gonzalo torrente ballester - cronica do rei pasmado

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Gonzalo Torrente Ballester Crónica do Rei Pasmado Scherzo em re(i) maior alegre, mas não demasiado

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Crnica do Rei Pasmado

Gonzalo Torrente Ballester

Crnica do Rei PasmadoScherzo em re(i) maior

alegre, mas no demasiado

http://groups.google.com/group/digitalsourceUMA TERRA SEM AMOS

EDITORIAL CAMINHO

Gonzalo Torrente Ballester

Ttulo original:

Crnica del Rey Pasmado

8 edio

Traduo de Antnio Gonalves

(C) Gonzalo Torrente Ballester, 1989

Direito de traduo para

Portugal reservados por

Editorial Caminho, SA, Lisboa 1992

Tal como acontecera j em Espanha, A Crnica do Rei Pasmado foi um grande xito em Portugal.

Nada mais natural. que este scherzo em re(i) maior alegre, mas no demasiado, como o prprio autor lhe chama, um livro particularmente saboroso, hbil e irnico, narrado com a maestria e a sabedoria de um escritor como Ballester.

A partir do pasmo extasiado do rei ao ver pela primeira vez uma mulher nua, e ao querer ver nua tambm a rainha, toda uma intriga se tece na corte, metendo nobres, inquisidores, uma afamada meretriz, um jesuta portugus, a superiora do convento; toda uma tela de uma obra que bem justifica o qualificativo de pitoresca, num divertimento de primeira gua.

De Gonzalo Torrente Ballester, a Caminho publicou, nesta mesma coleco, Fragmentos de Apocalipse, Prmio da crtica 1977, e A Morte do Decano.

Para o meu colega Jesus Ferrero,

- fraternalmente

G. T. B.

Captulo I

1.

A madrugada daquele domingo, tantos de Outubro, foi de milagres, maravilhas e surpresas, embora tivesse havido, como sempre, desacordo entre testemunhas e testemunhos. Mais exacto seria, certamente, dizer que toda a gente falou deles, ainda que ningum os tivesse visto; mas, como a exactido impossvel, mais vale deixar as coisas como as contam e contaro: foi a cova da rua do Pez, que ficou vista do mundo durante todo o dia, e o povo acorreu a v-la e cheir-la como se fosse a abada. O caso, segundo se relata, foi, por exemplo, assim: uma velha, de madrugada, viu sair uma vbora de debaixo de uma pedra: a vbora desatou a correr para baixo como podia ter desatado a correr para cima; mas o que viu o correeiro da Rua de So Roque j no foi uma vbora, mas sim uma cobra de razovel tamanho, que tambm desatou a correr para cima ou para baixo, a direco no consta. A beata que saa de So Gins, de ouvir a missa da alba, viu um verdadeiro cobro que, esse sim, ia a caminho do Pao, mais coisa menos coisa; e, finalmente, algum da Guarda Valona que ia para o servio ou vinha dele (isto no muito preciso), o que pde contemplar, atnito ou esbugalhado, foi uma gigantesca boa que rodeava o Pao, pela parte que assenta na terra ou confina com ela, e parecia apertar o edifcio com ganas de o derrubar, ou pelo menos de o espremer, o que parece mais verosmil, pelo menos do ponto de vista da semntica. O guarda valo comeou aos gritos na sua lngua, mas, como ningum o entendia, deu tempo a que a gigantesca serpente desistisse do seu propsito, pelo menos aparentemente, e se escapulisse com espantosa mansido para o Campo del Moro, onde foi procurada em vo durante toda a manh por equipas de peritos que se revezavam de hora a hora. A histria do tesouro de moedas antigas atribuiu-se sorte de um catraio, mas havia algumas variantes na localizao do achado: segundo uns, fora da Portela de Embaixadores, conforme se sai, direita; segundo outros, sada da Porta de Toledo, segundo se sai, esquerda. Nem o tesouro nem o catraio foram encontrados.

Os sinos de Santa gueda tocando sozinhos, toda a gente os ouviu; mas quem toda a gente? A histria dos gritos angustiantes saindo de uma casa em runas veio do bairro de Las Vistillas: uns gritos tremendos e doloridos, de condenados ao fogo eterno ou coisa assim, embora tambm pudessem corresponder a penitentes do Purgatrio: eram, vejam bem, gritos pestilentos. O que pde ser comprovado por quem o quis fazer foi o caso da rua do Pez: com efeito, havia uma cova que atravessava a rua em linha quebrada, de sul a norte; a princpio, ao que parece, saam da greta (da furna, segundo as primeiras testemunhas, desconhecidas) gases sulfurosos, pelo que toda a gente pensou, e com razo, que no fundo da greta comeava o inferno, sobretudo se se tiver em conta que, com os gases, saam rugidos de dor e blasfmias horrendas; mas, quando o povo comeou a juntar-se e a dar os seus alvitres, a furna j no o era, e no cheirava pior do que a prpria rua. V-se que os gases se tinham esgotado.

2.

O proco de So Martinho, o da capa, D. Secundino Mirambel Pacheco, tinha estado em novo nas ndias, e da viagem por mar tinha trazido um culo, presente de um piloto genovs com o qual travara amizade durante a travessia. Todas as noites, D. Secundino perscrutava o cu com aquele aparelho, se a noite era medianamente clara ou se as estrelas se distinguiam com suficiente fulgor. Durante muito tempo, D. Secundino no passou de perito em estrelas, de que falava aos seus amigos quando tomava o chocolate, tardinha, e com alguns ntimos; mas as pessoas no pareciam dar mais importncia s questes da abbada celeste do que a aconselhada pelos pregadores, que soam apresent-la como exemplo da predileco que a Divindade tinha pela beleza, e tambm de obedincia, movendo-se como se moviam conforme as ordens recebidas h muitos sculos, no se sabe quantos nem convm investig-lo. Uma noite, todavia, uma noite de sbado, descobriu, alm das estrelas, bruxas, e considerou oportuno dar conta da sua descoberta ao Santo Ofcio. Depois de uma sesso secreta, o Inquisidor-mor, em pessoa, encomendou a D. Secundino um relatrio semanal sobre a qualidade e o nmero de bruxas reunidas, e possivelmente dos bruxos que transitavam pela noite sabtica da cidade, ainda que fosse apenas por razes de estatstica. Naquela manh de domingo, tantos de Outubro, uma manh clida e soalheira, D. Secundino Mirambel redigiu o seu relatrio semanal com os habituais escrpulos e a bela prosa de quem tinha bebido nos melhores clssicos latinos e aprendido o castelhano nos arredores de cija: se ceceava um pouco, o ceceio no se transmitia ao papel (O ceceio, em Espanha, prprio das regies do Sul do pas; cija uma cidade andaluza da actual provncia de Sevilha. (N. do T.). Saiu de casa pela fresca, entregou o relatrio a um fmulo da Santa Inquisio e regressou a casa depois de dizer missa, de tomar um chocolate e beber um copo de gua fresca, como lhe pedia o corpo; deitou-se sem se despir, pois, aos domingos e cautela, apenas costumava fazer uma curta soneca. O fmulo da Santa Inquisio passou o escrito a Sua Excelncia, de p desde a madrugada, com a missa j dita e graves problemas no corao e na cabea. Estava no seu gabinete, anexo ao salo do Conselho. Abriu a carta de D. Secundino, deu-lhe uma olhadela, mas, de repente, alguma coisa lhe deve ter chamado a ateno, porque se ps a ler atentamente, com o cenho franzido e exclamaes intercaladas, tais como:

- Deus nos valha! Onde isto chegou! Anda o demnio solta!

Acabou de ler, fechou a carta e ordenou que fossem imediatamente ao convento de So Francisco e que se apresentasse frei Eugnio de Rivadesella, sem mais delongas.

3.

O conde da Pea Andrada dava os ltimos retoques ao seu penteado diante de um espelhinho que lhe trouxera Lucrcia. Ela observava-o por trs, observava-os a ele e sua imagem no espelho. Quando o conde largou o pente, ela deu-lhe um beijo no cabelo e disse-lhe: Ests lindssimo. E foi-lhe buscar a roupeta azul-celeste, para que acabasse de se vestir.

- J ter acordado, a tua ama?

- Costuma ser mandriona, e mais aos domingos.

- Pois, ao Rei, haver que acord-lo. Vo sendo horas.

- Eu no me atrevo. Acorde-o o senhor.

Aproximaram-se da porta do quarto de Marfisa, e Lucrcia abriu-a cautelosamente. Um raio de Sol atravessava a sala, iluminava os grandes mosaicos, brancos e vermelhos, do pavimento, e chegava at beira da cama.

Na sua penumbra, dormiam duas figuras: a do Rei, beirinha; a de Marfisa, ao fundo. O conde aproximou-se em bicos de ps e tocou no ombro nu do monarca.

- Senhor, j so horas.

Sua Majestade abriu os olhos preguiosamente.

- O que que h?

- preciso levantar-se. tarde.

Comearam a dar as oito numa torre: as badaladas tremiam no ar quente, prolongavam-se, misturavam-se umas com as outras at parecerem uma s.

- No muito cedo, conde?

- Temos que atravessar a cidade.

- A p?

- Espero que a minha carruagem nos aguarde.

O Rei levantou-se: nu, deixava ver a sua magreza, e esta adivinhar os seus ossos delicados. Afastou o cobertor de papa e ficou em pelota.

- D-me a minha roupa.

O conde obedeceu, em silncio. O Rei comeou a vestir-se.

- Gostaria de me refrescar um pouco.

- No impossvel, senhor.

O corpo de Marfisa tinha ficado meio a descoberto: deixava ver a cabeleira, as costas, a fina cintura, o arranque das ndegas. O Rei fitou-a. Com surpresa, com estupefaco.

- Viste coisa mais bela?

- H muitas coisas belas no mundo.

- Mais do que o corpo de uma mulher?

- Se o de Marfisa, dificilmente.

- At ontem noite, nunca tinha visto uma mulher nua.

- E ento?

- O paraso tem que ser uma coisa semelhante.

O conde torceu o nariz.

- No creio que os senhores inquisidores aprovassem essa ideia.

- Que sabero os senhores inquisidores de mulheres nuas?

- Segundo eles, tudo.

O Rei j se encontrava meio vestido. O conde pediu a Lucrcia uma bacia com gua fresca. O Rei comeou a remexer na escarcela.

- Que procura Vossa Majestade?

- O meio ducado para Marfisa.

- Meio ducado, s?

- o que indica o protocolo, segundo ouvi dizer.

O conde sorriu.

- Senhor, o protocolo est antiquado, e Marfisa a puta mais cara da cidade. Pelo menos dez ducados.

O Rei fitou-o, assombrado.

- No os tenho. Nunca tive dez ducados. Este meio que procuro tive que o pedir ao meu moo de cmara. Depois, vo cont-lo nas suas memrias.

O conde meteu a mo na sua escarcela e tirou uma bolsa de veludo.

- Aqui esto os dez ducados. Trazia-os para Lucrcia.

Lucrcia entrava com a bacia e ouviu a frase do conde.

- Vossa Senhoria a mim no me tem que dar nada. Considero-me paga.

O Rei fitou o conde, e o conde tornou a sorrir.

- A mim - disse o Rei -, Marfisa no me disse isso.

- que a minha ama, Senhor, f-lo por ofcio, e... eu, por gosto, e o senhor conde deixou-me satisfeita.

- Podes beij-la na minha presena, conde.

O Rei salpicou a cara e enxugou-a com a toalha que Lucrcia lhe oferecia. Enfiou o chapu, mas o conde manteve-se descoberto.

- Cobri-vos, conde - disse o Rei.

O conde obedeceu.

- Obrigado, senhor.

- Cont-lo-emos no palcio, diante do Valido (Espcie de primeiro-ministro caracterstico dos reinados dos monarcas espanhis durante o sculo XVII. (N. do T.), para que se roa de inveja. Agora vamo-nos embora.

Lucrcia acompanhou-os porta. Deu um beijo ao conde e chamou-lhe bonito ao ouvido. A carruagem esperava: pouco sumptuosa, mas slida e elegante. Lucrcia agitou a mo. A carruagem corria pela rua, cheia de altos e baixos, como pela superfcie de um espelho. O Rei olhava em frente, como se o envolvesse o infinito. Tinha cara de pasmado.

- Que fitais com tanta ateno, Senhor?

- O corpo de Marfisa. No posso ver outra coisa.

4.

O moo de cmara que emprestara o meio ducado ao Rei entrou no gabinete pela porta dos confidentes e ficou quieto, humilde, mas fitando de soslaio o Valido.

- Passa-se alguma coisa, Cosme?

- Vossa Excelncia que junte o fio meada: Sua Majestade no dormiu no palcio, tem a cama por desfazer e no aparece em parte nenhuma. Ontem, quando me despedi dele, pediu-me meio ducado.

- E que deduzes tu, Cosme?

- Que o Rei foi para a farra, Excelncia; meio ducado o que pagam os Reis s suas putas, conforme sempre ouvi dizer.

- H coisas, Cosme, que no devem ouvir-se nunca.

- Peo-lhe perdo, Excelncia, mas, graas a que no sou surdo, Vossa Excelncia recebe-me em segredo.

- Tens razo, Cosme. E saiu sozinho, o Rei?

- Ao certo, ao certo, no sei. Mas, quando eu o deixei, estava com o conde da Pea Andrada.

O Valido ficou em silncio, a olhar para o friso da parede fronteira que confinava com o artesoado. Uma loucura de esfinges e de drages multicfalos de muito boa factura.

- O conde da Pea Andrada. E quem esse?

- No saberia explicar-lho, senhor, a no ser que um cavalheiro jovem, de muito bom aspecto, que o Rei trata com confiana.

- Retira-te, Cosme. Obrigado.

Cosme inclinou-se e saiu pela mesma porta por onde tinha entrado. Nessa altura, o Valido fez soar a campainha, de som fino, mas penetrante. Entrou um pajem e ficou mudo junto da porta. O Valido escreveu umas letras num papel.

- Leva isto ao chanceler-mor e que traga imediatamente o que lhe peo.

Saiu o pajem, o Valido murmurou:

- Com que ento s putas, sem eu saber.

A cara do Valido no parecia muito satisfeita, nem muito tranquilo o seu olhar. O chanceler-mor no tardou muito a chegar.

- Aqui est o que pede, Excelncia.

- Custou-te muito encontr-lo?

- Nada, Excelncia. Estava em cima da minha mesa.

- E por que que l estava? Fez alguma petio, esse conde, ultimamente?

- No, que me lembre, Excelncia. E um nome que eu nunca tinha ouvido. Conde da Pea Andrada. tudo muito estranho. No entanto...

- No entanto, o qu?

- A esto os seus papis. Tudo em regra: um condado concedido pelo imperador, a ttulo pessoal, mas declarado hereditrio e de Castela pela majestade de D. Filipe II, que alm disso concede aos titulares patentes de corso contra ingleses e holandeses, com a condio de que mantenham uma esquadra de seis navios e entreguem coroa um quinto das presas. As contas esto em regra, senhor, e pagaram aos reis de Espanha um bom punhado de moedas e outros bens. H tambm... - o chanceler-mor fez uma pausa e fitou o Valido. - ... H tambm um pleito com a casa de Andrade, por questo de limites de senhorio. O que se disputa o vale de Valdovio. A causa est na Real Chancelaria de Valladolid.

- E onde fica esse tal Valdovio?

- Tem que ser na Galiza, senhor. Terra de bruxas, onde nada claro. A gente boa que por l h, ou vem para Madrid, como os de Lemos, ou fica em Salamanca, como os de Monterrey. Aqui citam-se aldeias e cidades de que ningum faz ideia: Cedeira, Santa Marta de Ortigueira... Qualquer coisa como Carao ou Cario, no muito claro. So os portos autorizados para essa esquadra...

O Valido olhou para o volumoso processo, sopesou-o.

- Papis e mais papis. Guarde-os Vossa Merc, mas no os perca de vista. Posso precisar deles.

O chanceler-mor pegou no cartapcio, fez uma reverncia, tornou a reverenciar ao chegar porta, e saiu: a sua partida coincidiu com a chegada do padre Germn de Villaescusa, um capuchinho: tinha entrado pela porta dos confidentes. Fez uma profunda vnia. O Valido levantou-se e beijou-lhe a mo.

- J est ao corrente, padre?

- Todo o palcio o sabe. E o Rei acaba de regressar. No disse uma nica palavra, meteu-se nos seus aposentos, sentou-se diante de uma janela, e parece que contempla o cu.

- Sintomas de arrependimento?

- Como se pode interpretar o olhar de um homem para o horizonte?

- De mil maneiras, metade boas, metade ms.

- Esse homem o Rei.

- Que acaba de passar a noite nos braos do pecado.

- o que parece, padre, e isso que o pior.

- Vossa Excelncia tem alguma outra notcia?

- Que o alcoviteiro foi um tal conde da Pea Andrada, que desconheo.

- Eu, em compensao, ouvi o seu nome... Sim, deixe-me pensar. um galego, no verdade?

- Assim parece.

- A presena do Apstolo naquelas terras no parece ter favorecido a causa do Senhor. Sei de muito boa fonte que mais de noventa por cento dos galegos, clrigos includos, se condenam.

- No so muitos rprobos, padre?

- Pode haver algum erro, mas escasso. Digamos oitenta e nove.

- Mesmo assim...

- As mulheres, as que no so bruxas, so putas. Os relatrios do Santo Ofcio garantem-no.

- Deveria haver maneira de o Rei, sem se desfazer dessas terras, se libertar de semelhante gente.

- Pois no me parece difcil...

O Valido imaginou o distante Reino da Galiza ardendo pelos quatro costados, num gigantesco auto-de-f. O remdio do padre Villaescusa era sempre o mesmo.

Ficaram um momento em silncio, fitando-se.

- O pior, padre, que se anuncia a chegada de uma frota das ndias e, por outro lado, nos Pases Baixos parece iminente uma grande batalha.

O frade persignou-se.

- Se os ingleses nos roubarem o ouro e os holandeses a vitria, haver que acatar a vontade de Deus.

- Isso, padre, evidente. Mas a vontade de Deus inflexvel.

O frade ps-se de p.

- Vou-me pr a rezar, para ver se o Senhor me inspira o remdio. muito cedo. Daqui at missa solene, ainda faltam umas duas horas. O que se pode obter de Deus, nesse tempo!

- Pois lembre-se tambm de mim, padre; desde h trs dias que a minha esposa est de novo com as regras...

- um duro fardo das mulheres, do qual se deduz a sua condio inferior em relao aos homens.

O Valido levantou-se, aproximou-se do frade e ps-lhe as mos nos ombros.

- Mas eu preciso de um herdeiro, padre, mais do que da prpria vida, que no pode esgotar-se em mim prprio. E Vossa Reverncia conhece as minhas splicas e sacrifcios. O Senhor no parece ouvir-nos, nem minha esposa nem a mim.

- Ser porque as suas splicas no chegam ao cu.

- Teremos que gritar, padre? Gritar publicamente, vestir-nos de penitentes, passar sem comer e sem beber?

- No posso responder-vos, senhor. Vou rezar. Alguma coisa me h-de inspirar o Altssimo.

Fez nova reverncia, um pouco mais curta, e saiu pela porta dos confidentes.

5.

Lucrcia acorreu ao terceiro grito de Marfisa. A verdade era que no tinha gritado tanto como noutras manhs, em que a ouvia a vizinhana.

- Lucrcia, Lucrcia do demnio, onde te meteste?

Lucrcia entrou compungida.

- Estava a preparar o banho da senhora.

- Ah, isso parece-me bem. Realmente o que me pede o corpo um banho, mas no muito quente. Como est o dia?

- Escaldante, senhora. Pode-se estar no ptio graas sombra da parra. Parece que o Vero se prolonga.

Marfisa estava nua e esparramada em cima da cama, com as roupas aos ps, feitas numa rodilha, como se as tivesse espezinhado.

- E aqueles dois?

- Partiram de manhzinha, senhora.

- Iam satisfeitos? - E, antes que Lucrcia lhe respondesse, acrescentou: - Pagaram-te?

- Em cima da mesa est uma bolsa com dez ducados de ouro, e a mim o Rei deu-me meio ducado. Creio que no tinha mais.

Deu o dinheiro a Marfisa, que o fez tilintar.

- Pelo menos ouro. Dez ducados, dizes tu? Sai a dois e meio por cada ofensa a Nosso Senhor, e a bolsa pela nega. de bom veludo.

- Uma nega, disse a senhora?

- Sim, filha, a quinta j no pde ser. Empenhou-se em mirar-me e remirar-me, e, quando se cansou, disse que tinha sono e deixou-me com a gua na boca. Precisamente quando me comeava a apetecer. E tu?

- Eu passei a noite, senhora, num puro gozo, com o conde sempre em cima de mim, e aqueles olhos de gato que no deixavam de me fitar. Mais que de gato, de tigre.

Os olhos dos tigres devem ser assim. Iluminavam o quarto todo.

- Exageras.

- Juro-lhe pela memria de minha me, que tambm foi puta, mas que se arrependeu a tempo. E o belo enterro que teve, graas a Deus e s almas crists!

- Deixa em paz a memria da tua me, e alcana-me uma toalha, para me embrulhar. Enquanto tomo banho, prepara-me de almoar. Estou morta de fome.

Saltou da cama e embrulhou-se no toalho que Lucrcia tinha tirado de um arcaz. Deixava-lhe a descoberto as coxas morenas e justas, as pernas esguias. Lucrcia contemplava-a.

- Por isso que as coisas so como so e no como deviam ser. Esse corpo merecia outra sorte.

- Queres dizer um marido?

- Deus me livre de tal coisa! Quero dizer melhores amantes.

- Parece-te pouco o Rei, ainda que seja s por uma noite?

- O Rei no a deixou satisfeita, pelo que acabo de ouvir. Em compensao, eu...

Enquanto saa do quarto, Marfisa respondeu-lhe:

- O Rei um catraio. No sabe da missa a metade, nem nunca tinha visto uma mulher nua. O que aprenderia na minha cama, em sete noites!

- Ento, para que que Rei?

6.

O Rei deixou de contemplar o horizonte, onde a ltima mulher nua se tinha desvanecido, e ficou alguns instantes cabisbaixo, embora com cara de aluado. Depois levantou-se e disse a Cosme, que esperava ao p da porta:

- Traz-me as chaves da sala proibida.

Cosme tremeu visivelmente.

- Isso mesmo, ouviste bem.

- E se mas recusarem, que fao?

- Dizes que ordem real.

O moo de cmara inclinou-se profundamente e saiu. O Rei hesitou por instantes. Aproximou-se da janela aberta, que dava para a praa de armas. Um peloto de soldados exercitava-se ao longe. Mais perto, conversavam alguns cavalheiros, e um cavaleiro muito emplumado caracoleava com o seu cavalo perante um grupo de espectadores estupefactos: tudo sob um sol que comeava a ser trrido. Algum enxergou o Rei, e fez uma saudao com o chapu. Os outros saudaram tambm, e os soldados do peloto apresentaram armas, mas o Rei no os via: via apenas um imenso vazio: impreciso nos seus contornos, como se fosse feito de nuvens. Mas o cu estava limpo. O Rei fechou os olhos e continuou a v-lo, e s ento se convenceu de que o tinha dentro de si, de que no podia ver outra coisa. Ficou a contempl-lo com o rosto imvel e o olhar fixo, at que chegou o pajem e fez soar as chaves. O Rei voltou-se e estendeu a mo; o pajem, ao entregar-lhas de joelhos, advertiu:

- Tive que as roubar, senhor.

- Fizeste bem.

O Rei saiu, carregado com as chaves, cujo tilintar enchia a penumbra. Atravessou salas e passadios, abriu com a chave mais grossa a porta maior e fechou-a por dentro: tinha entrado num ddalo de corredores ziguezagueantes, interrompidos por escadas que subiam e escadas que desciam. Teve que abrir, ainda, mais duas portas, que tambm fechou depois de as ter transposto. A sala proibida correspondia a uma torre, a do nordeste. Estava s escuras. s apalpadelas, encontrou uma janela e abriu-a. A sala no tinha mveis, mas das paredes pendiam quadros. Quando os seus olhos se habituaram luz escassa, pde ver que em todos eles havia mulheres nuas, sozinhas ou em companhia. Encontrava-se diante das mitologias que seu av tinha coleccionado, e que s podiam contemplar-se com uma autorizao especial da cria toledana, assinada pelo punho e letra do primaz: privilgio deste que o Inquisidor-mor lhe disputava e que, como pleito dos que jamais se resolvem, se encontrava em Roma havia lustros. Por sorte, o outro Rei, seu pai, nunca tinha penetrado naquele local, pois de contrrio o pleito teria sido decidido pelo fogo.

- Os telogos mais subtis, Majestade, tm dvidas de que seu av, o Grande Rei, se tenha salvo, s por ter gasto o dinheiro do povo nestas porcarias.

As porcarias assinavam-nas, entre outros, Ticiano e um estranho holands chamado El Bosco, Hierombosc, segundo as cartas do av s suas filhas mui amadas. O Rei percorreu com o olhar aquela acumulao de corpos ao relento e deteve-se num, onde uma velha alcoviteira recolhia no regao da sua saia o ouro que Zeus lanava entreperna de Dafne, a qual, no entanto, algum ouro devia receber no stio preciso, a julgar pela cara que fazia. Dafne tinha umas coxas esguias e um corpo dourado, semelhante ao de Marfisa. O Rei ficou diante dele, como pasmado, durante muito tempo.

7.

Frei Eugnio de Rivadesella chegou deitando os bofes pela boca, ou, pelo menos, foi o que disse, pois o santo titular da sua ordem no se tinha lembrado de inventar, para os dias clidos, um hbito mais ligeiro, de maneira que o Inquisidor-mor teve de acudir ao seu sufoco e pedir urgentemente que lhe trouxessem um refresco eficaz, dos que guardavam para estes casos no fundo do poo. Com ele, e com uma aguardente que se lhe seguiu, o padre Rivadesella ficou bastante tratvel, embora continuasse a cheirar a suor, coisa que incomodava o prelado. Mas ofereceu-o em sacrifcio pelo perdo dos seus pecados, e passou ao frade o texto do relatrio que lhe tinha trazido naquela mesma manh o proco de So Pedro.

- Que pensa Vossa Paternidade dessas notcias?

Do padre Rivadesella sabia-se nas altas esferas da cria e da Santa Inquisio que todas as tardes, ao cair a luz, recebia o Maligno e mantinha com ele saborosas conversas, que se aplicavam depois maior glria de Deus e da monarquia. O padre Rivadesella, depois de pr as lentes (que algum lhe tinha trazido da Holanda, fabricadas certamente por hereges, mas de muito boa viso), meteu-se na leitura e no levantou a vista antes de ter percorrido a ltima linha: por sorte, a letra mida do proco era das claras e legveis.

- Fi-lo vir c to de manhzinha, reverendo padre, para ouvir o seu parecer acerca do que se diz nesses papis. Vossa Reverncia a nica pessoa da corte em cuja opinio me posso fiar, dada a sua conhecida amizade com o Inimigo do gnero humano e de Deus Nosso Senhor.

- Eu no diria amizade, Excelncia, mas antes mera relao. - Com as lentes na mo, brincando com elas, o padre Rivadesella acrescentou: - Por agora, Excelncia, a primeira notcia que tenho destes acontecimentos. Por outro lado, devo dizer que, no crepsculo de ontem, Satans faltou ao seu encontro comigo. Costumo esper-lo debaixo de uma azinheira que temos no ptio, de copa to frondosa que tudo oculta e tudo tapa, de maneira que, sentado debaixo dela, ningum vislumbra nem as cruzes nem as suas sombras. Satans sente-se incompatvel com umas e com outras, como sabido. Mas ontem no compareceu, e esperei por ele at tarde, entretendo-me com o fumo dessa erva que se traz das ndias e a que chamam tabaco. Recomendo-lha para as tribulaes. - E, durante alguns minutos, cantou as excelncias do tabaco e a convenincia de o usar. A seguir, continuou: - No deixa de ser curioso, Excelncia, e digno de ter em considerao, o facto de que esta manh, com as primeiras luzes da aurora, um formidvel drago, de pelo menos sete cabeas, mas possivelmente de mais, tenha abraado as fundaes da alcova com o propsito de a destruir, segundo declaraes de testemunhas que o viram, e como j sabe toda a gente na cidade. De outros prodgios tambm se fala, embora no de tanta monta. O meu confidente Satans, que me conta muitas coisas, mas no todas as que maquina, como bvio, costuma adoptar a figura de drago multicfalo quando quer ser especialmente notado, j que um bicho dessa natureza, que se saiba, no o criou o Senhor.

- O que a mim me interessa, padre Rivadesella, essa outra metamorfose, que me parece menos lgica ou, pelo menos, inadequada ao caso. Segundo o relatrio que acabais de ler, de todas as figuras de bruxas e de bruxos que pulularam esta ltima noite pelo cu da cidade, uma era mais bela do que as restantes, tinha sexo de varo e, ao deslizar pelos ares, deixava um rasto de prata. Segundo o meu entendimento, mais parece figura de anjo, e no dos menores.

- No podemos esquecer-nos de que o maior de todos eles foi Lcifer, e que entre os seus atributos est o da beleza.

- A si apresenta-se-lhe assim, como um formoso mancebo?

- Para comparecer aos seus encontros com este humilde servidor de Deus, Satans costuma escolher figuras mais modestas. A mais nobre delas a de um fidalgo entrado em anos, com um bigode muito erecto; na outra ponta da escala esto o co ou o passarinho que se instalam no meu regao e falam comigo por sinais. Entre cavalheiro e pssaro, tudo o que Vossa Excelncia se digne imaginar.

- E como sabe Vossa Paternidade que o Diabo?

- Temos as nossas contra-senhas, e ele explicou-me que adopta uma forma ou outra por prudncia e para no me comprometer. No se esquea Vossa Excelncia de que as minhas relaes com o Maligno, embora sejam conhecidas dos meus superiores hierrquicos e das autoridades competentes, at chegar a Roma, so ignoradas pelos frades do meu convento, apesar de algum vivao suspeitar delas. Do mesmo modo, Satans oculta aos seus sequazes as suas relaes comigo. Por alguma razo, ontem, no s no veio, como me ocultou a sua inteno de concentrar, no cu da cidade, essa gentalha que o serve.

- Gente belssima tambm, segundo diz o relatrio, e dada a toda a espcie de fornicaes.

- Ser que Vossa Excelncia esperava outra coisa de semelhantes pessoas?

- Esperava que, pelo menos, para o fazerem, tivessem que se deitar. Mas, como Vossa Paternidade leu, faziam-no mesmo no ar, sem perderem o equilbrio, e dando cambalhotas. Padre Rivadesella, o Diabo trata to bem os seus amigos que no me espanta que os tenha. A Vossa Paternidade, faz-lhe algum favor?

O padre Rivadesella ficou um momento pensativo.

- Sim, Excelncia, mas gratis et amore, ou pelo menos assim parece. Eu creio que precisa de desabafar com algum das suas preocupaes, e escolheu-me a mim.

- Pela sua discrio, se calhar?

- Poderia ser por isso...

E foi nesse mesmo momento que entrou um fmulo, que se aproximou silenciosamente do Inquisidor-mor e lhe falou ao ouvido. Sua Excelncia respondeu-lhe:

- Est bem, que entre. - Depois dirigiu-se ao franciscano. - No ter Vossa Paternidade nenhum inconveniente em conviver, embora apenas por alguns minutos, com um frade capuchinho?

- Na presena de to alto magistrado, as rivalidades adiam-se.

- o padre Villaescusa.

- Ah, o capelo-mor do palcio! Belo figuro.

- De belo no tem nada, padre Rivadesella, pelo contrrio, que nessa matria no deve muito bondade do Senhor. Quanto a figuro, em contrapartida, estou de acordo.

O fmulo mantinha aberta a grande porta com guarnies de bronze e figuras pags na decorao, apesar de castas. O padre Villaescusa entrou, fazendo reverncias cortess.

- Que o Senhor acompanhe Vossa Excelncia e lhe d longos anos de vida! - Levou a mo ao nariz. - Tambm aqui chegou esse fedor do inferno? Refiro-me, como bvio, a esse cheiro sulfuroso que penetrou na cidade e que nos tem a todos alarmados.

- Pois o meu nariz no deu, at agora, por semelhante pestilncia.

- S o explica o costume, reverendo padre, meu irmo no Senhor So Francisco de Assis. Mas toda a gente sabe que esta manh se abriu uma greta na rua do Pez por onde saam os cheiros do inferno.

- E quais so, Reverendo Padre, esses cheiros?

- Se havemos de acreditar no que diz a tradio, cheiro a enxofre, nem mais nem menos.

- Dizem que um cheiro saudvel, e sei de muitos lugares onde se usa para desinfectar o ar de espritos malignos. Os demnios no lhe resistem, por isso o lanam para fora do inferno assim que surge uma oportunidade. O caso da rua do Pez ter sido efeito de uma dessas ventilaes.

- E para falar do enxofre que me visita to de manhzinha, padre Villaescusa?

- No me teria atrevido, Excelncia, a incomod-lo por to pouco, sobretudo quando as causas so do domnio pblico. Mas sucedeu uma coisa esta noite que justifica a minha visita to madrugadora, e esta impertinncia de vir com questes graves ao domingo. Posso falar sem reservas?

- O que se diz nesta sala, o que nela se ouve, segredo de confisso.

- Isso tranquiliza-me. Pois o caso conta-se em poucas palavras: Sua Majestade foi s putas a noite passada.

O Inquisidor-mor sobressaltou-se, mas o padre Rivadesella limitou-se a sorrir.

- Que me diz?

- O que j sabe toda a gente no palcio, Excelncia, o que comea a saber-se na cidade.

O Inquisidor-mor meneou a cabea com gravidade doutoral.

- A esse rapaz, teriam que vigiar-lhe as companhias.

- De que maneira, Excelncia, se no palcio h sadas secretas e servidores corruptos? E tambm h, e a isso venho principalmente, um confessor do Rei octogenrio e de vista grossa, que perdoa tudo com as mais leves penitncias e que, como toda a gente sabe, tolerante com os pecados da carne, se calhar, e Deus me perdoe se penso mal, porque ele os cometeu.

- Ele, nesse caso, o Rei, no assim, padre Villaescusa?

O capuchinho sentiu-se incomodado com o olhar do Inquisidor-mor, e baixou a cabea.

- Evidentemente, Excelncia. Era ao Rei que me referia. Mas no deixarei por isso que se perca no esquecimento a questo do confessor. Recordo a Vossa Excelncia que se chama padre Prez de Valdivielso, um converso, sem dvida.

O Inquisidor-mor tornou a meditar, brevemente.

- Os judeus no se caracterizam pela sua tolerncia. Recorde o meu antecessor Torquemada (Toms de Torquemada (1420-1498), Inquisidor-mor de Castela e Arago a partir de 1483, foi o organizador da instituio em Espanha, que dirigiu at sua morte; judeu converso, distinguiu-se pelo seu zelo brutal e doentio (3000 execues). (N. do T.).- Os judeus, Excelncia, pretendem a destruio dos reinos de Espanha, e nada melhor do que comear pela sua cabea.

- Pela cabea dos judeus, padre Villaescusa? Desconheo-a. - Fez uma pausa e olhou para os frades. - J ouvi falar do Grande Sanedrim, mas creio que so lendas.

- E o Gro-turco, tambm o ?

O Inquisidor-mor tinha comeado a brincar com uma pena de faiso cortada para a sua escrivaninha de prata repuxada, obra, inegavelmente, de mouriscos.

- No, certamente; mas o perigo no vem da.

- Com efeito, Excelncia: o perigo vem-nos da Inglaterra, da Frana, dos Pases Baixos, da Alemanha, e da Turquia, alm disso. Mas quem seno os judeus os move a todos contra ns?

O padre Rivadesella, que estava calado havia um bom bocado, interveio:

- Contra si e contra mim, padre Villaescusa? Porque suponho que deixar de fora dessa conspirao o Senhor Inquisidor.

- Quando disse ns, quis dizer as Espanhas - respondeu com nfase o capuchinho; e os outros exclamaram:

- Ah!

A manh tinha-se posto quente e mesmo naquele salo, protegido por grossas paredes, fazia calor. Ao padre Villaescusa escorriam-lhe at barba, onde ficavam a tremelicar, as gotas de suor. Ao padre Rivadesella, como estava barbeado, no lhe passavam das faces: ali se acumulavam, dali exalavam o seu fedor. Quanto ao Inquisidor-mor, a esse no lhe suava nada visvel, o que lhe permitia manter-se respeitavelmente quieto; talvez tambm com o esprito razoavelmente frio. Fosse como fosse, o padre Villaescusa tinha ousado puxar de um lencinho de cor esverdeada e enxugava a testa.

- Em resumo, Reverendos Senhores, por um lado a cidade cheira a enxofre, o que corrobora a presena do Diabo, que me foi denunciada oportunamente por um espio especializado da minha confiana. E, por outro, temos que o nosso jovem Rei, de apenas vinte anos, foi s putas...

- Reduzida a esses termos, Excelncia, a coisa no passa de mera anedota. Mas, e o importante? Poderemos esquecer-nos de que a Armada das ndias est a chegar, e de que na Flandres se prepara uma grande batalha? Vistas dessa maneira, as coisas mudam...

O Inquisidor-mor, com ar bastante aborrecido, meditou.

- Mudam, com efeito, padre Villaescusa. E que prope Vossa Paternidade para atalhar o mal?

O padre Villaescusa compreendeu claramente, pela primeira vez, o que vinha sentindo no mais obscuro das suas entranhas: que dependia da sua palavra o futuro do mundo. E no se apressou a responder, nem o fez com arrebatamento, mas sim com tranquilidade.

- Em primeiro lugar, Excelncia, proponho para hoje tarde uma reunio do Supremo, com a participao dos telogos mais acreditados da cidade. E, em segundo lugar, como medida de precauo, que se tire do palcio o confessor do Rei, conhecido judeu, e que se meta nas prises do Santo Tribunal essa Marfisa...

- Que no judia, mas sim crist velha, e boa cumpridora dos mandamentos da Igreja. Tenho a certeza de que, a esta hora, obedece ao preceito de assistir missa dominical, e de que estar na sua parquia.

- Proponho que a prendam por suspeitas de endemoninhamento. A atitude do Rei, desde que chegou ao palcio, esta manh, altamente suspeita: anda metido consigo, como pasmado. E quem, seno ela, pode ser a responsvel? Met-la num calabouo a po e gua parece-me uma sbia medida de precauo. Quanto ao confessor do Rei...

- que o senhor distingue com o seu afecto... interveio o padre Rivadesella.

- No o amo mais do que pode amar-se um prximo perigoso, reverncia.

- Bem se v: mas eu no posso esquecer que o padre Valdivielso franciscano.

- O hbito no faz o monge.

- Neste caso, quem sabe?

Parecia que os dois frades iam reproduzir a antiga e famosa contenda entre os diversos e inimigos ramos filiais de So Francisco. O Inquisidor-mor atalhou com mo firme.

- Far-se- tudo o que pede, padre Villaescusa, far-se- o mais rapidamente possvel. Para j, ficam os dois convocados para a reunio do Supremo, esta mesma tarde, mas no demasiado cedo, por causa da cancula. Digamos s cinco.

O padre Villaescusa inclinou a cabea.

- Parece-me uma hora pouco usual, mas aceito.

- Nesse caso, ide-vos.

Depois de os dois frades se terem despedido, e de supostamente terem abandonado o edifcio do Santo Tribunal, o Inquisidor-mor abanou suavemente a campainha. Entrou um fmulo.

- Diz ao meu criado Diego que venha c.

O criado Diego passava dos cinquenta anos, tinha aspecto de beato e, por baixo, um sorriso cnico.

- Sabes onde vive Marfisa. Vai ter com ela e diz-lhe uma nica palavra: esconde-te. E faz o recado voando.

- Sim, Excelncia.

O criado Diego saiu, sem mudar de sorriso, e o Inquisidor-mor, ajudado pela cancula e pelas boas recordaes dos vinte anos que tinha passado em Roma, jovem dominado pela paixo teolgica, entregou-se docemente aos prazeres de uma soneca.

8.

Foram encontrar o Rei porta dos aposentos secretos, a que muita gente chamava tambm proibidos. A grande chave de ferro continuava na fechadura, e o Rei, encostado ombreira, parecia em xtase, o que quer dizer que tinha cara de tolo. No respondeu aos primeiros chamamentos do seu moo de cmara, e s quando foi sacudido com certa fora que no seu rosto aconteceu algo de semelhante ao despertar de um sonho. O relgio do palcio dava as badaladas das onze, e o moo de cmara sussurrou-lhe, primeiro, e gritou-lhe depois:

- Majestade, so horas de ir missa, e toda a corte espera. Vossa Majestade tem que mudar de roupa.

O Rei, ainda meio estremunhado, deixou-se levar.

- Pois, tenho que mudar de fato. Pois, tenho de ir missa com a corte. Estar l a Rainha?

O moo de cmara conduziu-o at aos aposentos reais por corredores pouco ou nada frequentados quela hora do dia, talvez pelo muito que o eram de noite: dali partiam os passadios secretos, os meandros pelos quais deslizava o pecado nocturno. Em breve, o Rei viu-se diante do seu grande espelho, e o moo de cmara com dois fatos nas mos.

- De preto ou de azul-celeste, Majestade?

Quase sem pensar, o Rei respondeu-lhe que de preto, e, quando se achou vestido, pediu o colar de ouro para quebrar um pouco aquela escura monotonia. J batiam porta, e perguntavam se o Rei estava pronto.

- Vai num credo! - respondeu o moo de cmara, e apressou-se a abrir a porta.

Uma saleta, e, mais ao fundo, o salo onde esperava a corte: o mais visvel, o Valido, mas visvel tambm a Rainha, linda e maliciosa, e tambm um pouco brincalhona, cujo rosto contrastava com a seriedade que a rodeava. O Rei dirigiu-se para ela, cumprimentou-a e ofereceu-lhe o brao; mas o seu rosto no deixava de parecer esparvoado, e os presentes comearam a cochichar. A caminho da capela, ouviam-se os registos do rgo, e as vozes concertadas do coro. frente do cortejo, quatro aclitos vestidos de vermelho e branco faziam diabruras com os incensrios, e aquele pouco fumo oriental despertava nos cortesos a sua sensualidade secreta. A capela, que vinha do av do Rei, era simples e imponente. A corte mal l cabia. Foram-se instalando como puderam, de acordo com as suas categorias. Os condes e os viscondes ficavam de p: entre eles o da Pea Andrada, muito aperaltado, vestido inglesa, rutilante. Toda a gente parecia conhec-lo, e cumprimentavam-no com sorrisos. Algum sussurrou para o lado:

- Dizem que foi ele que ontem noite foi s putas com o Rei.

- Pois o Senhor pagar-lho- na sua Glria.

Dizia a missa o padre Villaescusa, e o Nncio de Roma ocupava um cadeiro no presbitrio. Talvez fosse o prprio Nncio o mais surpreendido com o esprito crptico e em certo sentido ttrico do sermo do capuchinho, que ningum percebeu, e, menos do que ningum, o Rei, sempre com o olhar perdido sabe Deus em que trevas e a expresso de basbaque, que no o tinha abandonado. A nica novidade era que, de vez em quando, dirigia o olhar para a Rainha, mas para o stio onde devia estar o seu decote, cuidadosamente tapado espanhola por veludos requintados e jias discretas. Rainha, a sua primeira dama dava-lhe de vez em quando uma cotovelada: Majestade, o Rei est a olhar para si; mas, quando a Rainha voltava a cabea, o olhar do Rei j se tinha desviado para as silhuetas das suas recordaes.

- Quer saber se a Rainha tem mamas - exclamou um bobo malicioso, que recebeu na ndega o castigo de um agudo belisco.

- Quem se atrever a perscrutar os mistrios da vontade divina? - troava o padre Villaescusa. - Os que o tentaram, o Senhor castigou-os com a loucura ou a morte. Ele disse: Eu sou aquele que sou, e para que no turvssemos a pureza da sua conscincia, deixou-nos o seu declogo: ... no matars, no fornicars, no cometers adultrio... Dirigiu-se aparentemente a cada um de ns, mas em cada um de ns est representada a humanidade. E assim nos deixou, para assombro de todos e exerccio de humildade, o mistrio das responsabilidades. Dirige-se a cada um, mas a responsabilidade partilhada por todos. Se peca o pai, paga-o a famlia; se o Rei, o seu povo; se o Papa, toda a cristandade...

Quando falou de fornicar, ningum se deu por atingido; quando de adultrio, muitas damas sentiram-se mais inocentes do que aparentavam, mas quando asseverou que a famlia pagava os pecados do pai, o Valido pensou na sua mulher, que estava ali, a seu lado, com um sorriso feliz e os olhos semicerrados. Pensaria, como sempre, nos prazeres da cama? Havia tempo que o Valido se tinha convencido pelos seus prprios meios intelectuais, algo misturados de temor, certo, de que a esterilidade do seu casamento se devia ao pendor da esposa para os jogos conjugais: enroscava-se-lhe na cama e provocava-o, arregaando a camisa de noite mais acima do que o indispensvel. Mas, por outro lado, o seu confessor tinha-lhe dito que nada daquilo era pecado. Ah, que missa aquela! O Nncio olhava para o pregador e dizia em voz quase audvel: Mas que diz este energmeno? Os presentes encontravam nas palavras do padre Villaescusa motivos para declinarem tormentos de conscincia. E o conde da Pea Andrada tinha-se ausentado da capela antes da elevao, embora sem fazer rudo: tinha-se escapulido como uma enguia e voltado depois ao seu lugar, ao terminar a comunho, como se nada fosse. Ao conde da Pea Andrada, no salo, depois da missa, quando fazia a reverncia ao Rei, este mandou-o cobrir-se, para grande estupor da corte inteira e, sobretudo, do Valido. Mas no foi esta grande surpresa que se comentou nas conversas do trio de So Filipe, mas sim que Sua Majestade, em voz baixa e cautelosa e com certa dissimulao, tivesse sussurrado camareira-mor da Rainha, a pessoa mais prxima dela segundo o protocolo:

- Diz a Sua Majestade que quero v-la nua.

- Vossa Majestade est louco.

A cara que fez a dama ultrapassou os limites do estupor, mas restaram-lhe foras para desabafar com a sua amiga mais prxima, e esta com a sua vizinha, e, assim, a notcia deu imediatamente a volta ao salo, e chegou at ao padre Villaescusa, chegou com a sua carga de horror e de clarividncia; o capuchinho compreendeu que, entre tanta gente, s ele tinha a razo do Senhor repartida entre o corao e a cabea, e s ele sabia como havia de agir. No se despiu: com paramentos e casula, permaneceu no altar e, ao descer dele, fez-se preceder pela cruz e pelos ciriais; desta guisa deambulou por corredores e galerias, de modo que, quando o Rei se aproximou dos aposentos da Rainha, com inteno de entrar, ele estava l. E quando o Rei estendeu a mo para o puxador, a cruz atravessou-se-lhe diante da porta, em ngulo inclinado sobre o eixo vertical, e nos olhos inflamados do padre Villaescusa pde ler um veto indiscutvel. A sua mo largou o puxador, persignou-se e rodou sobre si prprio. O Valido estava ali, e o Rei confiou-lhe:

- Quero ver a Rainha nua.

E afastou-se com o mesmo rosto pasmado, embora nas suas pupilas j brilhasse a esperana.

9.

Lucrcia foi abrir a porta, alarmada pela fora da campainhada; mas, ao ver o criado Diego, desatou a rir.

- s tu, peralvilho?

- Venho ver a tua ama, em segredo e com urgncia.

Marfisa encontrava-se no banho, meio adormecida entre as carcias da gua morna. A chegada de Lucrcia acordou-a, e o recado da urgente visita do criado Diego p-la repentinamente em sobressalto, porque os recados do Inquisidor-mor no costumavam ser to madrugadores.

- Ser pelo calor que faz, e porque hoje domingo. Atira-me uma toalha que tape a selha, e que entre.

Quando o criado do Inquisidor-mor a viu, deplorou que at as putas, incompreensivelmente, sentissem pudor.

- Que te traz por c? - perguntou-lhe Marfisa, e ele respondeu-lhe:

- Uma nica palavra: esconde-te.

Fitaram-se. Entenderam-se. Marfisa mal sussurrou:

- Est bem. Vai-te embora.

E o criado Diego f-lo, sem se atrever a bisbilhotar no que se ocultava por baixo da toalha, naquilo que, alarmada Marfisa, j comeava a emergir. Marfisa chamou Lucrcia.

- Depressa. Ajuda-me a vestir. Um fato de homem. E prepara o mais indispensvel numa trouxa leve.

Antes que Lucrcia tivesse acorrido com a roupa interior, j Marfisa, nua, embora enxuta, percorria o quarto e abria os armrios.

- Esse no, que muito espalhafatoso. Este, castanho, que de mais discrio. Com a roupa interior no te preocupes: a mais grosseira que houver, a de menos luxo.

Vestiu-se sozinha, e ficou feita um garon de cabeleira loura, com uma madeixa que lhe toldava os olhos e os dissimulava. Marfisa experimentou dois chapus: ficou com o que melhor a cobria.

- Agora vou-me embora, e tu fechas a casa e vais ao mentidero, bem velada, que no te reconheam, e informas-te do que se conta, e publicas o que se passou ontem noite nesta casa. No a tua histria com o conde, que isso no interessa a ningum, e dorme esta noite em casa de uma amiga, ou de quem quiseres, mas afasta-te dos do Santo Ofcio que, se no me encontram mo, podem contentar-se contigo e submeter-te a tormento, para que digas onde me escondo. Como poders diz-lo, seno o sabes? Por isso, como ainda que te torturem no poders confessar, ser melhor que no te apanhem. No deixes de ir missa ao mosteiro de So Plcido, que eu c me arranjarei para te mandar notcias. missa das nove, hem? Que no te passe pela cabea demorares-te na cama com algum bonito que te atraia ou com algum novo-rico que te pague. Eu, agora, vou-me embora. E tu vai tambm, o mais depressa que puderes. Adeus.

Marfisa pegou na trouxa, enterrou o chapu at esconder o rosto debaixo da aba, e saiu. Fazendo um desvio, embora no muito longo, encaminhou-se para o mosteiro de So Plcido. Cruzou-se com gente endomingada que falava dos milagres daquele dia, e pde saber, por algum que o comentava aos gritos, que Sua Majestade o Rei tinha expressado o desejo de ver a Rainha nua.

- Onde iremos parar? Se o Rei no d o exemplo, de quem havemos de o receber?

Ao chegar portaria do mosteiro, pediu para falar com a abadessa, que no mundo tinha sido uma menina de La Cerda.

- Da parte de quem lhe digo que quer v-la? - perguntou a rodeira.

- Diga-lhe que da parte de Marfisa. E receba, de passagem, esta esmola para o cepo dos desamparados.

Tilintou o ouro. A rodeira estendeu a mo vida. Os seus passos ressoaram pelas lajes da portaria e perderam-se em claustros e corredores. Marfisa sentou-se espera. Fazia calor, e tirou o chapu para se abanar. Era bela, a cabeleira de Marfisa, e v-la assim, de garon, teria feito pecar muitos que reprimiam desejos inconfessveis.

Repetiram-se os passos, desta vez duplos e em sentido contrrio: uns soavam com autoridade; os outros, com timidez. A rodeira abriu uma portinha e rogou a Marfisa que entrasse. Atrs dela, fechou a porta com duas voltas. A abadessa esperava-a, sorridente.

- J sei que te apresentaste com uma esmola esplndida.

- O produto de uma noite, que ofereo a Nossa Senhora dos Desamparados.

- Que te traz por c?

- Procuro refgio contra os aguazis da Santa.

- Meteram-se contigo?

- Vo-se meter.

- Posso mandar a meu primo, o Inquisidor-mor, recado para que te deixe em paz.

- sua amabilidade que devo o aviso.

- Ento?...

- Uma freira mais, neste mosteiro, no chamar a ateno de ningum.

A abadessa pegou-lhe na mo.

- Vem comigo. uma pena que tenhas que vestir o hbito, porque ests muito bonita. Mas posso garantir-te que no te exigirei que cortes o cabelo, apenas que no te veja o capelo, que um tipo estranho.

Sem a largar, passou com ela por uma porta de grandes almofades e levou-a pelos frescos meandros do mosteiro. Atravs de uma janela, verdejavam as plantas do jardim e ouviam-se os trinados das avezinhas, recolhidas naquela frescura. A madre rodeira ficou a pensar por que razo metia a abadessa um mancebo to formoso na clausura, mas, como outras tantas coisas que no entendia, afugentou a pergunta do seu esprito. Tambm tinha calor, e naquela solido era-lhe permitido arregaar o hbito e refrescar um pouco a entreperna com o ar que entrava por algum orifcio.

10.

Por causa do calor, as pessoas tinham deixado a capa em casa. Abanavam-se com o que tinham mais mo, e muitos apareciam ligeiramente esgoleirados, peitos peludos de machos excessivos, uns de preto, outros de cinzento. Os grupos tinham-se reunido aqui e alm, sobre os degraus, ou no meio do trio, ou aos cantos, at pisarem as prprias pedras do limiar sagrado. Clrigos de barretes pontiagudos iam de c para l. E o sol batia com fora. O crculo mais concorrido rodeava Lucrcia, bem tapada, que por vezes levantava uma ponta do vu e pedia ao mais prximo que lhe soprasse no pescoo suado. Tinha contado j a aventura de sua ama com o Rei, e comeava a descrever com abundncia de pormenores a sua com o conde, mas essa no interessava tanto assistncia.

- Com que ento quatro pecados mortais?

- E uma nega.

- Pois quatro na mesma noite o limite que os telogos pem aos exageros da carne.

- Sabes l se foram quatro! Tu no estavas l.

- Mas sei-o de boa fonte.

- E ns sabemos que Marfisa devota da monarquia. Como havia ela de deixar mal o monarca? Quator cadem nocte um nmero que abona qualquer um.

- Para mim, a nica coisa crvel a nega - disse um padre narigudo e entrado em anos. - O resto so fantasias de Marfisa, que abonam, mais do que a sua fidelidade s instituies, o seu orgulho profissional. Para uma mulher como ela, menos de quatro pecados capitais no seria nada. Ocorrem-me uns versos...

- Diga-os l, D. Lus, se que os tem na mente!

- S quatro, de momento, que podem ser os primeiros de uma dcima:

Con Marfisa en la estacada

entraste tan desguarnido,

que su escudo, aunque hendido,

no pudo rajar tu espada.

(Com Marfisa na estacada

entraste to desvalido,

que seu escudo, inda fendido,

no pde rachar tua espada. (N. do T.)- Muito bons, D. Lus! Prometem uma dcima imortal!

- O que diz o padre uma ignomnia. O Rei pecou quatro vezes e, quinta, adormeceu. Pobrezinho! Convm no esquecer que, alm de Rei, um rapaz.

- Tu cala-te, alcoviteira. Por que havemos de acreditar em ti, e no em D. Lus? homem de experincia.

- Gostaria de saber que faria ele na cama com Marfisa.

O chamado D. Lus ergueu as sobrancelhas e sorriu tristemente.

- Tem razo, a moa. Que haveria eu de fazer na cama com Marfisa, a no ser olhar para ela e procurar umas metforas? Um soneto tambm, talvez: mas vamos l a ver quem o valento que se atreve a pintar, ainda que seja em verso, uma mulher nua!

E fez com as mos um sinal alusivo Santa Inquisio.

Foi nesse momento, talvez, ou talvez um pouco mais tarde, que algum recm-chegado armou rebulio noutra roda, um rebulio descomunal que deixou Lucrcia sem clientela e, de momento, sem continuao a dcima de D. Lus. O recm-chegado jurava pelos seus mortos que o Rei, no havia nem uma hora, sada da missa, tinha expressado aos gritos, e sem a menor precauo, que desejava ver a Rainha nua. Desejo, disse, ou quero? Porque no a mesma coisa.

Foi uma gargalhada geral, uma gargalhada sensual e estentrea, provocada pela maneira como cada um dos presentes imaginou o Rei contemplando a Rainha em pelota: de dia ou de noite, com sol ou luz das candeias. Saram a brilhar, de lbios grossos sob bigodes retorcidos, aluses aos quatro pecados do Rei com Marfisa e comentada nega, gracejos subidos de tom e suposies desrespeitosas, at que um cavalheiro esguio, de semblante asctico e olhar dogmtico, fez calar os risos com um imperioso Cavalheiros, moderem-se, dito em tom to dramtico que, de repente, foi como se o Sol se pusesse. O crculo calou-se e toda a gente olhou para aquele severo enlutado em cuja mo, estendida para o centro da roda, posta sobre o peito a seguir, parecia ter recado a honra da Rainha. Mas no foi dela que se falou quando o silncio deu lugar sua palavra, antes disse:

- Que espcie de insensatos so Vossas Mercs que assim se regozijam com o que pode trazer-nos calamidades, e as trar de certeza se no se lhe pe remdio? - Ningum lhe respondeu, a no ser com olhares e rostos surpreendidos, e ele continuou: - No s o protocolo da corte que se ope a semelhante disparate, tambm o impedem as leis de Deus e da Igreja. O homem pode aceder mulher com fins de procriao e, se os seus humores Lho exigirem, para os acalmar, mas nunca com intenes levianas, como seria a de contemplar nua a prpria esposa.

Lucrcia, ao ver-se solitria, tinha-se integrado no grupo.

- Pois bem olhava o Rei para Marfisa nua, quando acordou, esta manh, enquanto ela dormia!

O cavalheiro da mo ao peito voltou-se para ela.

- No a mesma coisa, menina ignorante, olhar para uma prostituta, que para isso serve, ou para a esposa, recebida em santo sacramento, por muito francesa que seja, porque, ainda que as francesas sejam levianas por natureza, ao atravessarem os Pirenus contaminam-se das nossas virtudes e aceitam os nossos costumes e protocolos. O corpo da esposa sacrossanto; pode-se tocar-lhe, mas no olhar para ele.

- Pois h dedos que tm olhos! respondeu desavergonhadamente Lucrcia; e o cavalheiro da mo ao peito fitou-a com um desprezo to fulminante que a rapariga, apertando o vu com a mo, saiu a correr da roda e da praa, e se perdeu na calle Mayor, em direco Porta del Sol.

- Ser uma marafona - disse algum; e outro desconhecido, ainda que de mui bom porte, corroborou:

- Uma marafona cuja voz no me desconhecida! Juraria que a criada de Marfisa.

Toda a gente se voltou para ele, incluindo o cavalheiro da mo ao peito, e todos pensaram que quem assim conhecia a criada, no deveria desconhecer a ama. E invejaram-no. O cavalheiro distinto cumprimentou e foi-se embora. A roda comeou a desfazer-se, uns para aqui, outros para acol. O clrigo chamado D. Lus partiu em companhia de dois ou trs incondicionais.

- E essa dcima, D. Lus, j est concluda?

- Esse imbecil da mo ao peito arrebatou-me a inspirao, mas garanto-lhes que a sua concluso no passar desta noite. Era o que faltava!

Captulo II

1.

A cela que o Inquisidor-mor ocupava na casa do Santo Ofcio no correspondia, nas suas propores, ao poderio do inquilino, mas sim sua pessoa: era grande, harmoniosa, de paredes caiadas e vigamento escuro, com mveis enegrecidos pelo tempo, e um quartinho em que o Inquisidor-mor escondia o seu catre, que por ter esse nome no era necessariamente incmodo. Por trs da grande mesa guarnecida de veludo, pendia um quadro em que se apresentava Maria Madalena penitente numa gruta; a grande cabeleira incrvel deixava ver os resqucios de um corpo dourado; nas outras paredes, dispostos segundo o princpio de simetria mais absoluto, duas sries de pequenos quadros com a vida e as tentaes de Santo Anto, equilibrando o conjunto: uma, direita, de mo flamenga, onde as mulheres nuas eram feias, e a outra, esquerda, de mo italiana, onde as mulheres nuas eram belas. O tinteiro, de doze penas, ocupava um canto da mesa, e a braseira, de bronze e couro, tinha sido repuxada por artfices cordoveses, provavelmente mouriscos, mas essas origens duvidosas no inquietavam a conscincia do Inquisidor-mor, temperada nas tolerncias da corte romana. No canto do fundo, com a luz da janela vindo da esquerda, estava instalada a camilha, que usava para comer e para aquecer as pernas no Inverno, desenganado da utilidade, meramente decorativa e um tanto imponente, da grande braseira, que avultava no meio da sala e repelia o visitante com a sua imponncia. As toalhas eram sbridas, embora dignas; a baixela, de boa prata antiga; a comida, pelo que podia ver-se, abundante e simples, mas o Inquisidor-mor servia-se com parcimnia, e o que no comia o criado Diego, dotado de melhor dente e mais manifesta gula, regressava cozinha para regozijo de ajudantes e outros subalternos. Naquele dia tinha-se servido apenas uma sopa e trutas navarra, e, como sobremesa, uma das guloseimas de massa folhada e ovos que elaboravam para ele e para outros magnates as Madres de Santa Clara a Velha (as de Santa Clara a Nova tinham-se especializado em escabeches, que no ofereciam, vendiam, porque, sendo mais novas, eram mais pobres. Fosse como fosse, o Inquisidor-mor no ignorava os sabores dos seus bacalhaus, pura delcia para o palato atribuda interveno directa dos anjos, embora no pelo Inquisidor-mor, que, a esse respeito, sabia a que se ater).

Havia um pssaro na cela, exemplar talvez perdido da tribo migratria, seno enganado pela suavidade do ar. Deu umas voltas, chocou aqui e alm e saiu para o jardim pela mesma janela por onde tinha entrado. O Inquisidor-mor no teria sabido explicar por que razo seguiu o seu voo com inveja.

O criado Diego, sentado num escabelo, tinha posto de lado a escudela de sopa, j vazia, e limpava de espinhas a truta com a sua navalha de corno. Tinha tambm ao lado, no cho, um grande copo de estanho a transbordar de tinto. O Inquisidor-mor, brincando com a cruz peitoral, parecia ter-se transido, depois do voo do pssaro, de modo que o criado Diego mastigava ruidosamente, sem medo do raspanete. Mas o prelado acordou e chamou-o ordem.

- Diego, interrompeste-me uma possvel sesta, com os estalidos da tua lngua e com esse tornado que provocas ao mastigar. Agradecer-te-ia que comesses com mais comedimento.

- E que importa, Excelncia, agora que o acordei? Por muito cuidado que se tenha, senhor, ao comer sempre se emitem rumores.

O pssaro, no seu voo, roou o vidro da janela com rpido, efmero rudo.

- E, a propsito de rumores, Diego, que se diz hoje Pela corte?

O criado acabou de mastigar o pedao de truta que os seus dedos gordurosos tinham levado boca. As mos do criado eram grandes, e quando remexiam no prato cobriam-no.

- Um frade capuchinho, dos de Medinaceli, tocou a rebate, como se houvesse fogo, e gente que se ajuntou, lanou um sermo incendirio contra os pecados dos grandes que cabe ao povo pagar, ou, pelo menos, compensar por meio de penitncias pblicas pelos danos que no cometeu. Isto tinha tambm algo a ver com uma serpente boa e com um belssimo diabo. Garanto-lhe, Excelncia, que o povo teria posto fogo ao Pao se o frade lho tivesse ordenado, mas limitou-se a organizar procisses a desoras, uma num bairro, outra noutro, por a fora, com cantos penitenciais e ele prprio frente de uma delas, arrastando uma cruz. Est toda a gente em brasa e no h ningum que no espere sair rua carregado de correntes. Isso excita muito as mulheres, e quando voltam a casa, derreados, encontram-nas inquietas, e tm que fazer uma segunda penitncia.

- E no mentidero?

- No mentidero, Excelncia, tratou-se de trs temas, por sua ordem, digamos: ao princpio todos falavam de Marfisa, Vossa Excelncia sabe a quem me refiro: se assim, se assado, se tem as mamas tesas ou descadas.

O pssaro que esvoaava pelo jardim, e que s vezes gritava, no podia sugerir a imagem de umas mamas, nem descadas nem tesas: Sua Excelncia lamentou-o.

- Depois, se o Rei tinha passado a noite com ela, o que fez Sua Majestade subir dois ou trs pontos na estima dos presentes, embora no tenham faltado maledicentes que reduziram a nada a acutilncia real; por ltimo, senhor, continuou-se a falar do Rei, mas desta vez porque se disse que tinha pedido aos gritos para ver a Rainha nua. E aqui, senhor, as opinies dividiram-se, porque alguns, poucos, consideravam-no um mau exemplo e muitos, a maioria, como o exemplo que havia a seguir, e que se deixassem de tretas e consideraes. Nisto um cavalheiro bem posto, embora com ar de novo-rico, mais que de fidalgo, proferiu mais ou menos estas palavras: Se o Rei consegue ver a Rainha nua, todos teremos pretexto para despir as nossas fmeas, sejam esposas ou queridas, e despir-se-o todas as destes reinos, e as mulheres das ndias, e acabaro nuas as mulheres do mundo inteiro, se pega a moda, o que vai sendo hora de que acontea, porque de camisas de noite compridas e de disputas para que as levantem um pouco mais, estamos ns to cansados como elas. O nico perigo, e este meramente imaginrio, reside em que se disponham a sair nuas para a rua, ou com trajos to transparentes que deixem ver tudo, pois so bem conhecidos os desejos que tm as mulheres de publicarem os seus segredos.

Posso dizer a Vossa Excelncia que na roda onde se dizia isto no havia padres, e, se algum havia, no vestia roupa talar, e no esteve em desacordo com a opinio do novo-rico.

- Os velhos princpios, Diego, vo perdendo vigncia, os tempos mudam e as pessoas pensam de maneira diferente. No tenho nada contra o nu em privado, sobretudo s escuras, mas lev-lo para a rua como tirar o sal comida. No sei que vai ser de ns.

- Ao que se diz por a, e j h algum tempo, abundam os cabres complacentes; e que acontecer se a coisa alastra?

- o que eu te digo, Diego. Que vai ser de ns? De ti e de mim, por exemplo.

- No que a mim me toca, Excelncia, resta-me pouco tempo de vida, e, desde que haja vinho...

Bebeu o que restava no copo. O Inquisidor-mor fechou os olhos e recordou os velhos tempos de Roma. A ave passou roando os vidros da janela e escondeu-se no alto cipreste que ocupava o centro do ptio quadrangular.

2.

Primeiro foi um Te Deum, a quatro vozes mistas, com repetida interveno do rgo, que umas vezes ficava por baixo, como quem serve de suporte s piruetas meldicas, e, outras, as perseguia na sua complicada ascenso: laudamus, laudamus, laudamus, at chocar e se reflectir nas altas abbadas; outras, por fim, exclua-as da corrente sonora, e era o nico a subir e a encher o espao com o resfolegar da sua abundante tubagem; uma msica de muito mrito, trazida de Roma, concebida para a imensido do Vaticano, que naquela capela de mediana dimenso ficava um pouco grande: de tal modo que s vezes vibravam as paredes e estremeciam as colunas. Depois, a asfixia do incenso e do calor, de tal modo que algum desmaiou e foi preciso lev-lo para fora e socorr-lo com aguardente e ar fresco: era um mercedrio seco, especialista na questo De auxilus, que no tinha nada a ver com a ordem do dia, mas que no se podia deixar de fora de uma consulta geral como aquela. Quando terminou o Te Deum, formou-se no claustro a procisso; duas filas de hbitos variados e o Inquisidor-mor atrs: muito teso, embora um pouco distrado, indiferente aos pajens que lhe seguravam a cauda. Cantavam o Veni Creator, segundo o cantocho, que lhes era mais acessvel do que aquelas polifonias romanas, ainda que o cantassem com vozes frouxas e bastante speras. No saa muito bem, mas tanto fazia. Nem todos os da procisso entraram, s os que tinham assento no Supremo, quer como membros titulares quer como telogos convidados; ou seja, consultores, e entre estes figurava um jesuta portugus, o padre Almeida, bastante novo ainda, mas de rosto queimado pelos sis brasileiros. O padre Almeida estava de passagem por Madrid: tinham-no destinado a capelo secreto de uma casa de Inglaterra, porque o outro capelo tinha sido justiado, o que era o mesmo que admitir que no restava muito tempo de vida ao padre Almeida; mas no parecia acabrunhado nem entristecido, nem to-pouco entusiasmado com o seu futuro martrio: comportava-se com naturalidade, muito mais do que os seus companheiros, apesar da reputao de telogo sbio que o seu reitor proclamava na carta de apresentao para o Inquisidor-mor com que justificava a sua presena. O padre Almeida chocava um pouco entre os restantes clrigos, porque usava por cima da sotaina um colarinho francesa, e porque, ao desaboto-la por causa do calor, se lhe tinham visto meias pretas e calo. Mas, como estrangeiro, no lho levavam a mal.

Depois de instalados na sala de reunies, de acordo com as categorias e seguindo um critrio piramidal, ainda se rezaram mais latinrios, estes sem msica, e a coisa ficou como num cenrio de teatro: o Inquisidor-mor no topo, embora a cauda do seu hbito descesse at aos nveis inferiores e estendesse sobre as lajes o triplo tringulo do seu remate; depois vinham os juzes proprietrios, o padre Prez, o padre Gmez, o padre Fernndez y Enrquez de Hinestrosa, assim at seis, com hbitos brancos, hbitos pretos e hbitos combinados; uns gordos, outros magros, rechonchudos de cara ou chupados, reservados ou expansivos: tudo o que no mundo se sabia de Deus e de tudo o que lhe diz respeito estava armazenado nas cachimnias daqueles seis, que votavam as decises, e, em caso de empate, desempatava o Inquisidor-mor; o qual, alm disso, tinha o privilgio de vetar os acordos colegiais e de os substituir pela sua opinio prpria, caso que se verificava poucas vezes, sobretudo por causa das ms-lnguas. Mais abaixo sentavam-se os diferentes peritos: daquela vez um por cada ordem, incluindo os premonstratenses e algumas ordens novas, como a Societate Iesu, a que pertencia o padre Almeida. Entravam e saam com discrio, bufos, esbirros e demais gentalha, a que se vedou a entrada um pouco antes do juramento. A partir deste, a grande sala do conselho ficou encerrada para o exterior: ampla e sombria, iluminada por candelabros, era dominada por um Cristo entre duas luzes: pouco Cristo e muitas velas para local to amplo, onde o que avultava era o presidente. To refinado, to aborrecido, l em cima, no seu cadeiro, quase nimbado, quase divino sob o barrete de quatro pontas agudas! Costumava ferrar uma soneca depois de receber o juramento dos presentes e fazer o resumo dos temas, ou dos factos que se iam discutir; desta vez acrescentou a notcia de que a suspeita Marfisa, que o Santo Tribunal tinha convocado e mandado prender, no tinha sido encontrada. Certamente, algum a preveniu, e fugiu. E muitos lamentaram-no, sobretudo o padre Villaescusa, capelo do palcio, que suava no nvel dos peritos consultores.

Mas naquela tarde o presidente no pde dormitar, porque os frades menores gritavam, talvez para que o tom elevado das vozes enchesse de razo as suas ideias. Para comear, o padre Villaescusa manifestou o seu desacordo com a exposio que se fizera dos factos, de tal modo redigida que dava a impresso de que se tinham reunido por causa de uns pecados veniais do monarca. No que tivessem mentido, ele no dizia isso!, mas tinham-se contado sem intercalar censuras, comentrios ou condenaes. Nada de pecadilhos! Um verdadeiro adultrio e uma verdadeira profanao do santo sacramento do matrimnio! E foi aqui que o padre Almeida, o jesuta transeunte e destinado ao martrio, se levantou e pediu a palavra.

- para manifestar as minhas dvidas de que se tenha cometido adultrio.

- Vossa Paternidade nega que o Rei passou a ltima noite nos braos de uma prostituta? - perguntou-lhe o padre Villaescusa, admirado e ao mesmo tempo irritado, e com um tom de voz como se o padre Almeida viesse de outro planeta e se tivesse expressado numa lngua desconhecida. - Ou ser que Vossa Merc nega a verdade do que acaba de nos ser lido? Diz-se claramente que o Rei passou a noite nos braos dessa tal Marfisa.

- Deus me livre de semelhante atrevimento!

- Ento? Qual a opinio do padre Almeida?

- Simplesmente, duvido de que Suas Majestades estejam casados, pelo menos perante o Senhor.

Toda a gente voltou os olhos para o jesuta portugus, e qualquer coisa como uma rajada de incompreenso colectiva sacudiu aqueles espritos esclarecidos. At que o Inquisidor-mor, da sua altura indiferente, se dignou examin-lo com curiosidade, e foi precisamente ele que perguntou:

- Que diz o senhor, padre Almeida?

O jesuta continuava de p, e aquela convergncia de olhares reprovadores no parecia afect-lo. pergunta do Inquisidor-mor seguiram-se vrias vozes.

- Explique-se, explique-se.

E o padre Villaescusa acrescentou:

- O que acaba de dizer incorre numa dupla sano, da Igreja e do Estado, porque est a atribuir aos Reis nada menos do que um concubinato.

- verdade, ainda que eles o ignorem; mas a Igreja no pode ignor-lo.

- Insisto, padre Almeida, que seja mais explcito - rogou, com voz apaziguadora, o do assento eminente.

Quando o padre Almeida pediu que lhe permitissem tirar a sotaina, porque fazia muito calor, mais do que com hostilidade, a maior parte dos membros do Supremo fitaram-no atentamente, j no irados, mas estupefactos, e embora quase todos pensassem que conviria examinar aquele desconhecido em 0matria de ortodoxia, a maior parte deles tinha admitido, sem graves dificuldades mentais, que no seria necessrio o tormento, e que um hbil interrogatrio bastaria. E entre eles figuravam bastantes com reputao de hbeis interrogadores. O padre Almeida dobrou cuidadosamente a sotaina e p-la sobre o seu assento, com o chapu.

- Reverendos senhores, no vou citar os santos padres nem os textos sagrados. Apenas me permitirei recordar-vos a unanimidade de todos os moralistas e de todos os telogos em exigirem, como condio bsica do casamento, a liberdade dos cnjuges. Ora bem, seriam os nossos amados Reis livres ao casarem-se?

Passeou os olhos sua volta. Ouviam-no, mas no pareciam dispostos a responder-lhe, salvo o padre Villaescusa.

- Quem duvida? Foram interrogados de acordo com as formalidades do cerimonial, e ambos disseram que sim.

- E poderiam dizer que no? Rogo a Vossa Paternidade que medite a resposta.

O padre Villaescusa pareceu hesitar um momento. Depois, respondeu:

- No entendo a pergunta. O padre Almeida bastante subtil. No parece jesuta.

- Subtil, diz Vossa Reverncia? Pois eu vejo o caso bem claro: trata-se de dois prncipes imbudos desta condio; trata-se de dois adolescentes, que foram educados na obedincia a seus pais, que, alm disso, so Reis. Como poderiam dizer que no? No entanto, os seus sins estavam condicionados pelo duplo carcter de prncipes e de adolescentes. No foram afirmaes livres.

De entre a massa dos peritos saiu uma voz de cana rachada.

- Talvez o padre Almeida no se aperceba de que est a pr em causa o mais antigo dos nossos costumes, o de que os pais concertem o casamento dos filhos, bem como o de solicitar a anuncia da Igreja.

O padre Almeida voltou-se para o falante, que era um frade velho de uma ordem secundria.

- Eu no ponho nada em causa. Eu nem sequer julgo. Limito-me a apresentar a Vossas Paternidades factos indiscutveis, dos quais, para este caso, e s para este caso, me permito tirar ilaes. O resto da incumbncia deste Santo Tribunal, no da minha.

- Mesmo supondo que o padre Almeida tivesse razo, a ulterior consumao do casamento legaliza-o e santifica-o.

O padre Almeida no precisou de mudar de posio, nem sequer de mexer a cabea: o seu interlocutor encontrava-se diante dele, bem visvel na sua clera contida, mas evidente.

- Rogo ao reverendo padre Villaescusa que imagine por um momento que dizem a um adolescente: logo noite tens que entrar no quarto da Rainha, e fazer isto e aquilo. E que dizem Rainha: logo noite, o Rei entrar no teu quarto: no lhe oponhas resistncia, porque a tua obrigao.

- Efectivamente, padre: era essa a sua obrigao.

Quem se atreve a duvidar? A obrigao da esposa receber o seu esposo no leito e, como Vossa Paternidade diz, no lhe opor resistncia.

- Admito que tambm fosse a obrigao do Rei; mas quem vai obrigado no vai livre.

- Se segussemos a sua doutrina, a maior parte dos casamentos seriam ilegais.

- Isso, reverendo padre, no sou eu que tenho que o concluir. Limito-me a mostrar a vossas reverncias que os sucessivos acessos do Rei ao corpo da Rainha foram fruto do dever, no da liberdade.

- Esquece Vossa Merc a obrigatoriedade do dever conjugal?

- Do ponto de vista do Rei ou da Rainha? arguiu rapidamente o jesuta.

- Eu entendo-o como recproco - interveio da sua altura um dominicano do Supremo; - ainda que, naturalmente, na maior parte dos casos seja uma obrigao da esposa, que nem sempre est disposta e, no entanto, deve aceder, para evitar males maiores.

- No esse o nosso caso - respondeu o padre Villaescusa. - O Rei no foi s putas porque a Rainha o tenha repelido. Investiguei tudo: o Rei h vrias semanas que no acorre aos aposentos da Rainha. No houve, pois, rejeio que explique, sem a justificar, uma infidelidade.

Foi neste momento que o Inquisidor-mor interrompeu a discusso com um bocejo: to grande que quase se lhe desencaixa a mandbula; to sonoro que cobriu a resposta do padre Almeida.

- Reverncias - disse -, no vos parece que o primeiro ponto da discusso est suficientemente debatido? Consta-nos que o Rei foi s putas, mas o padre Almeida, com o seu enorme senso comum, semeou a dvida de que os Reis nossos senhores estejam efectivamente casados. Eu disse a dvida, no a certeza. Nomear-se- uma comisso que estude o caso e emita o seu parecer. Fica de p um pecado, no ar outro, mas aquele da incumbncia do confessor, no deste alto Tribunal. Observo que Vossas Mercs esto encaloradas. Eu tambm. Proponho um descanso, enquanto nos refrescamos com umas bebidas frias que mandei preparar. Suspende-se, pois, a sesso por meia hora.

Os presentes que tinham estado sentados puseram-se de p, com rebulio de hbitos de diversos cortes e cores. Os contendores daquela batalha dialctica esperaram que o Inquisidor-mor sasse, depois de ter recolhido (o Inquisidor-mor) as longas caudas da sua vestimenta. sada respeitaram uma rigorosa ordem de hierarquias, de modo que, sem se olharem, o padre Villaescusa e o de Almeida saram a par. No claustro esperavam-nos os refrescos.

3.

Distriburam-se por afinidades teolgicas e pela preferncia por determinadas bebidas: uns pela gua de cevada, outros pela salsaparrilha, outros ainda pela popular orchata, salvo o Inquisidor-mor, que preferiu um copo de frio clarete bebido na sua taa etrusca, uma jia que trouxera de Itlia, adquirida aps misteriosos e arriscados tratos em que tinham participado um cardeal da Santa Cria e uma prostituta de clara linhagem, muito afecta aos interesses da Santa S, da qual tinha recebido um ttulo de princesa que arrastava por leitos ilustres, ou pelo menos ricos: Sua Excelncia acariciava o requintado cristal enquanto saboreava o vinho, e tanto os seus dedos como a sua lngua estremeciam de recordaes gloriosas. Olhava, da sua altura, para os seus colegas, e, salvo o padre Enrquez, que era irmo de um grande de Espanha, metido a frade devido a um fracasso amoroso, e o padre Almeida, evidentemente distinguido com a sua preferncia, considerava os restantes como labregos empanturrados de textos em latim, malcheirosos alguns, toscos de maneiras os demais, vindos da gleba, fugitivos do arado. Algum deles no tardaria a ser bispo. Meu Deus, oxal que o fosse de terras longnquas, onde restavam tantos ndios por converter, ainda que fosse chicotada! Tudo menos receb-los em audincia ms aps ms, queles frades, para lhe exporem questes de heresias rurais, listas de suspeitos judaizantes e mouriscos, ou de gentes ignaras de estranhas prticas sexuais. Quem no ser judeu neste pas? E recordou a sua trisav, conversa de Saragoa, que em tempos do rei Fernando tinha escorado com os seus dobres uma antiqussima casa de godos que se desmoronava. Tinha tirado a luva da mo esquerda, luva roxa de arcebispo in partibus, para apreciar melhor a frescura do clarete e o delicado talhe do cristal.

Dois dominicanos e dois franciscanos tinham-se posto a discutir sobre os pecados do Rei, luz das informaes chegadas, a uns e a outros, por vias populares. As possibilidades eram trs, segundo as ditas informaes: quatro cpulas e um fracasso quinta, as quatro cpulas sem fracasso, e o fracasso como nica realidade pecaminosa. O que se discutia no deixava de ser complicado: se as quatro cpulas deviam considerar-se como um nico delito, ou como quatro; se o fracasso, isolado ou em conjunto unitrio, deveria considerar-se tambm como pecado mortal em matria de inteno ou se - dadas certas circunstncias bastante incertas e difceis de deslindar, tais como se a inteno tinha sido provocada pela cmplice ou se tinha obedecido a um impulso real podia entender-se como meramente venial; finalmente, se a cmplice, sem dvida alguma sabedora de com quem partilhava o leito e a quem oferecia a sua colaborao para o pecado, devia ou no ser considerada r de um delito contra o Estado, e no s como habitual pecadora contra Deus, e, portanto, transferida para a jurisdio ordinria para que a julgassem segundo as leis civis. Armavam tal confuso, em latim e em romance, que a maior parte dos presentes tinham acabado por formar uma roda e os escutavam com mostras de aprovao ou de repulsa, salvo o padre Rivadesella, que se ria deles francamente. O padre Almeida no figurava entre os vociferantes: tinha-se encostado a uma pilastra e observava como a luz dourava os ramos das rvores, e como mais abaixo ia morrendo nas flores. O Inquisidor-mor aproximou-se dele, sorridente.

- No impossvel, padre Almeida, que um dia destes tenha de comparecer, em carro fechado e escoltado, para responder s perguntas que este Santo Tribunal queira fazer-lhe acerca da ortodoxia e da sua doutrina particular; mas, entretanto, quero manifestar-lhe que o senhor me simptico, que gostaria que almossemos a ss antes de ter que o deter, e que lamento que a sua misso em Inglaterra ponha a sua vida em perigo. No conheo os costumes nem os mtodos da justia inglesa, mas do que tenho a certeza de que a minha mo no poder chegar at quelas terras para lhe aliviar os tormentos. Aqui seria outra coisa.

O padre Almeida fez-lhe uma vnia muito gentil, mais francesa do que espanhola.

- Excelncia, agradeo-lhe essa prova de deferncia, e manifesto-lhe por meu turno a minha disposio tanto para o ouvir como para partilhar a sua mesa, embora o advirta de que, depois de tantos anos de ausncia do mundo civilizado, possvel que as minhas maneiras no sejam to refinadas quanto a vossa presena exigiria.

- Isso no importa, padre. Por muitos que tenham sido os seus anos de afastamento do mundo, o que se aprende uma vez nunca mais se esquece. Mas advirto-o por meu turno de que a minha mesa frugal. A Santa Inquisio rica, mas o seu chefe medianamente pobre. Ofereo-lhe uma sopa juliana, bem condimentada, certo, e um lombo de porco de vinha-dalhos que o meu cozinheiro, um homem do Norte, prepara com exemplar sabedoria - e ao dizer isto olhou de soslaio para o padre Almeida, que respondeu tranquilamente:

- No tenho nada contra esse lombo de porco, Excelncia. Vai para sete anos que no o provo.

- Nesse caso, acha bem amanh ao meio-dia?

- E no ter Vossa Excelncia que mandar prender-me antes?

- Procurarei evit-lo.

Um fmulo abria passagem por entre o grupo de frades em direco ao Inquisidor-mor. Com a devida licena, aproximou-se dele e disse-lhe qualquer coisa ao ouvido. O Inquisidor-mor respondeu-lhe: Tr-lo c imediatamente, e, muito corts, esclareceu o padre Almeida:

- um prprio do Valido. Sabe Deus o que ter acontecido a Sua Excelncia.

O fmulo vinha j com o mensageiro, um cavalheiro respeitabilssimo, de meia idade, membro de alguma ordem, a que o fmulo abriu passagem at o deixar diante do Prelado. O mensageiro ps-se de joelhos, beijou a mo que se lhe estendia, ou antes, o anel de ametista, e deixou nela uma carta selada. O Inquisidor-mor abriu-a, leu-a e pediu ao fmulo que lhe trouxesse com que escrever. Enquanto esperava, mandou o mensageiro levantar-se, e disse confidencialmente ao jesuta:

- Anda toda a gente alvoroada, pedindo a Deus clemncia pelos pecados dos grandes, e frente de cada grupo vai um frade exaltado. Mas o que parece t-los assustado a presena de uma enorme cobra que muitos dizem ter visto. Uns pensam que vai derrubar as muralhas da cidade; outros a Alcova real, e, a maioria, a sua prpria casa, porque todos se sabem pecadores.

- o que tem a opinio popular, Excelncia: h sempre algum que a cria e a dirige, mas depois cada qual pensa por sua conta.

O fmulo aproximava-se j com uma escrivaninha porttil, que ofereceu ao Inquisidor-mor. Este escreveu no papel: Pancada a torto e a direito. No teria importncia se algum desses frades, com uma perna partida, ficasse trs meses de cama para meditar, e passou o escrito ao padre Almeida.

- No gostaria de estar na pele dos pregadores.

- Tambm eu no.

O Inquisidor-mor fechou a carta, selou-a e entregou-a ao mensageiro, ao mesmo tempo que lhe oferecia a mo em sinal de despedida. O mensageiro sumiu-se por entre os frades querelantes e desapareceu.

- A culpa de todo esse alvoroo tem-na o padre Villaescusa. A f ardente, s vezes, inadequada para manter a ordem pblica.

- Refere-se Vossa Excelncia f do padre Villaescusa?

- Basta olhar para ele.

- Que Deus me castigue se me engano, mas esse frade no acredita em Deus.

- Que diz o senhor, padre Almeida?

- desses homens que falam, gritam, agitam, ameaam, tudo em nome da doutrina mais pura, mas que jamais se atrevem a olhar para dentro de si prprios. Alguma vez o ouviu referir-se ao Evangelho? Acredita Vossa Excelncia que tenha a menor noo de caridade? O padre Villaescusa acredita em tudo o que a Santa Madre Igreja acredita, mas, sobretudo, acredita na Igreja, qual pertence e que encarrega de acreditar por ele; dentro da qual espera progredir e, sobretudo, mandar. Suspeita de que nunca chegar a ser Papa, mas no pe de parte vir um dia a ocupar esse cadeiro que Vossa Excelncia ocupa, nem que seja apenas para ordenar um auto-de-f e a seguir morrer. quase certo que, nessa altura, a morte no o assustaria e que a receberia com o prazer de quem alcanou no mundo tudo o que desejou.

O Inquisidor-mor no lhe respondeu imediatamente.

- Padre Almeida, para quem viveu tanto tempo no meio dos selvagens, o senhor manifesta um bom conhecimento dos homens civilizados.

- Foi precisamente porque atingi esse conhecimento que preferi viver entre os ndios. No acreditariam no nosso Deus, mas acreditavam a srio nos deles.

Soou uma campainha de prata anunciando que o intervalo tinha terminado. Entraram na sala pela mesma ordem por que tinham sado, e ocuparam os seus cadeires. O Insquisidor-mor concedeu a palavra ao padre Villaescusa.

- Reverendos padres, foram trs as questes que nos congregaram nesta sesso solene: posta de lado a primeira, cuja soluo acato por obedincia, embora convencido de que, nessa comisso encarregada de a resolver, haver oportunidade de ouvir a minha voz, passo a expor a segunda: Sua Majestade o Rei manifestou, dando com isso provas de um descaramento que s pode tolerar-se por ser rgio, o seu desejo de ver a Rainha nua. As leis de Deus opem-se; as do reino tambm, ou, pelo menos, os nossos inveterados costumes e protocolos, que tm fora de lei. Qual a opinio de Vossas Paternidades?

Respondeu-lhe um silncio, quebrado finalmente pelo padre Almeida, algum admitiu na sua conscincia que inevitavelmente.

- Penso que, por se tratar de uma questo pessoal, excede as nossas incumbncias, a no ser que o padre Villaescusa demonstre o contrrio.

- Para o demonstrar - respondeu o capuchinho, com uma ponta de exaltao temperada pela segurana com que falava -, bastar-me- enunciar a terceira questo, profundamente relacionada com a segunda e tambm com a primeira: o Senhor que tudo pode, premiador dos bons e castigador dos maus, torna extensiva aos reinos de Espanha a sua indignao pelos pecados do Rei. O povo sabe-o, e anda receoso de sofrer um castigo pelos males que no fez. Neste momento espera-se uma grande batalha nos Pases Baixos, decisiva para as nossas armas, e a Frota das ndias aproxima-se das nossas costas. lgico que Deus nos castigue fazendo-nos perder a batalha e deixando que a frota seja assaltada e roubada pelos corsrios ingleses.

- No vejo a lgica em parte nenhuma.

Um frio medular sacudiu os ossos dos presentes, salvo os do Inquisidor-mor, que assistia ao debate com dissimulado regozijo.

- Ento, padre, o senhor no cr que Deus castigue os povos pelos pecados dos reis?

- Creio sobretudo que Deus castiga os povos pela sua estupidez e pela dos seus governantes, e que os ajuda quando estes no so estpidos. Rogo a Vossa Paternidade que considere o estado dos grandes pases nossos vizinhos. A Inglaterra j uma grande potncia, senhora do mar; -o tambm, embora s da terra, a Frana; no o j o Gro-turco, modelo de desgoverno. Da defunta rainha de Inglaterra, que levou o seu pas prosperidade, no temos informaes muito favorveis acerca dos seus costumes, e menos ainda da sua f. O cardeal que governa em Frana tambm no um exemplo de virtudes pessoais, mas parece inteligente e enrgico. De modo que a sua teoria s pode aplicar-se Espanha.

- No tenho inconveniente, padre, em aceitar a sua resposta, com a condio de que substitua Deus pelo Diabo.

- Uma proteco mais forte que a de Deus, ou uma inibio de Deus em benefcio do Diabo?

- No estou nos segredos de Deus, no posso dizer como levar a cabo o seu castigo. A nica coisa que sei que a presena do Diabo clara, como o em toda a ocasio em que os desgnios de Deus so frustrados pelos homens.

- Por um mau governo, por exemplo?

- Ou por um bom governo, que importa?

- E dispe Vossa Reverncia de algum indcio que denuncie a presena, ou a interveno, do Diabo no caso que nos ocupa?

O padre Villaescusa, que falava do seu assento, levantou-se solenemente.

- Esta reunio em que nos encontramos mais do que um indcio. O diabo provocou-a, o Diabo mantm-na, o Diabo suscita muitas das palavras que aqui se pronunciaram e se pronunciaro.

E o padre Rivadesella, quase sem se mexer, mas em tom claramente irnico, interveio.

- Pela razo que todos sabemos, a noite passada Lcifer voou pelos nossos cus na figura de um belssimo mancebo cujo voo deixava nos ares um sulco de prata. H testemunhas.

- Se assim - falou o padre Villaescusa, sem perder a solenidade -, proponho que se exorcize esta sala imediatamente.

- Refere-se Vossa Paternidade ao espao em que nos encontramos, ou aos que compem a reunio?

Aquela inesperada e a todos os ttulos impertinente pergunta do Inquisidor-mor surpreendeu quase todos os presentes, e, mais do que ningum, o padre Villaescusa.

- No me referia a ningum em concreto, Excelncia.

- Nesse caso, de pensar que a presena do Diabo no constitui nenhuma novidade. O Senhor est em toda a parte, mas o Diabo anda sempre atrs dele...

- Mas, s vezes, o Senhor distrai-se.

- O que vem a ser mais ou menos o que eu disse antes. Que o Senhor se inibe, mas a mim custa-me muito acreditar nisso.

Tornou a ouvir-se a voz eminente do Inquisidor-mor.

- Permito-me recordar a Vossas Paternidades que estamos a afastar-nos do assunto que aqui nos trouxe.

Tnhamos ficado em se o Rei tem ou no o direito de ver a Rainha nua, e se isto ou no pecado. Rogo a Vossas Paternidades que se pronunciem claramente sobre este ponto.

- Afirmo que tem esse direito e que no pecado respondeu com voz segura o padre Almeida -, afirmo no s isso, mas a convenincia de que isso acontea para que no casamento dos Reis, no como tais mas sim como cristos, se realize a Graa do Senhor.

O padre Villaescusa saltou como picado por uma vespa.

- Diz Vossa Merc a Graa do Senhor? Acha que a Graa do Senhor se manifesta no coito? Ou na contemplao desses horrveis penduricalhos das fmeas que se chamam peitos? Ou prefere que a contemplao se verifique pelas costas, evidentemente contra natura? Refiro-me, como bvio, contemplao das ndegas.

O padre Enrquez, O. S. D., tinha adormecido uma ou duas vezes; outras, tinha arrebitado a orelha, e, muitas, sorrido. Nesta altura levantou a mo cortesmente.

- Visto que este debate se desenrola em lngua romance, permito-me rogar ao sbio e virtuoso padre Villaescusa que chame as coisas pelos seus nomes. Quero dizer, mamas em vez de peitos, cu em lugar de ndegas. Se bem me lembr