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INVEN AO D CULTURA
Roy Wagner \
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oy Wagner
invens ao da cultura
Traduc ao Marcela Coelho de Souza eAlexandre Morales
COS CN IFY
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9 Prefacio
l INTRODUC; Ao
C PiTULO I
27 A presun9ao da culturaC PiTULO 2
49 A cultura como criatividade
CAPITULO 3
75 0 pode r da inven9ao
C PiTULO
23 A i n v e n ~ odo eu
C PiTULO 565 A inven9ao da sociedade
C PiTULO 6
20) A inven9ao da antropologia
239 ost scriptum 2010)24 indice remissivo
249 Sobre o autor
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Pre acio
A ideia de que o hom em inventa suas pr6prias realidades nao e nova;pode ser encontrada em filosofias tao diversas quanta o Mu tazila do islae os ensinamentos do budismo, assim omo em muitos outros sistemas
de pensamento bern menos formalizados. Talvez sempre tenha sido familiar ao homem. Entretanto, a perspectiva de apresentar essa ideia a umaantropolog ia e a uma cultura que tanto querem controlar suas realidades
(como o fazem todas as culturas) e complicada. U m empreendiment ocomo esse requer portanto, bern mais incentives do que os projetos etno-gr
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Departamento de Antropologia da U niversidade de Chicago e benefi
ciou-se das inspiradas crfticas e coment
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i i t ~ n c i scujos paradigmas , blocos de preceitos e precedentes te6ricosque definem a ortodoxia daquilo que Thomas Kuhn chama de ciencia
normal , mantfm uma imobilidade congelada ate que seus sustentciculossao derretidos pelo calor e pela pressao das evidencias acumuladas, verifi-
cando-se ent3o uma r e v o l u ~ otectOnica . A antropologia n3o e ma delas.Como disciplina, a antropol ogia tern sua historia de desenvolvimento teo-
rico, de ascendfncia e antagonism a com relac;ao a certas orientac;Oes, uma
historia que sem duvida manifesta certa logica ou ordem [capitulo 6]. Comtoda a unanimidade de que goza, porem, esse fluxo de ideaqao pode muito
bern ser descr ito como pura dialetica, urn jogo de exposis:oes ( e refutaqoes)por vozes disparatadas ou uma ecletica soma de tudo e mais urn pouco den-tro dos manuais. 0 que e otcivel nisso nao e anto a persistfncia de f6sseiste6ricos (uma persistfncia que e recurso bisico da tradic;ao acadfmica),mas a incapacidade da antropologia para institu.cionalizar essa persistfncia,au mesmo para institucionalizar qualquer tipo de consenso.
Se invenf o d cultur exibe uma tendfncia a defender suas opiniOes em vez de arbitrci-las, isso reflete, pelo menos em parte, a condi
qao de uma disciplina na qual urn au ore obrigado a destilar sua propriat r d i ~ oe seu prOprio consenso; Alem disso, essa tendfncia se relacionacom algumas das pressuposis:oes expostas nos tres primeiros capitulose com a razao de ser do livro.
rna preocupaqao fundamental do meu argumento e analisar a
motivaqao humana em urn nivel radical mais profunda que o dos cli-ches bastante em voga sobre os interesses de corpora(_f5es, atores politicos, classes, o homem calculista e assim por diante. Isso nao significa
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que eu esteja beatifica e ingenuamente desavisado de qu e esses interessesexistem, ou n3o tenha consci€ncia da for\=a pnl.tica e ideol6gica do " inte
resse" no mundo moderno. Significa que eu gostaria de considerar taisinteresses como urn subconjunto, ou fenOmeno de superficie, de quest6esmais fundamentais. Desse modo, seria urn tanto ing€nuo esperar que urn
estudo d a constitui\=3o cultural dos fenOmenos argum entasse a favor da
"determina\=3o" do processo, ou de partes significativas dele, par algumcontexte fenomenico especifico e privilegiado - especialmente quando
o estudo argumenta que tais contextos assumem seus significados emgrande medida uns a partir dos outros.
esse, ent3o, o ponte de vista analitico de urn livre que elege observar fenOmenos humanos a partir de urn exterior - entendendo que uma
perspectiva exterior e tao prontamente criada quanta as nossas mais con aveis perspectivas interiores . A discussao sobre a relatividade culturaleurn 6ti mo exemplo. E m parte uma pista falsa para aqueles que queremafirmar o cara ter generalizado da pressao socioeconOmica, ou ref utar a
possibi idade de uma objetividade cientifica verdadeiramente antisseptica,ela foi introduzida aqui de uma maneira que aparenta ser controvertidamente idealista. Considere- se porem o que e feito desse "idealism a na
discussao subsequente, na qual a prOpria "cultura" e apresentada comouma especie de ilusao, urn contra peso ( e uma especie de falso obj etivo)
para ajudar o antrop6logo a ordenar suas experi€ncias. E possivel, semdllvida, que a quest3o de saber se uma falsa cultura e verdadeiramente ou
falsamente relativa tenha algum interesse para aqueles verdadeiramente
fastidiosos, mas de urn modo geral foram obviadas as costumeiras premis
sas para urn debate satisfat6rio, vigoroso, sabre a "relatividade cultu ral".
A tend€ncia a evitar, a obviar, a "n3o lidar com" muitas ou quasetodas as velhas e interminaveis querelas te6ricas da antropol ogia, par des
norteante que possa ser para aqueles que tern seu terrene reconhecido e
minado, eurn artefato da posi\=30que assumi. Afora isso, n3o faz parte deuma politica deliberada para repelir a antropologia ou os antrQ llllogosau para pleitear uma imunidade espuria para uma p o s i ~ oprivilegiada.Ao escolher urn terrene novo e diferente, apenas troquei urn con unto de
problemas eparadoxos par outro, e 0 novo conjunto e im-tim por tim-tim
14 lntrodu;ao
tao formidavel quanta o antigo. Urn exame exaustivo desses problemas
seria proveitoso, assim como o seria urn arrolamento de evid€ncias pr6 e
contra minha posi\=30. Mas, argumentos e evid€ncias dizem respeito a urnnivel de i n v e s t i g ~ i i o(e talvez de "ciencia") diferente daquele visado aqui.
Este livre n3o foi escrito para prov ar, mediante evid€ncias, argum e n t ~ oou exemplos, qualquer conjunto de preceitos ou generaliza
qoes sabr e o pensamento e a aqao humanos. Ele apresenta, simplesmente,
urn ponto de vista diferente aos antrop6logos, adumbrando as implica\=Oes desse ponte de vista para certas
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amontoado critico que liz de certas abordagens, levando a uma desconsid e r a ~ a ocompletamente nao intencional de uma serie de direcionamentos
e autores promissores no ambito da antropologia.
Outre ponte que pode soar ao lei or como mi estrat€:gia, ou talvez
como impensada p e r p e t u a ~ a ode urn erro mais que comum, e oposit;3.o entre o convencionalismo ocidental e a caracteristica i f e r e n c i a ~ a o
simb6lica preferida pelos povos tradicionais - compreendendo sociedades tribais e as ideologias de civiliza
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eles necessariamente simbolizam urn ao outre, mas o fazem de maneirasdiferentes. A simbolizaqao convencional estabelece urn contraste entre ospr6prios simbolos e as coisas que eles simbolizam. Chama essa distinqao,que opera para distinguir os dois modes em seus respectivos pesos ideol6gicos, de "contraste contextual". Os simbolos diferenciantes assimilamou englobam as coisas que simbolizam. Chama esse efeito, que sempre
opera para neg ar a distinqao entre os modos, pa ra abo i-la ou der ivar urndo outro, de "obvias:iio". Uma vez que esses efeitos silo reflexives (istoe, aquila que €: simbolizado" exerce seu efeito, por sua vez, sobre aquilaque simboliza), todos OS efeitos simbolicos sao mobilizados em qualquera o de simboliza
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negative exatamente da mesma maneira. As i f e r e n ~ a sdizem respeito aoque e feito dessas propriedades e como a r e ) a ~ a odelas com OS simbolosconvencionais e efetuada. Trat ar a i n v e n ~ i ocomo urn simbolismo man-
qui consideni-la urn conhecimento espU.rio como faz Sperber, e subvertera coisa mais poderosa que existe para o alento de uma c i v i l i z a ~ a oorgulhosa de seu conhecimento. Tranl-la, como faz Barth, como urn verdadeiro
"buraco negro'' - i n v e n ~ a oque devora c o n v e n ~ 5 . o- ao passo que, h3 dese reconhecer, constitui uma s p l t ~ n d i d ad e m o n s t r a ~ a oda tendencia a imb o l i z a ~ a onegativa, e uma especie de a b d i c a ~ a oda i t u a ~ a ohumana. Seriapossivel, de fato, contr astar Sperbe r e Barth na forma de urn "objetivismosubjetivo" e urn "subjetivismo objetivo", respectivamente.
A abordagem dialetica, em contraste, subverte tanto a subjetividadequanto a objetividade em pro da e d i a ~ a o .Sua postura- que para os cri
ticos deste livro se mostrou ora enlouquecedoramente frustrante, ora tantalizantemente obscura- e a de afi.rmar algumas coisas inquietantementesubversivas sabre o conhecimento tradicional e algumas outras implausi
velmente positivas sabre o p e r a ~ 5 e snao convencionais. 0 exercicio dessam e d i a ~ a opar Castafieda, com suas bizarras aventuras em meio a mariposas
e xamas acrobciticos, esti a s e r v i ~ ode uma l u m i n a ~ a otao sedutora e napratica tao i n a l c a n ~ a v e lquanto o satori zen. A antropologia tern tradicionalmente mira da urn tanto mais baixo, fazendo urn pequeno satori render omaximo possivel. Mas OS problemas de seguir "os significados produzidossob a ordem do tonal" nao deixam de exercer efeitos contaminadores sobre
o estilo de prosa de urn autor, hem como sobre o seu modelo.Voltando entao a uestao de como meus argumentos estio situados
no dominio do discurso te6rico: ha o grave perigo, especialmente em
face da abstrata dis cussio sab re "cult ura" feita no inicio, de que algunslei to res queiram alinhar minha p o s i ~ a ono eixo "idea lista / pragmatico".A maneira dos fenomen6logos e dos etnometodologistas e de algunsantrop6logos marxistas, porem, minha atitude foi a de evitar, analisarou circunscr ever esse eixo, em vez de tamar uma p o s i ~ i oquanta a ~ ~ e .
Isso quer dizer que, a despeito de quaisquer analogias que alguem possaencont rar com Alfred Schutz , com modelos filos6ficos de c o n s t r u ~ a odarealidade" ou como "sintetico a prion '' de Immanuel Kant, este trabalho
22 Introdu.rao
nao e "filos6fico" nem e filosofia. Elena verdade se esquiva das "Quest5es" e dos pontos de o r i e n t a ~ a oetnocentricos que a fi.losofia consideratao necessaries para sustentar (e def ender) seu idealismo. Mas tambemquer dizer que, a despeito do importante idioma da p r o d u ~ a oadotado no se gundo capitulo, nao te nho nenhum interesse em movimentos
"pelo flanco esquerdo" que t rariam as "realidades" da r o d u ~ a oinexoni
vel para os f6runs r a n ~ o s o sdo discurso academico. Realidades, o capitulo 3 parece nos dizer, sao 0 que fazemos delas, nao 0 que elas fazem den6s ou o que nos fazem fazer.
Por fim, ja que a r e ~ osim estar interessado e m simbolos, cabe aquialgum esclare cimento sobre esse t6pico tao repisado. Como deve ficarevidente nos Ultimos capitulos, n3o aspire (a nao ser conceitualmente,talvez) a uma "li nguigem" que falaria sobre simbolos, simbolos-em-dis
curso etc. mais acuradamente, mais pi'ecisamente ou de maneira maiscompleta do que eles "falam sabre si mesmos". U rna ciencia dos sirnbolospareceria t3o pouco recomend3vel quanta outras tentativas quixotescas
de declarar o indeclaravel, como uma gramatica de metaforas ou urndicion
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A presuncrao da cultura
IDEI E CULTUR
A antropologia estuda o fenomeno do homem a mente do homem, seu
corpo, sua evolus:ao, origens, instrumentos, arte ou grupos, nao simplesmente em si mesmos, mas como elementos ou aspectos de urn padclo geralou de urn todo. Para enfatizar esse fato e integr:i-lo a seus esfon;os, os
antrop6logos tomaram uma palavra de uso corrente para nomear o fen6-
meno e difundiram seu uso. Essa palavra e cultura Quando eles falam comose houvesse apenas uma cultura, como em cultura humana , isso se referemuito amplamente ao fenomeno do homem; por outro ado, quando falam
sabre uma cultura ou sabre as culruras da Africa , a referenda ea trad i ~ o e sgeogr:ificas e hist6ricas especificas, casos especiais do fenomeno do
homem. Assim, a cultura se tornou uma maneira de falar sabre o homeme sobre casos parriculares do homem, quand o visto sob uma determi nada
perspectiva. E laro que a palavra "cultura" tambem tern outras o n o t ~ o e s
e importantes ambiguidades, as quais examinaremos em seguida.
De modo geral, porem, o conceito de cultura veio a ser tao completa-
mente associado ao pensamento antropol6gico que, acaso o desej:issemos,poderiamos definir urn antrop6logo como alguem que usa a palavra "cul-tura habitualmente. Ou entao, uma vez que o processo de tornar-se depen
dente desse conceito e geralmente algo similar a uma experifncia de conversao , poderiamos retificar isso urn pouco e dizer que urn antrop6logoe alguem que usa a palavra cultura com esperanc;a, ou mesmo com fe.
A perspectiva do ant rop6logo e especialmente grandiosa e de Iongo
alcance, pois o fen6meno do homem implica uma comparat;ao com os
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outros fenOmenos do universe: com sociedades animais e espfcies vi vas,COm OS fatoS que dizem respeito avida, a matfria, ao e s p a ~ Oe assimpor diante. Em seu senti do mais ample, o termo cultura tambfmprocura reduzir as a ~ O e se prop6sitos humanos ao nivel de signifid.ncia mais bisico, a fim de examin
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pesquisador gostaria de saber 0 maximo possivel sobre seu objeto de
estudo; na pratica, porem, a resposta a essa questao depende do tempo edo dinheiro disponiveis e da abrangencia e dos propositos do empreendimento. Para o pesquisador quantitative, o arqueol ogo que ida comindicios de uma cultura ou o sociologo que mede seus resultados, o problema e obter uma amostra adequada, encontrar evidencias suficientes
para que suas estimativas nao sejam muito desviadas. Mas o antropologocultural ou social, ainda que por vezes possa recorrer a amostragens, estci
comprometido com urn tipo diferente de rigor, baseado na pro fundi dadee abrangencia de seu entendimento da cultura estudada.
Se isso a que OS antrop6logos chamam de cultu.ra e tao englobante
como vimos supondo, entao essa obsessao por parte do pesquisador decampo nao edespropositada, pais a cultu.ra estu.dada constitu.i urn universede pensamento e a9ao tao singular quant o a sua propria cultura. Para queo pesquisador possa enfrentar o trabalho de criar uma rela9ao entre taisentidades, n3o hci outra maneira sen3o onhe er ambas simultaneamente,
apreender o carater relat ive de sua cultura mediante a formula9ao concreta de outra. Assim e ue gradualmente, no curso do trabalho de campo,ele prOprio se torna o elo entre culturas por forya de sua vivencia emambas; e eesse conhecimento e essa competencia que ele mobiliza aodescrever e explicar a cultura estudada. Cultura , nesse sentido, traya urn
sinal de igualdade invisivel entre o conhecedor (que vern a conhecer a siproprio) eo conhecido (que constitui uma comunidade de conhecedores).
De fa to poderiamos dizer que urn antrop6logo inventa a culturaque ele acredita estar estudando, que a relay3o - por consistir em seuspr6prios atos e experiencia s- e mais real do que as coisas que ela rela-
ciona . No entanto, essa explicayao somente se justifica se compreendemos a inveny3o como urn processo que ocorre de forma objetiva, por meiode observa(_f3o e aprendizado, e n3o como uma espc§cie de livre fantasia. Aoexperienciar uma nova cultu.ra, o pesquisador identifica novas potencia
lidades e possibilidades de se viver a vida, e pode efetivamente passar_;; eproprio por uma mudan9a de personalidade. A cultura estudada se tornavisivel e subsequentemente plausivel para ele; de inicio ele a apreendecomo uma entidade distinta, uma maneira de fazer as coisas, e depois
30 A presun iio d culcura
como uma maneira segundo a qual ele poderia fazer as coisas. Desse modo,
ele pela primeira vez compreende, na intimidade de seus proprios erros eexitos, o que os antropologos querem dizer quando usam a palavra "cultura . Antes disso, poder-se-ia dizer, ele n3o tinha nenhuma cultu.ra, j ique a cultura em que crescemos nunca e realmente visivel - e omadacomo dada, de sorte que suas pressuposi(_fOes sao percebidas como autoe
videntes. E penas mediante uma "inven9ao" dessa ordem que o sentidoabstrato de cultura ( e de muitos out ros conceitos) pode ser apreendido, ee apenas por meio do contraste experienciado que sua propria cultura setorna visivel . No a o de inventar outra cultu.ra, o antrop6logo inventa
a sua propria e acaba por reinventar a propria no9ao de cultura.
TORN NOO CULTUR VISiVEL
A despeito de tudo o que possam ter-lhe dito sobre o trabalho de campo,
a despeito de todas as descri96es de outras culturas e de experiencias deoutros pesquisadores que ele possa ter lido, o antrop6logo que chegapela primeira vez em campo tende a sentir-se solitario e desamparado.Ele pode ou nao saber algo sobre as pessoas que veio estudar, pode ateser capaz de falar sua lingua, mas permanece o fa to de que como pessoaele tern de come(_far do zero. E como uma pessoa, entao, como urn par
ticipante, que come9a sua inven9ao da cultura estudada. Ele ate agoraexperimentou a cultura como uma abstra(_fao academica, uma coisasupostamente tao diversa e tao multifacetada, e no entanto monolitica,
que se torna dificil apoderar-se dela ou visualiza-la. Mas, enquanto ele
n3o puder ver essa cultura em torno de si, ela lhe sed de pouco conforte ou utilidade.
s problemas imediatos que o pesquisador iniciante enfrenta emcampo nao tendem a ser academicos ou intelectuais: sao prciticos e tern
causas evidentes. Provavelmente desorientado e aturdido, ele muitasvezes encontra dificuldades para se instalar e fazer contatos. Se uma casa
esta sendo construida para ele, o trabalho sofre tod o tipo de atraso; secontrata assistentes ou interpretes, eles nao aparecem. Quando reclama
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dos atrasos e desers:oes, ouve as habituais desculpas esfa rrapadas. Suasperguntas podem ser respondidas com mentiras 6bvias e deliberadas.
Caes latem para ele e crians:as segue m-no pelas ruas. Todas essas circunst
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achar extremamente desgastante a tensao de tentar preservar seus pensamentos e expectativas e ao mesmo tempo "respeitar" os da populaqao local.
Ele pode se sentir inadequado, ou talvez ache que seus ideais de tolerancia
e relatividade acabaram por enreda-lo numa situaqao alem de seu controle.Esse sentimento e conhecido pelos antropologos como "ch oque cul
tural". Nele, a "cultura" local se manifesta ao antrop6logo primeiramente
por meio de sua propria inadequa iio; contra o pano de fundo de seu novoambiente, foi ele que se tornou "visivel". Essa situas;ao tern alguns par a
lelos em nossa propria sociedade: o calou ro que entra na faculdade, o
recruta no exercito, qualquer pessoa que se veja na circunst&ncia deter deviver num ambiente novo ou estranho hade experimentar urn pouco
desse tipo de " choque". Ti picamente, a pessoa em questao fica deprimida
e ansiosa, podendo fechar-se em si mesma ou agarrar qualquer oportuni
dade para se comunicar com os outros. Em urn grau de qu_e raramente nosdamos conta, dependemos da participas;ao dos outros em nossas vidas e
da nossa prOpria participas;ao nas vidas dos outros. Nosso sucesso e a efe
tividade de nossa condiqao de pessoas se baseiam nessa participaqao e nahabilidade de mante r a competencia controladora na comunicaqao com
os outros. 0 choque culrural e uma perda do eu em virrude da perda desses suportes. Ca louros e recrutas logo estabelecem algum controle sobre
a situas;ao, pais afinal de contas se encontram num outro segmento desua propria culrura. Para o antropologo em campo, porem, o problema
e ao mesmo tempo mais urgente e mais duradouro.0 problema se poe tambem, embora nao exatamente do mesmo modo,
para as pessoas entr e as quais o antropologo foi trabalhar. Elas se deparamcom urn forasteiro excfntrico, intrometido, de aparfncia curiosa e estra
nhamente i ngfnuo vivendo entre elas; alguem que, como uma crians:a, niiopara de fazer perguntas e precisa ser ensinado acerca de rudo; alguem que,
tambem como uma crians;a, e propens o a se meter em encrencas. Apesardas defesas que foram levantadas contra ele, o pesquisador continua sendo
objeto de curiosidade e muitas vezes de temor, encaixando-se em muitos«
dos estere6tipos urn tanto ambiguos do forasteiro "perigoso", ou talvez do
ocidental trai£oeiro. A comunidade pode ela propria experimentar urn eve"choque" com sua presens;a- talvez devfssemos chami-lo "choque com
34 A presun ao da culrura
o antrop6logo - e se tornar autoconsciente de seus atos. 5 Tambem paraela o controle e urn problema importante. Mas o problema da comu
nidade nao eo mesmo do antropologo, que consiste em administrar suacompetencia pessoal ao lidar com os outros: o problema da comunidadee simplesmente controlar 0 antropologo.
A solu,ao para todos os envolvidos reside nos esfor£OS do antro
p6logo para controlar seu choque cultural e lidar com a frustraqao e odesamparo de sua situa,ao inicial. U rna vez que esse co ntrole envolve
adquirir competencia na linguae nos modos de vida locais ( e quem sao osespecialistas nisso senao os nativos?), as pessoas dali terao a oporrunidade
de fazer sua parte controlando o forasteiro- domesticando-o, por assim
dizer. E e aqui que as experiencias do antrop6log o diferem daquelas dos
missionirios e de outros emi ssirios da sociedade ocidental. Em raziio dospapeis que assumiram e de seus modos de com preender a situas;ao, esses
Ultimos frequentemente sao levados a int erpretar suas deficifncias comofruto de inadequaqao pessoal- e ficam loucos - ou da esrupidez e da
indolfnc ia nativas, refors;ando assim suas pr6prias autoimagens elitistas.Mas a antropolog ia nos ensina a objetificar aquilo a que estamos nos
ajustando como "cu ltura" , mais ou menos como o psicanalista ou o xamaexorcizam as ansiedades do paciente ao objetificar sua fonte. U rna vez quea nova situa,ao tenha sido objetificada como "culrura", e possivel dizerque o pesquisador esti aprendendo aquela cultura, assim como uma
pessoa aprende a jogar cartas. Por outro ado, visto que a objetifica,ao
ocorre ao mesmo tempo que o aprendizado, poder-se-ia igualmente dizerque o pesquisador de campo esti "inventando" a cultura.
Essa distins;ao e crucial, porem, no que diz respeito ao modo como
urn antrop6logo vern a compreender e explicar a situas:ao que experiencia.
;. Nesse sentido, o reverendo Kenneth Mesplay, encarregado de uma escola e de outrosservi os mission3.rios em Karimui, on de fiz meu trabalho de campo, afirmava que as aldeiasonde urn antrop6logo tivesse vivido revelavam padrOes distintos ao lidar com europeus: a
frequencia escolar diminui, as pessoas se mostram mais seguras de si etc. Urn antrop6logo ealga como urn "mission3.rio da cultura", acreditando (como todos os bans missiomlrios) na
coisa que inventa, e pode angariar urn grupo substancial de adeptos em seus esfor os parainventar a cultura local.
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A crens:a do pesquisador de que a nova situas:ao com a qual esta lidando
euma entidade concreta- uma "coisa" que tern regras, "funci ona" deuma certa maneira e pode ser aprendida- o ajudar
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A peculiar situaqao do antropologo em campo, participando simulta
neamente de dai s universe s de significado e aqao distintos, exige que elese relacione com seus objetos d e pesquisa como urn forasteiro - ten
tando aprender e adentrar seu modo de v i d a - ao mesmo tempo em
que se relaciona com sua prOpria cultura como uma especie de native
metaf6rico. Para ambos OS grupos ele eurn estranho profissional, umapessoa que se man ern a certa distil.ncia de suas vidas a fim de ganhar perspectiva. Essa estranheza eo carater interposto do antrop6logo saomotivo de muitos equivocos e exageros por parte daqueles com quem ele
entra em contato: os de sua prOpria sociedade imaginam que ele virounative , ao passe que os natives muitas vezes acham que ele e spiao ouagente do governo. Por mais perturbadoras que possam ser tais suspeitas,elas sao menos importantes do que o impacto da situaqao sobre o proprio
antrop6logo. N a medida em que ele funciona como uma ponte ou urnponte de conexao entre dais modes de vida, ele cria para si mesrno a ilu
sao de transcende-los. Isso explica muito do poder que a antropologia
tern sabre seus convertidos: sua rnensagern evangflica atrai pessoas quedesejarn se ernancipar de suas culturas.
U rna e r n a n c i p a ~ a opode efetivarnente vir a ocorrer, rnenos pelo fa to
de o pesquisador ter conseguido escapar do que pela circunstclnciadeter encontrado urn novo e poderoso controle sabre sua i n v e n ~ a o
'A r e l a ~ a opor ele criada amarra o inventor quase tanto quanta as cultu.ras que ele inventa. A experiencia da cultu.ra, dotada da forrnid
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cultura, suscitada pela preocupa9ao em compreender outros povos. Nao
podemos usar analogias para revelar as idiossincrasias de outros estilos
de vida sem aplicar estes Ultimos como controles na rearticulas:ao de
nosso prOprio estilo cia vida. 0 en tendiment o antropol6gi co se to rna urn
investim ento de nossas ideias e de nosso modo de vida no sentido mais
ample possivel, e os ganhos a serem obtidos tern correspondentemente,
implica96es de Iongo alcance. A Cultura que vivenciamos e amea9ada,criticada, contraexemplificada pelas culturas que criamos, e vice-versa.
0 estudo ou representac;ao de uma outra cultura nao consiste numa
mera descric;ao do objeto, do mesmo modo que uma pintura nao mera
mente descreve aquila que figura. Em ambos os casas h3 uma simboliza,ao que esta conectada com a inten9ao inicial do antrop6logo ou do
artista de representar o seu objeto. Mas o criador n3o pode estar cons
ciente dessa intens;ao simbOlica ao perfazer os detalhes de sua invens;ao,
pais isso anularia o efeito norteador de seu centrale e tornaria sua
invens;3o autoconsciente. Urn estu do antropolOgico ou uma obra de arte
autoconsciente e aquele que e manipulado par seu autor ate 0 ponto emque ele diz exatamente o que queria dizer, e exclui aquele tipo de extensao
ou autotransformas;ao que chamamos de aprendizado ou express3o .
Assim, nosso entendimento tern necessidade do que lhe e externo,
objetivo, seja este a prOpria tecnica, como na arte nao objetiva , ou obje
tos de pesquisa palpaveis. Ao for9ar a imagina9ao do cientista ou do
artista a seguir por analogia as conforma96es detalhadas de urn objeto
externo e imprevisivel, sua invens;ao adquire uma convics;ao que de outra
forma nao se imporia. A invens;ao e controlada pela imagem da reali
dade e pela falta de consciencia do criador sabre o fa to de estar criando.
Sua imaginas;ao- e muitas vezes todo o seu autogerenciamento- e compelida a enfrentar uma nova situas;3o; assim como no cheque cultural,
ela e frustrada em sua intens;3o inicial e levada a i nventar uma solus;ao.o que o pesquisador de campo inventa, portanto, e seu prOprio enten
dimento: as analogias que ele cria sao extensiles das suas pr6prias n o < ; ~ s
e daquelas de sua cultura, transformadas por suas experiencias da situa9ao
de campo. Ele utiliza essas Ultimas como uma especie de alavanca , como
faz o arleta no salta com vara, para catapultar sua compreensiio para alem
40 A presun iio da cultura
dos limites impastos por pontos de vista previos. Se ele pretender que suas
analogias nao sejam de modo algum analogias, mas uma descri9ao objetiva
da cultura, concentrar
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de vida que quase pode ser chamado de antrop6logo: o pin or flamengo
Pieter Bruegel, o Velho.
Como ocorre com todo s os exemplos hist6ricos, o contexto da vida
e da obra de Bruegel e complexo, com muitas influencias entrelas:adas, e
uma simplificas:ao e nec essaria para qualquer discussii.o. Em termos artis
ticos, e undamental considerar a tradi
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Esses quadros evocam dramas quase contemporiineos de Shakespeare
na universalidade de sua visao e em seu intento de generalizar a vida
humana por meio da caracteriza':filo de sua imensa variedade. A semel h a n ~ ae r e a l ~ a d apelo fato de que 0 humanismo de ambos OS artistas fre
quentemente serve como meio para compreender e interpretar o exOtica,
e ate mesmo para aprender com ele. Shakespeare usou a variedade, o
esplendor e a espirituosidade da vida elizabetana como urn sementeiropara analogias em suas incurs5es na Roma antiga, na Veneza contempo-
d.nea ou na Dinamarca medieval, e o retrato que fez de seus habitantes
como ingleses metaf6ricos certamente rendeu caricaturas que deliciaram
seus conterr3neos.
Da mesma forma, os povoados biblicos retratados em 0 recensea-mento em el im e 0 massacre dos inocentes pinturas de Bruegel, sao comunidades flamengas da epoca em todos OS aspectos. Os eventos em si, a
chegada de Maria e Jose a Belem para o censo e o intento dos soldados
de Heredes de assassinar o menino Jesus, podem ser reconhecidos nos
quadros: Maria veste urn manto azul e esti montada num burrico; Josecarrega uma serra de carpinteiro; urn censo esti sendo realizado; os solda
dos estao assediando o pop ulacho e assim por diante. No entanto, a aldeia
esti coberta de neve em ambas as cenas, as pessoas se vestem como cam
poneses setentrionais, e os telhados altos e ingremes, as irvores podadas
e a propria paisagem sao tipicas dos Paises Baixos. Todos esses detalhes
serviram para tornar familiares os eventos da Biblia, torn
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A cultura como criatividade
TRABALHO E CAMPO TRABALHO NO CAMPO
Quando fui fazer trabalho de campo entre os Daribi da Nova Guine pelaprimeira vez, eu tinha certas expectativas quanta aquila que esperava rea-lizar, ainda que, naturalmente, tivesse poucas noc;Oes preconcebidas sabrecomo seriam aquelas pessoas. Afinal de contas, o trabalho de campo e rntipo de trabalho : euma experifncia criativa, produtiva, muito emborasuas recompensas niio necessariamente se materializem da mesma
maneira que aquelas obtidas em outras formas de trabalho. 0 pesquisa- or de campo produz uma especie de conhecimento como resultado desuas experiencias, urn produto que pode ser mascateado no mercado aca-demico como qualificac;ao ou inscrito em livros. A mercadoria resultantese insere numa classe que abrange outraS experiencias singulares: mem6-
rias de estadistas ou artistas famosos, diarios de alpinistas, exploradoreso Artico e aventureiros, bern como relatos de empolgantes r e l i z ~ o e s
artisticas ou cientificas. Embora possam atrair atenc;ao especial, esses produtos sao nao obstante produtos, e sua c r i a ~ a ocontinua sendo trabalho .
0 antrop6l ogo em campo de fato trabalha: suas horas de trabalhosao dedicadas a entrevistar pessoas, observar e tomar notas, participar de
atividades locais. Eu procurava estruturar meu dia de trabalho segundourn padrao fixo: cafe da manha seguido de entrevistas com informantes;a l m o ~ oincluindo talvez algum trabalho de b s e r v a ~ a oou a r t i c i p a ~ a oouainda mais entrevistas na sequencia; e en tao uma refei
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fato fora responsavel pela mort e de uma de suas esposas), 3 apiedou-sede mim e revelou-me 0 mito de origem local porque voce tambem naotern uma esposa, e tenho pena de voce .
Meu status como representante do homem branco tornava minhas i t u a ~ a oainda mais intrigante par a meus amigos daribi. De que modomeus interesses peculiares se associavam as especialidades dos outros
europeus que eles conheciam, tais como os agentes do governo, os mission3rios, os medicos? Seriam estes tao somente names? Eles apenas se
referiam a tipos de trabalho diferentes ou de fato constit uiam familiasseparadas e distintas, ou mesmo tipos diferentes de gente? Esse era osentido da pergunta que alguns de meus amigos me fizeram certa tarde:Voces, antrop6logos, podem se casar com gente do governo e com mis-
sion3rios? . Expliquei que poderiamos se quisfsse mos, mas que eu n3o
tinha nenhuma a s p i r a ~ a oparticular nesse sentido. as eu nao havia respondido a erdadeira questao, de modo que posteri ormente ela foi reformulada de uma maneira diferente: Existem kanakas (isto e natives,gente como n6s ) nos Estados Unidos? . Eu disse que sim, pensandonos agricultores de subsistencia em algumas partes do pais, mas receio terevocado a imagem de uma o p u l ~ osubordinada, vivendo sob a tutelade oficiais de patrulhas governamentais, missiomirios e outros.
N3o era uma quest3o que se pudesse colocar facilmente em poucas
palavras, de modo que minhas respostas, por mais corretas que fossem,estavam fadadas a induzir a erros. E contudo, o problema era fundamental,pois girava em torno das razoes de minha r e s e n ~ ana aldeia e da naturezado trabalho que eu estava fazendo- e das m o t i v a ~ o e spor tras dele. Eu mevia continuamente desconcertado, e as vezes incomodado, pela preocu-p a ~ a ode meus amigos com aquilo que eu tomava como assuntos secundanos - meus arranjos domesticos e meu estado conjugal- ja que eu definiaa mim mesmo e justificava minha p r e s e n ~ aem termos dos meus interesses
antropol6gicos e do meu trabalho de campo. Os Daribi, de sua parte, provavelmente ficavam igualmente pasmos com minha estudada i n d i f e r ~ 5 a
quanto aos problemas da vida e da subsistencia e com minha inexplicivel
3· Ele entoava o canto filnebre daribi, urn lamento prolongado.
2 A cultura como criatividade
paixao por entrevistas. (E, afinal de contas, se eu podia lhes perguntarcom que t ipo de gente eles podiam se casar, era justo que eles pudessemme perguntar com que tipo de gente eu podia me casar.)
0 trabalho que eu tinha ido fazer entre os Daribi incorporava uman o ~ ode criatividade e daquilo que e importante na vida totalmente diferente daquela que suas pr6prias vidas e seu trabalho representavam. Meu
trabalho pretendia- se criatividade pela criatividade, oup r o d u ~ a o
pelap r o d u ~ a oempreendido para acrescentar algo ao corpo de conhecimentoscumulativos que chamamos de literatura antropol6gica . Seus interessese o t i v a ~ 5 e sseriam necessariamente obscuros e mesmo enganosos paraalguem que nao partilhasse nosso entusiasmo por esse tipo de r o d u ~ a o .
Por meio desse trabalho eu esperava inventar o povo daribi para meus
colegas e conterr3neos, urn pouco como inventamos nossa prOpria cul-tura exatamente por meio do mesmo tipo de criatividade. Em face dascircunstincias, porem, eu dificilmente poderia esperar retratar a criativi-dade daribi como uma imagem espelhada da nossa propria criatividade.
Para c o m e ~ a rsuas tentativas de me inventar , de tornar minhapessoa e meu trabalho plausiveis, inevitavelmente levaram a uma espe-cie de piedade e c o m i s e r a ~ a oque e 0 inverse da compaixao piegas queos filisteus de nossa cultura frequentemente professam pelo primitivoinculto e atrasado. 0 equivoco deles a meu respeito nao era o mesmoque meu equivoco acerca deles, de modo que a i f e r e n ~ aentre as nossas
respectivas i n t e r p r e t a ~ 5 e snao poderia ser descartada com base na dissi-milaridade li nguistica ou nas dificuldades de c o m u n i c a ~ a o .Uma vez quemeu problema particular o m e ~ o ucom a antropologia e com minhas pr6-prias expectativas (e de nossa cultura) quanto a cultura e a criatividade,retomemos esse tema como uma chave para o problema.
AMBIGUIDADE DA ' CULTURA
N ossa palavra cultura culture] deriva de uma maneira muito tortuosado partidpio passado do verbo Iatino co/ere cultivar , e extrai alguns
de seus significados dessa s s o c i a ~ a ocomo cultivo do solo. Esta tambem
iJ
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de fazer as coisas, a soma do conhecimento tal como o conhecemos.Essa cultu ra existe em urn sentido ample e urn sentido restrito, em urn
sentido nao marcado e urn sentido marca do .
A produtivid ade ou criatividade de nossa cult ura e definida pela apli
cas:ao manipulas:ao, reatu.alizas;ao ou extensao dessas tecnicas e descober
tas. Qualquer tipo de trabalho, seja ele inovador ou simplesmente produ-
tivo , como se diz, adquire sentid o em relas:ao a essa soma cultural, queconstitui seu contexte de significa9ao. Quando urn encanador troca urn
cano, faz uso de urn complexo de descobertas tecnol6gicas e esfor9os produtivos interligados. Seu ato adquire sentido como trabal ho mediante
sua integras:ao nesse complex o; aplica e leva adi ante cer tas invens:Oestecnologicas (como faria uma institui9ao Cultural ) e tanto define o
encanador como urn trabal hador, quant o estabelece uma rela9ao de complementaridade entre seus esfor9os e os esfor9os de outro s trabalhado
res. 0 trabalho do an tropolog o tambem faz isso: utiliza-se de urn fundo
comum de habilidades e ideias que podem s er adquiridas por educa9ao '
e contribui para uma totalidade chamada a literatura antropologica .trabalho [work] dotado de significado, produtivo, que tambem
e chamado de labor [labor], e a base do nosso sistema de credito, deforma que podemos computa-lo em termos monetarios. Isso possibilita
avaliar outras quantidades, tais como tempo, recursos e trabalho [labor]
acumulado, ou mesmo direitos e obrigas:Oes abstratos. Essa produ-
tividade, a aplica9ao e implementa9ao do refinamento do hom em por ele
proprio, consiste no foco central de nossa civiliza9ao. Isso explica o alto
valor atribuido a Cultu.ra no senti do restrito, marcado, sala de Opera ,pois ela representa o incremento criativo, a produtividade que cria tra
balho e conhecimento ao fornecer-lhes ideias, tecnicas e descobertas, eque em ultima instilncia molda o prop rio valor cultural. Experimentamosa relas:ao entre os dais sentidos de cult ura nos significados de nossa
..5 Tanto labor quanta work foram traduzidos como trabalho . Entretanto, h
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americanos urn antimundo de vicio e corrups:iio. Relas:oes interpessoais , e
em especial as familiares, devem ser privadas e estar "acima" de interesses
monet3.rios: nao se deve "usi-las" para fins de ganhos financeiros.Com exces:iio das especulas:oes de alguns antrop6logos, a vida fami
liar e as relas:oes interpessoais desempenham urn papel quase insigni
ficante nos relates hist6ricos geralmente utilizados para validar nossa
autoimagem culrural. Esses mitos cosrumam ser obcecados como desen
volvimento do hom em como uma hist6ria da evolus:iio das tecnicas pro
dutivas, uma gradual acumula-;ao de instrumentos e "adaptas:Oes" queindica uma sofisticas:iio tecnol6gica cada vez maior. Niio edificil relembrar as listas dos grandes avans:os ensinadas na escola: o fogo, atri buido
ao homem p n ~ - h i s t 6 r i c o ,o alfabeto, aroda, o arco romano, a estufade Franklin' e assim por diante. A despeito das datas, dos nomes ou das
invens:Oes especificas, a Cultura emerge como uma acumulas:ao, umasoma de inven
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A produt ividade das sociedades tribais nao e obcecada por instru
mentos ou tfcnicas na medida em que constitui uma parte das relas:Oes
interpessoais e encar na val ores humanos, e nao valores abstratos. As rec-
nicas de r o d u ~ a obisicas- abertura de ros;as, construc;ao de casas, tece
lagem, processamento de comida- sao incorporadas aos papeis sexuais
e dizem respeito ao que se entende por ser homem ou mulher. Ttcnicas
mais especializadas, oup r e o c u p a ~ i i e s
com habilidades e tecnicas em simesmas, sao periffricas e individuais. Os antrop6logos conhecem esses
empreendimentos como magia , feitis;aria e xamanis mo : o desenvolvimen to e entesou ramento de tfcni cas muitas vezes secretas a fim de
garantir o sucesso pessoal.Assim, as culturas tribais encarnam uma inversao de nossa tenden
cia a fazer das tecnicas produtivas o foco das a t e n ~ o e se a relegar a vida
familiar a urn papel subsidiario (e subsidiado). E essa inversao nao etrivial: ela permeia ambos os estilos de criatividade em todos os seusaspectos. Na medida em que produzim os coisas , nossa preocupas:ao e
com a preservas:ao de coisas, produto s, e com as tecnicas de sua produs:ao. N ossa Cul tura e uma soma dessas coisas: conservam os as ideias, ascitas:Oes as mem6rias, as crias:Oes, e deixamos passar as pessoas. N ossos
s6taos, por5es, balls, ilbuns e museus estao repletos desse tipo de Cultura.Por outro lado, a sugestao de que pov os tribais sao materialistas
com frequencia levantada no caso dos habitantes das terras altas daN ovaGuine- faz tao pouco senti do q uanto a acusas:ao de que eles com pram
esposas. Aqui, como diz Bugotu, as pessoas e que sao importantes; OS
objetos de valor consistem em fichas para contar pessoas, e, Ionge de
serem entesourados, sao frequentemente disperses por ocasHio da morte
mediante pagamentos mortuirios. sao as pessoas, e as experi€ncias e significados a elas associados, que nao se quer perder , mais do que as ideiase coisas. Meus amigos da Nova Guine transferem os nomes dos mortos
recentes para os recem-nascidos e tambem consideram imprescindivelinventar os mortos sob a forma de fantasmas, de modo a nao p e r < i ~ o s
por complete. Fazemos algo muito semelhante com os livros, que saonossos fantasmas , nosso passado, onde vive boa parte daquilo quechamamos nossa Cultura .
6o A cu tura como criatividade
Tratando-se de estilos de criatividade, e nao meramente de tipos desociedade , essas o r i e n t a ~ O e sque vimos discutindo caracterizam a inven~ a ohumana de uma maneira total e abrangente. E porque a e r c e p ~ a oe a
compreensao dos outros s6 podem proceder mediante uma especie de ana
logia, conhecendo-os por meio de uma extensao do familiar, cada estilo decriatividade e tambem urn estilo de entendimento. Para OS povos da Nova
Guine, a criatividade do antrop6logo a sua n t e r a ~ ocom eles, em vez de
resultar dela. Eles percebem o pesquisador em campo como alguem que esta
fazendo vida, urn pouco como Zorba o Grego poderia perceb€-lo, uma
forma de vida ousada e inclusiva. E, como em todos os casos dessa natu
reza, deseja-se ajudar o incauto forasteiro. Ou pelo menos tem-se pena dele.
De sua parte, o an trop6lo go supi'ie que o nat ivo esta fazendo o quel esti fazendo- a saber, cultura . E assim, como urn modo de en ender
OS sujeitos que estuda, 0 pesquisador e obrigado a inventar uma cultura
para eles, como uma coisa plausivel de ser feita. Mas, como a plausibilidade e uma f u n ~ a odo ponto de vista do pesquisador, a cultur a que
ele imagina para o nativo esta fadada a manter uma distinta e l a ~ a ocom
aquela que ele reivindica para si mesmo.
Quando urn antrop6logo estuda outra cultura, ele a inventa generalizando suas impress5es, experi€ncias e outras evid€ncias como se estas
fossem produzidas por alguma coisa externa. Desse modo, sua invens:ao
e uma objetificas:ao, ou reificas:ao, daquela coisa . Mas para que a cultu.ra
que ele inventa f a ~ asentido para seus colegas antrop6logos, bern comopara outros compatriotas, e necess
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Mas, se o significado da o ~ i i oabstrata e antropologica de cultura
depende da n o ~ a osala de opera , o inverso tambe m e verdadeiro. E a
quest3o tampouco se restringe a essas duas variantes; constructos mais
recentes, como subcultura ou contracultura , metaforizam o termo
antropologico para gerar uma riqueza ainda maior - e tambem umam u d a n ~ ade significados. As possibilidades semanticas do conceito de
cultura permanecem uma fun
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parentesco de Morgan, podem ser compreendidos como r a ~ o ssobrevi
ventes de urn estigio evolutivo anterior, eles ent3o seriam, assim como
os indios nao produtivos , f6sseis. Os primeiros evolucionistas estavam dispostos a admitir como autovidente que a vida produtiva fosse
dotada de significado, reservando o restante para a sua propria inven~ a oprodutiva do passado. Mas o sentido reflexivo dessa m e t a f o r i z a ~ a o
transformou todo o mundo dos costumes num gigamesco museu vivo,
que somente os antropologos tinham o privilegio de interpretar. Nao
era apenas o museu que constantemente recriava o passado, mas a prO
pria vida do homem.Tanto no caso de Ishi quanta no de Tylor, a cultura no sentido abs
trato e antropologico era urn artefato reificado da Cultura no sentido
restrito, marcado. Na medida em que essa inven-;ao, ou e r i v a ~ a o ,se deu
no contexte dos museus e da nossa autoidentifica9ao hist6rica, a n o ~ : r a : o
de cultura resultante assumiu as caracteristicas de urn acervo de museu.
Era finita, discreta e inequlvoca: possuia estilos e usos peculiares, que
podiam ser deter minados c om grand e precisao. Podia ser dificil afirmar se
urn determinado indio era de ato urn Cheyenne ou urn Arapaho, mesmo
interrogando-o de perto, mas nunca havia duvida alguma sabre estilos e
artefatos. Sob a egide protetora de nossas i n s t i t u i ~ o e sCulturais cons
truiu-se um a serie de culturas distintas e uma o n c e p ~ a ogeral de cultura
em todos os aspectos ancilogas ao nosso sentido marcado de Culnua,
como urn acllmulo de grandes ideias, invens;Oes e r e a l i z a ~ O e s
Sob varios aspectos, essa ideia de cultura jamais deixou a m a g i n a ~ a o
antropologica. N ossas tentativas de metaforizar os povos tribais como
Cultura os reduzira m a tecnicas e artefatos; nossas tentativas de produ
zir essas culturas etnologicamente, de compreender o artefato repro
duzindo-o, redundaram em sistemas sobredete rminados. A 16gica de
uma sociedade em que cultura e alga consciente e deliberado, em que
a vida serve a algum prop6sito, em vez do inverso, em que se requer que
cada fato ou r o p o s i ~ a otenha uma razao, cria urn efeito e s t r a n h a ~ ; n t e
surrealista quando aplicada a povos tribais. De fa to, tais f u n ~ O e s ,fatos
sociais e estruturas 16gicas da mente sao tao pouco criveis em nos
sas experif:ncias in lo o com os nativos que f o r ~ o s a m e n t esomas levados
64 A cu tura como cn'atividade
a considerar que as raz6es e os prop6sitos teoricamente aduzidos
sao propriedades universais subliminares, subconscientes ou implicitos.
0 resultado foi uma sobrecarga do conceito generalizado de cultura,
abarrotado com tantas 16gicas explanat6rias, nfveis e sistemas de sabred e t e r m i n a ~ o e sheuristicas a ponto de faze-lo surgir como a propria meta
fora da ordem . Uma tal cult ura e totalmente dotada de predicados: e
regra, gramiitica e lexica, ou necessidade, uma perfusao completa de formas
e paradigmas rigidos que perpassa todo o leque do pensamento e da a ~ i i o
humanos; em termos freudianos, aproxima-se de uma compulsao coletiva.
Alfm disso, j ique essa ordem de ferro representa ao mesmo tempo nosso
meio de compreender a cultu.ra, a m u d n ~ou a r i a ~ a : os6 pode ser abor
dada negativamente, como uma espfcie de entropia, est
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dogma e certeza, sera levada a rmadilha de ter de acreditar ou nossignificados nativos ou nos nossos pr6prios. A primeira alternativa,dizem-nos, e upersticiosa e niio objetiva; a segunda, de acordo comalguns, e "cifncia . E, todavia, esse tipo de cifncia pode facilmentedegenerar em uma forma de discurso indireto, em urn modo de fazerafirmac;:Oesprovocativas traduzindo idiomas em fates e superexotici
zando os objetos de pesquisa em pro do efeito simb6lico. Isso e ossivelporque a antropologia sempre enecessariamente mediad ora, esteja ounao consciente das implicac;:Oes disso; a cultura, como o termo mediadar, e uma maneira de descrever outros como descreveriamos a nOsmesmos, e vice-versa.
U rna autentica metaforiza91i.o dos dive rsos f enomenos da vida e doh d - d lensamento umanos em termos e nossa nos:ao e cu tura necessa-
riamente tern de passar pela invens:ao criativa que manifestamos no atode estudar urn outro povo. De outro modo, somos compelidos a osturaexplicitamente falsa de criar ambiguidades no int erior de nossos pr6priosconceitos de modo a provar a natureza precisa, estritamente determinada e n3o ambigua dos conceitos de outros povos, de inventar sistemasincapazes de inventar e de charnel-los "culturas". Enquanto o conceitoantropol6gico permanecer dependente do sentido "sala de 6pera" dotermo, mesmo que parcialmente, nossos esrudos sabre out ros povos, eparticularmente sobre as sociedades tribais, serao enviesados na dire'rao
de nossa propria autoimagem.Enquanto nossa inven91i.o de outras culturas nao puder reprodu
zir, ao menos em principia, o mod o como essas culruras inventam a si
mesmas, a antropologi a nao se ajustar3 a sua base mediad ora e aos seusobjetivos professes. Precisamos ser capazes de experienciar nosso objetode estudo diretamente, como significado alternativo, em vez de fazelo indiretamente, mediante sua literaliza'rao ou redw;ao aos termos denossas ideologias. A questao pode ser formulada em linguagem pratica,filos6fica OU etica, mas em todos OS cases e}a diz respeito aquila que esco-
~ ' - '
lhemos querem dizer com a palavra "cultura" e a como decidimos dirimir,
e inventar, suas ambiguidades.
66 A cu tura como criatividade
ROAD BELONG CULTURE '
Se a "cul tura" se tor na paradoxa e desafiante quando aplicada aos significados de sociedades tribais, podemos especular se uma "antropologiareversa" e possivel, literalizando as met3foras da civilizas;ao industrialmoder na do ponto de vista das sociedades tribais. Certamente nao temos
o direito de esperar por urn esfor9o te6rico am\logo, pois a preocupa9aoideol6gica desses povos nao lhes impiie nenhuma obriga91i.o de se especializar dessa maneira, ou de pr opor filosofias para a sala de conferencias.Em outras palavras, nossa "antropologia reversa" nao ter3 nada aver
com a "cultura", com a prodw;ao pela produs;ao, embora possa ter muitoa ver com a qualidade de vida. E, se os seres humanos sao geralmentetao inventivos quanta viemos supondo aqui, seria muito surpreendentesetal "antropologia reversa" j3 nao existisse.
Ela existe, por certo. Com a expansao politica e econOmica da socie
dade europeia no seculo XIX, muitos povos tribais do mu ndo todo seviram em uma situas;ao de "trab alho de campo", sem que tivessem responsabilidade alguma por isso. Trabalho de campo" talvez seja urneufemismo para aquilo que mui tas vezes foi pou co mais que urn choque cultural continuado, cumulative, mas ainda assim ha urn paralelo,pois o choque cultural nos for9a a objetificar, a buscar compreensao.Chamamos essas tentativas de compreensao de muitas coisas, pois elasassumem muitas formas, mas mesmo os termos mais familiares traem aforma ativista que o pensamento concertado tern de assumir entre povosem que 0 pensamento e uma parte da vida: culto da carga cargo cult) e
movimento milenarista.
10 . Derivada po r Wagner da expresslio em pidgin rot bilong kago, "r oad belong cargo", signi
ficando, no contexto dos movimentos de culto da carga na Nova Gui ne descritos por PeterLawrence, a "estrada da carga", o caminho par onde a carga chegaria- isto e as prciricas
rituais ou sociais e a moralidade a serem adotadas de modo a obter os bens e a tecnologiaocidentais. 0 conteU.do dessas pr
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Se chamamos esses fenOmenos de cultos da carga , entiio a antro
pologia talvez devesse ser chamada de culto da cultura , pois o kago
melanfsio e ern a contrapartida interpretativa da nossa palavra cultura .Essas palavras sao em certa medida imagens espelhadas , no sentido deque olhamos para a carga dos natives, suas tfcnicas e artefatos, e a chama
mas de culnua , ao passo que eles olham para nossa cultura e a chamam
de carga . Estes sao usos anal6gicos, e dizem tanto sobre os pr6priosintfrpretes quanta sabre as coisas interpretadas. Carga epraticamenteuma par6dia, uma redm;ao de o ~ e socidentais como lucro, trabalho assa
lariado e produ,ao pela r o d u ~ a oaos termos da sociedade tribal. Paradoxalmente, nao e mais materialista do que as pnlticas matrimoniais mela
nfsias, e essa e chave para suas associac;5es apocalipticas e milenaristas.A carga raramente € pensada da maneira que poderiamos espe
rar, como simples riqueza material: sua significancia baseia-se antes nautilizas:ao simb6lica da riqueza europeia para representar a redenc;ao
da sociedade nativa. N esse uso, assemelha-se aquelas outras cargas -
os constituintes simb61icos mais tradicionais do prec;o-da-noiva ou a
atividade e os produtos da horticultura - que encarnam o significadocentral das relac;5es humanas para os melanfsios, e que n6s tendemos a
interpretar em termos materialistas e econOmicos. A carga € de fa to urnantissfmbolo da cultura : ela metaforiza as ordens est€:reis da ti:cnica e
da produc;ao autossatisfat6ria como vida e relac;ao humana, assim como acultu ra faz o inverso. N as palavras de Kenelm Burridge, que distingue
do sentido ordincirio de carga urn sentido em maiUscula, urn pouco
como fizemos aqui com cultur a :
Estel claro que, se carga signific a bens manufaturados, Carga abrange
um conjunto de agudos problemas marais; os movimentos de Carga n5o
se devem simplesmente a um mal-entendido concernente d origem dos
hens manufaturados, mas est5o inseridos em uma complexa situaf50
global e dela emergem. _ . .
11. Ken elm Burr idge, Mambu A Study o Melanesian argo Movements and Their Ideological
Background. Nova York/Evanston: Harper Row, 1970, p 246
68 A cultura como criatividade
0 sirnbolo da carga , quase tanto quanta o da cultura , extrai
sua f o r ~ ae seu significado de suas ambiguidades: ele e simultaneamenteo fen&meno enigmcitico e tantalizante dos hens materiais ocide ntais e a
profunda m p l i c a ~ a ohumana destes para o pensamento nativo. Quando0 simbolo e invocado, 0 segundo desses sentidos incorpo ra 0 primeiro em
uma poderosa relac;ao anal6gica, que tanto reestrutura o fen&meno quanta
lhe confere significado. Essa r e l a ~ a ocom o significado que ela imp5e,engloba todos OS aspectOS do diJema moral: e 0 aceSSO a arga, 0 vinculoimplicado por urn compartilhamento da carga e as c o n d i ~ e smilenaristasnecessarias para a chegada da carga. Alem disso, ja que carga , assim
como cult ura ' e urn termo de mediac;ao entre diferentes povos, a relac;a:o
que ele encarna torna-se aquela dos melan€:sios com a sociedade ocidental.0 fato de que carga e cultura metafori zam a mesma relac;ao
intersocietciria, conqu anto o fac;am em direc;5es opostas, por assim dizer,torna- as efetivamente metaforizac;5es uma da out ra. Cultura estende
a significancia tfcn ica, do modo e do artefato para o pensamento e ar e l a ~ a ohumana ; carg a estende a significancia da p r o d u ~ a omutua edas relac;5es humanas para os artefatos manufaturados: cada conceito
usa o vies extensive do outro como seu sfmbolo. Assim, e 3cil para osocidentais literalizar o significado de carga e supor que queira dizer
simplesmente produtos manufaturados ou modos de p r o d u ~ a oociden
tais, isto e Cultura no sentido restrito. Esse tipo de simplifica
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no sentido de favorecer e mesmo encorajar os costumes e o cerimonialnatives; a segunda foi sua descoberta de que nem todos os europeusaceitavam as religioes missionirias e a historia de Adao e Eva. 12 Ele ficouintrigado com os diagramas que ilustr avam o curso da evolu9ao, em especial com o monki, 13 e de maneira perspicaz associou essa teoria apriticaocidental de manter animais em zool6gicos. Lawrence argumenta con
vincentemente que Yali viu essa enfase na histOria natural como umaespecie de totemismo, 14 urn santuirio, por assim dizer, para a preser va-9ao de rela96es sociais.
0 ponte e retomado de modo mais conciso na interpretac;ao posterior por Yali de certos artefatos da Nova Guine que ele vira no museude Queensland durante a Segunda Guerra Mundial. Segundo Lawrence,o prOprio Yali descrevera esses artefatos nesses termos: 'Nossos mitestambem estao li' [ .. N esse contexte, a palavra 'm ite ' (perambik, siton ) 5
conotava de forma ampla 'a cultura da Nova Guine'". 16 As experienciasde Yali com a maneira como os ocidentais pensam sobre seu passado eo preservam, e com a maneira como toleram e preservam o passado dosoutros, proporcionaram-lhe uma percepc;ao da "cultura" mais abrangente do que aquela que a maio ria dos melanesios consegue obter. Noen anto, essa noc;ao de cultura era invariavelmente assimilada a ( e confundida com) suas proprias expectativas de "carga". Road belong cargoconverteu-se em road belong culture , como fica evidente no desfechodo episodio de Yali em Port Moresby, pois ele retorna a ua area natalem Madang para dar inicio a urn amplo revivescimento de cerim6niastradicionais a fim de fazer vir a carga.
0 revival de Yali nao era de modo algum uma tentativa de replicar
a vida pre-colonial; caracterizava-sepor
uma frenetica hiperatividadecerimonial, bern como pela incorpora9ao de priticas de cultos anteriores.
12. Peter Lawrence, Road Belong Cargo A Study of the Cargo Movement in the Southern
Madang District, New Guinea. Manchester: Manchester University Press, 1964, pp 1Zl.;]8.13 Derivac;ao em pidgin do inglf:s monkey, "macaco". [N T ]
14 Id., ibid., pp. 1 7 4 7 ~ .
Derivac;ao em pidgin do inglf:s story, "hist6ria". [N T ]6. Id., ibid., p I 9 I
70 A cultura como criatividade
maneira de revivalismos similares em outra s partes do mundo, esse na:odizia respeito a cultura" em si mesma, mas a ultura como urn simbolode outra coisa. Emhora a identidade estivesse envolvida, como sempreesti quando a "cult ura" e assumida de modo autoconsciente, de modoalgum explica ou esgota esses usos, pois nesses revivalismos a cultura
sempre aparece como urn acesso a coisas muito mais importantes do queela propria jamais poderia ser.
Pessoas como Yali, diz-se, sao levadas a tais extremes interpretativos pela injusti9a social, pela explora9ao e pelas tensoes de algochamado "contato cultural". Certamente, os povos da costa Madangtiveram seu quinhao de explora9ao e humilha9ao pelas sucessivas ondasde colonialistas alemaes, australianos e japoneses; bizarros sectiriosreligiosos que esperavam conquistar entre silvicolas supostamente
"simples" uma audiencia para ideias que seus conterd.neos tinham passado a considerar demasiado simples. Mas nao propon ho dar conta da
motivac;ao e da cr iatividade de Yali dessa maneira, no minimo porqueexplica9oes em termos de perturba96es e injusti9as rebaixam as realizas:Oes humanas ao nivel de corretivos e reduzem a vida a urn modelode equilibrio. Seria dizer muito pouco sobre aquele lfder do primeiro
movimento cristao, Joshua de Nazare, remeter a fonte de suas ideias epropositos a njusti9a romana ou adiferen9a de padrao de vida entreromanos e palestinos.
De resto, nossa discussao mostrou que na:o h i razao para tratar oculto da carga como qualquer coisa alem de uma contrapartida interpretativa da propria antropologia, e que sua criatividade nao precisa serem nada mais problemit ica do que aquela dos antropologos que o estu
dam. 0 culto da carga pode ser pensado como urn genero pragmiti co deantropologia, que inventa em antecipac;ao ao futuro - de uma maneiraque faz lembrar a magia melanesia- em Iugar de reconstruir o passadoou o presente a pa rtir de cacos de evidencias. Fica clar e do que se expOs
que os devotes de ambos os conceitos, carga ou cultura, na:o conseguemapreender facilmente o outro conceito sem transform
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provocam e estendem suas ideias e analogias sobre urn mundo de fen6-menos intransigentes.
E fundamental para uma definis:ao do homem que ele continuamente invista suas ideias buscando equivalen tes externos que nlio ape-
nas as articul em mas tambem as transformem sutilmente no processoate que esses significados adquiram vida pr6pr ia e possuam seus au ares.
0 homem e o xama de seus significados. A ambiguidade da cultura e
tambem da carga coincide com o poder que tal conceito tern nas maos deseus interpretes os quais empregam os pontes de analogia para manejare controlar os aspectos paradoxais. E todavia esses mesmissimos inter-
pretes como todos os xamlis tambem estlio sujeitos os caprichos de
seus espiritos familiares o que nos poe na pista de u ma explicas:ao par aas incongruencias e Yali e suas contrapartidas antropol6gicas.
72 cultura como criatividade
C PITULO 3
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0 poder da invenqao
INVENt AO CULTURA
OS capitulos precedentes, vimos que a antropologia e 0 estudo dohomem mediante a presun9ao da cultura, uma no9ao que abarca os pensamentos e a96es do antrop6logo e dos seus objetos de estudo comovariedades do mesmo fen6meno. Em sua c o n o t a ~ t i i omais simples e maisampla, a cultura prove uma base relativistica para a compreensiio de
outros povos. Estudamos a cultura por meio da cultura, de modo quequaisquer operac;5es que caracterizem nossa investigac;iio tambem devemser propriedades gerais da cultura. e a inven9ao e mesmo o aspectomais crucial de nosso entendimento de outras culturas, isso deve ter umaimport3ncia central no modo como todas as culturas operam. Em outraspalavras, se reconhecemos a criatividade do antrop6logo na construc;ao
de sua compreensao de uma cultura, certamef1te nao podemos negar aessa cultura e a seus membros o mesmo tipo de criatividade.
I n v e n ~ . r l i oportanto, cultura, e pode ser Util conceber todos os seres
humanos, onde quer que estejam, como pesquisadores de campo que
controlam o choque cultural da experiencia cotidiana mediante todo tipode regras , t r a d i ~ . r O e se fatos imaginados e construidos. 0 antrop6logotorna suas experiencias compreensiveis (para si mesmo e para outrosem sua sociedade ao percebe-las e entende-las em termos de seu proprio modo de vida, de sua Cultura. Ele as inventa como cultura . E namedida em que durante toda a sua vida ele aprendeu a se comunicar comoutros com seus amigos e sua familia tanto quanto com seus coleg s-por meio das conven96es compartilhadas dessa Cultura, ele agor ae capaz
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de se comunicar com membros de uma sociedade diferente por meioda cultura que inventou para eles. Uma vez que a cultura estudadaganhou significado para ele - da mesma maneira que sua propria vida
edotada de significado - ele ecapaz de comunicar suas experienciasdessa cultura aqueJes que compartilham OS significados e o n v e n ~ O e Sdoseu proprio modo de vida.
Se assumimos que todo ser humane f: urn antrop6logo , urn inventor de cultura, segue-se qu e todas as pessoas necessitam de urn conjunto
de o n v e n ~ o e scompartilhadas de certa forma similar a nossa Cultura
coletiva para comunicar e compreender suas experifncias. E sea invenc;iio
e ealmente tao b3sica para a existfncia humana quanta sugeri, entiio acomunicac;iio e o conjunto de associac;5es e convenc;Oes comp artilh adas
que permite que a comunicac;ao ocorra sao igual mente b
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d i s t i n ~ a o(a base de uma e l a ~ a oparadigmatica ). Optei por generalizar
contexto'' com a expectativa de que urn conceito que desafia o estreita
mento construtivo possa nos ser mais Util sendo amplz ado- amaneira doconceito matemcitico de conjunto na teo ia dos conjuntos .
Urn contexto e uma parte da experiencia- e tambem algo que nossa
experi€ncia constr6i; eurn ambiente no interior do qual elementos simb6licos se relacionam entre si, e e formado pelo ato de r e l a c i o n a ~ l o sOs
elementos de urn contexte convencionalmente reconhecido parecem sepertencer mutuamen te assim co mo elefantes, Ionas, palha'.ros e acrobata s
perten cem a urn circe. Alguns elementos sao partes menos convencio
nais de urn contexte que outros, embora isso varie no tempo e no espac;o.Per exemplo, urn ursa bailarino e ma parte menos convenciona l de urncirco para os norte-americanos do que para os europeus. Alguns contextos sao menos convencionais que outros, embo ra isso tambem varie com
o tempo, o Iugar e as pessoas. Os contextos mais convencionais parecemtao familiares que os percebemos como todos, coisas ou experiencias
em si mesmos, como o outono , a escola ou a Declarac;ao da Inde
pendencia. Outros sao mais obviamente montados , como o punhadode palavras que compOe urn poema nao familiar ou uma re tina qu e aindanao aprendemos a viver.
Nao ha limites perceptiveis para a quantidade e a extensao dos contextos que podem existir em uma dada cultura. Alguns contextos incluem
outros, e fazem deles uma parte de sua articulac;ao; outros podem se
inter-relacionar de urn modo que nao envolve total exclusao ou inclusao. Alguns, de tao tradicionais, parecem quase permanentes e imut
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referencia ao Ser Superior sera uma extensilo . Aparte esse tipo de com-promi sso ideol6gico, niio existem significados prim
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inovadora, mas tambfm muda as associas:5es dos elementos que relineao integra-los numa expressao distintiva e muitas vezes original. Em outr eIugar empreguei o termo metafora em refere nda a nvens:ao cultural/embora tal emprego exija que metaforizemos a nos:ao de metifora, esten
dendo-a de modo a englobar formas nao verbais e desenvolvendo assimuma teoria da s i m b o l i z a ~ a opor analogia com a linguagem. No entanto,
interesso-me po r fenomenos linguisticos em larga medida como exemplosde operas:Oes semi6ticas mais gerais, mais do que o contririo, e por issocito aqui o exemplo da metafora apenas por seu valor ilustrativo.
As simbolizas:Oes convencionais sao aquelas que se rel acionam ent resi no interior de urn campo de discurso (linguagem e matemitica saoos exemplos 6bvios) e formam conjuntos culturais, como sentens:as,e q u a ~ 5 e skits de ferramentas, trajes completos ou ruas de uma cidade.Elas generalizam ou coletivizam por meio de sua capacidade de conectar signos de uso comum em urn padrao unico. Mas podem faze-lo apenas porque rotulam, ou codificam, os detalhes do mundo que ordenam.Todas as simbolizas:Oes convencionais, na medida em que sao convencionais, tern a propried ade de repre senta r ou denotar algo diferentedelas mesmas. Essa ea n o ~ a otradicional de simbolo , empregada porCharles Sanders Peirce e outros.
Assim urn contraste contextual entre o contexte simb6lico articu-'
lado por signos e o contexto de fen6menos aos quais esses signos se refe-r e m e ma caracteri stica da simbolizas:ao convencional toda vez que estaocorre. Os simbolosse autoabstraem do simbolizado. Uma vez que somasobrigados a usar simbolos para nos comunicar, e ja que esses simbolosnecessariamente rem de incluir associas:Oes mais ou rnenos convencionais entre aquelas disponiveis, o efeito da autoabstras:ao simb6lica, como contraste contextual resultante, e empre urn fa tor na simbolizas:ao.
Alfm de dar ao mund o urn centro, urn padr3o e u ma organizas:ao,a convens:ao separa suas pr6prias capacidades de ordenas:ao das coisasordenadas ou designadas, e nesse processo cria e distingue c o n t ~ t o s .
2 Roy Wagner, Habu: The Innovation o Meaning in Dan bi Religion. Chicago: The Univer
sity of Chicago Press, 1972
84 0 poder da inven;iio
A d e l i n e a ~ a odesses contextos e a p o s i ~ a oentr e modos de simbolizac;aocoletivizante e diferenciante que ela implica podem ser igualmentetratadas como fics:Oes ou ilus5es da convens:ao, mas sao extremamenteimportantes. Elas decomp5em o mundo do ator, e da t r a d i ~ a oem geral,em suas categorizas:Oes mais signifi.cativas e efetivas.
0 elemento que contrasta como convencional, aquele que e representado ou significado pela simbolizac;ao convencional (e que por suavez a sirnboliza, evidentemente), nao deve ser simplesmente assimilado
ao leque de coisas autoev idente s no mundo pessoas, lugares, eventosetc. individuais - embora cer tamente as inclua. Ele de fato constitui urn
outro modo de sirnbolizas:ao: o modo diferenciante, ou nao convencional. Seus efeitos sao opostos aqueles do modo convencional em quasetodos os aspectos, ainda que ta mbfm possam ser entendidos em termosde propriedades semi6ticas.
Quando urn simbolo e usado de modo nao convencional, como naformas:ao de uma metifora ou urn tropo de alguma outra ordem, urnnovo referente e introduzido simultaneamente com a nova simbolizac;ao Uma vez que nem significante nem significado pertencem aordemestabelecida das coisas, o ato de simbolizac;ao s6 pode ser referido a urnevento: o ato de i n v e n ~ a ono qual forma e i n s p i r a ~ a opassam a figuraruma aoutra. 0 resultado nao ediferent e nas simbolizac;5es que apreendemos ao descobrir urn rosto novo ou uma nova situas:ao: urn eventomanifesta simbolo e referente simultaneamente. Assim, a tensao eo con
traste entre o simbolo eo simbolizado desmoronam, e podemos falar detal construs:ao como urn simbolo que repre senta a si mesmo . Todasas experiencias, pessoas, objetos e lugares singulares da vi da cotidianacorrespondem, nos tras:os que as tornam distintas, a esse modo de simbolizas:lio- como simbolos , elas representam a si mesmas.
Desse modo, a tendencia do simbolismo diferenciante e mpor distins:Oes radicais e compuls6rias ao fiuxo da construs:lio; eespecifi.car, eassimilar uns aos outros os contextos contrastantes dispostos pela convens:lio Invens:lio , o signo da diferencias:ao, eo obviador obviator]
dos contextos e contrastes convencionais; de fa to, seu efeito total de fundir o ''sujeito eo objeto convencionais, transformando urn com base
d l d b i [ b i i ] C f i b
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no outro, pode ser rotulado o b v i a ~ a o[obviation]. Conferir ou recebera s s o c i a ~ O e sde urn contexte para o outro e ma consequencia desse efeito,a qual proponho chamar de objetificafiio. (Meu emprego do termo objetificar [objectifY] aqui e rn tanto fenomenol6gico e se assemelha ao usodo termo objetivar [ objectivate] por Nancy Munn em sua discussao daiconografia walbiri, na qual ela demonstr a como a imagfstica da represent a ~ a owalbiri fornece correlates objetivos para as f o r m a ~ O e ssensuaisda experiencia subjetiva ).'
Uma simbolizas:ao convencional objetifica seu contexto dfspar ao
conferir-lhe ordem e integras:ao racional; uma simbolizas:ao diferencianteespecifica e concretiza o mundo convencional ao t r a ~ a r d i s t i n ~ O e sradicais e delinear suas individualidades. Mas, como a objetificas:ao e simplesmente o efeito da fusao ou obvias:ao dos contextos sobre cada urndeles ( assim como, de fato, os pr6pri os contextos sao meramente delin e a ~ O e sda a u t o a b s t r a ~ a oconvencional) , os dais tipos de o b j e t i f i c a ~ a o
sao necessariamente simulta.neos e redprocos: o coletivo e diferenciadoao mesmo passo que 0 individual e coletivizado.
U rna vez que, dada a natu reza da s i m b o l i z a ~ a oconvencional, o coletivo sempre precisa significar o diferencian te e vice-versa, e uma vez
que, dada a natureza da simbolizas:ao diferenciante, a as:ao de urn modosimb6lico sabre o outro e sempre reflexiva, todos os efeitos simb6licossao mobilizados em qualquer simbolizas:ao dada. mpossfvel objetificar, inventar alga sem contrainventar seu oposto. A p e r c e p ~ a odessefato pelo simbolizador seria, e clara, fatal para a sua intens:ao: enxergaro campo inteiro de uma sO vez, em todas as suas i m p l i c a ~ O e s ,e sofreruma r e l a t i v i z a ~ a oda n t e n ~ a o ,tornar-se consciente de como e gratuitoo papel que ela desempenha na ativas:ao dos sfmbolos. Assim, a maisimperiosa necessidade de a ~ a osob essas circunstincias e uma restrisao
da visao, concentrando a p e r c e p ~ a oconsciente e a i n t e n ~ a odo ator emurn dos modos e em seu efeito.
3· Nancy D. Munn, Walhin Iconography: Graphic Representation and Cultural Symbolism in a
Central Australian society Ithaca/Londre s: Cornell University Press, 1973 p. 221
86 0 poder da invenyii.o
um controle desse tipo e ornecido pela discriminas:ao ideol6gicanitida e compuls6ria entre os dai s modos simb6licos feita em todas ast r a d i ~ O e shumanas. Ou o modo convencional se abstrai como o reinoapropriado a as:ao humana, deixando 0 modo diferenciante como 0reino do dado ou inato, ou ent3o o convencional se abstrai como o inato,designando a diferencias:ao com o 0 modo apropriado a s:ao humana.Em ambos os casos, o peso e a enfase moral diferenciais atribuidos acada urn dos modos servirao para controlar a atens:ao do simbolizador,mascarando-lhes a natureza essencialmente simb6lica e a reflexividadeobviante. C omo veremos, as consequencias e m o t i v a ~ O e sserao muitodiferentes conforme o simbolizador se mova junt o com ou contra asp r e s c r i ~ O e sconvencionais para a a ~ a o ;do ponto de vista do controle edo mascaramento, porem, tudo o que importa eque os dais reinos sejammantidos suficientemente distintos.
Vou me referir ao contexte no qual se concentra a t e n ~ a ode urn simbolizador, independentemente de seu status ideol6gico, como controle oucontexto de controle, pais e esse contexte, e esse modo simb6lico, que controla sua a t e n ~ a oao restringir seu campo de p e r c e p ~ a oconsciente. Voume referir ao modo oposto, aquele que e tornado ou sabre o qual se age,como contexto implicito 0 efeito de mascarar, de restringir a n t e n ~ a oe ap e r c e p ~ a oconsciente do ator dessa maneira, e de envolve-las nao apenasna ~ a oem si mas tambem nos juizos e prioridades do mundo convencional.
Pais o mascaramento nada mais e que o condicionamento de nossaperceps:ao consciente pela propriedade de autoabstras:ao dos sfmbolosconvencionais. Sejam estes empregados para construir urn contexte convencionalmente reconhecido ou utilizados em atos deliberados de obvia~ a o ,os simbolos convencionais est3o lei e seu efeito de distinguir oscontextos, o sujeito do objeto, sera necessariamente parte da a ~ a o ,percebida ou pretendida, conforme o caso. Quando o controle e diferenciante, porem, a s e p r ~ omascaradora dos contextos se manifestaracomo uma intrusao sabre a i n t e n ~ a o ,como um a consciencia culpada,pais a f o r ~ ados atos diferenciantes est
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psicol6gico da simboliza
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ao controlar nossas ac;5es colocamos essas noc;5es em foco, estaremos sob
a ilusao de que o complexo produto de nossa inven9ao euma coisa real.E, em raziio de nosso compromisso com essa coisa, o outro tipo de objetificas:iio que estci em c urso aparecerci, enquanto um consequincia direta
de nossa afao, como urn processo natural, uma consequencia daquiloque somas , de nosso proprio jeito (individual e coletivo) de faze-lo .
Dessa maneira, a objetifica9ao do controle- nesse caso urn contexto
convencional- sera mascarada pela identifica9ao que fazemos de nossas
inten96es com aquele controle. Embora elas sejam tornadas aparentes, enessa medida cn adas como urn contexte cultural, por nossas ac;5es, niio
enxergamos essas caracteristicas pessoais e situacionais como resultado
dessas a96es. Mais do que isso, como a tendencia dessa obje tifica9a o- quee particularizar em Iugar de coletivizar- Yai diretamente contra aquela denossas intenfOes, ela e percebida como uma especie de resistencia a estas.
Enquant o nos esfors:amos para transformar nossas idiossincrasias e nos
sas situas:Oes diversas em algo prOximo a urn ideal social e moral, essasidiossincrasias e situac;5es estao simultaneamente se impondo a esse ideale alterando sua forma e aparencia, criando uma resisttncia a nossas intens:Oes. Mas essa resisttncia tambem tern o efeito de preparar situas:Oes
para coletiviza9ao posterior, ao sempre desfazer parcialmente o que querque tenhamos nos proposto a fazer: ela tern o efeito de motivar nossa coletivizas:ao. Como a reconhecemos como parte de nossos eus naturais ,
ela aparece sob a forma de motiva9ao natural, impulsos sexuais, fixa96es
pessoais, talentos ou propens5es inerentes- aquila que somas e aquila
que fazemos uns aos outros. Por certo, quanta mais agimos de acordo
com nossas intenc;Oes coletivizantes, mais solidamente construimos uma
impressiio dessa resistencia impositiva como uma forf a continua motivandonossa as:iio. Ao inventar coletividades culturalmente prescritas, contrain
ventamos nossa noc;ao de urn mundo dado de fatos e motivac;Oes naturais.Quando eo contexte nao convencionalizado que serve de controle,
o a or enfoca uma articula9ao de coisas que difere em alguns aspecto:;j.asconvenc;Oes correspondentes as expectativas sociais (e marais) . Quando
urn controle particular e selecionado dentre outros possiveis ou permissiveis, 0 constructe de significac;ao que e produzido se torna distintivo
90 0 poder d inYen;iio
e individual. Em vez de coletivizar o individual e o particular, o ator
esci particularizando e diferenciando o coletivo e o convencional. Ele estii.
fazendo as coisas do seu prOprio jeito , seguindo urn curso particular de
a9ao em uma situa9ao (isto e as conven96es compartilhadas da sociedade)que admite cursos alternatives, e assim torna ndo aquila que faz distintivoe individual. Em vez de seguir as regras e dirigir seu foco para a consis
tencia e a coesao, ele est3 deliberadamente testando e estendendo as
regras por meio da construc;iio de urn mundo de situac;Oes e particulari
dades as quais elas se aplicam. Mas uma vez que o contexto de sua a9ao, a
coisa (isto e, reg ras , convenc;Oes) que ele estci diferenciando, i coletivoe convencionalizado, a construc;ao resultante irci incluir caracteristicastanto convencionais como niio convencionalizadas (particulares). Ela sed
parecida com a sua intenc;iio em certos aspectos e diferen te de tal inten-9 -o em outros. A seus olhos, o ator tera conseguido em alguma medida
diferenci ar o context e de sua as:ao, transformando uma linguagem ouurn cOdigo social co mum em sua expressao, po ema ou festa singular. Ele
ted recriado e estendido urn contexte convencionalizado de forma individual, transformando-o em sua vida ou em seu tipo de vida. Mas
tambem tera, em alguma medida, recriado e difundido urn contexte nao
convencionalizado ( seu prOprio jeito de escrever urn poema ou de dar
uma festa) de forma coletiva ou convencional. E o mascaramento queacompanha sua a9ao terii. como resultado o fato de que ele decerto vera
de maneiras diferentes esses dais tipos resultantes de objetifica9ao.Suponhamo s que em vez de tratar minha esposa como urn marido
deve tratar eu decida agir como urn homem , diferenciar minhas
a96es das a96es dela com base em urn modelo qualquer de masculinidade.No context e de nosso casamento, com todos os seus arranjos e expectati
vas convencionais, tentarei conscientemente tornar aquila que fac;o dife
rente daquilo que ela faz, e com isso criar minha individualidade como
pessoa e como homem. (N a vida da classe media norte-americana isso
decerto seria visto como alga forc;ado e nao natural, j
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coisas de mulher ), busco deliberadamente criar as fatores pessoais esituacionais que cercam nosso casamento. Minha esposa pode ou n3o
assentir a esse programa, mas quer ela tente frustradamente coletivizar,quer procure atuar como "mulher" diante do meu atuar como "homem",
eu hei de conseguir diferenciar. N a medida em que eu for bem-s ucedido,transformarei urn casamento em uma n t e r a ~ a oentre indivfduos. Como
estou controlando minha a ~ a ocom urn padrio contextual especifico em
mente, estarei sob a ilusao de que o complexo produto dessa i n v e n ~ a oeuma transformac;.ao real. E, em virtud e do me u compro misso com essa
transformas:ao, o outro tipo de objetificas:ao que est3 em curso, a coletivizac;.ao de meu controle diferenciante, aparecer£ para mim como algaimpasto de fora, urn dado que nao faz parte de minha intenc;.ao.
Sem dllvida, eu contrainventarei o cont exte coletivo de nosso casamento no prOprio ato de me individualizar contra ele. E como estou
tentando diferenciar, criar minha individualidade, essa contrainvenc;ao
coletivizante seri percebida como uma espf cie de resist&ncia as minhasintenc;Oes urn fator motivador que continuamente "dispOe as coisas" para
novos atos d e diferenciac;ao. Mas nesse caso nao posso atri buir a forc;amotivadora ao meu ~ e unatural", pois as convenc;Oes de minha cultura me
ensinam que OS "dados" naturais sao individuais e particu}arizantes, ao
passo que essa motivac;ao e social e coletivizante. Assim, embor a a motivac;ao seja efetivamente criada e tornada visivel no decorrer do controle,
as tipos de o b j e t i f i c a ~ a oa que ela leva nao sao considerados "normais"em minha cultura, mas patol6gicos. Eu os percebo como "compulsOes"
vagas, inexplic3veis, que i ncidem sobre a minha ativi dade e me forc;ama diferen ciar cada vez mais. N a medid a em que depend a de con roles
nao convencionalizados, irei perceber (e contrainventar) minha cultura
como uma compulsao nesse sentido. Se eu vivesse em uma cultura emque controles nao convencionalizados fossem considerados normais, per
ceberia essa compulsao coletiva como minha alma . Se eu fosse urn
criminoso nessa sociedade, sua importunac;ao patol6gica me l v ~ ~acometer crimes cada vez maiores. Mas sou apenas urn acad&mico ino-fensivo, com uma cultura obsessiva que deseja liberar-se ao ser escrita
em mais e mais livros.
92 0 poder da inven Cio
Entre OS dais tipos de j 0 mundo inteiro e nventado urn de seus aspectos motivando o outro e vice-versa. Mas nisso cumpre urn
papel importante a questao de saber qual dos tipos de o b j e t i f i c a ~ a oe onsiderado o meio normal e apropriado para a a ~ a ohumana ( o reino do
artificio humano) e qual ecompreendido como funcionamento do inatoe do dado . Isso define a forma aceita e convencional da ac;ao humana,
o modo co mo o ato r interpreta e experiencia o controle e suas ilusoes, e
assim tambfm define que coisas e que experi&ncias devem ser vistas comoanteriores as suas ac;Oes e n o como resultado delas. Podemos denominar
essa orientac;ao coletiva de "mascaramento convencional" de uma culturaparticular. Na moder na Cul tura da ciencia e do empreendimento coletivo
da classe media norte-americana, com sua enfase no acllmulo progressive e artificial de formas coletivas, o mascaramento convencional equi
vale ao entendimento de que o mundo do incidente natural (a soma de
todos OS conteXtOS nao convencionalizados) edado e inato. J i no mundodos Dari bi e do povo de Yali, com sua enfase na prioridade das r e l a ~ e s
humanas, e mundo incidental dos controles nao convencionalizados queenvolve a ~ a ohumana, ao passo que a r t i c u l a ~ a odo coletivo e objetoda contrainvenc;ao e do mascaramento convencional.
A cultura de Yali e a cultura dos Daribi sao inatas e motivadoras:elas "querem ser" estendidas e diferenciadas por oposic;ao; faz parte deseu car
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, p q
a ordem de controle culturalmente apropriada: a diferencias:ao deliberada que ocorre na Cultura norte-americana e a coletivizac;ao que ternIugar na Nova Guine? U na vez que essas inversOes contrariam a criac;aode motivac;5es ordinciria, nao podemos atribuf-las as ilus5es do mascaramento convencional. Elas sao na verdade uma especie de "desmas
caramento , fazendo aquilo que ordinariamente nao se pode fazer; e,
conquanto criem sua prOpria motivac;3o sob a forma de compulsao, oimpeto para tal reversao da ac;;3o permanece par explicar. Se puder
mos explid.-la, isso talvez nos ajude a en tender por que os modos de as:ao
convencionais e as ilus5es que eles criam permanecem convencionais.
Pois a afirmas:ao de que as as:oes criam suas pr6prias motivas:oes nos dizpouco, na verdade, sabre o modo como esse estado de coisas veio a se
estabelecer ou sobre para onde ele esta indo. A existencia de urn modo
de ac;ao convencional e de mascaramento pOe urn problema que n3o podeser solucionado apenas pela nos:ao de controle, e esse problema e o da
necessidade da invens:ao.
NECESSIO DE D INVENC o
Os contextos de cultura sao perpetuados e estendidos por atos de objetifi
cac;ao pel a sua invenc;ao uns p rtir dos outros e uns por meio dos outros Issosignifica que nao podemos apelar para a fors:a de algo chamado "tradis:ao",
"educas:ao" ou orientas:ao espiritual para dar conta da continuidade cultura l - ou, na verdade, da mudans:a cultural. As associas:oes simb6licas que
as pessoas compartilham, sua "moralidade", "cultura", "gramatica" ou
"costumes", suas t r a d i ~ O e s ,sao tao dependentes de continua reinvens:ao quanto as idiossincrasias, detalhes e cacoetes que elas perceb em emsi mesmas ou no mund o que as cerca. A i n v e n ~ operpetua nao apenas as
coisas que "aprendemos", como a lingua ou boas maneiras, mas ~
as regularidades de nossa e r c e p ~ a o ,como core som, e mesmo o tempo e
o espas:o. Uma vez que o coletivo e convencional s6 faz sent ido em relas:ao
ao individual e idiossincnitico, e vice-versa, contextos coletivos s6 podem
94 0 poder da invenpio
ser retidos e reconhecidos como tais ao ser continuamente filtrados atravesdas malhas do individual e do particular, e as caracteristicas individuaise particulares do mundo s6 podem ser retidas e reconhecidas como taisao ser filtradas atraves das malhas do convencional. Ordem e desordem
'conhecido e desconhecido, a regularidade convencional e o incidente que
desafia a regularidade estao atados entre side maneira inata e estreita sao'
funs:oes urn do outro, necessariamente interdependentes. Nao podemosagir sem inventar urn por meio do outro.
Se a invenf o e assim de importclncia crucial para a