formacao do sujeito 1 capitulo

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    Formao do Sujeito e Transdisciplinaridade

    Histria de vida profissional e imaginal

    Patrick PaulTraduo: Marly Segreto

    Centro de Estudos Marina e Martin Harvey1 Edio So Paulo 2008

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    Ttulo original: Formation du Sujet e TransdisciplinaritHistoire de vie profissionnelle e imaginale

    Primeira edio em francs: LHarmattan 2003

    Direitos para a lngua portuguesa reservados aTRIOM Centro de Estudos Marina e Martin Harvey

    Editorial e Comercial Ltda.Rua Araari, 21801453-020 So Paulo SP Brasil

    Tel/fax: 11 [email protected] www.triom.com.br

    Traduo: Marly SegretoReviso: Lucia Brando, Therezinha Siqueira Campos, Ruth Cunha Cintra, Vitoria Mendona

    de BarrosImagem da capa: Higia, deusa da sade

    Capa e diagramao: Casa de Tipos Bureau e Editora Ltda.

    As novas regras ortogrficas j foram aplicadas, na medida do possvel, nestaedio.

    Edio patrocinada por Vitoria Mendona de Barros

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP )(Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    mailto:[email protected]:[email protected]
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    SUMRIO

    Introduo

    Prembulo

    A antropoformao e os problemas que emergiram do campo singular de nosso

    estudo1. Os problemas que emergem2. A antropoformao como produto de uma heteroformao formal e de umaautoformao experiencial3. A antropoformao pensada como a interao de uma dimenso diurna com umadimenso noturna na formao

    PRIMEIRA PARTEReferncias tericas e epistemolgicas

    CAPTULO 1A formao mdica e seus paradigmas1. Um problema geral, histrico e pessoal

    2. Holismo e acupuntura3. Dualismo e homeopatia4. Positivismo e mecanicismo na medicina clssica

    CAPTULO 2A nebulosa dos sonhos e a constelao dos songes 1. Antropologia do sonho2. Abordagem psicolgica do sonho3. Abordagem cientfica do sonho4. Autoformao e gnoseologia5. A fenomenologia da conscincia gnstica6. Mudanas de lgicas e paradigmas: construtivismos e fenomenologias7. Relatos da formao, de sonhos e fenomenologia

    8. A questo transdisciplinar

    SEGUNDA PARTEA Pesquisa de campo e a anlise dos dados

    CAPTULO 1As bases metodolgicas1. A anlise de contedo2. Os sonhos, sua realidade, sua interpretao3. Autobiografia, autoanlise e construo identitria4. O romance da formao5. O paradigma da tecelagem, entre filosofia e antropologia

    CAPTULO 2A fase de elaborao dos relatos1. A redao da coleta de dados

    CAPTULO 3Anlise dos relatos da formao1. Os ndices da formao2. Os eventos da vida pessoal3. Os eventos da vida profissional4. Clarificao histrica da emergncia dos diferentes paradigmas

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    CAPTULO 4Anlise dos adventos da histria de vida imaginal1. As categorias onricas e perceptivas

    CAPTULO 5A histria de vida imaginal, suas fases e suas rupturas1. A primeira fase de separao e a primeira ruptura2. A segunda fase de elevao e a segunda ruptura

    3. O anncio de uma etapa de fixao: 1994-19964. A ruptura de 1995-1996 e a fase unitiva que se segue5. Histria de vida imaginal

    CAPTULO 6Relao entre fases onricas e os regimes de Gilbert Durand

    CAPTULO 7Relao entre eventos dos relatos da formao e adventos da histria de vidaimaginal1. A anlise dos sonhos relacionados vida cotidiana2. Temporalidade comparada das rupturas formativas e dos adventos imaginais3. Conscincia existencial, realidade onrica e temporalidade

    CAPTULO 8A questo do sujeito e da identidade1. Busca identitria e imaginao2. O drago e seu sentido3. A busca identitria e a revelao dos nomes4. O nome oculto

    TERCEIRA PARTEA modelizao resultante do trabalho de campo e algumas aplicaes

    CAPTULO 1A modelizao1. A triangulao como matriz de base

    2. Triangulao e nveis de realidade3. As trs dobras como intermundos4. Os trs princpios: diferena, converso positiva e apagamento5. Os diferentes tipos de terceiro includo6. Terapia, maiutica e iniciao

    CAPTULO 2Nveis de pensamento e n veis de realidade

    CAPTULO 3A temporalidade1. Tempo, histria de vida e histria de vida imaginal2. Um atraso em relao existencializao eterna

    3. Holismo e tempo cclico4. Dualismo e tempo linear5. No dualidade e tempo presente6. Tempo e reversibilidade7. Histria, trans-histria, metahistria e eternidade

    CAPTULO 4Educao e formao1. A educao e suas questes: um esclarecimento metodolgico2. A formao e seus nveis3. A formao em dois tempos e trs movimentos

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    Concluso

    ANEXOUma definio dos plosBibliografiaTraduo dos ttulos dos livros citados no textondices

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    INTRODUO

    A epistemologia cientfica construda, ainda hoje, sobre um necessrio reducionismometodolgico. Mas sua racionalidade, que valoriza a objetividade crtica, associa a ela umreducionismo ontolgico particularmente abusivo quando se questiona o sujeito em suainteireza e em sua singularidade. Alm dos campos que as cincias testemunham, ohomem aspira pela descoberta de uma unidade integrativa de suas fragmentaes. Essaaspirao ao remembramento associa-se a uma busca de sentido, que no pode satisfazer-se com as representaes fragmentrias dadas pelas diversas disciplinas, por maisconsequentes que sejam as suas riquezas.

    Os saberes tambm visam consolidar a condio do homem em estado de tensoentre natureza e cultura, corpo e esprito.

    De modo evidente, a busca de sentido recebeu respostas diversas, no decurso dossculos. A histria das cincias o demonstra claramente. Essa busca, nascendo nopensamento do homem, diz respeito, fundamentalmente, ao que ele . A tentativa deresgatar a significao da vida opera, portanto, pelo jogo do espelho. Interrogar a esfingeremete ao questionamento da prpria existncia. Toda aspirao orientada para a busca de

    sentido dirige-se, cedo ou tarde, para um trabalho formativo, para um projetoantropolgico, propondo questes to amplas quanto indeterminadas. Quem sou eu? O que ser sujeito? O que ser? A que se refere o conhecimento de si? Como descobrir a simesmo, como se formar? A relao homem/ser uma relao de identidade? Quais so asrelaes, as diferenas, entre o sujeito que eu sou e o Ser? Como nos dirigirmos rumo aoSer, ontologia?

    O reducionismo cientfico, devido ao seu prprio mtodo, est pouco armado paraencetar um encaminhamento que gere tal questionamento. De longa data, o progressoresultou de uma renncia do homem sua globalidade. A pesquisa possui os seus objetos,necessariamente diferenciados segundo as disciplinas. Mas o fato humano escapa de todorecorte disciplinar, o jogo da vida se apresentando, a cada instante, em diferentes ordens:quntica e fsica, gentica, biolgica, fisiolgica, psicolgica, imaginal, social, cultural eespiritual. Todos esses componentes, em interdependncia, no podem ser separados,

    salvo ao se dissecar um cadver ou ao se construir a reflexo num quadro, voluntrio, deuma representao limitada. Mas, ento, o homem no est mais plenamente integrado aoprocesso global do conhecimento que o constri. Ele torna-se portador de um saberobjetivo, separado de si, engendrando, pela no participao no real, todos os riscos deerros possveis.

    Importa, ento, nos interrogarmos sobre o estatuto do homem, sobre sua realidadeontolgica. Para tentar responder a esses questionamentos, a direo de nossa pesquisa foidelineada de maneira precisa, nos detendo sobre a questo da formao, na medida emque o modo de se formar pode pressupor uma ateno dirigida a si mesmo, a um projetovital e social, a uma maneira de ser. A formao de si torna-se indicador ontolgico. Alis,Plato, em A Repblica, sugere essa relao.

    O campo da formao o lugar de um grande nmero de abordagens, s vezes

    divergentes e, mais frequentemente, complementares. A educao para o meio ambienteladeia a educao para a sade. Fala-se em formao inicial, contnua, permanente, poralternncia, de autoformao ou formao experiencial; algumas oferecendo diplomas,outras no; algumas, ainda, remetendo validao das aquisies. Em todas essassituaes, entretanto, o importante considerar que do homem que se fala, que seestuda, a quem se ensina e que se forma. Mas os dois campos, o da formao e o dohumano, se bem que ligados, parecem eminentemente variveis segundo os objetosdisciplinares que lhes dizem respeito, tornando-se delicados para definir e complexos paraabordar, apesar da utilizao to corrente desses termos.

    O que pode nos ensinar o homem a partir de sua nomeao? O homem, hominem,acusativo de homo, construdo com a raiz indo/europia ghyom, terra: criatura nascida

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    da matria fsica, em oposio aos deuses celestes. Toda a busca do homem, devido suarealidade terrestre e sua mortalidade, parece decorrer, portanto, do duplo registro de suaparte manifesta e de sua aspirao imortalidade, divindade herica, como numerososmitos podem testemunhar. Haveria, assim, uma relao entre homem e formao: oprincpio interno de unidade dos seres consistindo numa orientao rumo ao celeste, apartir da sua forma sensvel; o que poderia ser atestado por nossa postura vertical.

    A formao pelo latim forma, ligada ao grego morph com efeito envolve o

    sentido geral de aparncia sensvel (Dictionnaire historique de la langue franaise

    , LeRobert). Essa ideia sobre forma foi matizada pela linguagem lgica e filosfica, que delaconservaram o princpio interno de unidade dos seres. O aspecto notvel dessa definionos remete relao quase etimolgica entre formao e ontologia, estabelecendoexplicitamente a questo do ser, logo, do homem, no aprofundamento da questo daformao.

    Se, no extremo de um exame filosfico, a formao supe o ato formador porexcelncia o da ao divina do Verbo que, digamos, faz penetrar no campo da formaoresulta no desvelar da Imago Dei como molde da forma e manifestao do Ser. O termoevoca tambm, na linguagem corrente, o modo como o homem se constri a partir de suasexperincias. O que aparece, ento, a formao no sentido de Bildung, o romance daformao testemunhando as etapas que orientam o indivduo rumo a si mesmo. Nessecontexto, o neologismo antropoformao nos convida a questionar sobre o homem emformao e sobre a formao do homem, postulando um processo em diferentes graus doser (ontologia), associado a diversos graus de conhecimento (epistemologia).

    Nosso propsito, que deseja contribuir para um incio de resposta, concebido comoum ensaio, que procura determinar as etapas de tal processo de modo a dar sentido questo da antropoformao e da busca da identidade. A questo epistemolgica,associada dos diversos graus do ser e da metodologia que permite chegar a um talmodelo, atravessa nossa pesquisa, estando intimamente associada a ela.

    A presente obra apia-se, em grande parte, sobre uma pesquisa que foi objeto deuma defesa de tese de doutorado em Cincias da Educao (P. Paul, 2001) e repousa sobreuma autobiografia (um relato da formao, escalonado num perodo de trinta anos),articulada a uma histria de vida imaginal (relato onrico, recomposto a partir de umconjunto de 750 sonhos, recolhidos ao longo de 25 anos). Ela responde ao tema da

    formao por meio da construo de um modelo biocognitivo do humano em formao,enunciando as etapas do processo. Nosso percurso, ao mesmo tempo profissional e pessoal(como mdico, formador e sonhador), nos permitiu encontrar campos epistemolgicosdiferentes, representativos da complexidade humana. Alguns deles pertencem ao mundocientfico: formao mdica e DEA/Master de Cincias (microbiologia), doutorado emCincias da Educao; outros pertencem ao terreno das medicinas alternativas:homeopatia, acupuntura, medicina chinesa tradicional e antropologia mdica; outros ainda,ao registro do questionamento interior: onirologia, sonho acordado dirigido, alquimia,hermetismo, herldica e cabala, por exemplo.

    Desta base, ao mesmo tempo cognitiva e experiencial, destacamos um processo deantropoformao construdo, em nossa histria de vida, sobre rupturas e pontesestabelecidas entre patrimnios culturais e cognitivos diferentes, que no pertencem aosmesmos campos de conhecimento, mas que todos eles, no entanto, falam do homem.

    Surge, ento, o conflito entre concepes diferentes, que podem ser reduzidas,opostas ou, por que no, religadas, numa ultrapassagem integrativa. Esta ltimaprioridade, da ordem da prtica profissional, no incio, e da finalidade epistemolgica, emseguida, imps a busca de um mtodo de resoluo de problemas. Como, com efeito, nomais opor, em termos de prtica, a medicina cientfica e a homeopatia ou a acupuntura,por exemplo? Como religar, para um melhor conhecimento de si, as experincias vindas doexterior com os signos provenientes do interior, pela interposio dos sonhos? Possuir

    NE: A traduo para o portugus dos ttulos de livros que esto em francs se encontra no final deste livro,

    aps a Bibliografia.

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    diferentes competncias, que se exprimem alternativamente nas temporalidades de um serfragmentado, de acordo com os interesses da vida ativa e da vida interior, uma imposioda vida ou h possveis interaes?

    Nesse amplo contexto importa, em primeiro lugar, explorar os problemas queemergiram dos diversos registros que cruzaram o campo da nossa formao; o que impe,de passagem, uma certa preciso das definies a fim de esclarecer nosso questionamento.Nosso prembulo sobre a antropoformao tratar disso.

    Trs etapas posteriores organizaro nossa obra, que o leitor poder abordarseparadamente, segundo seus prprios interesses: as referncias tericas eepistemolgicas, o trabalho de campo e a metodologia, a modelizao procedente dapesquisa e algumas perspectivas decorrentes.

    A primeira parte explora os campos tericos e epistemolgicos que atravessaramnossa histria da formao: por um lado, os campos mdicos, cientficos eantropolgicos, e, por outro, os que a nossa vida interior pde cruzar, quer se tratassemdos sonhos, quer da gnose, por exemplo. A multiplicidade de campos abordados exigiu asucesso de vrios captulos. Buscamos, para facilitar a leitura, oferecer algumas tabelas eresumos. A epistemologia transdisciplinar, como processo de construo de relaes,finaliza essa investigao. A transdisciplinaridade, com efeito, se imps, pouco a pouco,como possvel estratgia e, depois, como epistemologia e metodologia importantes notrabalho formativo. Para permitir as comparaes epistemolgicas, mantivemos o mesmoplano em cada um dos estudos referidos, consistindo em ressaltar dois postuladosgnoseolgicos e dois princpios metodolgicos.

    A segunda parte expe as bases metodolgicas e a anlise propriamente dita. Suaaposta legitimar as relaes entre consciente e inconsciente, regimes diurno e noturno,diacronia e sincronia, histria da formao e histria da vida imaginal. O paradigmaantropolgico e filosfico da tecelagem utilizado para operar as relaes entre nveisdiferentes de realidade. A questo da busca de identidade, fornecendo as bases posteriorespara a construo de um modelo que responda questo da epistemologia do sujeito e dosdiferentes graus do Ser, constitui a sua finalidade.

    A terceira parte retoma os dados da anlise e da explorao epistemolgica inicial.Ela tenta modelar esse conjunto complexo em diferentes nveis lgicos ligados aos diversosgraus ontolgicos. A questo do Ser e de seu devir temporal inscreve-se tambm nessemodelo, que desemboca sobre um certo nmero de questionamentos associados aoconceito da formao em cincias da educao. Outros lugares disciplinares poderiam tersido interrogados pela problemtica do sujeito em formao e da ontologia nos diferentessetores associados s cincias humanas, filosofia, medicina e sade e antropologia.As relaes entre cincias e tradies poderiam tambm ter sido questionadas. Escolhemosocult-las para tornar a leitura da obra mais fcil.

    As reflexes sobre a particularidade das competncias profissionais e sobre a questoda formao do sujeito englobam a problemtica dos mtodos qualitativos de busca decompreenso, da fenomenologia, das histrias de vida, da hermenutica e datransdisciplinaridade. Desembocamos num modelo sistmico e antropolgico ampliadovisando consolidar a situao ontolgica do estatuto do humano.

    Salientamos que a tese de doutorado, que precede este trabalho, no poderia ternascido sem o acompanhamento de Gaston Pineau. Que ele receba aqui o agradecimentopor sua qualidade de ser e pela confiana que testemunhou, apesar dos temaslabirnticos de nosso estudo. Nossa gratido tambm dirigida ao conjunto do jri detese: Georges Haddad, por ter aceitado a presidncia, Jean-Jacques Wunenburger pelapertinncia de sua anlise, que nos permitiu algumas modificaes indispensveis nestaobra. Agradecemos tambm a Patrick Boumard. Enfim, nosso reconhecimento se expressatambm junto a Philippe Bagros. No poderamos agradecer a todas as pessoas que, deperto ou de longe, contriburam com essa pesquisa. Mas no poderamos deixar de dar umaateno muito particular e agradecimentos dirigidos a Basarab Nicolescu e aos membros do

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    CIRET (Centre Internacional de Recherches et dtudes Transdisciplinaires), franceses ebrasileiros (mais particularmente, Maria F. de Mello, Vitria Mendona de Barros e AmricoSommerman), que souberam, com os encontros e os escritos, dinamizar este estudo;agradecemos, enfim, a Denyse de Villermay e Michel Randon por sua afirmada amizade.

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    PREMBULO

    A antropoformao e os problemas que emergiram

    do campo singular de nosso estudo

    O homem e a formao

    Como a questo do homem e da formao atravessa nosso estudo, ser necessrio,inicialmente, definir essas duas noes, que no so novas. Lembramos que Plato, em ARepblica, j havia examinado a construo da pessoa e suas consequncias em matria deeducao segundo um eixo diretor sensivelmente vizinho. Seu modelo do conhecimentoevoca, antes de tudo, o Conhea-te a ti mesmo, inscrito no alto do fronto do templo deDelfos. Com efeito, segundo Plato, o conhecimento designa o processo psquico pelo quala alma, percebendo um objeto, capaz de exprimir, mais ou menos exatamente, a sua

    essncia. Esse conhecimento, que encetado de diferentes modos, supe, ento, umafeto, que medida da alma e medida do homem. Pois o homem, o Anthrpos,apresenta a particularidade de poder exercer vrias funes psquicas, e o seu modo devida, ou antes, de pensamento, instaura uma relao particular entre a alma e o corpo.Uma justa proporo nessa relao, permitindo o equilbrio, promove a sade, imitando oque, no Timeu, Plato chama de harmonia divina (80b). O conjunto desses nveis ofereceum certo nmero de caractersticas antropolgicas. O humano apresenta, em sua natureza,um corpo e uma alma tripartida. Ele participa da vida da cidade, mas o mundo dainteligncia, do esprito e da divindade no um dado de base, ele deve ser obtido pelafilosofia na formao educativa.

    A cincia atual (com exceo de alguns casos particulares) no se satisfaz com essaabordagem de Plato, e tende mesmo a nivelar essa graduao, expulsando o sujeito docampo do conhecimento. Sob o pretexto de objetividade, ela examina somente o nvel derealidade humana material. Seria o caso de dizer que a filosofia platnica faz parte de umpatrimnio em desuso, ou ainda, que a cincia se engana?

    As distines parecem antes depender do lugar do olhar e da palavra, impondo umamultirreferencialidade qual os campos disciplinares pouco recorrem. As cincias humanas,sem dvida mais do que as outras, apresentam, no entanto, o imperativo dessa integraoda complexidade constitutiva do humano, sob o risco de se esterilizar. Mas, como articularbiologia e psicologia, consciente e inconsciente, corporalidade e espiritualidade, ao econtemplao, conhecimento e imaginao, mthos e lgos, razo e intuio? O corte queconstruiu o conhecimento atual no recente. Assim, J.-P. Resweber (2000) relembra aclssica fratura existente, desde a aurora da criao das universidades no sculo XIII, entreas artes do Qadrivium (e sua abordagem quantitativa ou explicativa) e as do Trivium(repousando sobre uma aspirao compreensiva e qualitativa).

    Mais tarde, Kant e, em seguida, os neokantianos, ao afirmar a oposio rgida entre arepresentao sensvel e o mundo das ideias, separam, por um longo tempo, as cincias da

    natureza condenadas explicao (Erklren) das cincias do esprito, valorizando acompreenso (Verstehen). A dificuldade prtica das cincias humanas e da medicina noseria o testemunho dessa tenso entre natureza e cultura, corpo e esprito?

    A complexidade do prefixo auto Nosso processo de pesquisa foi construdo sobre o registro primeiro do auto:

    autobiografia, autoanlise e, em parte tambm, autoformao.O prefixo auto impe que seja esclarecida uma confuso sempre possvel: ele

    significa si mesmo e no s. O auto, como ato pessoal de escrita, de anlise, daformao, no supe isolamento, mas uma relao com os outros. Ele estipula, alm do

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    mais, uma aptido para falar de si, para se criticar, para refletir sobre si mesmo, de modo aestabelecer as etapas que apoiaram a elaborao de si em direo a uma busca identitria.

    Falar de si, se quisermos evitar os riscos da iluso biogrfica (G. Pineau, J.-L. LeGrand, 2 ed. 1996, p. 72), s tem interesse se nos empenharmos numa busca de sentidodistanciada dos acontecimentos que formam a trama da vida e de sua escrita.

    A orientao desta abordagem aparece, ento, claramente: no se trata de contarsobre mim (insistindo no aspecto singular aqui empregado), mas, ao contrrio, trata-sede compreender como uma experincia de vida singular pode conduzir formalizao de

    um trajeto biocognitivo; trajeto este que, eventualmente, daria sentido a uma pesquisa queatravessa os campos da educao, da antropologia e da medicina. A busca de convergnciase imps a ns desde o incio, tanto no que concerne aos diferentes campos enumeradosacima, como na direo tomada por nossa pesquisa: o tema subjacente, onipresente eredundante, em cada uma das etapas que nos construram (medicina, cincia,antropologia, onirologia...), parece ser a busca de pontes e de invarincia entre camposdiferentes, a aspirao descoberta de uma certa unidade subjacente diversidadedisciplinar, humana ou cultural. Tivemos conscincia do desafio a envolvido, pois eraimportante evitar todo sincretismo redutor e todo despotismo unificador. Estando inscritonuma dialtica e numa dialgica, esse processo vai no sentido contrrio ao das disciplinasque, certamente, distinguem e separam para analisar. Da a importncia complementar aesta abordagem de um questionamento multi e interdisciplinar que elabore outros mtodosno redutores a fim de apreender a complexidade para poder analis-la.

    Estas averiguaes constituem o ponto de partida da nossa investigao. Elaspropem a questo de saber: como competncias profissionais diferentes podem serarticuladas; como o sonho se constri a partir da vida e como a existncia se nutre denossos sonhos; como o questionamento profissional, pelas diversas epistemologias que elesubentende, pde tornar-se criador de um percurso pessoal, e vice-versa. Em outraspalavras: como a pessoa, em sua unidade singular, pode constituir-se a partir daquilo quea cerca e do que a alimenta, tanto no exterior como no interior dela mesma? A mesmaquesto, formulada de outro modo, seria perguntar: como, em termos de resoluo deproblemas, nos confrontar com a complexidade, com a heterogeneidade disciplinar, com amultirreferencialidade, com as oposies epistemolgicas, com as separaes entre vidaprofissional e pessoal, na esperana de descobrir o seu sentido?

    Escolhemos descrever o carter complexo de toda situao da formao por meio denossa prpria histria formadora. Sentimos, pela interposio dos sonhos, que existia umapossvel relao entre essa histria e nossa vida inconsciente. Decidimos realizar nossa

    pesquisa na rea das cincias da educao, por ser o lugar em que a heterogeneidadedisciplinar constitui, ao mesmo tempo, a sua riqueza e o seu drama. Podemos supor queesse lugar apresente, pelo menos analogicamente, as mesmas problemticas que as donosso terreno de anlise. Nas cincias da educao, com efeito, a constatao daheterogeneidade, frequentemente considerada como fraqueza e no cientfica, levadaadiante pelos portadores de uma epistemologia redutora. Mas nossa sociedade e seucampo educativo no se podem satisfazer com a reduo positivista, seja qual for a suafundamentao. Pois a complexidade dos fatores operantes, aquela dos diferentes saberese de suas relaes, impe-se cada vez mais, pedindo uma nova postura, mais aberta emais adaptada resoluo de problemas. Essa postura, se ela existe, passa por umamudana epistemolgica mais capaz de integrar os dados complexos. Nossa prpria histriada formao parece constituir, nessa tica, um terreno a ser explorado.

    1.Os problemas que emergemComo ponto de partida deste prembulo, podemos especificar novamente o brotar

    dos questionamentos que motivaram, inicialmente, nossa pesquisa:

    O primeiro de ordem mdica: a relao entre medicina cientfica e medicinasalternativas, se bem que legalmente reconhecidas pelas diversas instncias profissionais,apresentam problemas que nos parecem resultar, antes de tudo, dos fundamentosepistemolgicos prprios a cada uma. Como se opem, se articulam, se religam, essesdiferentes campos que, a seu modo, recompem toda a histria das cincias?

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    A segunda interrogao de ordem mais pessoal: se a htero e a autoformaoocorrem nas diversas prticas mdicas que construram nosso exerccio, consideramos quea autoformao no unicamente diurna. A parte noturna que os relatos de sonhospodem testemunhar interage com a contraparte diurna. A partir da, como encarar essarelao, contraditria por essncia, na formao? Em outras palavras, como so tecidas, naformao e, indiretamente, na prtica profissional, as relaes: diurno/noturno,consciente/inconsciente, objetividade/subjetividade?

    O relato da formao (bildungroman), sobre o qual se apia a nossa pesquisa, tem

    por vocao habitual apresentar uma sucesso de acontecimentos, de situaesromanescas, simblicas e iniciticas (M.-C. Fradet-Thibault, 2000, p. 374), cujo interesseprincipal repousa no processo conduzido pelo personagem para se apropriar do sentido doque foi vivido, a fim de adquirir sua liberdade ao atingir sua maturidade e, assim, forjar suaidentidade. Com efeito, se o relato tem por vocao enunciar a maneira como uma pessoa construda em sua profisso e/ou em sua identidade, se ele especifica as diferentesetapas de sua transformao, a questo saber como construda essa busca formadora eidentitria. Podemos afirmar, particularmente, que somente os acontecimentos existenciaissustentam essa elaborao? Em outras palavras: o relato clssico da formao suficientepara explicitar o processo de antropoformao?

    Em outros termos: sobre o que repousa a formao? Se formar no ensinar, masinduzir mudanas de atitudes e de representaes, essas mudanas remetem somente aoregistro do consciente, ou o inconsciente participa dessa operao? Na hiptese afirmativa,

    como apreender os processos de transformao que se desenham nos jogos antagonistasou complementares entre fenomenologia existencial e imaginal, consciente e inconsciente?Seguindo G. Bachelard ou G. Durand, por exemplo, nossa abordagem considera o

    imaginrio como primeiro em sua relao com a atividade cognitiva e mental deabstrao, levantando a questo de saber como o relato da formao e a histria da vidaonrica interagem.

    Entretanto, antes de desenvolver mais adiante uma investigao epistemolgica,impem-se algumas especificaes para se pensar o homem e a formao no campo daantropoformao.

    2.A antropoformao como produto de uma heteroformao formal e de umaautoformao experiencial

    Nossa abordagem entrecruza histria da formao e relatos de sonhos. Nas cinciashumanas, classicamente, as histrias de vida so consideradas como metodologias. Iremosdesenvolv-las como tais, no captulo que lhes diz respeito. Queremos construir nossodesenvolvimento articulando histria da formao e autobiografia, antropoformao,autoformao, heteroformao e formao experiencial.

    Histria da formao e autobiografiaA histria ou relato de vida, para J.-L. Le Grand (1989, Tomo 2, p. 263-265), uma

    expresso genrica em que uma pessoa conta sua vida ou um fragmento de sua vida,sublinhando a construo temporal operada pelo relato. Nosso terreno de anlise apia-se,preferencialmente, sobre a parte formativa da histria de vida profissional e onrica. Atemporalidade religar os dois campos, um e outro sendo referidos pelo jogo de inscriesdiacrnicas.

    Para o mesmo autor, etimologicamente, a histria uma busca de sentido a partir defatos temporais. Essa busca, sendo autobiogrfica em nosso caso, repousa sobre o auto,como expresso da apropriao pelo sujeito de sua biografia (de bios: vida e graphein:escrever). , portanto, a biografia de uma pessoa escrita por ela mesma.

    No contexto autobiogrfico, a forma como redigimos como histria da formao situa os dados temporais do modo mais objetivo possvel, reconhecendo as lacunas quecaracterizam o relato, obrigatoriamente tingido pelo que sentimos sobre nossa formao aposteriori de sua vivncia, feito numa escrita diferida. Esse tipo de expresso pode,evidentemente, transformar a realidade da biografia, como sabemos. Esta , alis, uma dascrticas mais redundantes em oposio s histrias de vida. Retornaremos a ela quandoformos tratar da abordagem metodolgica; simplesmente consideraremos aqui que, j que

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    toda formao surge como manifestamente complexa, parece desejvel fazer um certonmero de distines (formadoras) para diferenciar os problemas colocados, orientando-osna direo escolhida (em nossa abordagem, a seleo foi, antes de tudo, epistemolgica).Inversamente, a compilao dos relatos de sonhos imps-se por si mesma, pelo imperativointerior de sua escrita na sucesso do tempo. Mas sua reconfigurao, sob a forma de umahistria de vida imaginal, supe, por sua vez, uma posio prconcebida idntica. A fimde conservar uma possvel coerncia de anlise, tratou-se de reconstruir os conjuntosprocurando os seus indicadores epistemolgicos. Essa abordagem poderia espantar os

    defensores de um reducionismo onrico estrito, que consideram o sonho como simplesexpresso da neurose. Nosso processo de pesquisa, para melhor situ-lo, pode serapreendido antes no campo antropolgico do que no da psicologia e da psicanlise; a buscainterior como manifestao onrica e iluminativa de um inconsciente ignorante de simesmo, mas possivelmente cognitivo referindo-se muito mais ao mito platnico daCaverna e aos seus diferentes nveis ontolgicos e epistemolgicos, do que a uma teoria dorecalque.

    A autobiografia (Ch. Delory-Momberger 2000, p. 31, citando J. Lecarne) pode, assim,tornar-se auto-teo-grafia. Sendo possvel pesquisar as relaes entre o bios e o tho,parece legtimo supor essa interrogao ltima sem resposta: Eu me tornei, para mimmesmo, um enigma, como nos diz Santo Agostinho (Confessions, X-5). O mistrio final detoda busca auto-(bio)-teo-grfica residiria, ento, na contradio de dever, em sebuscando, buscar Deus este ltimo no residindo em nenhum outro lugar a no ser em simesmo e, no entanto, no poder jamais, nem total nem definitivamente, encontr-lo. E oque ainda mais estranho que esse processo, encetado como busca identitria,desembocaria sobre um desconhecimento de si. Por que, ento, desenvolver uma busca desi mesmo que vai resultar numa ausncia de resultado formal definitivo? Essa questo, tolegtima quanto possa aparentar, nos parece mal colocada. Nosso conhecimento, comefeito, por estar muito identificado com as formas exteriores, no pode imaginar o que sesitua em outros nveis do si mesmo. O que definitivamente importa, portanto, a inscrioque, sob a forma de uma histria de vida (ou de sonhos), d o testemunho: so os traosque cada um marca ou deixa em seu caminho. Caminante, son tus huellas el camino, ynada ms; caminante, no hay camino, se hace camino al andar (A. Machado, Obras,poesas y prosa, Buenos Aires, Losada, 1964, estrofe XXIX).

    Se o relato agostiniano, para Ch. Delory-Momberger (op. cit., p. 33), tende para aabolio do eu, essa converso, segundo a interpretao dele, pe um termo histria devida, desde que o eu arrancado do tempo da histria e do relato quando esposa a ordem

    atemporal da eternidade. No ser essa a abordagem que apoiar nossa busca que, noentanto, repousa identicamente sobre as relaes entre autobiografia e autoteografia porum lado, mas que, por outro lado, afirma a importncia do paradoxo na formao. Aautobiografia negativa para retomar um termo de J. Lecarme, citado por Ch. Delory-Momberger (p. 33) definida como a ruptura na vida da autobiografia e que pe um olharnegativo sobre os acontecimentos de seu passado, no pode, por sua prpria reduo,convir ao nosso mtodo, que integrativo e no redutivo e em nveis de realidadediferentes e concomitantes. Inversamente, como sugere a abordagem alqumica doRenascimento ou a abordagem, mais atual, da Transdisciplinaridade, damos importncia integrao autobiogrfica possvel das oposies e das contradies entre dois tipos derelatos: um remetendo ao consciente, o outro ao inconsciente. Essa integrao, ao quebraras oposies, afirma-se como via de ultrapassagem, permitindo passar de uma realidadepara outra, mais profunda, transparecendo sob o jogo das relaes dialticas.

    Antropoformao, autoformao, heteroformao e formao experiencialO conceito de antropoformao, que atravessa a complexidade da unidade/plural,

    torna nossa abordagem ao mesmo tempo delicada e portadora de uma grande riqueza. Atransdisciplinaridade, completada pela abordagem tripolar da formao (G. Pineau, 1991),parece poder oferecer uma base epistemolgica e metodolgica que apia o conceito deantropoformao.

    Consideramos importante, preliminarmente, situar a ideia de antropoformaovinculada abordagem tripolar, que sugere uma formao em dois tempos (diurno enoturno) e trs movimentos (eco, htero, autoformao).

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    A antropoformao (conceito que especificaremos mais adiante, particularmente emnossa modelizao) poderia ser definida como o processo global e geral (ao mesmo tempoparticular e singular, mas tambm possivelmente social e coletivo) que articula as relaesinterativas entre ecoformao, heteroformao, autoformao (como as define G. Pineau,1991) e ontoformao. Com efeito, o postulado implcito de nossa pesquisa reside nahiptese de uma invarincia antropolgica que caracterizaria o processo deantropoformao do homem global. Ele tem por objetivo fazer aparecer o que poderiahaver de universal na expresso de cada singularidade. Esse postulado dialetiza, portanto,

    as relaes entre singular e universal, oferecendo uma base epistemolgica e metodolgicade tratamento dessa problemtica. Face complexidade, importante no nivelar masarticular as contradies e a invarincia, fazendo entrar em cena nveis de realidade que aspreservem.

    A ontoformao corresponde, nessa tica, problemtica paradoxal das relaesentre o singular e o universal na formao; esse processo sendo associado ao apagamentode si mesmo, que brota no termo da autoformao, permitindo uma relao unria (D.R.Dufour, 1990) entre o nico (que vetor dos valores da singularidade) e a unidade(portando os valores da universalidade e da invarincia antropolgica). Explicaremos esseenunciado no curso de nossa modelizao, na terceira parte.

    A autoformao nesse contexto, como formao do sujeito por si mesmo, estabeleceo problema da subjetividade. Ela no , para G. Pineau (1991, p. 29), uma substncia jformada que s teria que se exprimir. Ela antes uma ao, e melhor, uma retroao,formada por meio do seu prprio movimento. Apesar de suas ambiguidades, e talvezgraas a elas, o desenvolvimento do sujeito e a questo da autonomia so levados emconta. Para G. Pineau (1998-a, p. 39, 40), o prefixo auto, indicador da ao especficados sujeitos, tem m fama na cincia objetiva clssica. Todos os substantivos aos quais elese agrega autobiografia, autoformao, autorreferncia e que so suspeitos deideologizao e de deformao subjetiva e neurtica, remetem explcita ou implicitamente,no entanto, a uma teoria da forma.

    Para M. Fabre (1994, p. 118), hoje se verifica, com efeito, que a autoformaoexperiencial baseia-se em duas concepes opostas, e talvez irredutveis, da experincia. Aprimeira, que se apia sobre o romantismo alemo, inscreve-se no quadro da teoria daBildung e traz a formao no contexto de uma filosofia de vida e do esprito como buscade sentido e tentativa de reconciliao entre o esprito e o mundo. A segunda, a partir dafilosofia da experincia de J. Dewey, como learning by doing (aprender fazendo),inscreve-se no pragmatismo anglossaxo como modelo de experimentao cientfica.

    Podemos nos perguntar: essas duas dimenses da formao experiencial so toirredutveis, uma outra, como parece? Hoje, a segunda concepo de autoformaoexperiencial, por interposio do pragmatismo, tem mais facilmente o direito de existirdevido ao seu reconhecimento cientfico. No entanto, se a experincia oriunda do que foivivido pelo sujeito no , de modo algum, uma entidade objetiva, ns no podemos afastarto facilmente a dimenso propriamente singular da formao do sujeito por si mesmo.

    Se a autoformao diz respeito ao prprio indivduo, seu reconhecimento baseia-seantes de tudo, em nossa abordagem, na formao experiencial (que direciona conforme aexperincia) e sobre a fenomenologia (que articula o acontecimento e seu sentido com aintencionalidade do sujeito).

    Se nos referirmos definio etimolgica, o prefixo auto, significando si mesmo,suporia tambm a combinao de dois papis na autoformao: o de aprendente e o dedocente. Mas bem sabemos que o docente/aprendente no pode controlar todos os

    aspectos de sua formao. No pode haver autoformao isolada de um campo maisglobal, social e cultural, no qual a pessoa se inscreve. Em outras palavras, aheteroformao formal e a autoformao experiencial interagem.

    A autoformao adquire tambm o seu valor em contraponto heteroformao.Nesse contexto, entendemos por heteroformao, segundo J.-L. Le Grand (1989, p. 265),a formao em que os outros tm um poder predominante de pr em forma, de dar anoo de conjunto e de dar um sentido; o caso, particularmente, das formaesrecebidas daqueles que tm a responsabilidade institucional de fornec-la: os pais, osprofessores.

    A formao experiencial definida por G. Pineau (1991, p. 29) como uma formaopor contato direto, mas refletido, isto , sem a mediao dos formadores, de programas, de

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    livros, de vdeo, de referncias bibliogrficas e epistemolgicas, ou mesmo, s vezes, depalavras. Ela manifesta, como produo da pessoa por si mesma, a realidade cognitiva queemerge das profundezas a partir dos acontecimentos e que se interpe ao meio ambiente.Pois h uma ligao entre o que produz o acontecimento, o que fornece a experincia, oque d sentido a ela, e o nvel, noturno e inconsciente, que trabalha, que forma e quemobiliza. Da a importncia do sentir, frequentemente negligenciado em privilgio dareflexo, de modo a revelar a intencionalidade oculta (e, no entanto, atuante), que ascircunstncias e o sentido que lhes atribumos contribuem para que seja manifestada. A

    partir da, esse reconhecimento da profundidade e a sua formalizao poderiam serconcebidos como a via real do reconhecimento do sujeito, que se esconde e escapa, semcessar, das investigaes. Para M. Fabre (1994), essa formao, como filosofia daexperincia, inscreve-se no pragmatismo do saber fazer. Como filosofia de vida e doesprito ela pode, por sua vez, afirmar-se no quadro do saber ser e no da busca de sentido.Mas, uma vez que a formao experiencial, unificando ao e cognio, testemunha, antesde tudo, uma expresso do subconsciente, as percepes, emoes, sonhos, imaginao,smbolos, intuio impem-se como terrenos a serem desbravados nas cincias humanas.

    Nesse contexto, a autoformao experiencial participa de uma apropriao pelosujeito de sua vivncia; a gestao das diversas aprendizagens resultando do campo daexperincia percebida. Contudo ela pertence tambm ao mundo da imaginao e daintuio. O conhecimento experiencial permite, alis, para M. Delevay (2001, p. 65),articular as percepes, as emoes, as intuies, com a razo. Esse conhecimento maisatento aos fatos, aos seus encaixes e s suas correlaes, do que a uma busca decausalidade que, no entanto, ele no nega. O importante considerar a globalidade dohomem, que ns sabemos construdo, ao mesmo tempo, sobre os regimes diurno enoturno, mas tambm enraizado no sentir, identificado com representaes, integradonum meio ambiente natural e social e, portanto, em situaes complexas por essncia.Todavia, retomando G. Bachelard (1938), h um obstculo epistemolgico entre umaabordagem do conhecimento que poderamos qualificar de cientfica, devido busca deracionalidade, e o conhecimento experiencial que caracterizaria mais especificamente oinconsciente corporal, o gestual do sujeito, ao mesmo tempo instintivo e adquirido. Esseconhecimento experiencial no apresenta, ento, a priori, o carter de intelectualidade quese espera do saber cientfico. Portanto, a aprendizagem experiencial da autoformao referenciada de modo antropolgico. Ela se encontra na raiz do humano; o homo faberprecedendo o homo sapiens. O campo experiencial, alis, aparece regularmente no campocognitivo: certamente podemos raciocinar sobre os fatos e deles deduzir um certo nmero

    de consequncias, mas alguns elementos, por associao e similitude, podem tambmoferecer respostas diretamente, ao remeterem para uma experincia passada.

    Com efeito, o aspecto experiencial da autoformao sugere, por etimologiainterposta, uma dupla face. Num primeiro nvel, certamente, o saber experiencial o dapercia de um indivduo que se direciona de acordo com a experincia, adquirida, que elepossui de sua vida. Mas essa prtica, que podemos aqui considerar vivida e experimentada,supe um particpio passado, marca de uma colocao prova, de um risco encontrado evencido, de um perigo atravessado (peritus). A experimentao, como autoformao ebildung/formao (retomaremos esse termo), afirma-se como um ensaio, por meio doqual e no qual o sujeito se compromete e se engaja no experimentar a si mesmo, de modoa encontrar as provas (empricas) de sua prpria realidade.

    Em outras palavras: o que diferencia o conhecimento cientfico e o conhecimentooriundo da abordagem experiencial no tanto a busca de provas, mas a orientao do

    sentido, a interpretao que atribuda aos fatos, a interao (fraca ou forte) querene/separa o objeto e o sujeito.No contexto da antropoformao tal como a concebemos repousando sobre uma

    ontologia em vrios graus, sobre uma dupla fenomenologia e sobre uma hermenuticaintegrativa evidente que a racionalidade cientfica no pode pretender constituir sozinhaa integralidade do conhecimento do sujeito, pois a percepo, o sentimento, a emoo, opensamento simblico, o mito, a imaginao e a intuio, que nos permitem compreender oque nos cerca, pertencem tambm cincia do sujeito.

    3.A antropoformao pensada como a interao de uma dimenso diurnacom uma dimenso noturna na formao

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    Regime diurno e noturnoO campo experiencial da autoformao habitualmente concebido no territrio da

    experincia prtica como, por exemplo, a profissional. Podemos considerar, sob esseregistro, uma parte de nossa formao mdica e cientfica, assim como um certo nmerode aquisies, quer se tratando de jardinagem, de contato com a natureza, como da prticade laboratrio (espagria), dos traados (brases, desenho) etc. Esse conjunto, no entanto,pertence ao registro da vida em viglia (diurna). Mas nossa experincia onrica mostrou

    toda a importncia de se considerar a atividade noturna que, quando nos lembramos denossos sonhos, apresenta um material cognitivo e experiencial de primeira importncia euma fonte de informaes a ser explorada.

    Nossa abordagem, contudo, no tem por objeto nem o engajamento nos caminhos dainterpretao dos sonhos (outros j a se aventuraram antes de ns), nem a explanaodos materiais que demarcaram o nosso desenvolvimento interior. Tentaremos, somente emais modestamente, especificar de que modo os relatos de sonhos podem cruzar a histriada formao e a sua reunio (pelo menos uma hiptese) fornecer um sentido que possaespecificar o processo de antropoformao.

    Apesar das pontes possveis entre as duas concepes de autoformao experiencialpropostas por M. Fabre, e de modo a evitar qualquer engano, nossa definio da parteexperiencial estar apoiada, antes de tudo, sobre a Bildung. Mas, paralelamente, aoavanarmos nessa afirmao, reencontraremos, sob o antagonismo das definies, umainterrogao muito prxima da questo da interao entre htero e autoformao. Em cadacaso, a questo colocada pede que sejam especificadas quais so as relaes entre aobjetividade e a subjetividade na formao; e estes termos, como iremos demonstrar,intervm na definio dos regimes diurno e noturno.

    Com os termos diurno e noturno, seguimos as pegadas de G. Durand (1969,reed. 1992a) que, levando em conta as convergncias da reflexologia, da tecnologia e dasociologia, discerne dois regimes antropolgicos do imaginrio: um diurno e outronoturno, desdobrando-se numa tripartio funcional. O regime diurno diz respeito dominante ativa dos engramas, o noturno dominante passiva ou receptiva. A anttese, odualismo das metforas da luz e das trevas, define o regime diurno, caracterizando asestruturas esquizomorfas do imaginrio e do pensamento. O racionalismo analtico objetivoque serviu de modelo para os mtodos fisioqumicos, para os processos cientficos depesquisa e para a biologia, corresponde a esse regime. A formao mdica repousa sobreessa lgica.

    O regime noturno da imagem, inversamente, capta as foras do devir, revirando osvalores simblicos em Eros noturno e feminide, sob o signo da converso, do eufemismo,da analogia, do misticismo, da sntese, subjetivando de algum modo (em duas funesdistintas) o que o regime diurno, pela lgica analtica, tenta objetivar. O campo semnticodos sonhos pertence a essa categoria.

    As partes diurna e noturna so reencontradas na educao, se nos lembrarmos daformao em dois tempos e trs movimentos (G. Pineau, 1998, p. 239-247): os doistempos fazendo eco aos regimes diurno e noturno, e os trs movimentos a eco, htero eautoformao.

    Consciente e inconscienteDe certo modo, diurno e noturno, por deslizamento de sentido, podem conduzir

    a consciente e inconsciente. Pretender, em poucas palavras, definir estes termos

    parece impossvel. Mas importante, em todo caso, evitar algumas falsas interpretaes.Assim, nossa abordagem no se situa no campo da psicanlise e a palavra inconscienteou a palavra cognitivo no se referem, por exemplo, a uma teoria do recalque ou dapsicologia.

    Em nossa abordagem, o termo conscincia est mais ligado definio oferecidapor A. R. Damasio (2002), como a capacidade que um organismo, dotado de reflexos inatose capaz de regular seu metabolismo, tem de tornar-se um organismo provido de umesprito. A estabilidade aparente desse esprito nico produzida, em diferentes etapas, nonvel das molculas. O proto Si , de incio, uma coleo ligada e temporariamentecoerente de configuraes neuronais, que representam o estado (inconsciente) doorganismo. Ser consciente afirma o sentimento de ser no ato de conhecer porque o proto

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    Si foi modificado por um objeto que acabou de passar para o primeiro plano de nossoesprito. Sabemos que existimos porque o relato nos mostra como protagonistas do ato deconhecer. Ns nos tornamos um Si central, consciente, pelo sentimento (no verbal) quese renova sem cessar graas a alguma coisa que nos penetra a partir do exterior. Aprimeira base da conscincia um sentimento que aparece na re-representao do proto Sino consciente, em curso de modificao. Depois, alm do Si central, aparece o Siautobiogrfico, no mais ligado ao sentimento de si, mas memria agregada eremodelada medida que a vida se desenrola. Esta memria diz respeito aos fatos

    histricos nicos e s caractersticas constantes do indivduo. A memria autobiogrfica constituda de lembranas implcitas das mltiplas circunstncias das experinciasindividuais do passado e do futuro. Os aspectos invariantes da biografia de um indivduoformam a memria autobiogrfica. Ela desenvolve-se continuamente com a experincia davida, mas pode ser, em parte, remodelada. As sries de lembranas que descrevem aidentidade podem ser reativadas e tornadas explcitas sob a forma de imagens. Todalembrana reativada funciona como qualquer coisa a ser conhecida e engendra suaprpria pulsao de conscincia central. Enfim, a conscincia estendida a que permiteaos organismos humanos levar suas aptides mentais sua mais alta expresso, criandoobjetos, compreendendo os pensamentos dos outros, desenvolvendo um pensamento tico.As lembranas autobiogrficas tornam-se objetos graas a duas aptides: a de aprender,guardando os traos da experincia; e a de reativar esses arquivos, como objetos queengendram o sentido que se tem de conhecer a si mesmo.

    Percebemos at que ponto a conscincia autobiogrfica e a conscincia estendidaimportam no processo das histrias de vida. Em contraponto, para ns o inconsciente ser,ao mesmo tempo: a expresso do proto Si, tal como descrito por Damasio, osubconsciente e o inconsciente freudianos, mas tambm a possvel manifestao de umadimenso imaginal, que nos remete teoria platnica da reminiscncia e, mais ainda, aomundo imaginal desenvolvido por H. Corbin. Retomaremos, posteriormente, a esseltimo ponto, para aprofundar a questo do sentido: o que encontrado ao se conhecer asi mesmo e o que se d s coisas. Nossa postura, simplesmente modula um pouco aproposio de Damasio, integrando, na busca de sentido e na conscincia estendida, o jogoantagonista e dialtico de um inconsciente paradoxal e possivelmente cognitivo.

    A busca de sentidoEm outras palavras, a dicotomia entre a objetividade, antes diurna, e a subjetividade,

    de dominncia noturna, mais ambgua do que possa parecer. A questo da sua relao

    poderia, ento, ser a questo do sentido. A busca de um sentido pragmtico (exterior) ouespiritual (interior) de nossos atos de vida (ou de nossa formao) postularia, ento, doisolhares contraditrios: um oferecendo os avatares da vida existencial e suas consequnciasno campo da objetividade; o outro, o de nossa natureza celestial (H. Corbin) ou interior,se ela existe, que seria a expresso da subjetividade mais essencial.

    As relaes entre objetividade e subjetividade remetem, de certo modo, a doiscampos epistemolgicos distintos, cujas prprias diferenas geram debates. As cinciashumanas inscrevem-se, com efeito, no ponto de juno entre modelos explicativos ecompreensivos. Esse antigo debate, para ser estabelecido, merece um rodeio atravs daetimologia. Explicar, no sentido literal em francs plier en dehors [dobrar para fora],significa desenrolar, pr s claras, desdobrar. Compreender, de modo diferente,desenvolve a ideia de pegar, de segurar junto, com uma conotao que evoca comoo verbo aprender, por exemplo uma atividade mais interiorizada do esprito. O termo

    explicar, por seu desdobramento, sugere uma dimenso quantitativa e multiplicativa nums nvel, natural. O fato de pr as coisas fora de si permite analisar, explicitar osmecanismos de modo objetivo. Compreender supe antes uma abordagem qualitativa,ligada ao sentimento, percepo vivida de um esprito associada ao ato de sentir,permitindo uma mudana de comportamento, j que foi o prprio sujeito que viveu aexperincia. O conhecimento oferece, portanto, vrios caminhos de experimentao.

    explicao cientfica, apoiando-se no modo quantitativo e da causalidade, ou seja,no mensurvel, justape-se o campo proposto pela compreenso, oriundo de um modo depensar mais analgico e experiencial (mesmo que seja verbalizado e analisvelsecundariamente). Em nossa prpria abordagem, a busca do sentido (que podemos dar scoisas, vida...) s pode brotar, pelo menos uma hiptese, de uma interao forte entre

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    os modos explicativo e compreensivo, objetividade e subjetividade, regimes diurno enoturno... Esse pensamento da ordem da dialgica (E. Morin) e da razo contraditria (J.-J.Wunenburger) recompe dialeticamente o ato de conhecer tal como Plato (A Repblica) oevoca, por exemplo, no clebre mito da caverna. A dificuldade essencial dessa operaoreside na ausncia habitual da parte imaginal, intuitiva, ou seja, noturna, na epistemologiae na metodologia universitrias (em nosso campo particular, as histrias de vida),proibindo (ou atenuando), com frequncia, toda forma de jogo dialgico.

    Se a autoformao faz referncia, em nossa hiptese, busca no dual de sentido do

    sujeito interior, de essncia noturna, e se a heteroformao se dirige mais para a buscaobjetiva (dual) de uma significao, a articulao das relaes entre os regimes diurno enoturno levanta a questo de uma hermenutica que direcione para a possvelemergncia de um sentido dos sentidos que pudesse reunir as contradies.

    O fato de se descobrir a autoformao como, ao mesmo tempo, oposta e ligada heteroformao, e de se compreender a dimenso formativa como uma construo tripolar(G. Pineau) por si (auto), pelos outros (htero) e pelas coisas (eco), enraza oquestionamento atual da formao no quadro do pensamento complexo valorizado por E.Morin. Atualmente, a formao faz com que as representaes uniformes se rompam etornem-se o produto de transaes complexas, feitas de clareza e de distino, tantoquanto de opacidade e de indiferenciao. Ela torna-se o trao de unio do formal e doexperiencial, da organizao estruturada e do caos, da ordem e da desordem no homemindividual e social.

    A imaginao como ponte que preenche a ruptura entre os regimes diurno enoturno

    Sabemos, retomando J.-L. Le Moigne (1995/1, p. 206), que a axiomtica que funda algica formal no a nica ou que ela nem sempre pertinente para dar conta dosfenmenos que o esprito humano percebe na relao da forma com o formado e com oformante.

    Desarmar a armadilha do normativo e do descritivo sugere, entre outras coisas, avalorizao da imaginao, to cara a G. Bachelard. O desenvolvimento subsequente daspesquisas sobre o imaginrio e sobre o simbolismo (H. Corbin, G. Durand, J.-J.Wunenburger etc) faz com que estejamos, atualmente, numa fase que torna possvel acriao de novas formas do real (R. Barbier, 1984; G. Pineau, 1991).

    Nossa abordagem integra o imaginrio na formao, fazendo dos sonhos um campode expresso da realidade interior, inicialmente inconsciente (esse aspecto evoluindo no

    tempo), mas fonte de cognio. Como, no entanto, validar a imaginao nas cincias daformao? Como encontrar o sentido da formao pluridisciplinar que construiu o nossopercurso? Como reunir a corrente acadmica contracorrente experiencial que, em nossahistria, se inscreve no mundo onrico e na errncia da busca interior?

    G. Pineau (1983), em Produire sa vie Marie-Michelle, j sugeria a importncia daautoformao noturna. O experiencial, por sua relao com a intuio, com a imaginao,com a escuta, com o sensvel, abre o campo diurno das faculdades lgicas e cognitivas parao domnio mais amplo da complexidade. Ele pertence ao mbito do buraco negro (G.Lerbet), da escuta transversal ou sensvel (R. Barbier). Desse modo, o campo noturno daformao parece balizado. Falta relig-lo parte diurna, percurso um tanto mais delicado,pois h obstculo epistemolgico entre os campos.

    O trajeto antropolgico construdo por essas rupturas, pela interao entre sujeito eobjeto; a imaginao sendo, primeiramente, a ligao entre a pessoa e seu meio ambiente

    (P. Galvani, 1997). Mas a imaginao pode igualmente revelar, se seguirmos H. Corbin,uma outra dimenso, imaginal, expresso do sujeito verdadeiro, porm oculto.Consideramos, a partir da, o entre dois que opera a relao entre regime diurno e noturnocomo inscrito no quadro de uma abordagem mltipla e transversal, centrada numacomplexidade no dogmtica e multirreferencial (R. Barbier, 1997, p. 160).

    O ato de reunir conhecimento e imaginao, cincia e gnose, objetividade esubjetividade, especifica a multirreferencialidade, que oferece esclarecimentos opostos emesmo, s vezes, inconciliveis, por um lado, e que, por outro lado, no uma adio,

    NE: A traduo para o portugus dos ttulos de livros que esto em francs se encontra no final deste livro,

    aps a Bibliografia.

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    mas uma ruptura, um obstculo, particularmente epistemolgico. A ideia de obstculo nosremete, em primeiro lugar, a G. Bachelard, que faz dele uma necessidade funcional dopensamento. O obstculo no , aqui, um vazio, mas um muito pleno de conhecimentos(M. Fabre, 1995, p. 81), uma resistncia do objeto, uma representao com seus conceitose teorias que tm valor de etapas e que podem at mesmo bloquear o esprito em seuavano. Essa realidade psicolgica do obstculo, que est na base da educaobachelardiana, reporta o desenvolvimento psquico ao desenvolvimento histrico do saber.Ela abre a forma dada por Augusto Comte, com a sua lei dos trs estados, que exprimia a

    sucesso dos regimes do pensamento ao tratar do problema do conhecimento. Para ele, ahumanidade passa, com efeito, por trs estados: teolgico (a tenso entre fatos e teorias resolvida na fabulao mitolgica), metafsico (a busca de conhecimentos absolutosefetua-se sob a forma de princpios abstratos e no mais como mitos) e, enfim, positivo(que renuncia causa ou natureza das coisas para consagrar-se ao estabelecimento deleis). Aos estados da inteligncia correspondem as idades da vida infncia, adolescncia ematuridade. A lei dos trs estados o romance da formao da humanidade que todoaluno recapitula (M. Fabre, 1995, p. 86). G. Bachelard reorganiza, sua maneira, essestrs estados, acrescentando um quarto, o novo esprito cientfico: infncia prcientfica,adolescncia cientfica, maturidade do novo esprito cientfico (G. Bachelard, 1940, reed.1994, p. 54).

    Se as eventuais correspondncias entre a pedagogia da formao e a histria dascincias so interessantes, o seu aspecto mais essencial duplo: a anlise dasrepresentaes, em termos de obstculos, requer, para G. Bachelard, um referencialepistemolgico por um lado e, por outro, um conceito psicanaltico referente aoinconsciente cognitivo (M. Fabre, 1995, p. 89). Para que o obstculo seja identificado preciso, portanto, fazer uma anlise epistemolgica e aplicar-se em especificar de quemodo o inconsciente, por sua prpria resistncia, pode se revelar como objeto deconhecimento; a ruptura epistemolgica correspondendo, ento, resoluo do problemaconstitudo pelo obstculo.

    Nosso relato da formao sugere essa mesma verificao. Atravessamos camposepistemolgicos (sociohistricos) diferentes, numa outra ordem que a sugerida por A.Comte ou G. Bachelard, mas que exploram os mesmos campos e confrontam-se comobstculos que constituem os mesmos problemas de separao/relao. A acupunturasurge como uma medicina holstica, a homeopatia como dualista; a pesquisa cientfica e aprtica mdica so positivistas. Enfim, nossa experimentao onrica, no quadro de umafenomenologia do esprito, apresenta a irrupo de um inconsciente dinmico sobre o

    terreno do consciente cognitivo e, em nossa hiptese, essa emergncia que vaiestabelecer a juno entre campos separados.

    O pensamento de G. Bachelard parece incontornvel para se pensar a formao (M.Fabre, 1994). Mas o que hoje nos parece poder articular as diferentes epistemologias daruptura, colocando a imaginao como objeto de conhecimento no quadro do pensamentocomplexo e da multirreferencialidade, remete mais ainda para a transdisciplinaridade.Como descoberta pessoal mais recente no campo da nossa formao, sua abordagem podeser justificada. Mas sua emergncia, ns o veremos, ao responder to bem nossaproblemtica, concerne tanto questo da fragmentao dos saberes, quanto aoimperativo de encontrar as pontes entre campos diferentes, apropriadas aos tempos atuais.

    Pensar a formao medida que consideramos, com ou sem razo, que toda prtica integra tanto o

    formal quanto o informal, o racional quanto o imaginrio (ou o onrico), o inato quanto oadquirido, emerge a questo da formao: o que o ato de (se) formar? O que pensar aformao?

    Para B. Honor (1992, p. 18), a formao uma dimenso da atividade humanaligada mudana; ela caracteriza fenmenos evolutivos e surge em nossa poca como umaexigncia. Mas, prossegue ele, suas condies de realizao no deveriam encontrar seuslimites nas formas das quais ela provm. Particularmente, o pessoal e o profissional,habitualmente separados, interrogam sobre a legitimidade ou no de tal corte. Que aformao profissional oriente rumo profisso no surpreendente, mas pode tambm vira ser uma oportunidade de desenvolvimento pessoal. Inversamente, a formao pessoalpode se profissionalizar e a pessoa, no que ela tem de mais essencial, pode intervir na

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    mudana profissional. Essa abordagem da formao confirma nosso posicionamento devido possibilidade de integrao dos dois aspectos. A problemtica da formao profissionale/ou pessoal inscreve-se, portanto, na problemtica, mais fundamental, das relaesentre formao, pessoa e profisso (B. Honor, 1992, p. 21). Ela torna-se, nesse quadroampliado, uma interrogao sobre a existncia.

    Nosso prprio percurso, como profissional de sade, alimentou-se dessa mesmaquesto. De modo evidente, o que forma o mdico tanto a sua pessoa, suasensibilidade, sua capacidade de abertura, de relao, de escuta, de compreenso, de

    acompanhamento, suas esperanas, seus projetos e seus sonhos, quanto a sua formaoterica, tcnica ou sua prtica clnica. , alis, admissvel (sem um estudo estatstico a esserespeito, devemos frisar) que a qualidade pessoal do terapeuta, associada s suasrepresentaes e aos seus medos, que conduz a um nmero consideravelmente maior oumenor de exames biolgicos, paraclnicos e de intervenes teraputicas. Aquele que sabeescutar, examinar, sentir, que age sem pressa, , evidentemente, um ator efetivo daeconomia da sade, dinamizando, pela qualidade da relao mdico/doente, o efeitoplacebo e o seguimento da prescrio. A medicina deve ocupar-se do corpo para que opaciente viva na melhor condio possvel, mas tambm deve ocupar-se da finalidade docorpo, que est intimamente associada ao sentido da vida e da morte, a um suplemento dealma que afirma a importncia da singularidade e da dignidade do homem; as terapiassendo apenas um meio.

    claro que a formao universitria e hospitalar construda sobre as classificaesnosolgicas das doenas, repousando sobre critrios de racionalidade que permitemdistinguir e definir, em teoria, cada uma delas. Mas, a esse mtodo analtico e separativoope-se a prtica que, num certo nmero de situaes, pelo menos, procede inversamente., ento, o mtodo de associaes que predomina: tal paciente fazendo pensar em umoutro que foi examinado, s vezes, muitos anos antes. A lgica da similitude (M. Foucault,1966) vem abalar a lgica da diferena, caracterstica do mtodo analtico cartesiano. Aanalogia se ope anlise; o que sugere que a busca do signo (e possivelmente dosentido) pode ser construda segundo duas modalidades: ela significada na reunio ou nafragmentao, na sincronia ou na diacronia; ela natural, como ato de observao, ouarbitrria, como ato de racionalizao.

    O que verdadeiro em medicina reencontrado em outras formaes. O conjuntonos interroga sobre a maneira como os ensinamentos formais esto cortados ou no doreal profissional, sobre o modo como a prtica e a teoria podem alimentar-se ou opor-seuma outra, e sobre a relao, consciente ou inconsciente, entre regimes diurno e

    noturno. Somos confrontados com o risco esquizide de uma sociedade e de estruturas daformao ou de educao que sugerem fazer o que elas dizem, que nem sempre dizem oque elas fazem e que, raramente, fazem o que elas dizem. Pois a dimenso experiencial,intuitiva, imaginativa, inconsciente e at mesmo reativa, conflitual, deixada de lado. Cadaum joga o jogo de uma ideologia social mais ou menos manipulada, escondendocuidadosamente uma outra realidade, ntima, que, no entanto, transparece a cada instanteem seus atos.

    Em outras palavras, hoje no h mais referncias claras para o adulto em formao.J.-P. Boutinet (1998) consagra, alis, uma de suas ltimas obras ao desenvolvimento dessetema. Ora, ns somos, quase todos, pelos imperativos da vida moderna, adultos emformao. Os progressos tcnicos e a comunicao desenvolvem-se numa velocidade talque cada um, em sua profisso, desestabilizado. Quer se trate, como para J.-P. Boutinet,de um pblico adulto em formao profissional ou, de modo mais amplo, como em nossa

    prpria experincia mdica, de doentes no necessariamente em formao, todos refletemsuas apreenses e hesitaes de indivduos em desespero (J.-P. Boutinet, 1998, p. 6). Aconcepo normativa da vida pessoal e profissional do adulto posta em questo. Ela substituda pelo no acabamento do homem histrico (G. Lapassade, 1963), que seconstri sobre um corte entre a pessoa que se deixa informar por seu meio ambientesocial e o indivduo que resta um ser associal e, at mesmo, no socializado, confinado econdenado ao seu prprio isolamento (J.-P. Boutinet, 1998, p. 10). Pois, duas lgicas sedefrontam na idade adulta: a da pessoa reflexiva, racional e lgica, desempenhando opapel que o outro lhe pede e que vai, ela mesma, contraindo-se e limitando-se; e a dacriana, do desejo de vida dionisaco, que se ope s foras da velhice e da morte,

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    quebrando as barreiras, fazendo sua irrupo na lgica formal e nas regras pr-estabelecidas.

    Como o mundo possivelmente encantado da criana e o mundo desencantado doadulto poderiam ficar lado a lado, sem se excluir? Como o desejo de viver pode serconstrudo com os imperativos e exigncias scioprofissionais? Como a lgica conscientepode compreender as pulses inconscientes de modo a reencantar o mundo?

    Como toda vida adulta confrontada com a dualidade e com a imaturidadeformativa, o jogo das contradies deveria poder gerar o sentido. As situaes de tenso

    supem uma separao paradoxal que, tanto no nvel formativo como no experiencial,deveria articular a dimenso diurna com a dimenso noturna. Indo da perda estrutural paraa recomposio dinmica (J.-P. Boutinet, 1995, p. 116), hoje o adulto deve aprender arevalorizar o carter instvel de sua prpria experincia, a identificar seus prprios ritmos,a reatar com seu imaginrio criativo, de modo a fazer de seu inacabamento permanenteuma oportunidade de caminho cognitivo, de reunificao interior, de real adaptaoexterior. Todo o problema reside na validao de suas experincias, na leitura que ele faz,e que os outros podem confirmar ou negar de acordo com suas prprias representaes. Atarefa urgente, com a qual nossa cultura encontra-se atualmente confrontada , semdvida, a de uma recomposio dinmica da vida adulta, a partir de uma duplapreocupao, a de um processo experiencial a ser facilitado, a de um lao social a serreconstitudo (J.-P. Boutinet, 1995, p. 120). Recompor nossa vida impe-se ento, o queimplica uma transformao da pessoa em seus mltiplos aspectos cognitivos, afetivos esociais e em relao s aprendizagens dos saberes: saber fazer e saber ser (M. Fabre,1994, p. 30, 31). E se formar no ensinar, mas antes induzir mudanas decomportamento, de mtodos, de representaes, de atitudes, como podem ser vistosesses processos de transformao? Como essas modificaes apresentam-se para sepensar o homem na formao?

    Pensar o homem na formaoObservamos a importncia, nas cincias humanas ou na medicina, dos dois campos

    que valorizam os modos explicativo e/ou compreensivo. Essas diferenciaes estointimamente associadas aos diversos recortes disciplinares. O problema que o humano deque tratamos no recortado disciplinarmente. H uma contradio entre o objetodisciplinar, qualquer que seja a sua necessidade cientfica, e a realidade humana,necessariamente complexa. O sujeito definido de mltiplas maneiras, segundo oscampos, sendo alternadamente associado a um programa gentico (biologia), a

    caractersticas psicolgicas, a um pertencimento sociocultural e, at mesmo, comopossuindo uma realidade espiritual. Se cada uma dessas abordagens parece insubstituvel,inversamente, cada uma delas, ao demarcar suas fronteiras, limita a uma de suas facetas ofato humano total. O real, ao mesmo tempo nico e mltiplo, pede o desenvolvimento deuma epistemologia da formao que possa levar em conta, ao mesmo tempo, as diferenase a relao, de modo a articular entre si os campos que esto separados uns dos outros.Em outras palavras, a nova epistemologia deve insistir tanto no objeto como em suasfronteiras, seus limites, suas junes e articulaes.

    O global e o local, prprios realidade humana (que no s econmica ouecolgica), fazem emergir as questes essenciais da antropoformao, do estatuto dosujeito, da intersubjetividade. Essas interaes, importantes na utilizao de mtodosqualitativos, devem ser especificadas em termos de epistemologia e de metodologia se noquisermos errar, e isso sem esquecermos da clarificao das implicaes ticas ou

    educativas que, necessariamente, da decorrem. Pois se trata de fixar qual a formaontolgica que engloba a unidade mltipla humana, situada entre imanncia etranscendncia, biologia e espiritualidade, consciente e inconsciente...

    O neologismo antropoformao, significando tanto o homem em formao comoa formao do homem, apreendido como o modo pelo qual o homem, vivendo,percebendo, imaginando e pensando, ao mesmo tempo se configura, se constitui, secompe, se organiza e se desenvolve, indo em direo a si mesmo. A emergncia dessanoo recente (G. Pineau, 1997) em termos de referncia antropolgica explcita (G.Pineau, 2002). Ela inscreve-se, particularmente, na rede de histrias de vida, que retoma oquestionamento da construo da identidade do indivduo social. Nosso prprio processo deinvestigao difere um pouco; nossa hiptese tende a sugerir que a formao da pessoa

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    desenvolve-se a partir de dois campos em relao dialtica que se entrecruzam: o darelao entre o social e o pessoal, por um lado e, por outro, o das interaes entre osingular e o universal.

    No primeiro caso, o ser existencial que tem a primazia, no segundo, a questo doser essencial predomina. na complexidade dessas relaes dialticas, com duas entradasde cada vez, que emerge o questionamento identitrio. Assim, a partir do meio ambientenatural e do ser no mundo (realidade biolgica), a antropoformao evoca, por um lado, omodo como o ambiente sociocultural nos transforma, mas, por outro, o mesmo conceito

    abre para a formao interior do homem, para o processo de criar a sua Imago Dei, comoum percurso ascendente rumo iluminao. Em outras palavras, o conceito antrpiconas cincias humanas deve articular a particularidade com a sociabilidade, a singularidadecom a universalidade, a exterioridade com a interioridade, o aparente com o oculto, noprocesso formativo da pessoa. Mas, como cada um desses aspectos possui leis prprias, aformao da pessoa postula, como Plato j o afirmava em sua poca, vrios graus de serem relao com diferentes nveis epistemolgicos. No nvel derradeiro o da reminiscnciada ideia platnica (o Bem), o da Imago Dei, em Mestre Eckhart aquilo que nos moldaremete a uma forma arquetpica ideal, implicando uma teleologia e uma axiologia quepresidem a realizao de si mesmo.

    Como o tema da antropoformao interroga a tenso entre a singularidade e auniversalidade no homem, sua compreenso no pode dispensar uma abordagemcomplexa, irredutvel a um nico campo epistemolgico. Sair dos paradigmas herdadossupe tenses entre tradio e inovao, entre construo formal e experiencial, entresubjetivao, socializao e ecologizao (G. Pineau, 1997). Ou seja, o modelo daantropoformao deve incluir o paradigma cientfico, mas ele deve tambm testemunharuma abordagem antropofenomenolgica (R. Mallet, 1998) e uma hermenutica integrativa,at mesmo anaggica (interpretao do sentido espiritual), o conjunto dando conta dopercurso, ao mesmo tempo singular e universal, assim como do devir da pessoa. O modeloa ser construdo , ao mesmo tempo, ontolgico, fenomenolgico e epistemolgico,declinando-se em vrios nveis de inteligibilidade. Cada um desses nveis, paralelamente,pode tornar-se um objeto particular de pesquisa.

    Na formao, por interposio da epistemologia, o saber referenciado. A primeirafase do nosso questionamento impe o aprofundamento desse campo com o objetivo depermanecer no quadro do nosso trajeto da formao. A anlise conceitual, que constituiessa abordagem, ser feita em duas partes: uma abordando a parte diurna, a outra adimenso onrica. O seu conjunto compe o terreno terico de nossa anlise.

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    PRIMEIRA PARTE

    Referncias tericas e epistemolgicas

    A explorao das referncias tericas e epistemolgicas que atravessaram a nossahistria da formao e o campo onrico evidentemente complexa. A explorao analticados dados impe uma anlise conceitual de modo a esclarecer a busca posterior de sentido.

    Esse esclarecimento necessrio justifica o engajamento mais amplo possvel de nossainvestigao, tanto mais que nossa abordagem se pretende integrativa. Particularmente,tratar-se-, dentro dos diversos campos, de articular os regimes diurno e noturno e deespecificar as relaes entre epistemologia e gnose, entre cincia e tradio. Procuraremosento discernir a denotao e a conotao dos conceitos, tendo como objetivo a clarificaodos enunciados do discurso (J.-M. Van der Maren, 1996, p. 406).

    As noes subjacentes aos relatos esto associadas a campos cognitivos bemsituados: nossa formao mdica (doutorado em medicina) e cientfica (mestrado embioqumica, DEA em microbiologia, antigo aluno do Instituto Pasteur) tornaram possveluma experimentao das epistemologias positivistas. A acupuntura, que praticamos a partirde 1978, por sua antiguidade histrica e pelos paradigmas que a compem, diz respeitoclassicamente ao holismo (P. Paul, 1999b). A homeopatia (que tambm exercemos)repousa quando lemos os textos fundadores de Hahnemann sobre o dualismo cientficoemergente no final do sculo XVIII e sobre os resqucios, em curso de transformao, daantiga tradio alqumica (P. Paul, 1999a, p. 18-24; 1998a, p. 37-44). Esta ltima parte,que caracteriza as medicinas alternativas, inscreve-se na corrente da antropologia mdica(um diploma universitrio, em Bobigny Paris XIII, consagrou essas diversas abordagens).Um de nossos sonhos fundadores que, por sua potncia, nos fez dar continuidade aosregistros dos sonhos, a partir de 1975 evoca o hermetismo e a gnose. Ns nos apoiamos,nestas ltimas pesquisas, sobre a fenomenologia imaginal proposta por Henry Corbin. Oencontro com o paradigma transdisciplinar, enfim, alimentado a partir de 1994,desembocou na defesa de tese de doutorado em cincias humanas (2001). Por outro lado,a arteterapia (desenho meditativo, herldica...) nos permitiu descobrir as articulaes entrediferentes nveis de experimentao e de percepo, como complemento da prticaprofissional e do sentir onrico.

    Essas abordagens, to divergentes umas das outras, constroem uma primeirainvestigao, que estabelece a questo da relao entre campos radicalmente diferentes

    uns dos outros.A multiplicidade dos campos abordados nos fez optar por uma classificao

    distinguindo as abordagens inicialmente heteroformativas, tais como a medicina cientfica,a acupuntura, a homeopatia, e as abordagens de dominncia autoformativa, comohermetismo, gnose ou onirologia, fazendo brotar dessa complexidade a problemticatransdisciplinar.

    Essa ordenao corresponde, mais ou menos, ao nosso trajeto autobiogrfico.

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    CAPTULO 1

    A formao mdica e seus paradigmas

    1.Um problema geral, histrico e pessoalAs distines que fizemos entre medicina cientfica, homeopatia e acupuntura,

    pertencem histria de nossa formao. Elas se referem tambm, mais amplamente, histria das cincias e, consequentemente, epistemologia.Gaston Bachelard (1983, p. 7) constri a epistemologia segundo uma lei dos trs

    estados. O estado concreto aquele em que o esprito se entretm com as primeirasimagens do fenmeno glorificando a natureza, a unidade do mundo e sua diversidade. oestado prcientfico, que se estende da Antiguidade Clssica at o sculo XVIII. A vemoso que outros autores nomeiam epistemologias holistas (se bem que, em nossa tica, essapalavra no se refere simplesmente a uma viso unificada do mundo). A acupunturatestemunha isto. Segue-se, para Bachelard, o estado concreto/abstrato, indo at o limiardo sculo XX, que uma fase intermediria em que o esprito acrescenta experinciafsica os esquemas geomtricos, enunciados como intuio sensvel e primeira abstrao.Historicamente, a homeopatia refere-se a isto. Aparece, enfim, o estado abstrato: o espritoapreende informaes destacadas da experincia imediata e subtradas da intuio doespao real. A medicina cientfica remete a esta posio.

    A clivagem entre as medicinasFoi no campo particular da medicina do sculo XIX que se manifestou a clivagem

    entre medicinas tradicionais (de inspirao hipocrtica ou alqumica) e medicina cientfica.Assim, a Faculdade de Medicina de Montpellier, entre as primeiras na histria doensinamento mdico da Frana, pde testemunhar essa evoluo, ensinando a medicinahipocrtica dos humores at o sculo XIX, antes de engajar-se nos caminhos da cinciamoderna. Essa clivagem a sequncia de um longo desenvolvimento histrico, escalonadoentre os sculos XIII e XVIII, graas ao qual o pensamento desvencilha-seprogressivamente do modo de raciocnio analgico para chegar a uma racionalidadecientfica.

    Seguramente, as medicinas tradicionais no so cientficas. Mas ns no asconsideramos irracionais e oriundas de pseudoconceitos esotricos e de prticas

    mgico/religiosas que s teriam um efeito placebo.Uma longa formao e uma experimentao real nesses campos nos permitiram

    entender com maior rigor as riquezas e os limites que eles oferecem. Mas um fatopermanece: essas expresses teraputicas, se bem que minoritrias e marginalizadas pelamedicina oficial, atravessaram sculos e vm mesmo estendendo-se h algumas dcadas,ao passo que a medicina clssica, imagem da cincia, sofre uma crise de confiana semprecedentes em sua histria (sangue contaminado, hormnios de crescimento, efeitoiatrognico dos medicamentos...). Essa mostra, como fato sociolgico, no deve serconcebida como parti pris de nossa parte, mas como um balano que testemunha situaescontraditrias.

    Devemos articular a acupuntura e a homeopatia ao campo mdico cientfico?Devemos exclu-las? Evidentemente, o contedo filosfico dessas doutrinas questiona eapaixona a gora intelectual: como prticas no apoiadas cientificamente podem propagar-

    se em nossos dias? O pblico ingnuo ou o fenmeno portador de um sentidosubjacente: um conhecimento particular do humano que responde ao interesse dosutilizadores desse tipo de tratamento?

    Uma situao paradoxalO reconhecimento, alguns anos atrs, das Medicinas e dos mdicos em exerccio

    particular (MEP) pela Ordem dos Mdicos mais exatamente em nosso contexto, dahomeopatia e da acupuntura oficializa, no seio de nossa sociedade, um relativopluralismo mdico. Essa proposio foi fortalecida, recentemente, pelo Parlamento Europeuque, em 27 de maio de 1997, reconheceu as medicinas no convencionais.

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    Mas essa situao, tanto em termos da Frana como europeu, no to simplescomo parece primeira vista: se algumas expresses so toleradas, somente porqueesto inscritas no prprio interior da prtica cientfica e mdica. A reabilitao impe que asprovas sejam feitas num registro referente ao discurso da autoridade reconhecida. Aorganizao oficial da sade responde com uma espcie de lgica funcional de tolerncia, eat mesmo de recuperao. A condio das MEP pressupe pelo menos na Frana sermdico e, portanto, ter seguido o curso oficial da formao, com forte pregnnciapositivista. As representaes especficas aos modos particulares de exerccio so toleradas

    com a condio de no questionarem a lgica dominante do corpo mdico e de seremabandonadas ao menor problema, sob o risco de serem juridicamente condenadas. nesse contexto que sua prtica exercida, autorizada, e fazendo uma caricatura,

    no quadro de uma ao preventiva para o bem estar ou de uma interveno curativa dedistrbios funcionais e psicolgicos necessariamente menores. Ora, a homeopatia e aacupuntura para ficarmos somente no campo das prticas oficialmente aceitas peloConselho da Ordem dos Mdicos repousam sobre representaes diferentes das damedicina clssica. Se a homeopatia, como emergncia ocidental, pode apresentar umacerta ambiguidade estatutria, a acupuntura, mais que milenar, , propriamente dita, umamedicina por inteiro. As duas, entretanto, so desvalorizadas pelo corpo mdico que,habitualmente, as considera como no cientficas. A abordagem presente no consiste emdebater a questo de sua cientificidade, j que sua histria anterior da cincia. O quenos vai ocupar concerne reflexo epistemolgica. Importa, com efeito, compreendersobre quais sistemas de pensamento cada prtica repousa, a fim de melhor apreender ariqueza, os limites, as diferenas e as relaes possveis entre sistemas de tratamentos,indo alm de todo olhar polmico e dogmtico.

    2.Holismo e AcupunturaEnraizamento histrico da AcupunturaA acupuntura faz parte da medicina tradicional chinesa, que tambm reagrupa a

    farmacopia e a diettica. G. Souli de Morant (1972, p. 27, 28) aborda a histria dessaprtica antiga. O mtodo das agulhas e moxas, nos diz ele, certamente remonta aoneoltico, sendo que o Su Wen, parte do Nei Jing (o livro de referncia da medicina chinesatradicional), foi escrito no sculo XVIII a.C., segundo as fontes histricas.

    De acordo com a enciclopdia Tsr-Iuann, citada por G. Souli de Morant, o nome

    inicial do mtodo era Pienn-Tsiou (punes de pedra e moxas). As informaes sobre essesinstrumentos provm, em geral, dos textos mais antigos: do Su Wen e do Zhen Jin DaCheng. Como, por exemplo, o III, p. 29 v: Os pienn tchenn, agulhas de pedra parapuno, ou pienn che, pedras/punes de pedra, vieram do mar oriental. L havia umamontanha chamada Alto Pico (Kao fong) que tinha pedras com uma forma semelhante aagulhas com cabea de jade. Elas eram naturalmente longas e arredondadas. Eramdesbastadas para lhes dar uma ponta aguda. Podia-se, ento, utiliz-las como agulhas paratratar as doenas: no houve nenhuma delas que no tivesse melhorado (trad. para ofrancs de Souli de Morant).

    A tradio desses instrumentos primitivos, prossegue G. Souli de Morant, remonta atempos bem antigos, pois a histria dos Han Anteriores, escrita no sculo I a.C., relata:Os Tcheou (dinastia dos sculos XIII ao III a.C.), para tratarem as doenas, empregavamagulhas de pedra (tchenn che). Esta arte foi atualmente abandonada. Depois do fim do

    neoltico, na idade do Bronze, foram usadas agulhas de cobre. Elas provinham do sul, ondese encontravam as minas, como o atesta o Da Cheng (1, p. 2v). O bambu foi igualmenteutilizado.

    Segundo J. Schartz e coll. (1979, p. 21), textos mdicos antigos levam em conta umaprtica certificada desde a dinastia dos Zhou (1120-221 a.C.). O primeiro livro quecondensou o mtodo mdico, em sua totalidade, foi o Nei Jing, dividido em duas partes: oSu Wen e o Ling Shu. Tradicionalmente, as descobertas da medicina e da acupuntura soatribudas ao imperador Huangdi, o Imperador Amarelo. O uso da fitoterapia remonta aoimperador Shen Nong, o Divino Lavrador, que, tendo institudo a agricultura, foi oprimeiro, segundo a lenda, a estudar os vegetais por suas virtudes curativas (Neoltico?).

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    Se bem que as prticas, sem dvida associadas a uma cultura do tipo xamanista,tenham podido existir de longa data, os primeiros tratados de acupuntura, como o Nei JingSu Wen, evocam o imperador mtico Huangdi como mestre de um mtodo que atingiu a suaperfeio. Huangdi, considerado inventor das armas e fundidor (M. Granet, 1968a, p. 21),nos faz situar a fundao do corpus da medicina chinesa, na histria da China, entre oNeoltico e a Idade do Bronze.

    Esse perodo das agulhas fundidas em metal tambm nos conduz aos mitosfundadores da alquimia taosta, intimamente associada, como sabemos, acupuntura.

    Mircea Eliade (1977, 1978 reed. 1990) consagra vrios livros e captulos aodesenvolvimento desse tema e de sua relao com o taosmo: Era nessa zona difcil de sercircunscrita, onde flutuavam tradies de uma inegvel antiguidade pois elas derivavamde situaes espirituais resolutas: xtases e sabedorias ligadas magia da caa, descoberta da cermica, ou agricultura, ou metalurgia etc nessa zona em que semantinham ainda as intuies e os comportamentos arcaicos, refratrios s vicissitudes dahistria cultural; era nessa zona que os taostas gostavam de colher receitas, segredos,instrues. Tambm podemos dizer que os alquimistas taostas, apesar de inevitveisinovaes, retomavam e prolongavam uma tradio protohistrica (M. Eliade, 1977, p.93).

    evidente que a medicina chinesa, assim como a alquimia taosta, tentoudesenvolver a ideia da longevidade e da imortalidade (M. Eliade, 1978 reed. 1990, p. 51)Os ritos dos fundidores e dos forjadores foram retomados e interpretados pelos alquimistaspara serem aplicados, em seguida, ao campo mdico. Medicina e alquimia, no entanto,constituem-se como disciplinas autnomas, uma vez que, sobre os mesmos princpioscosmolgicos fundadores e com tcnicas verdadeiramente comparveis, a primeira afirmauma funo associada populao, enquanto a segunda tem como primeira inteno a curade si mesmo, por meio de regenerao e iniciao.

    Tanto uma como outra, no entanto, se apropriaram da relao, to familiar aopensamento chins, entre o macrocosmo e o microcosmo. Os chineses, que punham todasas coisas em relao umas com as outras, descobriram afinidades entre os rgos do corpohumano e algumas substncias minerais. O fogo do corao vermelho como o cinbrio ea gua dos rins preta como o chumbo, diz um bigrafo do famoso alquimista Lii Teu(sculo VIII d.C.). O Wu-hsing, esse grupo universal de cinco elementos (a gua, o fogo, amadeira, o ouro e a terra), acabou encontrando a sua aplicao em todas as ordens daexistncia (M. Eliade, 1978 reed. 1990, p. 51).

    Se o cinbrio vermelho, por interposio do mercrio, concretamente extrado da

    mina para se obter o ouro, os clebres Campos de Cinbrio so encontrados nas partesmais secretas do corpo, no lugar onde se prepara alquimicamente a Flor de Ouro ou oEmbrio da Imortalidade (Zhao Bichen, trad. para o francs, C. Despeux, 1979, p. 23-27).

    Do mesmo modo, encontramos nas duas prticas, alqumica e acupuntural, osfamosos Vasos Maravilhosos ou Meridianos Curiosos (qi jing bamai), dos quais tratamtanto o Nanjing (o livro das 81 dificuldades), obra mdica do primeiro sculo da nossa era,como as obras da alquimi