constantes da cultura portuguesa", afirma Filomena Oliveira. At porque, mais doque a Histria propriamente dita, interessa-lhes mais revelar os traos da cultura portuguesasubjacentes aos acontecimentos reais. E nessa vertente incluem os seus outros trabalhosteatrais, nomeadamente "1755 - O Grande Terramoto", "Liberdade, Liberdade!", "O Umbigode Rgio" ou "Os Patriotas".

    "So peas menos 'histricas', mas nem por isso menos vinculadas s constantes da cultura portuguesa", continua Filomena Oliveira. "H um lirismo fundo na alma de cada portugus, um providencialismo flor da pele, que justifica a crena messinica de Ftima,uma despreocupao face ao imprio do econmico e do utilitrio, uma generosidade maisdo que provada, um sentimento de corao a substituir a lgica fria da razo Essas constantes culturais emergem sempre com inusitada fora nos nossos textos, tornando-se,no raro, matria dramtica encarnada nas personagens."

    TNDM II

    10 Projecto Teatro, Educao e Comunidade 07/08

  • Memorial do Convento // Dossier de Apoio

    11Projecto Teatro, Educao e Comunidade 07/08

    BiografiaJos Saramago (1922)

    Prmio Nobel de Literatura 1998. Nascido no Ribatejo, mas desde muito novo a residir emLisboa, Jos Saramago um caso paradigmtico de escritor autodidacta: com um curso emserralharia mecnica concludo em 1939, vai, ao longo dos anos, repartir a sua actividadeprofissional pela traduo, a direco literria e de produo numa casa editora, colaboraesvrias em jornais e revistas (salientando-se a funo de crtico literrio que manteve naSeara Nova e o jornalismo propriamente dito, tendo orientado o "Suplemento Literrio" do"Dirio de Lisboa" e sido director-adjunto do "Dirio de Notcias", j no perodo ps-revolu-cionrio de 1974-75). Tendo embora iniciado a sua carreira nas letras em 1947, com o livro"Terra do Pecado", em 1980, com o romance "Levantado do Cho", histria da vida de umafamlia camponesa do Alentejo desde o incio do sculo at revoluo de Abril e ao advento da reforma agrria, que Jos Saramago produz aquilo a que j se convencionouchamar o seu "primeiro grande romance". Primeiro porque a partir da eles se tm sucedidoregularmente como outros tantos "grandes romances", o maior dos quais, por ter constitudo um autntico "caso" de celebridade tanto nacional como internacional, comtraduo para uma vintena de lnguas e adaptao a libretto de pera, foi sem dvida"Memorial do Convento" (1982). Fascinante relato da construo do convento de Mafra e doesforo dos homens que o construram, Memorial do Convento trata tambm do sonho do"padre voador", Bartolomeu de Gusmo, e da construo da sua Passarola, que voar mercdas vontades dos homens que Blimunda, a que v atravs dos corpos e da terra, ir, pacientemente, aprisionando num frasco. Tudo isto servido por um estilo que passar aconstituir forte marca do autor e que se define, basicamente, pela supresso de algunssinais de pontuao, nomeadamente pontos finais e travesses para introduzir o dilogoentre as personagens, o que vai resultar num ritmo fluido, marcadamente oral e muitoprprio, tanto da escrita como da narrativa. Estas caractersticas iro, alis, contribuir paratransformar os seus livros em objecto de interesse para encenadores, msicos e realizadores de cinema: "Memorial do Convento", de que o autor recusou autorizar umaadaptao cinematogrfica, foi j adaptado a pera pelo compositor italiano Azio Corghi,com o ttulo "Blimunda". A estreia mundial, com encenao de Jrme Savary, realizou-seno Teatro alla Scala, de Milo, em Maio de 1990. Tambm da pea "In Nomine Dei" foi extrado um libretto: o da pera "Divara", estreada em Mnster (Alemanha), em 31 de

  • Outubro de 1993, com msica de Azio Corghi e encenao de Dietrich Hilsdorf. De romancehistrico se tem inevitavelmente falado em relao produo romanesca de Saramago,embora o prprio autor recuse tal etiqueta aplicada s suas obras. E se os romances de JosSaramago esto definitivamente modelados numa dimenso histrica (quer os que remetempara o passado - a maioria - quer, por exemplo "A Jangada de Pedra" (1986), que surgecomo fico de uma hiptese fantstica situada num futuro), no o estaro menos numadimenso propriamente humana, naquilo em que a aco e reflexo dos homens, mesmo,ou principalmente, dos mais modestos no interior de cada poca histrica, pode pesar paraocasionar desvios, ainda que ficcionais, da "verdade" que a Histria consignou. Na opiniode Maria Alzira Seixo, ser precisamente "desta conjuno entre continuidade temporal einterveno humana" que Saramago ir "extrair uma noo de alteridade que [...] a propos-ta de dilogo entre todo o diverso, ou melhor, de conjuno acertada e dramtica das vriascondies que situam o homem no mundo, seu entrecruzar doce e fecundo, sua irreparv-el desarmonia que se deplora e compensa em literatura". Se o romance de Jos Saramago histrico, pela dimenso histrica, e fantstico, pela dimenso fantstica, ele principal-mente dos homens e das mulheres na histria e da sua capacidade de ver e agir sobre o realpara alm do crvel e do evidente. Parte da extraordinria receptividade que as suas obrastm merecido em todo o mundo, e que culminou com a atribuio do Nobel, dever-se-, semdvida, a esse carcter humanista, a esse reduto de confiana e esperana no poder dohumano que a sua obra projecta. De facto, mesmo antes da consagrao mxima trazidapelo Nobel, Saramago era j o autor portugus contemporneo mais traduzido, com livroseditados em todo o mundo, da Amrica do Norte China, e detinha j um capital de prestgio reconhecido pela atribuio de vrios prmios literrios internacionais e nacionais- de onde se destacam o Prmio Cames, em 1995 e os prmios Vida Literria, daAssociao Portuguesa de Escritores (1993) e de Consagrao de Carreira, da SociedadePortuguesa de Autores (1995) -, doutoramentos honoris causa pelas Universidades deTurim (Itlia), Manchester (Inglaterra), Sevilha, Toledo e Castilla-La Mancha (Espanha) egraus honorficos, como o de Comendador da Ordem Militar de Santiago da Espada eChevalier de l'Ordre des Arts e des Lettres (atribudo pelo governo francs). , alm disso,membro honoris causa do Conselho do Instituto de Filosofia do Direito e de EstudosHistrico-Polticos da Universidade de Pisa (Itlia); membro da Academia Universal dasCulturas (Paris); membro correspondente da Academia Argentina das Letras e membro doParlamento Internacional de Escritores (Estrasburgo). Parte do esplio de Jos Saramagoencontra-se no Arquivo de Cultura Portuguesa Contempornea da Biblioteca Nacional.

    in Dicionrio Cronolgico de Autores Portugueses, Vol. V // Lisboa, Europa-Amrica, 1998

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    12 Projecto Teatro, Educao e Comunidade 07/08

  • Memorial do Convento // Dossier de Apoio

    13Projecto Teatro, Educao e Comunidade 07/08

    Discurso de Jos Saramago, na entrega do Prmio NobelEstocolmo, 7 de Dezembro 1998

    O homem mais sbio que conheci em toda a minha vida no sabia ler nem escrever. s quatro da madrugada, quando a promessa de um novo dia ainda vinha em terras de Frana,levantava-se da enxerga e saa para o campo, levando ao pasto a meia dzia de porcas decuja fertilidade se alimentavam ele e a mulher. Viviam desta escassez os meus avs maternos, da pequena criao de porcos que, depois do desmame, eram vendidos aos vizinhos da aldeia, Azinhaga de seu nome, na provncia do Ribatejo. Chamavam-se JernimoMelrinho e Josefa Caixinha esses avs, e eram analfabetos um e outro. No Inverno, quandoo frio da noite apertava ao ponto de a gua dos cntaros gelar dentro da casa, iam buscars pocilgas os bcoros mais dbeis e levavam-nos para a sua cama. Debaixo das mantasgrosseiras, o calor dos humanos livrava os animaizinhos do enregelamento e salvava-os deuma morte certa. Ainda que fossem gente de bom carcter, no era por primores de almacompassiva que os dois velhos assim procediam: o que os preocupava, sem sentimentalis-mos nem retricas, era proteger o seu ganha-po, com a naturalidade de quem, para manter a vida, no aprendeu a pensar mais do que o indispensvel. Ajudei muitas vezes estemeu av Jernimo nas suas andanas de pastor, cavei muitas vezes a terra do quintal anexo casa e cortei lenha para o lume, muitas vezes, dando voltas e voltas grande roda de ferroque accionava a bomba, fiz subir a gua do poo comunitrio e a transportei ao ombro,muitas vezes, s escondidas dos guardas das searas, fui com a minha av, tambm pelamadrugada, munidos de ancinho, panal e corda, a recolher nos restolhos a palha solta quedepois haveria de servir para a cama do gado. E algumas vezes, em noites quentes de Vero,depois da ceia, meu av me disse: "Jos, hoje vamos dormir os dois debaixo da figueira."Havia outras duas figueiras, mas aquela, certamente por ser a maior, por ser a mais antiga,por ser a de sempre, era, para todas as pessoas da casa, a figueira. Mais ou menos porantonomsia, palavra erudita que s muitos anos depois viria a conhecer e a saber o quesignificava... No meio da paz nocturna, entre os ramos altos da rvore, uma estrela aparecia-me, e depois, lentamente, escondia-se por trs de uma folha, e, olhando eu noutradireco, tal como um rio correndo em silncio pelo cu cncavo, surgia a claridade opalescente da Via Lctea, o Caminho de Santiago, como ainda lhe chamvamos na aldeia.Enquanto o sono no chegava, a noite povoava-se com as histrias e os casos que o meu

  • av ia contando: lendas, aparies, assombros, episdios singulares, mortes antigas, zaragatas de pau e pedra, palavras de antepassados, um incansvel rumor de memrias queme mantinha desperto, ao mesmo tempo que suavemente me acalentava. Nunca pude saberse ele se calava quando se apercebia de que eu tinha adormecido, ou se continuava a falarpara no deixar em meio a resposta pergunta que invariavelmente lhe fazia nas pausasmais demoradas que ele calculadamente metia no relato: "E depois?" Talvez repetisse ashistrias para si prprio, quer fosse para no as esquecer, quer fosse para as enriquecercom peripcias novas. Naquela idade minha e naquele tempo de ns todos, nem ser pre-ciso dizer que eu imaginava que o meu av Jernimo era senhor de toda a cincia do mundo.Quando, primeira luz da manh, o canto dos pssaros me despertava, ele j no estava ali,tinha sado para o campo com os seus animais, deixando-me a dormir. Ento levantava-me,dobrava a manta e, descalo (na aldeia andei sempre descalo at aos 14 anos), ainda compalhas agarradas ao cabelo, passava da parte cultivada do quintal para a outra onde seencontravam as pocilgas, ao lado da casa. Minha av, j a p antes do meu av, punha-mena frente uma grande tigela de caf com pedaos de po e perguntava-me se tinha dormidobem. Se eu lhe contava algum mau sonho nascido das histrias do av, ela sempre me tranquilizava: "No faas caso, em sonhos no h firmeza". Pensava ento que a minha av,embora fosse tambm uma mulher muito sbia, no alcanava as alturas do meu av, esseque, deitado debaixo da figueira, tendo ao lado o neto Jos, era capaz de pr o universo emmovimento apenas com duas palavras. Foi s muitos anos depois, quanto o meu av j setinha ido deste mundo e eu era um homem feito, que vim a compreender que a av, afinal,tambm acreditava em sonhos. Outra coisa no poderia significar que, estando ela sentada,uma noite, porta da sua pobre casa, onde ento vivia sozinha, a olhar as estrelas maiorese menores por cima da sua cabea, tivesse dito estas palavras: "O mundo to bonito, e eutenho tanta pena de morrer". No disse medo de morrer, disse pena de morrer, como se avida de pesado e contnuo trabalho que tinha sido a sua estivesse, naquele momento quasefinal, a receber a graa de uma suprema e derradeira despedida, a consolao da beleza revelada. Estava sentada porta de uma casa como no creio que tenha havido alguma outrano mundo porque nela viveu gente capaz de dormir com porcos como se fossem os seusprprios filhos, gente que tinha pena de ir-se da vida s porque o mundo era bonito, gente,e este foi o meu av Jernimo, pastor e contador de histrias, que, ao pressentir que a morteo vinha buscar, foi despedir-se das rvores do seu quintal, uma por uma, abraando-se aelas e chorando porque sabia que no as tornaria a ver.

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    Muitos anos depois, escrevendo pela primeira vez sobre este meu av Jernimo e e estaminha av Josefa (faltou-me dizer que ela tinha sido, no dizer de quantos a conheceramquando rapariga, de uma formosura invulgar), tive conscincia de que estava a transformaras pessoas comuns que eles haviam sido em personagens literrias e que essa era,provavelmente, a maneira de no os esquecer, desenhando e tornando a desenhar os seusrostos com o lpis sempre cambiante da recordao, colorindo e iluminando a monotoniade um quotidiano bao e sem horizontes, como quem vai recriando, por cima do instvelmapa da memria, a irrealidade sobrenatural do pas em que decidiu passar a viver. Amesma atitude de esprito que, depois de haver evocado a fascinante e enigmtica figura deum certo bisav berbere, me levaria a descrever mais ou menos nestes termos um velhoretrato (hoje j com quase oitenta anos) onde os meus pais aparecem: "Esto os dois de p,belos e jovens, de frente para o fotgrafo, mostrando no rosto uma expresso de solenegravidade que talvez temor diante da cmara, no instante em que a objectiva vai fixar, deum e do outro, a imagem que nunca mais tornaro a ter, porque o dia seguinte ser impla-cavelmente outro dia... Minha me apoia o cotovelo direito numa alta coluna e segura namo esquerda, cada ao longo do corpo, uma flor. Meu pai passa o brao por trs das costasde minha me e a sua mo calosa aparece sobre o ombro dela como uma asa. Ambos pisamacanhados um tapete de ramagens. A tela que serve de fundo postio ao retrato mostraumas difusas e incongruentes arquitecturas neoclssicas". E terminava: "Um dia tinha dechegar em que contaria estas coisas. Nada disto tem importncia, a no ser para mim. Um avberbere, vindo do Norte de frica, um outro av pastor de porcos, uma av maravilhosamentebela, uns pais graves e formosos, uma flor num retrato - que outra genealogia pode importar-me? a que melhor rvore me encostaria?"

    Escrevi estas palavras h quase trinta anos, sem outra inteno que no fosse reconstituire registar instantes da vida das pessoas que me geraram e que mais perto de mim estiveram,pensando que nada mais precisaria de explicar para que se soubesse de onde venho e deque materiais se fez a pessoa que comecei por ser e esta em que pouco a pouco me vim tornando. Afinal, estava enganado, a biologia no determina tudo, e, quanto gentica,muito misteriosos devero ter sido os seus caminhos para terem dado uma volta to larga... minha rvore genealgica (perdoe-se-me a presuno de a designar assim, sendo tominguada a substncia da sua seiva) no faltavam apenas alguns daqueles ramos que otempo e os sucessivos encontros da vida vo fazendo romper do tronco central, tambm lhefaltava quem ajudasse as suas razes a penetrar at s camadas subterrneas mais fundas,

  • quem apurasse a consistncia e o sabor dos seus frutos, quem ampliasse e robustecesse asua copa para fazer dela abrigo de aves migrantes e amparo de ninhos. Ao pintar os meuspais e os meus avs com tintas de literatura, transformando-os, de simples pessoas decarne e osso que haviam sido, em personagens novamente e de outro modo construtorasda minha vida, estava, sem o perceber, a traar o caminho por onde as personagens queviesse a inventar, as outras, as efectivamente literrias, iriam fabricar e trazer-me os materiais e as ferramentas que, finalmente, no bom e no menos bom, no bastante e no insuficiente, no ganho e no perdido, naquilo que defeito mas tambm naquilo excesso,acabariam por fazer de mim a pessoa em que hoje me reconheo: criador dessas personagens, mas, ao mesmo tempo, criatura delas. Em certo sentido poder-se- mesmodizer que, letra a letra, palavra a palavra, pgina a pgina, livro a livro, tenho vindo, sucessivamente, a implantar no homem que fui as personagens que criei. Creio que, semelas, no seria a pessoa que hoje sou, sem elas talvez a minha vida no tivesse logrado sermais do que um esboo impreciso, uma promessa como tantas outras que de promessa noconseguiram passar, a existncia de algum que talvez pudesse ter sido e afinal no tinhachegado a ser.

    Agora sou capaz de ver com clareza quem foram os meus mestres de vida, os que maisintensamente me ensinaram o duro ofcio de viver, essas dezenas de personagens deromance e de teatro que neste momento vejo desfilar diante dos meus olhos, esses homens e essas mulheres feitos de papel e de tinta, essa gente que eu acreditava ir guiando de acordo com as minhas convenincias de narrador e obedecendo minha vontade de autor, como tteres articulados cujas aces no pudessem ter mais efeito emmim que o peso suportado e a tenso dos fios com que os movia. Desses mestres, oprimeiro foi, sem dvida, um medocre pintor de retratos que designei simplesmente pelaletra H., protagonista de uma histria a que creio razovel chamar de dupla iniciao (a dele,mas tambm, de algum modo, do autor do livro), intitulada Manual de Pintura e Caligrafia,que me ensinou a honradez elementar de reconhecer e acatar, sem ressentimento nem frustrao, os meus prprios limites: no podendo nem ambicionando aventurar-me paraalm do meu pequeno terreno de cultivo, restava-me a possibilidade de escavar para ofundo, para baixo, na direco das razes. As minhas, mas tambm as do mundo, se podiapermitir-me uma ambio to desmedida. No me compete a mim, claro est, avaliar o mrito do resultado dos esforos feitos, mas creio ser hoje patente que todo o meu trabalho, de a para diante, obedeceu a esse propsito e a esse princpio.

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    Vieram depois os homens e as mulheres do Alentejo, aquela mesma irmandade de conde-nados da terra a que pertenceram o meu av Jernimo e a minha av Josefa, camponesesrudes obrigados a alugar a fora dos braos a troco de um salrio e de condies de trabalho que s mereceriam o nome de infames, cobrando por menos que nada a vida a queos seres cultos e civilizados que nos prezamos de ser apreciamos chamar, segundo asocasies, preciosa, sagrada ou sublime. Gente popular que conheci, enganada por umaIgreja to cmplice como beneficiria do poder do Estado e dos terratenentes latifundistas,gente permanentemente vigiada pela polcia, gente, quantas e quantas vezes, vtima inocentedas arbitrariedades de uma justia falsa. Trs geraes de uma famlia de camponeses, osMau-Tempo, desde o comeo do sculo at Revoluo de Abril de 1974 que derrubou aditadura, passam nesse romance a que dei o ttulo de Levantado do Cho, e foi com taishomens e mulheres do cho levantados, pessoas reais primeiro, figuras de fico depois,que aprendi a ser paciente, a confiar e a entregar-me ao tempo, a esse tempo que simultaneamente nos vai construindo e destruindo para de novo nos construir e outra veznos destruir. S no tenho a certeza de haver assimilado de maneira satisfatria aquilo quea dureza das experincias tornou virtude nessas mulheres e nesses homens: uma atitudenaturalmente estica perante a vida. Tendo em conta, porm, que a lio recebida, passadosmais de vinte anos, ainda permanece intacta na minha memria, que todos os dias a sintopresente no meu esprito como uma insistente convocatria, no perdi, at agora, a esperana de me vir a tornar um pouco mais merecedor da grandeza dos exemplos de dignidade que me foram propostos na imensido das plancies do Alentejo. O tempo o dir.

    Que outras lies poderia eu receber de um portugus que viveu no sculo XVI, que com-ps as Rimas e as glrias, os naufrgios e os desencantos ptrios de Os Lusadas, que foium gnio potico absoluto, o maior da nossa Literatura, por muito que isso pese a FernandoPessoa, que a si mesmo se proclamou como o Super-Cames dela? Nenhuma lio queestivesse minha medida, nenhuma lio que eu fosse capaz de aprender, salvo a mais simples que me poderia ser oferecida pelo homem Lus Vaz de Cames na sua estremehumanidade, por exemplo, a humildade orgulhosa de um autor que vai chamando a todasas portas procura de quem esteja disposto a publicar-lhe o livro que escreveu, sofrendopor isso o desprezo dos ignorantes de sangue e de casta, a indiferena desdenhosa de umrei e da sua companhia de poderosos, o escrnio com que desde sempre o mundo tem recebido a visita dos poetas, dos visionrios e dos loucos. Ao menos uma vez na vida, todosos autores tiveram ou tero de ser Lus de Cames, mesmo se no escreveram as redondilhas

  • de Sbolos rios... Entre fidalgos da corte e censores do Santo Ofcio, entre os amores deantanho e as desiluses da velhice prematura, entre a dor de escrever e a alegria de terescrito, foi a este homem doente que regressa pobre da ndia, aonde muitos s iam paraenriquecer, foi a este soldado cego de um olho e golpeado na alma, foi a este sedutor semfortuna que no voltar nunca mais a perturbar os sentidos das damas do pao, que eu pusa viver no palco da pea de teatro chamada Que farei com este livro?, em cujo final ecoauma outra pergunta, aquela que importa verdadeiramente, aquela que nunca saberemos sealguma vez chegar a ter resposta suficiente: Que fareis com este livro? Humildade orgulhosa, foi essa de levar debaixo do brao uma obra-prima e ver-se injustamente enjeitadopelo mundo. Humildade orgulhosa tambm, e obstinada, estar de querer saber para que iroservir amanh os livros que andamos a escrever hoje, e logo duvidar que consigam perdurar longamente (at quando?) as razes tranquilizadoras que acaso nos estejam a serdadas ou que estejamos a dar a ns prprios. Ningum melhor se engana que quando consente que o enganem os outros...

    Aproximam-se agora um homem que deixou a mo esquerda na guerra e uma mulher queveio ao mundo com o misterioso poder de ver o que h por trs da pele das pessoas. Elechama-se Baltasar Mateus e tem a alcunha de Sete-Sis, a ela conhecem-na pelo nome deBlimunda, e tambm pelo apodo de Sete-Luas que lhe foi acrescentado depois, porque estescrito que onde haja um sol ter de haver uma lua, e que s a presena conjunta e harmoniosa de um e do outro tornar habitvel, pelo amor, a terra. Aproxima-se tambm umpadre jesuta chamado Bartolomeu que inventou uma mquina capaz de subir ao cu e voarsem outro combustvel que no seja a vontade humana, essa que, segundo se vem dizendo,tudo pode, mas que no pde, ou no soube, ou no quis, at hoje, ser o sol e a lua da simples bondade ou do ainda mais simples respeito. So trs loucos portugueses do scu-lo XVIII, num tempo e num pas onde floresceram as supersties e as fogueiras daInquisio, onde a vaidade e a megalomania de um rei fizeram erguer um convento, um palcio e uma baslica que haveriam de assombrar o mundo exterior, no caso pouco provvel de esse mundo ter olhos bastantes para ver Portugal, tal como sabemos que ostinha Blimunda para ver o que escondido estava... E tambm se aproxima uma multido demilhares e milhares de homens com as mos sujas e calosas, com o corpo exausto de haverlevantado, durante anos a fio, pedra a pedra, os muros implacveis do convento, as salasenormes do palcio, as colunas e as pilastras, as areas torres sineiras, a cpula da baslica suspensa sobre o vazio. Os sons que estamos a ouvir so do cravo de Domenico

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    Scarlatti, que no sabe se deve rir ou chorar... Esta a histria de Memorial do Convento,um livro em que o aprendiz de autor, graas ao que lhe vinha sendo ensinado desde o antigo tempo dos seus avs Jernimo e Josefa, j conseguiu escrever palavras como estas,donde no est ausente alguma poesia: "Alm da conversa das mulheres, so os sonhos queseguram o mundo na sua rbita. Mas so tambm os sonhos que lhe fazem um coroa deluas, por isso o cu o resplendor que h dentro da cabea dos homens, se no a cabeados homens o prprio e nico cu". Que assim seja.

    De lies de poesia sabia j alguma coisa o adolescente, aprendidas nos seus livros de textoquando, numa escola de ensino profissional de Lisboa, andava a preparar-se para o ofcioque exerceu no comeo da sua vida de trabalho: o de serralheiro mecnico. Teve tambmbons mestres da arte potica nas longas horas nocturnas que passou em bibliotecas pblicas, lendo ao acaso de encontros e de catlogos, sem orientao, sem algum que oaconselhasse, com o mesmo assombro criador do navegante que vai inventando cada lugarque descobre. Mas foi na biblioteca da escola industrial que O Ano da Morte de RicardoReis comeou a ser escrito... Ali encontrou um dia o jovem aprendiz de serralheiro (teriaento 17 anos) uma revista - "Atena" era o ttulo - em que havia poemas assinados comaquele nome e, naturalmente, sendo to mau conhecedor da cartografia literria do seu pas, pensou que existia em Portugal um poeta que se chamava assim: Ricardo Reis. No tardoumuito tempo, porm, a saber que o poeta propriamente dito tinha sido um tal FernandoNogueira Pessoa que assinava poemas com nomes de poetas inexistentes nascidos na suacabea e a que chamava heternimos, palavra que no constava dos dicionrios da poca,por isso custou tanto trabalho ao aprendiz de letras saber o que ela significava. Aprendeu decor muitos poemas de Ricardo Reis ("Para ser grande s inteiro/Pe quanto s no mnimoque fazes"), mas no podia resignar-se, apesar de to novo e ignorante, que um espritosuperior tivesse podido conceber, sem remorso, este verso cruel: "Sbio o que se contentacom o espectculo do mundo". Muito, muito tempo depois, o aprendiz, j de cabelos brancos e um pouco mais sbio das suas prprias sabedorias, atreveu-se a escrever umromance para mostrar ao poeta das Odes alguma coisa do que era o espectculo do mundonesse ano de 1936 em que o tinha posto a viver os seus ltimos dias: a ocupao da Renniapelo exrcito nazista, a guerra de Franco contra a Repblica espanhola, a criao por Salazardas milcias fascistas portuguesas. Foi como se estivesse a dizer-lhe: "Eis o espectculo domundo, meu poeta das amarguras serenas e do cepticismo elegante. Desfruta, goza, contempla, j que estar sentado a tua sabedoria...".

  • O Ano da Morte de Ricardo Reis terminava com umas palavras melanclicas: Aqui, ondeo mar se acabou e a terra espera. Portanto, no haveria mais descobrimentos paraPortugal, apenas como destino uma espera infinita de futuros nem ao menos imaginveis:s o fado do costume, a saudade de sempre, e pouco mais... Foi ento que o aprendiz imag-inou que talvez houvesse ainda uma maneira de tornar a lanar os barcos gua, por exem-plo, mover a prpria terra e p-la a navegar pelo mar fora. Fruto imediato do ressentimentocolectivo portugus pelos desdns histricos de Europa (mais exacto seria dizer fruto de ummeu ressentimento pessoal...), o romance que ento escrevi - A Jangada de Pedra - sep-arou do continente europeu toda a Pennsula Ibrica para a transformar numa grande ilhaflutuante, movendo-se sem remos, nem velas, nem hlices em direco ao Sul do mundo,"massa de pedra e terra, coberta de cidades, aldeias, rios, bosques, fbricas, matos bravios,campos cultivados, com a sua gente e os seus animais", a caminho de uma utopia nova: oencontro cultural dos povos peninsulares com os povos do outro lado do Atlntico,desafiando assim, a tanto a minha estratgia se atreveu, o domnio sufocante que os EstadosUnidos da Amrica do Norte vm exercendo naquelas paragens... Uma viso duas vezesutpica entenderia esta fico poltica como uma metfora muito mais generosa e humana:que a Europa, toda ela, dever deslocar-se para o Sul, a fim de, em desconto dos seus abu-sos colonialistas antigos e modernos, ajudar a equilibrar o mundo. Isto , Europa finalmentecomo tica. As personagens da Jangada de Pedra - duas mulheres, trs homens e um co- viajam incansavelmente atravs da pennsula enquanto ela vai sulcando o oceano. Omundo est a mudar e eles sabem que devem procurar em si mesmos as pessoas novas emque iro tornar-se (sem esquecer o co, que no um co como os outros...). Isso lhes basta.

    Lembrou-se ento o aprendiz de que em tempos da sua vida havia feito algumas revisesde provas de livros e que se na Jangada de Pedra tinha, por assim dizer, revisado o futuro,no estaria mal que revisasse agora o passado, inventando um romance que se chamariaHistria do Cerco de Lisboa, no qual um revisor, revendo um livro do mesmo ttulo, masde Histria, e cansado de ver como a dita Histria cada vez menos capaz de surpreender,decide pr no lugar de um "sim" um "no", subvertendo a autoridade das "verdades histricas".Raimundo Silva, assim se chama o revisor, um homem simples, vulgar, que s se distingue da maioria por acreditar que todas as coisas tm o seu lado visvel e o seu ladoinvisvel e que no saberemos nada delas enquanto no lhes tivermos dado a volta completa. De isso precisamente se trata numa conversa que ele tem com o historiador.Assim: "Recordo-lhe que os revisores j viram muito de literatura e vida, O meu livro,

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    recordo-lho eu, de histria, No sendo propsito meu apontar outras contradies, senhor doutor, em minha opinio tudo quanto no for vida literatura, A histria tambm.A histria sobretudo, sem querer ofender, E a pintura, e a msica, A msica anda a resistirdesde que nasceu, ora vai, ora vem, quer livrar-se da palavra, suponho que por inveja, masregressa sempre obedincia, E a pintura, Ora, a pintura no mais do que literatura feitacom pincis, Espero que no esteja esquecido de que a humanidade comeou a pintar muitoantes de saber escrever, Conhece o rifo, se no tens co caa com o gato, ou, por outraspalavras, quem no pode escrever, pinta, ou desenha, o que fazem as crianas, O que vocquer dizer, por outras palavras, que a literatura j existia antes de ter nascido, Sim senhor,como o homem, por outras palavras, antes de o ser j o era, Quer-me parecer que vocerrou a vocao, devia era ser historiador, Falta-me o preparo, senhor doutor, que pode umsimples homem fazer sem o preparo, muita sorte j foi ter vindo ao mundo com a genticaarrumada, mas, por assim dizer, em estado bruto, e depois no mais polimento queprimeiras letras que ficaram nicas, Podia apresentar-se como autodidacta, produto do seuprprio e digno esforo, no vergonha nenhuma, antigamente a sociedade tinha orgulhonos seus autodidactas, isso acabou, veio o desenvolvimento e acabou, os autodidactas sovistos com maus olhos, s os que escrevem versos e histrias para distrair que estoautorizados a ser autodidactas, mas eu para a criao literria nunca tive jeito, Ento, meta-se a filsofo, O senhor doutor um humorista, cultiva a ironia, chego a perguntar-mecomo se dedicou histria, sendo ela to grave e profunda cincia, Sou irnico apenas navida real, Bem me queria a mim parecer que a histria no a vida real, literatura, sim, enada mais, Mas a histria foi vida real no tempo em que ainda no se lhe poderia chamarhistria, Ento o senhor doutor acha que a histria e a vida real, Acho, sim, Que a histriafoi vida real, quero dizer, No tenho a menor dvida, Que seria de ns se o deleatur que tudoapaga no existisse, suspirou o revisor". Escusado ser acrescentar que o aprendiz aprendeu com Raimundo Silva a lio da dvida. J no era sem tempo.

    Ora, foi provavelmente esta aprendizagem da dvida que o levou, dois anos mais tarde, aescrever O Evangelho segundo Jesus Cristo. certo, e ele tem-no dito, que as palavras dottulo lhe surgiram por efeito de uma iluso de ptica, mas legtimo interrogar-nos se noteria sido o sereno exemplo do revisor o que, nesse meio tempo, lhe andou a preparar o terreno de onde haveria de brotar o novo romance. Desta vez no se tratava de olhar por trsdas pginas do Novo Testamento procura de contrrios, mas sim de iluminar com uma luzrasante a superfcie delas, como se faz a uma pintura, de modo a fazer-lhe ressaltar os

  • relevos, os sinais de passagem, a obscuridade das depresses. Foi assim que o aprendiz,agora rodeado de personagens evanglicas, leu, como se fosse a primeira vez, a descrioda matana dos Inocentes, e, tendo lido, no compreendeu. No compreendeu que jpudesse haver mrtires numa religio que ainda teria de esperar trinta anos para que o seufundador pronunciasse a primeira palavra dela, no compreendeu que no tivesse salvado avida das crianas de Belm precisamente a nica pessoa que o poderia ter feito, no compreendeu a ausncia, em Jos, de um sentimento mnimo de responsabilidade, deremorso, de culpa, ou sequer de curiosidade, depois de voltar do Egipto com a famlia. Nemse poder argumentar, em defesa da causa, que foi necessrio que as crianas de Belmmorressem para que pudesse salvar-se a vida de Jesus: o simples senso comum, que atodas as coisas, tanto s humanas como s divinas, deveria presidir, a est para nosrecordar que Deus no enviaria o seu Filho terra, de mais a mais com o encargo de

    redimir os pecados da humanidade, para que ele viesse a morrer aos dois anos de idadedegolado por um soldado de Herodes... Nesse Evangelho, escrito pelo aprendiz com orespeito que merecem os grandes dramas, Jos ser consciente da sua culpa, aceitar oremorso em castigo da falta que cometeu e deixar-se- levar morte quase sem resistncia, como se isso lhe faltasse ainda para liquidar as suas contas com o mundo. OEvangelho do aprendiz no , portanto, mais uma lenda edificante de bem-aventurados e dedeuses, mas a histria de uns quantos seres humanos sujeitos a um poder contra o quallutam, mas que no podem vencer. Jesus, que herdar as sandlias com que o pai tinhapisado o p dos caminhos da terra, tambm herdar dele o sentimento trgico da responsabilidade e da culpa que nunca mais o abandonar, nem mesmo quando levantar avoz do alto da cruz: " Homens, perdoai-lhe porque ele no sabe o que fez", por certo referindo-seao Deus que o levara at ali, mas quem sabe se recordando ainda, nessa agonia derradeira, o seu pai autntico, aquele que, na carne e no sangue, humanamente o gerara. Como se v, o aprendiz j tinha feito uma larga viagem quando no seu hertico Evangelhoescreveu as ltimas palavras do dilogo no templo entre Jesus e o escriba: "A culpa um loboque come o filho depois de ter devorado o pai, disse o escriba, Esse lobo de que falas j comeuo meu pai, disse Jesus, Ento s falta que te devore a ti, E tu, na tua vida, foste comido, ou devo-rado, No apenas comido e devorado, mas vomitado, respondeu o escriba".

    Se o Imperador Carlos Magno no tivesse estabelecido no Norte da Alemanha um mosteiro,se esse mosteiro no tivesse dado origem cidade de Mnster, se Mnster no tivessequerido assinalar os mil e duzentos anos da sua fundao com uma pera sobre a pavorosa

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    guerra que enfrentou no sculo XVI protestantes anabaptistas e catlicos, o aprendiz noteria escrito a pea de teatro a que chamou In Nomine Dei. Uma vez mais, sem outroauxlio que a pequena luz da sua razo, o aprendiz teve de penetrar no obscuro labirinto dascrenas religiosas, essas que com tanta facilidade levam os seres humanos a matar e adeixar-se matar. E o que viu foi novamente a mscara horrenda da intolerncia, uma intol-erncia que em Mnster atingiu o paroxismo demencial, uma intolerncia que insultava aprpria causa que ambas as partes proclamavam defender. Porque no se tratava de umaguerra em nome de dois deuses inimigos, mas de uma guerra em nome de um mesmo deus.Cegos pelas suas prprias crenas, os anabaptistas e os catlicos de Mnster no foramcapazes de compreender a mais clara de todas as evidncias: no dia do Juzo Final, quandouns e outros se apresentarem a receber o prmio ou o castigo que mereceram as suasaces na terra, Deus, se em suas decises se rege por algo parecido lgica humana terde receber no paraso tanto a uns como aos outros, pela simples razo de que uns e outrosnele crem. A terrvel carnificina de Mnster ensinou ao aprendiz que, ao contrrio do queprometeram, as religies nunca serviram para aproximar os homens, e que a mais absurdade todas as guerras uma guerra religiosa, tendo em considerao que Deus no pode,ainda que o quisesse, declarar guerra a si prprio...

    Cegos. O aprendiz pensou: "Estamos cegos", e sentou-se a escrever o Ensaio sobre aCegueira para recordar a quem o viesse a ler que usamos perversamente a razo quandohumilhamos a vida, que a dignidade do ser humano todos os dias insultada pelospoderosos do nosso mundo, que a mentira universal tomou o lugar das verdades plurais,que o homem deixou de respeitar-se a si mesmo quando perdeu o respeito que devia ao seusemelhante. Depois, aprendiz, como se tentasse exorcizar os monstros engendrados pelacegueira da razo, ps-se a escrever a mais simples de todas as histrias: uma pessoa quevai procura de outra pessoa apenas porque compreendeu que a vida no tem nada maisimportante que pedir a um ser humano. O livro chama-se Todos os Nomes. No escritos,todos os nossos nomes esto l. Os nomes dos vivos e os nomes dos mortos.

    Termino. A voz que leu estas pginas quis ser o eco das vozes conjuntas das minhas personagens. No tenho, a bem dizer, mais voz que a voz que elas tiverem. Perdoai-me sevos pareceu pouco isto que para mim tudo.

  • Bibliografia em Lngua Portuguesa

    Poesia"Os poemas possveis" - Portuglia Ed. 1966. Ed. Caminho 1982"Provavelmente alegria" - Livros Horizonte 1970. Ed. Caminho 1985"O ano de 1993" - Ed. Futura 1975. - Ed. Caminho 1987

    Prosa "Manual de Pintura e Caligrafia" (romance) - Moraes Ed. 1977. Ed. Caminho, 1984"Objecto quase" - Moraes Ed. 1978. Ed. Caminho, 1984"Levantado do Cho" (romance) - Ed. Caminho, 1980"Memorial do Convento" (romance) - Ed. Caminho, 1982, Crculo de Leitores, 1984"O ano da morte de Ricardo Reis" (romance) - Ed. Caminho, 1984"A Jangada de Pedra" (romance) - Ed. Caminho 1986, Crculo de Leitores, 1987"Histria do Cerco de Lisboa" (romance) - Ed. Caminho, 1989"O Evangelho Segundo Jesus Cristo" (romance) - Ed. Caminho, 1991 "Ensaio sobre a Cegueira" (romance) - Ed. Caminho, 1995"Todos os Nomes" (romance) - Ed. Caminho, 1997"Terra do Pecado" (romance) - 1947. 2. ed. - Lisboa : Caminho, 1997"O conto da Ilha Desconhecida" c/ desenhos de Pedro Cabrita Reis - Lisboa: Assrio & Alvim, 1997"A Caverna" (romance) - Lisboa : Caminho, 2000"O Homem Duplicado" (romance) - Lisboa : Caminho, 2002"Ensaio sobre a Lucidez" (romance) - Lisboa : Caminho, 2004"As Intermitncias da Morte" (romance) - Lisboa : Caminho, 2005"As Pequenas Memrias" - Lisboa: Caminho, 2006.

    Ensaios "Deste Mundo e do Outro" - Ed Arcdia 1971. Ed Caminho, 1985"A Bagagem do Viajante" (crnicas) - Ed. Futura 1973. Ed. Caminho, 1986"As Opinies que o DL teve" - Seara Nova Ed. Futura, 1974"Os Apontamentos: Crnicas Polticas" - Seara Nova, 1976, Ed. Caminho, 1990"Viagem a Portugal" - Crculo de Leitores 1981, - Ed. Caminho, 1984

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    "Folhas Polticas: 1976-1998" - Lisboa: Caminho, 1999"Discursos de Estocolmo" - Lisboa: Caminho, 1999

    Drama"A Noite" - Ed. Caminho 1979"Que Farei Com Este Livro?" - Ed. Caminho 1980"A Segunda Vida de Francisco de Assis" - Ed. Caminho 1987"In Nomine Dei", 1993"Don Giovanni ou O Dissoluto Absolvido" (teatro) - Lisboa : Caminho, 2005

    Dirios"Cadernos de Lanzarote: Dirio. Vol. 1-5" - Lisboa : Caminho, 1994-1998. Cinco volumes.

    A histria do Palcio Nacional de Mafra

    O Real Convento de Mafra o mais importante monumento do para a Ordem de S.Francisco.Foi mandado construir no sc. XVIII pelo Rei D. Joo V, em cumprimento de um voto paraobter sucesso do seu casamento com D. Maria Ana de ustria ou para a cura de uma graveenfermidade.A primeira pedra foi lanada em 1717, perante o Patriarca e toda a Corte, e a 22 de Outubrode 1730, dia do aniversrio do Rei, sagrou-se solenemente a Baslica, dedicada a NossaSenhora e Santo Antnio.Construdo em pedra lioz da regio, o edifcio ocupa uma rea de c. de 4 0.000 m2 de reae tem 2.554 portas e 2.952 janelasPara a obra de Mafra encomendou o Monarca, em Frana e Itlia, escultura e pintura agrandes mestres italianos e portugueses que estudavam em Roma, e tambm os paramentose alfaias religiosas. Na Flandres encomendou ainda dois carrilhes com 92 sinos, que constituem o maior conjunto histrico do mundo.Possui uma das mais importantes bibliotecas do sc. XVIII, verdadeira sntese do saber

  • enciclopdico das Luzes.Possui ainda uma enfermaria, que um dos raros hospitais europeus do sc. XVIII ainda in situ.

    Principais coleces: Escultura, Pintura e Paramentos do sculo XVIII.

    reas visitveis: Baslica, Palcio, Biblioteca e parte da rea Conventual (Enfermaria, Botica, Ncleo de ArteSacra).

    Excertos de textos sobre Jos Saramago

    "Um Homem vem a subir a rua"Baptista BastosCames. Revista de Letras e Culturas Lusfonas, n3, Out/Dez 1998

    "Um homem no s aquilo que um homem faz. Um homem tambm aquilo que ele nofez, e aquilo que ele no permitiu que lhe fizessem. Revejo agora este homem seco e alto,olhos cortados em bisel, bon, passo puxado pelas pernas, passo largo e firme, cara fechada como se fora a ocultao de uma dor s por ele decifrvel. Quando sorri, manifesta-se-lhe uma iluminao feliz.

    Vem a subir a Rua Luz Soriano. Cumprimenta o senhor Joo da leitaria, ocasionalmenteentra e bebe um caf. Um caf pausado. O homem um homem pausado. um homem querecusa despovoar-se. O homem pausado gosta de falar de pessoas e de sobre pessoas escrever.

    uma poca infausta e um tempo inclemente. Um tempo cavo e triste. Um tempo imoral,que exige obedincias e servido. O homem pausado, de passo puxado pelas pernas, passofirme e largo, activa nele a moral do trabalho e a tica da esperana.

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    Estou varanda do jornal onde trabalho, e vejo o homem seco e grave entrar no outro jornal, que fica na mesma rua. Vai cumprir a sua tarefa: entregar originais; vai continuar umdestino: no ser neutro.

    O homem esteve toda a manh a traduzir livros por outros homens escritos. O homem umescritor que reescreve, na sua lngua antiqussima, o que outros escreveram nas suas lnguas de bero e leite. Por vezes, nesse ofcio solitrio, o homem diverte-se. Por vezes,nessa profisso humilde, aborrece-se. Mas o homem que sobe a rua dos dois jornais vairematando a vida num arredondar de conta ao fim do ms.

    O homem vai to mergulhado em pensamentos que ningum imagina que, l dentro, nele,no l dentro dele, agitam-se ecos nostlgicos e porventura obsessivos. O homem no meditaem fortunas. O homem no ambiciona glrias. O homem que sobe a rua dos dois jornaisdeseja, somente, entregar o artigo, para regressar a casa e regressar banca. O homem, aessa hora do sobre a tarde, quando a tarde comea a ser o risco da noite, escreve as suascoisas, os seus textos mais ntimos, as suas frases mais secretas. O homem est a inventarruas cheias de mundos. O homem est a dizer aos outros homens que o mundo uma rua. preciso subir a rua.

    A moral do trabalho, isso mesmo. Traduz de manh, horas a fio. Escreve, a seguir, crnicas,artigos, recenses. Repousa, no ento do ento, a redigir os sonhos: fragilidades, desapontamentos, angstias, sentimentos, abusos. O homem escreve sobre a condiohumana. O homem escreve fices, sem nunca deixar que se corroa a pelcula de pudor ediscrio com a qual se protege, no mais ntimo e no mais pessoal.

    O homem envolveu-se no turbilho da sua poca porque no aceitou a resignao, porqueno se submeteu negligncia, porque aprendeu que, mesmo no oprbrio e na clausura,um homem pode ser livre. O homem que escreve um homem livre. Exactamente porqueescreve o homem cujo passo puxado pelas pernas, cara fechada, gesto pausado, umhomem livre. L vem um homem livre. L vem um homem de palavras, um homem depalavra; palavra de honra."

  • Blimunda, o Orfeo no feminino ou passagem de Blimunda por Itlia

    Maria Armandina MaiaCames. Revista de Letras e Culturas Lusfonas, n3, Out/Dez 1998

    "Blimunda", a pera lrica em trs actos que s 21.30 do dia 20 de Maio de 1990 estreava noTeatro Lrico de Milo, tinha a assinatura do compositor italiano Azio Corghi, autor de umaobra consagrada, que conhecera representaes nos mais prestigiados teatros e salas deconcerto, tambm a nvel internacional. Na obra deste compositor, responsvel pela Ctedrade Composio no Conservatrio de Milo, colaborador da Fundao Rossini e da CasaRicordi, ocupavam lugar de indiscutvel relevo as obras musicais que resultavam deincurses pelo mundo literrio, sobretudo com a composio Gargantua, experincia de talmodo notvel que levaria o Teatro alla Scala de Milo a confiar-lhe o projecto da pera lrica Blimunda, extrada do romance de Jos Saramago, Memorial do Convento.

    O autor do Memorial tinha, por essa altura, trs obras suas publicados em Itlia: Memorialedel Convento, Feltrinelli, Milano, 1984; La Zattera di Pietra, Feltrinelli, 1987; e Storiadell'Assedio di Lisbona, Bompiani, 1990, tradues assinadas por Rita Desti (com excepodo Memoriale del Convento, fruto de uma traduo a quatro mos, de Rita Desti e CarmenRadulet).

    Para o vasto e exigente pblico italiano, Saramago era o autor portugus mais conhecidodepois do "fenmeno" Pessoa, o primeiro a merecer destaque e interesse de casas editorasque constituam um selo de garantia. No entanto, era junto de um ncleo de intelectuais queJos Saramago assumia foros de verdadeira revelao, pela qualidade e ineditismo da suapalavra literria.

    Ligado, na sua maior parte, a Instituies Universitrias, este grupo promovia a obra e oescritor que, pela sua mo, conheceu cidades como Perugia, Florena, Roma, Milo e Turim,em conferncias e reunies que se multiplicavam.

    Foi, alis, num destes momentos que conheceu Azio Corghi, que, impressionado pela

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    atmosfera criada no Memorial, confessou a Jos Saramago o seu desejo de "contar ahistria de um Orfeu no feminino". A resposta de Saramago baptizaria a pera. "Cham-la--emos Blimunda".

    Num exerccio de grande unidade, escritor e compositor intersectaram os respectivossaberes, dando lugar ao magnfico trabalho que o libreto de Blimunda, descrito pela crtica Lidia Bramani (casa Ricordi), como "uma estrutura em que so determinantes a vozrecitante, solistas, oiteto madrigalista, coro, orquestra, electrnica, que se intersectam aolongo de linhas que se fragmentam e refazem, entrecruzando-se, distanciando-se, por vezestocando-se ao de leve em trs espaos musicalmente e cenograficamente distintos: oespao acstico, o espao imaginrio e o espao real".

    Mas a estreia da pera no se limitou em Milo ao pblico da sala que na noite de 20 deMaio encheu o Teatro Lrico, para aplaudir uma obra que, num s tempo, nos deslumbravae quase estarrecia pela opulncia, grandiosidade e magnificncia, mas tambm pelo seuprprio e surpreendente avesso, na conteno da gestualidade, na pureza dos sons, no acenar dos sentidos.

    Nos dias que a antecederam, numa organizao promovida pela Universidade de Milo,tinha lugar o Colquio Viaggio intorno al Convento di Mafra, na belssima "Sala diRapprezantanza", cujo programa era completado por um concerto de homenagem a autoresportugueses do tempo - Carlos Seixas, Domingos Bomtempo e Francisco Lacerda - excelentemente interpretados por um grupo do Conservatorio Verdi, ao qual a FundaoCalouste Gulbenkian, num assinalvel esforo de colaborao, facultara, num curtssimoespao de tempo, as partituras das obras.

    Um vasto pblico ouviu, entre outros, textos de Piero Ceccucci: Il "Memoriale del Convento"nell'itinerario narrativo di Jos Saramago e Eduardo Loureno: O Memorial da histriahumana como histria santa.

  • Palavras para uma homenagem nacionalCarlos Reis

    Discurso proferido na homenagem nacional a Jos SaramagoLisboa, 14 de Outubro de 1998

    Num dos seus romances e num estilo que lhe caracterstico, escreveu Jos Saramago:"Dificlimo acto o de escrever, responsabilidade das maiores..." E, logo depois, continuaSaramago: "Basta pensar no extenuante trabalho que ser dispor por ordem temporal osacontecimentos, primeiro este, depois aquele, ou, se tal mais convm s necessidades doefeito, o sucesso de hoje posto antes do episdio de ontem, e outras no menos arriscadasacrobacias..."

    No por acaso, adoptou-se como lema desta homenagem nacional - como seu mote, parafalarmos a linguagem que s coisas literrias convm - a expresso que abre este passo d'AJangada de Pedra. No por acaso, sublinha-se nela, de entrada, o "dificlimo acto" de escrever,tambm a responsabilidade que ele envolve, responsabilidade que s na aparncia dascoisas entenderemos como expresso de sentido nico, pois que, realmente, nela se ocultam e desdobram responsabilidades vrias: responsabilidade esttica, responsabilidadecultural, responsabilidade cvica, responsabilidade tica.

    tambm a conscincia de uma responsabilidade mltipla que hoje aqui celebramos.Porque, com a literatura que escreveu e escrever, Jos Saramago soube protagonizar adimenso dessa responsabilidade, ele merecedor de uma gratido que estendemos tambm a toda a literatura: essa que o autor de Memorial do Convento escolheu comomatria e linguagem com que representa o mundo, os homens que o povoam, as suasangstias e as suas fraquezas; essa que, desde sempre - desde que a palavra se articuloucomo lugar esttico de inscrio de sentidos a dizer -, foi manifestao de pulses e de tenses, de fortunas e desfortunas, de destinos individuais e de destinos colectivos, dehistrias ficcionais e dessa outra Histria que a todos compromete porque de todos resulta, como trajecto colectivo e fado comum.

    Assim . No princpio era certamente o verbo; mas logo depois, numa espcie de segundo

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    princpio que o primeiro caucionou, esse verbo fez-se a matria artstica com que algunsdisseram e dizem o mundo: um mundo tornado singular, que o deles e j tambm o nosso.Nesse princpio tambm remoto est algum que conta uma histria plasmada pela e napalavra, algum que nos seduz, chame-se-lhe aedo ou narrador, contista ou romancista;algum que nos domina, pelo talento com que diz "era uma vez" ou "in illo tempore" ou"conta-se que...". Mudaram os tempos, no mudou, porm, esse acto mgico que, abrindoo ssamo da imaginao e do mito, da nsia de saber e do desejo de conhecer, modelizauma mensagem a que s podem ser indiferentes os que acreditam que a fico s fico;esses e os que ignoram que na fico pode expressar-se fingidamente - isto , por sofisticadamodelao artstica - uma verdade de sinuosa circulao.

    Tambm por isso, a literatura foi e ser cena de projeco de outras tenses que no apenas - o que muito seria j - aquelas que a sua escrita encerra: tenses que explicam que,no raro, literatura tenham sido cometidos propsitos outros que no aqueles que a suamesma condio de fenmeno artstico legitima; tenses que, noutros e bem sombriosmomentos, sobre ela fizeram recair a violncia dos homens que se iludiram com a crenade que censuras e interdies alguma vez poderiam calar a voz dos escritores. Jamais o fizeram - e Saramago disso a evidncia bem viva, ou no fosse ele quem, referindo-se umdia ao poder das palavras e violncia do silncio, disse: "Caem sobre ele as palavras. Todasas palavras. As palavras boas e as ms. O trigo e o joio. Mas s o trigo d po"".

  • Apoios

    Palcio Nacional de Mafra(Capela de Campo Santo)4 a 6 Feira 11h00 e 15h00 (sob marcao)1Sb/ms 16h00

    Espectculo integrado no projecto "Teatro, Educao e Comunidade" TNDM II 07/08

    INFORMAES E RESERVASTel. 261 817 554Fax 261 811 947E-mail [email protected]