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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS
Programa de Pós-Graduação em Direito
Manoel Antônio Silva Macêdo
CRIOPRESERVAÇÃO DE EMBRIÕES E SUAS IMPLICAÇÕES ÉTICO-
JURÍDICAS: análise no âmbito do princípio da autonomia privada concernente à
liberdade de planejamento familiar face às limitações legais e bioéticas
Belo Horizonte
2019
Manoel Antônio Silva Macêdo
CRIOPRESERVAÇÃO DE EMBRIÕES E SUAS IMPLICAÇÕES ÉTICO-
JURÍDICAS: análise no âmbito do princípio da autonomia privada concernente à
liberdade de planejamento familiar face às limitações legais e bioéticas
Dissertação de mestrado apresentada ao Programa
de Pos-graduacao em Direito da Faculdade Mineira
de Direito da Pontificia Universidade Catolica de
Minas Gerais como requisito parcial para a obtencao
do titulo de mestre em Direito Privado.
Linha de Pesquisa: Reconstrucao dos Paradigmas do
Direito Privado no Contexto do Estado Democratico
de Direito
Professora Orientadora: Dra. Maria de Fatima Freire
de Sa.
Belo Horizonte
2019
FICHA CATALOGRÁFICA
Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Macêdo, Manoel Antônio Silva
M141c Criopreservação de embriões e suas implicações ético-jurídicas: análise no
âmbito do princípio da autonomia privada concernente à liberdade de
planejamento familiar face às limitações legais e bioéticas / Manoel Antônio
Silva Macêdo. Belo Horizonte, 2019.
Orientadora: Maria de Fatima Freire de Sa
Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Programa de Pós-Graduação em Direito
1. Brasil. Lei de biossegurança (2005). 2. Bioética - Criopreservação. 3.
Engenharia genética - Aspectos jurídicos. 4. Células-tronco embrionárias. 5.
Fertilização in vitro. 6. Tecnologia da reprodução humana - Legislação. 7.
Direito e biologia. 8. Planejamento familiar - Aspectos jurídicos. I. Sa, Maria de
Fatima Freire de. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Programa de Pós-Graduação em Direito. III. Título.
CDU: 612.663
Ficha catalográfica elaborada por Elizângela Ribeiro de Azevedo - CRB 6/6368
159 f.
Manoel Antônio Silva Macêdo
CRIOPRESERVAÇÃO DE EMBRIÕES E SUAS IMPLICAÇÕES ÉTICO-
JURÍDICAS: análise no âmbito do princípio da autonomia privada concernente à
liberdade de planejamento familiar face às limitações legais e bioéticas
Dissertação apresentada como requisito parcial para
obtencao do titulo de mestre em Direito Privado, do
Programa de Pos-Graduacao em Direito da
Faculdade Mineira de Direito da Pontificia
Universidade Catolica de Minas Gerais.
Linha de Pesquisa: Reconstrucao dos Paradigmas do
Direito Privado no Contexto do Estado Democratico
de Direito
_____________________________________________________
Profa. Dra. Maria de Fatima Freire de Sa (PUC/MG) (Orientadora)
_____________________________________________________
Professora Dra. Taisa Maria Macena de Lima (Banca Examinadora)
_____________________________________________________
Professora Dra. Iara Antunes de Souza (Banca Examinadora)
_____________________________________________________
Professor Dr. Pedro Henrique Menezes Ferreira (Suplente)
Belo Horizonte, 3 de dezembro de 2019.
AGRADECIMENTOS
À minha família, em especial Catarina e Taíssa, por todo apoio, compreensão e
carinho, durante as ausências necessárias, essenciais para alcançar a serenidade no momento
de escrever;
Aos meus pais Cleuza Maria Silva Macêdo e Agis Wilson Macêdo (in memoriam)
pelos ensinamentos que levo para a vida, e ao meu irmão Agis Wilson Macêdo Filho pelo
apoio e incentivo;
À minha estimada orientadora, Professora Dra. Maria de Fátima Freire de Sá, pela
confiança depositada, orientação fundamental, sobretudo por estar sempre disponível para
discussão, leitura e revisão, bem como pelos valiosos ensinamentos jurídicos, que tornaram
possível a conclusão do presente trabalho;
Agradeço, ainda, pela amizade da doutoranda Gabriela Mascarenhas Lasmar, e das
Mestrandas Paula Guedes Vilela e Ana Paula Avelar, colegas do Programa de Pós-Graduação
em Direito da PUC Minas, nessa jornada acadêmica, que juntos estamos trilhando;
Aos Professores Doutores Taisa Maria Macena de Lima, Iara Antunes de Souza e
Pedro Henrique Menezes Ferreira pelos questionamentos e valiosas contribuições jurídicas
para o aperfeiçoamento das ideias contidas no presente trabalho;
Enfim, para encerrar, registro, ainda, meus agradecimentos aos demais Professores e
funcionários do Programa de Pos-Graduacao em Direito da PUC-Minas, e da Biblioteca PUC
Minas (Coração Eucarístico), que colaboraram para o desenlace desse projeto destinado a
instigar a discussão jurídica do tema tratado.
RESUMO
A dissertacao apresenta como tema central a analise da autonomia privada, no exercicio da
liberdade de planejamento familiar, com ênfase nas limitações impostas pela Lei nº 11.105, de
24 de março de 2005, e pela Resolução CFM nº 2.168/2017, relativamente ao destino dos
embriões excedentários obtidos por fertilização in vitro, para fins reprodutivos. Assim, serão
discutidas as repercussões ético-jurídicas de alguns conceitos, que norteiam a experimentação
científica com células-tronco embrionárias, sobre autonomia reprodutiva e a liberdade de
planejamento familiar dos indivíduos, tais como: a categorização entre embriões viáveis e
inviáveis, a partir da qual foi estabelecido um prazo de congelamento obrigatório; a
legitimidade da vinculação legal, que restringe o uso em pesquisa à necessária verificação de
uma condição biológica descrita como inviabilidade embrionária, ou que exige o decurso de
um prazo de três anos para quando houver viabilidade; e, por fim, com base em qual status
jurídico do embrião in vitro é possível conferir legitimidade ético-jurídica às pesquisas, com
fins de cura e terapia, e as consequências disso para as limitações retro mencionadas.
Palavras-chave: Autonomia privada. Liberdade de planejamento familiar. Direitos
reprodutivos. Bioética. Biodireito. Reprodução assistida. Descarte. Pesquisa. Células-tronco.
ABSTRACT
The dissertation presents as its central theme the analysis of private autonomy, in the exercise
of freedom of family planning, with emphasis on the limitations imposed by Law No. 11.105,
of March 24, 2005, and by the Resolution CFM No. 2.168 / 2017, regarding the destiny of
leftovers embryos obtained by in vitro fertilization for reproductive purposes. Thus, we are
going to discuss the ethical-legal repercussions of some concepts that guide the scientific
experimentation with embryonic stem cells, about the reproductive autonomy and the freedom
of family planning of the individuals, such as: the categorization between viable and unviable
embryos, from wich a mandatory freezing period was established; the legitimacy of the legal
imposition, which restricts scientific researches to the necessary verification of a biological
condition described as embryonic inviability, or that requires waiting for a period of three
years when there is embryonic viability; and, lastly, on wich legal status of the in vitro
embryo it is possible to recognize ethical-legal legitimacy to research for healing and therapy
purposes, and its consequences for the above-mentioned limitations.
Keywords: Private autonomy. Freedom of family planning. Reproductive rights. Bioethics.
Right. Assisted reproduction. Discard. Search. Stem cells.
LISTA DE ABREVIATURAS
ADPF Acao de descumprimento de preceito fundamental
ADI Acao direta de inconstitucionalidade
CC Codigo Civil
CDC Código de Defesa do Consumidor
CF Constituição Federal
CFM Conselho Federal de Medicina
CNS Conselho Nacional de Saúde
DGPI Diagnostico genetico pre-implantatorio
DUDH Declaração Universal dos Direitos do Homem
FIV Fertilizacao in vitro
LB Lei de Biossegurança
RA Reproducao assistida
STF Supremo Tribunal Federal
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 15
2 PANORAMA GERAL ÉTICO NO ÂMBITO DA ENGENHARIA GENÉTICA 17
3 BIOÉTICA e BIODIREITO ...................................................................................... 25 3.1 Princípios da Bioética e do Biodireito ....................................................................... 33 3.2 O tratamento ético-jurídico da reprodução assistida .............................................. 39
3.3 O status jurídico do embrião ...................................................................................... 44
4 AUTONOMIA REPRODUTIVA E PLANEJAMENTO FAMILIAR COMO
DIREITO FUNDAMENTAL ..................................................................................... 65 4.1 Antecedentes históricos ............................................................................................... 65 4.2 Direitos reprodutivos .................................................................................................. 71
4.3 Entre o arbítrio e a limitação da liberdade de planejamento familiar ................... 79
5 O DIREITO À LIBERDADE DE PLANEJAMENTO FAMILIAR FACE À
VIABILIDADE TÉCNICA DO EMBRIÃO ............................................................. 91
5.1 Viável ou inviável? ...................................................................................................... 91 5.2 O critério biológico perante o ordenamento jurídico .............................................. 96
6 A LEI DE BIOSSEGURANÇA E A RESOLUÇÃO CFM 2.168/2017 ................ 100
6.1 O tratamento deontológico aplicado aos embriões criopreservados .................... 108
7 A POSSIBILIDADE DE EXPERIMENTAÇÃO COM EMBRIÕES .................. 113
7.1 Antecedentes históricos ............................................................................................. 113 7.2 Limites ético-jurídicos da experimentação com embriões criopreservados ........ 114
8 O CONTRATO ENTRE A CLÍNICA E OS SUJEITOS FONTES E AS
POSSIBILIDADES REFERENTES AO DESCARTE E ABANDONO DE
EMBRIÕES ............................................................................................................... 123
8.1 A relação contratual médico-paciente ..................................................................... 124
8.2 A responsabilidade civil nos contratos de reprodução humana assistida ............ 130
9 BREVE ANÁLISE DA ADI 3.510 versus PEC 164/2012 ....................................... 139
10 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 147
REFERÊNCIAS ........................................................................................................ 153
15
1 INTRODUÇÃO
As inovações na tecnologia médica vêm proporcionando o aumento da compreensão
da autonomia individual, sobretudo acerca do que é eticamente permitido fazer, num campo
relacionado ao exercício de direitos fundamentais, como autonomia reprodutiva, liberdade de
planejamento familiar, livre expressão da atividade científica e outros.
Poderia se dizer que, cada vez mais, o limite entre a liberdade e o conhecimento
científico se torna tênue, à medida que se opera mais frequente a intervenção estatal com o
pretexto de proteger direitos intrinsecamente relacionados a questões morais, âmbito no qual
se constata a inexistência de uma determinação clara de conceitos no catálogo de regras,
assinalando, por exemplo, importantes marcos como início ou fim da vida.
Assim, as implicações resultantes das incertezas sobre conceitos legais relacionados à
vida humana acarretam uma série de indagações, por exemplo: que balizas apropriadas
podemos impor sobre liberdade da técnica, que avança sobre a liberdade dos indivíduos? E,
em que medida, pode haver a limitação de ambas, para que haja uma coexistência menos
conflituosa, com base na qual o agir instrumental atente para a alteridade?
Essas questões significam também que há o risco de que a proteção resultante do
reconhecimento de alguns direitos possa causar a desproteção de outros, pois, como há de ser
visto no decorrer do desenvolvimento desse trabalho, o debate sobre o embrião preservado
num freezer biológico, notadamente a partir de qual de suas fases de desenvolvimento passa a
receber a proteção do Direito, tem sérias implicações sobre a autonomia reprodutiva do ser
humano.
É preciso reconhecer, ainda, que a regulamentação normativa para os comportamentos
humanos não oferece soluções definitivas aos dilemas morais e filosóficos enfrentados pelos
indivíduos e sociedade, já que, nem sempre, elas são pensadas, com a amplitude necessária do
trato democrático.
Nessa seara, nota-se que a influência exercida pela tecnologia sobre as relações sociais
e individuais, característica que foi e continua sendo extremamente importante na
transformação do ser humano, dá a este mais noção de si próprio, e de que suas atitudes
afetam não só a ele, mas a toda comunidade que compartilha valores comuns1.
1 Quando se fala em valor comum, não se está querendo dizer que todos compartilham da mesma construção de
vida boa, mas que têm valores comuns erigidos à categoria de princípios, como liberdade, igualdade etc.
16
Por tal razão, será adequado dizer que é o caso de se chamar de proteção jurídica o
tratamento legal que se confere ao embrião? Se afirmativa a resposta, o que dizer da realidade,
na qual é possível o uso, e até mesmo descarte desses organismos ou formas de vida?
E, com base em quais parâmetros se tornam legítimas as limitações impostas pelas
normas sobre a liberdade de planejamento familiar, em que fica evidente a inclinação de parte
da doutrina2 pela dimensão biológica?
Importa também responder qual das abordagens é a melhor: a legislativa, ou uma
forma diferenciada que permita acompanhar a rapidez da evolução científica de matérias
polêmicas, sem cair na obsolescência de uma regra, por vezes, esclerotizada3?
Os questionamentos que norteiam a pesquisa que se pretende desenvolver adiante, têm
o objetivo de mostrar alguns aspectos dos dilemas ético-jurídicos, no contexto de um
ordenamento orientado por princípios liberais, em que a autonomia privada exerce papel
fundamental nas escolhas individuais sobre a utilização das técnicas de reprodução assistida
(RA).
No âmbito da presente dissertação, serão também discutidos os efeitos jurídicos
produzidos pelo uso das técnicas de RA sobre a autonomia privada das pessoas, em função da
produção excedentária de embriões, ora vinculada ao problema da legitimidade do uso em
pesquisa.
Assim é que, ao cabo deste estudo, serão analisadas, sob a ótica da autonomia privada,
as restrições impostas pela Lei n. 11.105/2005 (Lei de Biossegurança) e Resolução do
Conselho Federal de Medicina (CFM) nº 2.168/2017, por meio do esclarecimento de
conceitos técnicos inerentes à temática, bem como formas de refletir e buscar alternativas na
relação conflituosa entre a liberdade fundamental de planejamento familiar e as normas
jurídicas e deontológicas, que fixam prazos e condições biológicas, para utilização das
técnicas de RA. Outrossim, inobstante a investigação tenha, prioritariamente, foco sobre o
fenômeno jurídico, valer-nos-emos de conhecimentos filosóficos, biológicos e bioéticos.
2 A parte da doutrina mencionada no parágrafo pode ser entendida como qualquer das teorias que tratam das
realidades pré-nascimento, relacionando o início da vida e personalização de um novo ser a um determinado
momento anterior ao nascimento. 3 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. Tradução de: Maria Cristina De Cicco. 3. ed. rev. e ampl. Rio
de Janeiro: Renovar, 2002, p. 21.
17
2 PANORAMA GERAL ÉTICO NO ÂMBITO DA ENGENHARIA GENÉTICA
A busca permanente por conhecimento científico concebido pelo potencial criativo do
homem capaz de ajustar a natureza a seus fins, para a obtenção dos benefícios da engenharia
genética, tornou possível a evolução biotecnológica inclusive como caminho promotor de
transformações sociais, ao oferecer escolhas dentro do espaço de autonomia privada, num
território antes regido pelo acaso.
Sob essa perspectiva, Michael J. Sandel enfatiza que o dilema da possibilidade de
manipulação de nossa natureza com as descobertas genéticas acelera o desenvolvimento da
evolução humana, numa velocidade maior em que estaríamos moralmente preparados para
compreender e absorver, sobretudo numa sociedade liberal em que a linguagem primeiro se
baseia em conceitos de autonomia, justiça e direitos humanos4.
Dada a importância do tema, temos hoje uma profusão de proposições legislativas
apresentadas5, nas quais se torna evidente o traço característico do direito como meio de
controle social, por meio de definições quanto ao início e fim da vida humana, limitando a
autonomia privada aos indivíduos, no sentido de conciliar os interesses de cada um para com
todos.
A ênfase na produção legislativa é melhor explicada pela corrente positivista legal6,
que tanto preza pela segurança jurídica, a partir da regulamentação de questões que lidam com
nossos dilemas morais, através de inovações jurídicas explícitas, tendo como fundamento a
ideia de que um poder legislativo com a competência de criar e alterar a moral conseguiria
mitigar nossas preocupações com as consequências das decisões resultantes do exercício da
autonomia privada.
Contrariamente, o principal pensador positivista da common law, H. L. A. Hart7
fornece-nos a explicação sociológica que a norma moral e as tradições não podem ser
alteradas diretamente pela atuação legislativa, a despeito de não serem imunes a outras formas
de modificacao, eis que identifica a “imunidade à modificacao deliberada” como uma das
4 SANDEL, Michael J. Contra a perfeição: ética na era da engenharia genética. tradução Ana Carolina
Mesquita. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. p. 21-22. 5 PAIVA, Eleuses. Projeto de Lei n. 4.892, de 2012. Institui o Estatuto da Reprodução Assistida, para regular a
aplicação e utilização das técnicas de reprodução humana assistida e seus efeitos no âmbito das relações civis
sociais. Brasilia: Camara, 19 dez. 2012. 6 Para o positivismo legal, apenas são reconhecidas como direito as normas instituídas pelo Estado (Zippelius,
Reinhold. Filosofia do direito. – São Paulo : Saraiva, 2012, p. 34). 7 HART, H. L. A. O conceito de direito; pós-escrito organizado por Penelope A. Bulloch e Joseph Raz; tradução
de Antônio de Oliveira Sette-Câmara ; revisão da tradução Marcelo Brandão Cipolla ; revisão técnica Luiz
Vergílio Dalla-Rosa. – São Paulo : Editora WMF Martins Fontes, 2009, p. 221-228.
18
quatro características cardeais8 encontradas nos princípios, normas e padrões de
comportamento considerados “morais”.
Ademais, assevera Habermas9 que, por ser a língua algo que se compartilha com os
outros, e não uma propriedade privada que esteja sujeita a algum tipo de controle exercido por
alguém, a liberdade que se exerce na comunicação não é uma questão de arbítrio subjetivo,
mas de como nos entendemos uns com os outros, enquanto sujeitos capacitados para
linguagem e para a ação.
Ao encontro da posição supracitada, Sá e Naves10 comentam que a crise do
positivismo alterou o modo de enxergar os conflitos surgidos na sociedade contemporânea,
através da utilização de princípios jurídicos, que encontraram plena acolhida na juridicizada e
eticizada Medicina de hoje.
Assim, conforme explicam Sá e Naves11, diante da variedade de conflitos biojurídicos
do Direito medicalizado, inserido num ordenamento regulado por um sistema de normas
fundamentais, nota-se que o sistema codificado de regras fechadas por si só não contempla
soluções para toda a potencialidade conflitiva que pode surgir das novas práticas científicas
com capacidade de interferir nas relações humanas.
Decisões que afetam determinado modo de vida pessoal ou coletivo, como o
aperfeiçoamento da espécie ou o desenvolvimento de novas formas de procriação, nos levam
a reflexões que fazem parte do campo de discussão das teorias morais sobre o sentido da vida
correta, num mundo em que as relações sociais e as práticas, assim como a natureza, são
progressivamente objetificadas, em meio a ação do homem de criar as condições de liberdade.
Outrossim, a atuação do avanço científico nas condições de liberdade também levanta
questões de importância intrínseca para a definição do conteúdo e alcance do conceito de
dignidade sobre o uso ético (ou não) de embriões in vitro ou excedentários, na concretização
de projetos existenciais, através das técnicas de reprodução assistida.
Representando esse avanço científico, o Diagnóstico Genético Pré-Implantação
(DGPI), que, a título de servir como exame genético preventivo para evitar o risco de
transmissão de doencas hereditarias, para uma corrente assumiria a forma de “biologizacao” 8 Hart identifica quatro características que considera comumente encontradas nas normas ou princípios morais,
sob os titulos “Importancia”, “Imunidade à modificacao deliberada”, “O carater voluntario das infracões
morais” e “A forma de pressao moral”, necessarias para distinguir a moral de certas normas ou princípios de
conduta social, que seriam excluídos do âmbito daquela. 9 HABERMAS, Jürgen. O futuro da natureza humana : a caminho de uma eugenia liberal? ; tradução Karina
Jannini ; revisão da tradução Eurides Avance de Souza. - São Paulo : Martins Fontes, 2004, p. 16. 10 SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. Bioética e biodireito. 4. ed. Belo
Horizonte: Del Rey, 2018, p. 15. 11 SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. Bioética e biodireito. 4. ed. Belo
Horizonte: Del Rey, 2018, p. 17-18.
19
da natureza humana na concretização da autonomia reprodutiva do ser humano, enquanto
direito personalíssimo, de selecionar a descendência, a partir de um diagnóstico, com uma
probabilidade de 99,99%, acerca de predisposições para doenças, no caso de patologias
monogenéticas12.
Mayana Zatz13 discorda do entendimento que classifica o DGPI como prática
eugênica, por ser praticamente impossível testar todas as doenças genéticas de origem
conhecida, caso em que somente encontra aplicação para investigação dos genes conhecidos
como causadores de determinadas doenças manifestadas em parentes próximos dos genitores.
Não se olvida também que a escolha por um tratamento de reprodução assistida se
apresenta como medida de planejamento familiar, revelando também um comportamento de
individualização crescente de estilos de vida designados como universalmente decisivos,
segundo capacidades e critérios próprios formadores de uma concepção pessoal de “boa
vida”.
Habermas14 critica a tendência individualista por considerá-la incapaz de se afirmar e
convencer novas gerações, compostas por seres históricos e sociais que se encontram num
mundo da vida estruturado linguisticamente, e sujeito a mudanças que possibilitam
interpretações de diferentes contextos compartilhados.
Ademais, as preferências individuais, que têm em vista a seleção e alteração de
características, apresentam potencial suficiente para violar o que Habermas15 chama de direito
a um patrimônio hereditário não-manipulado, restringindo a liberdade de escolha de uma vida,
sob condições orgânicas iniciais não eleitas por aquele futuro indivíduo que seria produto de
um embrião inviável.
Em relação a esse debate jurídico, Habermas16 entende que a filosofia não pode
permanecer inerte a respeito de questões de conteúdo, principalmente aquelas que provocam o
direcionamento de projetos de vida individuais e de formas de vida particulares, concluindo
que:
É nessa situação que nos encontramos hoje. O progresso das ciências biológicas e o
desenvolvimento das biotecnologias ampliam não apenas as possibilidades de ação
12 MORALES, Maria Rosario H. Sánchez. Os desafios da biotecnologia humana no século XXI. In: Romeo-
Casabona, Carlos María; Sá, Maria de Fátima Freire de (organizadores). Desafios jurídicos da biotecnologia.
Belo Horizonte: Mandamentos, 2007, p. 251. 13 ZATZ, Mayana apud ORSELLI, Helena Maria Zanetti de Azeredo. O status jurídico do pré-embrião humano a
partir dos princípios constitucionais do pluralismo e da laicidade. Curitiba: Editora Prismas, 2016, p. 307. 14 HABERMAS, Jürgen. O futuro da natureza humana : a caminho de uma eugenia liberal? ; tradução Karina
Jannini ; revisão da tradução Eurides Avance de Souza. - São Paulo : Martins Fontes, 2004, p. 5. 15 HABERMAS, Jürgen. O futuro da natureza humana : a caminho de uma eugenia liberal? ; tradução Karina
Jannini ; revisão da tradução Eurides Avance de Souza. - São Paulo : Martins Fontes, 2004, p. 38. 16 HABERMAS, Jürgen. O futuro da natureza humana : a caminho de uma eugenia liberal? ; tradução Karina
Jannini ; revisão da tradução Eurides Avance de Souza. - São Paulo : Martins Fontes, 2004, p. 17.
20
já conhecidas, mas também possibilitam um novo tipo de intervenção. O que antes
era ‘dado’ como natureza organica e podia quando muito ser ‘cultivado’, move-se
atualmente no campo da intervenção orientada para um objetivo. Na medida em que
o organismo humano também é compreendido nesse campo de intervenção, a
distinção fenomenológica de Helmuth Plessner entre ‘ser um corpo vivo’ (Leib sein)
e ‘ter um corpo vivo’ (Körper haben) adquire uma atualidade impressionante: a
fronteira entre a natureza que ‘somos’ e a disposicao organica que ‘damos’ a nós
mesmos acaba se desvanecendo.17
Contudo, esse direito a um patrimônio hereditário não-manipulado implica também
uma escolha, porquanto não se sabe se o indivíduo aceitaria as condições orgânicas iniciais
que a natureza manifestou. Assim, entender que o indivíduo por nascer teria direito a um
patrimônio hereditário não-manipulado também equivale a fazer uma escolha restritiva de sua
liberdade.
De outro lado, percebe-se que o avanço da técnica genética vem influenciando o
alcance de nossa autonomia privada, sobretudo quando concebe conceitos como “viavel” e
“inviavel”, modificando nossa experiência moral, na tomada de decisões, na medida em que, a
depender de qual categoria faz parte o embriao ou “ente por nascer”, são criados deveres e
condições para limitar o exercício da liberdade de planejamento familiar.
Portanto, a biotecnologia nos impele a confrontar questões bioeticas ligadas ao
aumento da acuidade do diagnostico e ao dominio terapeutico da natureza humana,
considerando a possibilidade de destinação à pesquisa de embriões viáveis e inviáveis, para
fins de cura de doenças, conforme faculta o art. 5o da Lei nº 11.105, de 24 de março de
200518, como intervenção que Habermas19 chama de eugenia negativa, eis que voltada à
eliminação de males.
Consoante Emilssen González de Cancino20, conceitua-se a eugenia como a
intervenção genética sobre o ser humano, com o fim de alcançar melhorias genéticas, e ao
mesmo tempo suprimir a transferência dos genes que recebem a classificacao de “ruins”.
Também as descobertas da genética apresentam a promessa de tratar e prevenir
doenças, bem como suscitam o dilema sobre a possibilidade de manipulação de nossa própria
17 HABERMAS, Jürgen. O futuro da natureza humana : a caminho de uma eugenia liberal? ; tradução Karina
Jannini ; revisão da tradução Eurides Avance de Souza. - São Paulo : Martins Fontes, 2004, p. 17. 18 BRASIL. Lei nº 11.105, de 24 de março de 2005. Regulamenta os incisos II, IV e V do § 1o do art. 225 da
Constituição Federal, estabelece normas de segurança e mecanismos de fiscalização de atividades que
envolvam organismos geneticamente modificados – OGM e seus derivados [...]. Brasília: Presidência da
República, [2007]. 19 HABERMAS, Jürgen. O futuro da natureza humana : a caminho de uma eugenia liberal? ; tradução Karina
Jannini ; revisão da tradução Eurides Avance de Souza. - São Paulo : Martins Fontes, 2004, p. 18. 20 CANCINO, Emilssen González de. Eugenia: avanço ou retrocesso? In: Romeo-Casabona, Carlos María; Sá,
Maria de Fátima Freire de (organizadores). Desafios jurídicos da biotecnologia. – Belo Horizonte:
Mandamentos, 2007, p. 268.
21
natureza pelo conhecimento genético21, e questões relativas à ética da espécie. De modo
igual, importa discutir o tratamento que se deve dar à pesquisa e à própria técnica em torno da
questão do status moral da vida humana pré-pessoal, ora representada neste trabalho pelo
embrião crioconservado, sobre o qual recai a neutralizacao biotecnica da distincao entre “o
que cresceu naturalmente” e o “que foi fabricado”, conforme distinção feita por Habermas22.
Acrescente-se, ainda, o fato de que no cenário atual de produção excedentária de
embriões humanos, a neutralidade do Estado se distingue como marca da nova eugenia
liberal, defendida pelo filósofo do direito Ronald Dworkin, e que, para Robert Nozick,
legitimaria a criação de um “supermercado genetico”23, por meio da bioengenharia,
característica do exercício da liberdade numa sociedade competitiva.24
Nesse sentido, conforme Habermas25, os defensores da eugenia liberal defendem que,
sob o ponto de vista moral, as intervenções genéticas para aperfeiçoamento causariam os
mesmos efeitos da socialização quanto à modificação de atitudes e expectativas, não havendo
nenhuma diferença entre alterar a composição de um genoma e influir no ambiente
educacional de uma pessoa em desenvolvimento, motivo pelo qual não faz sentido a proibição
da eugenia positiva26. Ainda segundo Sandel, na prática já nos defrontamos com a ética do
melhoramento, mesmo depois do nascimento, quando são administrados hormônios de
crescimento para aumentar alguns centímetros de altura nos filhos, buscando uma otimização
de características que levam a vantagens na competição social.27
De outro lado, a engenharia genética, como conjunto de técnicas associadas ao
procedimento de fertilização in vitro (FIV), com capacidade para alterar a carga hereditária
humana, torna possível a otimização da espécie, implicando uma melhora na qualidade da
vida, e em seu prolongamento, bem como na realização da paternidade ou cura de doenças
degenerativas.
21 SANDEL, Michael J. Contra a perfeição: ética na era da engenharia genética. tradução Ana Carolina
Mesquita. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. p. 19. 22 HABERMAS, Jürgen. O futuro da natureza humana : a caminho de uma eugenia liberal? ; tradução Karina
Jannini ; revisão da tradução Eurides Avance de Souza. - São Paulo : Martins Fontes, 2004, p. 1-2, 33. 23 SANDEL, Michael J. Contra a perfeição: ética na era da engenharia genética. tradução Ana Carolina
Mesquita. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. p. 87-88. 24 SANDEL, Michael J. Contra a perfeição: ética na era da engenharia genética. tradução Ana Carolina
Mesquita. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. p. 106. 25 HABERMAS, Jürgen. O futuro da natureza humana : a caminho de uma eugenia liberal? ; tradução Karina
Jannini ; revisão da tradução Eurides Avance de Souza. - São Paulo : Martins Fontes, 2004, p. 68-70. 26 Segundo Jürgen Habermas (2004), a eugenia positiva consistiria nas intervenções genéticas que se aproximam
do aperfeiçoamento genético de características. 27 SANDEL, Michael J. Contra a perfeição: ética na era da engenharia genética. tradução Ana Carolina
Mesquita. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. p. 28.
22
De certo modo, Habermas nos oferece uma resposta sobre o elemento de
imprevisibilidade excluído pela biotecnologia, ao perceber que o destino natural e o
determinado pela socialização distinguem-se num aspecto moralmente relevante, tendo em
vista que os processos de socialização somente se dão na ação comunicativa, no âmbito de
processos de compreensão e decisões, nos quais os indivíduos durante seu amadurecimento
têm chances de se libertar, porque não são tratados como coisas; enquanto, no caso de uma
fixação genética, essa mesma chance não existe.
Mas e quanto à destinação de embriões inviáveis para utilização com fins de pesquisa
e terapia ou mesmo descarte? Será legítima a interferência para se evitar que propriedades
desvantajosas do fenótipo recaiam sobre o corpo vivo, nos moldes de uma eugenia negativa,
com acões de carater restritivo, diretamente sobre o patrimonio genetico do individuo, ou para
impedir que pessoas com certas limitações se reproduzam?
Além disso, a dependência que temos dos sujeitos operadores da biotecnologia pode
incrementar o risco de limitação do exercício de nossa autodeterminação, através da
conceituação de organismos e ações voltadas para o campo da pesquisa, embora não se negue
a importância do dado científico para a concretude jurídica atual que hoje atingimos sobre o
tema.
Nesse âmbito, percebe-se que o legislador brasileiro acolheu práticas de uma eugenia
liberal, objetificando o embrião, e, por essa razão, dispensando a necessidade de seu
consentimento, exigível caso se entendesse haver uma relação entre pessoas livres e iguais.
Do mesmo modo, privilegiou-se a liberdade de pesquisa em relação à vida humana primária,
objetivando o desenvolvimento de novos processos de cura.
Seguindo a tendência descrita anteriormente, veja-se a Lei nº 9.26328, de 12 de janeiro
de 1996, que garante o acesso igualitário a métodos e técnicas disponíveis para a regulação da
fecundidade, a fim de efetivar o direito ao planejamento familiar (art. 4o), bem como a Lei nº
11.105/2005, que permite, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco
embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por FIV, e não utilizados no
respectivo procedimento.
Fato é que ambas as leis mencionadas têm importância para efetivação do direito
fundamental ao planejamento familiar, previsto na Constituição Federal, no § 7o do art. 226, o
28 BRASIL. Lei nº 9.263, de 12 de janeiro de 1996. Regula o § 7º do art. 226 da Constituição Federal, que trata
do planejamento familiar, estabelece penalidades e dá outras providências. Brasília: Presidência da República,
[2014].
23
qual dispõe que é de livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar os recursos
científicos como direitos sociais correspondentes.
Igualmente relacionado ao direito ao livre planejamento familiar, a Resolução CFM nº
2.168/2017, editada pelo Conselho Federal de Medicina, trata, dentre outras matérias, do
aspecto ético da criopreservação de embriões e respectiva destinação no âmbito da utilizacao
das tecnicas de reproducao assistida.
Com as opções que se descortinam para os indivíduos, cada vez mais se torna
complexo o exercício do direito ao livre planejamento familiar, e, por conseguinte, dos
direitos reprodutivos de concretizar ou não a descendência, à vista das exigências legais e
normas técnicas impostas como prazos, condições biológicas, atestados clínicos etc, que são
veiculados no plano normativo em função de preferências subjetivas e orientações
axiológicas, como na seleção de fatores indesejáveis e otimização genética dos desejáveis,
prática que Habermas29 denomina consumo de embriões30.
Portanto, é possível constatar que a discussão sobre a destinação dos embriões
excedentários no âmbito da bioética traz à lume questionamentos acerca dos limites impostos
aos direitos e interesses alheios, em virtude do exercício da liberdade individual relacionada à
reprodução humana assistida e da livre expressão da atividade científica, haja vista a
interferência em processos antes monopolizados pelas leis da natureza. Assim é que, antes
adstrita à realização do aborto, a eugenia passou a contar com novas perspectivas, na
atualidade, a exemplo da prática de fertilização in vitro, conforme observado por Emilssen
Gonzáles Cancino31.
29 HABERMAS, Jürgen. O futuro da natureza humana : a caminho de uma eugenia liberal? ; tradução Karina
Jannini ; revisão da tradução Eurides Avance de Souza. - São Paulo : Martins Fontes, 2004, p. 29. 30 Seria pura a utilização de embriões para pesquisa, conforme Jürgen Habermas. In: Habermas, Jürgen. O futuro
da natureza humana : a caminho de uma eugenia liberal? ; tradução Karina Jannini ; revisão da tradução
Eurides Avance de Souza. - São Paulo : Martins Fontes, 2004. 31 CANCINO, Emilssen Gonzáles. Eugenia: avanço ou retrocesso? In: Romeo-Casabona, Carlos María; Sá,
Maria de Fátima Freire de (organizadores). Desafios jurídicos da biotecnologia. Belo Horizonte:
Mandamentos, 2007, p. 276.
25
3 BIOÉTICA E BIODIREITO
Em nosso estágio atual de desenvolvimento, os avanços científicos se colocam dentro
de uma estrutura capaz de oferecer à sociedade condições para uma vida melhor para o ser
humano, cada vez mais detentor do livre arbítrio de decidir os rumos de sua vida, através da
cura e prevenção de doenças.
Principalmente após a Segunda Guerra Mundial, percebeu-se que o progresso
científico deveria ser controlado pelo Direito, visando à promoção da responsabilidade face ao
dever de respeito à vida humana. Nesse passo, a inquietação com o agir científico
impulsionado pela difusão da biotecnologia, diante das violações praticadas contra os seres
humanos, também transformou a relação médico-paciente, mediante a necessária criação de
novos padrões preocupados com os aspectos éticos das experimentações científicas, que
garantissem a participação ativa do paciente no processo decisório acerca dos procedimentos
médicos aos quais se submeteria.
Outrossim, inegável que as inovações biotecnológicas chamam a atenção do
legislador, ainda relutante em acompanhá-las na mesma velocidade, a fim de que a
biotecnologia desenvolvida seja utilizada para o bem da humanidade, e com segurança para o
meio ambiente, face ao risco do monopólio da vida por grandes centros de pesquisa, bem
como a potencial coisificação do patrimônio genético humano.
Porém, Sá e Naves32 destacam que a preocupação ética com as práticas biológicas não
é um fenômeno recente, pelo contrário, remonta à Grécia Antiga de Hipócrates, mas que
ressurgiu por absoluta necessidade de regular e impor limites aos avanços da revolução
científica ocorrida nas ciências médicas e biológicas, sobretudo após a descoberta do DNA33
(ADN, em português: ácido desoxirribonucleico; ou DNA, em inglês: deoxyribonucleic acid),
nos anos 1960, bem como diante da possibilidade de se manipular a formação básica da vida
em experimentos e tratamentos médicos.
Historicamente, a bioética, que tem em consideração os valores éticos e os fins da
sociedade, tenciona tratar dos vários aspectos da vida influenciados pelas descobertas
científicas e avanços biotecnológicos relacionadas à saúde humana e às interações com o meio
32 SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. Bioética e biodireito. 4. ed. Belo
Horizonte: Del Rey, 2018, p. 4-5. 33 DNA. In: WIKIPEDIA: a enciclopedia livre. [San Francisco, CA: Wikimedia Foundation, 2017]. Disponível
em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Ácido_desoxirribonucleico>. Acesso em: 22 ago. 2019.
26
ambiente, tanto no campo de aplicação dos processos biológicos, como na possibilidade de
manipulação do material genético para descoberta de doenças e pesquisa científica.34
Nesse âmbito, a bioética veio também para regular e traçar limites à relação médico-
paciente, o que leva Sá e Naves a conceituarem-na como: “[...] a disciplina que estuda os
aspectos éticos das práticas dos profissionais da saúde e da Biologia avaliando suas
implicações na sociedade e relações entre os homens e entre esses e outros seres vivos.”35
Em consequência, como resultado das mudanças que a ciência fez emergir ante a
possibilidade de uso inadequado desses novos conhecimentos, verificou-se, com a missão de
ajustar e controlar as aplicações das propostas científicas, o nascimento de subsistemas que se
ocupam das ciências da vida, bioética e biodireito, definidos, respectivamente, como ramos da
Ética e do Direito.36
A bioética, entendida como disciplina especializada, dentro da Ética geral37,
desenvolve, pois, segundo Warren Reich38, o “estudo sistemático da conduta humana na área
das ciências da vida e a atenção para a saúde”, bem como abrange o discurso ético e filosófico
sem particularizações acerca das questões referentes ao avanço biomédico, auxiliando na
identificação e solução de conflitos, por intermédio da construção de um necessário
paradigma de conduta humana, com vistas a estabelecer limites éticos sobre as ações humanas
nas áreas tecnocientíficas.
Além disso, representa a ética uma conduta que tem como referencial um juízo de
valor, necessariamente associado à realidade, orientada a reger, com auxílio de regras e
princípios, os comportamentos humanos em sociedade, mediante estreita vinculação com o
direito como instrumento de regulação social.39
Nesse sentido, ressalta Queiroz40 como importante característica da ética:
A atividade ética, assim, é dotada de uma relativa capacidade de avaliação e
sugestão dos fins humano-universais, de tal forma que as suas prescrições se
34 SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. Bioética e biodireito. 4. ed. Belo
Horizonte: Del Rey, 2018, p. 15. 35 SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. Bioética e biodireito. 4. ed. Belo
Horizonte: Del Rey, 2018, p. 8. 36 BERIAIN, Iñigo de Miguel. A biotecnologia é uma ameaça para o Direito? In: Romeo-Casabona, Carlos
María. O Direito Biomédico e a Bioética. In: Romeo-Casabona, Carlos María; Queiroz, Juliane Fernandes.
Biotecnologia e suas implicações ético-jurídicas. – Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 79. 37 ROMEO-CASABONA, Carlos María. O Direito Biomédico e a Bioética. In: Romeo-Casabona, Carlos María;
Queiroz, Juliane Fernandes. Biotecnologia e suas implicações ético-jurídicas. – Belo Horizonte: Del Rey,
2004, p. 22. 38 REICH apud Namba, Edison Tetsuzo. Manual de bioética e biodireito. 2. ed. – São Paulo : Atlas, 2015, p. 9. 39 NAMBA, Edison Tetsuzo. Manual de bioética e biodireito. 2. ed. – São Paulo : Atlas, 2015, p. 7. 40 QUEIROZ, Juliane Fernandes. Reprodução assistida post mortem : aspectos jurídicos de filiação e sucessório.
Curitiba : Ed. UFPR, 2015, p. 32.
27
pretendem objetivas apenas mediante um acordo intersubjetivo, num determinado
momento do devir humano.
O termo bioética foi utilizado, pela primeira vez, em 1971, pelo médico oncologista
estadunidense e pesquisador da Universidade de Wisconsin/EUA, Van Renssealer Potter41,
autor do artigo “Bioethics, the Science of Survival”, como uma necessaria abordagem ética
dos problemas relacionados com a vida, provocados pelo avanço das ciências biomédicas,
ante à constatação do avanço tecnológico desprovido de reflexão sobre sua utilização.
Consistente num neologismo construído a partir da junção das palavras gregas bios
(vida) + ethos (relativo à etica), o termo “bioetica” utiliza como paradigma de referencia
antropológico moral o valor supremo da dignidade da vida e autonomia da vontade face aos
dilemas morais das éticas médica e filosófica suscitados pela biomedicina.42
Assim, Maluf43 chama de bioética o estudo que discute a responsabilidade moral da
ação orientada pelo conhecimento científico aplicado a pesquisas na área da saúde humana e
dos animais44. Quanto ao estudo da bioética, entende, ainda, Maluf que pode ser ele dividido
em dois temas dentro de um diálogo multidisciplinar: a microbioética que trata dos limites da
liberdade individual nas relações entre médicos e pacientes, e entre as instituições e os
profissionais de saúde; e a macrobioética que tem por objeto o estudo dos limites à liberdade
individual, que implicam uma eficácia real para o bem comum ou coletivo, como nas questões
ecológicas voltadas para a preservação da vida humana e de cunho ambiental45.
Tem, portanto, a bioética como preocupação o correto agir do homem no ramo
científico, em razão das pesquisas e aplicações produzidas pelo progresso das tecnologias
aplicadas à saúde, funcionando como instrumento de análise das responsabilidades das
condutas e decisões políticas advindas dos conhecimentos adquiridos com a experimentação
científica, num cenário interdisciplinar e plural.
Sobre bioética Sá e Naves46 nos ensinam, ainda, que:
41 DALL'AGNOL, Darlei. Bioética. Rio de Janeiro: Zahar, 2005, p. 7. E-book. 42 MALUF, Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus. Curso de bioética e biodireito. 3. ed. - São Paulo: Atlas,
2015, p. 7-8. 43 MALUF, Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus. Curso de bioética e biodireito. 3. ed. - São Paulo: Atlas,
2015, p. 6-7. 44 No Brasil, a pesquisa com animais é regulamentada pela Lei nº 11.794, de 8/10/2008. Brasília, Diário Oficial
da União, 9 out. 2008. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-
2010/2008/lei/l11794.htm>. Acesso em: 22 set. 2019. 45 MALUF, Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus. Curso de bioética e biodireito. 3. ed. - São Paulo: Atlas,
2015, p. 10. 46 SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. Bioética e biodireito. 4. ed. Belo
Horizonte: Del Rey, 2018, p. 2.
28
A bioética surge como corolário do conhecimento biológico, buscando o
conhecimento a partir do sistema de valores. Embora se refira, frequentemente, aos
problemas éticos derivados das descobertas e das aplicações das ciências biológicas,
que tiveram grande desenvolvimento na segunda metade do século XX, mister
ressaltar que referida ciência tem, entre suas preocupações principais, a questão da
autonomia do paciente e a questão ambiental.
Modernamente, Maluf47 destaca que o debate ético atual aponta para os seguintes
temas que indica como mais relevantes: o direito à vida, desde o que se entende por início e
fim, tendo em vista os problemas ético-jurídicos envolvendo a realização de transplantes de
órgãos e tecidos humanos e a clonagem; a relação dos direitos da personalidade e dos direitos
humanos com o biodireito, no que tange a questões de identidade genética, de gênero,
orientação sexual do indivíduo, e reprodução humana assistida; o direito ao patrimônio
genético face ao desenvolvimento de práticas de eugenia, com fins de pesquisa; e o equilíbrio
do meio ambiente, por meio do respeito à biodiversidade.
De outro lado, o desenvolvimento científico impulsiona a sociedade contemporânea,
com a possibilidade de cura de doenças e aplicação de novas técnicas de RA, estabelecendo
um conflito bioético entre a liberdade de pesquisa científica e a dignidade humana presente na
autonomia reprodutiva, como tema de relevante dimensão ético-jurídica para a sociedade.
Atenta, ainda, para outras considerações bioéticas que surgem com as novas técnicas
de reprodução assistida, menciona Maluf:
[...] a redesignação dos laços parentais, o acesso às mulheres solteiras às técnicas; o
acesso aos homossexuais e transgêneros às técnicas; a viabilidade da reprodução
heteróloga; a questão da reprodução assistida pos mortem, entre os diversos temas
de debates que acometem o embrião.48
Já com relação ao biodireito, Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus Maluf49 define-o
como ramo do estudo jurídico, resultado da associação entre bioética e o direito, que tem por
objeto as relações jurídicas relacionadas com o progresso científico abrangendo o corpo e a
dignidade da pessoa humana. Assim, segundo Sá e Naves50, dada a complexidade dos temas
que envolve o microssistema do biodireito, torna-se necessário que ele lance mão de
47 MALUF, Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus. Curso de bioética e biodireito. 3. ed. - São Paulo: Atlas,
2015, p. 4-5. 48 MALUF, Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus. Curso de bioética e biodireito. 3. ed. - São Paulo: Atlas,
2015, p. 197. 49 MALUF, Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus. Curso de bioética e biodireito. 3. ed. - São Paulo: Atlas,
2015, p. 16-17. 50 SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. Bioética e biodireito. 4. ed. Belo
Horizonte: Del Rey, 2018, p. 20-21.
29
principiologia própria na busca da decisão correta, que vai além da lógica normativa binária
positivista.
No mesmo sentido, para Romeo-Casabona51, o biodireito adveio como reflexo de uma
necessária aproximação do Direito à Ciência, que se deu por meio da regulação normativa das
relações sociais emergentes; na aplicação de princípios gerais básicos, alguns deles já
integrados juridicamente, como os da autonomia individual e da dignidade humana; e, em
caráter excepcional, através da introdução de novos princípios axiológicos.
Com relação à dignidade humana, destaca Ivan de Oliveira Silva52 que, como
fundamento da República, aquela se encontra erigida como diretriz intimamente ligada à visão
antropocêntrica do ordenamento jurídico brasileiro, justificando o dever de assegurar ao
indivíduo uma condição mínima de existência.
Desse modo, a principal preocupação do biodireito é estabelecer, mediante atuação no
campo destinado aos mandamentos jurídicos, um limite seguro que permita o avanço
científico das novas realidades apartado do risco para gênero humano, e também compatível
com os valores a ele reconhecidos.
Como ordem pragmática dotada de coercibilidade aplicável à solução de conflitos, o
biodireito constitui disciplina jurídica autônoma de natureza interdisciplinar53, com
importância reconhecida no tratamento orientador do ordenamento jurídico em questões e
conflitos concernentes aos avanços biomédico e biotecnológico, como direitos e deveres dos
médicos e pacientes em suas relações, transplantes de órgãos, eutanásia, equilíbrio dos
sistemas naturais, reprodução assistida etc.
Vê-se então que a proximidade ou confluência entre biodireito e bioética se deu pela
necessidade de atribuir ao Direito uma dimensão moral relacionada à disciplina responsável
de questões importantes para a vida humana, que são problematizadas em razão das várias
aplicações práticas decorrentes do avanço da ciência.
Assim, quanto à relação entre biodireito e bioética, explica Helena de Azeredo
Orselli54 que:
51 ROMEO-CASABONA, Carlos María. O Direito Biomédico e a Bioética. In: Romeo-Casabona, Carlos María;
Queiroz, Juliane Fernandes. Biotecnologia e suas implicações ético-jurídicas. – Belo Horizonte: Del Rey,
2004, p. 18. 52 SILVA, Ivan de Oliveira. Biodireito, bioética e patrimônio genético brasileiro. – São Paulo: Editora Pillares,
2008, p. 26. 53 ROMEO-CASABONA, Carlos María. O Direito Biomédico e a Bioética. In: Romeo-Casabona, Carlos María;
Queiroz, Juliane Fernandes. Biotecnologia e suas implicações ético-jurídicas. – Belo Horizonte: Del Rey,
2004, p. 16. 54 ORSELLI, Helena Maria Zanetti de Azeredo. O status jurídico do pré-embrião humano a partir dos princípios
constitucionais do pluralismo e da laicidade. Curitiba: Editora Prismas, 2016, p. 79.
30
O Biodireito pode e deve orientar-se pela reflexão bioética, mas não se confunde
com a Bioética, nem a substitui, posto que são diferentes áreas do conhecimento e
que vivem em uma relação de interdependência e cooperação.
Na mencionada relação entre biodireito e bioética, manifesta-se, com mais clareza, a
distinção metodológica entre a zetética e a dogmática, com base na qual a primeira perquire a
base valorativa presente na situação, partindo de uma abordagem filosófica, principiológica e
valorativa, ao tempo em que a segunda se localiza na estrutura do Direito positivado,
limitando-se à verificação de validade jurídica da norma aplicável à conduta exigida, cuja
desobediência, quase sempre, acarreta uma sanção imposta pelo Estado.
Embora ambos tenham caráter prescritivo, o biodireito constitui um microssistema
jurídico com princípios e fundamentos autônomos ao Direito Comum, e apresenta um
procedimento dogmático que estrutura soluções intrassistêmicas, utilizando-se da zetética
para sua elaboração, ao passo que a bioética, como ramo da Ética e da Filosofia, possui uma
abordagem transsistemática que provoca questionamentos transdisciplinares, abertos e
infinitos, e se interessa apenas pelo valor da situação vigente, passível de incorporação pelo
sistema dogmático.55
Apesar de haver imprecisão quanto ao uso indistinto dos termos biodireito e bioética,
observam Sá e Naves56 que a principal distinção reside na coexistência de duas ordens
normativas, com diferentes formas de abordagem e força cogente, a saber: o Direito como
ordem pragmática de solução de conflitos, e a Moral como ordem normativa auxiliar para
formulação e aplicação do Direito.
Guardadas as semelhanças, e em especial a identidade de objeto de estudo, qual seja o
avanço das ciências médicas e suas implicações ético-jurídicas, haveria, portanto, diferenças
quanto às normas que compõem os microssistemas normativos do biodireito, este integrado
por regras e princípios, e da bioética, cujas normas expressam os valores de uma dada
sociedade, sem a pretensão de substituir o Direito na solução de problemas.
À luz dessa transdisciplinaridade, e em face da complexidade dos aspectos biomédicos
das questões discutidas, o biodireito demanda um sistema aberto de regras para oferecer as
necessárias respostas aos desdobramentos da biotecnologia, a fim também de tornar possível a
construção de uma autonomia privada.
55 SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. Bioética e biodireito. 4. ed. Belo
Horizonte: Del Rey, 2018, p. 9-12. 56 SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. Bioética e biodireito. 4. ed. Belo
Horizonte: Del Rey, 2018, p. 9-15.
31
Desse modo, conforme Romeo-Casabona57, apresentando o mesmo objeto de estudo, a
bioética e o biodireito se relacionam e influenciam um ao outro, separados conceitualmente
pelo fato de não haver a mesma coerção externa na bioética, para observância do
comportamento moralmente correto, da que é prevista no biodireito.
Assim também, Romeo-Casabona58 diz que a bioética contribui para obtenção de
derivações valorativas do texto constitucional mais adequadas à ideologia compatível ao
desenvolvimento de direitos fundamentais, e respeito ao conteúdo mínimo dos mesmos, em
caso de conflito com outros também fundamentais.
E como ciência transdisciplinar, a bioética analisa as questões éticas relativas à
intervenção nos seres vivos, para garantir uma aplicação responsável dos conhecimentos
científicos sobre a vida humana, animal e sobre o meio ambiente. Daí se percebe a
importância dos sistemas éticos, pois estes, segundo Guerra59, têm como referencial a matriz
de ‘bem’, a partir da qual sao deduzidos princípios produtores de normas morais, capazes de
orientar o agir humano. Uma vez tidas como legítimas, tais normas visam à proteção da vida,
auxiliando, ainda, na resolução dos hard cases ou casos de difícil solução.
Dessa maneira, por meio da interdisciplinaridade foi possível construir parâmetros
jurídicos para superação de dificuldades geradas pelo desenvolvimento científico, num terreno
marcado por profundas e complexas alterações conceituais, das quais se serve o Direito com
significativa dependência.
Romeo-Casabona enxerga, no entanto, a tendência de se substituir a bioética, presente
em normas como a Resolução CFM nº 2.168/2017, pelo biodireito de leis como a Lei de
Biossegurança, pois, conforme diz, passam, gradativamente, a ser vistos “os problemas éticos
como se fossem problemas legais, conflitos de interesses e valores subjetivos60[...]”61.
De mesma opinião, Edison Tetsuzo Namba62 afirma que é o momento de se preocupar
com o biodireito, o qual deve se desvincular da bioética, em razão de esta servir mais a uma
57 ROMEO-CASABONA, Carlos María. O Direito Biomédico e a Bioética. In: Romeo-Casabona, Carlos María;
Queiroz, Juliane Fernandes. Biotecnologia e suas implicações ético-jurídicas. – Belo Horizonte: Del Rey,
2004, p. 26. 58 ROMEO-CASABONA, Carlos María. O Direito Biomédico e a Bioética. In: Romeo-Casabona, Carlos María;
Queiroz, Juliane Fernandes. Biotecnologia e suas implicações ético-jurídicas. – Belo Horizonte: Del Rey,
2004, p. 29-30. 59 GUERRA, Arthur Magno e Silva. Direitos fundamentais do embrião na bioconstituição – Belo Horizonte:
Editora D’Placido, 2015, p. 28. 60 V. MAINETTI, José A.; BERTOMEU, María J. apud Romeo-Casabona, Carlos María; Queiroz, Juliane
Fernandes. Biotecnologia e suas implicações ético-jurídicas. – Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 23. 61 ROMEO-CASABONA, Carlos María. O Direito Biomédico e a Bioética. In: Romeo-Casabona, Carlos María;
Queiroz, Juliane Fernandes. Biotecnologia e suas implicações ético-jurídicas. – Belo Horizonte: Del Rey,
2004, p. 23. 62 NAMBA, Edison Tetsuzo. Manual de bioética e biodireito. 2. ed. – São Paulo : Atlas, 2015, p. 14.
32
finalidade política, como para fazer prevalecer o entendimento religioso ou o laico. Assim,
para o referido autor, questões como o confronto entre curar alguém em detrimento de
pesquisas com destruição do embrião estariam no âmbito do biodireito, e por ele devem ser
solucionadas, sob pena de se restringir a liberdade científica.
Contudo, enxergamos um obstáculo em se regular um conflito ético através,
exclusivamente, do Direito, já que este escolhe apenas uma dentre as várias soluções
possíveis, prospectando uma acepção unitária da realidade, geralmente predisposta a refrear a
liberdade individual. Tal fenômeno se assemelha à ideologia da subsunção, descrita por
Pietro Perlingieri63 como aquele em que as escolhas interpretativas do jurista são mascaradas
como neutras, desresponsabilizando a doutrina.
No entendimento de Romeo-Casabona64, entre as razões mais significativas que
justificam a intervenção do Direito nos diversos aspectos da biotecnologia são o objetivo de
garantir o respeito ao direito de liberdade científica; a facilitação de acesso aos benefícios
obtidos pelas biotecnologias; o encaminhamento do processo investigativo, assim como suas
eventuais aplicações com qualidade, eficácia e segurança, prevenindo, quando menos,
minimizando os riscos para o ser humano, o meio ambiente e a matéria viva em geral; e a
proibição de potenciais aplicações que possam comportar desvios claramente prejudiciais para
os indivíduos ou para a sociedade.
Claro que o sistema jurídico não tem como deixar de levar em consideração valores
morais, pois se entende que o Direito não está isolado numa torre de marfim, onde fica alheio
à influência dinâmica da atividade humana que transforma a realidade, sob o pano de fundo
de debates morais. Por outro lado, nem tudo o que a ciência torna possível deve ser admitido
pelo Direito, considerando que os cientistas não são os responsáveis únicos pelas dimensões
ética e jurídica do progresso científico.
A preferência pelo Direito também não impede, diante da lacuna legislativa, que o
Conselho Federal de Medicina edite normas deontológicas sobre a conduta médica, visando
ao bem-estar e segurança ética de toda a coletividade, que vive sob um mesmo vínculo
jurídico.
63 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. Tradução de: Maria Cristina De Cicco. 3. ed. rev. e ampl. Rio
de Janeiro: Renovar, 2002, p. 68. 64 ROMEO-CASABONA, Carlos María. O desenvolvimento do Direito diante das biotecnologias. In: Romeo-
Casabona, Carlos María; Sá, Maria de Fátima Freire de (organizadores). Desafios jurídicos da biotecnologia.
Belo Horizonte: Mandamentos, 2007, p. 31-32.
33
Essa relação de alguma forma “necessaria” entre o direito e a moral foi percebida por
Hart65 como ponto central que merece ser objeto de consideração, a fim de analisar ou
elucidar a noção de direito, cujo status não é subtraído nem mesmo na situação de conflito
com as exigências mais fundamentais da moral.
Dentro da esfera de atuação médica, como não poderia deixar de ser, a atuação
humana com a finalidade de oferecer tratamentos e curas para doenças também faz parte do
processo de socialização sob a perspectiva democrática. Mas de que forma deve o Direito
atuar sobre o cenário que se descortina com o progresso médico, sem tolher a autonomia
privada dos indivíduos?
Não se olvide também que a coisificação do ser humano é outra preocupação de que se
ocupa a bioética, por isso dela derivam alguns princípios, a fim de regular a relação entre a
biotecnologia e seus usuários.
3.1 Princípios da Bioética e do Biodireito
Vários conflitos despontam na pesquisa em matéria de biomedicina, como nas
intervenções sobre o corpo humano, e para cada um deles existem particularidades que
suscitam dilemas éticos a serem discutidos, especialmente na tomada de decisões sobre as
relações dos profissionais de saúde e seus pacientes. Assim, a necessidade de estabelecer
parâmetros de investigação científica norteou, segundo Sá e Naves66, a criação dos princípios
básicos da bioética.
Precursoramente, William David Ross67, em seu livro “The Right and the Good”
relacionou a vida moral a princípios básicos ou deveres prima facie, dentre os quais enumerou
três: beneficência, justiça e não maleficência, cujos estudos mais tarde influenciaram Tom L.
Beauchamp e James F. Childress, autores de “Principles of Biomedical Ethics”, em 1979, e
William Frankena68, autor de “Ethics”.
65 HART, H. L. A. O conceito de direito; pós-escrito organizado por Penelope A. Bulloch e Joseph Raz; tradução
de Antônio de Oliveira Sette-Câmara ; revisão da tradução Marcelo Brandão Cipolla ; revisão técnica Luiz
Vergílio Dalla-Rosa. – São Paulo : Editora WMF Martins Fontes, 2009, p. 202-203. 66 SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. Bioética e biodireito. 4. ed. Belo
Horizonte: Del Rey, 2018, p. 35. 67 ROSS apud Guerra, Arthur Magno e Silva. Direitos fundamentais do embrião na bioconstituição – Belo
Horizonte: Editora D’Placido, 2015, p. 62. 68 FRANKENA apud Guerra, Arthur Magno e Silva. Direitos fundamentais do embrião na bioconstituição – Belo
Horizonte: Editora D’Placido, 2015, p. 63.
34
Por Tom L. Beauchamp e James F. Childress foi sugerida a eleição de quatro
princípios norteadores da ética médica: autonomia, beneficência, não-maleficência e justiça.69
Contudo, somente em 1974, com a repercussão do caso Tuskegee70, verificou-se a necessidade
de identificar os princípios morais básicos a serem seguidos na experimentação com seres
humanos.
Assim, no intuito de estabelecer princípios básicos que devem orientar eticamente a
experimentação científica em seres humanos, foi criada, em 1974, a Comissão (National
Comission for the Protection of Human Subjects of Biomedical and Behavioral Research),
que apresentou um Relatório, fruto de quatro anos de encontros entre pesquisadores no Centro
Belmont de Convenções, na cidade de Elkridge, Estado de Mariland, nos Estados Unidos, a
partir do qual foram eleitos três princípios bioéticos a serem observados em pesquisas
envolvendo seres humanos: autonomia, beneficência e justiça.
Aqueles três princípios estatuídos pelo Relatório Belmont71 foram depois incorporados
pela Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, durante a Conferência Geral da
Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e a Cultura (UNESCO) em 2005, e,
no direito interno brasileiro, pelas Resoluções do Conselho Nacional de Saúde (CNS) n.
196/96, 303/2000, 404/2008 e 466/201272. Atualmente se encontra em vigor a Resolução nº
466, de 12 de dezembro 2012, do CNS, que igualmente reconheceu, sob a ótica do indivíduo e
das coletividades, quatro referenciais básicos da bioética — beneficência, autonomia, não
maleficência e justiça — visando assegurar os direitos e deveres que dizem respeito à
comunidade científica, aos sujeitos da pesquisa e ao Estado, sobretudo quanto aos aspectos
éticos envolvendo seres humanos.
De igual modo, o Conselho Nacional de Saude constatou a necessidade de dispor
sobre as normas aplicaveis a pesquisas em Ciencias Humanas e Sociais, cujos procedimentos
metodologicos envolvem a utilizacao de dados ou informacões identificaveis de pacientes
com potencial de risco para a saúde, editando a Resolução nº 510, de 7 de abril de 2016.
69 SALDANHA, Ana Claudia. A tutela do embrião humano. 1. ed. – Curitiba: Editora Prismas, 2015, p. 43. 70 O incidente Tuskegee ocorreu com a realização de pesquisa pelo Instituto de mesmo nome, que, mais tarde,
revelou-se discriminatória, através de observação de pacientes negros com sífilis, em que se lhes negava
tratamento médico apropriado e já disponível à época (penicilina), para avaliar como a doença se
desenvolveria, resultando na morte de 25 voluntários diretamente infectados com sífilis, e outros 100 de
complicações relacionadas à doença, bem como na infecção de 40 esposas de pacientes, e no nascimento de 19
crianças com sífilis congênita (Sá; Naves, 2018, p. 6). 71 GUERRA, Arthur Magno e Silva. Direitos fundamentais do embrião na bioconstituição – Belo Horizonte:
Editora D’Placido, 2015, p. 65. 72 CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE (Brasil). Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012. Diário
Oficial da União, Brasilia, 13 jun. 2013.
35
Nessa mesma linha, em 2018 foi regulamentado pela Resolução nº 58073 do Conselho
Nacional de Saúde, de 22 de marco de 2018, o disposto no item XIII.4 da Resolucao CNS nº
466, de 12 de dezembro de 2012, com respeito às especificidades eticas das pesquisas de
interesse estrategico para o Sistema Unico de Saude (SUS). Tratando dos aspectos eticos das
pesquisas com seres humanos em instituicões do SUS, a Resolucao nº 580 estabelece, por
exemplo, que as pesquisas realizadas em instituicões integrantes do SUS devem atender aos
preceitos eticos e de responsabilidade do servico publico e de interesse social, nao devendo
ser confundidas com as atividades de atencao à saude (art. 1º).
Como primeiro princípio bioético, o princípio da beneficência corresponde a
desdobramento do princípio da não maleficência, estabelecendo que o tratamento médico só
pode ser aplicado ao paciente se fizer bem ao mesmo, e para o qual nenhum dano intencional
possa ser causado a terceiro. Dele também se extrai que a pesquisa científica deve ser aplicada
sempre em benefício da sociedade, sem ignorar a individualidade digna da pessoa humana no
âmbito biomédico.74
Apontam Sá e Naves75 que o princípio da beneficência não foi diferenciado da não
maleficência, esta considerada ao longo da história pela medicina tradicional como obrigação
primária do médico, que outrora assumia uma figura paterna, incondizível hoje com a
autonomia do paciente, enquanto sujeito partícipe do processo de tratamento, o que leva ao
reconhecimento atual da não maleficência como obrigação primária, e não meramente
subsidiária.
O protagonismo do paciente fez, assim, com que a beneficência se subordinasse ao
consentimento livre e esclarecido daquele, “objeto fim” da pesquisa cientifica, somente
realizável se houver a compreensão dos riscos pelo paciente quanto ao tratamento médico.
Desse modo, o consentimento livre e esclarecido exerce a função de balizar a ação no campo
da saúde, conforme assegurado pela Convenção Internacional de Direitos Humanos e
Biomedicina, em seu art. 5o.76
Por sua vez, o princípio da autonomia ou do respeito pela autonomia das pessoas tem
por fundamento a vontade do paciente livre e esclarecida na tomada de decisões sobre a
73 CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE (Brasil). Resolução nº 580, de 22 de março de 2018. Diário Oficial da
União nº 135, segunda-feira, 16 de julho de 2018, secao 1, pagina 55. 74 GUERRA, Arthur Magno e Silva. Direitos fundamentais do embrião na bioconstituição – Belo Horizonte:
Editora D’Placido, 2015, p. 69. 75 SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. Bioética e biodireito. 4. ed. Belo
Horizonte: Del Rey, 2018, p. 36-37. 76STANCIOLI, Brunello. Sobre a estrutura argumentativa do consentimento informado: revisão sistemática,
verdade e risco na relação médico-paciente. In: Romeo-Casabona, Carlos María; Queiroz, Juliane Fernandes.
Biotecnologia e suas implicações ético-jurídicas. – Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 177.
36
própria vida. Recorda, ainda, Arthur Magno e Silva que foi a autonomia da vontade “[...]
concebida como a proteção ao desenvolvimento e regular aperfeiçoamento da vontade
individual do sujeito, a fim de que ele possa desenvolver e decidir, sem interferências extra
corporis [...]”77. Significa também que pessoas mais vulneráveis devem ser protegidas contra
abusos, de modo que o princípio da autonomia implica alçar o paciente do papel de
coadjuvante ao de protagonista no seu processo de tratamento, que o torna apto a decidir
quanto aos procedimentos cirúrgicos a que se submeterá.
Antes pautada pelo paternalismo médico, na relação médico-paciente havia pouca
autonomia do paciente para tomar decisões sobre a própria saúde. Isso se deve, consoante
advertem Sá e Naves78, ao poder que foi atribuído aos cientistas de submeter a vontade de
todos às suas orientações, ante a oportunidade de fazer descobertas, em virtude do saber
técnico e moral capaz de proporcionar uma vida boa.
A despeito da especificidade normativa, importa, ainda, registrar, para melhor
compreensão do que se entende por consentimento livre e esclarecido, o que estabelece o art.
2º, V, da a Resolução nº 510, de 7 de abril de 2016, senão vejamos:
V - consentimento livre e esclarecido: anuencia do participante da pesquisa ou de
seu representante legal, livre de simulacao, fraude, erro ou intimidacao, apos
esclarecimento sobre a natureza da pesquisa, sua justificativa, seus objetivos,
metodos, potenciais beneficios e riscos.
Assim, a autonomia do paciente, enquanto sujeito moral, requer, imperativamente, a
compreensão deliberativa, que, em regra, se desenvolve acompanhada de informação acerca
dos riscos; avaliação quanto à disposição de assumir os perigos do tratamento; e decisão com
respeito à aceitação ou recusa das opções terapêuticas, livre da influência e controle externos,
que, em outras palavras, denomina-se livre consentimento esclarecido, o qual se materializa
na autorização para o tratamento.
Ainda com relação à autonomia, será que tal princípio é respeitado diante da norma
que estabelece o prazo de congelamento de três anos dos embriões viáveis, mesmo que isso
não reflita a vontade dos sujeitos livres? Esta é uma questão para ser respondida ao longo
desse estudo.
Já o princípio da justiça diz respeito ao direito de igualdade de acesso aos recursos
médicos para efetivação do direito à saúde pelo Estado, que, através de políticas públicas,
77GUERRA, Arthur Magno e Silva. Direitos fundamentais do embrião na bioconstituição – Belo Horizonte:
Editora D’Placido, 2015, p. 75. 78 SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. Bioética e biodireito. 4. ed. Belo
Horizonte: Del Rey, 2018, p. 5.
37
deve distribuí-los sem discriminação ou preferência de origem, raça, sexo, cor e idade, além
de levar em conta a análise dos custos e benefícios sociais, emocionais e físicos da
intervenção médica para o paciente, com preferência à maximização dos benefícios.
Hart79 diz que, nas diversas aplicações de justiça, a manutenção ou restauração de um
equilíbrio se formula com a frase “Devem-se tratar os casos iguais de forma igual”, que, no
entanto, considera ser vazia e sem significado, pois faltantes as condições sobre os casos que
devem ser tidos como iguais e quais as diferenças pertinentes que possam dar significado aos
objetivos em vista.
Com base nessa estrutura fornecida por Hart sobre a ideia de justiça, inevitável
perquirir se há justificativa para que o embrião receba a mesma proteção jurídica de um
indivíduo humano, considerando haver diferenças sob todos os aspectos pertinentes dessa
forma de vida com o ser humano, que são levadas em conta no momento de análise pelo
Direito, tal como faz a Lei de Biossegurança.
Assim, com relação às discriminações feitas pela Lei de Biossegurança no trato com
os embriões in vitro, a partir de um análise dos critérios ilustrados por Hart80, que envolvem
semelhanças e diferenças pertinentes, entendemos que algumas delas se justificam, sobretudo
aquelas que se referem à possibilidade de descarte ou uso em pesquisa, posto que ausentes os
atributos essenciais para aquisição da personalidade jurídica.
Tal conclusão se confirma perante o nosso ordenamento jurídico, que atribui
determinados direitos patrimoniais e extrapatrimoniais a apenas duas categorias
intermediárias à pessoa natural, que são: o nascituro, como embrião que já se encontra fixado
no útero, e a prole eventual, enquanto ente humano futuro ainda não concebido.81
No que se refere à prole eventual, o CC estabelece em seu benefício que os bens da
herança serão confiados, após a liquidação ou partilha, a curador nomeado pelo juiz, pelo
prazo de dois anos, contados da abertura da sucessão, depois do qual, se não for concebido o
herdeiro esperado, caberão aos herdeiros legítimos, salvo disposição em contrário do testador
(art. 1.800, §§ 1º e 4º). O limite temporal tem por fim evitar a insegurança jurídica quanto à
titularidade incerta de bens deixados.
79HART, H. L. A. O conceito de direito; pós-escrito organizado por Penelope A. Bulloch e Joseph Raz; tradução
de Antônio de Oliveira Sette-Câmara ; revisão da tradução Marcelo Brandão Cipolla ; revisão técnica Luiz
Vergílio Dalla-Rosa. – São Paulo : Editora WMF Martins Fontes, 2009, p. 206-207. 80HART, H. L. A. O conceito de direito; pós-escrito organizado por Penelope A. Bulloch e Joseph Raz; tradução
de Antônio de Oliveira Sette-Câmara ; revisão da tradução Marcelo Brandão Cipolla ; revisão técnica Luiz
Vergílio Dalla-Rosa. – São Paulo : Editora WMF Martins Fontes, 2009. 81SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. Bioética e biodireito. 4. ed. Belo
Horizonte: Del Rey, 2018, p. 141.
38
E quanto aos nascituros, a legislação civil brasileira confere o direito de nomeação de
curador, se faltar o poder familiar aos seus pais (ar. 1.779, CC); alguns direitos de
personalidade, tais como nome, imagem e sepultura, em caso de nascer morto, com o registro
de seu nome no Livro "C Auxiliar" do registro civil de pessoas naturais (art. 33, V, Lei nº
6.015/1973); alimentos gravídicos, que compreendem os valores suficientes para cobrir as
despesas adicionais do período de gravidez, da concepção ao parto (Lei nº 11.804, de 5 de
novembro de 2008); e o direito de receber doação, desde que aceita por seu representante
legal (art. 542, CC).
Sá e Naves82 reconhecem, ainda, a responsabilidade como princípio da bioética, que
pode ser entendido como a consciência de que se é responsável por abusos aos limites da
liberdade da pesquisa, somada à preocupação com as consequências do progresso tecnológico.
Além dos princípios já mencionados, Maluf83 cita outros paradigmas encontrados na
bioética, como o naturalismo, que consiste no reconhecimento de direitos naturais como a
vida, religiosidade e racionalidade; o contratualismo, presente na relação entre médico,
paciente e sociedade; e o personalismo, baseado na visão antropológica de defesa da
dignidade da pessoa humana.
Já com relação aos princípios do biodireito, Sá e Naves84 explicam que,
diferentemente dos princípios bioéticos, previamente definidos pelo Informe Belmont, aqueles
não surgiram de um específico documento elaborado com tal finalidade, mas foram sendo
construídos frente às incertezas do avanço biotecnológico.
Assim, adotando-se a divisão principiológica de Sá e Naves85, que tem por critério a
amplitude de conteúdo e atuação, podem ser arrolados os seguintes princípios do biodireito:
princípio da precaução86, que se traduz na limitação da ação profissional quanto à adoção de
medidas para evitar um mal sério e irreversível decorrente de comportamentos potencialmente
danosos de certas atividades caracterizadas pela incerteza científica do estado atual do
conhecimento a respeito das possíveis consequências; princípio da autonomia privada, que
estabelece o conteúdo, forma e efeito dos poderes conferidos aos particulares, em
82SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. Bioética e biodireito. 4. ed. Belo
Horizonte: Del Rey, 2018, p. 38-40. 83 MALUF, Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus. Curso de bioética e biodireito. 3. ed. - São Paulo: Atlas,
2015, p. 12. 84SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. Bioética e biodireito. 4. ed. Belo
Horizonte: Del Rey, 2018, p. 40. 85 SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. Bioética e biodireito. 4. ed. Belo
Horizonte: Del Rey, 2018, p. 40-44. 86 Sá e Naves (2018) distinguem a precaução da mera prevenção, em virtude de a primeira se ocupar da
probabilidade de mal sério e irreversível, enquanto a prevenção importa em evitar um dano conhecido e
esperado.
39
conformidade com o ordenamento; princípio da responsabilidade, que implica a compreensão
dos atos praticados e suas consequências, a fim de minimizar os males que as intervenções na
saúde e no meio ambiente podem provocar; e o princípio da dignidade da pessoa humana, que
garante o pleno desenvolvimento físico, psíquico e espiritual dos vários aspectos da pessoa,
em um contexto garantidor de iguais liberdades fundamentais.
Ainda com relação ao princípio da precaução, temos que este representa a mudança de
paradigma do risco aceitável para o permitido, considerando não haver garantia absoluta
contra um dano, o que acarreta autorizar atividades de importância econômica, enquanto não
demonstrado o caráter ofensivo, de acordo com a certeza científica.
O estudo dos princípios da bioética e do biodireito é importante para lançar luz aos
problemas jurídicos, que hoje enfrentamos, em razão do progresso científico, e não podemos
deixar de recorrer a eles, sobretudo num momento de discussão de propostas legislativas,
onde pairam diversas dúvidas, incertezas e a possibilidade de repetir erros do passado com
graves consequências.
3.2 O tratamento ético-jurídico da reprodução assistida
Conceitua-se como Reprodução Humana Assistida (RHA) a intervenção artificial no
processo reprodutivo para o fim de orientar e possibilitar a maternidade ou paternidade
àquelas pessoas que apresentam doenças87 de infertilidade masculina ou feminina.
Maluf88 aponta uma diferença conceitual, em matéria de fertilização, entre os termos
fecundação, inseminação e concepção, muitas vezes confundidos. A fecundação consiste na
fertilização do óvulo pelo esperma, podendo se dar de forma natural ou artificial; na
inseminação, há a aposição do esperma ou óvulo fecundado na cavidade uterina; e na
concepção, ocorre o momento posterior à fecundação, representando o produto derivado da
fusão do material genético fornecido pelos genitores.
Hodiernamente, as conhecidas técnicas de RA são: GIFT (Gamete Intrafallopian
Transfer) ou Transferência dos Gametas para o Interior da Trompa; ZIFT (Zygote
Intrafallopian Transfer) ou Transferência do Zigoto para o Interior da Trompa; ICSI
(Intracytoplasmic Sperm Injection) ou Injeção Intracitoplasmática de Espermatozóide,
87 Maluf (2015) explica que a esterilidade e infertilidade são consideradas doenças, segundo a Classificação
Internacional de Doenças – CID 10 (OMS) (1), e que como tal podem ser tratadas. 88 MALUF, Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus. Curso de bioética e biodireito. 3. ed. - São Paulo: Atlas,
2015, p. 198.
40
utilizada para o espermatozoide que não tem a capacidade de fecundar, e FIV ou Fertilização
in vitro.89
As técnicas de reprodução assistida mais utilizadas são a fertilização in vitro e
inseminação artificial, que fazem uso do material genético de indivíduos para realização de
um projeto parental. Quanto à origem do material genético, a RA pode ser homóloga, quando
se utiliza o material genético do próprio dos futuros pais, ou ainda heteróloga, quando se vale
de material genético de terceiro doador. Entendemos que, para ambos os casos, exige-se a
autorização prévia do consorte ou companheiro(a), para a transferência dos embriões havidos
por FIV, já que a vontade de gerar filhos pode mudar com o tempo, por razões diversas,
conquanto o inciso V, do art. 1.597 do CC, requeira a autorização apenas para o caso de
concepção heteróloga.
A GIFT consiste na transferência dos gametas para dentro das trompas, após coleta e
reunião deles num mesmo cateter, enquanto a ZIFT consiste na transferência do zigoto para
dentro da trompa, onde ocorrerá a multiplicação celular e posterior migração do embrião para
o útero. A ICSI, por sua vez, consiste na injeção de um espermatozoide diretamente no óvulo,
com auxílio de microscópio, seguida de transferência do embrião fertilizado em laboratório
para a cavidade uterina da mulher.
De maior interesse para o nosso estudo, a fertilização in vitro (FIV), também
conhecida pela sigla ZIFT (Zibot Intra Fallopian Transfer), ocorre com a fecundação das
células reprodutivas (óvulos e espermatozoides), em laboratório numa placa de Petri, através
da técnica de injeção intracitoplasmática, que, sob o controle de condições ambientais, resulta
na produção de embriões, os quais serão depois transferidos para o útero. Os embriões que
não forem transferidos, chamados de excedentários ou supranumerários, serão armazenados
os em nitrogênio líquido, onde permanecerão até utilização posterior. As etapas da FIV são as
seguintes: estimulação da ovulação controlada por especialistas, com a finalidade de obter o
maior número de óvulos; aspiração folicular; fecundação; transferência embrionária; e
congelamento de embriões, se houver excedentes.
Para o Direito, o emprego das práticas reprodutivas apresenta também como efeito a
relativização das presunções pater ist e mater semper certa est, ou seja, não se tem mais a
certeza de que a mãe é sempre aquela que gerou a criança, e pai é o cônjuge da genitora, nos
termos fixados pela lei.90
89SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. Bioética e biodireito. 4. ed. Belo
Horizonte: Del Rey, 2018, p. 139. 90 MALUF, Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus. Curso de bioética e biodireito. 3. ed. - São Paulo: Atlas,
2015, p. 200.
41
Quanto aos aspectos bioéticos da reprodução assistida, Maluf91 conclui que houve uma
dissociação entre a reprodução e a sexualidade, sendo necessário agir com cautela para não se
lesar interesses e bens jurídicos fundamentais ao homem.
Para evitar questionamentos acerca da paternidade ou maternidade dos filhos havidos
através de RA, o Código Civil (CC) regulamentou seus efeitos jurídicos, estabelecendo a
presunção de paternidade dos filhos havidos a qualquer tempo, quando utilizada a técnica de
concepção artificial homóloga, mesmo que falecido o genitor, conforme consta em seu art.
1.597, inciso III, porque para essa hipótese a lei já reconhece a biparentalidade como certa. De
igual modo, nos casos em que for utilizada a técnica de concepção artificial heteróloga, o CC
estabelece a presunção de paternidade, sem limite de tempo, ressaltando a exigência de
autorização do marido, quando o material genético utilizado não for dele, o que também, a
nosso ver, se aplica à mulher, na mesma situação. Mas veja que tanto na concepção homóloga
quanto na heteróloga é, obviamente, exigida a autorização dos genitores, para o uso do
material biologico criopreservado.
Assim, tendo em vista que o consentimento livre e esclarecido norteia a aplicação da
biotecnologia na reprodução humana assistida, compreendemos ser necessária autorização,
quer seja a concepção artificial homóloga ou heteróloga, conforme inteligência da Resolução
CFM no 2.168/2017 (item VIII), ao tratar da reprodução assistida post mortem.
Mais uma vez, inobstante a omissão do CC em exigir a autorização para uso do
material biológico crioconservado, em ambos os casos, quer seja na concepção artificial
homóloga ou heteróloga, o consentimento livre e esclarecido das partes é obrigatório,
inclusive como princípio geral reconhecido no item I da Resolução CFM no 2.168/2017.
Distintamente, a lei dispõe que, para os filhos nascidos de concepção natural, são
previstos dois prazos: o de 180 (cento e oitenta) dias, depois de estabelecida a convivência
conjugal, e o de 300 (trezentos) dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal, por
morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento. Serão do primeiro marido os
filhos nascidos, nos 300 dias a contar da data do falecimento deste, se a mulher contrair novas
núpcias, e do segundo, se o nascimento ocorrer após os 300 dias de falecimento do primeiro
marido, mas já decorridos 180 dias de estabelecida a nova convivência conjugal, salvo prova
em contrário em ambos os casos (art. 1.598, CC).
Numa leitura rápida, pode parecer que a lei conferiu uma margem maior de certeza aos
filhos concebidos pelas técnicas de RA, em especial para os casos de concepção heteróloga,
91MALUF, Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus. Curso de bioética e biodireito. 3. ed. - São Paulo: Atlas,
2015, p. 201.
42
em observância ao disposto no § 6º, do art. 227, da CF, que veda qualquer tipo de designação
discriminatória relativa à filiação. Faz a lei, no entanto, a devida diferenciação para fatos
jurídicos distintos: concepção natural e concepção artificial.
A propósito sobre a definição de parentesco que explica o tratamento diferenciado
pelo CC, Almeida e Rodrigues Júnior92 esclarecem que:
O diploma civil nomina de parentesco natural aquele de derivacao genetica,
certificada ou suposta; e deixa para a expressao parentesco civil o baseado nas
demais origens possiveis, como a adocao e a reproducao assistida, dentre outras
hipoteses reais de relacao socioafetiva. Esta e a hermeneutica mais bem aceita, tendo
sido, inclusive, objeto de conclusões proferidas nas Jornadas de Direito Civil do
Conselho de Justica Federal.
Assim, pela definição dada por Pietro Perlingieri93 sobre o fato jurídico:
O fato jurídico pode ser definido como qualquer evento que seja idôneo, segundo o
ordenamento a ter relevância jurídica. Em geral a norma prevê a hipótese da
verificação do evento (ou seja, do fato) e a possibilidade de que este – humano (um
passeio, a conclusão de um contrato) ou natural (um temporal) – uma vez ocorrido,
tenha relevância jurídica. O fato, no momento de seu acontecimento atua como
abstratamente hipnotizado na previsão da lei: o ordenamento lhe atribui uma
qualificação e uma disciplina.
No caso da concepção artificial heteróloga post mortem, com autorização prévia do(a)
falecido(a), para o uso do material biologico criopreservado, Maluf94 questiona o conflito que
haveria entre o direito à procriação e o direito à biparentalidade genética, asseverando que é
difícil chegar a um consenso quanto a qual dos dois prevaleceria sobre o outro, a despeito de a
separação do vínculo genético na parentalidade ter abalado a estrutura da filiação.
Sobre o direito à biparentalidade, para Isabela Farah Valadares95, o art. 1.593 do CC
inovou ao prever a possibilidade de outra origem para estabelecimento do vínculo de
parentesco, no sentido de que o emprego do termo “outra origem” significa a inclusão do
parentesco por paternidade socioafetiva, ideia que ficou abalizada pelo enunciado 25696 do
92 ALMEIDA, Renata Barbosa de; RODRIGUES JÚNIOR, Walsir Edson. Direito civil : famílias. 2. ed. São
Paulo, SP: Atlas, 2012, p. 81-82. 93PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. Tradução de: Maria Cristina De Cicco. 3. ed. rev. e ampl. Rio
de Janeiro: Renovar, 2002, p. 89-90. 94MALUF, Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus. Curso de bioética e biodireito. 3. ed. - São Paulo: Atlas,
2015, p. 222-223. 95VALADARES, Isabela Farah. Desbiologização da paternidade: distinção entre ascendente genético e pai.
Dissertação (Mestrado em Direito) - Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2015,
p. 73. Disponível em: <http://www.biblioteca.pucminas.br/teses/Direito_ValadaresIF_1.pdf>. Acesso em: 22
set. 2019. 96BRASIL. Conselho da Justiça Federal. Enunciado 256. III Jornada de Direito Civil. Disponivel em:
<http://www.cjf.jus.br/enunciados/enunciado/501>. Acesso em: 17 nov. 2018.
43
Conselho da Justiça Federal, onde se lê que a posse do estado de filho (parentalidade
socioafetiva) constitui modalidade de parentesco civil.
Há também os que, como Almeida e Rodrigues Júnior97, entendem que a
biparentalidade nao corresponda a um direito fundamental, pois o livre desenvolvimento da
personalidade dos sujeitos nao tem como condicao sine qua non a existencia de ambos os
ascendentes geneticos, e que, por isso, a procriacao deliberadamente desprovida de um deles
nao pode ser rotulada como violadora de direitos.
A origem da parentalidade pode também ser diversa, conforme restou pacificado pelo
STF, que, por maioria, apreciando o tema 622 da repercussão geral, com origem no Leading
Case RE 89806098, fixou a tese de que “A paternidade socioafetiva, declarada ou não em
registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado
na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios.”
Forçoso concluir, como resultado das transformações sociais, que a desbiologização da
filiação, consistente na aceitação de que o vínculo paterno-filial possa ser constituído não
apenas pela origem biológica, mas também pela parentalidade socioafetiva, também explica o
reconhecimento legal do vínculo paterno-filial decorrente da concepção artificial heteróloga.
Porém, a socioafetividade como vínculo paterno-filial não se aplicaria ao embrião in vitro,
porque não há como se estabelecer uma relação afetiva entre embrião criopreservado e uma
pessoa, haja vista a ausência de alteridade.
Se não é possível tratar o embrião in vitro como indivíduo, o que acontece se faltar a
autorização prévia do(a) falecido em ter seu material genético utilizado após sua morte? Qual
destino deverá ser dado a esse material genético?
A Lei nº 9.434/1997 fez questão de excluir do conceito de tecidos a que se refere o seu
art. 1o, o sangue, o esperma e o óvulo, interpretação que também se estende ao embrião in
vitro, já detentor de uma individualidade biológica.
Para Maluf também não haveria que se falar em direito à herança sobre o material
genético deixado pelo(a) falecido(a), por não se tratar de objeto de herança, bem como porque
violaria o princípio da autonomia da vontade, que condiciona a utilização do material genético
à autorização prévia específica daquele.
Essa perspectiva está conforme ao raciocínio de que o embrião in vitro não é uma
coisa que esteja dentro do comércio, conforme também se extrai da orientação deontológica
97 ALMEIDA, Renata Barbosa de; RODRIGUES JÚNIOR, Walsir Edson. Direito civil : famílias. 2. ed. São
Paulo, SP: Atlas, 2012, p. 342. 98BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 898.060. Relator: Min. Luiz Fux. Diario de Justica Eletronico,
Brasilia, 29 maio 2019.
44
disposta pela Resolução CFM no 2.168/2017, quando estabelece que tanto a doação de
gametas ou embriões quanto a cessao temporaria do utero nao poderá ter carater lucrativo ou
comercial (itens IV e VII).
Apesar disso, podemos dizer que o status jurídico atribuído ao embrião in vitro pelo
nosso ordenamento está de acordo com a possibilidade prevista na Lei de Biossegurança de
destinação de embriões in vitro?
3.3 O status jurídico do embrião
Com base no tratamento interpretativo interdisciplinar, chama-se de embrião o
momento biológico da fecundação celular, havendo inúmeras expressões utilizadas para
designá-lo, como “recem-concebido”, “germen”, “principio de vida” ou “ente por nascer”.99
Quando for adjetivado com a expressao “excedentario”, correspondera ao produzido fora do
corpo feminino, isto é, in vitro, e não utilizado em tratamento de reprodução assistida.
Na lição de Renata Furtado de Barros100:
Conceitua-se, portanto, como embriões excedentes, os formados in vitro, nas
clinicas e institutos de reproducao assistida e que estao armazenados em condicões
de criopreservacao, sem perspectiva de utilizacao, por parte dos pais biologicos
desses embriões. Na verdade, a tecnica atual de fecundacao in vitro proporciona a
formacao de muitos embriões, nao podendo todos eles serem implantados no utero
das maes que precisam dessa assistencia reprodutiva.
O embrião é composto por células-tronco, chamadas células-tronco embrionárias que,
na fase de blástula de 4 a 5 dias de fecundação, apresentam a característica da pluripotência,
ou seja, a capacidade de produzir uma enorme gama de tecidos constitutivos do ser humano,
bem como de se autorreplicar.
A Lei de Biossegurança conceitua células-tronco, no art. 3º, XI, como “[...] células de
embrião que apresentam a capacidade de se transformar em células de qualquer tecido de um
organismo”. Há, ainda, diferentes tipos de células-tronco embrionárias, que são classificados
segundo duas propriedades essenciais, quais sejam capacidade de autorreplicação e aptidão
para se transformarem em células especializadas dos mais diversos órgãos e tecidos humanos:
99GUERRA, Arthur Magno e Silva. Direitos fundamentais do embrião na bioconstituição – Belo Horizonte:
Editora D’Placido, 2015, p. 116. 100BARROS, Renata Furtado de. Destino de embriões excedentes: um estudo dessa problematica nos paises do
MERCOSUL. Dissertação (Mestrado em Direito) - Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo
Horizonte, 2010, p. 86. Disponível em: <http://www.biblioteca.pucminas.br/teses/Direito_BarrosRF_1.pdf>.
Acesso em: 23 set. 2019.
45
totipotentes, pluripotentes, multipotentes e unipotentes, sendo que todas elas apresentam, pelo
menos, uma das duas propriedades anteriormente mencionadas.
As células-tronco totipotentes, identificadas na fase de blastômero, por volta do quarto
e quinto dia, até o estágio de mórula de 16 células, são capazes de autorreplicação, bem como
de gerar um indivíduo completo; as pluripotentes, presentes na massa celular interna do
blastócito, são, igualmente, capazes de autorreplicação, bem assim de produzir quaisquer tipos
de células do feto e do indivíduo formado, mas não um embrião completo com seus anexos
embrionários; as multipotentes são as células somáticas presentes nos tecidos e órgãos de
indivíduos formados, mas que apresentam limitação quanto à capacidade de conversão em
outros tipos celulares, ainda objeto de investigação científica; as unipotentes, como o próprio
nome sugere, são capazes de se converter em apenas um tipo de célula, embora detenham a
habilidade de autorreplicação.
A utilização e consequente destruição de embriões para extração de células-tronco
embrionárias desperta discussões sobre o seu status jurídico, em meio a argumentos que o
definem como potencial ser humano em formação com direito à vida digna; e, em sentido
oposto, aqueles favoráveis ao uso de embriões excedentários, no estágio propício às pesquisas
biomédicas, caso em que seriam tratados como mero conjunto de células. O descarte
ocorreria, quando inservíveis os embriões para pesquisa, ou quando os genitores não
desejarem utilizá-las em tratamento de reprodução assistida.
No âmbito do biodireito, a difícil tarefa de definir uma realidade somente é possível,
por meio da interdisciplinaridade com as demais ciências, como a biologia e medicina.
Contudo, isso não implica afirmar que a definição legal do início da vida possa ser
estabelecida somente com apoio num referencial biológico.
Em seu comentário sobre a famosa dialética hegeliana do “ser” e do “nada”, Taylor101
mostra que, para a visão ontológica, uma realidade essencialmente definida contrasta e é
limitada por outros tipos incompatíveis de realidades, de modo que tudo o que é tem de ser
determinado, então o que quer que satisfaça as condições de existência satisfaz também as
condições de sua própria morte.
Disso decorre, segundo Renata da Rocha102, a necessidade de criação de teorias acerca
do início da vida humana:
Assim, diante da necessidade de se estabelecer um marco a partir do qual se
garantisse respeito efetivo ao embrião humano, foram elaboradas diferentes teorias
101 TAYLOR, Charles. Hegel e a sociedade moderna. São Paulo: Loyola, 2005, p. 23, 90, 96-98. 102 ROCHA, Renata. O direito à vida e a pesquisa em células-tronco. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008, p. 74.
46
acerca do início da vida humana. Essas teorias foram produzidas sempre com base
nas diversas etapas do desenvolvimento embrionário e com a finalidade de servirem
de orientação na implementação, por parte dos Estados, de normas que determinasse
o estatuto jurídico do embrião humano, e, por via de consequência, foram também
formuladas com o propósito de nortear o implemento de políticas públicas
relacionadas às pesquisas em células-tronco embrionárias humanas.
Assim, foram elaboradas teorias, a fim de determinar o início da vida humana, como
termo inicial para atribuição de personalidade e proteção jurídicas, essencialmente
diferenciadas por estágios morfológicos do processo contínuo de desenvolvimento
embrionário, dentre as quais temos as seguintes: 1) teoria concepcionista: na concepção,
momento em que gametas masculino e feminino se fundem formando o zigoto, dando início à
vida humana tutelável pela lei, em razão de ostentar a condicao plena de pessoa; e 2) teoria
genético-desenvolvimentista: a proteção do embrião como ser humano se daria conforme as
fases de seu desenvolvimento, tese proposta pela doutrina de proteção gradual, que ocorre, em
um momento, no qual já é possível individualizá-lo.
O ponto comum entre essas teorias que tratam das realidades pré-nascimento é que
todas têm a premissa de medir o estágio do desenvolvimento embrionário, segundo aspectos
temporal e estrutural, para fins de reconhecimento de direitos fundamentais103.
Há, desse modo, segundo Arthur Magno e Silva Guerra (2015), a preocupação em
definir o estágio biológico da fecundação em que se pode falar de embrião, como organismo
de natureza humana, distinguindo-o de nascituro.
A teoria concepcionista considera como primeira etapa do desenvolvimento
embrionário humano e início da vida humana a fusão das células germinativas – o oócito e o
espermatozoide - que dá origem ao zigoto, estágio unicelular geneticamente individualizável
dotado de suficiente carga genetica do ser que comecou a ser formado, e cujo
desenvolvimento se da de maneira automatica, pouco importando a origem, se in vitro ou in
utero.
Em complemento, Daniela Grechi104 ressalta que:
Assim, desde o primeiro instante da fecundação em diante, o embrião seria humano
e estaria vivo, sendo que a disposição dessa vida, independentemente dos
argumentos invocados, não se justificaria.
103GUERRA, Arthur Magno e Silva. Direitos fundamentais do embrião na bioconstituição – Belo Horizonte:
Editora D’Placido, 2015, p. 115-117. 104GRECHI, Daniela. O uso das células-tronco embrionárias : incertezas e novas promessas para a medicina do
futuro. – Caxias do Sul : Educs, 2009, p. 28.
47
Consoante Dworkin105, o argumento concepcionista defende um ponto de vista
independente, e não derivativo, assumindo, em tese, que o descarte ou uso de embriões in
vitro seria tão condenável quanto um assassinato, por consistir na destruição deliberada da
vida de um organismo humano. Assim, nenhuma atividade potencialmente destruidora dessa
vida em potencial seria moralmente admissível.
No entanto, ressalva Renata da Rocha106 que, apesar de estudiosos tratarem
analogamente os termos fertilização e concepção, ambos representam estágios sucessivos do
ciclo vital humano, dado que a fertilização acontece 12 horas depois de o gameta masculino
atravessar a zona pelúcida do óvulo, fundindo-se a este, na etapa denominada pronúcleo, e
resultando na formação do zigoto com a efetiva junção dos pronúcleos dos gametas masculino
e feminino, momento da concepção propriamente dita de uma vida geneticamente
individualizável, quando então passaria a ser merecedora da tutela global da vida humana.
Dentro da teoria concepcionista, há, ainda, duas vertentes: a teoria da singamia que
relaciona o início da vida e personalização de um novo ser ao momento exato da fertilização,
anterior à concepção ou fusão dos núcleos paterno e materno; e a teoria da cariogamia que
relaciona o mesmo início da vida humana ao momento da concepção, com a fusão das células
germinativas, e consequente constituição de uma estrutura única, possuidora de código
genético plenamente capaz para o desenvolvimento de um ser humano.107 Vemos, então, que,
mesmo dentro de algumas teorias, há dissenso quanto ao momento exato da constituição
ontológica do chamado embrião.
Considerando que, desde a fase de zigoto, já estaria resumida em uma só célula
extremamente complexa toda a informação necessária ao desenvolvimento do organismo
inteiro, Carolina Valença Ferraz108 argumenta que não existira diferença qualitativa entre a
vida nascida e a não nascida, motivo pelo qual defende a atribuição de personalidade desde a
concepção embrionária.
Sem embargo da relevância de tais argumentos, em se admitindo o início da vida
humana desde a concepcao, haveria a contraditoria condicao resolutiva de “nascer sem vida”
para extinção dos direitos patrimoniais, posto que é perfeitamente possível que o embrião
105DWORKIN, Ronald. Domínio da vida : aborto, eutanásia e liberdades individuais ; tradução Jefferson Luiz
Camargo ; revisão da tradução Silvana Vieira. – 2ª ed. – São Paulo : Editora WMF Martins Fontes, 2009, p.
27-28. 106 ROCHA, Renata. O direito à vida e a pesquisa em células-tronco. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008, p. 76-77. 107 ROCHA, Renata. O direito à vida e a pesquisa em células-tronco. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008, p. 77-78. 108FERRAZ, Carolina Valença. Biodireito : a proteção jurídica do embrião in vitro. - São Paulo : Editora
Verbatim, 2011, p. 18-22.
48
implantado não chegue aos estágios finais de seu desenvolvimento.109Além disso, a
autonomia reprodutiva da mulher quanto à decisão de procriar ficaria subordinada a um
suposto direito ao útero, caso se reconheça ao embrião in vitro o pleno direito à vida,
implicando para o gênero feminino um dever de engravidar incompatível com os princípios da
dignidade da pessoa humana (art. 5o, II, CF), do livre planejamento familiar (art. 226, § 7º,
CF) e da paternidade responsável (art. 226, § 7º, CF).
A defesa da tese favorável à imposição do dever de engravidar também não se
coaduna com o princípio kantiano110 de que os indivíduos são fins e não simplesmente meios,
não podendo ser sacrificados e usados para a realização de outros fins sem seu consentimento.
Além disso, não encontramos razoabilidade em atrelar uma suposta dignidade do embrião ao
seu congelamento.
Queiroz111 faz importante consideração sobre a equiparação absoluta do embrião à
pessoa, desde o momento da concepção, que resultaria no absurdo de se conferir vida a um
tumor maligno, sabido que alguns embriões são portadores de graves defeitos genéticos.
Quanto à alegação de que o art. 4o, I, da Convenção Americana de Direitos Humanos,
ingressou no ordenamento brasileiro como regra de caráter supralegal, prevendo o respeito e
proteção à vida, desde a concepção, Santos Cifuentes112 afirma que, em virtude de ter sido
celebrada em 1969, anteriormente ao advento da técnica da FIV, a regra prevista na
supracitada norma de direito internacional, seria inaplicável, porquanto não se referia à união
extracorpórea dos gametas.
Há também a teoria genético-desenvolvimentista, que associa o início da vida humana
à determinada fase do desenvolvimento embrionário, a partir da qual se verifica importante
salto qualitativo, derivando as seguintes: teoria da nidação, teoria da formação do sistema
nervoso central e teoria do pré-embrião.
Segundo a teoria da nidação, tão só com a fixação do ovo no útero tem origem uma
nova vida humana em condições necessárias para se desenvolver, de modo que ficaria
excluída a proteção do embrião localizado in vitro. Para corroborar tal entendimento, a
corrente nidacionista cita a tipificação do aborto como crime previsto nos artigos 124, 125 e
109SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. Bioética e biodireito. 4. ed. Belo
Horizonte: Del Rey, 2018, p. 142. 110KANT, Immanuel. A metafisica dos costumes. 3ª edicao. Traducao, apresentacao e notas de Jose Lamego.
Lisboa: Fundacao Calouste Gulbenkian, 2017, p. 413. 111QUEIROZ, Juliane Fernandes. Reprodução assistida post mortem : aspectos jurídicos de filiação e sucessório.
Curitiba : Ed. UFPR, 2015, p. 142. 112CIFUENTES, Santos apud Barboza, Heloisa Helena. Proteção jurídica do embrião humano. In: Romeo-
Casabona, Carlos María; Queiroz, Juliane Fernandes. Biotecnologia e suas implicações ético-jurídicas. – Belo
Horizonte: Del Rey, 2004, p. 252.
49
126 do Código Penal, relacionando o início da gravidez à nidação, bem como ao fato de ser
permitido pelo Ministério da Saúde no Brasil, por configurar fato atípico, o uso do método
contraceptivo da pílula do dia seguinte, cuja substância ativa é o levonorgestrel, responsável
por impedir que o ovo fertilizado se fixe na parede do útero, ou seja, atuando para evitar a
nidação, caso em que não haveria crime de aborto.
No entanto, estudos recentes levantam questões sobre o mecanismo de ação do
levonorgestrel, mais conhecido nos Estados Unidos pelo nome de Plan-B One Step, por não
haver suficiente evidência da eficácia de inibição da implantação de óvulos fertilizados na
parede do útero após a ovulação, comparando-o ao efeito de um anticoncepcional comum.113
Inobstante a nidação também se apresente como importante garantia de sobrevida e
viabilidade do ovo, a referida teoria não atenta para a possibilidade de haver a gestação
abdominal ou ectópica, na qual o produto da concepção se fixa em outra parte do corpo
humano, como em caso ocorrido, em 2013, no Estado do Pará114, nisso consistindo um dos
equívocos em relacionar a fixação do ovo no útero como indispensável ao início da vida
humana.
Quanto à suposta atipicidade da destruição de embriões produzidos por FIV como
argumento para afirmar que a vida humana se inicia a partir da nidação, a Lei de
Biossegurança tipifica como crime o uso, nele se incluindo a destruição, em desacordo com o
que dispõe o art. 5º do referido diploma legal, de modo que não se pode falar em atipicidade
de toda e qualquer destruição de embriões, embora, com relação às hipóteses legais de aborto
legal, previstas no art. 128, I e II, do Código Penal, tais dispositivos tenham a natureza
jurídica de causa especial de exclusão da ilicitude, o que conduz ao raciocínio de que mesmo
o direito à inviolabilidade da vida do concepto in utero não é absoluto, ao qual também não se
atribui direitos de personalidade.
Para a teoria da formação dos rudimentos do sistema nervoso central ou das primeiras
atividades cerebrais, a vida humana teria início com a formação do córtex central (em média,
com 30 dias), a partir da nêrula, momento a partir do qual o embrião, supostamente, adquiriria
consciência própria e status de ser humano, distintos de outros animais.
No Brasil, os defensores da teoria do desenvolvimento do sistema nervoso central se
embasam na Lei n. 9.434, de 4 de fevereiro de 1997, que disciplina e autoriza a remocao de
113BELLUCK, Pam. Qualificações de aborto na pílula do dia seguinte podem ser infundadas. The New York
Times. NYC, 5 jun. 2012. Disponível em: <https://www.nytimes.com/2012/06/06/health/research/morning-
after-pills-dont-block-implantation-science-suggests.html>. Acesso em: 27 ago. 2019. 114REZENDE, Thais. Bebê de gestação abdominal nasce saudável no Pará. G1 Pará, Belém, 25 jan. 2013.
Disponível em: <http://g1.globo.com/pa/para/noticia/2013/01/bebe-de-gestacao-abdominal-nasce-saudavel-no-
para.html>. Acesso em: 21 jan. 2019.
50
orgaos e tecidos post mortem para fins de transplantes e terapias, por meio de doacao, depois
de realizado o diagnostico de morte encefalica (art. 3o), para, enfim, considerar a pessoa como
morta, condição biológica tomada como fundamento para realização de uma analogia, a fim
de se definir o início da vida, com a formação rudimentar do sistema nervoso.
No entanto, para Queiroz115, aponta que, mesmo após a definição desse marco:
A definição da morte para determinar a morte biológica, elaborada em 1968, não
deixou de carregar em si as problematizações acerca da morte da pessoa e da
individualização do momento em que esta ocorre, contidas, também, nas
conceituações anteriores.
Francisco Ilídio Ferreira Rocha116 critica o uso da analogia entre a morte encefálica e o
início da vida humana, afirmando que não se pode afastar a qualidade ser humano daquele
que, embora ainda não apresente sistema nervoso, dispõe de todas as condições biológicas
para o desenvolvimento de atividade encefálica.
O caso da adolescente Jahi MacMath, mantida viva por vários anos, ilustra bem o
dilema sobre a definição da morte como a destruição irreversível do cérebro, que fora
desenvolvida a partir das conclusões obtidas pela comissão de Harvard. Adotadas por 27
estados estadunidenses, as conclusões que influenciaram o Uniform Determination of Death
Act117, de 1981, não foram suficientes para convencer um juiz da Corte Superior do Condado
de Alameda de que o exame de morte cerebral de 2013 deveria ser considerado definitivo para
todo e qualquer efeito.118
Recentemente, foi lançado um novo olhar sobre a condição biológica da morte
cerebral, ante os resultados da investigação científica conduzida por pesquisadores da Yale
University, na cidade de New Haven, sobre células cerebrais de porcos mantidas vivas horas
depois da morte, experimento que levanta questões éticas e legais, aumentando, ainda mais, as
incertezas sobre a natureza da própria morte e da consciência.119
Ademais, a mera capacidade de sentir, que tem início algum tempo depois da
concepção, não é algo que distinga o ser humano dos outros animais; é preciso mais, como a
115QUEIROZ, Juliane Fernandes. Reprodução assistida post mortem : aspectos jurídicos de filiação e sucessório.
Curitiba : Ed. UFPR, 2015, p. 136. 116ROCHA, Francisco Ilídio Ferreira. Manual de Biodireito – Belo Horizonte: Editora D’Placido, 2017, p. 258. 117Lei que regulamentou e uniformizou a definição de morte como a cessação irreversível da totalidade das
funções cerebrais. 118AVIV, Rachel. O que significa morrer? Os esforços de uma mãe para provar que sua filha ainda está viva – e
como isso colocou em questão a definição de morte cerebral. Revista Piauí. Edição 139. Abr. 2018. 119REARDON, Sara. Pig brains kept alive outside body for hours after death Revival of disembodied organs
raises slew of ethical and legal questions about the nature of death and consciousness. Nature: International
Journal of Science, [S. l.], v. 568, p. 283-284, 17 Apr. 2019.
51
capacidade de pensar, atributo que diferencia o ser humano dos outros seres vivos, a fim de
justificar a atribuição de personalidade civil.
Há também a teoria do pré-embrião, desenvolvida, em 1984, com suporte no Relatório
preparado pela Comissão de Warnock120, com fundamento no qual se alega que, até o 14o dia
após a concepção, existiria apenas uma célula progenitora desprovida de sistema nervoso,
inteligência ou caráter humano, com capacidade de gerar indivíduos da mesma espécie, e que
por essa razão poderia ser utilizada em pesquisa, descartada ou criopreservada.121 Namba122
frisa que a proposição do referido relatório tinha como único fim ideológico justificar a
experimentação com seres vivos, em virtude do que não se sustenta, objetivamente, o conceito
de pré-embrião.
Conforme Reinaldo Pereira e Silva123, entre os argumentos usados pelo Relatório
Warnock para justificar suas conclusões está a falta de unidade orgânica original do primeiro
ser, em razão de impossibilidade de detecção de gêmeos monozigóticos, malgrado não haja
prova científica de que a divisão do zigoto desfaça a unidade orgânica original. Além disso,
afirma tal teoria que haveria a perda da totipotência a partir do 14o dia, embora já
demonstrado pela teoria da cariogamia que, desde a concepção, as células contêm em si todo
o código genético necessário para especialização e formação de um organismo completo.
Além das já citadas, há outras teorias que tratam do momento inicial de atribuição da
personalidade e direito à inviolabilidade da vida, como a natalista, personalista formal e
eclética.
Sustenta a teoria natalista, adotada pelo Código Civil, que a personalidade, referida
com o mesmo sentido que se atribui a “sujeito de direito”, só seria adquirida a partir do
nascimento com vida, fato jurídico relacionado à aquisição de subjetividade jurídica, de
maneira que o nascituro também não é considerado pessoa, já que desprovido de autonomia
gerenciadora de seu próprio desenvolvimento124, apesar de a lei lhe pôr a salvo alguns direitos
patrimoniais e extrapatrimoniais, desde a concepção intrauterina.
120O relatório da Comissão formada pela secretária de educação do Reino Unido, Mary Warnock, que foi
publicado em 1984 no Reino Unido, para tratar de assuntos de reprodução assistida, propõe a liberação de
pesquisas sem restrição em embriões até o 14o dia de desenvolvimento embrionário, vindo a cunhar o termo
pré-embrião para designar este primeiro estágio evolutivo como alternativa que gerasse menos resistências à
discussão sobre a possibilidade de utilizá-los em pesquisas. 121GRECHI, Daniela. O uso das células-tronco embrionárias : incertezas e novas promessas para a medicina do
futuro. – Caxias do Sul : Educs, 2009, p. 42. 122NAMBA, Edison Tetsuzo. Manual de bioética e biodireito. 2. ed. – São Paulo : Atlas, 2015, p. 40. 123Silva apud Rocha, Renata. O direito à vida e a pesquisa em células-tronco. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008, p.
82. 124Com as descobertas científicas mais recentes de que o embrião é capaz de administrar seu próprio
desenvolvimento, desde a concepção, encontra-se hoje ultrapassado o argumento utilizado pela teoria natalista
para fundamentar sua base teórica.
52
Por conseguinte, o nascituro seria uma expectativa de pessoa, a quem não é concedida
a personalidade civil por nossa ordem jurídica125. A inadequação desse argumento usado para
determinar o início da tutela jurídica da vida humana consiste em desconsiderar que o
embrião não tem suficiente autonomia gerenciadora para seu inteiro desenvolvimento, bem
como que, assim como o nascituro, existe em relação ao embrião a possibilidade ou
expectativa de se tornar um humano nascido. Contrariamente, quanto à autonomia do
embrião, conforme artigo científico publicado por pesquisadores na Revista Nature126,
comprovou-se a viabilidade do desenvolvimento embrionário na ausência de tecidos
maternos. Dworkin127 discorda dessa autonomia embrionária, pois, para ele, sem a ajuda
externa da gestante e dos recursos da ciência, o embrião não se desenvolveria.
Já a teoria da personalidade formal ou condicional, intermediária entre a concepconista
e a natalista, estabelece que o nascituro teria formalmente personalidade para titularizar
direitos personalíssimos, como o direito à vida (proibição de aborto), direito de ter nomeado
curador na ausência de quem possa exercer o poder familiar, e à proteção pré-natal (alimentos
gravídicos), mas quanto aos direitos patrimoniais (herança e doação), estes só seriam
adquiridos depois de efetivada a condição suspensiva do nascimento com vida, ficando dela
dependente a eficácia da vocação para suceder, já que ainda não se tem a personalidade civil.
Acerca do aspecto quanto à titularidade de direitos personalíssimos, a proibição do
aborto como regra não é suficiente para confirmar a adesão à tese da personalidade formal
pelo nosso ordenamento, pois ainda que ao nascituro fosse atribuído o direito à vida, o mesmo
admitiria condicionamentos como a inexistência de risco para a gestante, gravidez resultante
de estupro ou de diagnóstico de anencefalia128.
Assim, a regra que excepciona a vedação legal do aborto também revela uma
incoerência com a teoria da personalidade formal, no caso do aborto humanitário em razão de
estupro, em razão dos questionamentos acerca da ponderação entre valor intrínseco da vida
humana do nascituro coberto pela limitação implícita relativa à dignidade pessoal da mulher,
na condição de vítima e, assim, portadora de um sentimento de repulsa em gerar um filho de
seu algoz, condizente com sua dignidade humana. Do mesmo modo, na situação de risco de
125SEMIÃO, Sérgio Abdalla. Biodireito & Direito Concursal: aspectos científicos do direito em geral e da
natureza jurídica do embrião congelado. Belo Horizonte: Del Rey, 2012, p. 192. 126SHAHBAZI, Marta N. et al. Self-organization of the human embryo in the absence of maternal tissues.
Technical Report. Nature Cell Biology, volume 18, number 6, p. 700-708, jun. 2016. 127DWORKIN, Ronald. Domínio da vida : aborto, eutanásia e liberdades individuais ; tradução Jefferson Luiz
Camargo ; revisão da tradução Silvana Vieira. – 2ª ed. – São Paulo : Editora WMF Martins Fontes, 2009, p.
21. 128Falha de fechamento do tubo neural, durante o 1o mês do desenvolvimento embrionário, por fatores genéticos
e ambientais.
53
gravidez para a gestante, em que haveria duas ou mais vidas humanas de igual valor em
conflito, transparece a falta de critérios por parte da referida teoria, para decidir qual das duas
deve prevalecer.
Admitida a licitude dos abortos necessário e humanitário pelo ordenamento jurídico, e,
uma vez reconhecida a existência de bens jurídicos valiosos em conflito, a precedência da
vida da gestante sobre a do nascituro informa a preponderância qualitativa da vida
extrauterina sobre a intrauterina.129
Por fim, a teoria eclética seria diferente da teoria personalista formal somente quanto à
particularidade de que, para a primeira130, a capacidade retroage ao momento da concepção,
após o nascimento com vida, enquanto, para a segunda131, mesmo in vitro, tem-se a
personalidade jurídica formal, que se transmuta em material, apenas se ocorrer o nascimento
com vida, momento a partir do qual o nativivo passará a ser titular de direitos patrimoniais.
Percebe-se, assim, que cada uma das citadas teorias sob o prisma biológico encontra
objeções de ordem ontológica, e quando confrontadas com o dado científico carecem de
segurança pelo fato de assentarem a definição de conceitos jurídicos a eventos naturais, sem
levar em conta inconsistências e a possibilidade de novas descobertas decorrentes do
progresso técnico.
No horizonte sempre difícil de fixar limites, afirma Daniela Grechi132 que “[...] a
ciência não dispõe de parâmetros para definir exatamente quando inicia a vida humana, uma
vez que não existem conceitos imutáveis, eternos e prontos que se possa aplicar sem
reservas.”
Disso concluímos que não é suficiente pensar tão somente nas premissas científicas
abordadas nesse capítulo para definição do status jurídico do embrião como justificativa que
valide uma única conclusão sobre o tratamento jurídico que o ordenamento reconhece àquele,
como também não se defende a unicidade conceitual entre ser humano e pessoa, apesar dos
importantes esclarecimentos feitos pela ciência biológica acerca dos acontecimentos naturais
com relevância para o Direito.
Por tais razões, com respeito à racionalidade de todas as teorias anteriormente
comentadas, entendemos que, de fato, o embrião in vitro não pode ser tratado como pessoa ou
centro de imputação normativa, quer seja porque não é titular de situações existenciais, ou
129ROCHA, Francisco Ilídio Ferreira. Manual de Biodireito – Belo Horizonte: Editora D’Placido, 2017, p. 268. 130GUERRA, Arthur Magno e Silva. Direitos fundamentais do embrião na bioconstituição – Belo Horizonte:
Editora D’Placido, 2015, p. 157. 131NAMBA, Edison Tetsuzo. Manual de bioética e biodireito. 2. ed. – São Paulo : Atlas, 2015, p. 31. 132GRECHI, Daniela. O uso das células-tronco embrionárias : incertezas e novas promessas para a medicina do
futuro. – Caxias do Sul : Educs, 2009, p. 16.
54
porque não atingiu um estágio de vida bastante para ser incluído no estatuto humano pessoal.
Todavia, isso não quer dizer que o embrião in vitro não seja objeto de proteção pelo
ordenamento jurídico, independentemente de sua existência como sujeito.
Eventual proteção legal conferida ao embrião in vitro também não precisa ser
absoluta, já que mesmo em relação ao nascituro, portador de maior consideração moral, não
se assegura total inviolabilidade, se seus interesses colidirem com outros interesses e direitos
fundamentais de indivíduos detentores do atributo da personalidade civil, a despeito de ser o
mencionado nascituro tratado como centro de imputação jurídica.
Nesse ínterim, verificando que não é possível atrelar a personalidade a uma condição
biológica, Semião133 diferencia a personalidade civil do início da vida biológica humana, que,
segundo ele, começa com as primeiras formações das atividades cerebrais. No entanto, para o
referido autor, este é um fato unicamente biológico, não recepcionado no mundo jurídico,
enquanto a personalidade civil é uma aptidão reconhecida pela ordem jurídica, cujo marco
inicial é, sem dúvida, o nascimento, a partir do qual se designa como sujeito de direito o ser
capaz de direitos e obrigações.
Discordamos da teoria adotada por Sérgio Abdalla Semião para estabelecer o início da
vida humana, porque tanto ela quanto as outras teorias são capazes de fornecer justificativas
para estabelecer um marco inicial para aquele momento biológico, do ponto de vista
científico, não importando ao objeto deste estudo meramente tratar da teoria científica sobre o
início da vida biológica humana, tampouco sobre a determinação de um respectivo conceito
filosófico.
Logo, não basta que o ordenamento jurídico escolha uma das teorias sobre o início da
vida humana, apenas pela necessidade de fixar um referencial de proteção jurídica, é preciso
que haja a possibilidade de conciliação, ao menos preocupada com as liberdades e respectivos
interesses individuais que se encontram tutelados pelo ordenamento jurídico, representativos
de direitos fundamentais, bem assim distinguir o que motiva a necessidade de tutela estatal.
A proposta conceitual de Sá e Naves134 atende bem a esse propósito, conferindo ao
tema uma maior coerência hermenêutica, ao definir que o embrião é tutelado,
independentemente, de ser detentor de direitos subjetivos, deveres jurídicos, direitos
potestativos, sujeição, poderes, ônus ou faculdades. A tutela jurídica adviria, antes que fosse
proclamada eleita qualquer uma daquelas teorias, tal quando se impede a comercialização do
133SEMIÃO, Sérgio Abdalla. Biodireito & Direito Concursal: aspectos científicos do direito em geral e da
natureza jurídica do embrião congelado. Belo Horizonte: Del Rey, 2012, p. 184-185. 134SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. Bioética e biodireito. 4. ed. Belo
Horizonte: Del Rey, 2018, p. 171.
55
embrião in vitro como mera coisa135 (res extra commercium), ou quando se proíbem
experimentos de clonagem e de engenharia genética, em virtude da consideração moral
indireta que é outorgada ao embrião crioconservado136, por carregar consigo um potencial
para a vida humana.
Porém, parte da doutrina defende que o embrião in vitro é apenas um centro de
interesses, pois não sendo coisa nem pessoa, ainda assim apresenta vital interesse para o
Direito. Aderindo a essa tese, Semião137 o enxerga como um centro de interesses
despersonalizado. Todavia, não consideramos o embrião in vitro um centro de interesses
despersonalizado, considerando que faltaria um aspecto essencial, qual seja o reconhecimento
ou confirmação por normas jurídicas destinadas, especificamente, a favorecer, de algum
modo, a situação dos embriões crioconservados, o que não se observa na hipótese de seu
congelamento.
Também não concordamos com a posição defendida por Helena Pereira de Melo138,
para quem a planetarização da sociedade internacional conduzirá ao gradual reconhecimento
da humanidade no seu conjunto como titular de direitos ou como centro de imputação
normativa, porque, como já dissemos anteriormente, a proteção pela norma jurídica de
determinado bem não requer a existência de um respectivo titular.
Perlingieri139 nos fornece um exemplo do que seria um centro de interesses
despersonalizado: a situação da doação em favor de nascituros, em que já existe o interesse
juridicamente tutelado, mas ainda não existe o sujeito titular do interesse, em nome do qual o
ordenamento atribui legitimidade a terceiros para agir judicialmente, e a realizar atos de
direito substancial e conservativos.
Aqui, fazemos o seguinte questionamento: quais seriam os interesses tutelados, se
considerarmos o embrião criopreservado como centro de interesses?
Se ele não é considerado como pessoa pelo Direito, ainda assim pode vir a ser objeto
de proteção? O fato de ele não ser pessoa não implica na não proteção, já que é considerado
um objeto de direito merecedor de tutela, por não ser uma mera coisa. Ele é, sim, uma coisa
que traz significado, e que importa numa possibilidade de manutenção da espécie humana, 135SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. Bioética e biodireito. 4. ed. Belo
Horizonte: Del Rey, 2018, p. 170-171. 136HARRIS, John; BORTOLOTTI, Lisa. Investigação com células-tronco, personalidade e consciência. In:
Romeo-Casabona, Carlos María; Sá, Maria de Fátima Freire de (organizadores). Desafios jurídicos da
biotecnologia. Belo Horizonte: Mandamentos, 2007, p. 307. 137SEMIÃO, Sérgio Abdalla. Biodireito & Direito Concursal: aspectos científicos do direito em geral e da
natureza jurídica do embrião congelado. Belo Horizonte: Del Rey, 2012, p. 214. 138MELO, Helena Pereira de. Manual de biodireito. 1. ed. – Coimbra: Edições Almedina, 2008, p. 186. 139PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. Tradução de: Maria Cristina De Cicco. 3. ed. rev. e ampl. Rio
de Janeiro: Renovar, 2002, p. 107-108.
56
como valor intrínseco que lhe assegura a tutela do Estado, pelo que é classificado como um
objeto de direito fora do comércio.
Nesse viés, ressalta Perlingieri140 que se infere a possibilidade de existência de
interesses e situações tuteladas pelo Direito, faltante um sujeito titular, eis que ele não é
conditio sine qua non para a existência da situação subjetiva, a qual constitui um interesse ou
centro de interesses mais ou menos complexo.
Sá e Naves141 mencionam, como exemplo da desnecessidade do sujeito nas situações
jurídicas, a “figura” do morto, que não é titular de um direito, conquanto sobre ele se forme
uma situação de dever jurídico, que consiste em objeto de proteção face ao juízo de
reprovabilidade objetivado normativamente.
Também não é mera coisa o embrião in vitro, porque jamais poderá ser tratado apenas
como objeto de propriedade, passível de alienação onerosa, dado às qualidades e atributos que
o definem, mas também não se pode dizer que seja um ser humano ou um centro de
interesses. Por isso, acreditamos não ser o caso de conferir ao embrião in vitro personalidade
ou um status sui generis, mas sim ressignificá-lo sem alterar sua condição de objeto de
direito, deixando de se recorrer à categorizacao de um novo personagem, como alternativa
mais consentânea com a tendência moderna de releitura de institutos e categorias suficiente
para atender as demandas do mundo contemporaneo, conforme defendem Lima e Sa142.
Consoante Perlingieri143, acerca da exclusão do comércio ou ausência de
patrimonialidade do embrião in vitro a teoria global dos bens fornece uma explicação relativa
ao objeto do direito, que importa nas seguintes considerações:
Antes de prosseguir na análise dos específicos aspectos da informação como bem
seria útil sintetizar as conclusões alcançadas, as quais referem-se à global teoria dos
bens: 1) o bem jurídico é o objeto de uma situação subjetiva; 2) toda situação
jurídica tem um bem como objeto; 3) os bens podem ser patrimoniais e não-
patrimoniais (a patrimonialidade não é um caráter necessário do objeto do direito);
4) a teoria dos bens não requer o gozo exclusivo, já que podem ser concebidos bens
a gozo necessariamente múltiplo por parte de uma multiplicidade de sujeitos; a
teoria dos bens não corresponde nem à teoria do objeto do direito de propriedade
nem àquela do objeto do direito subjetivo: é possível imaginar bens que não podem
se encaixar nestas categorias, mas podem ser, legitimamente, objeto de outras
140PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. Tradução de: Maria Cristina De Cicco. 3. ed. rev. e ampl. Rio
de Janeiro: Renovar, 2002, p. 107-108. 141SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. Bioética e biodireito. 4. ed. Belo
Horizonte: Del Rey, 2018, p. 85. 142LIMA, Taisa Maria Macena de; SA, Maria de Fatima Freire de. A Ressignificacao de Objeto do Direito e a
Protecao dos Animais. In: BRANDAO, Claudio; BARROS, Flaviane; TEODORO, Maria Cecilia Maximo.
(Org.). Democracia, Autonomia Privada e Regulacao: estudos em homenagem ao professor Cesar Fiuza. 1ed.
Belo Horizonte: D Placido, 2018, v. 1, p. 155-170. 143PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. Tradução de: Maria Cristina De Cicco. 3. ed. rev. e ampl. Rio
de Janeiro: Renovar, 2002, p. 237.
57
situações subjetivas; 5) a individuação de um interesse merecedor de tutela –
elevado portanto a situação subjetiva, com um correspondente bem – é realizada
pelo ordenamento não apenas com base em regras, mas também com base em
princípios; nesse sentido para que seja possível dizer que o ordenamento reconheceu
um bem jurídico, não é necessário que exista uma norma regulamentar (os bens
jurídicos não o são em número taxativo): é possível realizar a qualificação do bem
utilizando somente os princípios (não em abstrato, mas se, na hipótese concreta, o
princípio ou uma combinação de princípios fizer emergir um bem).
Entendemos, portanto, que o embrião criopreservado se qualifica como bem jurídico
em que se encontra individuado um interesse merecedor de tutela diferenciada em razão de
seu valor para a humanidade, qual seja o patrimônio genético que carrega. Além disso, é
objeto de uma situação subjetiva não-patrimonial, cujo gozo não é exclusivo, já que pode ser
destinado ao uso de uma multiplicidade de sujeitos, por meio da doação para pesquisa, com
fins de cura e terapia.
Assim, importa anotar que o objeto do interesse difuso compreende categoria de bens
pertencentes a todos, posto que seus titulares são indetermináveis, bem como apresenta
natureza indivisível, haja vista a impossibilidade de seu fracionamento, conforme disposto
pelo art. 81, parágrafo único, I, da Lei nº 8.078/1990.
Desse modo, o patrimônio genético, como interesse difuso de continuidade da espécie,
em função do qual se dirige a proteção legal conferida aos embriões, quando não forem
utilizados para fins de reprodução, justificaria a proteção pelo ordenamento, não de forma
absoluta, pois, inevitavelmente, cederia em favor de outros interesses e direitos fundamentais.
No mesmo sentido, a conclusão contida na ementa do Acórdão da ADI 3.510144, no
sentido de que o embriao in vitro e um bem a ser protegido, mas nao uma pessoa no sentido
biografico a que se refere a Constituicao. Assim, a proteção legal advém não pelo fato de ser
um embrião, mas em virtude do material genético que o mesmo possui.
Isso explica, conforme Perlingieri145, porque a produção de embriões por FIV é
considerada pelo ordenamento como fato jurídico, ou seja, evento idôneo a ter relevância
jurídica para o interesse geral, considerando que o Estado não assiste passivo à realização de
atos dos particulares, mas exprime juízos valorativos sobre alguns desses atos. Isso é o mesmo
que se dá com os atos lícitos que resultam na produção de embriões para fins de reprodução
assistida, que passam então a ser merecedores de tutela à luz dos princípios fundamentais do
144BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 3.510. Relator: Min. AYRES BRITTO, 29 maio 2008. Brasília: DJe
nº 96, publicação 28 maio 2010, Ementário nº 2403 – 1, p. 137. 145PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. Tradução de: Maria Cristina De Cicco. 3. ed. rev. e ampl. Rio
de Janeiro: Renovar, 2002, p. 92.
58
ordenamento, em razão do dever estatal de preservação da diversidade e integridade do
patrimônio genético do País.
O dever do Estado de proteger a diversidade e integridade do patrimônio genético se
estende à coletividade, e é também exercido por meio da fiscalização das entidades dedicadas
à pesquisa e manipulação do material genético, conforme estabelece o art. 225, § 1º, II, da CF.
Entendemos, pois, que, diante desse tratamento constitucional, o Estado exerceria a
função de gestor de um conjunto de bens de uso comum de todos elevado ao status de bem
difuso, que inclusive diz respeito às gerações vindouras.146
Nesse sentido, dispõe o art. 225, §1º, II, da CF147:
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de
uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder
Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e
futuras gerações.
§ 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:
[...] II - preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e
fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético [...].
(grifo nosso)
Por essas razões, o embrião crioconservado não se enquadra em nova categoria ou
tertium genus, apesar da tutela diferenciada conferida pelo ordenamento jurídico ao
patrimônio genético que carrega, em vista de ceder em confronto com a tutela atribuída aos
indivíduos dotados de personalidade jurídica, por decorrência da titularidade do direito de
inviolabilidade à vida.
Além disso, os interesses tutelados pelo ordenamento jurídico, que justificam o
congelamento obrigatório, não estão ligados ao embrião in vitro, mas sim aos genitores,
titulares do patrimônio genético, dentro de uma situação subjetiva juridicamente relevante que
permeia o contrato de RA. Assim, partindo do racionalidade desenvolvida por Perlingieri148,
na relação jurídica149 referente ao negocio de reproducao humana assistida restariam
envolvidas apenas as situações subjetivas: do(a) paciente, do(a)(s) eventual beneficiario(a)(s)
146SILVA, Ivan de Oliveira. Biodireito, bioética e patrimônio genético brasileiro. – São Paulo: Editora Pillares,
2008, p. 38. 147BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Presidência da República, [2017]. 148PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. Tradução de: Maria Cristina De Cicco. 3. ed. rev. e ampl. Rio
de Janeiro: Renovar, 2002, p. 108-115. 149Pietro Perlingieri explica que pode haver situações subjetivas sem sujeito, desde que haja um interesse
juridicamente tutelado pelo ordenamento, concluindo que o sujeito em si não é parte imanente da situação
subjetiva, e que esta última pode constituir um centro de interesses mais ou menos complexo. Com relação à
relação jurídica, o autor a define, do ponto de vista estrutural, como indispensável para realizar a ligação entre
centros de interesses, ao passo que o sujeito figuraria como elemento externo à relação e à situação; e sob o
ponto de vista funcional, a relação teria, ainda, a função de disciplina ou harmonização de opostos centros de
interesses.
59
e da clinica de fertilizacao; e como centro de interesse complexo (enquanto situação subjetiva
sem sujeito) figuraria a crianca por nascer, desde o momento em que fosse considerada
nascitura (concepto intrauterino), ante à ausência de personalidade jurídica.
A partir dessa reflexão, o que explicaria a imposição do dever de congelamento por
um prazo de três anos? O patrimônio genético contido no embrião in vitro restaria
desprotegido, caso a lei autorizasse a destinação para pesquisa, em menos tempo?
Por certo que desse interesse tutelado, que torna o embrião in vitro elegível à tutela
protetiva, conforme ao interesse de seu titular e ao da coletividade150, nasce uma situação
subjetiva complexa, composta de poderes, deveres, obrigações e ônus, configurando também
uma função de solidariedade151, da qual resulta um conflito com a liberdade individual, em
que o embrião in vitro figura como objeto, e não centro de interesses. A Lei de Biossegurança
busca resolver esse conflito por meio da tutela protetiva reconhecendo ao embrião in vitro o
tratamento de bem jurídico fora do comércio, com inegável importância para realização de
pesquisas voltadas à cura e terapia de diversas doenças, mediante a concordância dos
fornecedores do material genético.
Desse modo, a solução dada pela Lei de Biossegurança que possibilita a destinação de
embriões produzidos por FIV, para pesquisa, em conformidade com a vontade do titular, e em
sintonia com o interesse social, em relação à qual propomos a exclusão do dever de
congelamento, afigura-se consentânea com a racionalidade jurídica que enxerga o embrião
como bem jurídico fundamental. Isso porque o uso em pesquisa, que acarreta a destruição do
excedente de embriões produzidos por FIV, também pode ser tido como uma forma de
proteção, resultando em benefício ao ser humano, enquanto membro de uma espécie, através
de descobertas científicas reconhecidas como de grande importância para o tratamento e cura
de doenças, muitas delas degenerativas.
Infere-se, ademais, que a natureza jurídica do embrião como bem jurídico fundamental
equivale à sua subtração da lógica do mercado, razão pela qual o sujeito que dele é titular não
pode aliená-lo, assim como também não pode vender sua liberdade, enquanto direito
fundamental.
150Fala-se em interesse da coletividade, na medida em que se vislumbra que os interesses presentes em
tratamentos de reproducao assistida, com propositos preponderantemente existenciais, sao igualmente
funcionalizados à tutela da pessoa humana, pelo fato de a Lei de Biosseguranca prever o uso dos embriões
excedentários em pesquisa, para fins de cura e terapia. 151PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. Tradução de: Maria Cristina De Cicco. 3. ed. rev. e ampl. Rio
de Janeiro: Renovar, 2002, p. 121.
60
Sobre o dever de manutenção das condições indispensáveis à sobrevivência da
espécie, Helena Pereira de Melo152 afirma que:
Na verdade, embora não seja possível identificar com rigor quais serão os interesses
dos indivíduos que habitarão o Planeta num futuro remoto, é possível proceder à
identificação de interesses coletivos alargados ao conjunto os seres humanos
considerados ao longo das gerações, como seja o da manutenção das condições
indispensáveis à sobrevivência da espécie e a uma vida condigna.
Tal entendimento se coaduna com a redefinição do conceito de bens proposta por
Luigi Ferrajoli153, para quem os “bens fundamentais”, que nao sao coisas objeto de direitos
patrimoniais, a exemplo dos órgãos do corpo humano, apresentam a sua indisponibilidade
como traço distintivo, que os torna extra commercium, e relevantes como objeto de tutela,
para evitar lesão ou ameaça de lesão a interesses da sociedade, em benefício das gerações
atuais e futuras.
Outro aspecto destacado por Ferrajoli154 como sendo importante ao bem fundamental é
a sua subtração do arbítrio das decisões políticas, reafirmando o paradigma dos direitos
fundamentais, através da estipulação de sua indisponibilidade aos poderes públicos, diante de
sua inviolabilidade e obrigação de garantia de fruição a todos, bem como em função das
garantias e limites impostos aos poderes privados.
Para além disso, os bens fundamentais se distinguiriam, ainda, dos bens patrimoniais
pela sua acessibilidade garantida a todos (pro indiviso) e a cada um, porque objeto de tantos
outros direitos fundamentais155, mas, tal qual o direito ao patrimônio genético qualificado
como interesse difuso do Estado e da coletividade, apenas alguns direitos fundamentais têm
como objeto bens fundamentais.
Mas é importante ressaltar que a categoria de bens difusos não se encaixa na dicotomia
público x privado, tampouco compreende um mero apêndice dos bens públicos, haja vista que
aqueles possuem natureza e tratamento diverso pela Constituição de 1988, no art. 129, III,
conforme análise de Silva156, por isso a importância de distingui-los de outras categorias de
bens jurídicos.
152MELO, Helena Pereira de. Manual de biodireito. 1. ed. – Coimbra: Edições Almedina, 2008, p. 181. 153FERRAJOLI, Luigi. Por uma Teoria dos Direitos e dos Bens Fundamentais. Traducao de Alexandre Salim et
al. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora Ltda., 2011. E-book. 154FERRAJOLI, Luigi. Por uma Teoria dos Direitos e dos Bens Fundamentais. Traducao de Alexandre Salim et
al. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora Ltda., 2011. E-book. 155FERRAJOLI, Luigi. Por uma Teoria dos Direitos e dos Bens Fundamentais. Traducao de Alexandre Salim et
al. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora Ltda., 2011. E-book. 156SILVA, Ivan de Oliveira. Biodireito, bioética e patrimônio genético brasileiro. – São Paulo: Editora Pillares,
2008, p. 37.
61
Logo, é de sublinhar que o artigo 98 do Código Civil de 2002, em verdade, apenas
repete uma tradição jurídica que, quanto à classificação dos bens, não se coaduna
mais com a realidade do século em que foi concebido, pois desconhece uma via
intermediária de interesses muito presente nos séculos XX e XXI.157
Nesse aspecto, Ferrajoli158 nos oferece uma classificação estrutural, que distingue três
classes de bens fundamentais: a) os bens personalíssimos, também chamados de direitos
biológicos à integridade pessoal, que têm por objeto direitos passivos sob rígida imunidade de
sua violação, apropriação ou utilização por parte de outros, tal como os órgãos do corpo
humano, sobre os quais reside a garantida de indisponibilidade; b) os bens comuns, chamados
pelo autor de direitos ecológicos, que têm por objeto direitos ativos de liberdade ou direito
acessível a todos, consistentes em expectativas negativas, como proibições de lesões ao ar, e a
outros bens ecológicos do planeta; c) e os bens sociais, consistentes em expectativas
positivas, tendo por objeto direitos sociais à subsistência e à saúde: como a água e alimentos
básicos.
Portanto, no que se refere aos bens personalíssimos, estreitamente ligados aos direitos
vitais das pessoas, Ferrajoli159 aponta que o limite imposto à autonomia privada sobre aqueles
bens reflete uma forma de paternalismo, que está à base da indisponibilidade dos direitos
fundamentais, como forma de proteção, para evitar que deixem de ser fundamentais.
Por sua vez, os bens comuns representam o patrimônio ecológico da humanidade,
apresentando algumas características em comum com os bens personalíssimos, como a
subtração à apropriação privada. Contudo, diversamente dos personalíssimos, os bens comuns
têm acessibilidade a todos pro indiviso, e por tal razão são reconhecidos em muitos tratados
internacionais como “patrimonio comum da humanidade”, no sentido de pertencimento
comunitário160.
Em favor do reconhecimento da função social de algumas situações subjetivas, Pietro
Perlingieri161 defende que:
157SILVA, Ivan de Oliveira. Biodireito, bioética e patrimônio genético brasileiro. – São Paulo: Editora Pillares,
2008, p. 36. 158FERRAJOLI, Luigi. Por uma Teoria dos Direitos e dos Bens Fundamentais. Traducao de Alexandre Salim et
al. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora Ltda., 2011. E-book. 159FERRAJOLI, Luigi. Por uma Teoria dos Direitos e dos Bens Fundamentais. Traducao de Alexandre Salim et
al. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora Ltda., 2011. E-book. 160FERRAJOLI, Luigi. Por uma Teoria dos Direitos e dos Bens Fundamentais. Traducao de Alexandre Salim et
al. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora Ltda., 2011. E-book. 161PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. Tradução de: Maria Cristina De Cicco. 3. ed. rev. e ampl. Rio
de Janeiro: Renovar, 2002, p. 107.
62
Existem situacões que “sao” funcões sociais, outras que “tem” funcao social. No
ordenamento, o interesse é tutelado enquanto atende não somente ao interesse do
titular, mas também àquele da coletividade. Na maior parte das hipóteses o interesse
dá lugar portanto a uma situação subjetiva complexa, composta tanto de poderes
quanto de deveres, obrigações, ônus. A complexidade das situações subjetivas – pela
qual em cada situação estão presentes momentos de poder e de dever, de maneira
que a distinção entre situações ativas e passivas não deve ser entendida em sentido
absoluto – exprime a configuração solidarista do nosso ordenamento constitucional.
Ferrajoli162 explica, ainda, que, a proteção do bem fundamental viria sob a forma de
sua subtração ao mercado e ao arbítrio das decisões políticas, dado que suas garantias
equivalem a limites impostos, através da estipulação de sua inviolabilidade, no âmbito
privado, e ao mesmo tempo, a obrigação de garantir a todos a sua fruição, no âmbito público.
Por outro lado, considerada a natureza dos interesses envolvidos no uso da técnica de
FIV para fins de reprodução assistida, a individuação ou qualificação desse fato resulta na
produção de um efeito constitutivo imputado pelo ordenamento jurídico, consistente na
situação jurídica que estabelece o dever de subtrair do mercado os embriões in vitro, ora
qualificados como bens fundamentais personalíssimos, mas que não se legitima quando se
estabelece o dever legal de congelamento, segundo a lógica estabelecida por Pietro
Perlingieri163.
Sob o perfil funcional164, fica ainda mais clara a ausência de opostos centros de
interesses relacionados, cuja disciplina se dá pela relação jurídica, ante a inexistência de uma
situação subjetiva a que corresponda um suposto direito ao congelamento dos embriões in
vitro viáveis por três anos.
Estabelecida a ligação entre situação e objeto, delineia-se a titularidade, que
entendemos estar colocada em relação aos genitores, considerando que são eles partes
legítimas para decidir sobre o destino dos embriões excedentários, exercendo a situação
subjetiva; enquanto o objeto seria a produção de embriões por FIV, para fins de reprodução
assistida.
Logo, no tocante à situação jurídica produzida pelo Direito, entendemos que o dever
de congelar embriões viáveis não se legitima, face aos princípios fundamentais, em especial o
que tutela a liberdade de planejamento familiar, sendo esse um ponto que vem sendo
ressaltado neste trabalho.
162FERRAJOLI, Luigi. Por uma Teoria dos Direitos e dos Bens Fundamentais. Traducao de Alexandre Salim et
al. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora Ltda., 2011. E-book. 163PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. Tradução de: Maria Cristina De Cicco. 3. ed. rev. e ampl. Rio
de Janeiro: Renovar, 2002, p. 96-97. 164PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. Tradução de: Maria Cristina De Cicco. 3. ed. rev. e ampl. Rio
de Janeiro: Renovar, 2002, p. 116.
63
A condição de bem jurídico também se confirma pela ausência de autonomia e de
interesses próprios do embrião in vitro, que se encontram num hiato entre o momento da
concepção extrauterina e a transferência ao útero, circunstância que o distingue do nascituro,
este como ser em gestação, ao qual o Direito reserva uma proteção jurídica mais ampla,
considerando a maior relevância do significado de sua existência no âmbito social.
Nesse sentido, entende Queiroz165 que:
Este quadro conceitual do embrião permite denotar que, assim como ocorre para o
fim da existência humana, o seu início também não é um dado pontual, mas sim uma
escolha advinda de composições dos vários aspectos culturais definidores de uma
sociedade.
Daniela Grechi166 ratifica a distinção entre embrião criopreservado e nascituro,
afirmando que “[...] não há como se advogar em favor da equiparação entre ambos, na medida
da diferenciação biológica e jurídica existente entre eles.”
Assim, considerando que a lei não confere proteção jurídica absoluta ao embrião in
vitro, uma vez aventada a possibilidade de sua destruição pelo uso em pesquisa, orienta-se
para a confirmacao da tese de que “[...] não se tem um direito inato e primordial à
personalidade.”167
Do mesmo modo, Dworkin168 afirma que “[...] Também não é suficiente, para que
alguma coisa tenha interesses, que esteja viva e em processo de transformação em algo mais
maduro [...]”, assim como nao e bastante que o embrião esteja em processo de transformação
de um ser humano para ser considerado como indivíduo titular de direitos.
Ademais, a personalidade seria uma qualidade atribuída pela lei, desde que fossem
verificadas determinadas condições, como o nascimento com vida, que, conforme Tallarico e
Martins, encontra-se disposta em dois niveis: “[...] o primeiro na Constituição da República
de 1988, sendo os princípios basilares; e, em segundo nível, no CC de 2002, trata-os de
maneira mais específica e pormenorizada.”169
165QUEIROZ, Juliane Fernandes. Reprodução assistida post mortem : aspectos jurídicos de filiação e sucessório.
Curitiba : Ed. UFPR, 2015, p. 139. 166GRECHI, Daniela. O uso das células-tronco embrionárias : incertezas e novas promessas para a medicina do
futuro. – Caxias do Sul : Educs, 2009, p. 35. 167BARBOZA, Heloisa Helena. Proteção jurídica do embrião humano. In: Ferrara, Francesco apud Romeo-
Casabona, Carlos María; Queiroz, Juliane Fernandes. Biotecnologia e suas implicações ético-jurídicas. – Belo
Horizonte: Del Rey, 2004, p. 253. 168 DWORKIN, Ronald. Domínio da vida : aborto, eutanásia e liberdades individuais ; tradução Jefferson Luiz
Camargo ; revisão da tradução Silvana Vieira. – 2ª ed. – São Paulo : Editora WMF Martins Fontes, 2009, p.
20. 169TALLARICO, Rafael; MARTINS, Gleison José Pereira. Biotecnologia, Direito e Ética – Belo Horizonte:
Editora D’Placido, 2014, p. 212.
64
Em complemento, afirma Queiroz170 que:
Tal perspectiva não conduz à afirmação de que o embrião não mereça nenhuma
forma de tutela, mas sim que esta tutela não está vinculada ao fato de ele ser
considerado ou não pessoa. A justificativa do dever de tutela do embrião depende de
razoes de outra ordem e a quantidade da tutela depende do aspecto sociocultural,
podendo ser inferior, igual ou mesmo superior ao da pessoa.
Como alternativa ao crescente número de embriões excedentários congelados, no lugar
de se estabelecer um prazo mínimo de congelamento de três anos, oportunizar aos sujeitos à
possibilidade de escolha quanto ao destino de seus embriões excedentários congelados
assegura maior respeito à liberdade de planejamento familiar. Esse mesmo raciocínio
estabelece uma diferença entre o embrião implantado e aquele produzido in vitro, sem,
contudo, atribuir a este o status de simples coisa, pois detentor de tutela protetiva, como a
exclusão da lógica do mercado, bem como proporciona uma alternativa legítima aos que
forem abandonados em clínicas, que poderão destiná-los para pesquisa, evitando-se a
provável deterioração com o passar dos anos.
170QUEIROZ, Juliane Fernandes. Reprodução assistida post mortem : aspectos jurídicos de filiação e sucessório.
Curitiba : Ed. UFPR, 2015, p. 144.
65
4 AUTONOMIA REPRODUTIVA E PLANEJAMENTO FAMILIAR COMO
DIREITO FUNDAMENTAL
4.1 Antecedentes históricos
A compreensão dos direitos fundamentais ligados à pessoa humana como direitos
humanos teve início na Magna Carta da Inglaterra do século XIII, documento legal que
restringiu o poder absoluto do monarca sobre seus cidadãos.
A historicidade dos direitos humanos é percebida desde o contexto da luta pela
independência dos Estados Unidos da América, culminando na Declaração de Direitos da
Virgínia, de 12 de junho de 1776171, quando foi proclamado em sua cláusula primeira que:
“[...] todos os homens são por natureza livres e independentes [...]”.
Em 26 de agosto de 1789, foi a vez de a Assembleia Nacional Francesa marcar o
início de uma nova era, aprovando a “Declaracao dos Direitos do Homem e do Cidadao”,
inspirada nos ideais revolucionários iluministas de igualdade, liberdade individual e direito de
resistência à opressão, fortemente influenciados pela filosofia jusnaturalista.
Ressalve-se, no entanto, que acerca da influência sobre os ideias revolucionários,
haveria, segundo Marcela Varejão172, duas conotações do direito natural: uma mais
conservadora, que justificaria a ordem natural dos monarcas absolutos, como arquétipo de
autoridade pública vigente desde a Antiguidade até a Idade Média, e outra como padrão de
julgamento das leis escritas e das ações dos governantes, a qual serviu de embasamento
teórico para as revoluções liberais, a exemplo da Revolução Francesa.
Contudo, a tradição liberal dos direitos do homem, congregada em torno do laissez-
faire, que vai do período do século XVII até a metade do século XIX, teve seu declínio
marcado pela dificuldade de enfrentar os problemas sociais gerados pelo capitalismo, que
desencadearam as lutas populares dos séculos XIX e XX, até o advento do chamado Welfare
State, preocupado em promover o bem-estar social, e responsável pela introdução de direitos
sociais nas Cartas constitucionais, período que faz parte da história do constitucionalismo
moderno, durante o qual sobressai a Constituição de Weimar.
Inaugurada uma nova fase histórica de internacionalização dos direitos humanos
através da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, em razão da proclamação de
171ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. Declaração de direitos formulada pelos representantes do bom povo de
Virgínia. Virgínia, 16 jun. 1776. 172VAREJÃO, Marcela. Sobre o Direito Natural na Revolução Francesa. Rev. Inf. legisl., Brasília, ano 28, n.
109, p. 211-222, jan./mar. 1991. p. 211-212.
66
diversos direitos fundamentais pela Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU), deu-se
início ao processo de inclusão de novas categorias de direitos supraestatais, não mais restritos
ao interior dos Estados.
Tal como no direito internacional, a multiplicidade de fontes dos direitos fundamentais
é admitida no ordenamento jurídico brasileiro, que prevê, expressamente, a possibilidade de
ampliação de novos direitos e garantias fundamentais, decorrentes inclusive de tratados
internacionais de que o Brasil seja parte, conforme art. 5º, § 2º, da CF.
Nesse norte, para Norberto Bobbio173, o reconhecimento e a proteção dos direitos do
homem estão na base das Constituições modernas, sem os quais não se pode falar em
democracia, e condições mínimas para solução pacífica dos conflitos. Bobbio174 afirma
também que esses direitos, denominados naturais, por mais fundamentais que sejam, são
históricos, isto é, resultado das lutas pela emancipação do homem, em defesa do
reconhecimento de novas liberdades, tese da qual não mais se afastou.
Destaca Ferrajoli175 que nenhum desses direitos surgiu por acaso, mas foram
conquistados por rupturas institucionais, como as que ocorreram nas grandes revoluções
americana e francesa. Tais direitos tiveram a finalidade de pôr limites aos poderes opressivos,
como os das Igrejas e dos governos políticos, num espaço em que o homem era tratado como
animal político tal qual descrito no “modelo aristotelico”, o que permitiu justificar, durante
séculos, o Estado paternalista, caracterizado por governos despóticos tradicionais, em que o
indivíduo era comparado às crianças, e para o seu próprio bem não possuía nenhum dos
direitos de liberdade.176
Como visto, o reconhecimento dos direitos humanos teria ocorrido de modo gradual,
começando pela liberdade pessoal e liberdades negativas dos camponeses e assalariados, que
são chamados direitos de primeira geração. Vieram depois os direitos sociais ou de segunda
geração. Em seguida, foram reconhecidos os de terceira geração, sendo o mais importante
deles o direito de viver num ambiente não poluído. Por fim, foram delineados os de quarta
173BOBBIO, Norberto. A era dos direitos; tradução de Carlos Nelson Coutinho; apresentação de Celso Lafer. –
Nova ed. – Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 1. 174BOBBIO, Norberto. A era dos direitos; tradução de Carlos Nelson Coutinho; apresentação de Celso Lafer. –
Nova ed. – Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 5. 175FERRAJOLI, Luigi. Por uma Teoria dos Direitos e dos Bens Fundamentais. Traducao de Alexandre Salim et
al. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora Ltda., 2011. E-book. 176BOBBIO, Norberto. A era dos direitos; tradução de Carlos Nelson Coutinho; apresentação de Celso Lafer. –
Nova ed. – Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 70.
67
geração, referentes aos efeitos das pesquisas biológicas e de manipulação do patrimônio
genético do indivíduo.177
Nesse espectro, numa quinta geração estão inseridos os direitos reprodutivos,
conforme entende Queiroz178:
Os direitos reprodutivos, enquadrados na categoria dos direitos humanos de quinta
geração, assumem, nos diversos ordenamentos, nomenclaturas, tais como: “direito à
escolha reprodutiva”, “direito à liberdade reprodutiva”, “direito à escolha
reprodutiva”, “direito ao processo decisional reprodutivo”, todas voltadas à
impostação de uma fenomenologia de que o indivíduo tem direito ao controle da
própria sexualidade e de sua vida reprodutiva.
Assim, a evolução e gradual reconhecimento dos direitos fundamentais são provas de
que não existem tais direitos por natureza, e aos quais também não é concebível a
possibilidade de atribuir um fundamento absoluto.179 Dado o seu relativismo, são poucos os
direitos fundamentais que não concorrem com outros, sendo a proteção, e não a justificação, o
principal problema que se enfrenta, hodiernamente, para impedir que sejam violados, apesar
das solenes declarações.180
Nota-se, pois, que, dentre os temas de maior debate no meio jurídico, sobressai o dos
direitos fundamentais, sobre o qual se debruçam a filosofia do direito, a teoria do Estado, o
Direito Constitucional entre outros ramos do Direito.181
Na definição proposta por Luigi Ferrajoli182, sao “direitos fundamentais” os direitos
subjetivos relacionados, universalmente, a “todos” os seres humanos dotados do status de
pessoa, com ou sem capacidade de agir, ou cidadania.
Por sua vez, anota Ferreira Filho183 que a doutrina dos direitos fundamentais tem
raízes na filosofia do direito, a qual mostra interesse especial em questões complexas e
abstratas, além de inserir-se no cotidiano do poder estatal, apresentando, por essa razão
177BOBBIO, Norberto. A era dos direitos; tradução de Carlos Nelson Coutinho; apresentação de Celso Lafer. –
Nova ed. – Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 5. 178QUEIROZ, Juliane Fernandes. Reprodução assistida post mortem : aspectos jurídicos de filiação e sucessório.
Curitiba : Ed. UFPR, 2015, p. 64. 179BOBBIO, Norberto. A era dos direitos; tradução de Carlos Nelson Coutinho; apresentação de Celso Lafer. –
Nova ed. – Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 18. 180BOBBIO, Norberto. A era dos direitos; tradução de Carlos Nelson Coutinho; apresentação de Celso Lafer. –
Nova ed. – Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 23-25. 181FERREIRA FILHO, Manoel Goncalves Aspectos do direito constitucional contemporaneo. 3. ed. – Sao Paulo
: Saraiva, 2011, p. 333. 182FERRAJOLI, Luigi. Por uma Teoria dos Direitos e dos Bens Fundamentais. Traducao de Alexandre Salim et
al. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora Ltda., 2011. E-book. 183FERREIRA FILHO, Manoel Goncalves Aspectos do direito constitucional contemporaneo. 3. ed. – Sao Paulo
: Saraiva, 2011, p. 333.
68
inegável importância para a teoria do Estado; já quanto ao direito constitucional, constituiria o
próprio cerne deste.
Vê-se que, desde seu primórdio, a função principal da Constituição era a garantia de
direitos contra o abuso dos mais poderosos, estabelecendo limites organizatórios ao poder,
através de um sistema de freios e contrapesos, que se tornou o eixo central do que se
convencionou chamar de pacto político, destinado a prevenir ataques aos direitos naturais do
homem, refletindo, segundo Ferreira Filho184, a nítida vinculação entre a Constituição
(verdadeira) e a proteção dos direitos fundamentais.
Apesar de tal vinculação ainda persistir, outras surgiram com a evolução da sociedade,
alargando o campo da Constituição, onde se avultaram questões como o plano de ação
econômica e social. Isso não implicou, contudo, a perda da importância dos direitos e
garantias fundamentais, sobretudo porque estes se incluem entre as limitacões materiais ao
Poder Constituinte derivado.
De acordo com a classificação de direitos fundamentais de Ferreira Filho, os de
primeira geracao encontram-se nas liberdades publicas, seguidos pelos direitos economicos e
sociais de segunda geração, e, depois, pelos de terceira geração, representados pelo direito ao
meio ambiente e à comunicacao. Contudo, o referido autor185 reconhece que se multiplicou o
numero de direitos apresentados como fundamentais, implicitos ou advenientes de tratados
internacionais, até porque o próprio texto constitucional não proíbe que novos direitos
venham a ser reconhecidos em virtude do regime e dos princípios por ele adotados, conforme
§ 2o do art. 5o.
No entanto, para Ferreira Filho186, nem todos os direitos declarados nos tratados ou
nas Constituicões podem ser considerados verdadeiros direitos fundamentais, o que levaria à
distincao entre direitos humanos fundamentais formais e direitos humanos fundamentais
substanciais, estes portadores de um vinculo com a natureza humana, do relevo da liberdade
pessoal, da igualdade, da propriedade, da seguranca, por exemplo, mesmo que eventualmente
nao tenha sido reconhecida a sua fundamentalidade, e aqueles apenas por estarem inscritos na
Lei Suprema ou em tratado internacional.
A desvalorizacao do sentido de “fundamental”, torna-o nao equivalente a “essencial”,
mas meramente “importante”, e esbarra no inflacionamento dos direitos fundamentais e na
184FERREIRA FILHO, Manoel Goncalves Aspectos do direito constitucional contemporaneo. 3. ed. – Sao Paulo
: Saraiva, 2011, p. 333-334. 185FERREIRA FILHO, Manoel Goncalves Aspectos do direito constitucional contemporaneo. 3. ed. – Sao Paulo
: Saraiva, 2011, p. 334. 186FERREIRA FILHO, Manoel Goncalves Aspectos do direito constitucional contemporaneo. 3. ed. – Sao Paulo
: Saraiva, 2011, p. 337-338.
69
necessidade de se ter um criterio de solucao para eventuais conflitos, conforme reflexão de
Manoel Gonçalves Ferreira Filho187. Por isso, a importância de definir critérios objetivos para
identificação de direitos fundamentais substanciais, como solução para eventuais conflitos,
embora contestada a hierarquia entre direitos ditos fundamentais.
Inserido nesse vínculo com a natureza humana, o direito ao livre planejamento
familiar pode ser entendido como uma das dimensões do direito à liberdade, consistente no
poder outorgado à família de autorregulamentação das relações entre seus membros, no
espaço privado, conforme previsto no art. 12o da Declaracao Universal dos Direitos
Humanos188, in verbis:
Ninguem sofrera intromissões arbitrarias na sua vida privada, na sua familia, no seu
domicilio ou na sua correspondencia, nem ataques à sua honra e reputacao. Contra
tais intromissões ou ataques toda a pessoa tem direito a proteccao da lei. (grifo
nosso)
Nessa esteira, consoante art. 226, §7o, da nossa CF, o direito à liberdade de
planejamento familiar, sendo uma espécie de liberdade que se funda nos princípios da
dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, encontra-se protegido contra
qualquer tipo de coerção, ante à sua natureza jurídica fundamental, suscitando do Estado uma
atuação positiva ou prestacional, no sentido de propiciar recursos educacionais e científicos à
sua plena satisfação, ou proteção efetiva.
A diretriz constitucional, a Lei n. 9.263/96, responsável por regular o direito ao
planejamento familiar, estabelece em seu art. 2o que:
Art. 2º Para fins desta Lei, entende-se planejamento familiar como o conjunto de
ações de regulação da fecundidade que garanta direitos iguais de constituição,
limitação ou aumento da prole pela mulher, pelo homem ou pelo casal.
Demais disso, o direito à liberdade de planejamento familiar remete à ideia de
autodeterminação, notadamente quanto aos direitos sexuais e reprodutivos, que, por sua vez,
determinam uma atuação negativa do Estado, de reconhecimento e proteção.
Para Juliane Fernandes Queiroz189:
187FERREIRA FILHO, Manoel Goncalves Aspectos do direito constitucional contemporaneo. 3. ed. – Sao Paulo
: Saraiva, 2011, p. 338. 188ORGANIZACAO DAS NACOES UNIDAS. Declaracao universal dos direitos humanos. Paris, 10 dez. 1948.
Disponivel em: <https://www.ohchr.org/EN/UDHR/Documents/UDHR_Translations/por.pdf>. Acesso em: 30
jan. 2019. 189QUEIROZ, Juliane Fernandes. Reprodução assistida post mortem : aspectos jurídicos de filiação e sucessório.
Curitiba : Ed. UFPR, 2015, p. 82.
70
O planejamento familiar pode ser entendido como um confronto entre a liberdade de
escolha individual, a liberdade de ação, e a consciência das responsabilidades.
Assim, as consequências que aquela escolha, aquela ação leva a assumir é um dos
limites impostos ao direito de procriar.
Entendido como direito fundamental, de eficácia plena, garantido pelo art. 226, §7o, da
CF, o direito à liberdade de planejamento familiar significa a autonomia para conduzir a
própria vida, que, para Habermas190, é assegurada pela moral, com base na qual o conceito de
universalidade das normas válidas exige levar em consideração todos os projetos individuais
de vida de todos os indivíduos, como membros de uma comunidade inclusiva, que não exclui
ninguém, sobretudo nos casos de conflito. Porém, é complexa a tarefa de sempre harmonizar a
vontade de todos, considerando que o Direito tende a escolher uma visão inclusiva-exclusiva
sobre determinado assunto de interesse social.
Inobstante isso, a legislação reconhece o direito ao respeito da vida familiar, tutelando
a escolha de seu modus vivendi, visto como bem jurídico com origem no direito à
inviolabilidade do direito à vida, fonte primária de outros bens como a intimidade,
notadamente proibitiva contra interferências do Estado sobre a autonomia familiar (art. 5o, X,
da CF, e art. 1.513 do CC).191
Por isso entende Queiroz192 que:
Em defesa da vida privada e da intimidade, culminando na própria tutela da
integridade, sempre inspirada pela garantia da pessoa, é conferida liberdade familiar
para se autodeterminar na busca de seus interesses.
Com a evolução, a passos largos, da ciência da reprodução, a possibilidade de uso de
embriões para pesquisa passou a fazer parte do debate jurídico sobre a liberdade de
190HABERMAS, Jürgen. O futuro da natureza humana : a caminho de uma eugenia liberal? ; tradução Karina
Jannini ; revisão da tradução Eurides Avance de Souza. - São Paulo : Martins Fontes, 2004, p. 78. 191QUEIROZ, Juliane Fernandes. Reprodução assistida post mortem : aspectos jurídicos de filiação e sucessório.
Curitiba : Ed. UFPR, 2015, p. 44-45. 192QUEIROZ, Juliane Fernandes. Reprodução assistida post mortem : aspectos jurídicos de filiação e sucessório.
Curitiba : Ed. UFPR, 2015, p. 47.
71
planejamento familiar, de que tratam algumas de nossas leis (Lei de Biossegurança193),
dispositivos deontológicos (Resolução CFM nº 2.168/2017194) e jurisprudência.
4.2 Direitos reprodutivos
Em matéria de reprodução humana, não há como deixar de creditar o desenvolvimento
tecnológico ao fenômeno da infertilidade, como entrave à concretização da saúde do
indivíduo, e seu inconformismo com o dado natural.
Não apenas por dizer respeito à autonomia individual em relação ao próprio corpo, os
direitos reprodutivos são fundamentais para a promoção do livre desenvolvimento da
personalidade do ser humano, visto que são direitos, eminentemente, existenciais. Assim, o
emprego de técnicas de RA passou a ser visto como algo muito útil ao pleno desenvolvimento
da pessoa.
Com o triunfo do individualismo, o ser humano passou, não mais, a aceitar,
passivamente, o seu destino natural, razão pela qual um diagnóstico de infertilidade deixou de
ser impedimento à viabilização da concretude do desejo procriativo, de onde veio o impulso
para o progresso, que modificou a realidade das limitações biológicas, ao mesmo tempo em
que promoveu a transformação cultural de múltiplos modos de vida e formas de organização
social195.
Sobre importância das novas tecnologias biomédicas, salienta, ainda, Juliane
Fernandes Queiroz196 que:
A infertilidade foi o elemento propulsor do desenvolvimento da tecnologia de
reprodução humana medicamente assistida. A procriação humana que,
anteriormente, só se efetivava por meios naturais, evoluiu para um segundo estágio,
em que já é possível conceber uma criança através de procedimentos externos,
médicos e científicos.
193Art. 5º É permitida, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de
embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo procedimento, atendidas
as seguintes condições:
I – sejam embriões inviáveis; ou
II – sejam embriões congelados há 3 (três) anos ou mais, na data da publicação desta Lei, ou que, já
congelados na data da publicação desta Lei, depois de completarem 3 (três) anos, contados a partir da data de
congelamento. 194VI –DIAGNÓSTICO GENÉTICO PRÉ-IMPLANTACIONAL DE EMBRIÕES (Resolução CFM nº
2.168/2017)
1. As técnicas de RA podem ser aplicadas à seleção de embriões submetidos a diagnóstico de
alterações genéticas causadoras de doenças –podendo nesses casos ser doados para pesquisa ou
descartados, conforme a decisão do(s) paciente(s) devidamente documentada em consentimento informado
livre e esclarecido específico. 195 QUEIROZ, Juliane Fernandes. Reprodução assistida post mortem : aspectos jurídicos de filiação e sucessório.
Curitiba : Ed. UFPR, 2015, p. 37. 196 QUEIROZ, Juliane Fernandes. Reprodução assistida post mortem : aspectos jurídicos de filiação e sucessório.
Curitiba : Ed. UFPR, 2015, p. 21.
72
Todavia, a capacidade de ação técnica sobre o dado natural não autoriza a intervenção
humana irresponsável, em detrimento de todo o contexto social, para satisfação das
necessidades e desejos de um indivíduo, já que, no campo médico, a bioética estabelece
limites éticos sobre as ações humanas.
Desse modo, os direitos reprodutivos são constituídos por normas de direitos
humanos, assim fundamentais, inseridos em categoria heterogênea que garante o exercício
individual, livre, responsável e universal da sexualidade e reprodução humana. Podem ser
conceituados como direitos de liberdade individual necessários à realização do livre exercício
da autonomia reprodutiva da pessoa, tais como: direito à saúde sexual e reprodutiva, direito
aos benefícios do progresso científico, direito à liberdade e não discriminação quanto às
escolhas, direito à informação para tomada de decisão, direito à autodeterminação e livre
escolha da maternidade e paternidade, direito à proteção social à maternidade, à paternidade, à
família etc.
Segundo Miriam Ventura197, eles não se limitam à simples proteção da procriação
humana, como preservação da espécie, mas envolvem a realização conjunta dos direitos
individuais e sociais que estabelecem a equidade nas relações.
Frutos desse permanente processo de construção, os direitos reprodutivos consistem,
portanto, na liberdade de decidir se, como e quando reproduzir, de forma responsável, livre de
coerção, e discriminação, com acesso aos meios para efetivação dessa escolha. São, por assim
dizer, essenciais ao pleno e livre desenvolvimento da pessoa.
Em sua origem, a evolução dos direitos reprodutivos foi marcada por um processo
histórico de lutas sociais pela afirmação do direito à procriação, tanto natural quanto
medicamente assistida, conforme se verifica no julgamento realizado pela Corte
Interamericana de Direitos Humanos (2012), referente ao caso “Artavia Murillo y otros
(“fecundacion in vitro”) vs. Costa Rica”198, onde foi reconhecido, por maioria de cinco votos
a um, que constituía grave impedimento ao exercício dos direitos à integridade pessoal,
liberdade pessoal, privacidade e autonomia reprodutiva, a proibição geral de realização da
FIV, estabelecida pela sentença n. 2000-02306, em 15 de março de 2000, da Corte Suprema
da Costa Rica, sobretudo para aqueles cujo único tratamento possível de infertilidade depende
da realização da referida técnica de RA (CIDH, 2012, p. 25-99).
197 VENTURA, Miriam. Direitos reprodutivos no Brasil. 3. ed. Brasília: UNFPA, 2009, p. 20. 198Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Artavia Murillo Y Otros (“Fecundação In Vitro”) vs. Costa
Rica. Sentença de 28 de novembro de 2012. São José, Costa Rica, 28 nov. 2012.
73
Quanto à origem, Pegorer199 acrescenta que a denominacao “direitos reprodutivos e
sexuais” teria, provavelmente, surgido, com a fundação da Rede Nacional pelos Direitos
Reprodutivos em 1979, nos Estados Unidos, resultado de avanços e retrocessos pautados por
demandas de movimentos feministas e de direitos humanos, em âmbitos nacional e
internacional, com respeito à questão reprodutiva e ao espaço da mulher em questões, desde o
conceito de família, filiação a métodos de concepção e contracepção, tanto em âmbito privado
quanto público.
Nota-se, pois, que o processo de reconhecimento dos direitos reprodutivos como
direitos humanos e fundamentais pelo Estado Democrático de Direito foi permeado, em
especial, por reivindicações de movimentos que lutavam contra formas de desigualdades
aplicadas, especialmente à mulher, no âmbito dos espaços público e privado.
No plano internacional, Juliane Fernandes Queiroz200 assinala a Conferência
Internacional das Nações Unidas ocorrida em 1968, no Teerã, no Irã, como primeira tentativa
de inserção de um direito reprodutivo no rol dos direitos humanos, com abordagem voltada
para contracepção. Ainda hoje, estão em curso iniciativas para assegurar o exercício dos
direitos reprodutivos, considerando os pontos sensíveis envolvidos em questões como a
realização do aborto201.
Norberto Bobbio202 chama esse fenômeno de especificação, consistente em nova
tendência cada vez mais acentuada de determinar sujeitos titulares de direitos, que em relação
ao gênero se verificou através do reconhecimento das diferenças específicas, e, mais
recentemente, com relação à diferenciação dos direitos atinentes à infância, velhice, doentes
mentais e deficientes. Para Bobbio203, essa multiplicação de direitos assinalou o processo de
passagem das chamadas liberdades negativas para os direitos políticos e sociais, que teria
ocorrido, basicamente, de três modos: aumento do número de bens merecedores de tutela
estatal (mais bens); extensão da titularidade de alguns direitos a sujeitos diversos do homem
(mais sujeitos); e especificidade do homem, em suas várias maneiras de ser em sociedade,
(mais status).
199 PEGORER, Mayara Alice Souza. Os direitos sexuais e reprodutivos da mulher : das políticas públicas de
gênero à diferença múltipla. Rio de Janeiro : Lumen Juris, 2016, p. 13-14, 22. 200 QUEIROZ, Juliane Fernandes. Reprodução assistida post mortem : aspectos jurídicos de filiação e sucessório.
Curitiba : Ed. UFPR, 2015, p. 61. 201 SMYTH, Jamie. Nova Zelândia anuncia reforma para descriminalizar o aborto. Agência EFE, Sydney, 5 ago.
2019. Disponível em: <https://www.uol.com.br/universa/noticias/efe/2019/08/05/nova-zelandia-anuncia-
reforma-para-descriminalizar-o-aborto.htm>. Acesso em: 19 ago. 2019. 202 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos; tradução de Carlos Nelson Coutinho; apresentação de Celso Lafer. –
Nova ed. – Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 58. 203 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos; tradução de Carlos Nelson Coutinho; apresentação de Celso Lafer. –
Nova ed. – Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 63.
74
Ainda quanto à origem dos direitos reprodutivos, Pegorer204 destaca a importância da
evolução do movimento feminista em busca do reconhecimento dos direitos civis e políticos,
passando pela “primeira onda”, que questionou a exclusao das mulheres da condicao de
cidadãs, e, nesse aspecto, foi importante por estimular a participação feminina no cenário
político, com relevo para o movimento sufragista de 1848 nos Estados Unidos, e mais tarde
no Brasil, após a Revolução de 1930, resultando na admissão do voto feminino; depois pela
“segunda onda” frente à incorporação em larga escala da mulher ao mercado de trabalho, e
consequente exploração de sua mão de obra, levando à contestação dos critérios estabelecidos
com base na crenca de sua inferioridade; e, mais recentemente, pela “terceira onda”,
sobretudo na década de 1990, com foco especial para o debate acerca das relações de gênero e
das políticas identitárias.
Essa lenta conquista dos direitos reprodutivos também é percebida por Bobbio205, com
precedência, na história da formação das declarações de direitos, onde se distinguem três
fases: a primeira buscada na obra dos filósofos como John Locke; a segunda, quando os
direitos ganharam concreticidade, somente no âmbito do Estado, como direitos do cidadão; e
a terceira, em que há a afirmação dos direitos, ao mesmo tempo universal e positiva, tendo
como destinatários todos os homens. Com isso, Norberto Bobbio define o referido processo
como transfiguração da universalidade abstrata dos direitos naturais na particularidade
concreta dos direitos positivos.
Assim é que, ao mesmo tempo universal e positivo, porquanto idealmente reconhecido
e protegido até mesmo contra o Estado, o direito que as mulheres têm de controlar o uso do
próprio corpo está fortemente ligado ao direito de decidir sobre o planejamento familiar e à
autonomia reprodutiva, mas com evidente aplicabilidade a qualquer que seja o gênero dos
sujeitos de direito, dependendo, para tanto, que estejam eles livres de coerção inclusive
quanto à decisão de quando e se devem ser transferidos os embriões crioconservados.
Desse modo, o direito reprodutivo, assim como o direito ao livre planejamento
familiar fazem parte inalienável dos direitos humanos universais, como princípios basilares
que orientam todo o ordenamento jurídico.
Pegorer206, ainda, ressalta:
204 PEGORER, Mayara Alice Souza. Os direitos sexuais e reprodutivos da mulher : das políticas públicas de
gênero à diferença múltipla. Rio de Janeiro : Lumen Juris, 2016, p. 15-19. 205 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos; tradução de Carlos Nelson Coutinho; apresentação de Celso Lafer. –
Nova ed. – Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 28-29. 206 PEGORER, Mayara Alice Souza. Os direitos sexuais e reprodutivos da mulher : das políticas públicas de
gênero à diferença múltipla. Rio de Janeiro : Lumen Juris, 2016, p. 27.
75
[...] que os direitos sexuais, hoje concebidos também como uma liberdade positiva,
ou seja, liberdade de pleno exercício da sexualidade (um fazer), encontravam
previsão ainda tímida nos documentos internacionais anteriormente trazidos,
restringindo-a a uma liberdade negativa, priorizando o combate a abusos e
explorações sexuais (um não fazer).
Como entrave ao exercício dos direitos reprodutivos, temos a falta de diferenciação de
conteúdo e extensão com os direitos sexuais no ordenamento jurídico brasileiro, o que deixa
clara a compreensão da sexualidade subordinada à reprodução, conforme aponta Pegorer207.
Assim, historicamente, os direitos reprodutivos encontram-se pautados pela tensão entre a
maternidade obrigatória e a liberdade de decidir quando reproduzir, para o que também se
deve dispor dos meios necessários, nos casos de infertilidade ou impossibilidade de gerar
filhos.
Assim é que a partir do século XX, com a realidade resultante da revolução
biotecnológica, a reprodução humana passou a contar com recursos científicos para sua
concretização, especialmente no momento de tomar decisões sobre projetos existenciais com
repercussões sobre o planejamento familiar, considerando a profunda e permanente
transformação do estatuto ontológico, crenças e valores do homem.
Com a possibilidade de que o homem passou a dispor de modificar a si mesmo, e
controlar seu processo reprodutivo, surgiu a necessidade de promover o debate ético das
aplicações biotecnológicas no âmbito de seu universo social através da bioética, como
disciplina autônoma.
Aliada ao processo de desnaturalização da família, ante a perspectiva de deslocamento
do foco do liame biológico para o fato social, a discussão acerca das transformações sociais
decorrentes do progresso científico se ampliou para o problema contemporâneo dos
indivíduos genitores de vida não nascida, acentuando a diferença entre genitorialidade208 e
paternidade, ao tempo em que se deu a intervenção estatal quanto aos aspectos éticos da
pesquisa científica, sob o argumento de necessidade de proteção do valor da vida humana.209
Assim, no afã de lidar com o avanço científico e ordenar as condutas dos sujeitos,
normas como a Lei de Biossegurança (LB) e a Resolução CFM nº 2.168/2017 reclamam
nossa atenção quanto à forma de intervenção sobre a liberdade de escolha reprodutiva dos
indivíduos e planejamento familiar de projetos de vida, em virtude de algumas restrições,
207 PEGORER, Mayara Alice Souza. Os direitos sexuais e reprodutivos da mulher : das políticas públicas de
gênero à diferença múltipla. Rio de Janeiro : Lumen Juris, 2016, p. 29. 208 Juliane Fernandes Queiroz (2015, p. 134) distingue genitorialidade como a relação decorrente do
fornecimento do material genético para concepção, enquanto a paternidade constitui o vínculo de parentesco. 209 QUEIROZ, Juliane Fernandes. Reprodução assistida post mortem : aspectos jurídicos de filiação e sucessório.
Curitiba : Ed. UFPR, 2015, p. 39.
76
como a que estabelece o prazo de três anos de congelamento para decisão quanto ao destino
dos embriões viáveis, e os resultantes conflitos entre os interesses tutelados pelo Estado e
direitos fundamentais dos indivíduos.
A reflexão sobre os direitos reprodutivos, como direitos individuais de primeira
dimensão, em sociedades marcadamente pluralistas, também exige do Estado uma atuação
positiva, pois é seu dever garantir a concretização da liberdade de planejamento familiar,
fornecendo meios para sua realização, seja através de métodos contraceptivos ou conceptivos,
à luz da existência de uma sociedade cosmopolita, que busca a efetivação de uma democracia
material de fins inclusivos.
Sobre a relação entre a saúde reprodutiva e o planejamento familiar, como direito
social previsto no art. 6o da Constituição Federal (CF), Queiroz210 afirma que:
O nexo entre saúde reprodutiva e planejamento familiar faz com que ambos estejam
protegidos como direitos humanos, dentro da mesma formatação do direito
reprodutivo.
Por outro lado, a atuação negativa do Estado, por meio de imposição de restrições ao
exercício das liberdades é necessária para impedir excessos, os quais acabam produzindo
violações de direitos. No entanto, algumas limitações impostas pelo Estado ao planejamento
familiar assumem uma linguagem paternalista sobre as condições de aplicação das políticas
públicas aos sujeitos de direitos reprodutivos, mantendo uma abordagem simplista ao regular
responsabilidades nas relações sociais, tal qual o modelo em vigor, que define prazos e
condições para o exercício dos direitos reprodutivos, sob forma de um controle social e
biológico, com a finalidade de criar um embrião saudável.
Segundo Juliane Fernandes Queiroz211, a justificativa para o controle do processo
reprodutivo abre divergência entre dois diferentes paradigmas: a ética da sacralidade da vida,
com base na qual aos sujeitos não seria facultado o controle do processo de reproducao, que
abrangeria, indistintamente, tanto a sexualidade quanto a procriacao, cuja cisao violaria a
dignidade humana, alcada a fundamento da Republica Federativa brasileira, e os direitos
inalienáveis do nascituro (ovo que sofreu nidação); e a ética da qualidade da vida, que, além
de ser moralmente lícita, propiciaria o avanço civilizatório.
210 QUEIROZ, Juliane Fernandes. Reprodução assistida post mortem : aspectos jurídicos de filiação e sucessório.
Curitiba : Ed. UFPR, 2015, p. 66. 211 QUEIROZ, Juliane Fernandes. Reprodução assistida post mortem : aspectos jurídicos de filiação e sucessório.
Curitiba : Ed. UFPR, 2015, p. 66.
77
A escolha do paradigma ético não se compatibilizaria, entretanto, com o campo
completamente diverso da autonomia pessoal na amplitude procriativa, e, a menos que haja
pressupostos convincentes respaldados em valores e princípios de uma justificativa concreta e
efetiva para a não realização das vontades manifestadas pela capacidade de autodeterminação
das pessoas, os projetos existenciais dos individuais devem ser considerados moralmente
lícitos, considerando que a liberdade é essencial para concretude de direitos fundamentais
consagrados no texto constitucional, como integrantes da dignidade da pessoa humana.212
Por isso, afirma Queiroz213 que:
A questão intrínseca da reprodução humana se desenvolve, então, nas indagações
acerca dos fundamentos, das razões, da extensão do direito de procriar, assim como
de se levar em consideração interesses, a fim de se definir se esses devam ser
valorados e até que ponto deve ser essa garantia. O foco da discussão também
abrange a esfera natural e assistida da procriação, com seus desdobramentos
principiológicos e suas consequências na estrutura social.
Nesse âmbito, embora a criopreservação tenha sido o caminho científico encontrado
para o propósito de evitar a eliminação sumária de embriões humanos, a perspectiva de
mantê-los congelados, durante três anos, pode ocasionar obstáculos à realização pelos sujeitos
de seus projetos familiares, quando se tem em mente a variedade de convicções sobre o status
daqueles organismos, bem como sobre os custos financeiros resultantes do uso das técnicas de
congelamento e descongelamento, que podem ocasionar um crescimento da desigualdade
social no país, em razão de que nem todos podem pagar pela realização daqueles
procedimentos médicos.
Dessa maneira, vemos como equívoco a tentativa de conciliar a liberdade de
planejamento familiar à subordinação reprodutiva dos sujeitos, mediante a fixação de um
dever de congelamento de embriões in vitro, que deslegitima a vontade daqueles, imaginando-
se estar diante de argumentos morais pautados basicamente pela perspectiva biológica, através
da qual não são tutelados direitos de outros seres iguais.
Nesse sentido, John Harris e Lisa Bortolotti214 argumentam que para que um ser seja
adequadamente considerado apto a desfrutar de consideração moral direta de outros
indivíduos é necessário, primeiro, que possa ser considerado como consciente ou como
pessoa, e assim detentor de certa complexidade que lhe possibilite ter interesses no seu
212 QUEIROZ, Juliane Fernandes. Reprodução assistida post mortem : aspectos jurídicos de filiação e sucessório.
Curitiba : Ed. UFPR, 2015, p. 66-67. 213 QUEIROZ, Juliane Fernandes. Reprodução assistida post mortem : aspectos jurídicos de filiação e sucessório.
Curitiba : Ed. UFPR, 2015, p. 71. 214 HARRIS, John; Bortolotti, Lisa. Investigação com células-tronco, personalidade e consciência. In: Romeo-
Casabona, Carlos María; Sá, Maria de Fátima Freire de (organizadores). Desafios jurídicos da biotecnologia.
Belo Horizonte: Mandamentos, 2007, p. 308.
78
próprio bem-estar, no sentido de valorizar a própria vida, muito além de apenas não sentir dor
ou não estar em perigo. Com base nesse raciocínio, os embriões in vitro não seriam
candidatos ao reconhecimento do mesmo status moral reservado às pessoas, já que falta
àqueles o mínimo de complexidade necessária para dar azo a interesses próprios.
Em vista disso, Harris e Bortolotti215 criticam o uso da noção de potencialidade na
investigação com células-tronco, por ser muito ampla, quer seja porque não existe indicação
do momento a partir do qual se considera uma pessoa em potencial, quer seja porque não é
plausível argumentar obrigações morais diretas baseadas na personalidade potencial, se até
uma célula somática humana é uma pessoa em potencial.
A partir deste enfoque, assevera Juliane Fernandes Queiroz216 que:
O caráter irrelato da subjetividade, de maneira contraditória, impulsiona o ser
humano a exasperar o dado biológico da generação e a esquecer-se do dado
dialógico e comunicacional da mesma procriação, que não se limita a transmitir a
vida biologicamente compreendida, mas que também deve transmitir uma vida
humana culturalmente qualificada. É próprio porque se vive em um mundo em que a
natureza não é somente um fato biológico, e no qual não se pode esperar que a
mesma procriação e genitorialidade sejam reconduzidas a um fato físico puramente,
mas, sim, ampliadas a fato social e cultural.
Desse modo, decisões de política de Estado, notadamente eugênicas, como a que
estabelece um prazo obrigatório de congelamento de embriões, acabam por restringir a
liberdade de planejamento familiar, pendendo mais para o lado de um suposto interesse
público em proteger os embriões excedentários viáveis do que para os direitos individuais, em
especial os reprodutivos.
Evidente que a liberdade de escolha do indivíduo, no tocante à reprodução, pode vir a
sofrer limitações de várias ordens, como a proibição de clonagem humana, e outras vedações
que se acham contidas na Lei de Biossegurança. No entanto, o limite como parte de uma
disputa jusfilosófica acerca da qualificação do embrião in vitro constitui uma solução
intransigente e redutora das possibilidades de autodeterminação das pessoas no campo da
procriação.
Não se trata de pensar na vontade exclusiva dos genitores, ou do uso abusivo do
Direito, como faria o indivíduo kantiano217, que pensa existir maneiras de determinar o que é
215 HARRIS, John; Bortolotti, Lisa. Investigação com células-tronco, personalidade e consciência. In: Romeo-
Casabona, Carlos María; Sá, Maria de Fátima Freire de (organizadores). Desafios jurídicos da biotecnologia.
Belo Horizonte: Mandamentos, 2007, p. 324. 216 QUEIROZ, Juliane Fernandes. Reprodução assistida post mortem : aspectos jurídicos de filiação e sucessório.
Curitiba : Ed. UFPR, 2015, p. 81.
79
realmente justo, mas sim de levar em consideração o status jurídico que hoje o ordenamento
atribuiu ao embrião in vitro. Afinal, conforme assevera Juliane Fernandes Queiroz218, o direito
reprodutivo, do mesmo modo que outros direitos fundamentais, pode sofrer limitação somente
pela tutela de outros interesses e valores comparáveis.
Assim, consoante descreve Pietro Perlingieri219, a intervenção do Estado encontraria,
ao mesmo tempo, fundamento e justificação, na realização de interesses existenciais e
individuais. No entanto, a realidade social se encontra, com frequência, distante das leis
regulamentadoras da sociedade, incapazes de acompanhar o dinamismo da vida, embora,
consoante conclui Queiroz220, vetar determinados comportamentos também não seja garantia
de um resultado seguro para a liberdade que se deseja amplamente manifestada.
Por isso, pretendemos tratar de algumas questões que nos farão refletir acerca das
limitações que são impostas sobre os direitos fundamentais reprodutivos, sobretudo aquelas
pertinentes ao status jurídico dos embriões in vitro, e da respectiva dimensão jurídico-
protetiva prevista pelo ordenamento, considerando que hoje, além de tratar dos problemas de
infertilidade e da incapacidade de gerar descendentes, a ciência reprodutiva passou a lidar
com o destino dos embriões excedentes.
4.3 Entre o arbítrio e a limitação da liberdade de planejamento familiar
Como frisado anteriormente, o direito ao livre planejamento familiar não pode ser
tratado como consectário de uma liberdade apenas como instrumento de contenção à
intromissao indevida do Estado, pois depende de acões em termos de politicas publicas que
garantam assistência à concepção e contracepção, bem como o acesso às técnicas e métodos
científicos aos indivíduos com problemas de fertilidade. Dessa forma, o direito de acesso a
recursos educacionais e científicos para satisfação do direito reprodutivo apresenta natureza
de direito fundamental social, à vista da parcela mínima necessária à garantia da dignidade
humana, que é colocada pela norma constitucional como exigível do Estado.
217 WALDRON, Jeremy. A dignidade da legislação ; tradução Luís Carlos Borges ; revisão da tradução Marina
Appenzeller. – São Paulo : Martins Fontes, 2003, p. 48. 218 QUEIROZ, Juliane Fernandes. Reprodução assistida post mortem : aspectos jurídicos de filiação e sucessório.
Curitiba : Ed. UFPR, 2015, p. 67. 219 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. Tradução de: Maria Cristina De Cicco. 3. ed. rev. e ampl. Rio
de Janeiro: Renovar, 2002, p. 54. 220 QUEIROZ, Juliane Fernandes. Reprodução assistida post mortem : aspectos jurídicos de filiação e sucessório.
Curitiba : Ed. UFPR, 2015, p. 71.
80
Conforme ensina Luigi Ferrajoli221, em um ordenamento dotado de constituição rígida,
para ser válida não basta que a norma atenda aos critérios formais de sua produção, é também
necessário que respeite os princípios e os direitos fundamentais estabelecidos na constituição.
Em nossa CF, alguns direitos fundamentais se relacionam de forma tão íntima com o
indivíduo, que é quase impossível deixar de notar sua importância para o desenvolvimento
pleno da pessoalidade: esses são os direitos reprodutivos e de liberdade de planejamento
familiar. Das várias formas de se exercer o direito ao livre planejamento familiar, a autonomia
reprodutiva, como modalidade de autonomia privada, é uma delas, sobretudo quando se
decide pelo descarte ou destinação para pesquisa de embriões excedentários, sem pressões
externas, como parte integrante da vida privada dos indivíduos.
Anteriormente ao que hoje se chama de autonomia privada, era a autonomia da
vontade, como princípio fundado na liberdade de agir, que protegia os indivíduos contra a
interferência ilegítima do Estado, tanto na esfera existencial, quanto na esfera patrimonial.
Era, por exemplo, responsável por embasar fenômenos da vontade como a constituição e
administração da família222.
A grande virada ocorreu com a passagem para o Estado Social, e incorporação de
novos valores, como ordem, justiça e liberdade, que passaram a orientar as relações privadas à
realização de uma utilidade social, resultando na correspondência entre liberdade e princípio
da autonomia privada, que, em termos de evolução da autonomia da vontade, consiste na
liberdade de as pessoas disporem sobre suas relações privadas e interesses, respeitados os
limites legais para que se possa construir um Estado livre.223
Assim, a principal diferença entre autonomia da vontade e privada é que a primeira
possui conotação subjetiva, representando a vontade real do indivíduo, enquanto a segunda
corresponde ao poder atribuído à pessoa pela lei de estabelecer normas concretas em suas
relações privadas, e definir o conteúdo dos atos que pratica.224
Nessa seara, destacamos a importância do princípio da dignidade da pessoa humana,
que se apresenta como conformador e orientador do direito ao livre planejamento familiar e
da autonomia reprodutiva atinente à vontade de procriar ou não, que, à vista do progresso
221FERRAJOLI, Luigi. Por uma Teoria dos Direitos e dos Bens Fundamentais. Traducao de Alexandre Salim et
al. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora Ltda., 2011. E-book. 222FIUZA, César [Org.]. Autonomia privada: direitos da personalidade. Belo Horizonte: Editora D’Placido, 2015,
p. 35. 223FIUZA, Cesar [Org.]. Autonomia privada: direitos da personalidade. Belo Horizonte: Editora D’Placido, 2015,
p. 37-44. 224FIUZA, César [Org.]. Autonomia privada: direitos da personalidade. Belo Horizonte: Editora D’Placido, 2015,
p. 46.
81
científico nos domínios da biologia e genética, depende cada vez mais de tecnologias para ser
experimentada em sua plenitude.
Dessa maneira, interessa saber o que seriam intromissões arbitrárias do Estado na
família. Será que a restrição, por meio da fixação de prazos, do destino de embriões
criopreservados pode ser considerada uma intromissão arbitrária do Estado, que viola a
dignidade do indivíduo?
A Lei nº 11.105, de 24 de março de 2005, versa no seu art. 5o225 que é permitida, para
fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco obtidas de embriões humanos
produzidos por FIV e não utilizados no respectivo procedimento, desde que sejam embriões
inviáveis, ou viáveis que estejam congelados há três anos ou mais.
No mesmo sentido, a Resolução CFM nº 2.168/2017226 prevê que, além da utilização
em pesquisa, a possibilidade de descarte de embriões excedentários viáveis e inviáveis, com a
ressalva de que, para os viáveis, há que cumprir o prazo de congelamento de três anos, tal
como previsto na Lei de Biossegurança.
Da leitura que se faz do diploma legal e do dispositivo deontológico supracitado,
verifica-se a configuração da autolimitação normativa da liberdade de planejamento familiar,
que se opõe, a nosso ver, claramente à tendência que domina a modernidade social, marcada
pelo crescente incentivo à autonomia privada.
O tratamento juridico dado pela Lei de Biosseguranca ao embriao in vitro impede o
seu uso em pesquisa, enquanto aquele for considerado viável, por meio da fixação do prazo de
congelamento de três anos, além de qualificá-lo como coisa fora do comércio, assim
tipificando como crime a conduta de sua comercialização no art. 15 da Lei n. 9.434, de 4 de
fevereiro de 1997.
225Art. 5º É permitida, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de
embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo procedimento, atendidas
as seguintes condições:
I – sejam embriões inviáveis; ou
II – sejam embriões congelados há 3 (três) anos ou mais, na data da publicação desta Lei, ou que, já
congelados na data da publicação desta Lei, depois de completarem 3 (três) anos, contados a partir da data de
congelamento. 226 V – CRIOPRESERVACAO DE GAMETAS OU EMBRIOES (Resolucao CFM nº 2.168/2017)
[...] 2. O numero total de embriões gerados em laboratorio sera comunicado aos pacientes para que decidam
quantos embriões serao transferidos a fresco, conforme determina esta Resolucao. Os excedentes, viaveis,
devem ser criopreservados.
[...] 4. Os embriões criopreservados com tres anos ou mais poderao ser descartados se esta for a vontade
expressa dos pacientes.
82
A Resolução CFM nº 2.168/2017 foi mais abrangente, pois previu a possibilidade de
descarte, sem distinção quanto à condição biológica do embrião in vitro, exigindo para os
viáveis o decurso do prazo de três anos de congelamento obrigatório.
Entretanto, não é o caso de se afirmar que esse prazo de congelamento de 3 (três) anos
consistiria em direito fundamental do óvulo fecundado ou embrião in vitro, já que a fixação
desse lapso temporal abre espaço para a sua instrumentalização, apenas postergando o
exercício do direito de liberdade de planejamento familiar?
Considerando que não é reconhecido ao embrião in vitro o status de sujeito de direito,
a obrigação de aguardar o prazo de três anos causa certa perplexidade, pelo fato de ter o
sentido de uma obrigação típica de um Estado confessional para com Deus, em detrimento da
consciência dos verdadeiros e únicos titulares do direito reprodutivo. Verifica-se, portanto,
nesse entendimento, o óbice de violar a liberdade dos referidos sujeitos, no estabelecimento
de deveres morais com força coativa, como se a norma estivesse tutelando um direito natural
do embrião in vitro, cuja existência não é reconhecida sequer pelo ordenamento jurídico. O
mesmo dever incidiria sobre as clínicas de RA, que, mesmo em caso de abandono, seriam
obrigadas a manter congelados os embriões viáveis, onerando os custos para quem deseja
realizar um projeto parental.
E se a criobiologia evoluir a ponto de aumentar o tempo de preservação dos embriões?
O prazo de 3 passará para 5 anos de congelamento? O que estaremos tutelando com o
congelamento de embriões? A nosso ver, o que se busca não é proteger o embrião, mas tão
somente o patrimônio genético que ele carrega, já que a própria LB diz que o embrião poderá
ser usado para um fim humanitário, quando destinado à pesquisa. Voltando ao prazo, que
antes era de 5 anos pela norma deontológica, hoje se fala em 3 anos pela atual LB. Amanhã, a
mesma lei terá que ser alterada para se adequar ao avanço médico? Com base em que certeza
então se afirma que 3 anos é o prazo mínimo, que fundamenta um dever de congelamento?
Com a mesma certeza que se afirmou no passado que o congelamento deveria se dar pelo
prazo de 5 anos? E não nos esqueçamos que a mesma ciência que no passado assinalou,
através da norma deontológica, o prazo de 5 anos, atualmente indica o prazo de 3 anos,
referenciado pelo legislador para estabelecer um marco legal, que acaba por obrigar clínicas e
particulares ao dever de congelamento dos embriões excedentários viáveis. Disso se infere
que o legislador se vale de conceitos científicos para tratar de normas de biodireito, sendo
aquele fortemente influenciado pelas respostas que o progresso técnico-científico pode
fornecer no momento.
83
Nessa seara, Norberto Bobbio227 adverte que o Estado não pode se colocar no mesmo
plano do indivíduo singular, que, às vezes, é irreflexivo, movido por paixão ou interesse. Pelo
contrário, o Estado deve ser reflexivo, racional, e não atuar sob domínio ou influência de
emoção, pois, adjacente ao privilégio e benefício do monopólio da força que detém, há a
correlata responsabilidade.
Norberto Bobbio228 também diz que o direito à liberdade de um indivíduo em relação a
outros indivíduos se encontra definido no art. 3o da Declaração dos Direitos do Homem, de 26
de agosto de 1789, consistindo no “poder de fazer tudo que nao prejudique os outros”, de
onde deriva a regra subsequente de que “a lei tem o direito de proibir somente as ações
nocivas à sociedade”. Quanto à liberdade em relação ao poder do Estado, também chamada
negativa, afirma o autor que a mesma vem definida no art. 5º, no sentido de que o indivíduo
tem o direito de fazer tudo que não é proibido nem ordenado; ao passo que a positiva está
expressa no art. 6º do mesmo documento, onde foi definido o direito do cidadão de concorrer,
pessoalmente, para formação da vontade geral.229
Assim é possível compreender o uso em pesquisa de embriões in vitro, antes ou depois
do prazo de três anos, não representativo de qualquer nocividade para a sociedade, além de
representar o exercício de uma liberdade individual, que atenta para a alteridade. Por isso,
falta legitimidade às normas proibitivas que determinam o congelamento obrigatório por três
anos, sob a ótica dos aspectos ora abordados.
Na discussão sobre o destino dos embriões excedentários, também entra em pauta o
direito de autodeterminação dos sujeitos, por meio do qual se admite a escolha pela rejeição
de uma gravidez, quando aqueles não correspondem a determinados padrões de saúde, por
essa razão denominados inviáveis.
E, no caso em que não fosse admitida a destinação dos embriões viáveis para pesquisa,
após três anos, será que poderia a lei obrigar a mulher a se submeter a implantação dos
mesmos? Sabido que a autonomia privada, sob a forma do consentimento livre e esclarecido,
corresponde, na situação concreta, ao poder de autodeterminação do paciente, uma ingerência
em tal sentido representaria uma coação na relação médico-paciente materializada pelo
contrato de reprodução assistida. Do mesmo modo, a implantação obrigatória dos embriões
crioconservados violaria o direito de igualdade, eis que esta pressupõe mesmos direitos e
227BOBBIO, Norberto. A era dos direitos; tradução de Carlos Nelson Coutinho; apresentação de Celso Lafer. –
Nova ed. – Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 163. 228BOBBIO, Norberto. A era dos direitos; tradução de Carlos Nelson Coutinho; apresentação de Celso Lafer. –
Nova ed. – Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 111-112. 229BOBBIO, Norberto. A era dos direitos; tradução de Carlos Nelson Coutinho; apresentação de Celso Lafer. –
Nova ed. – Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 111-112.
84
deveres, a ponto de que a mulher não experimente uma coerção legal que imponha
determinado comportamento sobre sua esfera privada, não igualmente exigível do outro
gênero.
Cumpre, ainda, salientar que, mesmo sendo a vida pré-natal objeto de proteção em
diferentes graus, admite-se a interrupção terapêutica da gravidez para o feto anencéfalo,
conforme interpretação colhida do julgamento da ADPF 54230, que considerou o feto
anencefalo, no estagio atual da medicina, irremediavelmente inviavel para a vida extrauterina,
a despeito de estar ele próximo do nascimento, o que também se verifica em relação ao feto
saudável, que coloca em risco a vida de sua genitora, ou quando resultante de gravidez
causada pela prática de crime de estupro, conduta ilícita que legitima a prática do aborto
humanitário ou sentimental.
Nesse ambito, entende-se que a ampliacao do espaco de decisao dos autores do projeto
parental decorrente do avanco biotecnologico aos momentos pre e pos-concepcao exige a
atuacao livre dos cidadaos, com fundamento na autonomia privada, que se submete ao teste
das razões morais, em que aqueles podem assumir tanto o controle da quantidade quanto da
qualidade da descendencia, atraves do uso de DGPI, por melhoramentos, ou para eliminar
doencas, inclusive através de um aborto eugenico do feto anencefalo.
Fica claro, entao, que o sistema normativo brasileiro nao trata como absoluto nenhum
direito, nem mesmo o direito à vida, permitindo a realizacao do aborto em algumas situacões,
e, mesmo historicamente, os direitos que, um dia, foram declarados absolutos, como a
propriedade, foram submetidos a limitações nas declarações contemporâneas.231
No entanto, Norberto Bobbio232 ressalta a existência de exceção à regra de que os
direitos do homem não são absolutos, o que cabe a pouquíssimos direitos fundamentais, como
o direito de não ser escravizado, que acarreta a eliminação do direito de possuir escravos; e o
direito de não ser torturado, que implica a eliminação do direito de torturar.
Assim, a limitação a qualquer direito deve observar uma racionalidade, pois, caso
contrário, criam-se novos direitos e deveres, como a obrigação legal de aguardar o prazo de
três anos para uso em pesquisa de embriões in vitro, como se houvesse um pretenso direito a
não fazer uso em pesquisa ou descartar embriões, antes de determinado tempo, conflitante
com a autonomia reprodutiva e com a liberdade de planejamento familiar.
230BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 54. Relator:
Marco Aurelio. Diario de Justica Eletronico, Brasilia, 10 maio 2013. 231BOBBIO, Norberto. A era dos direitos; tradução de Carlos Nelson Coutinho; apresentação de Celso Lafer. –
Nova ed. – Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 18. 232BOBBIO, Norberto. A era dos direitos; tradução de Carlos Nelson Coutinho; apresentação de Celso Lafer. –
Nova ed. – Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 41.
85
Não que deva existir um direito subjetivo atribuído ao arbítrio exclusivo do sujeito. A
limitação que, por exemplo, esteja orientada para que situação subjetiva pautada pelo
princípio da solidariedade, presente na regra que permite a doação para pesquisa, com fins de
cura e terapia (art. 5o, LB), funciona como uma limitação intrínseca justificável que não se
contrapõe ao direito subjetivo do titular, já que depende de seu consentimento expresso.
Nesse sentido, explica Perlingieri233 que:
As situações subjetivas sofrem uma intrínseca limitação pelo conteúdo das cláusulas
gerais e especialmente daquela de ordem pública, de lealdade, de diligência e de
boa-fé, que se tornaram expressões gerais do princípio da solidariedade.
Portanto, é preciso averiguar se o prazo legal que levanta hipótese de um suposto
direito de permanecer congelado por três anos do qual seria titular o embrião, antes de ser
usado em pesquisa, mesmo não sendo ele reconhecido pelo ordenamento como sujeito de
direito, respeita alguma regra de racionalidade.
Ainda que se cogite de “interesses” do embriao, ha que se ter em mente que o
congelamento também não atenderia àqueles, já que dele não adviria qualquer benefício, se,
ao final de três anos, continua sendo possível o uso em pesquisa pela Lei de Biossegurança, e
também o descarte pelo dispositivo deontológico.
Com base nessas reflexões, ensina Ronald Dworkin234, em sua teoria das bases
derivativas e independentes, que uma objeção independente não depende de nenhum direito
ou interesse particular, assim como não os pressupõe, a exemplo da liberdade dos sujeitos
quanto ao planejamento familiar, tido como direito fundamental do indivíduo que implica o
dever do Estado de assegurá-lo. Diferentemente, a objeção derivativa pressupõe direitos e
interesses dos quais derivam outros direitos e interesses, como o de proibir o descarte ou uso
de embriões em pesquisa, porque violariam o direito à vida do embrião, do mesmo modo que
é errado matar uma pessoa ou usá-la em experimentos contra a sua vontade, porquanto o
ordenamento jurídico proíbe que seja violada, em qualquer dimensão, a vida de um ser
humano.
Entretanto, nosso ordenamento jurídico não reconheceu o status jurídico de pessoa ou
centro de imputação jurídica ao embrião, de modo que este não possui direitos e interesses
derivativos do ser humano. Tanto é que, se decorrido o prazo de três anos, autoriza-se o uso
233PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. Tradução de: Maria Cristina De Cicco. 3. ed. rev. e ampl. Rio
de Janeiro: Renovar, 2002, p. 122. 234DWORKIN, Ronald. Domínio da vida : aborto, eutanásia e liberdades individuais ; tradução Jefferson Luiz
Camargo ; revisão da tradução Silvana Vieira. – 2ª ed. – São Paulo : Editora WMF Martins Fontes, 2009, p.
13.
86
em pesquisa do embrião excedentário, e, até mesmo, seu descarte, concluindo-se que ele não
tem quaisquer interesses a serem protegidos, pelo que os sujeitos devem ser livres para tomar,
a qualquer tempo, a decisão quanto ao descarte ou destinação para pesquisa.
Contudo, o fato de ele não ser pessoa não implica na não proteção, já que é
considerado um objeto de direito merecedor de tutela por não ser uma mera coisa. Ele é sim
uma coisa que traz algum significado, que traz cargas genéticas, que importa numa
possibilidade de manutenção de espécie. Assim também, o fato de um embrião poder ser
classificado como um objeto de direito fora do comércio não implica fazer dele o que bem se
entende. Da mesma maneira, a corrente que defende ser um animal um objeto, e não um
sujeito de direito, visa à proteção desse animal, independentemente de ser ele pessoa. Não se
tem uma titularidade de forma tal a fazer o que se bem entende, dentro da ideia de que os
direitos não são absolutos.
Porém, afirma-se que a liberdade reprodutiva não depende de nenhum pressuposto
sobre os direitos e interesses de um embrião, que é, suficientemente, protegido pelas normas
que proíbem sua comercialização, ex vi do disposto no § 3o do art. 5o da LB, e item IV, 1, da
Resolução CFM nº 2.168/17. Não possuindo, assim, o Estado ou o CFM o poder de
estabelecer prazos para o uso em pesquisa, uma vez que não se estaria violando qualquer
interesse, porque ninguém seria prejudicado por tais escolhas, há, nesse aspecto, um déficit de
legitimidade das normas que fixam o prazo de três anos para uso de embriões in vitro em
pesquisa.
Pelo visto essa convicção normativa que impõe a obrigação legal de cumprir um
prazo, para então estarem os sujeitos aptos a decidir sobre o destino de seus embriões
excedentários, assemelha-se a tratar os pacientes, que recorrem às técnicas de RA, como se
estivessem na menoridade, sem condições suficientes para deliberar sobre questões relativas
ao planejamento familiar, indo, portanto, de encontro ao princípio bioético da autonomia.
Assim sendo, constata-se a existência de uma regulamentação no campo de liberdade
de atuação do particular, que deixa em segundo plano o direito à privacidade dos sujeitos em
questões de procriação, nas quais se inclui a decisão sobre o destino que venha a ser escolhido
para os embriões excedentários, a pretexto de sustentar um frágil critério de racionalidade
quanto à natureza dos embriões humanos, para os quais não foi assegurada qualquer proteção,
já que se permite a sua utilização e descarte.
Percebe-se, então, que, tanto a norma deontológica contida na Resolução CFM nº
2.168/2017 quanto a Lei de Biossegurança, ao fixarem o prazo de três anos para descarte ou
uso em pesquisa, baseiam-se em razões “independentes” acerca da natureza humana de tais
87
organismos, e não em razão de equipará-los ao ser humano, porquanto não asseguram
qualquer direito, tampouco impedem sua instrumentalização. Logo, tais razões usadas para
impedir a utilização de embriões, durante determinado tempo, para depois liberar, não
oferecem qualquer proteção quando se fala de embriões in vitro, quando se tem mente que,
mesmo sendo reconhecida a possibilidade de existirem interesses dos referidos embriões,
ainda assim serao “prejudicados” pela degradação morfológica provocada pelo congelamento.
Desse modo, Queiroz235 argumenta que:
Cumpre ainda salientar que o embrião de per si não se encontra ainda em condições
de autossustentabilidade e determinação, a ponto de se poder evocar uma
equiparação de tutela para com o ser humano já nascido. A vida do embrião ainda é
dependente, condicionada a fatores e vontades externos. Propriamente por isso, a
equiparação tutelante levaria a contradição evidente, geradora de conflitos sem uma
transparente solução.
A ideia de assegurar algum tipo de proteção ou reconhecimento ao embrião com seu
congelamento não foi acolhida pelo Código Civil, que apenas põe a salvo alguns direitos do
nascituro, embrião já fixado no útero, com base em razões derivativas, como o fato de
constituir crime o aborto. Mesmo assim, essa proteção não é absoluta, pois a depender de
certas circunstâncias (anencefalia, gravidez resultante de estupro, ou que apresente risco para
a mulher), fica autorizado o extermínio do nascituro, não enquanto pessoa, mas como centro
de imputação jurídica destituído de titular.
Nesse ponto, identifica-se que, tanto na liberdade para se descartar ou destinar para
pesquisa os embriões excedentários, quanto na liberdade de escolha no caso do aborto, tem-se
uma implicação necessária com a liberdade religiosa, primeiro direito de liberdade afirmado
historicamente nas origens do Estado moderno. Por esse motivo, os sujeitos devem ter
assegurada a liberdade de decisão em matéria de suas decisões reprodutivas, respeitados
valores acolhidos pelo ordenamento jurídico, do mesmo modo que têm direito a escolher uma
religião que desejem professar, como decorrência de um Estado laico.
Esse entendimento ficou estabelecido no caso Roe contra Wade236, no qual o Tribunal
declarou inconstitucional, por maioria de sete votos a dois, a legislação do Estado do Texas
que criminalizava o aborto, sobretudo quando praticado para salvar a vida da mãe, bem como
235QUEIROZ, Juliane Fernandes. Reprodução assistida post mortem : aspectos jurídicos de filiação e sucessório.
Curitiba : Ed. UFPR, 2015, p. 143. 236ROSENWALD, Michael S. Roe v. Wade’s forgotten loser: The remarkable story of Dallas prosecutor Henry
Wade. [S. l.], 5 set. 2018. The Washington Post. Disponível em:
<https://www.washingtonpost.com/news/retropolis/wp/2018/08/21/roe-v-wades-forgotten-loser-the-story-of-
dallas-prosecutor-henry-wade/?noredirect=on&utm_term=.8b39a49c1903>. Acesso em:16 fev. 2019.
88
declarou que seria inconstitucional qualquer lei estadual que protegesse feto antes do sétimo
mês de gravidez, ou seja, a proibição do aborto só poderia ocorrer a partir terceiro
trimestre.237
Compreende-se que os sujeitos, homens e mulheres, têm, no âmbito do planejamento
familiar, o direito constitucional específico de controlar o seu próprio papel na procriação, o
qual, consequentemente, prevalece sobre o dever rival de manter o embrião viável congelado
por três anos. De outro lado, o governo não tem o direito legítimo de proteger os interesses de
criaturas que não são pessoas, pois tal permissão não lhe é concedida, na medida em que vai
de encontro ao fato de que os sujeitos são livres em matéria reprodutiva, e têm
responsabilidade sobre suas escolhas no âmbito do planejamento familiar.
Segundo Dworkin, o Supremo Tribunal dos Estados Unidos usou a expressão razão
inexorável, durante o julgamento do caso Roe contra Wade, para estabelecer que os estados
não poderiam limitar a liberdade das pessoas por mero capricho, mas somente com base em
uma razão muito poderosa como justificativa para qualquer restrição ao direito de
liberdade.238 É essa razão inexorável que falta ao Estado, quando promove a fixação do prazo
de congelamento de três anos, já que se sabe que não foi reconhecido ao embrião in vitro
qualquer valor intrínseco, que, na situação inversa, seria arguido para impedir seu uso em
pesquisa.
O fato de a Lei de Biossegurança admitir o uso em pesquisa de embriões in vitro
conduz ao raciocínio de que eles não são reconhecidos como pessoas, de modo que
criminalizar a conduta dos sujeitos progenitores com a ameaça de detenção239, de 1 (um) a 3
(três) anos, e multa, se for utilizado o embrião humano em desacordo com o que dispõe o art.
5o da referida Lei, é tão prejudicial para as pessoas quanto para suas escolhas estruturais de
vida, configurando uma coerção sobre convicções de um específico valor intrínseco, qual seja
a vida embrionária, que não é protegida pelo próprio Estado.
Dessa maneira, deve ser fortalecida a autonomia procriadora, que decorre do art. 226,
§ 7o, da CF, sob o argumento de que as pessoas têm direito e responsabilidade morais de
buscar respostas para suas próprias consciências quanto às suas questões mais fundamentais
237DWORKIN, Ronald. Domínio da vida : aborto, eutanásia e liberdades individuais ; tradução Jefferson Luiz
Camargo ; revisão da tradução Silvana Vieira. – 2ª ed. – São Paulo : Editora WMF Martins Fontes, 2009, p. 7. 238DWORKIN, Ronald. Domínio da vida : aborto, eutanásia e liberdades individuais ; tradução Jefferson Luiz
Camargo ; revisão da tradução Silvana Vieira. – 2ª ed. – São Paulo : Editora WMF Martins Fontes, 2009, p.
145. 239Art. 24. Utilizar embrião humano em desacordo com o que dispõe o art. 5º desta Lei: Pena – detenção, de 1
(um) a 3 (três) anos, e multa.
89
de valor, nas quais se encontra incorporada a concepção de dignidade humana individual,
como fim em si mesma.
Como decorrência lógica, a viabilidade do embrião excedentário não deve impedir o
exercício do direito de livre planejamento familiar dos indivíduos, uma vez que o período
mínimo de três anos de congelamento tem como premissa um dado que não é seguro, nem
definitivo do ponto de vista científico, à vista dos inúmeros casos de nascimento de embriões
in vitro congelados há mais de três anos, quanto do ponto de vista jurídico, eis que ausentes
interesses próprios do embrião in vitro.
Faz parte do direito ao livre planejamento familiar a liberdade na busca da verdade de
livremente formar uma família com as próprias convicções pessoais, sem violar, é claro,
direitos de terceiros, inclusive sobre a compreensão do destino que se dê aos embriões in
vitro, não considerados como pessoas ou centros de imputação normativa pelo Direito.
Sob essa análise, importa registrar a conclusão de Queiroz240 sobre os limites à
liberdade de planejamento familiar, ao afirmar que “A liberdade de atuação familiar,
reconhecida como unidade social fundamental, encontra-se limitada pelos direitos humanos
fundamentais dos indivíduos que a compõem.”
Assim, conclui-se que não se legitima que os sujeitos se curvem à vontade estatal que
fixa o prazo de três anos de congelamento para os embriões viáveis, a fim de, somente após,
escolher pelo descarte ou pela pesquisa dos embriões in vitro, porque a decisão em matéria
reprodutiva é, de fato, uma liberdade básica, contra a qual o Estado não deve se colocar, sem
uma razão inexorável, que justifique a imposição de regras que restringem a liberdade
familiar, garantida na CF como direito fundamental, fundado na livre expressão da
personalidade individual, consoante o preceito do art. 5o, X, da CF, que declara “inviolaveis a
intimidade, a vida privada”, sem que se admitam interferencia externas.
Nesse sentido, esclarece Juliane Fernandes Queiroz241 que “Busca-se, no canal da
autonomia privada, o equilíbrio entre relevância jurídica e escolha individual que permita o
exercício da autorresponsabilidade sem incidir em um modelo de família com padrões e
contornos preestabelecidos.”
No mesmo sentido, o art. 1.513 do CC proíbe a interferência na comunhão da vida
familiar por qualquer pessoa, de direito público ou privado, com base na qual resta
240QUEIROZ, Juliane Fernandes. Reprodução assistida post mortem : aspectos jurídicos de filiação e sucessório.
Curitiba : Ed. UFPR, 2015, p. 54. 241QUEIROZ, Juliane Fernandes. Reprodução assistida post mortem : aspectos jurídicos de filiação e sucessório.
Curitiba : Ed. UFPR, 2015, p. 44.
90
caracterizada como intromissão paternalista a disposição legal que estabelece o dever de
congelamento de embriões viáveis, por três anos.
Dessa maneira, o Estado ou qualquer instituição médica não deve ditar a moral privada
de nenhum indivíduo a serviço de qualquer visão dogmática, pois, segundo Dworkin242, uma
das precondições da democracia legítima exige que os cidadãos sejam tratados igualmente, e
tenham respeitadas suas liberdades fundamentais e sua dignidade, sem falar na perspectiva de
discordância moral.
242DWORKIN, Ronald. Domínio da vida : aborto, eutanásia e liberdades individuais ; tradução Jefferson Luiz
Camargo ; revisão da tradução Silvana Vieira. – 2ª ed. – São Paulo : Editora WMF Martins Fontes, 2009, p.
172.
91
5 O DIREITO À LIBERDADE DE PLANEJAMENTO FAMILIAR FACE À
VIABILIDADE TÉCNICA DO EMBRIÃO
5.1 Viável ou inviável?
Com o propósito específico estabelecer normas, nas áreas de biossegurança e
biotecnologia, a Lei de Biossegurança tornou-se o único diploma legal, que trata
especificamente do destino dos embriões produzidos por FIV, um dos aspectos jurídicos da
reprodução humana assistida, estabelecendo prazos e condições para o exercício da autonomia
reprodutiva dos sujeitos, a fim de justificar as intervenções sobre os embriões produzidos por
FIV.
Para o nosso objeto de estudo, é de grande importância a análise das condições que
têm por base a diferença de tratamento feita pela Lei de Biossegurança entre embriões viáveis
e inviáveis, a partir das quais são traçados dois caminhos quanto ao destino daqueles: para o
embrião viável, a lei prevê o dever de congelamento, pelo prazo de três anos, contados da
publicação da lei, ou da data do congelamento, findo o qual fica autorizada a utilização em
pesquisa; e, para o denominado inviável, a utilização em pesquisa poderá ser imediata, não
dependendo de qualquer prazo.
Para os efeitos do Decreto nº 5.591, de 22 de novembro de 2005243 que regulamentou a
Lei de Biossegurança, foram enunciados alguns termos científicos, como no inciso XIII do
art. 3o, o qual descreve como embriões inviáveis aqueles com alterações genéticas
comprovadas por diagnóstico pré-implantacional, conforme normas específicas estabelecidas
pelo Ministério da Saúde, que tiveram seu desenvolvimento interrompido por ausência
espontânea de clivagem244 após período superior a vinte e quatro horas a partir da FIV, ou
com alterações morfológicas que comprometam o pleno desenvolvimento do embrião.
Os termos científicos empregados pelo Decreto nº 5.591, de 22 de novembro de 2005,
foram inclusive reconhecidos pela Sociedade Brasileira de Reprodução Assistida (SBRA),
que, em resposta à consulta pública n. 41 da ANVISA, em 26 de julho de 2006, entendeu que
243BRASIL. Decreto nº 5.591, de 22 de novembro de 2005. Regulamenta dispositivos da Lei nº 11.105, de 24 de
março de 2005, que regulamenta os incisos II, IV e V do § 1º do art. 225 da Constituição, e dá outras
providências. Brasília: Presidência da República [2005]. 244Também denominada segmentação, consiste em série de divisões por que passa o zigoto até resultar na
formação das primeiras células embrionárias, denominadas blastômeros.
92
o zigoto que não passou pelo estágio espontâneo de clivagem perde a capacidade biológica de
gerar uma vida.245
No entanto, não estão claros todos os fatores que levaram à classificação de um
embrião como inviável, bem como se a inviabilidade do embrião pode ser aferida durante
determinado período, ou se pode surgir em outro momento posterior.
Assim, a fim de estabelecer quais características definem um embrião como inviável,
visando doações para pesquisas de células-tronco, em artigo científico publicado na Revista
Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia, Donadio et al.246 afirmam que mesmo embriões de
baixos escores morfológicos não podem ser considerados inviáveis por serem incapazes,
embora apresentem baixa frequência de promover uma gestação, porquanto o conceito de
inviabilidade não seria diretamente do embrião, mas sim da inviabilidade da obtenção da
gestação viável a partir desse embrião.
Desse modo, para Donadio et al.247, surgem então dois raciocínios: a inviabilidade
genética, caracterizada por alterações do embrião incompatíveis com elevado risco para a
vida; e a inviabilidade evolutiva, em que a transferência uterina do embrião não resultaria em
gravidez. Afirmam, ainda, os referidos autores que, baseando-se em critérios morfológicos,
como tempo de clivagem, fragmentação e aspectos citosplasmáticos, quanto pior a
morfologia, menores as chances de implantação e gravidez. Porém, mesmo aqueles embriões,
com pior morfologia ou maior fragmentação e assimetria, podem levar à gestação com
nascimento, a despeito de serem maiores as chances de perdas gestacionais.
Ainda de acordo com Donadio et al.248, o congelamento promoveria uma redução nas
taxas de implantação, quando comparadas aos embriões frescos de mesma qualidade, devido a
constantes perdas de blastômeros no processamento, fazendo com que alguns embriões
viáveis se tornem inviáveis, até mesmo para pesquisas, pois, dificilmente, após a
crioconservação, atingiriam o estágio de blastocisto, impossibilitando o desenvolvimento de
massa celular interna para obtenção de células totipotentes. Como exemplo, Donadio et al.
245SALDANHA, Ana Claudia. A tutela do embrião humano. 1. ed. – Curitiba: Editora Prismas, 2015, p. 78. 246DONADIO, Nilka Fernandes et al. Caracterização da inviabilidade evolutiva de embriões visando doações
para pesquisas de células- troco. Revista Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia : RBGO, São Paulo, v. 27,
n. 11, p. 665-666, nov. 2005. 247DONADIO, Nilka Fernandes et al. Caracterização da inviabilidade evolutiva de embriões visando doações
para pesquisas de células- troco. Revista Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia : RBGO, São Paulo, v. 27,
n. 11, p. 666-669, nov. 2005. 248DONADIO, Nilka Fernandes et al. Caracterização da inviabilidade evolutiva de embriões visando doações
para pesquisas de células- troco. Revista Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia : RBGO, São Paulo, v. 27,
n. 11, p. 669-670, nov. 2005.
93
mencionam um trabalho publicado, em 2003, por Hoffman et al.249, que se baseou em
levantamento junto a todos os centros de reprodução assistida dos Estados Unidos, resultando
na observação de que dos 400.000 embriões congelados há 3 anos ou mais naquele País,
apenas 2,8% são viáveis para doação, perfazendo um total de 11.000.
Assim, Donadio et al.250 concluem que o congelamento de embriões supranumerários
deve ser evitado a todo custo, pois mesmo a crioconservação dos viáveis mostra uma taxa de
gravidez irrisória após o descongelamento, motivo pelo qual se justifica a imediata destinação
para fins de pesquisa de células-tronco, condicionada à aprovação pelo conselho de ética e
pesquisa, e ao consentimento livre e esclarecido do casal.
Contrariamente, Raquel de Lima Leite Soares Alvarenga251 afirma que a perspectiva
do congelamento de embriões por tempo prolongado vem rompendo barreiras, no sentido de
que a estrutura e funcionalidade de células e tecidos congelados, mediante eficientes métodos,
não são afetadas, ou são pouco afetadas. Porém, esse argumento vai de encontro aos
resultados obtidos no artigo científico retro mencionado252.
A despeito da celeuma científica, há, como vimos, dois tipos de embriões inviáveis:
aqueles com patologias genéticas, que podem servir ao implante ou à pesquisa; e os inviáveis,
por ausência de clivagem, inservíveis tanto ao implante quanto para pesquisa.
Por outro lado, nem a Lei n. 11.105/2005 tampouco o Decreto nº 5.591/2005
descrevem quais alterações genéticas ou morfológicas configuram a chamada inviabilidade do
embrião, concernente a padrões mínimos de qualidade de vida digna. Ademais, mesmo na
presença de determinadas condições genéticas patológicas, não necessariamente
incompatíveis com a vida, será possível a realização do implante, se assim for decidido pelos
sujeitos titulares do projeto parental.
249HOFFMAN et al. apud DONADIO, Nilka Fernandes et al. Caracterização da inviabilidade evolutiva de
embriões visando doações para pesquisas de células- troco. Revista Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia :
RBGO, São Paulo, v. 27, n. 11, p. 670, nov. 2005. 250DONADIO, Nilka Fernandes et al. Caracterização da inviabilidade evolutiva de embriões visando doações
para pesquisas de células- troco. Revista Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia : RBGO, São Paulo, v. 27, n.
11, p. 670, nov. 2005. 251ALVARENGA, Raquel de Lima Leite Soares. Considerações sobre o congelamento de embriões. In: Romeo-
Casabona, Carlos María; Queiroz, Juliane Fernandes. Biotecnologia e suas implicações ético-jurídicas. – Belo
Horizonte: Del Rey, 2004, p. 241. 252DONADIO, Nilka Fernandes et al. Caracterização da inviabilidade evolutiva de embriões visando doações
para pesquisas de células- troco. Revista Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia : RBGO, São Paulo, v. 27,
n. 11, nov. 2005.
94
Outrossim, inobstante ao que concerne ao significado de “viavel”, que pode ser,
logicamente, obtido do conceito inverso, a doutrina vem levantando dúvidas sobre o referido
conceito, conforme se vê na lição de Queiroz253:
E a condição para permitir a experimentação com os embriões é a de que eles sejam
clinicamente não viáveis. Para o cumprimento de tal exigência é necessário
primeiramente determinar o que se entende por viabilidade, um dado que rege todo o
sistema de proteção conferido aos embriões. Inviáveis são aqueles embriões
incapazes de se desenvolver até se tornarem um ser humano. Quando tal adjetivo é
colocado em relação aos fetos humanos, aqueles já em desenvolvimento no útero
materno, a identificação é mais transparente, no sentido de que o referido embrião,
separado do corpo da mãe, não está apto a prosseguir em seu desenvolvimento, dada
a ausência de autonomia para a realização de tal proeza.
Acerca da impropriedade conceitual da expressão “embriões inviaveis”, entende
Arthur Magno e Silva Guerra254 que:
A inviabilidade de um embrião, biologicamente, não pode ser comprovada, sem a
sua necessária implementação no meio próprio de seu desenvolvimento, qual seja, o
útero (materno). Afora dessa hipótese, não existem mecanismos capazes de se
determinar com absoluta certeza biológica que aquela estrutura seja mesmo inviável.
Talvez, possa nao formar um individuo “perfeito”, o que levaria a reflexões acerca
da eugenia e do determinismo biológico. Mas aquela individualidade plúrima de
células possui viabilidade, isso é algo que a razão humana científica não é capaz de
definir, assim como não se tem a real certeza em quaisquer verificações da ciência
biológica.
Nesse sentido, a crítica que fazemos quanto à categoria de embriões inviáveis,
mormente a respeito daqueles que apresentam alguma anomalia genética, converge para o fato
de que o seu desenvolvimento nem sempre precisa ser interrompido, podendo resultar num
indivíduo que nascerá com algumas patologias, mas que, ainda assim, resultará num ser
humano completo.
Notamos que conceitos reducionistas, como viável e inviável, são elaborados com
interesses no avanço científico, porque explicam um fenômeno complexo, reduzindo o todo às
suas partes integrantes. Todavia, tais conceitos também se aproximam, em certa medida, da
visão de que os homens se unem em sociedade não apenas para viver, mas para viver bem.
Viver bem ou ter uma vida digna não é um conceito simples, pelo contrário, é
influenciado pelo sistema de crenças e valores individuais, dentro de um contexto plural, que
decorre de uma construção histórico-social de cada indivíduo. Nossas crenças podem, por
253QUEIROZ, Juliane Fernandes. Reprodução assistida post mortem : aspectos jurídicos de filiação e sucessório.
Curitiba : Ed. UFPR, 2015, p. 148. 254GUERRA, Arthur Magno e Silva. Direitos fundamentais do embrião na bioconstituição – Belo Horizonte:
Editora D’Placido, 2015, p. 134.
95
exemplo, justificar o aborto humanitário, em caso de estupro, tal qual na situação do feto
anencéfalo, conforme decidido pelo STF na ADI 3.510: no primeiro caso, para não destruir a
vida da mãe que se recusa engravidar, e, no segundo, por uma necessidade moral de não trazer
ao mundo uma criança que terá uma vida terrivelmente breve, com a consequente perda de
todos os investimentos pessoais e emocionais realizados em seu benefício.
Desse modo, será que é possível atrelar a viabilidade do embrião às condições de uma
vida satisfatória, desconsiderando toda uma gama de concepções diferentes do que se entende
por vida digna? E pressupor a existência de determinadas condições, a partir de status
biológico, corresponde ao dever de manter congelados embriões produzidos por FIV?
Acreditamos que, mesmo a mera possibilidade biológica de uma vida digna não
assegura um direito correspondente ao dever de congelamento, porque ainda que se tenha o
embrião como objeto de tutela, isso não pressupõe que seja ele uma pessoa ou um referencial
de imputação normativa. De outra parte, o fato de ser congelado não implica em proteção, já
que se torna possível tanto o descarte quanto o uso em pesquisa, mas também não representa
uma desproteção. Na linha do que foi dito acerca do status jurídico do embrião in vitro, é
possível falar em proteção ou tutela limitada, nesse caso, em função do seu tratamento
jurídico como coisa fora do comércio, tendo em vista interesses difusos sobre o patrimônio
genético.
De qualquer maneira, na manutenção da potencialidade de vida, através do
congelamento de embriões, os genitores figuram como únicos beneficiários do prazo que
serviria para ponderação sobre a decisão que venham a tomar no futuro sobre o destino de
seus embriões congelados, uma vez que a crioconservação não é nem propícia à obtenção de
células totipotentes, e menos ainda benéfica aos embriões. Todavia, para a fruição efetiva do
mencionado prazo de reflexão, não é necessário que a lei o imponha como dever, basta a
decisão autônoma dos indivíduos.
Assim, tendo em vista que a condição biológica de viável é afetada pelo
congelamento, que, a princípio, é utilizado para garantir a permanência daquela condição, e,
na verdade, produz o efeito contrário, a solução encontrada para lidar com o excedente de
embriões produzidos por FIV nos leva a acreditar, falsamente, que estes terão as suas
propriedades preservadas, embora, com o passar do tempo, as chances, tanto de uma FIV
resultar em gravidez, quanto do uso eficaz em pesquisas, sejam reduzidas, drasticamente.
96
Namba255 aponta a referida contradição, que consiste na ausência de um fundamento
para fixação do lapso temporal de três anos como prazo obrigatório de congelamento dos
embriões viáveis, tanto no campo jurídico quanto científico.
Apesar de restar claro que o congelamento de embriões não resulta em proteção, esta
ocorre na exclusão legal do embrião in vitro do comércio, bem como na proibição de
intervenções de engenharia genética e clonagem, quer seja para resguardar o patrimônio
genético dos indivíduos, quer seja para proteger a vida e integridade das gerações futuras, mas
veja que, em ambas as situações, os interesses tutelados, mais uma vez, não são do embrião.
Desse modo, a categorização de embriões excedentários em viáveis ou inviáveis, além
de constituir medida eugênica que apresenta relação com a tese utilitarista de uma política
legislativa baseada na saúde perfeita, não preserva os interesses de ninguém, vale dizer,
apenas impede o pleno exercício da liberdade de planejamento familiar e o progresso
científico.
5.2 O critério biológico perante o ordenamento jurídico
Carlo Casonato256 considera fundamental para a sobrevivência de um ordenamento
jurídico a observância do princípio da não contradição como um dos critérios para avaliar o
biodireito, no sentido de que deve ser feita uma avaliação interna das relações de coerência e
incoerência entre as normas jurídicas, para que se perceba uma linha condutora coerente.
Em nosso entendimento, falta coerência em apontar algo como definitivo, com base
nos conceitos de viabilidade e inviabilidade, quando consabida a inexistência de critérios
médicos claros para definir o que se entende por viabilidade embrionária, bem como se a
finalidade buscada seria a preservação do material genético, que, como se viu, sofre séria
deterioração após o congelamento, ou o direito de não procriar em determinadas condições
biológicas, situações que, naturalmente, cabem aos genitores decidir.
Não fosse isso bastante, devemos ter em conta que, do ponto de vista liberal, o Estado
não deve intervir para gerenciar, exclusivamente sob o viés moralista, o destino de embriões
excedentários, sem levar em consideração a autonomia privada dos indivíduos, regulando
questões que devem ser decididas também no âmbito do planejamento familiar, mormente
porque se à vida intrauterina não foi conferida proteção absoluta pelo art. 5o da CF,
255NAMBA, Edison Tetsuzo. Manual de bioética e biodireito. 2. ed. – São Paulo : Atlas, 2015, p. 60. 256CASONATO apud ORSELLI, Helena Maria Zanetti de Azeredo. O status jurídico do pré-embrião humano a
partir dos princípios constitucionais do pluralismo e da laicidade. Curitiba: Editora Prismas, 2016, p. 108
97
constatadas determinadas complexidades morfológicas, o que se dirá da vida embrionária in
vitro, à qual não se atribui proteção equivalente à do nascituro, ente despersonalizado em
favor do qual a Lei nº 11.804, de 5 de novembro de 2008 assegura um mínimo existencial,
para cobrir as despesas adicionais do período de gravidez e que sejam dela decorrentes, da
concepção ao parto, inclusive as referentes a alimentação especial, assistência médica e
psicológica, exames complementares, internações, parto, medicamentos e demais prescrições
preventivas e terapêuticas indispensáveis.
Dessa maneira, o obstáculo apontado no caminho para racionalizar as possibilidades
de uso dos embriões consiste na justificativa utilitarista das categorias indignas de
reconhecimento de tutela estatal como mostra o exemplo do embrião inviável, que indica ser
uma expressão de característica eugenética, porquanto preocupada com uma qualidade
biológica, aferível pela técnica do DGPI.
Assim compreendida, a vida inviável, marcada por um efeito deletério sobre a
qualidade de vida, também pode ocorrer por deficiências físicas, sequelas decorrentes de
acidentes, falta de educação ou de oportunidades, e até mesmo por fatores ambientais, o que
também se aplica aos embriões viáveis, que podem sofrer degradação durante o processo de
congelamento. Como exemplo, em 1941, descobriu-se que o vírus da rubéola poderia afetar
gravemente o desenvolvimento fetal.257
Enfermidades genéticas ou cromossômicas também podem fundamentar a
categorização de embriões como inviáveis, em relação aos quais não há necessidade de
aguardar o transcurso de três anos, para utilização em pesquisa, com fins de cura e terapia, ou
mesmo para descarte, nos termos da Resolução CFM nº 2.168/2017.
Há, ainda, o risco, segundo Sandel, quanto à questão do estatuto do melhoramento,
consistente no perigo de criar duas classes de seres humanos – aqueles com acesso às
tecnologias de melhoramento genético, como uma espécie de esforço high tech, e aqueles
sem, chamados low tech.258 Avaliar quais seriam as excelências naturais necessárias para
categorizar um embrião in vitro como viável é uma tarefa complexa sob o ponto de vista
moral, pois exigiria um telos ou sentido da vida embrionária, isto é, saber quais virtudes ou
condições biológicas seriam relevantes para determinar se aquele embrião é ou não viável à
implantação, sem desmerecer concepções divergentes de vida digna, como a do casal de
257SALDANHA, Ana Claudia. A tutela do embrião humano. 1. ed. – Curitiba: Editora Prismas, 2015, p. 85. 258SANDEL, Michael J. Contra a perfeição: ética na era da engenharia genética. tradução Ana Carolina
Mesquita. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. p. 27-43.
98
lésbicas Sharon Duchesneau e Candy McCullough, que consideravam a surdez um traço de
identidade cultural, e não uma deficiência a ser curada, conforme registra Sandel259.
A despeito disso, fato é que, no Brasil, tanto embriões viáveis quanto inviáveis, com
potencialidade de vida, podem ser objeto de investigações científicas, como assinala o art. 5o,
incisos I e II, da LB, ou descartados, conforme faculta a Resolução CFM nº 2.168/2017 (V,
4).
Assim, considerando que, nem mesmo a definição sobre o início da vida é garantia de
absoluta proteção pelo Direito, não é, portanto, plausível condicionar a decisão sobre o direito
reprodutivo dos sujeitos de procriar ou não à condição biológica de viabilidade do referido
embrião excedentário, sobretudo porque o estabelecimento pelo Estado da obrigação de
preservar a vida biológica do embrião in vitro como valor abstrato implica a anulação da
autonomia do sujeito moral para decidir questões existenciais relativas ao seu planejamento
familiar, já que a moral não tem sempre uma resposta clara a oferecer, como assevera Hart260.
Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento da ADPF no 54261, fez ceder
o suposto direito à vida do feto anencefalo em prol dos direitos constitucionais à dignidade da
pessoa humana, à liberdade no campo sexual, à autonomia, à privacidade, à integridade fisica,
psicologica e moral e à saude da mulher, que representam interesses e direitos fundamentais
superiores.
Some-se a isso o dever legal que impõe aos sujeitos manter seus embriões viáveis
congelados por três anos, o qual penaliza quem não tem condições econômicas de assumir tal
ônus financeiro, restringindo, de forma indireta, o acesso de inúmeras pessoas, que, em
virtude do alto investimento, evitam o tratamento de FIV, pelo risco de serem obrigadas a
custear um possível congelamento de embriões viáveis excedentários.
Dessa maneira, as limitações impostas pelo Estado devem encontrar razoabilidade,
principalmente quando interferem em direitos fundamentais dos indivíduos. Mesmo que se
assegure certo grau de proteção aos embriões excedentários, em razão de serem reconhecidos
como bens jurídicos de interesse para a sociedade, os centros de imputação normativa
continuam sendo os genitores, não se legitimando restrições de suas liberdades baseadas em
259SANDEL, Michael J. Contra a perfeição: ética na era da engenharia genética. tradução Ana Carolina
Mesquita. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. p. 15. 260HART, H. L. A. O conceito de direito; pós-escrito organizado por Penelope A. Bulloch e Joseph Raz; tradução
de Antônio de Oliveira Sette-Câmara ; revisão da tradução Marcelo Brandão Cipolla ; revisão técnica Luiz
Vergílio Dalla-Rosa. – São Paulo : Editora WMF Martins Fontes, 2009, p. 264. 261BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguicao de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 54. Relator:
Marco Aurelio. Diario de Justica Eletronico, Brasilia, 10 maio 2013.
99
conceitos excessivamente transitórios, que, na prática, incorrem num determinismo biológico
de indivíduos que não devem nascer, em decorrência de determinadas patologias.
100
6 A LEI DE BIOSSEGURANÇA E A RESOLUÇÃO CFM 2.168/2017
A reprodução assistida, definida como o conjunto de técnicas que objetiva apresentar
alternativas ao problema da infertilidade humana, por meio da manipulação de gametas e
embriões, tem como efeito a incorporação de novos valores de uma sociedade, em permanente
transformação.
Independente da expressao que se use, “infertilidade” ou “impossibilidade de
conceber”, as tecnicas de reproducao humana assistida têm papel fundamental na
concretização efetiva dos direitos reprodutivos, e na liberdade dos indivíduos de responderem
pela própria vida.
O aparecimento de novos e diferentes arranjos familiares é também alavancado pelos
avanços tecnológicos que a Constituição brasileira contemplou no art. 227, § 6o, além dos que
resultam do casamento, posto que a superação de óbices legais ao pleno desenvolvimento das
famílias construídas pelas relações afetivas interpessoais dos próprios indivíduos é corolário
do sobreprincípio da dignidade humana, consoante interpretacao nao-reducionista do conceito
de familia como instituicao que tambem se forma por vias distintas do casamento civil (ADI
nº 4277, Relator(a): Min. AYRES BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em 05/05/2011).
Ao viabilizar o exercício dos direitos reprodutivos por diferentes formatos de família,
as técnicas de RA, apesar de todo o avanço que proporcionam para a sociedade,
problematizam, ainda mais, dilemas e questionamentos éticos sobre como lidar com a
realidade dos embriões excedentários, e respectivo uso em pesquisa científica.
Em que pese a importância desse assunto para os indivíduos, em nosso País, não há lei
específica regulamentando a conduta humana quanto à aplicação das técnicas de
criopreservação de embriões em Reprodução Assistida. Temos hoje, como norma do
biodireito, a Lei n. 11.105, de 24 de março de 2005, ou Lei de Biossegurança, que tem por
objeto a regulamentação da pesquisa com células-tronco embrionárias humanas e dos aspectos
que envolvem a cadeia de produção, consumo e descarte de organismos geneticamente
modificados – OGM, mais conhecidos como alimentos transgênicos.
Na evolução do biodireito brasileiro, as normas de biossegurança e mecanismos de
fiscalização no uso das técnicas de engenharia genética eram definidas pela Lei n. 8.974/1995,
revogada 10 anos após pela atual Lei de Biossegurança, que passou a ser única norma de
biodireito dispondo sobre pesquisa com células-tronco embrionárias obtidas de embriões
humanos produzidos por FIV.
101
Antes vedadas pela Lei n. 8.974/1995 (antiga Lei de Biossegurança), tanto a
manipulação (art. 8o, IV) quanto a clonagem de embriões humanos destinados a servir como
material biológico disponível mostravam-se ilegais (art. 8o). Embora a atual Lei de
Biossegurança (Lei n. 11.105/2005), regulamentada pelo Decreto nº 5.591, de 22 de
novembro de 2005, continue proibindo a clonagem reprodutiva e a produção de embriões
unicamente para fins de investigação médica, passou a permitir, desde sua entrada em vigor,
as pesquisas científicas com células-tronco embrionárias obtidas de embriões produzidos em
procedimento de FIV, e não utilizados no referido procedimento.
Dentre os objetivos da atual Lei de Biossegurança está o de fixar parâmetros na área
de biossegurança e biotecnologia, que devem ser seguidos na experimentação com células-
tronco obtidas de embriões crioconservados produzidos por FIV. Assim, reunindo num
mesmo documento a normatização sobre a atividade que envolve organismos geneticamente
modificados, e alguns dispositivos acerca da utilização do material genético humano e
embriões humanos obtidos por FIV, a Lei de Biossegurança deixou uma série de dúvidas a
respeito dos processos relativos às técnicas de RA, perdendo-se uma oportunidade para se
criar uma única regulamentação mais abrangente sobre o assunto.262
De acordo com o que é estabelecido, atualmente, pela Lei de Biossegurança, o avanço
científico na área de biossegurança e biotecnologia é limitado, ante à proibição de realização
engenharia genética e clonagem tanto no embrião humano in vitro quanto em célula germinal
ou zigoto humanos (art. 6º, III e IV, LB), com o propósito de aperfeiçoamento artificial da
espécie, através da realização de experiências no patrimônio genético.
A fiscalização das diretrizes estabelecidas pela Lei de Biossegurança é feita pela
Comissão Técnica Nacional de Biossegurança – CTNBio, órgão administrativo para o qual
eventuais interessados em realizar atividades e projetos tratados pela LB deverão requerer
autorização (art. 2º, § 3º, LB). Entretanto, tais atividades e projetos não poderão são
executados por pessoas físicas em atuação autônoma e independente, ainda que mantenham
vínculo empregatício ou qualquer outro com pessoas jurídicas (art. 2º, § 2º, LB), bem como
deverão ser submetidos à apreciação e aprovação dos respectivos comitês de ética em
pesquisa (art. 5º, § 2º, LB). Outrossim, para a realização de pesquisa com células-tronco
embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por FIV e não utilizados no respectivo
procedimento, é sempre necessário o consentimento dos genitores (art. 5º, § 1º, LB).
262ORSELLI, Helena Maria Zanetti de Azeredo. O status jurídico do pré-embrião humano a partir dos princípios
constitucionais do pluralismo e da laicidade. Curitiba: Editora Prismas, 2016, p. 285.
102
Outra limitação imposta pela Lei de Biossegurança foi a proibição de comercialização
de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por FIV e não
utilizados no respectivo procedimento, cuja prática configura o crime tipificado no art. 15 da
Lei nº 9.434, de 4 de fevereiro de 1997 (art. 5º, § 3º, LB), norma do biodireito que trata da
doação e transplante de órgãos, tecidos e partes do corpo.
No entanto, mesmo com a normatização dada pela Lei de Biossegurança sobre
algumas questões importantes relacionadas à aplicação das biotecnologias, verifica-se a
ausência de normas jurídicas específicas acerca da utilização das técnicas de RA, tendo os
códigos deontológicos servido como fontes secundárias do Direito, além de orientar os
profissionais da saúde.263
Situações jurídicas, que não foram regulamentadas pela LB, como as decorrentes da
cessao temporaria de utero e gestacao compartilhada, vem sendo disciplinadas pelo CFM até a
atual Resolução nº 2.168/2017, que busca conciliar os interesses envolvidos, no campo da
biotecnologia, a partir de uma racionalidade deontológica dirigida aos médicos. Todavia,
apesar de fundamentais os limites bioéticos para o controle responsável do uso da
biotecnologia e ciência reprodutiva, percebem-se claras interferências sobre a autonomia
reprodutiva dos sujeitos, assim como mencionado na abordagem dos critérios utilizados pela
LB.
Nesse âmbito, ante à necessidade de normatizar o caráter ético da profissão médica em
matéria de reprodução assistida, somada à ausência de regulamentação jurídica das relações
que são construídas na concretização de projetos familiares por meio de técnicas de RA, o
CFM, autarquia com status de órgão supervisor da ética profissional264, estabeleceu critérios
deontológicos para orientar médicos, na atuação profissional, por meio das Resoluções CFM
nº 1.358/1992, CFM nº 1.957/2010, CFM nº 2013/2013, CFM nº 2.121/2015, e CFM nº
2.168/2017, dentre as quais apenas a última está em vigor, desde 2017.
Consideramos, pois, importante abrir alguns parêntesis sobre o tratamento
deontológico da reprodução assistida para verificar que alguns critérios científicos, mesmo
que reconhecidos como adequados em matéria médica, podem gerar conflitos com direitos
fundamentais, a exemplo do que revela o tema em estudo.
Consequentemente, a despeito de não ser necessária a abordagem de toda a resolução
do CFM sobre RHA, para não dispersar do tema, traremos aqui apenas algumas informações
263ORSELLI, Helena Maria Zanetti de Azeredo. O status jurídico do pré-embrião humano a partir dos princípios
constitucionais do pluralismo e da laicidade. Curitiba: Editora Prismas, 2016, p. 88. 264BRASIL. Lei nº 3.268, de 30 de setembro de 1957. Dispõe sobre os Conselhos de Medicina, e dá outras
providências. Rio de Janeiro: Presidência da República [2004].
103
superficiais, sem adentrar nos problemas e questionamentos da Resolução, para que o foco
permaneça, de maneira mais verticalizada, na questão que diz respeito ao destino dos
embriões excedentários, bem como para demonstrar como avançou o tratamento deontológico
num espaço, antes tido como de atuação exclusiva do Direito.
Como se verá adiante, a Resolução CFM nº 2.168/17 foi mais abrangente que a Lei de
Biossegurança em relação à reprodução assistida, tratando de vários aspectos referentes à
crioconservação de embriões e gametas, e procedimentos medicos em materia de reproducao
humana. Assim, dispondo sobre as normas eticas para a utilizacao das tecnicas de reproducao
assistida, prevê, verbi gratia, a Resolução CFM nº 2.168/17 que o tempo maximo de
desenvolvimento de embriões in vitro sera de ate 14 dias.265
Em simetria com a LB, a Resolução CFM nº 2.168/17 exige dos pacientes o
consentimento livre e esclarecido266 quanto às técnicas de RA a que se submeterem, apenas
com fins reprodutivos, já que restou vedada267 a realização de técnicas visando à redução
embrionária268, ou seleção de características biológicas, como o sexo, exceto, neste último
caso, para evitar doenças269. Além disso, prevê a normativa em comento que os pacientes
deverão ser pessoas capazes, permitindo-se o uso das técnicas de reprodução assistida por
casais homoafetivos, pessoas solteiras ou em união estável, ressalvado o exercício do direito
de objeção de consciência pelo médico270. Nesse ponto, louvável a valorização conferida pela
Resolução nº 2.168/17 aos princípios da igualdade, não discriminação, livre planejamento
familiar, dignidade da pessoa humana e pluralismo familiar, ao tratar com igualdade os
265VI – DIAGNOSTICO GENETICO PRE-IMPLANTACIONAL DE EMBRIOES (Resolucao CFM nº
2.168/17)
[...] 3. O tempo maximo de desenvolvimento de embriões in vitro sera de ate 14 dias. 266I – PRINCIPIOS GERAIS (Resolução CFM nº 2.168/17)
[...] 4. O consentimento livre e esclarecido sera obrigatorio para todos os pacientes submetidos às tecnicas de
RA. Os aspectos medicos envolvendo a totalidade das circunstancias da aplicacao de uma tecnica de RA serao
detalhadamente expostos, bem como os resultados obtidos naquela unidade de tratamento com a tecnica
proposta. As informacões devem tambem atingir dados de carater biologico, juridico e etico. O documento de
consentimento livre e esclarecido sera elaborado em formulario especial e estara completo com a
concordancia, por escrito, obtida a partir de discussao bilateral entre as pessoas envolvidas nas tecnicas de
reproducao assistida. 267I – PRINCIPIOS GERAIS (Resolucao CFM nº 2.168/17)
[...] 8. Em caso de gravidez multipla decorrente do uso de tecnicas de RA, e proibida a utilizacao de
procedimentos que visem a reducao embrionaria.
268Procedimento medico que consiste na eliminacao de embriões apos a implantacao no utero, visando impedir a
gravidez multipla. 269I – PRINCIPIOS GERAIS (Resolução CFM nº 2.168/17)
[...] 5. As tecnicas de RA nao podem ser aplicadas com a intencao de selecionar o sexo (presenca ou ausencia
de cromossomo Y) ou qualquer outra caracteristica biologica do futuro filho, exceto para evitar doencas no
possivel descendente. 270I – PRINCIPIOS GERAIS (Resolução CFM nº 2.168/17)
2. E permitido o uso das tecnicas de RA para relacionamentos homoafetivos e pessoas solteiras, respeitado o
direito a objecao de consciencia por parte do medico.
104
múltiplos arranjos familiares acolhidos pela Carta Magna, que anteviu tal opção legislativa,
conforme orientação principiológica que também se extrai dos julgamentos da ADPF n.
132/RJ271 e da ADI n. 4.227/DF272.
Quanto à doação de gametas ou embriões, a Resolução nº 2.168/17, dispõe que nao
podera ter carater lucrativo, de modo que apenas admite a doação pela mulher de até 35 anos,
e pelo homem de até 50 anos, quantas gestacões forem desejadas, desde que em uma mesma
familia receptora.273 Quanto à idade das candidatas à gestacao por tecnicas de RA, dispõe a
Resolução que aquela não poderá ultrapassar 50 anos274, resultando em nossa crítica quanto à
limitação da autonomia reprodutiva dos sujeitos, bem como do direito de planejamento
familiar dos indivíduos e casais que queiram postergar o projeto parental, em função de metas
ou compromissos profissionais, ou daqueles que quando atingem uma idade avançada para os
padrões sociais queiram constituir uma família.
Ainda de acordo com a Resolucao, os doadores nao devem conhecer a identidade dos
receptores e vice-versa, a fim de preservar o direito ao anonimato tanto do(a) doador(a)
quanto do(a) receptor(a), a nao ser que, em situacões especiais por questões medicas, essas
informacões sejam necessarias, caso em que serão fornecidas informações sobre o doador, por
intermédio, exclusivamente, do medico responsavel pela realizacao da tecnica de RA, a quem
incumbe zelar pelo sigilo da identidade civil do(a) doador(a).275 Assim, quanto ao sigilo ou
direito ao anonimato dos doadores de gametas ou embriões, somente em situação grave de
saúde das pessoas geradas pelo uso da técnica, que dependem da informação, será possível
revelar a identidade dos doadores, mesmo assim, em caráter restrito aos legítimos
interessados. Desse modo, prevalece o direito ao anonimato, conforme inteligência do
Provimento CNJ nº 63, de 14 de novembro de 2017, que revogou o Provimento n. 52/2016276,
271BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF n. 132/RJ. Diário Oficial da União, Brasília, 14 out. 2011. 272BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI n. 4.227/DF. Diário Oficial da União, Brasília, 21 out. 2015. 273IV – DOACAO DE GAMETAS OU EMBRIOES (Resolucao CFM nº 2.168/17)
1. A doacao nao podera ter carater lucrativo ou comercial.
[...] 3. A idade limite para a doacao de gametas e de 35 anos para a mulher e de 50 anos para o homem. 274I – PRINCIPIOS GERAIS (Resolução CFM nº 2.168/17)
[...] § 1º A idade maxima das candidatas à gestacao por tecnicas de RA e de 50 anos. 275IV – DOACAO DE GAMETAS OU EMBRIOES (Resolucao CFM nº 2.168/17)
[...] 4. Sera mantido, obrigatoriamente, sigilo sobre a identidade dos doadores de gametas e embriões, bem
como dos receptores. Em situacões especiais, informacões sobre os doadores, por motivacao medica, podem
ser fornecidas exclusivamente para medicos, resguardando-se a identidade civil do(a) doador(a). 276CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (Brasil). Provimento CNJ nº 63, de 14 de novembro de 2017:
institui modelos únicos de certidão de nascimento, de casamento e de óbito, a serem adotadas pelos ofícios de
registro civil das pessoas naturais, e dispõe sobre o reconhecimento voluntário e a averbação da paternidade e
maternidade socioafetiva no Livro “A” e sobre o registro de nascimento e emissão da respectiva certidão dos
filhos havidos por reprodução assistida. Brasília, DJe/CNJ nº 191, de 17/11/2017.
105
do qual constava a obrigatoriedade da prestação de informações sobre os doadores, para fins
de emissão da certidão de nascimento.
Mesmo assim, há um aparente conflito entre o direito ao anonimato dos doadores e o
direito à identidade genética do indivíduo de conhecer sua origem biológica, acerca do qual o
Estatuto da Criança e do Adolescente, no art. 48, assegura ao indivíduo que tenha sido
adotado, após completar 18 (dezoito) anos, o direito de conhecer sua origem biológica, bem
como acesso irrestrito ao processo no qual foi concedida sua adoção.
O STF já se manifestou sobre o assunto no julgamento do RE 898060 / SC277, que
versa sobre conflito entre paternidades socioafetiva e biológica, afirmando a possibilidade de
multiplicidade de vínculos parentais simultâneos, tanto para fins de filiação quanto para
concretizar o direito fundamental à busca da identidade genética, como natural emanação do
direito de personalidade de um ser.
A Resolução n. 2.168/17 também prevê que a doacao compartilhada de oocitos nao
poderá ter finalidade lucrativa278, bem como não poderá ser superior a quatro oócitos ou pré-
embriões para a receptora, a fim de não aumentar os riscos de gravidez múltipla ou
multiparidade279. Tal modalidade de doação ocorre quando a doadora, portadora de algum
problema reprodutivo, compartilha o seu material biológico com a receptora, incapaz de
produzir oócitos, que, por sua vez, assume a responsabilidade dos custos financeiros do
procedimento de RA em favor da doadora, ora com preferência sobre o material biológico
produzido, após o processo de hiperestimulação ovariana. Sá e Naves280 entendem que a
doação compartilhada de oócitos não caracterizaria uma compra e venda, porquanto não há
preço, muito embora a situação se assemelhe a doação com encargo, afastando a gratuidade
do negócio.
Estabeleceu, ainda, a Resolucao que devem as clinicas, centros ou servicos onde sao
feitas as doacões, manter, de forma permanente, um registro com dados clinicos, de carater
geral das caracteristicas fenotipicas, e uma amostra de material celular dos doadores, a fim de
277BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinario 898060 / SC. Relator: Min. Luiz Fux. Diario de
Justica Eletronico, Brasilia, 24 ago. 2017. 278IV – DOACAO DE GAMETAS OU EMBRIOES (Resolucao CFM nº 2.168/17)
[...] 1. A doacao nao podera ter carater lucrativo ou comercial. 279IV – DOACAO DE GAMETAS OU EMBRIOES (Resolucao CFM nº 2.168/17)
[...] 7. Quanto ao numero de embriões a serem transferidos, fazem-se as seguintes determinacões de acordo
com a idade: a) mulheres ate 35 anos: ate 2 embriões; b) mulheres entre 36 e 39 anos: ate 3 embriões; c)
mulheres com 40 anos ou mais: ate 4 embriões; d) nas situacões de doacao de oocitos e embriões, considera-se
a idade da doadora no momento da coleta dos oocitos. O numero de embriões a serem transferidos nao pode
ser superior a quatro. 280SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. Bioética e biodireito. 4. ed. Belo
Horizonte: Del Rey, 2018, p. 160.
106
evitar que, na regiao de localizacao da unidade com area de ate um milhao de habitantes,
um(a) doador(a) tenha produzido mais de duas gestacões de criancas de sexos diferentes. Esse
banco de dados clínicos e a restrição quanto à doação por um mesmo doador em áreas de
baixa densidade populacional têm a finalidade de evitar a realização de casamentos entre
pessoas impedidas, conforme vedação estabelecida pelo art. 1.521 do CC.
Também conhecida como gestação de substituição, a cessão temporária de útero, que
se encontra regulamentada apenas pela Resolução CFM nº 2.168/17, é permitida para pessoas
com algum problema reprodutivo que as impeçam de levar adiante a gestação, bem como para
solteiros ou indivíduos que vivam em união homoafetiva281, e tambem se aplica para fins de
reproducao assistida post-mortem, desde que haja autorizacao previa especifica do(a)
falecido(a) para o uso do material biologico criopreservado. Além disso, o destino da criança
que venha a nascer como fruto de uma FIV deve ser tratado entre as partes contratantes,
sobretudo na gestacao de substituicao, em que devem ser os envolvidos previamente
esclarecidos sobre os aspectos legais da filiação.
Assim, com o objeto de impedir o risco de se instalar um comércio em torno das
técnicas de RA, a norma médica regulamentou a gestação de substituição ou cessão
temporária de útero, que não poderá ter caráter lucrativo, exigindo que as doadoras
temporárias, com idade limite de até 50 anos, pertençam à família de um dos parceiros até o
4o grau, e estejam, emocional e juridicamente, cientes de suas responsabilidades futuras.
Excepcionalmente, pessoas que não tenham parentesco até o 4o grau podem ser autorizadas a
se valer dessa técnica, após análise individualizada pelos conselhos regionais de medicina
quanto à inexistência de parentes dispostos a colaborar, voluntariamente.
Anteriormente, de acordo com Resolução CFM nº 1.957/2010, a cessão temporária do
útero somente era permitida numa relação de parentesco até o segundo grau. A partir da
Resolução CFM nº 2.013/2013, a norma ética ampliou a possibilidade da gestacao de
substituicao à familia de um dos parceiros, com relação de parentesco consanguineo ate o
quarto grau, embora, desde a primeira resolução (CFM nº 1.358/1992), exista a possibilidade
de ser autorizado terceiro, sem vínculo de parentesco, a participar do procedimento, pelo
Conselho Regional de Medicina, quando não haja um parente apto a levar adiante a doação
temporária. A limitação do parentesco para gestação de substituição foi pensada para evitar a
profissionalização ou comercializacao do utero, pratica que ficou conhecida como “barriga de
aluguel”, expressao que destoa da ausencia de finalidade lucrativa.
281Especialmente para homens homossexuais, a gestacao de substituicao e a unica forma para que atinjam o
propósito de procriação. (RETTORE, 2018, p. 75)
107
Sobre a modalidade altruista de gestacao de substituicao nos moldes definidos pela
Resolucao do CFM em analise, Anna Cristina de Carvalho Rettore defende que a norma do
Conselho fere o principio da legalidade, bem como impede a atuacao da autonomia privada e
do direito ao livre desenvolvimento da personalidade, alem de usurpar a funcao legislativa,
interferindo na comunhao de vida instituida pela familia.282
Com relação à proibição contida na Resolução que concerne à participação do médico,
funcionário e demais integrantes de equipe multidisciplinar da clínica, unidade ou serviço
como doadores nos programas de RA, esta se dá em razão do princípio bioético da autonomia,
consistente na capacidade do(a) paciente atuar suficientemente informado(a) e livre de
qualquer coação ou influência externa.
No que se refere ao DGPI de embriões, o uso dessa tecnica esta amparado pela
Resolucao, apenas para fins de selecao daqueles submetidos a diagnostico de alteracões
geneticas causadoras de doencas, consagrando uma prática de eugenia negativa voltada à
eliminação de traços genéticos considerados indesejáveis.
Quanto ao destino dos embriões excedentários, que constitui o cerne principal deste
estudo, a Resolução283 permite o descarte, além do uso em pesquisa de células-tronco, no
mesmo prazo de três anos previsto pela Lei de Biossegurança, dos excedentes viáveis, após
três anos de congelamento, e dos inviáveis, independentemente de qualquer prazo.284
Inicialmente o descarte era proibido pela Resolução CFM nº 1.358/1992285. A
Resolução CFM nº 1.957/2010286 passou a estabelecer que os excedentes viáveis deveriam ser
criopreservados, sem definir um prazo mínimo de congelamento. Já as Resoluções CFM nº
2.013/2013287 e nº 2.121/2015288 fixavam um prazo de congelamento de 5 anos para descarte
282RETTORE, Anna Cristina de Carvalho. Gestacao de substituicao no Brasil: a estrutura de um negocio juridico
duplice, existente, valido e eficaz. Dissertação (Mestrado em Direito) - Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais, Belo Horizonte, 2018, p. 148. Disponível em:
<http://www.biblioteca.pucminas.br/teses/Direito_RettoreAC_1.pdf >. Acesso em: 22 set. 2019. 283V –CRIOPRESERVAÇÃO DE GAMETAS OU EMBRIÕES (Resolução CFM nº 2.168/2017)
[...] 4. Os embriões criopreservados com três anos ou mais poderão ser descartados se esta for a vontade
expressados pacientes. (grifo nosso) 284V - CRIOPRESERVAÇÃO DE GAMETAS OU EMBRIÕES (Resolução CFM nº 1.957/2010)
[...] 2. O numero total de embriões gerados em laboratorio sera comunicado aos pacientes para que decidam
quantos embriões serao transferidos a fresco, conforme determina esta Resolucao. Os excedentes, viaveis,
devem ser criopreservados. 285V - CRIOPRESERVAÇÃO DE GAMETAS OU PRÉ-EMBRIÕES (Resolução CFM nº 1.358/1992)
[...] 2 - O número total de pré-embriões produzidos em laboratório será comunicado aos pacientes, para que se
decida quantos pré-embriões serão transferidos a fresco, devendo o excedente ser criopreservado, não podendo
ser descartado ou destruído. (grifo nosso) 286V - CRIOPRESERVAÇÃO DE GAMETAS OU EMBRIÕES (Resolução CFM nº 1.957/2010)
1 - As clínicas, centros ou serviços podem criopreservar espermatozoides, óvulos e embriões.
2 - Do número total de embriões produzidos em laboratório, os excedentes, viáveis, serão criopreservados.
(grifo nosso) 287V - CRIOPRESERVACAO DE GAMETAS OU EMBRIOES (Resolucao CFM nº 2.013/2013)
108
ou uso em pesquisa, que, posteriormente, com a Resolução CFM nº 2.168/2017289, foi
reduzido para três anos, em sintonia com a atual Lei de Biossegurança, findo o qual é
permitida a manipulação em pesquisa de células-tronco embrionárias, com fins de cura e
terapia.
Em resumo, as Resoluções do CFM trouxeram importantes avanços no trato com
questões biojurídicas de interesse para o exercício de direitos fundamentais, conferindo
segurança deontológica para os contratos entre as clínicas e os indivíduos, mas assim como o
Direito apresentam dissensos em diversos aspectos, e sobre eles deve o legislador atuar para
proporcionar segurança jurídica, com respeito ao limite inarredável imposto pelas liberdades
individuais.
6.1 O tratamento deontológico aplicado aos embriões criopreservados
Em relação aos embriões excedentários, percebemos dois pontos comuns em todas as
normas deontológicas mencionadas, quais sejam: a proibição de comercialização dos
embriões, e um dever de congelamento dos viáveis, que, atualmente, observa um prazo de três
anos.
Ao definir como obrigatório um prazo de congelamento necessário ao descarte ou uso
em pesquisa, a Resolução presume que, durante o seu congelamento, o embrião in vitro
permanecerá viável, mas que, após determinado tempo, ele perderá gradativamente sua
viabilidade ou taxa de sobrevida, atingindo um estágio crítico ao final de três anos. Entretanto,
sobretudo com a evolução da criobiologia, ciência que estuda os processos de congelamento
[...] 2 - O numero total de embriões produzidos em laboratorio sera comunicado aos pacientes, para que
decidam quantos embriões serao transferidos a fresco, devendo os excedentes, viaveis, serem criopreservados.
[...] 4 - Os embriões criopreservados com mais de 5 (cinco) anos poderao ser descartados se esta for a vontade
dos pacientes, e nao apenas para pesquisas de celulas-tronco, conforme previsto na Lei de Biosseguranca.
(grifo nosso) 288V - CRIOPRESERVACAO DE GAMETAS OU EMBRIOES (Resolucao CFM nº 2.121/2015)
[...] 2- O numero total de embriões gerados em laboratorio sera comunicado aos pacientes para que decidam
quantos embriões serao transferidos a fresco. Os excedentes, viaveis, devem ser criopreservados.
[...] 4- Os embriões criopreservados com mais de cinco anos poderao ser descartados se esta for a vontade dos
pacientes. A utilizacao dos embriões em pesquisas de celulas-tronco nao e obrigatoria, conforme previsto na
Lei de Biosseguranca. (grifo nosso) 289V –CRIOPRESERVAÇÃO DE GAMETAS OU EMBRIÕES (Resolução CFM nº 2.168/2017)
[...] 2. O número total de embriões gerados em laboratório será comunicado aos pacientes para que decidam
quantos embriões serão transferidos a fresco, conforme determina esta Resolução. Os excedentes, viáveis,
devem ser criopreservados.
[...] 4. Os embriões criopreservados com três anos ou mais poderão ser descartados se esta for a vontade
expressados pacientes. (grifo nosso)
109
de células e tecidos, não há mais tanta certeza acerca sobre a inviabilidade do embrião
criopreservado.290
Claro está que nenhuma das duas normas, Lei e Resolução, estabelece a transferência
compulsória dos embriões fertilizados in vitro, preservando uma porção da autonomia privada
no âmbito da liberdade de planejamento familiar, ao contrário do que ocorre na Alemanha,
onde a legislação atual proíbe o congelamento, segundo Queiroz291, ao mesmo tempo em que
impõe a implantação obrigatória no útero de todos os embriões fertilizados in vitro, apenas
autorizando a pesquisa cientifica de celulas-tronco embrionarias que nao resultar na “morte”
de embriões292.
Acaso existente, um obrigação de transferir embriões fertilizados in vitro, isso,
logicamente, implicaria um conflito com o princípio da igualdade e não-discriminação,
previsto na Declaração Universal dos Direitos do Homem (DUDH), em virtude do tratamento
diferenciado à mulher, objetificada para atender a um fim utilitário, o qual não é, igualmente,
imposto, ao homem.
De todo o exposto, quanto à eficácia do dispositivo deontológico do CFM, visualiza-se
um exemplo característico da pluralidade das fontes normativas, plenamente admissível em
consonância com o pensamento de Pietro Perlingieri, para quem a “unidade do ordenamento
nao exclui a pluralidade e a heterogeneidade das fontes”293.
A despeito da crítica quanto à legitimidade do prazo de congelamento obrigatório,
considerando o respeito à autonomia privada dos sujeitos atinente à liberdade de planejamento
familiar, não haveria óbices na regulamentação pelo CFM de questões bioéticas relacionadas
ao exercício de direitos fundamentais, desde que, é claro, fosse salvaguardada a liberdade dos
sujeitos.
Sobre a monopolização do fenômeno jurídico pelo legislador, Pietro Perlingieri294
assevera que:
290EMBRIÃO congelado por 8 anos produz bebe. Folha de Sao Paulo, Ciencia, Sao Paulo, 9 mar. 2008.
Disponivel em: <https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ciencia/fe0903200801.htm>. Acesso em: 5 out. 2018. 291QUEIROZ, Juliane Fernandes. Reprodução assistida post mortem : aspectos jurídicos de filiação e sucessório.
Curitiba : Ed. UFPR, 2015, p. 145. 292ALEMANHA permite com restrições patentes sobre pesquisas de células-tronco. Deutsche Welle. Ciência e
Saúde. Berlim, 28 nov. 2012. Disponível em: <https://www.dw.com/pt-br/alemanha-permite-com-restrições-
patentes-sobre-pesquisas-de-células-tronco/a-16414553>. Acesso em: 19 jan. 2019. 293PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. Tradução de: Maria Cristina De Cicco. 3. ed. rev. e ampl. Rio
de Janeiro: Renovar, 2002, p. 7-8. 294PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. Tradução de: Maria Cristina De Cicco. 3. ed. rev. e ampl. Rio
de Janeiro: Renovar, 2002, p. 22.
110
A representação política tende a transformar-se em uma representação fictícia e a
deixar que poucos os mais fortes e organizados decidam por todos. Com o advento
da lei do mais forte, é inevitável que direito e Justiça estejam em crise.
Percebida a observância de princípios bioéticos, como beneficência, autonomia e
justiça, conquanto se diga que os dispositivos deontológicos do CFM têm como destinatários
imediatos os profissionais médicos, a sociedade também se beneficia da adequação ética do
agir na esfera biomédica, daí a importância de atentar para os limites das normas
deontológicas.
Afora isso, as normas deontológicas são mais capazes de acompanhar a rápida
evolução da ciência, consoante frisam Tallarico e Martins295:
Contudo, as normas cogentes não são eficazes a ponto de tutelar de forma mais
específica intervenções humanas na vida, vez que um processo legislativo é moroso,
não acompanhando o desenvolvimento da biotecnologia. Por isso, o Conselho
Federal de Medicina edita normas deontológicas, destinadas aos profissionais da
saúde médica responsáveis pela engenharia genética. São as chamadas resoluções,
que possuem força cogente apenas para determinado grupo de indivíduos, sendo
aplicadas administrativamente.
Além disso, a positivação dos fenômenos sociais pelo Direito também não garante que
a liberdade será contemplada em todos os aspectos pertinentes, considerando que podem
haver projetos de lei conflitantes com algumas liberdades positivadas, das quais são
exemplos: ADI 5257 / RO296, julgada procedente para se declarar a inconstitucionalidade do
art. 1º e do art. 2º da Lei nº 1.864/2008 do Estado de Rondônia, por violação dos princípios da
laicidade do Estado e da liberdade de crença; e ADI 3464 / DF297 julgada procedente para
declarar a inconstitucionalidade do art. 2º, IV, "a", "b" e "c", da Lei nº 10.779/03, por violação
aos princípios da liberdade de associação e da liberdade sindical (arts. 5º, XX, e 8º, V, da CF).
Assim, como destaca Jeremy Waldron, um projeto de lei não se torna lei simplesmente
ocupando um lugar no livro dos estatutos, mas apenas quando começa a desempenhar uma
função na vida comunitária, quando então começa a ser administrada e interpretada pelos
tribunais, não passando antes de uma possível fonte de direito.298
295TALLARICO, Rafael; MARTINS, Gleison José Pereira. Biotecnologia, Direito e Ética – Belo Horizonte:
Editora D’Placido, 2014, p. 156. 296BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5.257 RO. Relator: Min. Dias
Toffoli. Diario de Justica Eletronico, Brasilia, 3 dez. 2018. 297BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3.464-2 DF. Relator: Min.
Menezes Direito. Diario de Justica Eletronico, Brasilia, 6 mar. 2009. 298WALDRON, Jeremy. A dignidade da legislação ; tradução Luís Carlos Borges ; revisão da tradução Marina
Appenzeller. – São Paulo : Martins Fontes, 2003, p. 11-12.
111
Por isso, a importância defendida por Maria do Rosario H. Sánchez Morales299 de que
os cidadãos sejam alfabetizados em questões científicas, a fim de que suas opiniões sejam
consideradas no momento da discussão sobre linhas de investigação e técnicas hoje
desenvolvidas no campo da genética humana, contribuindo para o progresso material e
espiritual da sociedade.
Por outro lado, por se encontrar inserida no pluralismo normativo300, a flexibilidade da
norma médico-deontológica pode ser identificada como outra vantagem em relação à
intervenção do Direito, que, geralmente, incorpora critérios rígidos e inconciliáveis com
diferentes possibilidades interpretativas de novas concepções e perspectivas de situações
conflituosas.
Nesse sentido, Sandra Lima Alves Montenegro enfatiza que o pluralismo de fontes
normativas é uma tendência mundial, que vem sendo confirmada pela formação de
documentos por comitês de bioética como a Comissão Warnock, na Inglaterra; a National
Comission for the Protection of Human Subjects of Biomedical and Behavioral Research,
responsável pelo Relatório Belmont, em 1978, nos Estados Unidos, e outros mais301.
Em sentido contrário, Eduardo de Oliveira Leite302 diz que falta legitimidade aos
Conselhos de Medicina para regular relações privadas, por falta de coercitividade das normas
éticas, bem como pelo fato de não terem sido elaboradas por representantes da sociedade
como um todo. Concordamos em parte com o referido autor, pois consideramos indesejável a
abstenção do legislador por resultar em insegurança jurídica, já no tocante à legitimidade,
cremos que a observância de princípios bioéticos e o respeito a direitos fundamentais pode
conferir um caráter de legitimidade ao dispositivo deontológico.
De outra parte, consoante adverte Habermas303, existe o risco de uso abusivo do direito
tanto na absoluta regulamentação de nítida postura intervencionista pelo Estado sobre a
liberdade individual na dimensão vertical das relações entre particulares e o poder público, em
nome da sensação de segurança jurídica, como também há o risco de uso abusivo da violência
social na dimensão horizontal dos relacionamentos entre as pessoas privadas, já que para a
299MORALES, Maria Rosario H. Sánchez. Os desafios da biotecnologia humana no século XXI. In: Romeo-
Casabona, Carlos María; Sá, Maria de Fátima Freire de (organizadores). Desafios jurídicos da biotecnologia.
Belo Horizonte: Mandamentos, 2007, p. 260. 300Por pluralismo normativo se entende a possibilidade de reconhecimento de diferentes fontes normativas. 301MONTENEGRO, Sandra Lima Alves. Consentimento informado: regras gerais de conduta estabelecidas por
meio de comitês de bioética para reprodução humana assistida. In: Romeo-Casabona, Carlos María; Queiroz,
Juliane Fernandes. Biotecnologia e suas implicações ético-jurídicas. – Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 199. 302LEITE apud ORSELLI, Helena Maria Zanetti de Azeredo. O status jurídico do pré-embrião humano a partir
dos princípios constitucionais do pluralismo e da laicidade. Curitiba: Editora Prismas, 2016, p. 87. 303HABERMAS, Jürgen. O futuro da natureza humana : a caminho de uma eugenia liberal? ; tradução Karina
Jannini ; revisão da tradução Eurides Avance de Souza. - São Paulo : Martins Fontes, 2004, p. 105.
112
perspectiva liberal as decisões sobre o patrimônio genético devem ser deixadas somente aos
pais. Cabe ao Direito desatar esse nó górdio, ao mesmo tempo assegurando a liberdade de
planejamento familiar e mitigando o uso abusivo da violência social.
Por fim, do cotejo entre a Lei de Biossegurança e a Resolução CFM nº 2.168/17,
percebe-se que as técnicas de reprodução humana assistida, previstas em ambas as normas,
derivam dos fundamentos de uma eugenia liberal, entrementes um consenso social mínimo de
compensar o uso em pesquisa de uma forma de vida no seu estágio mais precoce para atender
aos princípios da liberdade de planejamento familiar, da autonomia reprodutiva e da liberdade
científica, esta em uma de suas dimensões: a negativa para evitar doenças hereditárias.
Por tais razões, defendemos uma eugenia liberal responsável que se desenvolva sob a
perspectiva de desenvolvimento de bens coletivos em perfeita consonância com a vida social,
sobretudo nas relações privadas, mediante a cooperação dos indivíduos para satisfação tanto
de interesses particulares quanto coletivos, sem a violação dos direitos da personalidade e da
dignidade humana, valores estes que não justificam a fixação de um prazo obrigatório de
congelamento.
113
7 A POSSIBILIDADE DE EXPERIMENTAÇÃO COM EMBRIÕES
7.1 Antecedentes históricos
A ciência genética foi descoberta pelo professor austríaco Gregor Johann Mendel, em
1856, ao estudar as leis da hereditariedade, no cruzamento entre espécies de plantas, dentre
elas ervilhas cultivadas na horta do mosteiro da cidade de Bruno, localizada atualmente na
República Checa.
A segunda metade do século XX foi uma fase de grande avanço científico, marcada
cientificamente, em 7 de março de 1953, ante a descoberta realizada pelos vencedores do
prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina de 1962, James Watson e Francis Crick, no
laboratório Cavendish da Universidade de Cambridge, da molécula de DNA, também
conhecida pela sigla ADN, estrutura helicoidal responsável pela transmissão das
características hereditárias, e por armazenar as informações somáticas dos seres vivos.
Em 1961, dois cientistas canadenses do Instituto de Câncer de Ontário, o biofísico
James Till e o biólogo celular Ernest McCulloch, descobriram as células-tronco, e, em
seguida, publicaram uma série de estudos sobre as propriedades marcantes das células
estaminais (células-tronco), nomeadamente a capacidade de se renovarem, bem como de
repararem e substituírem os tecidos do corpo, demonstrando que são transplantáveis.304
Alguns anos depois, em 1978, na Inglaterra, logrou-se êxito na concepção extrauterina
de um embrião humano, resultando no nascimento do primeiro bebê de proveta, como ficou
conhecida Louise Joy Brown305, nascida em 5 de julho de 1978, sendo o primeiro caso de uma
vida humana gerada a partir de um embrião criopreservado, utilizando-se da técnica de
fertilização in vitro, também usada para originar a Baby Zoe, na Austrália. No Brasil, tal feito
só foi atingido, em 1984, empregando esse método inovador responsável por viabilizar o
projeto parental para inúmeros casais com problemas reprodutivos, conforme destaca Sandra
Lima Alves Montenegro306.
304PICARD, André. Como a descoberta de células-tronco revolucionou a medicina. The Globe and Mail.
Canadá, 15 jan. 2017. Disponível em: <https://www.theglobeandmail.com/news/national/canada-150/how-the-
discovery-of-stem-cells-revolutionized-medicine/article33627636/>. Acesso em: 24 jun. 2019. 305 HÁ 40 anos, nascia o primeiro bebê de proveta do mundo. Estadão. Ciencia. Sao Paulo, 25 jul. 2018.
Disponivel em: <https://ciencia.estadao.com.br/noticias/geral,ha-40-anos-nascia-o-primeiro-bebe-de-proveta-
do-mundo-,70002413932>. Acesso em: 17 jan. 2019. 306MONTENEGRO, Sandra Lima Alves. Consentimento informado: regras gerais de conduta estabelecidas por
meio de comitês de bioética para reprodução humana assistida. In: Romeo-Casabona, Carlos María; Queiroz,
Juliane Fernandes. Biotecnologia e suas implicações ético-jurídicas. – Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 191.
114
Ainda no século passado, em Roslin, na Escócia, realizou-se, com sucesso, o primeiro
procedimento de clonagem terapêutica de uma ovelha chamada Dolly, a partir de uma célula
adulta de outro animal da mesma espécie, sem participação do gameta masculino, conforme
artigo publicado na revista Nature307, em fevereiro de 1997.
No entanto, somente em 1998, a equipe do biólogo James Thomson, da Universidade
de Wisconsin, Estados Unidos, conseguiu isolar e desenvolver pela primeira vez em
laboratório uma linhagem de células-tronco extraídas de embriões humanos.
Já, no século XXI, em 2010, teve início o primeiro teste clínico com células-tronco
embrionárias em humanos, por médicos estadunidenses, no centro Shepherd de reabilitação e
pesquisas de lesões da medula e do cérebro de Atlanta (Geórgia), conforme anunciado pela
empresa de biotecnologia Geron Corporation.308
Durante longo tempo, a experimentação científica se desenvolveu sem regras claras
quanto aos limites éticos. Somente depois dos abusos cometidos pelo nazismo é que
começaram a ser estabelecidas diretrizes, como as do Código de Nuremberg309 (1946),
Declaração de Helsinque I (1964) e Declaração de Helsinque II (1975), embora sem força
cogente de lei. A Declaração de Helsinque I (1964) é tida como o primeiro documento a
definir princípios éticos para reger pesquisas com seres humanos.310 No Brasil, a matéria
referente à pesquisa com seres humanos é tratada, atualmente, pela Resolução nº 466, de 12
de dezembro de 2012, do CNS.311
7.2 Limites ético-jurídicos da experimentação com embriões criopreservados
Ainda hoje, em razão do rápido progresso científico, não são totalmente seguros os
limites éticos da experimentação, ante à falta de leis regulamentando diversos aspectos do
assunto, como a reprodução assistida humana, tanto no Brasil como em diversos países.
Devido a esse vácuo legal, são criadas normas éticas, para responder às indagações que
surgem com relação ao agir humano, a fim de amparar as condutas e responsabilidades dos
307WILMUT et al. Descendência viável derivada a partir de células fetais e de mamíferos adultos. [S. l.]: Nature,
1997; 385:810-3. Disponível em: <https://www.nature.com/articles/385810a0>. Acesso em: 16 fev. 2019. 308GERON: 1º tratamento com células-tronco de embriões humanos. [S. l.]: Revista Exame. Ciência,
Tecnologia, 14 jul. 2012. Disponível em: <https://exame.abril.com.br/ciencia/geron-1o-tratamento-celulas-
tronco-embrioes-humanos-603561/>. Acesso em: 24 jan. 2019. 309Documento elaborado pelo Tribunal Militar Internacional incumbido de julgar os criminosos pelas atrocidades
cometidas na 2ª Guerra Mundial, composto de dez regras definidoras de princípios para realização de
experiências com seres humanos. 310SALDANHA, Ana Claudia. A tutela do embrião humano. 1. ed. – Curitiba: Editora Prismas, 2015, p. 64. 311NAMBA, Edison Tetsuzo. Manual de bioética e biodireito. 2. ed. – São Paulo : Atlas, 2015, p. 115.
115
profissionais, bem como assegurar respeito aos princípios bioéticos reconhecidos
internacionalmente.
Consoante aponta Daniela Grechi312:
Os projetos de lei existentes no País sobre Reprodução Assistida (atualmente são
treze) não são unânimes quanto à possibilidade de pesquisa científica envolvendo
embriões. Também em nível internacional não existe orientação uniforme acerca da
permissibilidade.
No embate de ideias a favor e contra a experimentação científica, apresentam-se
justificativas, como as que vemos no campo das pesquisas com células-tronco, para a
utilização em prol da humanidade, em decorrência da promissora potencialidade terapêutica
que referido material genético apresenta no combate a diversas doenças, para as quais ainda
não foi encontrada cura, essencialmente ligada à eliminação de embriões, como Alzheimer,
Mal de Parkinson, algumas formas de paralisia cerebral e outras mais. Desse modo, o objetivo
prioritário consiste em diminuir o sofrimento humano, em razão do potencial regenerativo
decorrente da capacidade que as células-tronco embrionárias têm de se transformar em
qualquer tecido. Do outro lado, a corrente contrária à permissão de pesquisa com células-
tronco embrionárias encontra-se motivada, fortemente, por valores morais, religiosos, e
convicções técnicas sobre o início da vida a partir da fecundação.313
No entanto, o aperfeiçoamento das técnicas de RA veio acompanhado de um sério
problema: o excedente de embriões in vitro, em relação ao qual não foi pensada uma solução
jurídica que abranja todos possíveis cenários. Entre as alternativas propostas para lidar com o
excedente de embriões, e, consequentemente, com o problema do congelamento, já foi
cogitado limitar a produção somente do número desejado e necessário à transferência para o
útero. Contudo, essa alternativa se choca com a realidade que consiste na necessidade da
produção excedentária de embriões por FIV, diante do fato de que nem todos os embriões
serão implantados, pois alguns podem apresentar alterações cromossômicas, possibilidade que
aumenta com a idade da mulher.314
Nesse cenário, o embrião é visto como principal repositório de células-tronco para
pesquisas científicas, por possuir células dotadas de pluripotência, derivadas do embrioblasto,
em detrimento das menos versáteis células-tronco adultas, qualificadas como multipotentes, 312GRECHI, Daniela. O uso das células-tronco embrionárias : incertezas e novas promessas para a medicina do
futuro. – Caxias do Sul : Educs, 2009, p. 112. 313SALDANHA, Ana Claudia. A tutela do embrião humano. 1. ed. – Curitiba: Editora Prismas, 2015, p. 98. 314ALVARENGA, Raquel de Lima Leite Soares. Considerações sobre o congelamento de embriões. In: Romeo-
Casabona, Carlos María. O Direito Biomédico e a Bioética. In: Romeo-Casabona, Carlos María; Queiroz,
Juliane Fernandes. Biotecnologia e suas implicações ético-jurídicas. – Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 233.
116
com potencial de diferenciação inferior ao das células pluripotentes, por apenas formarem
tecidos específicos de onde elas foram retiradas.
Daniela Grechi315 acrescenta outra importante limitação em relação às células-tronco
adultas:
De todo modo, a maior limitação quando usadas células-tronco da própria pessoa é
que não serviriam para portadores de doenças genéticas, visto que o defeito está
presente em todas as células daquela pessoa, apesar de só se expressar em tecidos
específicos.
Nessa discussão, sem embargo da relevância das possíveis descobertas científicas, são
adicionados dilemas morais decorrentes da manipulação genética das células-tronco
embrionárias humanas, em virtude da instrumentalização do excedente obtido da prática
terapêutica de reprodução humana assistida como aplicação para realização do projeto
parental, conforme assegurado pelo art. 226, § 7o, da CF.
Frise-se, mais uma vez, que esse excedente é produzido intencionalmente pelas
clínicas médicas de reprodução humana assistida, devido ao alto custo da tecnologia para
realização da FIV, que pode ser bem ou malsucedida, exigindo, às vezes, mais de uma
tentativa, conforme informação que deve ser previamente esclarecida aos pacientes.
Em vista disso, entre 2016 e 2017, foi registrado um crescimento de 17% em relação
ao número de embriões humanos produzidos pelas técnicas de FIV criopreservados nas
clínicas de Reprodução Humana Assistida, registrando-se um total de 78.216 embriões
congelados, no Brasil, conforme informações levantadas pelo 11º Relatório do Sistema
Nacional de Produção de Embriões (SisEmbrio)316. Desse total de 78.216 embriões
congelados, apenas 122 foram doados para pesquisa, conforme dados obtidos em 21/02/2018,
notando-se a grande disparidade entre os embriões que permaneceram congelados, para
atender ao prazo de três anos, e os que foram destinados para pesquisa, porque já cumpriram o
lapso temporal, ou porque foram classificados como inviáveis.
Contudo, além da produção excedente de embriões pelas técnicas de RA, com a
finalidade exclusiva de procriação, há, ainda, dois outros modos de se obter células-tronco: de
indivíduos adultos; e através da clonagem terapêutica, transferindo-se o núcleo de uma célula
315GRECHI, Daniela. O uso das células-tronco embrionárias : incertezas e novas promessas para a medicina do
futuro. – Caxias do Sul : Educs, 2009, p. 119. 316AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA. Reprodução Humana Assistida. Número de
embriões criopreservados cresce 17% no país. Brasília, 16 maio 2018.
117
já diferenciada, derivada de um adulto ou de um embrião, para um óvulo desprovido de
núcleo.317
A clonagem terapêutica surgiu como alternativa para frear a destruição de embriões
criopreservados, por meio da produção por síntese artificial de embriões em laboratório.
Consiste, assim, no procedimento que visa à transferência de uma célula somática de um
indivíduo a um óvulo humano anucleado, limitado à produção de células, tecidos ou órgãos.
Os pesquisadores se dividem entre o uso de células tronco-embrionárias e somáticas para
realizar suas investigações científicas, apesar de que, em ambos os casos, existe a
potencialidade indefinida de se converterem em um ser humano.
No entanto, a clonagem terapêutica difere da clonagem reprodutiva, porquanto esta
consiste na retirada do núcleo de uma célula somática de um indivíduo, para depois fundir seu
núcleo a um óvulo, e implantá-lo em um útero, resultando num novo ser com as mesmas
características físicas de quem foi retirada a célula somática. Em que pese ser proibida a
clonagem reprodutiva pela LB (art. 3º, IX), Sá e Naves318 vislumbram que a única
possibilidade aceitável para sua realização seria na ocorrência de uma doença genética
recessiva de um dos cônjuges, que impeça o aproveitamento de seu material genético na
construção do projeto parental.
Do mesmo modo, a clonagem terapêutica também é proibida pela LB (art. 3º, X). No
plano internacional, a sua proibição, para fins de investigação, vem expressa na Convenção de
Oviedo (Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e da Dignidade do Ser
Humano face às Aplicações da Biologia e da Medicina), celebrada em 1997.319 Em seu art. 2º,
está disposto que o interesse e bem-estar humano têm prevalência sobre o interesse exclusivo
da sociedade e da ciência.320
A Declaração Universal do Genoma Humano e dos Direitos Humanos321 também
considera como prática contrária à dignidade humana, a clonagem de seres humanos (Artigo
11), bem como proíbe a intervenção no genoma humano, a não ser com fins preventivos,
terapêuticos ou diagnósticos, na medida em que o objetivo não seja manipular a linha celular
germinal (Artigo 16), recomendando a sua proibição e exortando Estados e organizações
317SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. Bioética e biodireito. 4. ed. Belo
Horizonte: Del Rey, 2018, p. 293. 318SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. Bioética e biodireito. 4. ed. Belo
Horizonte: Del Rey, 2018, p. 292. 319NAMBA, Edison Tetsuzo. Manual de bioética e biodireito. 2. ed. – São Paulo : Atlas, 2015, p. 73. 320SALDANHA, Ana Claudia. A tutela do embrião humano. 1. ed. – Curitiba: Editora Prismas, 2015, p. 47. 321UNESCO. Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e a Cultura. Declaração Universal do
Genoma Humano e dos Direitos Humanos. 29ª sessão da Conferência Geral da UNESCO. [S. l.]: 11 nov.
1997. Disponivel em: <https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000122990_por>. Acesso em: 20 jan. 2018.
118
internacionais a cooperar na identificação e tomada das medidas necessárias para assegurar o
respeito aos seus princípios.
A preocupação peculiar que A Declaração Universal do Genoma Humano e dos
Direitos Humanos tem com a preservação da dignidade humana nas mais variadas pesquisas
pode ser observada em seu art. 10:
Art. 10. Nenhuma pesquisa ou aplicação de pessoas relativa ao genoma humano, em
especial nos campos da biologia, genética e medicina, deve prevalecer sobre o
respeito aos direitos humanos, às liberdades fundamentais e à dignidade humana dos
indivíduos ou, quando for o caso, de grupo de pessoas.
O objetivo de proteger o genoma humano também se encontra presente na Convenção
sobre a Diversidade Biológica, em cujo preâmbulo as Partes Contratantes se comprometem
“em conservar e utilizar de maneira sustentavel a diversidade biologica em beneficio das
geracões atuais e futuras”322.
A investigação quanto a doenças hereditárias abre, contudo, a possibilidade de
interferência no patrimônio genético da futura descendência, motivo pelo qual, no meio
científico, é recomendada a opção pelo uso de células tronco-somáticas encontradas no cordão
umbilical, placenta, tecido fetal e no indivíduo adulto.
Como resultado, a manipulação, enquanto atividade de pesquisa, encontra-se limitada
às células somáticas, considerando a potencialidade que a clonagem reprodutiva tem de violar
princípios de autonomia e dignidade dos indivíduos gerados, bem como de colocar em risco a
diversidade da espécie, que é protegida, através da proibição de alterações artificiais sobre o
patrimônio genético.
Sá e Naves323 destacam, ainda, que:
Especificamente quanto à clonagem, a atuação desses princípios fundamentaria sua
proibição, pois a precaução não estaria garantida diante de tantos riscos sérios e
irreversíveis, que são empiricamente demonstrados em pesquisas científicas.
Estreitamente ligado à precaução está a responsabilidade para com as gerações
presentes e futuras, porquanto o risco em se clonar é demasiadamente grande para
um resultado questionável.
A proibição tem o objetivo de proteger o patrimônio genético humano, amparado pela
Lei de Biossegurança, que proíbe, a não ser para fins de pesquisa e terapia, a engenharia
322MELO, Helena Pereira de. Manual de biodireito. 1. ed. – Coimbra: Edições Almedina, 2008, p. 173. 323SÁ, Maria de Fátima Freire de; Naves, Bruno Torquato de Oliveira. Bioética e biodireito. 4. ed. Belo
Horizonte: Del Rey, 2018, p. 290.
119
genética em organismo vivo e em célula germinal, zigoto e embrião humanos (art. 6o, II e III,
Lei n. 11.105/2005).
Apesar de toda a proteção que se confere aos embriões e à carga genética que eles
possuem, nota-se que as práticas adotadas pela medicina reprodutiva tendem à
instrumentalização, embora a destinação seja em favor da pessoa humana, para concretização
de seu projeto parental, tal qual se verifica através da permissão legal de uso de embriões
excedentários em pesquisa, com fins de cura e terapia.
Para Sandel324, a instrumentalização é bem-vinda, pois é um erro pensar na saúde em
termos exclusivamente instrumentais, como no caso da eugenia positiva, ou na aplicação na
reprodução seletiva, o que não implica desabonar práticas eugênicas que visem curar doenças,
essas, sim, confirmadoras do valor intrínseco da saúde. Nesse âmbito, a eugenia negativa
consistiria no emprego do saber operacional da engenharia genetica para fins de prevencao e
cura de doencas de origem genetica, com acões de carater restritivo, diretamente sobre o
patrimonio genetico do individuo, ou para impedir que pessoas com certas limitações se
reproduzam, conforme Mai e Angerami.325
Quanto ao consentimento do indivíduo que estaria por nascer, Habermas326 chega
inclusive a cogitar sua eventual aceitação tácita, ainda na fase embrionária, quando afetado
com alguma doença incurável ou deformidade que o impeça de gozar com plenitude a vida,
caso em que haveria legitimidade nas intervenções eugênicas realizadas com o fim de evitar
males extremos.
De outro lado, quanto ao embate entre instrumentalização e o princípio da dignidade,
compreendemos que, sendo os indivíduos considerados titulares dos embriões in vitro, até
porque sem o material genético daqueles não seria possível fazer uso das técnicas de RA,
quanto menos produzir artificialmente embriões, afigurando-se adequado tomá-los como
referencial em relação ao princípio da dignidade da pessoa humana. Isso implica dizer que, ao
mesmo tempo em que são protegidos os direitos fundamentais reprodutivos dos indivíduos,
são também protegidos os interesses da sociedade de preservação do patrimônio genético,
inobstante seja legítima a utilização dos embriões excedentários, para atender a uma
finalidade social.
324SANDEL, Michael J. Contra a perfeição: ética na era da engenharia genética. tradução Ana Carolina
Mesquita. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. p. 61-62. 325MAI, Lilian Denise; ANGERAMI, Emilia Luigia Saporiti. Eugenia negativa e positiva: significados e
contradições. Revista Latino-Americana de Enfermagem, São Paulo, v. 14, nº 2, mar.-abr. 2006, p. 251-8.
Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rlae/v14n2/v14n2a15.pdf>. Acesso em: 16 set. 2019. 326HABERMAS, Jürgen. O futuro da natureza humana : a caminho de uma eugenia liberal? ; tradução Karina
Jannini ; revisão da tradução Eurides Avance de Souza. - São Paulo : Martins Fontes, 2004, p. 88.
120
Por tais razões, tendo em vista que alguns dos temas relacionados à conduta humana
na esfera biomédica e na aplicação da biotecnologia à vida, como a investigação com células-
tronco com fins de cura e terapia, consistem em comportamentos que não causam prejuízos a
terceiros ou à sociedade, posicionamo-nos favoravelmente à experimentação científica dos
excedentes embrionários de procedimentos de RA, sem a observância de prazos e condições
biológicas. Nesse caso, somente se justificaria o descarte, na impossibilidade de uso em
pesquisa dos embriões “inviaveis”, a fim de se assegurar máxima efetividade à liberdade de
expressão da atividade científica, prevista como direito fundamental no art. 5º, inciso IX, da
CF, em harmonia com o direito difuso ao patrimônio genético, tutelado pelo art. 225, §1º, II,
da CF.
Sobre o princípio da máxima efetividade dos direitos fundamentais, George
Marmelstein327 informa que:
A cláusula da aplicação imediata tem sim uma importância prática extraordinária.
Ela é a consagração expressa do princípio da máxima efetividade, que é inerente a
todas as normas constitucionais, especialmente as definidoras de direitos. Ela é o
reconhecimento formal por parte do constituinte de que os direitos fundamentais têm
força jurídica especial e potencializada.
Nesse viés, a destruição dos embriões excedentários em pesquisa ocorreria tanto para
não violar os direitos fundamentais reprodutivos dos genitores quanto para reconhecer ao
patrimônio genético presente naqueles o caráter de bem comum de acessibilidade a todos pro
indiviso, no sentido de pertencimento comunitário, quando não utilizados para fins
reprodutivos, haja vista a possibilidade de relativização de direitos fundamentais frente a
outros, como a liberdade científica e o desenvolvimento da saúde.
No mesmo sentir, Anderson Schreiber328 afirma que:
Questão que tem suscitado amplo debate na sociedade brasileira diz respeito à
chamada proteção jurídica dos embriões, especialmente em face dos procedimentos
de fertilização in vitro. Os embriões encontram-se em um estágio ainda anterior
àquele dos nascituros. Somente se tornam nascituros no momento em que são
implantados no útero materno. Por isso, não gozam de personalidade, nem sequer
têm interesses futuros e eventuais tutelados pela legislação. Ainda assim, há autores
que sustentam que os embriões in vitro têm direito à vida e ao tratamento digno, por
serem potencialmente pessoas humanas. A proposta, embora aparentemente
progressista e humanitária, deve ser examinada com extrema cautela, porque poderia
criar obstáculo jurídico insuperável à discussão de temas importantíssimos, como as
pesquisas com células-tronco e a descriminalização do aborto. A melhor abordagem
aqui parece ser a imposição, em procedimento de fertilização e pesquisas científicas
que possam resultar no descarte de embriões humanos, de deveres de segurança e
327MARMELSTEIN, George. Curso de direitos fundamentais. - 7. ed. - São Paulo : Atlas, 2018, p. 311. 328SCHREIBER, Anderson. Manual de direito civil contemporâneo. 2. ed. – São Paulo : Saraiva, 2019, p. 101.
121
cuidado compatíveis com a especial natureza dos embriões, sem, contudo, pretender
lhes atribuir personalidade jurídica.
Por derradeiro, conforme Orselli329, a liberdade científica seria tolerada apenas para a
busca de eventual cura para uma série de doenças consideradas hoje incuráveis, e também
limitada pela conjugação de dois requisitos: (1) somente servirão como objeto de pesquisa os
embriões não utilizados em procedimento de FIV; e (2) mediante autorização dos
fornecedores do material genético.
329ORSELLI, Helena Maria Zanetti de Azeredo. O status jurídico do pré-embrião humano a partir dos princípios
constitucionais do pluralismo e da laicidade. Curitiba: Editora Prismas, 2016, p. 293.
123
8 O CONTRATO ENTRE A CLÍNICA E OS SUJEITOS FONTES E AS
POSSIBILIDADES REFERENTES AO DESCARTE E ABANDONO DE EMBRIÕES
A realização do planejamento familiar, que utiliza como recurso determinada técnica
de reprodução assistida, consiste num evento suficientemente idôneo a ter relevância jurídica
para o ordenamento, à vista dos serviços prestados, e das legítimas expectativas geradas nos
interessados em concretizar um projeto existencial.
Nesse cenário, a prestação de um serviço, que busca assegurar às pessoas com
problemas de fertilidade o acesso a técnicas viabilizadoras do pleno exercício da saúde
reprodutiva, apresenta suficiente aptidão para afetar bens jurídicos e direitos fundamentais
objetos de relações intersubjetivas privadas, cada vez mais intrincadas, em virtude da
chamada descodificação330. Isto porque quando se fala em contrato de reprodução assistida
não estamos tratando da prestação pura e simples de um serviço, mas da contratualização que
objetiva a efetivação de um direito fundamental, a exigir um cuidado maior com respeito à
preservação dos direitos individuais, no momento da pactuação das obrigações recíprocas, que
demanda um instrumento tecnico e juridico adequado no estabelecimento dos direitos e
deveres das partes, sobre os quais recai a tutela protetiva do Estado para situações de seu
próprio interesse referente à preservação do patrimônio genético.
Dessa maneira, como principal elemento diferenciador dos demais contratos, a
prestação oportunizada pela realização das técnicas de reprodução assistida liga-se,
essencialmente, ao direito à saúde reprodutiva (art. 196, CF), como direito de todos e dever do
Estado, passível de ser prestado pelo poder público, ou por terceiros, sob controle e
fiscalização do Estado (art. 197, CF). A mesma sorte assiste ao contrato de congelamento dos
embriões excedentes em clínicas, pois sem tais serviços médicos ficaria prejudicada a
efetivação do direito de planejamento familiar, que requer a garantia de todos os meios e
técnicas disponíveis para a regulação da fecundidade ou saúde reprodutiva, dentre os quais se
inclui a possibilidade de congelar o excedente para futuros ciclos de transferências, que
possibilitam escolhas quanto à constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher, pelo
homem ou pelo casal. Corroboram tal raciocínio os arts. 2º e 4º da Lei nº 9.263/1996:
330A descodificação consiste na perda de centralidade do Código Civil face à influência mais incisiva do Texto
Constitucional, no sentido de que toda lei deve ser coerente com a Constituição, conforme Pietro Perlingieri
(Perlingieri, 2002, p. 5-6).
124
Art. 2º Para fins desta Lei, entende-se planejamento familiar como o conjunto de
ações de regulação da fecundidade que garanta direitos iguais de constituição,
limitação ou aumento da prole pela mulher, pelo homem ou pelo casal.
[...] Art. 4º O planejamento familiar orienta-se por ações preventivas e educativas e
pela garantia de acesso igualitário a informações, meios, métodos e técnicas
disponíveis para a regulação da fecundidade.
Assim, questões como tempo de congelamento, descarte, abandono, responsabilidade
dos contratantes, natureza jurídica do material genético objeto das situações subjetivas surgem
em torno do contrato entre a clínica e os sujeitos fontes.
8.1 A relação contratual médico-paciente
Para se falar do contrato entre a clínica e os sujeitos fontes é preciso antes tratar dos
requisitos indispensáveis à sua formação, dentro da perspectiva de respeito individual ao qual
se encontram submetidos os médicos, com relação aos dados de caráter biológico, jurídico e
ético dos pacientes.
Sob a ótica do Código Civil (art. 104), os requisitos para a validade de qualquer
negócio jurídico são: agente capaz; objeto lícito, possível, determinado ou determinável; e
forma prescrita ou não defesa em lei. Além desses, exige-se a vontade livre e informada do
agente. Assim, os requisitos de validade exigidos pela lei qualificam os pressupostos
existenciais de todo e qualquer negócio jurídico, que são: agente, objeto, forma e vontade
exteriorizada, de acordo com a escala ponteana (Pontes de Miranda).
Sá e Naves331 entendem que, para o exercício da autonomia privada, são também
exigidos requisitos de validade especiais ou complementares aos dos atos jurídicos em geral,
sendo eles: informação, discernimento e ausência de condicionadores externos. Assim, para
decidir o paciente deve estar suficientemente informado sobre todos os aspectos do
tratamento, seus riscos e benefícios, de forma clara e acessível, bem como precisa, ainda, ter
discernimento para compreender a própria situação, livre de condicionadores externos diretos,
como vícios sociais ou de consentimento, que comprometam à manifestação de sua vontade.
Quanto à forma, para Sérgio Abdalla Semião332, considerando que a atividade médica
se encontra ligada à reprodução humana, aquela nunca terá caráter emergencial, bem como
não seria ética nem juridicamente admissível a forma verbal, pelo que a forma escrita é
obrigatória, independentemente de previsão legal. 331SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. Bioética e biodireito. 4. ed. Belo
Horizonte: Del Rey, 2018, p. 108-109. 332SEMIÃO, Sérgio Abdalla. Biodireito & Direito Concursal: aspectos científicos do direito em geral e da
natureza jurídica do embrião congelado. Belo Horizonte: Del Rey, 2012, p. 149.
125
Anderson Schreiber333 acrescenta que, diferentemente da forma, o formalismo é
dirigido à garantia de interesses ou valores protegidos pelo ordenamento constitucional, em
razão de uma perspectiva atenta à necessidade de concretização de determinados valores
constitucionais nas relações privadas, como na disciplina dada aos contratos de adesão, em
relação aos quais o Código de Defesa do Consumidor estabelece algumas formalidades, para
fins de aferição da validade.
Em se tratando do consentimento, este é tido como a manifestação da vontade entre as
partes de uma relação, própria das relações jurídico-privadas, consoante lição de Romeo-
Casabona334. Através do consentimento, o indivíduo exerce sua autonomia privada, que difere
da mera vontade, pois enquanto esta apresenta um preponderante aspecto psicológico,
residente na vontade interna da pessoa, aquela é objetivamente delimitada pelo Direito.
Perlingieri335 conceitua “autonomia privada”, em geral, como “o poder, reconhecido
ou concedido pelo ordenamento estatal a um indivíduo ou a um grupo, de determinar
vicissitudes jurídicas como consequência de comportamentos – em qualquer medida –
livremente assumidos”. Afirma, ainda, Perlingieri336 que a autonomia privada se traduz na
liberdade de negociar, da qual decorre a faculdade de determinação do conteúdo e forma do
contrato ou ato, com especial atenção para os negócios de natureza não-patrimonial, que têm
por objeto situações subjetivas existenciais balizadas pela cláusula geral de tutela da pessoa
humana, em virtude do que ocupam uma posição mais elevada na hierarquia constitucional.
No campo médico, a autonomia privada do paciente surgiu através da expressão
“consentimento informado”, ou mais recentemente como “consentimento livre e esclarecido”,
indispensável na relação médico-paciente, conforme preceitua o art. 15 do CC337, ante à
necessidade de garantir espaços de iguais liberdades fundamentais aos indivíduos,
legitimando a ação de um terceiro que possa afetar um bem jurídico. Sá e Naves338 lembram,
333SCHREIBER, Anderson. Manual de direito civil contemporâneo. 2. ed. – São Paulo : Saraiva, 2019, p. 227-
228. 334ROMEO-CASABONA, Carlos María. O consentimento informado na relação entre médico e paciente:
aspectos jurídicos. In: Romeo-Casabona, Carlos María; Queiroz, Juliane Fernandes. Biotecnologia e suas
implicações ético-jurídicas. – Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 128. 335PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. Tradução de: Maria Cristina De Cicco. 3. ed. rev. e ampl. Rio
de Janeiro: Renovar, 2002, p. 17. 336PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. Tradução de: Maria Cristina De Cicco. 3. ed. rev. e ampl. Rio
de Janeiro: Renovar, 2002, p. 17-18. 337Art. 15. Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a
intervenção cirúrgica. 338SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. Bioética e biodireito. 4. ed. Belo
Horizonte: Del Rey, 2018, p. 111.
126
ainda, que o consentimento livre e esclarecido339 se assemelha à autonomia privada, quanto à
semântica do termo jurídico.
A preferência pelo uso da expressao “consentimento livre e esclarecido” no lugar de
“consentimento informado” se deve pela compreensao atual de que a mera informacao nao
basta, e preciso que os pacientes sejam esclarecidos de todas as circunstancias de carater
biologico, juridico e etico relevantes ao ato, para que o consentimento seja considerado como
obtido livre de coacao ou qualquer forma de constrangimento. Reafirmando essa tendencia, a
Resolucao 196/96 do Conselho Nacional de Saude ja se refere, no item II.11, ao
consentimento como livre e esclarecido, e não meramente informado, assim como a
Resolucao CFM nº 2.121/2015, que atualizou o termo “consentimento informado”, tal como
constava nas anteriores Resolucões do CFM ate a de nº 2.103/2013, para “consentimento livre
e esclarecido”, obrigatorio para todos os pacientes submetidos às tecnicas de reproducao
assistida.
As diretivas antecipadas, regulamentadas pela Resolução CFM nº 1995/2012, são
outro exemplo claro de consentimento livre e esclarecido na relação médico-paciente. São
elas definidas como “o conjunto de desejos, previa e expressamente manifestados pelo
paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou nao, receber no momento em que estiver
incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade” (art. 1o). Podem ser feitas
através de declaração em instrumento público ou particular pela pessoa que abre mão de
tratamentos médicos em determinadas condições clínicas, vinculando seus familiares e o
médico.
Nessa vertente de orientação ética, também se acha incluída a Declaração dos Direitos
do Paciente, de 1972, elaborada pela Associação Americana de Hospitais, com o fim de
prevenir agressões e danos ao paciente, tendo sido objeto de críticas por meramente
recomendar aspectos regulamentadores de qualquer outra relação contratual340, a despeito de
o objeto da prestação constituir muito mais que apenas serviços médicos.
Desse modo, o respeito à autodeterminação do paciente, que figura como elemento
central de seu direito de autodeterminação, verifica-se por meio do consentimento livre e
339Ressaltando a importância da livre autodeterminação individual do paciente, Sá e Naves mencionam o PSDA
(The Patient Self-Determination Act) ou Ato de Autodeterminação do Paciente, texto normativo estadunidense
em vigor desde 1º de dezembro de 1991, como importante marco resultado do reconhecimento da autonomia
privada do paciente, inclusive para recusa de tratamento médico, através do instrumento denominado advanced
directives ou diretivas antecipadas, que, no Brasil, é tratado pela Resolução CFM nº 1995/2012. (SÁ; NAVES,
2018, p. 107) 340ROMEO-CASABONA, Carlos María. O consentimento informado na relação entre médico e paciente:
aspectos jurídicos. In: Romeo-Casabona, Carlos María; Queiroz, Juliane Fernandes. Biotecnologia e suas
implicações ético-jurídicas. – Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 133.
127
esclarecido, elaborado em formulário especial, em linguagem acessível, na tomada de
decisões, consoante determina o dispositivo deontológico (Resolução CFM nº 2.168/2017).
No entanto, em casos em que a doença provoque a perda ou diminuição sensível da
capacidade de expressar o consentimento, são chamados terceiros àquele ligados, cuja atuação
deverá sempre se pautar pelo melhor interesse do paciente, com base no princípio da
beneficência, para suprir ou substituir a autonomia faltante, já que o médico não pode assumir
sozinho essa responsabilidade, sobretudo nas intervenções que envolvem risco, considerando
que a outorga de consentimento juridicamente válido pelo paciente pressupõe seu
entendimento da informação recebida, incluindo diagnóstico, prognóstico e alternativas de
tratamento, para ter condições de protagonizar a relação decorrente de sua enfermidade.
Romeo-Casabona341 define o consentimento informado como um direito subjetivo do
qual derivam diversos direitos fundamentais e civis. Constata-se, então, que o consentimento
compreende o objeto, que se limita ao tratamento adequado, insuscetível de ampliação pelo
médico, a não ser quando estritamente necessário, na verificação de circunstâncias
imprevistas; sua forma, sempre por escrito, salvo em grave perigo de vida, pois a espera em
consegui-lo pode causar um mal maior; e o seu momento de exteriorização deve ser anterior
ou concomitante ao tratamento, embora, a qualquer tempo, revogável.
O consentimento informado presume um processo dialógico preocupado com a
satisfação da vontade do paciente, que e obrigatorio para todos os que se submeterem às
tecnicas de RA (Item I, 4, Res. 2.168/17), inclusive para os doadores, bem como para
qualquer procedimento médico, salvo em caso de risco iminente de morte, conforme preceitua
o art. 22 da Resolucao CFM nº 1.931/2009342 (Código de Ética Médica). Todavia, ressalve-se
que, com relação à questão do iminente risco de morte, a diretiva antecipada possibilita ao
paciente expressar de maneira livre e independente sua vontade sobre cuidados e tratamentos
que quer, ou nao, receber no momento em que estiver incapacitado para se manifestar
autonomamente (art. 1o, Res. CFM 1.995/2012).
Resta claro, portanto, que o fundamento de tutela para as relações abrangendo a
aplicação das técnicas de RA é inteiramente diverso do que está contido no regramento
previsto no Código Civil, não apenas pela importância dos serviços prestados, mas também
341ROMEO-CASABONA, Carlos María. O consentimento informado na relação entre médico e paciente:
aspectos jurídicos. In: Romeo-Casabona, Carlos María. O Direito Biomédico e a Bioética. In: Romeo-
Casabona, Carlos María; Queiroz, Juliane Fernandes. Biotecnologia e suas implicações ético-jurídicas. – Belo
Horizonte: Del Rey, 2004, p. 129. 342CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA (Brasil). Codigo de etica medica: resolucao CFM n. 1.931, de 17 de
setembro de 2009 (versao de bolso) / Conselho Federal de Medicina – Brasilia: Conselho Federal de Medicina,
2010.
128
pela enorme vulnerabilidade técnica e jurídica do paciente, razão pela qual se aplica o Código
de Defesa do Consumidor. Com base no CDC, a falta de informação clara e completa, ou sua
prestação defeituosa ao paciente, podem ocasionar a responsabilidade civil do profissional
médico ou objetiva da Administração, uma vez que é necessária à tomada de decisão dirigida
a um tratamento. Além disso, Romeo-Casabona343 entende que, para sua validade, a
manifestação de vontade deve estar ausente de vícios na sua formação ou manifestação, que
podem ser anteriores (falta de capacidade para consentir ou informação defeituosa eivada de
erro), concomitantes (objeto, forma e momento do consentimento) e posteriores (retificação e
revogação), visto que a informação médica se desenvolve num processo contínuo, no qual
deve prevalecer a igualdade de interlocução.
A aplicação do CDC na relação, que objetiva a aplicação de técnicas de RA, tem em
vista a dinâmica da atividade empresarial necessária a conduzir os laços contratuais ajustados
entre os interessados, sobretudo quanto aos aspectos jurídicos do destino que se dá aos
embriões excedentários produzidos por FIV, visando à concretização, em toda a sua plenitude,
dos direitos reprodutivos dos indivíduos. Para isso ocorrer se faz necessária uma estrutura
composta de diversos equipamentos médicos, como aqueles usados para criopreservação de
embriões, além de um staff especializado do qual fazem parte profissionais de psicologia, um
biólogo, anestesista etc, não havendo como se realizar esse empreendimento sob a forma de
uma sociedade simples, de modo que a atividade médica de reprodução assistida será sempre
empresária, face às exigências mínimas para realização do objeto social.344
Da indispensável transparência exigida na relação médico-paciente nasce o dever de
informar, que cabe ao médico, originando-se da aplicação do princípio da boa-fé objetiva
deveres anexos ou secundários, tal qual o dever de sigilo profissional, tratado pelo art. 73 do
Código de Ética Médica, que consiste na proibicao dirigida ao medico de revelar fato de que
tenha conhecimento em virtude do exercicio de sua profissao, salvo quando por justo motivo,
dever legal ou consentimento expresso do paciente. Para Sá e Naves345, o sigilo médico
consiste num direito do paciente e dever do médico, abrangendo os dados clínicos, de maneira
geral, bem como os dados genéticos. Há que se tomar cautela, entretanto, com as expressões
“justo motivo” e “dever legal”, que excepcionam a regra do sigilo.
343ROMEO-CASABONA, Carlos María. O consentimento informado na relação entre médico e paciente:
aspectos jurídicos. In: Romeo-Casabona, Carlos María; Queiroz, Juliane Fernandes. Biotecnologia e suas
implicações ético-jurídicas. – Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 147. 344SEMIÃO, Sérgio Abdalla. Biodireito & Direito Concursal: aspectos científicos do direito em geral e da
natureza jurídica do embrião congelado. Belo Horizonte: Del Rey, 2012, p. 162. 345SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. Bioética e biodireito. 4. ed. Belo
Horizonte: Del Rey, 2018, p. 114.
129
Sobre o sigilo médico, o art. 207 do Código de Processo Penal estabelece a proibição
de depor como testemunha as pessoas que, em razão de função, ministério, ofício ou
profissão, devam guardar segredo, salvo se, desobrigadas pela parte interessada, quiserem dar
o seu testemunho. Desse modo, verifica-se que, no processo penal prevalece o sigilo
profissional do médico, salvo se, desobrigado pela parte interessada. Ja com relacao ao “justo
motivo”, expressao vaga e imprecisa, que para o Direito consiste num conceito juridico
indeterminado346, cabe ao interprete a missao de atuar no preenchimento do seu conteudo.
A partir desses esclarecimentos, a primeira distinção entre os contratos de RA surge
com relação ao tempo em que se destinam a ser cumpridos, dando ensejo a dois tipos de
contratos: contrato de execução instantânea, em que a prestação é cumprida de imediato, para
realização do próprio procedimento de RA; e contrato de execução continuada, no caso de
haver embriões excedentários, tendo em vista o dever legal de congelamento, por três anos,
estabelecido pela Lei de Biossegurança (art. 5º, LB).
Considerando que o contrato de reprodução humana assistida trata de serviços
prestados, com emprego de biotecnologia, entre médico e paciente, visando ao exercício de
direitos fundamentais, através de relação na qual prevalece o consentimento livre e
esclarecido, podemos considerá-lo um contrato atípico, ante à ausência de definição legal
especifica acerca de forma exigida para sua celebracao. Em sentido contrário, Sérgio Abdalla
Semião347 vê nele um típico contrato de prestação de serviços, consensual, não solene, de
execução instantânea e intuito personae. Já, em relação ao contrato referente ao congelamento
de embriões, haveria dúvidas quanto à sua natureza jurídica, que diferentemente do depósito,
tem por objeto coisa fora do comércio, o que leva Semião348 a considerá-lo como atípico, com
o que concordamos.
Para a realização de ambos, tanto do contrato que envolve a técnica de RA quanto do
que se refere ao congelamento de embriões produzidos por FIV, exige-se o consentimento
livre e esclarecido, que, no caso do contrato de congelamento, é também necessário para o
descongelamento.
Com a finalidade de servir como técnica de preservação, o congelamento de embriões
é comumente usado em função do processo de hiperestimulação ovariana, da qual resulta a
captação de um número elevado de embriões, que não se compatibiliza com o limite de
346SOARES, Ricardo Mauricio Freire. Hermeneutica e interpretacao juridica. – 3. ed. rev., ampl. e atual. – Sao
Paulo : Saraiva, 2017, p. 125. 347SEMIÃO, Sérgio Abdalla. Biodireito & Direito Concursal: aspectos científicos do direito em geral e da
natureza jurídica do embrião congelado. Belo Horizonte: Del Rey, 2012, p. 288. 348SEMIÃO, Sérgio Abdalla. Biodireito & Direito Concursal: aspectos científicos do direito em geral e da
natureza jurídica do embrião congelado. Belo Horizonte: Del Rey, 2012, p. 217.
130
transferência estabelecido pela Resolução CFM nº 2.168/2017 (I, 7), com o intuito de
preservar a saúde e vida da mulher, em virtude dos riscos de uma gravidez múltipla.349
Em nosso entendimento, o contrato de congelamento de embriões pode ser
classificado como exemplo de negócio jurídico relacional, eis que derivado de outro
antecedente, numa espécie de relação complementar; assim como atípico, em razão de não se
encontrar disciplinado por regras específicas, conforme também compreende Schreiber350. Do
ponto de vista estrutural, diz-se real, por somente se aperfeiçoar com o depósito dos embriões
no tanque de nitrogênio líquido, não bastando o consentimento das partes, dependendo, assim,
para sua formação da entrega dos embriões excedentários.351 Quando o serviço for prestado
pelo Estado ao paciente, conforme dever imposto pelo art. 196 da Constituição, afirmamos
que seja ele unilateral, em razão da inexistência de obrigações recíprocas; ou oneroso e
bilateral, em que há a assunção de ônus por ambas as partes, caso em que o serviço pago pelo
paciente é prestado por clínica particular.
Sobre a classificação dos contratos em bilaterais e unilaterais, Anderson Schreiber352
leciona que:
Já se viu que todo contrato é um negócio jurídico bilateral, por exigir, no mínimo,
duas manifestações de vontade para produzir efeitos obrigacionais. Assim, pode
causar espanto a afirmação de que os contratos podem ser divididos em contratos
bilaterais e unilaterais. É que os termos bilaterais e unilaterais são aqui usados em
outro sentido: (a) contratos bilaterais são aqueles que geram obrigações recíprocas
entre as partes, e (b) contratos unilaterais são os que geram obrigações apenas para
um contratante.
Esses são os aspectos diferenciadores entre os contratos de reprodução assistida e os
demais negócios jurídicos tratados pelo Código Civil, que demandam a aplicação dos
preceitos protetivos previstos pelo CDC, e uma atenção especial com respeito aos princípios
bioéticos aplicáveis.
8.2 A responsabilidade civil nos contratos de reprodução humana assistida
Afirmamos, anteriormente, que, diante da importância dos serviços prestados, mas
também pela enorme vulnerabilidade técnica e jurídica do paciente, o fundamento de tutela
349SEMIÃO, Sérgio Abdalla. Biodireito & Direito Concursal: aspectos científicos do direito em geral e da
natureza jurídica do embrião congelado. Belo Horizonte: Del Rey, 2012, p. 148. 350SCHREIBER, Anderson. Manual de direito civil contemporâneo. 2. ed. – São Paulo : Saraiva, 2019, p. 442-
444. 351SCHREIBER, Anderson. Manual de direito civil contemporâneo. 2. ed. – São Paulo : Saraiva, 2019, p. 440. 352SCHREIBER, Anderson. Manual de direito civil contemporâneo. 2. ed. – São Paulo : Saraiva, 2019, p. 435.
131
para as relações abrangendo a aplicação das técnicas de RA está contido no Código de Defesa
do Consumidor. Contudo, em vista da multiplicidade de fontes legislativas a regular o mesmo
fato, a visão complementar do diálogo das fontes possibilita a subsunção concomitante tanto
do Código de Defesa do Consumidor quanto do Código Civil a determinadas relações
obrigacionais, considerando a já conhecida aproximação principiológica entre os dois
sistemas.353
Quanto à origem da tese do diálogo das fontes, Flávio Tartuce354 comenta que:
A tese do diálogo das fontes foi desenvolvida na Alemanha por Erik Jayme,
professor da Universidade de Helderberg, trazida ao Brasil por Claudia Lima
Marques, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. A essência da teoria é que
as normas jurídicas não se excluem – supostamente porque pertencentes a ramos
jurídicos distintos –, mas se complementam. Como se pode perceber há nesse marco
teórico, do mesmo modo, a premissa de uma visão unitária do ordenamento jurídico.
Analisadas essas premissas, uma vez constatada a violação dos deveres médicos ou na
causação de danos, ainda que exclusivamente morais, pelos serviços prestados ao paciente,
mediante ação ou omissão voluntária, negligência, imprudência ou imperícia, verifica-se o ato
ilícito, que gera o dever de reparação (art. 927, CC).
A ilicitude pode se dar também pelo chamado abuso de direito, em que o
comportamento lícito se torna ilícito pela irregularidade do exercício de um direito, quando
excede manifestamente o fim econômico ou social, a boa-fé ou os bons costumes. De origem
eminentemente jurisprudencial, a categoria do abuso surgiu como criação dos tribunais
franceses, com a tarefa de conformar a autonomia privada aos valores que o ordenamento
jurídico pretende, por meio de determinada situação jurídica específica, tutelar.355 Nessa
hipótese, a responsabilidade será objetiva, não se discutindo culpa, em razão da violação à
função finalística do exercício de um direito por seu titular (art. 187, CC), tanto em
decorrência de uma relação contratual ou extracontratual.
Quanto à existência de culpa na responsabilidade civil que, eventualmente, se
configura na relação médico-paciente, esta pode ser de duas espécies: a subjetiva, aplicável ao
profissional liberal, que, no exercício de atividade profissional, por negligência, imprudência
ou imperícia, causar dano ao paciente, apurável, assim, mediante a verificação de culpa (art.
353TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil : volume único – 8. ed. rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro:
Forense; São Paulo: MÉTODO, 2018, p. 64. 354TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil : volume único – 8. ed. rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro:
Forense; São Paulo: MÉTODO, 2018, p. 64. 355SCHREIBER, Anderson. Manual de direito civil contemporâneo. 2. ed. – São Paulo : Saraiva, 2019, p. 213-
214.
132
14, CDC); e a objetiva, em que, com base na doutrina do risco, a obrigação de reparar o dano
ocorre, independentemente de culpa (art. 927, par. único, CC c/c arts. 12 e 14, CDC), hipótese
que se amolda àquele profissional agrupado em torno de empresas prestadoras de serviços,
tais como hospitais, clínicas e grupos de saúde. Estes são os responsáveis objetivamente pelo
dever de indenizar, com opção de regresso contra o causador do dano, que detém
responsabilidade subjetiva.
Com relação à origem, a responsabilidade pode ser contratual ou extracontratual,
sendo que a primeira ocorre quando o dever jurídico violado está previsto em negócio jurídico
voluntariamente assumido pelas partes que têm entre si um vínculo contratual; ao tempo em
que, na segunda, também chamada aquiliana, há uma transgressão de um dever legal imposto
a todos, como o de não lesar a outrem (art. 927, CC).
Dessarte, concluem Sá e Naves356 que, quanto à responsabilidade do médico, dada a
natureza contratual da obrigação, se esta for de meio, caberá ao paciente provar a culpa
daquele para obter a reparação, enquanto, se for de resultado, bastará a prova de que o fim
esperado não foi alcançado; ao passo que, em ambos os casos, o médico deverá provar que
não agiu com culpa.
Para Taisa Maria Macena de Lima357, no caso do médico, há uma urgência de
permanente oferta em contratar que o faz integrante da categoria de contrato necessário, em
decorrência da indispensabilidade da atividade desempenhada. Assim, mesmo no atendimento
emergencial, em que não há escolha prévia e voluntária quanto ao conteúdo do negócio
jurídico, a responsabilidade seria contratual, com base na qual se presume a culpa decorrente
do inadimplemento obrigacional (art. 389, CC).
A jurisprudência faz, portanto, a distinção entre obrigação de meio e de resultado, no
que diz respeito à prova de culpa do médico, que depende da verificação se o profissional
apenas se obrigou a empregar sua técnica com o objetivo de atingir um resultado voltado a
promover a saúde ou curar a enfermidade, sem compromisso de obter a finalidade em si
(obrigação de meio), caso em que sua negligência, imprudência ou imperícia deverá ser
provada; ou se houve a assunção voluntária da obrigação com o compromisso de atingir um
resultado certo e determinado (obrigação de resultado), que resulta na responsabilidade
presumida do médico, com a consequente inversão do ônus da prova, se o paciente
demonstrar que não foi atingida a meta avençada, e, de outro lado, cabendo ao médico provar
356SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. Bioética e biodireito. 4. ed. Belo
Horizonte: Del Rey, 2018, p. 118. 357LIMA apud Sá, Maria de Fátima Freire de; Naves, Bruno Torquato de Oliveira. Bioética e biodireito. 4. ed.
Belo Horizonte: Del Rey, 2018, p. 117.
133
que não agiu com negligência, imprudência ou imperícia, ou que o insucesso se deu em
decorrência de culpa exclusiva do paciente.
No entanto, claro está que, no contrato de reprodução assistida, nem o médico nem a
clínica, respondem pelo êxito da gravidez, que pode não ser atingido pelo insucesso da
estimulação ovariana ou falha natural na fertilização dos óvulos, desde que, é claro, não tenha
havido a garantia do resultado358. Assim, havendo inexistência de defeito, não há que se falar
em responsabilidade civil do médico ou clínica.
No que tange à prestação do serviço de armazenamento ou criopreservação de
embriões in vitro excedentários, ou dos produzidos com o fim específico de transferência
planejada a posteriori, assim como de material genético, as relações jurídicas são reguladas
pelos contratos entabulados entre os contratantes, ante à falta de norma disciplinadora do
funcionamento das atividades desenvolvidas pelo banco ou própria clínica de tratamento, que
envolvem direitos personalíssimos, cuja titularidade não se transfere ou autoriza a retenção,
mesmo em caso de abandono ou inadimplemento das taxas. Na prática, para armazenagem e
congelamento no recipiente criogênico, os bancos de material genético e de embriões cobram
o pagamento de remunerações periódicas pela custódia do material genético criopreservado,
com a finalidade de utilização em tratamentos sucessíveis.
A necessidade que levou ao desenvolvimento da tecnologia da criopreservação de
embriões surgiu com a produção excedentária, e, conforme Queiroz359, permitiu diminuir o
sofrimento causado à mulher com a punção ovacitária e espermática e com a hiperestimulação
ovária, mas que possui como principal desvantagem o desconforto ético frente à natureza
jurídica do embrião.
Segundo Queiroz360, a técnica de congelamento objetiva:
[...] alcançar um equilíbrio gradativo entre o embrião e o líquido crioprotetor, a fim
de minimizar os efeitos tóxicos, o que é feito em temperatura ambiente. Em seguida,
os embriões são acondicionados em ampolas, identificados e colocados em um
freezer biológico, para resfriamento a -40º C. Após este resfriamento inicial, os
recipientes são mergulhados em um botijão de nitrogênio líquido, no qual ficam
crioconservados à temperatura de -196º C.
358SEMIÃO, Sérgio Abdalla. Biodireito & Direito Concursal: aspectos científicos do direito em geral e da
natureza jurídica do embrião congelado. Belo Horizonte: Del Rey, 2012, p. 223-224. 359QUEIROZ, Juliane Fernandes. Reprodução assistida post mortem : aspectos jurídicos de filiação e sucessório.
Curitiba : Ed. UFPR, 2015, p. 99. 360QUEIROZ, Juliane Fernandes. Reprodução assistida post mortem : aspectos jurídicos de filiação e sucessório.
Curitiba : Ed. UFPR, 2015, p. 99.
134
Apesar dos avanços tecnológicos que a ciência já percorreu, a responsabilidade do
banco pela funcionalidade do material se mostra um tanto complexa, ante a possibilidade de
deterioração, que aumenta com o tempo de congelamento e dificulta a configuração de um
nexo de causalidade, diante de um conhecimento prévio dos envolvidos de que tal evento
pode ocorrer. Assim, considerando que a obrigação é de meio, e não de resultado, e a não ser
que fique comprovado o comportamento ilícito da clínica ou serviço defeituoso, não haveria a
incidência de responsabilidade civil.
No entanto, o descarte não autorizado de embriões, por alguma falha na prestação do
serviço, ou sem o consentimento do casal, bem como a contaminação por falhas no manuseio,
conservação, distribuição, e transferência do material biológico, levam à responsabilidade
objetiva da clínica responsável pelos serviços defeituosos ou inadequados, nos termos do art.
14, § 1o, inciso I, do CDC, já que, nessa hipótese, a clínica é enquadrada como fornecedora de
uma relação consumerista. Por outro lado, a responsabilidade pela perda do material humano
restaria afastada por uma das excludentes de causalidade: caso fortuito ou força maior; culpa
exclusiva da vítima; e o fato de terceiro.361
Mas qual seria a natureza do material criopreservado? Haveria alguma diferença
quanto à tutela de gametas e embriões?
Para Queiroz362, o material genético, como óvulos e espermatozoides, consiste em bem
infungível, integrante dos direitos não patrimoniais de uma pessoa, o que justificaria a
diferença de tratamento aplicado ao embrião pelo ordenamento jurídico. Logo, ao material
genético seria aplicado o direito de propriedade, com possibilidade de reconhecimento da
responsabilidade por danos emergentes referentes aos investimentos feitos pelos pacientes, na
realização do procedimento de RA para coleta, e posterior utilização. Contudo, esse raciocínio
não é extensível ao embrião, em razão de ele possuir uma especificidade voltada para a
privacidade do indivíduo (DNA), bem como em razão de seu valor para a humanidade
protegido pelo art. 225, § 1º, II, da CF, qual seja o interesse difuso de continuidade da espécie,
e, ao mesmo tempo, por ser objeto de uma situação subjetiva não-patrimonial, ligada aos
interesses dos genitores, titulares do patrimônio genético.
Quanto aos danos, Schreiber363 conceitua como emergentes “os prejuizos economicos
efetivamente sofridos pela vitima”, o que se aplica, parcialmente, ao caso dos embriões in
361SCHREIBER, Anderson. Manual de direito civil contemporâneo. 2. ed. – São Paulo : Saraiva, 2019, p. 665-
666. 362QUEIROZ, Juliane Fernandes. Reprodução assistida post mortem : aspectos jurídicos de filiação e sucessório.
Curitiba : Ed. UFPR, 2015, p. 112-114. 363SCHREIBER, Anderson. Manual de direito civil contemporâneo. 2. ed. – São Paulo : Saraiva, 2019, p. 648.
135
vitro, porque, em havendo a perda pela prestação de um serviço defeituoso, somente se pode
quantificar os investimentos feitos, até então, para atingir o procedimento de congelamento.
Dessa maneira, com relação aos embriões, qualificados como bens jurídicos em que se
encontra individuado um interesse merecedor de tutela diferenciada, a perda da possibilidade
de a mulher vir a implantar o embrião, caso sejam eles destruídos por algum erro da clínica,
acarretaria também a incidência da responsabilidade civil objetiva, com base na teoria da
perda da chance, em observância ao princípio da boa-fé (art. 422 do CCB), não se olvidando o
fato de que a relação médico-paciente atrai a incidência do CDC.
Nascida no direito francês, a teoria da perda da chance reconhece o direito de
ressarcimento da vítima de dano, que se configura pela perda da oportunidade de obter uma
vantagem ou evitar um prejuízo, no campo econômico ou moral, independentemente de que
haja uma alta probabilidade entre a chance e o resultado final.364
Hipótese de dano moral por perda de uma chance ocorreu no caso de um hospital
condenado, por falha de atendimento de seus prepostos, que levou à morte de paciente recém-
nascida, cujos pais, apos tentarem por anos uma gravidez sem sucesso, recorreram à tecnica
de fertilizacao in vitro. O Tribunal de Justiça de São Paulo reconheceu, no caso concreto, a
existencia de responsabilidade civil do hospital, em razao de fato do servico, aplicando a
teoria da perda da chance, vez que a alta medica dada à paciente recem-nascida, mesmo antes
da correta eliminacao do meconio, contribuiu de forma decisiva para a ocorrencia de seu
obito, fazendo com que a autora perdesse a chance de ser mae e formar uma familia
completa.365
Do mesmo modo, a clínica que, contratada para armazenamento de células-tronco,
obtidas por meio do sangue do cordão umbilical e do tecido placentário, ocasionar a perda do
material, em razão de erro cometido pela funcionária, viola direitos da personalidade, saúde e
dignidade do paciente de poder se prevenir quanto a patologias graves, já que frustrada a
chance de ter suas células embrionárias colhidas e armazenadas para, se necessário, no futuro,
fazer uso em tratamento de saúde, configurando caso claro de aplicação da teoria da perda de
uma chance.366
E se acontecer a perda embrionária depois dos três anos de congelamento obrigatório,
mesmo com redução da relação probabilística entre a chance e o resultado final, restaria
364SCHEIBER, Anderson. Manual de direito civil contemporâneo. 2. ed. – São Paulo : Saraiva, 2019, p. 650-652. 365SAO PAULO. Tribunal de Justica (6ª Camara de Direito Privado). Apelacao Civel 0001171-
96.2007.8.26.0664. Relator: Francisco Loureiro, Foro de Votuporanga - 4ª. Vara Judicial, 26 abr. 2012. 366RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justica (19ª Camara Civel). Apelacao Civel nº 70075192849. Relatora:
Mylene Maria Michel, Porto Alegre, 18 dez. 2018.
136
afastada a possibilidade de aplicação da teoria da perda da chance? A nosso ver, não se
vislumbra oportunidade insignificante, meramente em função da inviabilidade evolutiva
decorrente da perda embrionária progressiva pós-descongelamento, conforme apontam
Donadio et al.367, para apenas atender ao prazo de congelamento obrigatório de três anos,
porquanto, ainda assim, haveria chance de sucesso da gravidez, persistindo a responsabilidade
civil em caso de perda do embrião criopreservado por algum erro da clínica ou hospital,
mesmo após os três anos previstos em lei. Isso porque, em nossa visão, o critério atual de
inviabilidade não rechaça a possibilidade de êxito na gravidez, quer sejam embriões viáveis
ou não.
No que tange à disponibilidade, o ato de disposição dos gametas pelo seu titular seria
reconhecido pelo Direito como de um produto do corpo, desde que vinculado à sua
gratuidade, por não importar em diminuição permanente da integridade corporal (ar. 13, CC),
considerando que a característica de incomerciabilidade não abrange a indisponibilidade, e
torna inclusive possível a utilização em pesquisa científica por terceiro, se houver o abandono
do material, que se configura em res derelictae368, conforme inteligência da Lei n. 9.434, de 4
de fevereiro de 1997, que permite a doação em vida ou post mortem, para fins de transplante
ou tratamento.
Ainda segundo Queiroz369, espermatozoide e óvulo diferem do embrião
crioconservado, por não se encaixarem no conceito biológico tecidos transplantáveis, estando
assim fora do alcance de qualquer proteção legal.
Quanto aos embriões criopreservados, a despeito da celeuma acerca de sua natureza
jurídica, há um consenso de que eles são insuscetíveis de avaliação patrimonial, em razão da
importância para a realização da personalidade do indivíduo, na construção de um projeto
parental, além de carregarem consigo um interesse difuso no patrimônio genético, tutelado
pelo art. 225, §1º, II, da CF, o que contraindicaria o descarte, limitado apenas para quando
ficar caracterizada sua inservibilidade para o tipo de pesquisa autorizado pela LB.
A discussão gerada pela empresa estadunidense Coriell Cell, que, em 1996, anunciou
na internet a venda de amostras de DNA de índios brasileiros revela a importância de se
proteger o patrimônio genético de que é portador o embrião criopreservado.370
367DONADIO, Nilka Fernandes et al. Caracterização da inviabilidade evolutiva de embriões visando doações
para pesquisas de células- troco. Revista Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia : RBGO, São Paulo , v. 27,
n. 11, nov. 2005, p. 666-667. 368 QUEIROZ, Juliane Fernandes. Reprodução assistida post mortem : aspectos jurídicos de filiação e sucessório.
Curitiba : Ed. UFPR, 2015, p. 116-117. 369QUEIROZ, Juliane Fernandes. Reprodução assistida post mortem : aspectos jurídicos de filiação e sucessório.
Curitiba : Ed. UFPR, 2015, p. 126.
137
Embora seja inalienável, porquanto vedada a sua instrumentalização econômica, na
hipótese de abandono de embriões, a Resolução CFM nº 2.168/2017 (V, item 5) qualifica-os
como res derelictae, se transcorrido o lapso de três anos ou mais, caso em que fica sujeito ao
descarte, já que, na ausência de consentimento expresso do interessado, não poderá haver
doação para pesquisa. Tal consequência, a nosso ver, não se coaduna com a natureza jurídica
de bem jurídico fundamental dos embriões obtidos por FIV que vierem a ser abandonados,
mostrando-se razoável a destinação para pesquisa, dado o caráter de interesse difuso para
pesquisa, com fins de cura e terapia. Nesse sentido, agiu bem o legislador, quando apenas
admitiu a possibilidade de uso em pesquisa dos embriões excedentários não utilizados em
procedimento de RA.
370SALDANHA, Ana Claudia. A tutela do embrião humano. 1. ed. – Curitiba: Editora Prismas, 2015, p. 50.
139
9 BREVE ANÁLISE DA ADI 3.510 VERSUS PEC 164/2012
O embate entre as teorias concepcionista e natalista chegou ao seu ápice, no
julgamento da ADI 3.510371, que abrangeu a análise da natureza jurídica do embrião in vitro,
bem como a necessária distinção entre o início biológico da vida humana e o início da
personalidade civil, resultando no precedente vinculativo da ADI 3.510.
O fundamento básico do pedido consistia no argumento concepcionista de que a vida
humana começa com a fecundação. Assim, as posições jurídicas enfrentadas na ADI 3.510
giraram em torno da questao referente à possibilidade de violacao ou ofensa ao direito à vida
e da dignidade da pessoa humana, na pesquisa com celulas-tronco embrionarias.
Alguns argumentos científicos também foram levados em consideração para a
improcedência da ação. No entanto, deixaremos de discutir, ponto a ponto, o que cada um dos
Ministros do STF discorreu em seu voto, pois pretendemos apenas ressaltar alguns aspectos
debatidos durante o julgamento da ADI 3.150, e confrontá-los com os fundamentos da PEC
164/2012, em função de suas posições antagônicas.
Quanto ao julgamento realizado para resolução da ADI 3.510, o questionamento
acerca da constitucionalidade do art. 5o da LB, com fundamento na ofensa ao art. 1o, inciso
III, e caput do art. 5o, da CF, revela a necessidade humana por certezas de uma interpretação
científica da qual possa se valer o sistema jurídico. Por isso, a preocupação em demonstrar a
distinção entre nascituro e embrião não gestado, para compreensão das pesquisas com células-
tronco embrionárias, em que o primeiro é considerado centro de imputação normativa, e o
segundo, ainda que tutelado, não é tratado como detentor de personalidade jurídica.372
Sem embargo de todo o embate jurídico de teses propiciado pela ADI 3.510, Sá e
Naves373 chamam atenção para o predomínio do fundamento biológico sobre o jurídico, que
consiste no fenomeno denominado “medicalizacao do Direito”, caracteristico dos muitos
argumentos usados pelo Procurador-Geral da República, autor da ação, ao citar diversos
autores especializados nas ciências médicas.
Podemos ilustrar essa tendência, mencionando a referência ao conceito de viabilidade
técnica, sob o pretenso fim de justificar a possibilidade do uso de embriões in vitro em
pesquisa, que, em nosso entendimento, é possível, sejam eles viáveis ou não, visto que a
371BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguicao de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 3.510.
Relator: Min. Ayres Britto. Diario de Justica Eletronico, Brasilia, 28 maio 2010. 372SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. Bioética e biodireito. 4. ed. Belo
Horizonte: Del Rey, 2018, p. 183. 373SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. Bioética e biodireito. 4. ed. Belo
Horizonte: Del Rey, 2018, p. 186.
140
imprecisão daquele conceito importa, na verdade, em insegurança jurídica para as relações
que permeiam as questões decorrentes do procedimento de RA, por se basear em uma
“certeza” biologica. Esse é o sentido do raciocínio expendido pelo Min. Menezes de Direito,
em seu voto, quando diz que “Uma baixa ou baixissima viabilidade nao e, contudo, o mesmo
que nenhuma. Inviabilidade, propriamente, nao ha” (BRASIL, 2010, p. 293).
Ademais, a alternativa de submeter à pesquisa somente os inviáveis ou congelados,
logo após um determinado estágio do processo de clivagem, com a intenção de pôr fim a esse
excedente considerado custo necessário à superação da infertilidade, também é incapaz de se
desvincular do caráter utilitarista criticado por parte da doutrina, porque ainda assim estariam
sob controle de qualidade diferentes classes embrionárias, conforme apresentem ou não
inviabilidade evolutiva ou morfológica.
De igual sorte, limitar a produção de embriões a um número máximo por ciclo,
incorreria na limitação da autodeterminação reprodutiva e da liberdade de planejamento
familiar dos indivíduos. De outro lado, a limitação quanto ao número de embriões produzidos
in vitro protegeria somente os que não viessem a ser produzidos, bem como reduziria a
ocorrência de multigestação, ao passo que os já produzidos continuariam sob o risco de
destruição, quer seja pela escolha de não implantá-los no útero, decorrente do exercício da
liberdade de planejamento familiar, manifestado após a FIV, quer seja porque um ou mais
embriões foram classificados como “inviaveis”.
Noutro passo, durante o julgamento da ADI 3.510, muito se falou acerca de uma
dignidade do embrião. Há, entretanto, um inconveniente na atribuição de dignidade ao
embrião in vitro, pois isso implica reconhecer a ele um status de proteção, tal qual o
ordenamento jurídico confere ao ser humano, desconsiderando as disparidades ontológicas
que os cercam, que, em regra, são usadas pelo Direito para atribuição de direitos e deveres,
como se vê no tratamento dado ao regime das incapacidades (arts. 3º, 4º e 5º, do CC, e Lei n.
13.146/2015). Francisco Ilídio Ferreira da Rocha374 também entende que constitui um
equívoco atrelar a dignidade à prévia obtenção da personalidade, já que esta é um atributo
jurídico decorrente da dignidade inerente ao ser humano, razão pela qual não seria pertinente
tratar com indiferença jurídica e axiológica o embrião in vitro.
Há também os que criticam, como Ana Claudia Saldanha375, a decisão do STF,
afirmando que foi, de certo modo, reconhecida a figura do pré-embrião, no sentido de que a
374ROCHA, Francisco Ilídio Ferreira. Manual de Biodireito – Belo Horizonte: Editora D’Placido, 2017, p. 205-
206. 375SALDANHA, Ana Claudia. A tutela do embrião humano. 1. ed. – Curitiba: Editora Prismas, 2015, p. 93.
141
Corte Constitucional acolheu o referencial proposto pela Comissão de Warnock. Nesse ponto,
há discordância, visto que, em análise aos votos proferidos pelos julgadores, a principal
diferenca estabelecida no julgamento foi entre embriões, a que se chega por efeito de
manipulacao humana em ambiente extracorporeo, e os produzidos in utero, diferentemente do
foco sobre o estágio de desenvolvimento embrionário.
Com a mesma tendência em diferenciar os embriões em categorias distintas, Francisco
Ilídio376 aponta que foram reconhecidas na ADI 3.510 duas elementares para diferenciar o
embrião viável congelado do que se desenvolve dentro do útero, quais sejam: tempo e lugar.
O tempo estaria representado tanto pela falta de desenvolvimento do embrião congelado,
quanto pela situação inversa de realização da potência de vir-a-ser do embrião in utero; e o
lugar, ao encontro do que preconiza a teoria da nidação, distingue-se pelo fato de um deles
estar localizado dentro do espaço uterino, e o outro fora. Com bases nos mencionados
critérios, o autor aponta que, no julgamento em análise, somente o embrião in utero foi
incluído na tutela constitucional da vida humana, e, por isso, é protegido, não em razão de
qualidades intrínsecas, mas em função do lugar em que se encontra.
Todavia, na linha do raciocínio desenvolvido nos capítulos anteriores, chegamos à
conclusão de que a tutela jurídica do embrião in vitro é um fato, quando, por exemplo, a Lei
de Biossegurança prevê proibições quanto ao seu uso indiscriminado, a despeito de estar
dentro ou fora do útero, e não possuir personalidade. Assim, somente faz sentido pensar na
definição de critérios ontológicos para categorizar o embrião dentro e fora do útero, caso não
fosse reconhecida a ele qualquer proteção, o que não é o caso, pois, quer seja ele embrião
viável ou inviável, intra ou extracorpóreo, ambos são protegidos enquanto patrimônio
genético, sobre o qual há um interesse difuso de toda a sociedade.
Da análise, então, que se faz do julgamento ad ADI 3.510, entendemos que seu
resultado representa a ausência de um consenso social mínimo quanto à ideia de atribuir ao
embrião in vitro uma proteção maior do que a prevista na Lei de Biossegurança, o que se
entende salutar para garantia de um equilíbrio ideológico na sociedade, com respeito às
diferenças pertinentes de um pluralismo político, como fundamento da ordem jurídica
nacional que aponta para a possibilidade de existência de opiniões diversas, nem sempre
consensuais entre si.
376O art. 1º da Constituição da República Federativa do Brasil define, no inciso V, como um de seus
fundamentos, o pluralismo político.
142
Não fosse isso bastante, a obtenção de um consenso social mínimo também não é
garantia de respeito à pluralidade democrática, consoante assevera Luigi Ferrajoli377, para
quem, nem mesmo o consenso do poder da maioria, nem o consenso popular garantem a
qualidade e a sobrevivência da democracia política, tal como se verificou com as experiências
do nazismo e do fascismo, visto que os interesses da minoria podem ser conflitantes com os
da maioria.
Como efeito desse conflito entre os interesses antagônicos dos sujeitos, do qual
sobressai a falta de um consenso social, Carlo Casonato378 explica que, num sistema jurídico,
as normas do biodireito podem ser classificadas de dois modos quanto à forma de atuação:
abstencionista ou intervencionista. No modelo abstencionista, defendido por aqueles que
receiam uma legislação muito restritiva sobre a autonomia pessoal em matéria que não
envolva direitos de terceiros, a abstenção em não legislar sobre questões relacionadas à
aplicação das biotecnologias e suas consequências podem se transformar num vazio
normativo arriscado, que gera insegurança jurídica. De outro lado, o modelo intervencionista
se caracteriza pela regulamentação, mesmo que de maneira branda, a fim de se garantir
estabilidade nas relações jurídicas, bem como legitimidade às normas jurídicas criadas.
Ainda segundo Casonato, a maneira de intervenção também varia entre os modelos
aberto e leve, e outro, rígido e fechado. O primeiro limita a discricionariedade, porém deixa
espaço para um diálogo interdisciplinar; ao passo que, no modelo rígido, a regulamentação é
minuciosa e formada por regras jurídicas inflexíveis. A intervenção pode ser ainda
permissiva, em que se reconhece autonomia relativa ao sujeito livre, consciente e igual; ou
impositiva, a qual estabelece comportamentos contra a vontade do indivíduo, por considerá-lo
incapaz de ser autonomamente responsável moral.379
Claramente adotando um modelo intervencionista impositivo, a Proposta de Emenda à
Constituição n. 164/2012380 pretende estabelecer a concepção como marco inicial da vida
humana, com desprezo às distintas convicções morais e orientações culturais de indivíduos
que não compartilham da referida solução proposta, pautada por argumentos impossíveis de
377FERRAJOLI, Luigi. Por uma Teoria dos Direitos e dos Bens Fundamentais. Traducao de Alexandre Salim et
al. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora Ltda., 2011. E-book. 378CASONATO apud ORSELLI, Helena Maria Zanetti de Azeredo. O status jurídico do pré-embrião humano a
partir dos princípios constitucionais do pluralismo e da laicidade. Curitiba: Editora Prismas, 2016, p. 92-97. 379CASONATO apud ORSELLI, Helena Maria Zanetti de Azeredo. O status jurídico do pré-embrião humano a
partir dos princípios constitucionais do pluralismo e da laicidade. Curitiba: Editora Prismas, 2016, p. 98-103. 380CUNHA, Eduardo. Proposta de Emenda à Constituição 164/2012. Dá nova redação ao caput do art. 5º da
Constituição Federal. Brasilia: Camara dos Deputados, 2 maio 2012. Disponivel em:
<https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=543252>. Acesso em: 13 jul.
2019.
143
serem classificados como verdadeiros ou falsos, consoante assevera Helena de Azeredo
Orselli381.
Sua redação propõe a seguinte alteração no caput do art. 5º da Constituicao Federal:
Art.5º. Todos sao iguais perante a lei, sem distincao de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no Pais a inviolabilidade
do direito à vida, desde a concepcao, à liberdade, à igualdade, à seguranca e à
propriedade, nos termos seguintes. (grifo nosso).
Da leitura da PEC 164 observa-se um desprezo ao pluralismo ético característico de
uma sociedade multicultural como a nossa, por limitar, a cargo do domínio público, a
preocupação com a ideia de preservar uma forma de vida, ainda que humana, característica de
uma ética paternalista, como se via na relação médico-paciente do passado, sem a
neutralidade que se espera do Estado e do ordenamento jurídico.
A referida proposição legislativa vai de encontro a todo o avanço jurídico
proporcionado pela Lei n° 11.105/2005, cuja constitucionalidade foi declarada pela ADI
3.510, reconhecendo a legitimidade da pesquisa cientifica com celulas-tronco embrionarias,
para o enfrentamento e cura de patologias e traumatismos degradantes à vida de expressivo
contingente populacional, sem acarretar para esse casal o dever juridico do aproveitamento
reprodutivo de todos os embriões eventualmente formados e que se revelem geneticamente
viaveis (BRASIL, 2010).
Dessarte, falta à PEC 164 um caráter pluralista, com base no qual as concepções
pessoais de cada indivíduo quanto à liberdade de religião, consciência, crença e diferentes
posições morais e científicas acerca do início da vida humana são objeto de respeito. Não que
todas as posições individuais devam ser consideradas para a decisão de conferir proteção
jurídica ao embrião in vitro, pois a mesma já é assegurada pela própria CF como dever estatal
de preservar o patrimônio genético, por sua natureza direito de transindividual,
independentemente de se assinalar a garantia do direito à vida, desde a concepção.
Demais disso, não seria necessário estabelecer a garantia direito à vida, desde a
concepção, uma vez que a legislação civil assegura as proteções necessárias ao nascituro,
fruto de concepção natural, sendo descabido, por tudo mais o que se disse nos capítulos
anteriores, outorgar o mesmo nível protetivo ao embrião fertilizado in vitro, considerando
haver diferenças sob todos os aspectos pertinentes entre essa forma de vida e o indivíduo.
Nesse sentido, afirma Daniela Grechi382:
381ORSELLI, Helena Maria Zanetti de Azeredo. O status jurídico do pré-embrião humano a partir dos princípios
constitucionais do pluralismo e da laicidade. Curitiba: Editora Prismas, 2016, p. 264.
144
Sob o manto de se pretender tutelar os interesses do pré-embrião in vitro, não se
pode recorrer a interpretações extensivas das categorias de nascituro e muito menos
de pessoa natural. O valor da pessoa humana, que informa todo o ordenamento
jurídico, não se estende, a partir de uma interpretação analógica, a todos os seres
humanos e muito menos aos que não atingiram o status de seres humanos plenos,
como é o caso dos pré-embriões mantidos em laboratório. Não é possível o ingresso
do pré-embrião criopreservado no sistema jurídico que tem no nascituro uma
expectativa de direitos (sob a condição de nascer com vida) e na pessoa o sujeito de
direitos e obrigações. Se o nascituro é ente despersonalizado, muito mais o será o
pré-embrião congelado.
Acresça a isso o fato de que, conforme Semião383, proposições normativas como a
sobredita PEC 164 seriam ilegítimas por pretenderem tratar de um tema que deve ser regulado
no âmbito infraconstitucional do direito civil, como ocorre, na maior parte, das democracias
ocidentais.
Com isso, qualifica-se a PEC 164 como norma inflexível baseada num único modelo
de intervenção, que busca, na mesma linha da matriz kantiana, harmonizar a liberdade de
todos em conformidade com uma “certeza”, que chamamos de biológica, e, ainda contrária à
sociabilidade das interpretações plurais, em prol de alguns indivíduos que acreditam na
concepção embrionária como marco inicial da vida humana, suficientemente para reconhecer
um direito à inviolabilidade vida, personalidade civil, e, consequentemente, um direito de
nascer do embriões criopreservados, mediante o estabelecimento de uma obrigação de
transferi-los para o útero da mulher, que viria a ter sua dignidade pessoal violada.
A inflexibilidade da PEC 164 também aponta para a falta de razoabilidade, por falta de
coerência interna, em estatuir um direito à vida, desde a concepção, e, por outro lado, permitir
o aborto, caso detectada anomalia grave do feto, que inviabilize o desenvolvimento deste, e
cause, ainda, dano à saúde física e psíquica da mulher.
Inobstante a dificuldade do consenso absoluto, porquanto nenhum dos lados está
disposto a ceder aos argumentos contrários, a norma do biodireito não pode estar contaminada
com impressões subjetivas, devendo se pautar pelos quatro referenciais básicos da bioética
(beneficência, autonomia, não maleficência e justiça), sobretudo quanto aos aspectos éticos
envolvendo os usuários da biotecnologia.
Assim, não pode ser aceita a tese veiculada pela PEC 164, a qual manifestamente se
opõe aos princípios da bioética, a saber: a beneficência teria sua eficácia reduzida, alcançando
382GRECHI, Daniela. O uso das células-tronco embrionárias : incertezas e novas promessas para a medicina do
futuro. – Caxias do Sul : Educs, 2009, p. 133. 383SEMIÃO, Sérgio Abdalla. Biodireito & Direito Concursal: aspectos científicos do direito em geral e da
natureza jurídica do embrião congelado. Belo Horizonte: Del Rey, 2012, p. 190.
145
apenas o casal que se submeter às técnicas de RA, em detrimento de um número incalculável
de pessoas que seriam beneficiadas com possíveis descobertas científicas. Além disso, não
haveria qualquer benefício no congelamento dos embriões, em razão das constantes perdas de
blastômeros no processamento, sendo, portanto, prejudicial aos interesses dos genitores e da
sociedade; a autonomia dos genitores seria desrespeitada quanto à opção de não transferência,
recaindo maior peso sobre a mulher, cujos interesses conflitariam com o suposto direito de
nascer do embrião in vitro; outrossim, a obrigação de transferência dos embriões
excedentários poderia causar um dano psicológico ao casal, e sobretudo à mulher, caso
houvesse a desistência pela transferência, especialmente quanto à não desejada alternativa
restante de doação para outros indivíduos (princípio da não maleficência); e a mera
possibilidade de tornar obrigatória a transferência de todos embriões excedentários restringiria
o acesso à técnica de FIV, em razão do receio quanto aos custos emocionais e financeiros
implicados pelo mencionado dever legal, limitando o exercício do planejamento reprodutivo
(princípio da justiça).
E mesmo que se diga que a intenção da proposta de emenda à Constituição seja a de
proteger todas as formas de vida humana, não é de hoje que a intenção legislativa deixou de
prevalecer na interpretação do Direito, uma vez que, sendo manifestada pela linguagem, não
há como saber o estado mental do legislador da época, quando sabido que na lei estão
contidas centenas de opiniões e estados mentais radicalmente diversos, o que nos leva a
abandonar qualquer suposição de que sejam uniformes, consoante pontifica Jeremy
Waldron384.
Sobre a qualidade da legislação, Waldron385 acrescenta, ainda, que:
Na melhor das hipóteses, o legislador é apenas outro ser humano – ou grupo de seres
humanos – tentando compreender as coisas. Seu raciocínio é sujeito às vicissitudes
que afligem o pensamento de qualquer indivíduo sobre quem deve possuir o quê.
Eles fazem suas determinações em nome da comunidade toda, mas isso, por mais
importante que seja, não é profilaxia contra o erro.
Nesse âmbito, preocupa o analfabetismo científico do legislador na tomada de
decisões democráticas que envolvem a sociedade, sobretudo quando se percebe a tendência do
enrijecimento de regras que pressupõem ser possível ter apenas uma única visão nas
interações entre ciência e Direito, com base na qual se exige a renúncia dos valores próprios
384WALDRON, Jeremy. A dignidade da legislação ; tradução Luís Carlos Borges ; revisão da tradução Marina
Appenzeller. – São Paulo : Martins Fontes, 2003, p. 32-33. 385WALDRON, Jeremy. A dignidade da legislação ; tradução Luís Carlos Borges ; revisão da tradução Marina
Appenzeller. – São Paulo : Martins Fontes, 2003, p. 73-74.
146
de cada pessoa. Por isso, melhor seria a maximização do conhecimento das consequências do
agir humano, para que, conforme Helena Pereira de Melo386:
A prudência torna-se, deste modo, no “nosso primeiro dever etico”, porque o que
esta em causa “e a propria natureza e imagem do homem” e porque “em face das
potencialidades para-escatológicas dos nossos processos tecnológicos, a ignorância
das implicações últimas torna-se ela própria numa razão para que se faça uso de
comedimento responsavel”.
Portanto, o Direito deve buscar tutelar a escolha autônoma do indivíduo, sem cerceá-
la, com base em convicções de outros indivíduos, grupos ou entidades, obrigando,
indistintamente, a todos, a partir de uma pretensão de validade binária. Nesse sentido, é
crucial que o operador do Direito perceba que as relações de preferências compartilhadas
intersubjetivamente não oferecem apenas uma única resposta que possa orientar o agir
concreto.
Por tais razões, a decisão do STF de considerar inexistente violação do direito à vida
em pesquisas científicas de células-tronco embrionárias para fins terapêuticos, apresenta o
viés de admitir concepções plurais, tanto para aqueles que pensam se dar o início da vida, a
partir da concepção, de modo a decidirem pela transferência de todos os embriões fertilizados;
quanto para aqueles que pensam ser o embrião in vitro um bem jurídico fundamental, passível
de ser utilizado em pesquisa, quando se torna um excedente não mais desejado para fins
reprodutivos, mas sim para pesquisa, com fins de cura e terapia.
386MELO, Helena Pereira de. Manual de biodireito. 1. ed. – Coimbra: Edições Almedina, 2008, p. 177.
147
10 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A introdução veio nesse sentido de mostrar a relação entre Direito e o avanço
biomédico, evidenciando a repercussão na tutela tanto das liberdades quanto dos interesses
das gerações futuras pela manutenção das condições indispensáveis à sobrevivência da
espécie e a uma vida digna, em função da tutela protetiva de direitos e interesses
fundamentais.
Com relação ao panorama geral ético, no âmbito da engenharia genética, enfatiza-se o
dilema da possibilidade de manipulação de nossa natureza com as descobertas genéticas,
diante da variedade de conflitos biojurídicos do Direito medicalizado, e das reflexões que
fazem parte do campo de discussão das teorias morais sobre o sentido da vida correta, objeto
das preferências individuais, que têm em vista a seleção e alteração de características. Ao
mesmo tempo, a discussão sobre a destinação dos embriões excedentários no âmbito da
bioética traz à tona questionamentos acerca dos limites impostos aos interesses difusos,
considerando a possibilidade de destinação à pesquisa de embriões viáveis e inviáveis, para
fins de cura de doenças, conforme faculta o art. 5o da Lei nº 11.105, de 24 de março de 2005.
Durante a evolução dos direitos reprodutivos, os avanços científicos se colocaram
dentro de uma estrutura capaz de oferecer à sociedade condições para uma vida melhor.
Assim, surgiram a bioética e o microssistema do biodireito, com a missão de regular a
aplicação ética e normativa das relações jurídicas resultantes do progresso científico. Portanto,
a ideia de trabalhar com textos bioéticos, em meio à discussão de questões como a natureza
jurídica do embrião, veio em razão de buscar respostas adequadas para os conflitos que
despontam na pesquisa em matéria de biomedicina, sem descurar da necessária observância
aos princípios bioéticos e biojurídicos.
Nesse cenário, o emprego de técnicas de RA passou a ser visto como algo muito útil
ao pleno desenvolvimento da pessoa, na medida em que o diagnóstico de infertilidade deixou
de ser impedimento à viabilização da concretude do desejo procriativo, que, no entanto, se
encontra condicionado ao respeito de valores e regras coletivos, eis que superada a fase do
Direito em que bastava a observância cega da lei. A inclusão dos direitos reprodutivos no rol
das liberdades fundamentais foi marcada por um processo histórico de lutas contra formas de
desigualdades aplicadas, especialmente, à mulher, no âmbito dos espaços público e privado.
Estando a saúde reprodutiva intrinsecamente relacionada ao planejamento familiar, torna-se
necessária a análise das limitações impostas pelo Estado, a fim de que não haja um retrocesso
de todas as conquistas alcançadas pelos movimentos feministas e de direitos humanos.
148
Compreendendo que o embrião in vitro não pode ser tratado como pessoa ou mesmo
centro de imputação normativa, apesar da permanente discussão promovida pelas teorias que
tratam das realidades pré-nascimento, foram apontadas inconsistências na definição legal do
início da vida humana, com ênfase no prisma biológico. Assim, com a finalidade de encontrar
uma justificativa para a proteção da realidade embrionária pelo ordenamento jurídico que se
compatibilize com os direitos fundamentais reconhecidos aos indivíduos, entre eles a
liberdade de planejamento familiar, o tratamento do embrião in vitro como bem jurídico
fundamental personalíssimo, de inegável importância para pesquisas com fins de cura e
terapia de diversas doenças, sobressai como solução compatível para sua elegibilidade à tutela
protetiva, em conformidade com os interesses de seu titular, de quem é exigido o
consentimento livre e esclarecido, e da coletividade.
Ademais, como integrante da vida privada dos indivíduos, o exercício do direito ao
livre planejamento familiar e a autonomia privada reprodutiva, abrangidos pela decisão de
destinação para pesquisa de embriões excedentários, exige que o estabelecimento de deveres
observe uma racionalidade, que funcione como uma limitação intrínseca justificável pelo
conteúdo das cláusulas gerais, como o princípio da solidariedade, sobretudo quando se
verifica a interferência em direitos fundamentais dos indivíduos, sob pena de se verificar a
intromissão paternalista do Estado, tal qual a disposição legal que estabelece o dever de
congelamento de embriões viáveis, por três anos (art. 5º, LB), em virtude da qual são
reduzidas as possibilidades de benefícios sociais.
Dessa maneira, procedendo à análise das condições regulamentadas pelo Decreto nº
5.591, de 22 de novembro de 2005, que têm por base a diferença de tratamento feita pela Lei
de Biossegurança entre embriões viáveis e inviáveis, diante da ausência de clivagem ou da
presença de condições genéticas patológicas, estas não necessariamente incompatíveis com a
vida, bem como considerando que o próprio congelamento promoveria uma drástica redução
nas taxas de implantação, devido a constantes perdas de blastômeros no processamento,
infere-se que o fato de o embrião ser congelado não implica, necessariamente, em sua
proteção, em detrimento da possibilidade de uso em pesquisa. Nesse passo, o dever de
congelamento de embriões viáveis pelo prazo de três anos, a nosso ver, somente se justifica
para assegurar o exercício do livre planejamento familiar, direito fundamental que tem como
titulares os genitores, considerando que não são vistas como legítimas as restrições de
liberdades, baseadas em conceitos transitórios que, na prática, incorrem num determinismo
biológico.
149
A par disso, a incorporação de novos valores para concretização efetiva dos direitos
reprodutivos através da aplicação de técnicas de criopreservação de embriões em Reprodução
Assistida levou à evolução do biodireito brasileiro, mediante a produção de normas de
biossegurança e mecanismos de fiscalização quanto à adequação ética do agir na esfera
biomédica. Em virtude da necessidade de normatizar o caráter ético da profissão médica, em
matéria de reprodução assistida, o CFM teve a preocupação de estabelecer critérios
deontológicos para orientar a atuação profissional no campo da biotecnologia, de modo que
diversas situações jurídicas não regulamentadas pela LB, como as decorrentes da cessão
temporária de utero e gestacao compartilhada, passaram a ser disciplinadas pela Resolucao
CFM nº 2.168/2017. Logo, a despeito das críticas feitas, não há como deixar de reconhecer a
importância do dispositivo deontológico como fonte normativa plural, na regulamentação de
práticas essenciais à concretização de direitos fundamentais, contribuindo, positivamente,
para a observância dos princípios bioéticos.
Tratando da experimentação científica, como a que vemos no campo das pesquisas
com células-tronco obtidas de embriões para realização do projeto parental, constata-se a
utilidade em prol da humanidade, em decorrência da promissora potencialidade terapêutica
que referido material genético apresenta no combate a diversas doenças. Todavia, a
manipulação, enquanto atividade de pesquisa, não é inteiramente livre, haja vista o risco à
diversidade da espécie, protegida contra alterações artificiais. Sob essa perspectiva, a partir
das limitações impostas pela Lei de Biossegurança, são protegidos os direitos fundamentais
reprodutivos dos indivíduos, assim como os interesses da sociedade na preservação do
patrimônio genético, inobstante consideremos legítima a utilização dos embriões
excedentários produzidos com fins reprodutivos, para atender a uma finalidade social.
Nos contratos entre a clínica e os sujeitos fontes, percebemos a importância da livre
autodeterminação individual do paciente, na determinação das vicissitudes jurídicas como
consequência de seus comportamentos, em que fica mais evidente a necessária presença de
racionalidade das regras jurídicas, devido à suficiente aptidão para afetar bens jurídicos e
direitos fundamentais.
A ideia de trabalhar a relação entre a ADI 3.510 e a PEC 164/2012 veio no sentido
assinalar quão prejudicial às liberdades individuais se torna o discurso normativo
despreocupado com a observância aos princípios consolidados nos campos do biodireito e da
bioética. Além disso, o predomínio do fundamento biológico sobre o jurídico, e todos os
inconvenientes trazidos com a atribuição de dignidade ao embrião in vitro, são vistos como
equívocos, tendo em vista a proteção que já existe, enquanto patrimônio genético, sobre o
150
qual há um interesse difuso de toda a sociedade, quer seja ele embrião viável ou inviável, intra
ou extracorpóreo. Nesse sentido, o respeito às diferenças pertinentes de um pluralismo moral,
no conflito dos interesses antagônicos dos sujeitos exige a intervenção estatal permissiva, em
que se reconhece autonomia relativa ao sujeito livre, consciente e igual, fornecendo uma
regulamentação, de maneira branda, como garantia da estabilidade nas relações jurídicas, sem
olvidar o respeito aos quatro referenciais básicos da bioética (beneficência, autonomia, não
maleficência e justiça).
Nesse contexto, o direito ao planejamento familiar como um livre exercício dos
sujeitos tem suas limitações, dentro das questões referentes à reprodução assistida humana,
por envolver o destino de bens jurídicos fundamentais para a sociedade, mas que a ideia de o
embrião não poder ser utilizado antes de três anos não é plausível para limitar a decisão dos
genitores que não desejam ter mais filhos, visto também que a classificação entre embriões
viáveis e inviáveis não importa sempre em incompatibilidades com uma vida digna.
Sem embargo de entender o embrião como bem jurídico fundamental, e não como
centro de imputação normativa, o fato de ser ele uma coisa fora do comércio se coaduna, em
última análise, com sua ressignificação pelo interesse difuso de continuidade da espécie, em
função do qual se considera suficiente a proteção conferida pelo ordenamento jurídico. Assim,
fica evidenciado que não é plausível limitar o tempo para o exercício do planejamento
familiar, por meio do dever de congelar embriões excedentários pelo prazo de três anos, em
detrimento de um planejamento familiar previsto como direito fundamental, quando em prol
deste é possível encontrar um caminho promotor de tutela jurídica, que também preserve
suficiente proteção jurídica ao embrião in vitro.
Seguramente, dúvidas não há de que a lei põe a salvo os direitos do nascituro, desde a
concepção, só reconhecendo a existência de situações subjetivas pertinentes à vida
embrionária, quando ultrapassada a etapa da nidação no útero, e não para aquele concebido
artificialmente in vitro, nos termos do art. 2o do CC.
Outrossim, ao invés de se recorrer à categorizacao dos personagens, a ressignificação
do embrião in vitro, enquanto objeto de direito, com a finalidade de revisar o seu significado e
relevância, representa uma tendência moderna de releitura de institutos e categorias suficiente
para atender as demandas do mundo contemporaneo, conforme defendem Lima e Sa387.
Acrescentamos, ainda, a vantagem de a ressignificação do objeto de direito evitar a
387LIMA, Taisa Maria Macena de; SA, Maria de Fatima Freire de. A Ressignificacao de Objeto do Direito e a
Protecao dos Animais. In: BRANDAO, Claudio; BARROS, Flaviane; TEODORO, Maria Cecilia Maximo.
(Org.). Democracia, Autonomia Privada e Regulacao: estudos em homenagem ao professor Cesar Fiuza. 1ed.
Belo Horizonte: D Placido, 2018, v. 1, p. 155-170.
151
categorizacao de novos personagens, e a consequente multiplicação de conflitos de interesses
antagônicos que podem surgir entre os sujeitos jurídicos.
De outra banda, consideramos que Constituição Federal não estendeu ao embrião
extrauterino a inviolabilidade do direito à vida, e, mesmo a legislação infraconstitucional, em
especial o Código Penal, não assegura um tal direito de vida absoluto ao embrião intrauterino,
se a gravidez resultar em risco à vida da gestante, ficando autorizado o aborto, qualificado
como necessário, conforme dicção do art. 128, I, do Código Penal, e também quando resultar
de estupro e for precedido de consentimento da gestante ou de seu representante legal, na
circunstância em que aquela for incapaz, conforme inciso II do mesmo dispositivo legal.
Os julgamentos realizados pelo STF, tanto da ADPF no 54 quanto da ADI n. 3.510,
embasados nos princípios de solidariedade e igual respeito, lançam luz à condição natural de
nossa autocompreensão normativa. De outro lado, o estabelecimento de um dever que fixa um
prazo de congelamento de embriões in vitro, como antecedente de uma relação moral, para o
qual, nessa situação, não corresponde à existência de um titular do respectivo direito, remonta
a uma antiga tradição da política, que foi transformada a partir da afirmação de que o homem
possui direitos preexistentes à instituição do Estado, consoante assevera Norberto Bobbio388.
Nesse sentido, esse conjunto de ideias apresentadas reclama o reconhecimento de
maior espaço de autonomia aos sujeitos, que, na qualidade de pacientes, estão legitimados a
decidir pela uso em pesquisa de seus embriões excedentários, independentemente de prazos,
sejam eles viáveis ou inviáveis, como alternativa ao enorme excedente congelado em clínicas,
atentando para a concretização dos direitos fundamentais reprodutivos, de liberdade de
planejamento e de livre expressão da pesquisa científica, sem olvidar os princípios bioéticos e
biojurídicos.
Logo, o reconhecimento pela lei de um tempo necessário de desenvolvimento
embrionário para evitar que seja necessário congelar todos os embriões excedentários talvez
facilite a solução de problemas, como a deterioração devido a constantes perdas de
blastômeros no processamento, com o crescente aumento dos que se encontram
crioconservados em clínicas, porém ainda esbarra na indefinição de um marco biológico, alvo
de discussão das teorias que tratam das realidades pré-nascimento. Outro caminho consiste em
converter o atual dever de congelamento de três anos em direito de reflexão, dentro do qual os
sujeitos podem optar, a qualquer tempo, pelo uso em pesquisa do excedente, e que, quando
uma vez transcorrido, em caso de abandono, possibilita a destinação para pesquisa, nos
388Bobbio, Norberto. A era dos direitos; tradução de Carlos Nelson Coutinho; apresentação de Celso Lafer. –
Nova ed. – Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 205.
152
termos previstos pela Resolução CFM nº 2.168/2017 (item V, I), assumindo, portanto, uma
função interpretativa da configuração da situação jurídica de abandono. De outro lado, a
investigacao nos mostrou que a limitação mais respeitosa e juridicamente adequada à
autonomia privada dos sujeitos seria apenas aquela concernente à vedação de comercialização
e clonagem de embriões, pois favorece a coexistência de valores e princípios diversos.
Em vista do exposto, a tutela da autonomia privada pela Constituicao Federal de 1988,
contrastada com a diretriz da Lei nº 11.105, de 24 de março de 2005, nos permite chegar a
uma conclusao: a inconstitucionalidade do inciso II do art. 5º do referido diploma legal, diante
da ilegítima restrição ao direito de liberdade de planejamento familiar albergado pela
Constituicao Federal, no art. 226, § 7º.
153
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