sofia torres a caligrafia da paisagem
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revista visuais: :: nº 11, v. 6. ::: 2020
A caligrafia da Paisagem: a essência da linha oriental Na pintura de Domènec Corbella
Sofia Torres Portugal. Investigadora Integrada i2ADS - Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade Professora Auxiliar na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto. [email protected]
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AcaligrafiadaPaisagem:aessênciadalinhaorientalnapinturadeDomènecCorbella ResumoEste trabalho pretende fazer uma análise sobre a presença e evolução da linhacaligráficaorientalnotrabalhodeDomenecCobella,emespecífico,dassuaspinturasdepaisagemrealizadasentre2003e2012(fasesEspíritoEssencialeEspíritoZen).Apartir de 2003, com o início da etapa Espírito Essencial (2003-2006) a paisagemassume-se como tema principal na obra pictórica deste artista. Nos trabalhosdesenvolvidos ao longo deste período, observa-se uma crescente sintetização doselementos que formam o quadro, assim como o início da aplicação da linha comoelementomodeladorentresignoesignificado,numaepitomedepuradadoselementosquecompõe.Essadepuraçãoélevadaaoextremonafaseseguinte,intituladaEspíritoZen (2007-2012) onde se observa um encadeamento na procura da essência doselementosarepresentar,numaespéciedesintetizaçãoformaldosprincípiosexternosdapaisagem.Alinha,ouotraço,transformam-senamatériaqueconduzauniãoentresignoesignificante,entrepinturaecaligrafia,entreformaemancha,ideiapartilhadapeloPrincípiodaPinceladaÚnicadeShitao.Palavras-chaveCaligrafia,DomènecCorbella,Shitao,filosofiaoriental.Caligrafíadepaisaje: laesenciadela líneaorientalenlapinturadeDomènecCorbellaResumenEstetrabajopretendeanalizarlapresenciayevolucióndelalíneacaligráficaorientalenlaobradeDomenecCobella,enparticular,desuspinturasdepaisajesrealizadasentre2003y2012(fasesEspíritoEssencialyEspíritoZen).Apartirde2003,coneliniciodelaetapadelEspírituEsencial(2003-2006),elpaisajeseconvierteeneltemacentraldelaobrapictóricadeesteartista.Enlostrabajosdesarrolladosduranteesteperíodo,seproduceunasíntesiscrecientedeloselementosquecomponenelcuadro,asícomoeliniciodelaaplicacióndelalíneacomoelementomodeladorentresignoysentido,enunepítomedepuradodeloselementosquelocomponen.Estadepuraciónsellevaalextremoenlasiguientefase,tituladaEspíritoZen(2007-2012),dondehayunvínculoenlabúsquedadelaesenciadeloselementosarepresentar,enunaespeciedesíntesisformaldelosprincipiosexternosdelpaisaje.Lalínea,olalínea,seconvierteen el material que conduce a la unión entre signo y significante, entre pintura ycaligrafía, entre forma y mancha, idea compartida por el Principio Único de laPinceladadeShitao.PalabrasclaveCaligrafía,DomènecCorbella,Shitao,filosofíaoriental.
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Landscapecalligraphy:theessenceoftheorientallineinDomènecCorbella’spaintingAbstractThisworkintendstoanalyzethepresenceandevolutionoftheorientalcalligraphiclineintheworkofDomenecCobella,inparticular,ofhislandscapepaintingscarriedoutbetween2003and2012(phasesEspíritoEssencialandEspíritoZen).From2003,withthebeginningoftheEssentialSpiritstage(2003-2006), landscapebecamethemainthemeinthisartist'spictorialwork.Intheworksdevelopedduringthisperiod,thereisanincreasingsynthesisoftheelementsthatmakeupthepicture,aswellasthebeginningoftheapplicationofthelineasamodelingelementbetweensignandmeaning,inanepitomepurifiedoftheelementsthatitcomposes.Thisdebuggingistakentotheextremeinthenextphase,entitledEspíritoZen(2007-2012),wherethereisalinkinthesearchfortheessenceoftheelementstoberepresented,inakindofformal synthesis of the external principles of the landscape. The line, or the line,becomes thematerial that leads to the union between sign and signifier, betweenpaintingandcalligraphy,betweenformandstain,anideasharedbytheShitaoUniqueBrushStrokePrinciple.KeywordsCalligraphy,DomènecCorbella,Shitao,orientalphilosophy.1.DomènecCorbella:breveapresentação:DomenecCorbella(1946)éumpintor,investigador,catedráticoeProfessorEmérito
daUniversidadedeBarcelona.
Oseu interesseepreocupaçãopelaestéticaorientalmanifesta-seapartirde1988,
aquandoaapresentaçãodeumprojetode investigaçãopara concorrerao lugarde
Professor de pintura na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Barcelona,
baseadonainter-relaçãoeinterculturalidadepictóricaentreoOrienteeOcidente.
NaFaculdadedeBelasArtes,lecionoudiversoscursosdeDoutoramentodedicadosao
Espírito na pintura, com o objetivo de conscientizar sobre o fenómeno espiritual
implícitonapintura.
Desde 2011 e dentro do Mestrado de Criação Artística Contemporânea, criou o
LaboratóriodePinturaCognitiva,ondeliderouumasériedeexperiênciascognitivas
multidisciplinares,entreelesquealgumasmotivadasefundamentadasnaculturae
estética oriental, após a presença de estudantes da Ásia, e que apresentou em
diferentesuniversidadesnaformadecursosecongressos:UniversidadedeGranada
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(2013); National Chiao Tung University de Taiwan (2014), Institut Seni Indonesia
Denpasar,GreenSchooldeBaliIndonesia(2015),assimcomonaUniversidaddoPorto
enaUniversidadedeSonora(México)(2017).
Todaesta sériedeatividadeseexperiências feitasao longodosúltimosdozeanos,
tornoupossívelasuareafirmaçãopelosprincípiosdaestéticadapinturaorientalde
uma formanatural, e, por convicção, tem vindo a desenvolver e observando a sua
presença no seu trabalho pictórico, até concretizar uma exposição individual em
LiangzhuCenterofArtsdeHangzhouem2017.
No contexto de uma primeira observação, há que realçar a importância de que a
maioriadasfasespelasquaisopercursoartísticodeCorbella,sãodenominadaspor
Espírito. Espírito existencial, Espírito Informalista, Expressionista, Mediterrâneo,
Intimista,Essencial,epor fim,EspíritoZeneTao.Apenasporestanomenclatura, é
visívelaimportânciadacomponenteespiritualdentrodotrabalhodesteautor,algo
inéditonocontextodapinturaeuropeianadécadade60/70(alturaemqueiniciao
períododoEspíritoexistencialista)equedemonstraaimportânciadeumaarteque
vai para além da representação mimética da realidade, assim como para além da
apresentação de uma ideia. O Espírito na pintura, vai para além da exposição do
conceito,inicia-senopensamentoqueantecedeàpinturaenaconsequenteprojecção
epassagemdaideia,paraopunho,pincel,tintaesuporte.Impregna-sedapresença
individualdoautor,nãoapenasaníveldepensamento,mastambémparalelamentedo
“soprovital”,doprincípiovitaldoartista,algoqueéumacaracterísticaessencialna
pinturaoriental.
Atinta,aoimpregnaropincel,devedar-lhesoltura;opincel,aousaratinta,devedotá-ladeespírito.Asolturanoempregodetintaéumaquestãodeformaçãotécnica;Aespiritualidadedopinceléalgovital.(Shitao,2012,p.70)1
1 Tradução livre do autor, no original: “La tinta, al impregnar el pincel, debe darle soltura; el pincel, al utilizar la tinta, debe dotarla de espíritu. La soltura en el empleo de la tinta es cuestión de formación técnica; la espiritualidad del pincel es algo vital.”
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O conceito de Shitao apresenta-se aqui comoumanoção que destila e sintetiza os
princípiosdafilosofiaestéticachinesa,equepropõeumentendimentofilosófico,ético,
técnicoeestéticosobreapinturaesobreaactividadedopintor.
Nesse sentido, é clara a importância da passagem do “espirito do pintor” para a
pintura,comoelementovitalparaaproduçãoda"obraverdadeira”.
Noentanto,nãosetrataaquidetentaranalisarapresençadoOrientenotrabalhode
Corbella,massim,deproporumareflexãosobreapresençaeevoluçãoda“forma”da
linha na sua pintura, e da passagem do desenho para a caligrafia na construção
pictóricadaobra.
2.Obrapictórica1969-2003
OtrabalhopictóricodeDomenecCorbellainicia-seemmeadosde1969(iníciodafase
Espírito Existencial), no entanto, esta apresentação focar-se-á unicamente emdois
períodos-a fasedoEspíritoEssencial(2003-2006)ea fasedoEspíritoZen(2007-
2012).Estaselecçãodeve-seaofactodetersidoapartirdessafasequeapaisagem
tomoulugarcomotemáticasoberananotrabalhodeCorbella.
Nos períodos do Espírito Existencial (1969-74) e Informal (1975-84) a figura
humanaéatemáticaprincipal,possivelmentedevidoaoscontextosecondicionantes
impostaspelaformaçãoacadémicadaépoca,masondeéevidenteumapresençade
um gesto vigoroso, que anacrónicamente se transformaquer emmancha,quer em
linha,numasimbioseentre formae fundo, ondeo corpo aparecenumaexploração
táctilsobreaamplitudedosofrimento,eangustiadaexperiênciahumana,própriodo
movimentoexistencialista.
Apartirde1985,nafasedoEspíritoExpressionista(1985-1990),compostapelas
sériesPaisajesantrópicos,Lectores,Figurasyacentes,Torsos,Damas,Deleites,Besosy
Retratosimaginários,apresençadafigurahumanamantêm-se,masnascedeumanova
experiênciacriativa,ondeacorpredominacomoelementoessencial,eondeimpera
umasensualidadelatente.EmEspíritoMediterrâneo(1991-1996)todootrabalho
éumaodeaoespíritoeàculturagreco-romana,assimcomoàambiênciadaspaisagens
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quecompõeestelugar.Nofinaldosanos90surgeEspíritoIntimista(1997-2002)que
contacomassériesNaturesMortes,Flora,Fonts, Jardins,Arbres,Barques,Terrasses,
Piscines,Palmeres,Enrajolats,Conreus,LaValldelCorb.
ÉespecialmentenasérieNaturesMortes(fig1),quesecomeçaaobservarapresença
deumalinhacaligráficasoltaefluidaquedefineparcialmenteosobjectos,umasvezes
mais intensa, outras dando lugar à mancha como forma de construção formal. O
registodopincel,élímpidoeplenodesubtis,mascomplexasvariaçõesquerelembram
oprincípiodacomplexidadedobinómioentremãoepincel,apresentadoporShitao:
Háquetrabalhardeixando“vazio”esoltoopulso,eotraçodopincelserá capazde buscarmetamorfoses. Que o pincel seja incisivonassuasacometidasenosseusfinaiseaformaserácorrectaenítida.(…)As variantes do pulso permitem efeitos de um natural pleno deabandono,assuasmetamorfosesgeramoimprevistoeoestranho;assuasexcentricidadesfazemmilagres,equandoopulsoéarmadopeloespírito,osrioseasmontanhasdoamasuaalma. (Shitao,2012,p.78)2
Noentanto,éapartirdapróximafasequealinhasecomeçaaassumircomoelementoprimordialcomodefinidordoselementosdoquadro,eondeatemáticaseconcentranapinturadepaisagem. 2.1.EspíritoEssencial(2003-2006)Comofoireferidoanteriormente,éapartirdoperiodoEspiritoEssencial(2003-2006)
queapaisagemseassumecomoelementoprincipaleprimordial,ondeseencontram
assériesPaesaggiRaffigurati,PaesaggiToscani,PaesaggiSereniePaysagesEssentiels.
Essencialéotermoidealparaenquadrarostrabalhosdesenvolvidosaolongodeste
período.Tudoaquiloqueéacessório,tudoaquiloqueéumcomplementoaocernedo
temaarepresentar,édeixadodeparte,eagénesepictóricaassume-seemsi,numa
destilaçãodeformas,fundo,coresedetons.Apaisagemtransubstancia-seemsignoe
2 Tradução livre do autor, no original: “Hay que trabajar dejando “vacia” y suelta la muñeca, y el trazo de pincel será capaz de bruscas metamorfosis. Que el pincel sea incisivo en sus acometidas y en sus finales y la forma será correcta y nitida. La firmeza de la muñeca permite al pincel tomar peso para penetrar más profundamente; la ligeireza de la muñeca hará volar y bailar al pincel con viva despreocupación; la muñeca rigurosamente derecha hace trabajar al pincel por la pinta, se inclina y el trabaja al sesgo; la muñeca acelera su impulso y la pincelada adquiere más fuerza; de la lentitud del pincel nacen las curvas sabrosas; las variantes de la muñeca permiten efectos de un natural lleno de abandono, sus metamorfosis engendram lo imprevisto y lo extraño; sus excentricidades hacen milagros, y cuando la muñeca está armada por el espíritu, rios y montañas hacen don de su alma.”
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significado.Alinhaassume-sesoberananumaepitomedepuradadoselementosque
compõe. Os fundos metamorfoseiam-se numa aparente monocromia, mas que de
simples nada contém, pois na sua complexidade tonal conferem à composição um
estadodeprofundidadeoculta,desilêncioemeditação,numapinturaquetranscendo
oslimitesdoespaçovisual.
EmPaesaggiToscaniéaindavisívelumadelimitaçãodoespaço,emtrabalhoscomo
CastelnuovoBerardengaouPieveaPresciano(figuras2e3)ondeossulcosdaterrasão
formados por linhas - esgrafitadas ou desenhadas - deixando antever camadas
inferioresdotrabalhocomosenumaalegoriaàprópriaterra-nasuacomposiçãopor
estratos - num registo multiforme e complexo, mas simultaneamente fluido e
ondulante,remetendoparaobinómioentreterra/água,montanha/mar.
Essarelaçãoentreágua/montanha,consistenumelovitaldentrodafilosofiachinesa.
A própria palavra “paisagem” em chinês expressa uma união dialéctica e não
disjuntiveldedoiscomplementosopostos:“montanhaserios.”
EmVolterra(figura4),observa-seclaramenteessadualidade:duasárvores,verticais,
erguem-sesobreumailhaazulàvoltadeummardeterraocre.Éafluidezedirecção
ondulantedaslinhasaliadaaoseuvalorcromáticoqueinduzemàlatênciadobinómio
entreYineYang,aterraéáguaeaáguaéterra.Oqueobservamos,éumapinturacuja
fontedeinspiraçãoéapaisagem,mascujoresultadoéumainterpretaçãopessoalda
imanênciadamesma,ondeoessencialnãoéarepresentaçãopaisagística,massima
captaçãoeexteriorizaçãodasuaessência:"AMontanhaéoMareoMaréaMontanha.
MontanhaeMarconhecemaverdadedaminhapercepção:tudoresidenohomempelo
livreimpulsodopinceledatinta.”(Shitao,2012,p.122)3
Torna-setambémcadavezmaispresenteorecursoàinclusãodetrês,cincooudez
elementos,segundoaspalavrasdoautorafasedoespíritoessencial:
Éumapinturadepoucoscontrastes,éumapinturaemqueháumasinfoniadecor,éumapinturamelódicadeforma,éumapinturaemque é visível oupatente esta ideiadoWa japonês - quequerdizerharmonia.Porexemplo,nestesquadrosháumacoisamuitooriental
3 Tradução livre do autor, no original: “La Montaña es el Mar y el Mar es la Montaña. Montaña y Mar conocen la verdad de mi percepción: todo reside en el hombre por el libre impulso del solo pincel y de la sola tinta.”
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quesecumprenaregradoscinco,cincoárvores,cincofiguras,porqueonúmerocincoéumaconcepção,éaquepareceserqueanossaretinaqueconseguecontrolarnasuaplenitude,apartirdecincoelementoscria-seumacertaconfusãoquepodechegaraocaos.(Torres,2018)
Em trabalhos comoBaccaiano (Montespertoli), Alberese (Grosseto) ou Val d’arbil 2
(figura5)encontramosexactamenteessasituação,árvoresemgruposdetrêsoucinco
elementos, emqueatravésda linhaedogestoseencontramemplenomovimento,
como se tocadas pelo vento. Através da paleta de cores, inferem-se numapose de
complacênciaelanguidezsobeumimperiososolmediterrânico,elementossingulares
quepelasuaessênciaesubtilezasetransformamerepresentamumtodoabsoluto,o
totaldapaisagem,enãooenquadramentodeumfragmento.
Nesta fase, pode ser dito que apesar da temática ser claramentemediterrânica, o
espíritoqueacompõeéoriental.
Nãoobstanteapresença deumapaleta de cores quentese luminosas, e apesar da
representaçãodevastoscamposagrícolas,ciprestesevinhastípicasdeumapaisagem
mediterrânea,oespíritoqueasanimaéodeumsilencioecontemplaçãomeditativo
deessênciaoriental.
EmtrabalhoscomoCastellinainChianti(figura6)árvoreseramostransformam-seem
caractéresnumaténueindistinçãoentresímboloegrafismocaligráfico,entresignoe
significante.
Acor,sugereotempoeolugar;alinhasugereopormenor;adisposiçãodoselementos,
transformaapinturaemlocaldecontemplaçãoperanteaimensidãoeinfinitudeda
natureza.
QuandoShitaoapresentaaideiadaPinceladaÚnica,como“(…)aorigemdetodasas
coisas,araizdetodosos fenómenos(…)”(Shitao,2012,p.27)nãoserefereapenas
concretamenteaotraçodopincelemsi,massimaumsistemadeideiasqueprocura
reflectir sobre uma dimensão universal, numa espécie de paralelismo com os
princípiosdopensamentotaoista,ondeéosimpleseomaishumildequeconstituia
baseefontedecompreensãoedomíniouniversaldosfenómenos.
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Contemplando essa acepção numa união entre prática e conceito, entre fazer e
resultado,otraçodopinceléaorigemeprincípiodequalquerpintura;notraçodo
pincelestáconsubstanciadooespíritodopintor, eénomaissimples,numsimples
traço, que pode estar contida a essência da reprodução de um lugar, de um
pensamento,deumobjectooudeumelemento.
OprincípiodaPinceladaÚnicanãoconsideraapenasoregistográficodopincel,eda
suauniãocomacaligrafia,mastambémoconteúdodasuarepresentação,omodode
depuraçãoetransformaçãodaessênciadarealidadeparaarealidadedapintura.Éum
princípiodedepuraçãodoessencial:aessênciadoregistoentrepulso,pincel,tintae
traço,eaessênciadopensamentodopintor,nasuatransformaçãoeinterpretaçãoda
realidade.
Nesta etapa do Espírito Essencial da obra de Corbella, é fundamentalmente esse
princípiodaprocurapelaessênciadorealqueétransmutadaemlinha,manchaecor
quesetransfiguraempinturascomoVitinelChiantiinAutunno,ArbredaDauradaou
aindacomoemRignanosull’Arno(figura7).
Apaisageméreduzidaàsuasubstânciapura,ascamadassobrepostasdetintacomo
osestratosdaterra,eaharmoniadacoraportaaatmosferadolocal,enquantoquea
linhaquedefineoselementosédepuradaaoníveldosignoelementardosmesmos,
comoqueemcaractéresaparentementerepetidosaolongodaimagem,masondecada
ummantémasuaindividualidadeeessência,análogaaoservivoquerepresentam.
Essaprocurapelaessênciaacimadarepresentaçãoévisívelnumtextopublicadoem
2008, relativo à exposição Paysages essentiels, realizada na Galerie d’Art
ContemporainedelaUniversitédeToulouseleMirail:
Assim,naminhaopinião,apinturaéumatodeinteriorizaçãoeumdiálogo permanente com o eu, com a ideia, com o propósito ou aintençãoeoselementosconfiguradoresquetornampossívelaideiavisívelatravésdapintura.(...)Observa-se,portanto,queaverdadeirapintura surge como um ato criativo fruto de uma atitude ativa ecognitiva.(...)apinturaverdadeiramentecriativanãoestáapenasnoexteriorouforadoindivíduo,masnoseuinterior,dependendodosseusníveiscognitivosdarealidade.(Llobet,2012,p.91-93)
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Neste pequeno excerto, é manifesta a importância dada ao acto criativo do “fazer
pintura”,acçãoquepartedeumainterpretaçãoporviadoespírito/ídeiadopintor,do
“acto de interiorização” face à realidade que o rodeia. É um princípio de
posicionamento face à pintura, cuja “verdadeira pintura” será um apotegma de
depuraçãodoessencial: a essência do registo entre pulso, pincel, tinta e traço, e a
essênciadopensamentodopintor,nasuatransformaçãoeinterpretaçãodarealidade.
Apinturanascedointelecto,ouseja,éumactodeinteriorizaçãoediálogocomo
próprio,ehavendoumavisãoclarasobreoobjectivoapintar,umaideiaclarasobreo
propósitoouaintençãodoselementosconfiguradoresdapintura,torna-sevisívela
ideiaatravésdapintura,ouseja,semprequeseformaumavisãoclaranoespírito,o
pincelchegaàessênciadoselementosarepresentar.
RelativamenteàsériePaysagesEssentielsencontra-setambémumareferência
directadoartistaemrelaçãoàestéticaoriental,comosepodevernoseguinte
parágrafo:
Graçasaumacertaaproximaçãoàarteoriental,descobriaverdadeirapaisagem. Nessa estética, a paisagem sempre foi muito maisimportante do que o próprio homem. Também pude notar que ohomem que busca a natureza original precisa ir ao encontro dasárvores,dosprados,dosvalesedasmontanhas,eprecisamentedestemodofuiadquirindoumavisãomacrocósmicadapaisagem.(Llobet,2012,p.94)
Essavisãomacroscósmicadapaisagemestádirectamenterelacionadacomaprocura
doessencial,comaimportâncianãodarepresentaçãooudescriçãodarealidadeemsi,
masdabuscapeloritmovitaldoselementosqueoartistadeverefletirnapintura.
2.2.EspíritoZen(2007-2012)Como num encadeamento lógico desse animo de depuração e essencialismo do
espíritoda criaçãoartística,os trabalhos realizadosapartirde2007encontram-se
intituladosdeEspíritoZen.
Aqui, o interesse pela estética oriental é claramente assumido, em pinturas
meditativas, e de contemplação face à paisagem, onde “(…) os resultados tornam
evidentes os limites dessa interpretação, bem como os limites da imanência
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correlacionados com a transcendência.” (Museu Virtual, Universitat de Barcelona,
2019)
Éapartirdestaalturaatéaopresentequealinhaseassumecomoelementosoberano
nãoapenasdentrodacomposiçãopictórica,mastambématravésdassuasmúltiplas
variaçõescomoelementoformal,assimcomoprincípiovitaldalógicaconstrutivada
captaçãodapaisagem.
Trabalhos como Desert de Nabibia (figura 8) e Desert del Sahara demonstram
precisamente esse caracter de uma consubstanciação total da linha enquanto
elementoagregadordeforma,composição,espaçoeacção,sugerindoumanarrativa
intrínsecaàpaisagemdodesertomaisalémdasuamerainterpretaçãoformal.
Alinhaconstituiumdoseixosfundamentaisdestapintura.Alinhaésagrada, como as letras; desenha glipticamente, como o buril nagravura,umsulcodeixaentreverosestratosdecorinferiores.Semlinha, não haveria horizonte, nem cultivo, nem os perfis dasmontanhas. A linha delimita, modela e projeta, limita e propaga,constróiedeforma,modelaeconferetipograficamenterelevoeritmoaocampovisualpictóricodapaisagem.(Llobet,2012,p.86)
Estas são pinturas que fazem lembrar o princípio da captação e da interpretação
atravésdalinhaemdirecçãoaumasintetizaçãocontinua,naprocuradaessênciadas
formasedoespíritodoselementosqueascompõem.TalcomorefereHenryMichaux:
“Captar abstraindo-se cada vez mais, captar a tendência, captar a acentuação, a
velocidade, o espaço.Captar o queestáatrás (…),” (Michaux,2006,p.120) eonde
“captar”sobreaformadelinha/traçosarealidade,setransformademodoequivalente
a uma tradução do real, “(…) e tudo é tradução, em qualquer nivel, em qualquer
direcção.”(Michaux,2006,p.120)
Naestéticaorientalalinhaapresenta-sesemprecomoumelementounificadorentre
pinturaecaligrafia.ShitaonoseutratadosobrearegradaPinceladaÚnicadedicaum
capítulo exclusivamente ao princípio da união entre a pintura e a caligrafia,
apresentando-ascomodisciplinasdistintas,mascomumamesmaessência, eonde:
"(...)APinceladaÚnicaéaraizeaorigemimaculadadacaligrafiaedapintura.Ambos
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sãoaaplicaçãovariávelaposterioridaPinceladaÚnica.(...)Éporissoqueminhateoria
abarcatambémacaligrafia.”(Shitao,2012,p.149)4
Dentrodaestéticacaligráficaoriental(princípioqueseencontrasumariadonotratado
deShitao)tambémdescrevecompormenoravariedadedeefeitosquepodemadvir
da complexidade do traço do pincel, e sobre o modo de como essa mesma
complexidadequandoaplicadacomconsciênciaeanimadapelo“espiritodopintor”
conseguetraduziraverdadeiranaturezadaquiloqueseencontraarepresentar.
EmpinturascomoElvent(figura9)múltiplosedistintosregistoslinearesrecordam
este tipo de deambulações sobre o traço do pincel, perambulações entre traços
incisivos/suaves, entre movimentos rápidos/lentos, entre grosso/fino,
vertical/horizontal-sugerindoasdiferentesposiçõesdopulso-eentreoespaçoda
forma e fundo, onde a linhaaporta ambas as significações, onde “atravésdas suas
metamorfoses cria o imprevisto e o estranho” sugerindo vento, mas indiscernivel
tambémdaspolaridadeságuaemontanha,céu(vento)terra(sulcos).
Quandoquestionadoacercada importânciadacaligrafianoseu trabalho,Domenec
Corbellarefereque:
Sempreme interessouacaligrafia, (…)empequenoensinavam-noscaligrafia,etentosempreescrevercomumacanetaestilográficaoucomumaparooupenas,poispensoqueotraçoéorastodirectoeoquedecorredapulsãodocorpoedaalma,eporissoparamimpassardo traçodacaligrafiaao traçodopinceléomesmo(…)Paramim,linha caligráfica ou linha pictórica são praticamente o mesmo.”(Torres,2018)5
Mas para além da linha presente na caligrafia e na pintura partilharem o mesmo
sentido,estamanifesta-setambémcomoumprincípiodoentornomentalquepropicia
eorganizaoactocriativodofazer-pintura,talcomoédescritopeloautor:
Basicamente, simplificando muito, existem como duas correntes,duasmaneirasdefazer,deexpressar,e,portanto,poderíamosdizer
4 Tradução livre do autor, no original: “(…) El Trazo Único de Pincel es la raíz y el origen prístino de la caligrafia y de la pintura. Ambas son la aplicacion variable a posteriori del Trazo Único de Pincel.” Por eso mi teoria abarca también a la caligrafia.” 5 A título de curiosidade, o Corbella também refere: “(…) os meus amigos dizem que quando escrevo parece que pinto, a caligrafia torna-se cada vez mais ilegível pois deixo fluir o lápis ou pena e parece que estou a pintar.” (Torres, 2018)
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queexistemduastipologiasdepintores:osqueusamalinha,portantopintoreslineares,elogoospintoresqueusamamancha.PorexemploMiródiziaqueasmanchas-asmanchasdamesadetrabalho,dochãodoestúdio-oprovocavamaentrarnapintura.IstonãoquerdizerqueMirófoiumpintorunicamente“demanchas”,poispensoqueMiróeraumpintorque combinavamuitobema linha e amancha.Masporexemplo, o caso de Picasso em particular, penso que foifundamentalmenteumpintordelinha(…).SeMiróentranapinturaatravésdamancha, eunecessitode anotar, de esboçarde verificarsobreopapelondemepossomover,utilizandoaslinhasdodesenho(…).”(Torres,2019)
Neste pequenoexcerto é claramente visível a importância da linha comoponto de
partida para a criação e posterior construção dos elementos empintura, onde nas
últimasfasesdotrabalhodeCorbellaseencontracomocomponentefundamentalna
passagem da ideia/espirito para a pintura. Não se quer com isto dizer que outros
elementos pictóricos como cor, luz, forma, textura, sejam desvalorizados, pois
encontram-se presentes nas suas pinturas de forma harmoniosa e sabiamente
colocadasemuníssonocomtodootrabalho.
Quer-sedizersim,quenumpercursoartísticoemquesedenotaprogressivamentea
procuradeumaessência,deumadepuraçãodoselementosexternosdapaisagemaos
elementosinternosdoespiritoqueacompõe,aofazerumparalelismocomaestética
oriental da busca do Uno - no qual são os elementosmais simples que abarcam a
essênciadotodo,ondearegrasefaznaconquistadanãoregra-o“traço”éoelemento
primordial que contem já em si um principio sumário e sinóptico a vários níveis,
(considerandoaacepção-ponto,linha,plano-ondeopontoéaorigem,ealinhanão
passadeumasucessãodepontos,masqueéoprimeiroelementodefinidordaforma).
Decertomodo,alinhaemsi,éjáumaabstracçãodarealidade,poisasformas-uma
árvore,umafolha,umbanco-nãocontemlinhas.Alinha,éumaformaçãocerebrale
visualdadelimitaçãodeumaformaquesepretenderepresentar.Umtronco,écircular,
mas numa representação bidimensional é interpretado por linhas externas que
interpretam a sua delimitação espacial. Assim, em relação a outros elementos
pictóricos comomancha, cor, luz, ou textura, a linha pode ser entendida comoum
elementoderepresentaçãoeinterpretaçãovisualdarealidadecomcaracterísticasde
teormaissincréticoesintético,emrelaçãoaosdemais.
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Estaideia,vaideacordocomojáreferidoanteriormentePrincipiodaPinceladaÚnica,
naqualesta“(…)éaorigemdetodasascoisas,araizdetodososfenómenos.”(Shitao,
2012,p.27)6O“traço”ou“pincelada”única,sãoentendidosnãosócomoelemento
formal (o modo de como todas as pinturas se iniciam, o elemento que inicia a
construçãodeuma forma,eapartirdoqual todasasoutras formasnão são senão
variantesemutaçõesdessetraço),mascomoaorigemdetodososfenómenos,poisé
atravésdasuatraduçãoemlinha-atravésdarelaçãoentrecontemplação,espirito,
pulso,pinceletinta-queaessênciadarealidadesetransformanumanovarealidade
formal em pintura, na qual o Um, é simultaneamente o Absoluto, ou seja, o mais
simples,contememsiasintetização,aessênciadotodo.
3.Conclusão
Estetrabalhoprocurouproporumareflexãosobreaconcepçãoeevoluçãoda linha
comoelementodecaracterorientalnotrabalhodeDomenecCorbella.
ÉutilizadoporvezesumparalelismoemrelaçãoàregradaPinceladaÚnicadeShitoao,
comoprincípiodecorrelaçãoàestéticaoriental,poisestetratadodeShitaocontemna
suaessênciaumsumáriodopensamentodafilosofiaestéticachinesa.Sobesta“regra”
os elementos da pintura são depurados à sua essência - um único traço - como
metáfora de uma especulação filosófica Taoísta segundo a qual, é precisamente o
simples,oconcreto,eopequenoqueconstituiabaseeaforçadodomíniouniversal
dosfenómenos.
Comumavastaobradesenvolvidaapartirdemeadosde1969,éapartirdaetapado
Espírito Essencial (2003-2006) que a paisagemse assume como temasoberanono
trabalhodeDomenecCorbella.Essencial,étambémotermoidealparaenquadraros
trabalhosdesenvolvidosaolongodesteperíodo,poistudoaquiloqueéacessório,tudo
aquilo que é um complemento ao cerne do tema a representar, é sintetizado ou
deixado de parte, em pinturas que evocam um estado de silencio e meditação,
transcendoos limitesdoespaçovisualdatela. A linhaapresenta-secomounidade
6 Tradução livre do autor, no original: “El trazo único de Pincel es el origen de todas las cosas, la raíz de todos los fenómenos”
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definidoraemodeladoradaformaentresignoesignificado,numarepresentaçãode
binómiosentreterra/agua,mar/montanha,ondenãoéapenasolimitequeinterpreta
um elemento, mas como elo de representação simbólica da forma, onde uma
ondulaçãopodeserreferentequeraossulcosdaterra,queràondulaçãodomar.
A partir do período doEspírito Zen (2007-2012) observa-se um encadeamento na
procuradaessênciadoselementosarepresentar,numaespéciededepuraçãoformal
dosprincípiosexternosdapaisagem.Alinha,ouotraço,transformam-senamatéria
queconduzauniãoentresignoesignificante,entrepinturaecaligrafia,entreformae
mancha,ideiapartilhadapeloPrincípiodaPinceladaÚnica,(noqualapesardeáreas
distintas,pintura e caligrafiapartilhamamesma essência), domesmomodo que a
linhacomoelementoabstractodarealidade,éjáemsiumasintetizaçãodomesmo,e,
porisso,asuautilizaçãocomoprincípiodecaptaçãodoessencialdapaisagem.
Éprecisamenteessaprocuradaessênciadapintura,dabuscadeumagénesenãoda
representação externa dos elementos,mas sim da sua construção interna, de uma
captaçãoerepresentaçãodaessênciadostemasenãodasuamerarealidadeformal,
queseobservacomoelementoemconstantemutaçãoeevoluçãonaobraartísticade
DomenecCorbella.
Figura1–DomènecCorbella,FlordePlata,óleosobretela,81x116cm.
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Figura2–DomènecCorbella,Castelnuovo,óleoepigmentossobretela,89x116cm.
Figura3–DomènecCorbella,PieveaPresciano,óleosobretela,89x116cm.
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Figura4–DomènecCorbella,Volterra,óleosobretela,81x130cm.
Figura5–DomènecCorbella,Vald’arbilr,óleosobretela,81x100cm.
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Figura6–DomènecCorbella,CastellinainChianti,óleosobretela,60x130cm.
Figura7–DomènecCorbella,Riganosull’Arno,óleosobretela,60x130cm.
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Figura8–DomènecCorbella,DesertdeNabibia,óleosobretela,60x130cm.
Figura9–DomènecCorbella,ElVent,óleosobretela,75x150cm.
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