cadernodigital de literatura

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  • 8/3/2019 CadernoDigital de Literatura

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    Eugnio de Andrade

    (19 de Janeiro de 1923

    13 de Junho de 2005)

    Duplo Retrato, 1980por Alfredo Cruz (Tinta da China)

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    PALAVRAS INTERDITAS

    Os navios existem, e existe o teu rostoencostado ao rosto dos navios.Sem nenhum destino flutuam nas cidades,partem no vento, regressam nos rios.

    Na areia branca, onde o tempo comea,uma criana passa de costas para o mar.

    Anoitece. No h dvida, anoitece. preciso partir. preciso ficar.

    Os hospitais cobrem-se de cinza.Ondas de sombra quebram nas esquinas.Amo-te E entram pela janelaas primeiras luzes das colinas.

    As palavras que te envio so interditasat, meu amor, pelo halo das searas;se alguma regressasse, nem j reconheciao teu nome nas suas curvas claras.

    Di-me esta gua, este ar que se respira,di-me esta solido de pedra escura,estas mos nocturnas onde apertoos meus dias quebrados na cintura.

    E a noite cresce apaixonadamente.Nas suas margens nuas, desoladas,

    cada homem tem apenas para darum horizonte de cidades bombardeadas.

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    PROCURO-TE

    Procuro a ternura sbita,os olhos ou o sol por nascerdo tamanho do mundo,o sangue que nenhuma espada viu,

    o ar onde a respirao doce,um pssaro no bosquecom a forma de um grito de alegria.

    Oh, a carcia da terra,a juventude suspensa,

    a fugidia voz da gua entre o azuldo prado e de um corpo estendido.

    Procuro-te: fruto ou nuvem ou msica.Chamo por ti, e o teu nome iluminaas coisas mais simples:

    o po e a gua,a cama e a mesa,os pequenos e dceis animais,onde tambm quero que chegueo meu canto e a manh de maio.

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    Um pssaro e um navio so a mesma coisaquando te procuro de rosto cravado na luz.Eu sei que h diferenas,mas no quando se ama,

    no quando apertamos contra o peitouma flor vida de orvalho.

    Ter s dedos e dentes muito triste:dedos para amortalhar crianas,dentes para roer a solido,

    enquanto o vero pinta de azul o cue o mar devassado pelas estrelas.

    Porm eu procuro-te.Antes que a morte se aproxime, procuro-te.Nas ruas, nos barcos, na cama,

    com amor, com dio, ao sol, chuva,de noite, de dia, triste, alegreprocuro-te.

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    CANO

    Hoje venho dizer-te que nevouno rosto familiar que te esperava.No nada, meu amor, foi um pssaro,a casca do tempo que caiu,uma lgrima, um barco, uma palavra.

    Foi apenas mais um dia que passouentre arcos e arcos de solido;a curva dos teus olhos que se fechou,uma gota de orvalho, uma s gota,secretamente morta na tua mo.

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    VEGETAL E S

    outono, desprende-te de mim.Solta-me os cabelos, potros indomveissem nenhuma melancolia,sem encontros marcados,sem cartas a responder.

    Deixa-me o brao direito,o mais ardente dos meus braos,o mais azul,o mais feito para voar.

    Devolve-me o rosto de um verosem a febre de tantos lbios,sem nenhum rumor de lgrimasnas plpebras acesas.Deixa-me s, vegetal e s,correndo como rio de folhaspara a noite onde a mais bela aventurase escreve exactamente sem nenhuma letra.

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    Quartos ao p do Mar , 1951

    Rooms by the SeaEdward Hopper (1882-1967)

    EPITFIO PARA UM MARINHEIRO

    MORTO QUANDO JOVEM

    Perguntam por ti e oio

    a secreta voz da gua.

    Perguntam por ti e vejoo perfil azul do mar.

    Perguntam por ti e digo:

    Acorda e veste-te de branco.

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    QUASE MADRIGAL

    Os anjos que prometes so apenaso rosto triste dos dias desolados.

    Eu no prometo nada, sou alegria.Aceito os anjos nos beijos que me ds,pondo rosas nos teus dedos descuidados.

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    LISBOA

    Algum diz com lentido:

    Lisboa, sabes

    Eu sei. uma rapariga

    descala e leve,

    um vento sbito e claro

    nos cabelos,

    algumas rugas finas

    a espreitar-me os olhos,

    a solido aberta

    nos lbios e nos dedos,

    descendo degraus

    e degraus

    e degraus at ao rio.

    Eu sei. E tu, sabias?

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    TUA SOMBRA

    A terra me sabes, luz das manhslisas de vero,ao calor das pedrasachadas nas dunas.

    Apetece cantarnos gomos, nas luas,nas colinas brevesdo teu corpo nu;cantar ou correr

    na gua, na seivados ombros, dos braos,no azul secretoda concha das pernas. sabor eterno,

    mortal sabordas fontes da terra,materno, solarrumor de alegria:apetece morrer,

    morrer ou cantar.

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    MSICA MIRABILIS

    Talvez a ternura

    crepite no pulso,

    talvez o vento

    sbito se levante,

    talvez a palavra

    atinja o seu cume,

    talvez um segredo

    chegue ainda a tempo

    e desperte o lume.

  • 8/3/2019 CadernoDigital de Literatura

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    CRISTALIZAES

    1Com palavras amo.

    2Inclina-te como a rosas quando o vento passe.

    3

    Despe-tecomo o orvalhona concha da manh.

    4Amacomo o rio sobe os ltimos

    degrausao encontro do seu leito.

    5Como podemos florirao peso de tanta luz?

    6Estou de passagem:amo o efmero.

    7Onde espero morrer

    ser manh ainda? Cabea de Bronze, 1964,por Lagoa Henriques

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    NATUREZA MORTA COM FRUTOS

    Natureza Morta com Mas e Laranjas(leo sobre telaPaul Czanne (1839-1906)

    1O sangue matinal das framboesasescolhe a brancura do linho para amar.

    2A manh cheia de brilhos e doura

    debrua o rosto puro da ma.

    3Na laranja o sol e a luadormem de mos dadas.

    4Cada bago de uva sabe de coro nome dos dias todos de vero.

    5

    Nas roms eu amoo repouso no corao do lume.

  • 8/3/2019 CadernoDigital de Literatura

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    ESCRITO NO MURO

    Procura a maravilha.

    Onde a luz coalhae cessa o exlio.

    Nos ombros, no dorso,nos flancos suados.

    Onde um beijo sabea barcos e bruma.

    Ou a sombra espessa.

    Na laranja aberta lngua do vento.

    No brilho redondoe jovem dos joelhos.

    Na noite inclinadade melancolia.

    Procura.

    Procura a maravilha.

  • 8/3/2019 CadernoDigital de Literatura

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    Banhista Sentada, 1892Pierre-Auguste Renoir (1841-1919)

    OS JOELHOS

    Considerai os joelhos com doura:vereis a noite arder mas no queimara boca onde beijo a beijo foi acesa.

  • 8/3/2019 CadernoDigital de Literatura

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    CALCEDNIA

    Afinal os romanos eram

    como eu: amavam

    os lugares onde a grandeza

    e a solido

    andam de mos dadas.

  • 8/3/2019 CadernoDigital de Literatura

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    PENICHE

    Ventovento

    h tantoh s vento no meu pas

    vento brancoverde vento negro

    ardente

    seca as lgrimas

    corta a voz na raiz.

  • 8/3/2019 CadernoDigital de Literatura

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    ESSA MULHER, DOCE MELANCOLIA

    Essa mulher, a doce melancoliados seus ombros, canta.

    O rumor

    da sua voz entra-me pelo sono,

    muito antigo.

    Traz o cheiro acidulado

    da minha infncia chapinhada ao sol.

    O corpo leve quase de vidro.

  • 8/3/2019 CadernoDigital de Literatura

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    COM O TEMPO, APROXIMAR-SE-O OS RIOS

    Com o tempo aproximar-se-o os rios

    e os montes, com o tempo

    acabar por te vir comer mo

    e fazer ninho na tua cama

    o silncio

  • 8/3/2019 CadernoDigital de Literatura

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    Eugnio de Andradepor Alfredo Cruz, 1989 (Acrlico)

    A CLARIDADE COROA-SE DE CINZA, EU SEI

    A claridade coroa-se de cinza, eu sei:

    sempre a tremer que levo o sol boca.

  • 8/3/2019 CadernoDigital de Literatura

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    ESTO SENTADOS QUASE LADO A LADO

    Esto sentados quase lado a ladono cho espera que passe um barco,a luz muito quietano regao

    como se fora um gato, o sorrisoantigo, a casa beira do crepsculo

    atenta aos passos nas areias;

    era outra vez Abril,chovia no jardim, j no chovia,um aroma, apenas um aroma,

    tornava espesso o ar.

    Uma criana me leva rio acima.

  • 8/3/2019 CadernoDigital de Literatura

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    Eugnio de Andradepor Emerenciano - 1988 (Tcnica mista)

    CARDOS

    Este o lugar onde s o lume

    no demora a florir,

    onde o vero abdica

    de ser metfora para arder

    at ao fim.

  • 8/3/2019 CadernoDigital de Literatura

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    O PEQUENO PERSA

    um pequeno persa

    azul o gato deste poema.

    Como qualquer outro, o meuamor por esta alminha materno:

    uma carcia minha lambe-lhe o plo,

    outra pe-lhe o sol entre as patas

    ou uma flor janela.

    Com garras e dentes e obstinao

    transforma em festa a minha vida.

    Quer-se dizer, o que me resta dela.

  • 8/3/2019 CadernoDigital de Literatura

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    Ilustrao de Cristina Valadarespara o livro Os Dceis Animais

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    Andorinha/Amor - 1933/34Pintura-poema de Joan Mir (1893-1983)

    SOU FIEL AO ARDORSou fiel ao ardor,amo esta espcie de veroque de longe me vem morrer s mos,e juro que ao fazer da palavramorada do silnciono h outra razo.

    http://viuu.co.uk/blog/wp-content/gallery/artist-twitter-backgrounds-miro/joan-miro-swallow-love.jpg
  • 8/3/2019 CadernoDigital de Literatura

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    ESTOU CONTENTE, NO DEVO NADA VIDA

    Estou contente, no devo nada vida,

    e a vida deve-me apenasdez ris de mel coado.Estamos quites, assim

    o corpo j pode descansar: diaaps dia lavrou, semeou,tambm colheu, e atalguma coisa dissipou, o pobre,

    pobrssimo animal,agora de testculos aposentados.

    Um dia destes vou-me estenderdebaixo da figueira, aquela

    que vi exasperada e s, h muitos anos:perteno mesma raa.

    Eugnio de AndradePor Emerenciano, 1990 (Tinta da China)

  • 8/3/2019 CadernoDigital de Literatura

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    A CHUVA CAI NA POEIRA COMO NO POEMA

    A chuva cai na poeira como no poemade Li Bai. No sulos dias tm olhos grandese redondos; no sul o trigo ondula,

    as suas crinas danam no vento,

    so a bandeiradesfraldada da minha embarcao;

    no sul a terra cheira a linho branco,a po na mesa,

    o fulvo ardor da luz invade a gua,caindo na poeira, leve, acesa,

    Como no poema.

  • 8/3/2019 CadernoDigital de Literatura

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    SOBRE A MESA A FRUTA ARDE: PERAS

    Sobre a mesa a fruta arde: peras,laranjas, mas, pressentema ntima brancurados dentes, o desejo represado,o espesso vinho de vozes antigas;arde a melancolia ao inventaroutra cidade,outro pas, outros cus onde lanaros olhos e o riso: deita-te comigo,trago-te do mara crespa luz da espuma,nos flancos este amor retido.

  • 8/3/2019 CadernoDigital de Literatura

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    ANTES DE SABER

    At onde os dedos tocam o quente

    do barro a mo sabe

    antes de saber.

    um saber mais vivo, um saber

    de ave: guia cegonha falco,

    animais quase no fim

    como o lume destes dias.

    Testemunhar a favor do lince

    nossa obrigao.

    Por ser azul.

  • 8/3/2019 CadernoDigital de Literatura

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    A SLABA

    Toda a manh procurei uma slaba.

    pouca coisa, certo: uma vogal,

    uma consoante, quase nada.Mas faz-me falta. S eu sei

    a falta que me faz.

    Por isso a procurei com obstinao.

    S ela me podia defender

    do frio de Janeiro, da estiagem

    do vero. Uma slaba.

    Uma nica slaba.A salvao.

  • 8/3/2019 CadernoDigital de Literatura

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    A JORGE PEIXINHO

    Faltava-te essa msica ainda,a do silncio, fria de to nua,

    agora para sempre e sempre tua.

  • 8/3/2019 CadernoDigital de Literatura

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    DESENHO ANTIGO

    s vezes ia pela tarde

    at ao rio.

    Os lamos

    mesmo em Agosto

    quase de bruma.

    Por caminhos

    de cabras, nem pastor

    nem gado.

    S o riso dos rapazes

    despindo-se

    perto da gua

    - o sexo exasperado.

    O Banho - 1892/93Paul Czanne (1839 - 1906)

  • 8/3/2019 CadernoDigital de Literatura

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    CANO DA ME DO UM SOLDADODE PARTIDA PARA A BSNIA

    muito jovem, sem tempo ainda

    de ser triste. Demora-se nos meus olhos

    enquanto leva a ma boca.

    Nenhuma fala obscura escurece a tarde,

    a cabeleira solta a sua bandeira;

    os ps brancos, irmos

    da chuva de vero, anunciam a paz.

    Suplico estrela da manh

    que lhe guie os passos, agora que partiu;

    que tenha em conta a sua ignorncia,

    no s da morte, tambm da vida.

  • 8/3/2019 CadernoDigital de Literatura

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    A PEQUENA PTRIA

    A pequena ptria; a do po;

    a da gua;

    a da ternura, tanta vez

    envergonhada;

    a de nenhum orgulho nem humildade;

    a que no cercava de muros

    o jardim nem roubava

    aos olhos o desajeitado voo

    das cegonhas; a do cheiro quentee acidulado da urina

    dos cavalos; a dos amieiros

    sombra onde aprendi

    que o sexo se compartilhava;

    a pequena ptria da alma e do estrume

    suculento morno mole;

    a da flor mltipla e to amadado girassol.

  • 8/3/2019 CadernoDigital de Literatura

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    OIO FALAR

    Oio falar da minha vocaomendicante, e sorrio. Porque no seise tal vocao no apenasuma escolha entre riquezas, como Keatsdiz ser a poesia.

    Desci rua pensando nisto,atravessei o jardim, um cosaltava minha frente,louco com as folhas do outonoque principiara, e doiravam o cho. A msica,

    digamos assim,a que toda a alma aspira,quando a almaaspira a ter do mundo o melhor dele,corria minha frente, subiapor certo aos ouvidos de deuscom a ajuda de um co,que nem sequer me pertencia.

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    SO COISAS ASSIM

    So coisas assim que tornam o corao vulnervel: o

    regresso

    das cegonhas brancas,

    o comboiinho do ramal da Ceira

    que parece de corda, as oito linhas

    da Cano Nocturna do Viandante

    de Goethe que Schubert musicou.

    Quem dividiu comigo a alegria

    merecia ao menos

    que o trouxesse orvalhadae limpa terra do poema. Mas tambm

    o poeta escreve direito por linhas

    tortas: a poesia a fico

    da verdade. No ser

    a curva apetecida do teu peito

    mas os lmures de Madagscar,

    que s vi num filme francs,

    o que verdadeiramente me interessa

    hoje trazer ao poema.

  • 8/3/2019 CadernoDigital de Literatura

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    RILKIANA

    De ti e desta nuvem; desta nuvem

    branca como voo de pssaro

    em manh de Abril; de ti

    e da ntima chama de um fogo

    que no consente extino;

    de ti e de mim fazer um s acorde,

    um acorde s; para no te perder.

  • 8/3/2019 CadernoDigital de Literatura

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    HOMENAGEM A MARK ROTHKO

    Mark Rothko (1903-1970)

    Amarelo, laranja, limo,

    depois o carmim: tudo arde

    nas areias

    entre as palmeiras e o mar era vero.

    Mas no lugar do teu nome

    a terra tem a cor do verde

    pensativo, que s a noite

    pastoreia leve.

  • 8/3/2019 CadernoDigital de Literatura

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    ~ ~ ~ ~ ~ ~

    Todas as coisas tombam

    e so construdas de novo

    E os que as constroem outra vez so

    felizes.

    ~ ~ ~ ~ ~ ~

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