passeio ao farol - virginia woolf

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  • Virginia Woolf

    Passeio Ao Farol

  • Ttulo original: TO THE LIGHTHOUSE

    Copyright 1927 by Angelica Garnett, Virgnia Bell and Cressida Bell.

    Copyright desta edio, Editora Rio Grfica Ltda. Rio de Janeiro, 1987.Publicado no Brasil sob licena de Editora Nova Fronteira S.A.

    Traduo: Luiza Lobo.

    Ilustrao de capa: Enio Squeff.

    Composio: Editora Rio Grfica Ltda. e AM Produes Grficas Ltda.

    Digitalizao e converso para epub: Nalua

    Distribuidor exclusivo para todo o Brasil: Fernando Chinaglia Distribuidora S.A. Rua Teodoro da Silva, 907, CEP 20563, Rio deJaneiro.

    Editora Rio Grfica Ltda. Rua Itapiru, 1209, CEP 20251, Rio de Janeiro. Rua do Curtume, 665, CEP 05065, So Paulo.Impresso e acabamento nas oficinas grficas da Grfica Editora Hamburg Ltda.

  • Sumrio

    A janela1245678910111213141516171819

    O tempo passa12345678910

    O Farol123456

  • 78910111213

    VIRGINIA WOOLF VIDA E OBRA

  • A janela

  • 1

    claro que amanh far um dia bonito disse a Sra. Ramsay. Mas vocstero que madrugar acrescentou.

    Essas palavras trouxeram uma extraordinria alegria a seu filho, como se aexcurso j estivesse definitivamente marcada. Aps a escurido de uma noite e atravessia de um dia, o desejo por tantos anos aspirado era agora tangvel.

    James Ramsay, sentado no cho, enquanto a me falava, recortava gravuras docatlogo das Lojas do Exrcito e da Marinha. Mesmo aos seis anos de idade, pertenciaao nmero daqueles que no conseguem separar um sentimento do outro mas, aocontrrio, deixam que as expectativas futuras com suas alegrias e tristezas toldem o que no momento est ao alcance da mo. Para tais pessoas, ainda na maistenra idade, qualquer oscilao de sensaes tem o poder de cristalizar e fixar omomento em que repousam, misturadas, alegria e tristeza: assim que James Ramsayemprestava fotografia de uma geladeira uma felicidade beatfica. Cercava-a dealegria. O carrinho de mo, o cortador de grama, o som dos lamos, folhasbranqueando antes da chuva, gralhas grasnando, o raspar de vassouras, vestidosroando tudo isso era to colorido e distinto em sua mente que ele j tinha seucdigo particular, sua linguagem secreta, embora fosse a imagem da mais pura einflexvel severidade: testa alta, arrogantes olhos azuis, impecavelmente cndido,recriminativo ao deparar com alguma fraqueza humana. Observando-o assim a guiar atesoura com preciso em torno da geladeira, sua me imaginou-o num tribunal comuma rtila toga de arminho, ou talvez dirigindo uma empresa durante uma crisefinanceira.

    Mas o dia no ficar bom disse o pai, parando em frente janela da salade visitas.

    Se houvesse um machado, um atiador, ou qualquer outra arma mo que abrisse

  • uma fenda no peito do pai e por onde a vida se escoasse, James a teria empunhadonaquele instante. Tais eram os extremos de emoo que o Sr. Ram-say despertava nontimo dos filhos, apenas com sua presena. Ali estava: de p, o perfil agudo como umafaca e estreito como sua lmina, sorrindo sarcasticamente no apenas pelo prazerde desiludir o filho e lanar sua mulher (que era mil vezes melhor do que ele, pensouJames) no ridculo, mas sobretudo por causa da certeza ntima que tinha da exatido deseus julgamentos. O que ele dizia era verdade. Era incapaz de mentir: nunca interferiaem alguma coisa ou se pronunciava de modo a dar um pouco de prazer a qualquermortal, e muito menos a seus filhos, que, desde a infncia, ficavam sabendo que a vida rdua, os fatos inflexveis, e que a passagem para essa terra fabulosa onde nossasesperanas mais brilhantes se extinguem e nossas frgeis crticas malogram naescurido exige, acima de tudo concluiria o Sr. Ramsay, empertigando-se efranzindo os olhos azuis na direo do horizonte , coragem, lealdade eperseverana.

    Mas talvez fique bom, pelo menos espero disse a Sra. Ramsayimpacientemente, ao dar um ponto na meia castanha que tricotava. Se a terminassenessa mesma noite, e afinal fossem mesmo ao Farol, seria dada ao filho do faroleiro,que estava ameaado de tuberculose, alm de uma pilha de revistas velhas e um poucode fumo. Tudo que encontrassem atirado pelo cho, desarrumando a sala, e querealmente ningum quisesse para si, seria dado quela pobre gente que devia morrer detdio, sentada o dia inteiro, sem nada para fazer, a no ser limpar a lmpada, acender olume e revolver um pequeno jardim. Faria qualquer coisa para alegr-los, pois comopoderia algum gostar de ficar trancado um ms inteiro, num rochedo perdido no meiodo mar e ainda mais, se o tempo estivesse ruim?, perguntou-se ela. No recebercartas ou jornais, no ver ningum; sendo casado, no ver a mulher, no saber comoesto os filhos: se adoeceram, se caram e quebraram a perna ou o brao. Ver sempreas mesmas ondas quebrando tristemente semana aps semana, interrompidas em seuritmo montono apenas pela tempestade que se aproxima, cobrindo as janelas deespuma, atirando os pssaros de encontro ao Farol, estremecendo tudo, impedindo aspessoas de sarem, com medo de serem varridas para o mar. Como se poderia gostardisso?, perguntou, dirigindo-se principalmente s filhas. Acrescentou, ento, num tombastante diferente, que as pessoas precisavam levar-lhes todo o conforto possvel.

    justamente o "oeste" disse Tansley. o ateu, que compartilhava do passeionoturno do Sr. Ramsay pelo terrao, mantendo os dedos ossudos afastados para que o

  • vento soprasse por entre eles. Isso significava que o vento soprava da pior direopossvel para se atracar no Farol. Era detestvel de sua parte trazer isso baila edesapontar James ainda mais, admitiu a Sra. Ramsay. Realmente ele dizia coisasdesagradveis, mas ela no permitiria que rissem dele. "O ateu", chamavam-no, "oateuzinho." Rose zombava dele; Prue, Andrew, Jasper, Roger tambm. At o velho edesdentado Badger espicaara-o quando Nancy dissera (segundo suas prpriaspalavras) que ele era o centsimo dcimo jovem a persegui-las at as Hbridas,quando elas teriam preferido ficar sozinhas.

    Isso no faz sentido disse a Sra. Ramsay com severidade. No admitia queseus filhos, exagerados como ela mesma (que convidava pessoas demais e acabava porter de hospedar algumas na cidade), fossem indelicados para com seus convidados,particularmente em relao aos jovens que vinham passar as frias e que eram pobrescomo ratos de igreja embora "excepcionalmente capazes", como dizia seu maridocom ungida admirao. Sem dvida alguma tinha sob sua proteo a totalidade do sexoque no era o seu, por razes que no conseguia explicar: pelo cavalheirismo doshomens, seu valor, pelo fato de negociarem tratados, governarem a ndia, controlaremas finanas ou, mais possivelmente, por certa atitude em relao a ela que nenhumamulher poderia se eximir de achar agradvel algo de leal, inocente, respeitvel,que, em sua idade, poderia receber de um jovem sem perder a dignidade, enquanto asjovens (rogava aos cus no se desse o mesmo com suas filhas) no viam o verdadeiroe recndito valor disso.

    Ela se voltou para Nancy, dizendo com severidade: ele no as perseguira. Foraconvidado.

    Era preciso achar um meio de escapar a tudo aquilo. Devia haver uma forma maissimples, menos complicada, suspirou ela. Quando se olhou no espelho, viu os cabelosgrisalhos, a face abatida, aos cinqenta anos, e pensou: poderia ter conduzido melhoras coisas seu marido, o dinheiro, os livros dele. Mas nunca se, arrependeria de suasdecises, nunca fugiria das dificuldades ou se eximiria de suas obrigaes. Irradiavadignidade nesse momento, e s com um rpido alar de olhos do prato diante de si,aps o silncio que se seguiu s suas palavras sobre Charles Tansley, que as filhas Prue, Nancy e Rose ousaram deleitar-se com a idia do que imaginavam ser umavida diferente da que tinham: talvez mais emocionante, possivelmente em Paris, sem terde se precaver contra este ou aquele homem. Havia no pensamento de todas elas umaindizvel curiosidade em relao a coisas to diversas como cavalheirismo, o Banco

  • da Inglaterra e o Imprio das ndias, dedos repletos de anis e rendas. Havia nisso,para todas elas, um pouco da essncia da beleza, que enchia seus jovens coraes deanseios pela masculinidade, e as fazia, enquanto se sentavam mesa sob os olhos dame, respeitar a extrema severidade e cortesia com que as advertira sobre odesprezvel ateu que as tinha perseguido na Ilha de Skye, ou falando maisprecisamente fora convidado para ficar com elas. Tal advertncia fora feita com amesma dignidade com que uma rainha tiraria da lama o p imundo de um mendigo paralav-lo.

    Ningum atracar no Farol amanh disse Charles Tansley ao Sr. Ramsay,batendo as mos, enquanto olhava pela janela. Sem dvida, ele j havia dito o bastante.Ela desejava que ambos deixassem James e a ela em paz, e continuassem seu passeio.No pde evitar olh-lo: era um espcime to miservel, diziam as crianas, cheio dereentrncias e salincias. No sabia jogar etiquete, era hesitante, confundia-se. Eragrosseiro e sarcstico, dizia Andrew. Sabiam do que mais gostava: andar de um ladopara outro com o Sr. Ramsay, comentando quem havia ganho isto ou aquilo, quem"recitava s maravilhas" versos latinos, quem era "brilhante mas fundamentalmentedoente, na minha opinio", quem era sem dvida "o sujeito mais capaz em Balliol",mas enterrara sua inteligncia em Bristol ou Bedford, estando agora, no entanto,prestes a alcanar fama, quando seus prolegmenos para um ramo da matemtica oufilosofia fossem publicados. A propsito, as provas das primeiras pginas j estavamcom ele, ser que o Sr. Ramsay gostaria de v-las? Era sobre isso que falavam.

    Algumas vezes ela no podia deixar de rir. H dias falara algo sobre ondas "altascomo montanhas". Sim, respondera Charles Tansley, estavam um pouco agitadas."Voc no est completamente encharcado?", perguntara-lhe ela. "S um pouco mido,mas no muito", respondeu o Sr. Tansley apertando a camisa, tocando as meias.

    Mas no era bem isso que importunava as crianas, nem seu rosto ou suasmaneiras: era ele mesmo, seu modo de ser interior. Quando falavam de alguma coisainteressante sobre pessoas, msica, histria ou quando comentavam que a manhestava bonita e seria bom ficarem sentados ao ar livre, Charles Tansley no se davapor contente enquanto no mudasse completamente o rumo da conversa e osexasperasse com sua mania de esmiuar tudo. Estava sempre falando de galerias dearte e perguntando se gostavam de sua gravata. "S Deus sabe como sua gravata detestvel", dizia Rose.

    Desaparecendo da mesa logo aps a refeio, furtivos como gazelas, os oito

  • filhos da Sra. Ramsay procuravam seus quartos o nico lugar seguro na casa em quepoderiam conversar sobre qualquer coisa: a gravata de Tansley, a Carta da Reforma,aves marinhas, borboletas ou pessoas. Enquanto isso, numa dessas mansardas separadas umas das outras por uma simples tbua que permitia ouvir cada passo ou ossoluos da moa sua que chorava pelo pai que morria de cncer num vale dosGrisons , o sol se despejava iluminando raquetes, flanelas, chapus de palha,tinteiros, tubos de tinta, escaravelhos e crnios de pequenos pssaros, fazendodesprender-se de longas tiras encrespadas de algas presas parede um odor de sal eervas: o mesmo que se desprendia das toalhas de banho carregadas de areia.

    Brigas, separaes, divergncias de opinio e preconceitos compunham a prpriatessitura do ser oh, por que tinham de comear to cedo, lastimava-se a Sra.Ramsay. Eram to crticos, seus filhos. Diziam tantas tolices. Veio da sala de jantar,segurando James pela mo, pois ele no iria com os outros. Parecia-lhe to sem nexoinventar divergncias, quando as pessoas j as tinham em demasia. "As divergnciasreais so mais que suficientes", pensou, de p junto janela da sala de visitas. Nessemomento pensava nos ricos e nos pobres, nos nobres e nos plebeus: os nobres, ela osrespeitava com certa relutncia, pois possua nas veias o sangue daquela nobilssima ealgo mtica casa italiana, cujas descendentes to trfega e encantadoramentesussurraram e saracotearam pelos sales ingleses do sculo XIX. Delas herdara ainteligncia, a maneira de ser e o gnio: no dos vadios ingleses ou dos friosescoceses. Preocupava-se particularmente com o problema dos ricos e dos pobres: ascoisas que vira pessoalmente ali e em Londres, quando visitara vivas e esposasdedicadas, munida de uma bolsa, um caderno de notas e um lpis, apontando salrios edespesas, emprego e desemprego, em colunas cuidadosamente dispostas para esse fim,na esperana de assim deixar de ser uma mulher voltada apenas para si mesma, cujacaridade era em parte um consolo para sua prpria indignao, em parte um alvio parasua curiosidade pretendendo tornar-se uma pesquisadora que explicasse o fenmenosocial, coisa que, para seu esprito pouco cultivado, era objeto de vvida admirao.

    Essas questes pareciam-lhe insolveis, enquanto permanecia de p ali,segurando James pela mo. O jovem do qual todos riam tinha-a seguido at a isala devisitas. Estava perto da mesa, mexendo desajeitadamente em alguma coisa. Mesmo semo olhar, ela percebia o quanto se sentia deslocado. Todos tinham ido embora: ascrianas, Minta Doyle e Paul Rayly, Augustus Carmichael, o Sr. Ramsay todos.Ela voltou-se com um suspiro e disse:

  • Ser que o aborreceria acompanhar-me, Sr. Tansley? Tinha que dar um recadoenfadonho na cidade e uma ou duas cartas para escrever. Demoraria uns dez minutos.Iria pr um chapu. Passado algum tempo, ela reapareceu com uma cesta e umasombrinha, como se estivesse preparada para uma excurso que, no entanto,interrompeu no preciso momento em que cruzavam o campo de tnis, para dirigir-se aoSr. Carmichael que se aquecia ao sol com seus olhos felinos entreabertos, olhosque pareciam refletir o movimento dos ramos e o passar das nuvens, sem, contudo, darqualquer sinal da existncia de pensamentos ou emoes. Perguntou-lhe se queriaalguma coisa.

    Estavam fazendo uma grande expedio disse ela, rindo. Iam cidade. Selos, papel de carta, fumo?, sugeriu, parando a seu lado. No, ele no queria nada.Suas mos entrelaavam-se sobre a vasta barriga. Os olhos pestanejaram como sequisesse agradecer amavelmente essas gentilezas (ela estava sedutora, apesar de umpouco nervosa). Mas no pde, submerso numa sonolncia cinzento-esverdeada que osenvolvia a todos, sem necessidade de palavras, numa vasta e bondosa letargiacarregada de benevolncia: toda a casa, o mundo e as pessoas que o habitavam. Elepusera umas gotas de alguma coisa em seu copo no almoo pensavam as crianas,devido s vivas listras amarelo-canrio nas barbas e bigodes, que normalmente seriambranco-leito-sos. No, no queria nada murmurou finalmente.

    Poderia ter sido um grande filsofo disse a Sra. Ramsay, enquanto desciam aestrada em direo vila de pescadores , mas fizera um mau casamento. Segurandosua sombrinha com muito aprumo e andando com um ar de indescritvel expectativa como se fosse encontrar algum na primeira esquina contou a histria: uma paixoem Oxford por uma moa, um casamento prematuro, a pobreza, uma viagem ndia,algumas tradues de poemas "belssimas em minha opinio" , a vontade deensinar persa ou hindustani s crianas (mas qual a utilidade disso?). E agora sedeixava ficar deitado na grama como tinham visto.

    Charles Tansley sentiu-se lisonjeado. Maltratado como sempre fora, agradou-lheque a Sra. Ramsay lhe contasse isso. As insinuaes que ela fazia sobre a grandeza dainteligncia masculina mesmo na sua decadncia , sobre a submisso de todas asesposas aos trabalhos de seus maridos (no que ela culpasse aquela moa, pois ocasamento no fora de todo mau), fizeram-no sentir-se bem como nunca. Gostaria, setomasse um txi, por exemplo, de pagar a corrida. Quanto sua sacola, no poderia

  • carreg-la? No, no respondeu , sempre a carregava ela mesma. E foi isso oque ela fez. Sim, isso e muitas outras coisas particularmente algo que o exaltava eperturbava por razes que no saberia dizer. Gostaria que o visse de bata e capuz,andando numa procisso. Uma colegiatura, um professorado sentia-se capaz dequalquer coisa e imaginava-se... mas o que estava ela olhando? Um homem colandoum cartaz. A enorme folha de papel pendente alisava-se, e cada golpe da brocharevelava pernas, arcos, cavalos, brilhantes tonalidades de verde e vermelho lindamentesuaves at que metade do muro ficou coberta com o anncio de um circo: umacentena de homens a cavalo, vinte focas amestradas, tigres. Esticando o pescoo, poisera mope, ela leu:. . . "visitar esta cidade." Era um trabalho terrivelmente perigosoum homem com um s brao subir ao topo de uma escada assim exclamou. O braoesquerdo daquele ali fora cortado por uma ceifadeira dois anos atrs.

    Vamos! gritou ela, continuando a andar, como se todos esses cavalos ecavaleiros a tivessem enchido de euforia infantil, fazendo-a esquecer sua comiseraode h pouco.

    Vamos repetiu ele, estalando a lngua, mas com uma tal circunspeco quea fez estremecer. Vamos ao circo. No, ele no conseguia diz-lo normalmente.Nem senti-lo direito. Mas por que no? perguntou-se a Sra. Ramsay. O que haviade errado com o rapaz? Gostava dele sinceramente naquele momento. No tinhamambos ido ao circo, quando eram crianas? perguntou-lhe. Nunca respondeu-lhe, como se ela tivesse feito exatamente a pergunta que ele queria responder: ansiavah dias por dizer que no iam ao circo. Sua famlia era grande, com nove irmos eirms, e seu pai era um trabalhador: Meu pai farmacutico, Sra. Ramsay. Temuma loja. Ele s,e mantinha desde os treze anos. No raro passava os invernos semum casaco. Na universidade nunca pde "retribuir gentilezas" (esse era seu jargohabitual). Tinha que fazer seus pertences durarem duas vezes mais que os outros;fumava o tabaco mais barato desse fumo ruim que os velhos de beira de caisfumam. Trabalhava muito: sete horas por dia.. . continuava falando, e o assuntoagora era sobre a influncia de alguma coisa sobre algum. Prosseguiam em seucaminho, e a Sra. Ramsay no captava bem o sentido do que ele dizia, apenas uma

  • palavra aqui e ali: tese... bolsa de estudos. . . licenciatura. .. leitorado.. . Noconseguia acompanhar o horrvel jargo acadmico que jorrava com tanta facilidade mas via agora por que a ida ao circo o perturbara tanto, coitadinho, e por que nomesmo instante se sara com toda aquela histria sobre o pai, a me, os irmos eirms. Cuidaria que no rissem mais dele. Contaria isso a Prue. Supunha que elegostaria de comentar que fora ver Ibsen com os Ramsays. Ele era terrivelmente pedante oh, sim, um maante insuportvel, pois, embora j tivessem chegado cidade eestivessem na rua principal onde carroas passavam raspando o cascalho, mesmoassim continuava falando sobre escolas populares, ensino, operrios, ajuda nossaprpria classe, e conferncias, at que ela percebeu que ele recobrara completamentesua circunspeco. Tinha-se recuperado do circo, e ia comear (agora gostava delesinceramente) a lhe contar que... Mas nesse momento deram no cais e, ao ver ascasas desvanecendo de ambos os lados e toda a baa estendendo-se diante deles, a Sra.Ramsay no pde deixar de exclamar: Oh! Que lindo!, pois a imensido de guaazul surgia diante dela; o antigo Farol, distante, austero, no centro; e direita, to longequanto a vista alcanava, diminuindo e declinando em suaves ondulaes, as dunasverdes de relva fluida e selvagem, que sempre pareciam correr para algum pas lunar,inabitado pelos homens.

    Era essa a paisagem disse ela, parando, com os olhos mais cinzentos de queseu marido gostava tanto.

    Ficou imvel por um momento. Mas agora, disse, artistas vieram para c. E lestava, a apenas alguns passos, um deles, de p, com um chapu panam e botasamarelas todo seriedade, suavidade, concentrao. Por tudo isso era observado pordez menininhos, com um ar de profundo contentamento no rosto redondo e vermelho.Olhava atentamente e, depois, mergulhava a ponta do pincel num montculo macio deverde ou rosa. Desde que o Sr. Paunceforte chegara ali, trs anos atrs, todos osquadros eram assim, disse ela, verdes e acinzentados, com barcos a vela cor de limoe mulheres cor-de-rosa na praia.

    Mas os amigos de sua av, observou ela, lanando uma olhadela discreta aopassarem, tinham o maior trabalho: primeiro misturavam os pigmentos, depois moam-nos, e ento colocavam panos levemente molhados sobre a tinta para mant-la mida.

  • O Sr. Tansley pensou que ela estava insinuando que a pintura daquele homemestava rala foi isso o que disse? As cores no pareciam slidas? Foi isso o quedisse? Sob a influncia da extraordinria emoo que comeara no jardim, quandoquisera segurar sua sacola, e crescera durante todo o passeio, aumentando na cidade,quando quisera contar-lhe tudo sobre si mesmo (e tudo que conhecera at ento),chegava a ver tudo um pouco deformado. Era terrivelmente estranho.

    Ali estava ele de p, na sala da casinha acanhada onde ela o trouxera, esperando-a, enquanto ia um instante ao segundo andar ver uma mulher. Ouvia seu passo rpidoem cima;

    ouvia sua voz alegre e logo depois baixa. Olhou os guardanapos e caixas de ch,e as sombras dos globos, enquanto esperava bastante impaciente, ansioso por voltarpara casa e decidido a levar a sacola dela. Ento ouviu-a sair; fechar a porta; dizer quedeveriam manter as janelas abertas e as portas fechadas (devia estar falando com umacriana). De repente, surgiu, parando por um instante em silncio (como se tivesseficado representando l em cima, e por um momento permanecesse parada agora, quaseimvel, diante do quadro da Rainha Vitria, com a Ordem Azul da Jarretei-ra). Derepente, descobriu: era a pessoa mais bela que conhecera.

    Com estrelas nos olhos e vus no cabelo, com ciclamens e violetas selvagens mas em que despropsito estava pensando? Tinha no mnimo cinqenta anos e oitofilhos. Caminhando por campos floridos e levando ao peito botes esmagados ecarneiros cados; com estrelas nos olhos e o vento no cabelo ele segurou sua sacola.

    Adeus, Elsie disse ela, e subiram a rua, ela segurando a sombrinha, muitoaprumada, andando como se esperasse encontrar algum na prxima esquina. Pelaprimeira vez em sua vida, Charles Tansley sentiu um orgulho extraordinrio; umhomem escavando num bueiro parou de cavar e olhou-a; deixou o brao tombar eolhou-a. Charles Tansley sentiu um orgulho extraordinrio; sentiu o vento, os ciclamense as violetas, pois andava com uma mulher bela pela primeira vez em sua vida.Segurou sua sacola.

  • 2

    Ningum vai ao Farol, James disse ele, de p, ao lado da janela, falandogrosseiramente, mas, em deferncia Sra. Ramsay, tentando abrandar a voz e dar-lhepelo menos uma aparncia de amabilidade.

    "Que homenzinho detestvel", pensou a Sra. Ramsay, "para que continuar dizendoisso?"

  • 3

    Talvez voc acorde e encontre o sol brilhando e os passarinhos cantando disse ela compassivamente, alisando o cabelo do menino, pois o marido, com a frasecustica de que o dia no ficaria bom, abatera seu nimo, como bem se podia ver. Essaida ao Farol era uma paixo dele, e, como se o marido j no tivesse dito bastante,esse homenzinho detestvel trouxera tudo de novo baila.

    Talvez o dia fique bonito amanh disse ela, alisando o cabelo do menino.Tudo que ela poderia fazer agora era admirar a geladeira e virar as pginas do

    catlogo das Lojas, na esperana de chegar a algo semelhante a um ancinho ou umaceifeira que, com seus dentes e cabos, exigiriam o maior cuidado e habilidade pararecortar. Todos esses jovens parodiavam seu marido, refletiu; ele disse que choveria;eles declaravam que seria positivamente um furaco.

    Ento, quando virou a pgina, a procura de uma gravura de um ancinho ou umaceifeira foi repentinamente interrompida; o murmrio grosseiro dos homens falando que o tirar e recolocar do cachimbo na boca interrompia a intervalos dava-lhe umacerta sensao de conforto, embora no pudesse compreender o que diziam, poisestava junto janela. Esse murmrio j durava h meia hora e se juntava suavemente escala de sons que se acumulava ao bater dos tacos nas bolas e ao alarido das crianasjogando crquete, irrompendo por vezes, de modo abrupto; "Acertou? Acertou?" Mas,de repente, todo rudo cessou, restando apenas a cadncia montona das ondas na praia que quase sempre era um rufiar repousante e ritmado para seus pensamentos,parecendo repetir sempre, enquanto se sentava com as crianas, as palavrasconsoladoras de uma velha cano de ninar: "Eu cuido de voc; eu sou o seu apoio."Mas, s vezes, repentina e inesperadamente sobretudo quando sua ateno sedesviava um pouco do que estava fazendo no momento , no tinha esse sentido tocalmo: pois, como o rufar fantasmagrico de tambores que batessem impiedosamente osentido da vida, fazia pensar na destruio da ilha e no seu engolfamento com o mar e aprevenia (a ela cujo dia escapara com um afazer depois do outro) de que tudo eraefmero como um arco-ris. Esse som que fora abafado e encoberto sob os outros sonsde repente soou oco em seus ouvidos e a fez erguer os olhos num impulso de horror.

  • Eles haviam parado de falar; era essa a explicao. Escapando por um segundo tenso de que fora possuda, passou, como para se recuperar do dispndiodesnecessrio de emoo, ao outro extremo de seu ser, que era frio, divertido, e mesmoum tanto malicioso, e concluiu que o pobre Charles Tansley fora rechaado. Isso notinha muita importncia. Se seu marido lhe exigia sacrifcios (e sem dvida os exigia),ela lhe ofertava alegremente Charles Tansley, que tinha sido grosseiro com seufilhinho.

    E ainda um momento, com a cabea erguida, ela ouvia como se esperasse poralgum som habitual um rudo mecnico e regular, algo ritmado, entre dito e cantado,comear no jardim (o marido andava compassadamente para cima e para baixo noterrao), algo entre um coaxar e uma cano. Acalmou-se ainda uma vez,reconfortada, pois tudo ia bem, e tornando a olhar o catlogo solire o colo, achou agravura de uma faca com seis lminas, que James s poderia recortar se tivesse muitocuidado.

    De repente, um grito agudo, como o de um sonmbulo meio acordado, algo como

    Bombardeados por tiros e granadas1

    soou com a maior intensidade em seu ouvido, e a fez voltar-se apreensivamentepara ver se algum mais ouvira. Era apenas Lily Briscoe, e estava contente por v-la; eaquilo no importava. Mas ao ver a moa de p, na extremidade do gramado,pintando, lembrou-se de que deveria manter a cabea tanto quanto possvel na mesmaposio para o quadro de Lily. O quadro de Lily! A Sra. Ramsay sorriu. Com seuspequenos olhos chineses e seu rosto enrugado, ela nunca se casaria; mas era umacriatura independente. A Sra. Ramsay gostava dela por isso, e assim, lernbrando-se desua promessa, inclinou a cabea.

    --

    1 Stormed at with shot and shell. Verso famoso do poema "Carga da brigada ligeira" ("The charge of the light brigade"), escrito porTennyson em 1854, seguido de outras citaes do mesmo poema. Ele se refere batalha de Balaclava, na Crimia, a 25 de novembro daquele ano.(N. da T.)

  • 4

    Sem dvida ele quase derrubou o cavalete, ao vir em sua direo, agitando asmos e gritando: "Cavalgamos bem e com coragem", mas, felizmente, deu meia volta ese afastou cavalgando, para morrer gloriosamente, supunha, nas alturas de Balaclava.Nunca algum fora to ridculo e to assustador ao mesmo tempo. Contudo, enquantoele se mantivesse assim, gritando, agitando-se, estava salva; pelo menos no ficariaparado e quieto, olhando seu quadro. Era isso que Lily Briscoe no poderia suportar.Mesmo enquanto olhava o volume, as cores e linhas, a Sra. Ramsay sentada janelacom James, Lily Briscoe mantinha-se atenta para o caso de algum surgir, pois noqueria ter sua pintura observada repentinamente. Agora, porm com todos ossentidos to avivados, olhando, tensa, at que a cor do muro e das iridceas mais almse incendiaram em seus olhos , tinha conscincia de que algum saa da casa ecaminhava em sua direo. Mas, de certa forma, adivinhou, pelo modo de andar, serWilliam Bankes, e por isso, embora sentisse o pincel estremecer, no virou a tela nagrama como faria se fosse o Sr. Tansley, Paul Rayley, Minta Doyle, oupraticamente qualquer outra pessoa e deixou-a ficar onde estava. William Bankesparou a seu lado. Hospedavam-se no mesmo lugar na cidade e assim, entrando esaindo, despedindo-se tarde na soleira da porta, faziam pequenos comentrios sobre asopa, as crianas, sobre isto ou aquilo, o que os tornava aliados. Por isso, quando eleparou a seu lado, om seu jeito judicial (tinha idade bastante para ser seu pai, umbotnico, ou um vivo, muito escrupuloso e limpo, cheirando a sabonete), elapermaneceu no mesmo lugar. Ele tambm. Os sapatos dela eram excelentes, observouele. Permitiam aos dedos sua natural expanso. Habitando a mesma casa que ela,tambm notara como era arrumada, levantando-se antes do caf e saindo para pintarsozinha. Embora pobre, como era de supor, e sem a tez ou a seduo da Srta. Doyle,seu bom senso a fazia, a seu ver, superior a essa jovem. Por exemplo, tinha certeza deque, quando Ramsay irrompeu diante deles gritando, gesticulando, a Srta. Briscoe ocompreendera.

  • Algum se equivocara.2

    O Sr. Ramsay fixou os olhos neles. Fixou os olhos neles sem parecer v-los. E

    isso os fez sentirem-se vagamente constrangidos. Juntos viram uma coisa que noqueriam ver. Haviam penetrado em algo muito ntimo. Foi provavelmente um pretexto,pensou Lily, para partir, para ficar fora de alcance, que fez o Sr. Bankes quaseimediatamente comentar que fazia frio e sugerir uma volta. Ela iria, sim. Mas no foisem dificuldade que desprendeu os olhos de seu quadro.

    As iridceas estavam de um violeta brilhante; o muro, de um branco cintilante. Elano considerava honesto modificar o violeta claro e o branco cintilante, j que os viaassim, embora isso estivesse na moda depois da visita do Sr. Paunceforte. Ento, sob acor havia a forma. Podia ver isso com clareza, imperiosamente, quando olhava: quandopegava no pincel que tudo mudava. Era nesse vo momentneo entre a paisagem e suatela que os demnios a possuam, levando-a beira das lgrimas, e tornavam apassagem da concepo para o trabalho to terrvel quanto o era a incurso por umcorredor escuro para uma criana. Assim se sentia, freqentemente, numa lutaterrivelmente desigual para manter a coragem e dizer: "Mas isso o que eu vejo, isso o que eu vejo", e desse modo reunir em seu peito os restos miserveis de sua viso,que milhares de foras buscavam arrancar-lhe. E era tambm nesse momento, dessaforma fria e inconstante, que, quando comeava a pintar, pressionavam-na outrospensamentos, sua prpria imperfeio, sua insignificncia, tendo de sustentar o painuma casa alm da estrada de Brompton, e tendo de se esforar muito para controlarseu impulso de se atirar ao colo da Sra. Ramsay (graas a Deus, sempre resistira) edizer-lhe mas o que poderia dizer-lhe? "Estou apaixonada por voc?" No, no eraverdade. "Estou apaixonada por tudo isso?" com um gesto largo abrangendo a sebe,a casa, as crianas? Era absurdo, impossvel. No se pode dizer o que se tem vontadede dizer. Por isso, pousou os pincis ordenadamente na caixa, um ao lado do outro, edisse ao Sr. Bankes:

    Esfriou de repente. O sol parece estar menos quente

    falou, olhando em redor, pois tudo estava muito claro, a grama ainda de umsuave verde profundo, a casa cintilando na sua folhagem com flores prpuras demaracuj, e gralhas lanando gritos cortantes do alto azul. Mas alguma coisa moveu-se, brilhou, virou uma asa prateada no cu. Afinal, era setembro, meados de setembro,

  • e mais de seis horas da tarde. Assim, caminharam pelo jardim na direo costumeira;passando pela quadra de tnis e pela grama alta, at aquela clareira na espessa sebeprotegida por suas hastes de vermelho incandescente como brasas de carvo queimado,por entre as quais as guas azuis da baa pareciam ainda mais azuis.

    Vinham at ali regularmente, todas as noites, arrastados por alguma necessidade.Era como se a gua flusse e fizesse com que os pensamentos estagnados em terra firmedeslizassem por ela e dessem at mesmo a seus corpos uma espcie de alvio fsico.Primeiro, o movimento da cor inundava a baa de azul e o corao expandia-se com elee o corpo nadava, para somente no instante seguinte ser reprimido e enregelado pelacortante escurido das ondas inquietas. Ento, bem atrs da grande rocha negra, quasetoda noite jorrava irregularmente uma fonte de gua branca, de modo que se tinha deaguard-la e era um deleite quando a gua brotava; enquanto se esperava por ela, via-se, na plida praia em semicrculo, onda aps onda derramar continuamente umanvoa suave em tons de madreprola.

    Os dois permaneceram ali, sorridentes. Ambos sentiram uma alegria em comum,exaltados pelas ondas em movimento; e ento, pela corrida cortante e rpida de umbarco que, tendo traado uma curva na baa, parou, estremeceu, deixou tombar a vela,com um instinto natural para completar o quadro, aps esse rpido movimento, ambosolharam para as dunas distantes e, em vez de alegria, uma certa tristeza abateu-se sobreeles em parte porque tudo estava completo, em parte porque paisagens distantesparecem ultrapassar de um milho de anos (pensou Lily) aquele que as observa, e estarem comunho com um cu que contempla uma terra em completo descanso.

    Olhando as dunas longnquas, William Bankes pensou em Ramsay: pensou emRamsay andando sozinho com lar gas passadas por um longo caminho, com a solidoque parecia ser seu ar natural. Mas isso foi repentinamente interrompido. WilliamBankes lembrou-se (e devia referir-se a algum incidente real) de uma galinha estirandoas asas para proteger uma ninhada de pintinhos, e Ramsay, parando, apontara suabengala e dissera: "Bonito, bonito" o que era como uma estranha centelha nocorao que mostrava sua simplicidade, sua simpatia para com as coisas humildes;parecia-lhe, no entanto, que sua amizade cessara, ali, naquele trecho de estrada.Depois, Ramsay se casara. E mais tarde, com uma coisa e outra, a melhor parte de suaamizade se fora. De quem era a culpa, no saberia dizer; apenas, aps algum tempo, arepetio tomara o lugar da novidade. Era para repetir que se encontravam. Mas

  • nesse mudo colquio com as dunas ele insistia que sua afeio por Ramsay no tinhade modo algum diminudo; l estava como o corpo de um jovem encerrado em turfapor um sculo, a carne vermelha dos lbios sua amizade, em toda a sua agudeza erealidade, conservada do outro lado da baa, por entre as dunas.

    Angustiava-se ao pensar em sua amizade e talvez tambm por querer escapar acusao de que teria envelhecido e ficado enrugado. Enquanto Ramsay vivia numrebulio de filhos, Bankes no tinha nenhum e era vivo angustiava-se. No fosseLily Briscoe desprezar Ramsay (a seu modo uma grande pessoa); queria que elacompreendesse como as coisas eram entre eles. Sua amizade comeara h muitos anose acabara numa estrada de Westmoreland, onde uma galinha aninhara seus pintinhosentre as asas; depois, Ramsay se casara, e seus caminhos se separaram, e passou ahaver, sem dvida ningum era culpado disso , uma certa tendncia, quando seencontravam, repetio.

    Sim. Era isso. Acabara. Virou-se de costas para o mar. E, tendo-se voltado paraseguir por outro caminho, o Sr. Bankes emocionou-se com coisas que no o tocariam,se essas dunas no lhe tivessem revelado o corpo daquela amizade encerrado em turfa emocionando-se, por exemplo, com Cam, a menininha, a filha menor de Ramsay.Ela colhia um ramo de alelis junto gua. Era rebelde e violenta. No "daria uma florao cavalheiro", como a bab mandara. No! No! No! No daria! Cerrou os punhos ebateu o p. O Sr. Bankes sentiu-se velho e triste e de' certa forma enganado sobre suaamizade, s por causa dela. Devia ter envelhecido e ficado enrugado.

    Os Ramsays no eram ricos, e era um prodgio como conseguiam dar conta detudo aquilo. Oito filhos! Alimentar oito filhos de filosofia! L adiante passeava outrodeles, Jasper, que ia atirar num passarinho como disse com indiferena ao passar,sacudindo a mo de Lily como uma alavanca de bomba, coisa que fez o Sr. Bankescomentar amargamente que era ela a favorita. Havia tambm a educao a serconsiderada (era verdade que a Sra. Ramsay talvez possusse alguns bens), sem falarda roupa diria, o gasto dos sapatos e das meias, de que esses "respeitveis senhores",todos bem crescidos, angulosos, jovens despreocupados, deviam precisar. Quanto ater certeza de quem eram, ou em que ordem vinham, estava alm de sua capacidade.Chamava-os, na intimidade, pelos nomes dos reis e rainhas da Inglaterra: Cam aPerversa, James o Cruel, Andrew o Justo, Prue a Bela pois Prue seria linda,

  • pensou, e como poderia ser diferente? , e Andrew seria inteligente. Enquantocaminhava pela estrada e Lily Briscoe dizia sim ou no e concordava com seuscomentrios (pois gostava de todos, amava o mundo), ele ponderava o caso deRamsay, comiserava-se dele, invejava-o, como se o tivesse visto privar-se de todas asglrias do isolamento e austeridade que o coroaram na sua juventude, para seembaraar definitivamente no alvoroo e na agitao dos problemas caseiros. Essascoisas davam algo a Ramsay, reconheceu William Bankes; teria sido agradvel seCam tivesse prendido uma flor no seu casaco ou subido em seu ombro, como fazia como pai para olhar uma gravura do Vesvio em erupo; mas seus velhos amigos nopodiam deixar de sentir que se havia destrudo alguma coisa. O que pensaria umestranho agora? O que essa Lily Briscoe pensava? Poderia algum deixar de notar queRamsay adquirira certos hbitos? Excentricidades, fraquezas talvez? Era surpreendentecomo um homem de seu intelecto conseguira decair tanto como ele fizera mas essaera uma frase por demais rude e que pudesse depender tanto da aprovao dosoutros. Oh, mas pense na obra dele! disse Lily. Sempre que ela "pensava" naobra dele, via claramente diante de si uma grande mesa de cozinha. Era por culpa deAndrew. Perguntara-lhe de que tratavam os livros do pai. "O sujeito e o objeto e anatureza da realidade", respondera Andrew. E quando ela exclamara: "Cus", pois notinha a menor idia do que isso significava, ele acrescentara: "Pense numa mesa decozinha, ento, quando voc no est l."

    Assim, ela sempre via uma mesa de cozinha rstica, quando pensava na obra doSr. Ramsay. Estava pousada agora na forquilha de uma pereira, pois tinhamalcanado o pomar. E com um penoso esforo de concentrao, focalizou sua mente,no nas pregas prateadas da casca da rvore ou nas folhas, que tinham a forma depeixes, mas em uma mesa de cozinha imaginria, uma dessas toscas mesas de madeira,speras e cheias de ns, cuja principal virtude parece ser a de terem sempre ficado ali,despojadas, durante anos de integridade muscular, com as quatro pernas ao vento.Naturalmente, se a vida de uma pessoa transcorresse na viso dessas essnciasangulares, na reduo dessas noites maravilhosas com nuvens purpreas, azuis eprateadas, a uma mesa de pinho com quatro pernas (e era um sinal da maiorinteligncia faz-lo), naturalmente no se poderia julgar essa pessoa como algumcomum.

    Agradou ao Sr. Bankes que ela lhe tivesse pedido que "pensasse na obra dele".Ele pensara nisso muitas e muitas vezes. Vezes sem fim dissera: "Ramsay um desses

  • homens que fazem o melhor de sua obra antes dos quarenta." Dera uma contribuiodecisiva para a filosofia em um pequeno livro, quando tinha mais ou menos vinte ecinco anos; o que veio depois foi praticamente ampliao, repetio. S que o nmerode homens que do uma contribuio decisiva em qualquer sentido muito pequeno,disse ele, parando ao lado da pereira, muito compenetrado, com seu arescrupulosamente exato, perfeitamente judicial. Bruscamente, como se o movimento desua mo tivesse libertado Lily do peso das impresses acumuladas, estas inflaram erebentaram numa pesada avalanche com tudo o que ela sentia por ele. Era s umasensao. Ento, como uma fumaa, elevou-se a essncia do ser do Sr. Bankes. E agorahavia outra sensao. Sentia-se trespassada pela intensidade de sua percepo: era suaseveridade; sua bondade. Eu o respeito (dirigia-se a ele em silncio) em todos os seustomos; voc no vaidoso; extremamente altrusta; mais dedicado que o Sr.Ramsay; o melhor ser humano que conheo; no tem mulher nem filho (sem qualquersentimento sexual, ela ansiava por confortar sua solido), voc vive para a cincia(involuntariamente prateleiras de batatas surgiram diante de seus olhos); elogi-loseria um insulto para voc; generoso, puro de corao, um homem herico!Simultaneamente, porm, lembrou-se de que ele trouxera consigo um criado; que faziaobjees a cachorros subirem em cadeiras; que discorreria durante horas (at que o Sr.Ramsay sasse da sala batendo a porta) sobre sal nas verduras e a abominao dacozinha inglesa.

    Em que resultava tudo isso, ento? Como julgar os outros, pensar sobre osoutros? Como se acrescentava uma coisa outra e se conclua que era afeto ou desafetoo que se sentia? E que sentido atribuir a essas palavras, afinal? Ela estava de p, pertoda pereira, aparentemente transportada e inundada pelas impresses sobre esses doishomens. Seguir o pensamento dela era como seguir a voz que fala rpido demais paraque se possa tomar nota do que diz. E a voz era a sua prpria dizendo, sem que lhesoprassem nada, coisas inegveis, eternas, contraditrias, tanto que mesmo as fendas esalincias no tronco da pereira estavam irrevogavelmente fixadas ali por toda aeternidade. Voc tem grandeza, continuou ela, e o Sr. Ramsay no. Ele inferior,egosta, vaidoso, egocntrico; temperamental; um tirano; cansa a Sra. Ramsay at amorte; mas ele tem o que voc (dirigia-se ao Sr. Bankes) no tem: desapegado dascoisas mundanas; no se importa com insignificncias; gosta de cachorros e dos filhos.Tem oito. Voc no tem nenhum. No descera ele, uma dessas noites, com dois casacosnas costas, deixando que a Sra. Ramsay amparasse seu cabelo com uma bacia? Tudoisso rodava em sua mente, como um enxame de mosquitos, cada qual separado, mastodos maravilhosamente controlados por uma rede elstica e invisvel girava na

  • mente de Lily, no meio e ao redor dos ramos da pereira, onde ainda se dependurava aimagem da tosca mesa de cozinha, smbolo de seu profundo respeito pela intelignciado Sr. Ramsay, at que seu pensamento, que rodopiara cada vez mais rpido, explodiupor sua prpria intensidade; sentiu-se aliviada; um tiro partiu bem prximo, e surgiu,fugindo de seus estilhaos, num vo assustado, efusivo, tumultuado, um bando deestorninhos.

    Jasper! exclamou o Sr. Bankes. Voltaram-se na direo de onde haviamvoado os estorninhos, sobre o terrao. Seguindo a disperso rpida dos pssaros nocu, atravessaram a passagem na sebe e depararam-se imediatamente com Ramsay,que se precipitou tragicamente sobre eles: "Algum se equivocara!"

    Os olhos deste, translcidos de emoo, arrogantes de trgica intensidade,encontraram os deles por um segundo e pestanejaram beira do reconhecimento; masento, esboando um gesto at o rosto, como para afastar, expulsar, numa angustiante epersistente vergonha, o olhar deles, que era absolutamente normal, Ramsayparecia implorar-lhes que refreassem por um momento o que ele sabia ser inevitvel,como se impusesse a eles seu prprio ressentimento infantil por ter sido interrompido.Contudo, mesmo no momento da revelao, no seria completamente destroado,estava decidido a reter algo dessa deliciosa emoo a impura rapsdia de que seenvergonhava, mas com a qual se deleitava. Voltou-se abruptamente, batendo-lhes norosto a porta de seu gabinete; Lily Briscoe e o Sr. Bankes, olhando o cu pouco vontade, observaram que os estorninhos que Jasper desbaratara com sua espingardaforam se empoleirar em bandos no topo dos carvalhos.

    --

    2 Someone had blundered. A brigada em questo foi dizimada por um ataque herico, mas resultante de um erro na transmisso de umaordem. (N. da T.)

  • 5

    E mesmo que amanh o tempo no fique bom, ficar melhor noutro diaqualquer disse a Sra. Ramsay, erguendo os olhos para dar uma espiadela emWilliam Bankes e Lily Briscoe que passavam. E agora disse, pensando que ocharme de Lily eram os olhos de chinesa, oblquos no seu ros-tinho branco e enrugado;s que seria necessrio um homem muito inteligente para descobrir isso. E agorafique em p quieto e deixe-me medir sua perna. Pois, apesar de tudo, poderiam irao Farol, e tinha de verificar se a meia no precisava de uma ou duas polegadas a maisna perna.

    Sorrindo, pois uma idia admirvel surgira em sua mente naquele mesmo instante William e Lily deveriam casar-se , pegou a meia em tons de urze e cuja bocatinha desenhos em pontos de cruz feitos com agulhas de ao, e a mediu sobre a perna deJames.

    Meu querido, fique quieto disse, pois James, no seu cime, no gostava deservir de modelo para o filho menor do faroleiro; agitava-se de propsito e, assim,como poderia ela ver se estava comprida ou curta demais?, perguntou.

    Ergueu os olhos que demnio possua o filho menor, o seu querido? e,vendo a sala, as cadeiras, achou-as terrivelmente maltratadas. Suas entranhas comoAndrew dissera h dias estavam espalhadas pelo cho; mas ento, perguntou-se,que vantagem havia em comprar boas cadeiras para deix-las estragarem-se alidurante todo o inverno, quando a casa, com apenas uma velha para tomar conta, ficavaliteralmente encharcada de umidade? No importava: o aluguel era precisamente dedois pences e meio; as crianas a adoravam; fazia bem ao marido ficar a trezentasmilhas de sua biblioteca, das conferncias e discpulos; e havia lugar para visitas."

  • Esteiras, camas de campanha, carcaas desengonadas de cadeiras e mesas, e cadeirascujo tempo de utilidade em Londres terminara e que serviam bastante bem ali; umafotografia ou duas, e livros. Livros, pensou, cresciam por si mesmos. Nunca tinhatempo para l-los. Coitada! Nem mesmo os livros que lhe tinham sido dados eassinados pela mo do prprio poeta: "Para aquela cujos desejos devem serobedecidos"... " mais alegre Helena de nossos dias". .. Era vergonhoso confess-lo,mas nunca os lera. E Croom, escrevendo sobre o intelecto, e Bates, escrevendo sobreos costumes selvagens da Polinsia ( Meu querido, fique quieto disse), no sepoderia mandar nenhum desses para o Farol. Imaginava que um dia a casa ficaria toestragada que algo precisaria ser feito. Se eles conseguissem aprender a limpar os pse no trazer areia para dentro de casa, j seria alguma coisa. Caranguejos ela tinha depermitir, enquanto Andrew quisesse realmente dissec-los; e enquanto Jasperacreditasse que se poderia fazer sopa de algas, no se poderia evit-las; nem osobjetos de Rose: contas, juncos, pedras. Pois eram bem dotados, os seus filhos, s quede formas diferentes. E o resultado disso suspirou, enquanto media a sala com osolhos, apoiando a meia na perna de James era que a cada vero as coisas ficavammais gastas. O tapete estava desbotado; o papel de parede descolava. J no se podiadizer que havia rosas nele. Alm disso, se todas as portas de uma casa soinvariavelmente deixadas abertas, e nenhum serralheiro em toda a Esccia capaz deconsertar um ferrolho, claro que as coisas se estragam. De que servia colocar umxale verde de caxemira sobre a moldura de um quadro? Em duas semanas ficaria dacor de sopa de ervilhas. Eram as portas que mais a aborreciam; todas as portas eramdeixadas abertas. Punha-se escuta. A da sala de visitas estava aberta; a do vestbuloestava aberta; parecia que as do banheiro estavam abertas; e sem dvida a janela quedava para o cais estava aberta, pois ela mesma a abrira. Era simples janelasabertas, portas fechadas , contudo, ningum era capaz de se lembrar disso? Elaentraria nos quartos das empregadas, noite, e os encontraria trancados como fornos,exceto o de Marie, a moa sua, que preferiria passar sem um banho do que sem arfresco; dissera que na sua terra "as montanhas so muito lindas". Dissera-o ontem,olhando pela janela com lgrimas nos olhos. "As montanhas so muito lindas." Seu paiestava morte l, sabia a Sra. Ramsay. Ia deixar os filhos rfos. Ralhando edemonstrando (como fazer uma cama, como abrir uma janela, com mos que adejavamcomo as de uma francesa), tudo se acomodava tranqilamente a seu redor quando amoa falava, da mesma forma que, depois de um vo atravs da luz solar, as asas de

  • um pssaro se dobram tranqilamente e o azul de sua penugem muda de uma viva corde ao para um prpura suave. Permanecera parada em silncio, pois no havia nada adizer. Ele tinha cncer na garganta. Ao se lembrar de que ficara ali, de que a moadissera: "Em casa as montanhas so muito lindas", e de que no havia esperana,nenhuma esperana, teve um acesso de irritao; falando severamente, disse a James:

    Fique quieto. No seja desagradvel e ele viu instantaneamente que suaseveridade era real, endireitou a perna, e ela mediu a meia.

    Estava curta demais, pelo menos em meia polegada, mesmo considerando o fatode que o filho menor de Sorley devia ser mais baixo que James. Est curta demais,est muito, muito curta disse. Nunca algum pareceu to triste. Amarga e escura, ameio caminho nas trevas, sob o feixe de luz que fugia do sol para encerrar-se nasprofundezas, talvez uma lgrima se tenha formado; e uma lgrima caiu; as guasagitaram-se de um lado para o outro e receberam-na, depois acalmaram-se. Nuncaalgum pareceu to triste.

    Mas seria apenas a aparncia?, perguntavam as pessoas. O que havia por trs desua beleza, seu esplendor? Teria ele estourado os miolos, perguntavam, teria morridona semana anterior do casamento aquele outro amor, mais antigo, do qual se ouvirafalar? Ou no havia nada? Nada alm de uma incomparvel beleza atrs da qual elavivia e que nada conseguia perturbar? Em algum momento de intimidade quandohistrias de grandes paixes, de amores malogrados, de ambies contrariadas seapresentavam a ela poderia ter contado sobre quem conhecera, ou o que sentira epassara, mas nunca dissera nada. Estava sempre em silncio. Nesses instantes sabia sabia sem ter aprendido. Sua simplicidade penetrava no que as pessoas hbeisfalsificavam. A sinceridade de seu esprito a fazia dirigir-se s pessoas todiretamente como um fio de prumo, e pousar sobre seu objetivo com a exatido de umpssaro, dando-lhe normalmente uma versatilidade quanto verdade que deleitava,tranqilizava, sustentava falsamente talvez.

    "A natureza tem muito menos argila do que aquela com que a moldou", dissera oSr. Bankes certa vez, ao ouvir sua voz ao telefone, muito comovido, embora ela s lheestivesse dando uma informao sobre um trem. Ele a imaginava do outro lado dalinha, com seu ar grego e o nariz reto. Como parecia incongruente estar telefonando

  • para uma mulher assim. As Graas, reunindo-se, pareciam ter-se dado as mos emprados floridos de asfdelos para compor esse rosto. Sim, ele pegaria o trem das dez emeia em Euston.

    "Mas ela sabe menos da prpria beleza que uma criana", dissera o Sr. Bankes aopousar o receptor, atravessando a sala para ver o progresso dos trabalhadores no hotelem construo atrs de sua casa. E pensou na Sra. Ramsay ao ver toda aquela agitaopor entre as paredes inacabadas. Pois havia sempre algo incongruente a ser integradona harmonia de seu rosto, pensou. Ela punha s pressas um chapu de feltro; corria degalochas atravs do gramado para arrebatar uma criana de uma travessura perigosa.Assim, se pensava apenas em sua beleza, precisava lembrar-se dessa vitalidade, dessaagitao (os operrios carregavam tijolos por uma prancha enquanto os olhava), eintegr-las na sua imagem; ou caso se pensasse nela apenas como uma mulher, erapreciso dot-la de uma certa excentricidade idiossincrsica; ou supor nela um desejolatente de se libertar da realeza de sua forma, como se a sua beleza e tudo o que oshomens diziam sobre ela a aborrecessem, e ela quisesse ser to-somente como osoutros: insignificante. Ele no sabia. Precisava ir para o trabalho.

    Enquanto tricotava a felpuda meia marrom-avermelhada, com sua cabearecortada absurdamente pela moldura dourada, pelo xale que sobre ela lanara, epela obra-prima autenticada de Miguelngelo, a Sra. Ramsay abrandou a rudeza de suaatitude do momento anterior, levantou a cabea e beijou o filho na testa. Vamosachar outra gravura para recortar disse.

  • 6

    Mas o que sucedera? Algum se equivocara.Sobressaltando-se repentinamente, palavras que guardara no esprito sem a menor

    significao durante um longo tempo ganharam sentido. "Algum se equivocara."Fixando os olhos mopes no marido, que agora recorria a ela, abatido, fixou-o at quesua proximidade lhe revelou (o ressoar apaziguou-se em sua cabea) que alguma coisasucedera, que algum se equivocara. Contudo, por nada nesse mundo atentava no quefosse.

    Ele tremia; ele estremecia. Toda a sua vaidade, toda a sua satisfao com seuprprio esplendor, a cavalgar, caiu como um raio; orgulhoso como um falco frentede seus homens atravs do vale da morte, foi arrasado, destrudo. Bombardeados portiros e granadas, cavalgamos bem e com coragem; irrompemos pelo vale da mortefulminados por rajadas bem diante de Lily Briscoe e William Bankes. Eleestremecia; ele tremia.

    Por nada nesse mundo ela teria falado com ele, percebendo, pelos sinaisfamiliares seus olhos perturbados e um certo recolhimento curioso de sua pessoa,como que se resguardando, necessitado da solido para recuperar o equilbrio , quese sentia ultrajado e angustiado. Ela acariciou a cabea de James; transferiu para ele oque sentia pelo marido e, enquanto o - observava colorindo de amarelo a camisaengomada de um senhor do catlogo das Lojas do Exrcito e da Marinha, pensou emque maravilha seria para ela se ele se tornasse um grande artista; e por que no setornaria? Tinha uma esplndida testa. Ento, erguendo os olhos, quando o maridopassava por ela mais uma vez, sentiu-se aliviada por descobrir que a runa estavaencoberta; a domesticidade triunfava; o hbito engrenava em seu ritmo suave. Assim,ao se aproximar outra vez, ele parou resolutamente janela, curvou-se, caprichoso ezombeteiro, para fazer ccegas na perna despida de James com um ga-lhinho e elacensurou-o por ter rechaado "aquele pobre rapaz", Charles Tansley. Tansley tinha deentrar para escrever sua tese, respondeu ele.

  • James tambm ter de escrever a sua tese um dia desses acrescentouironicamente, agitando o gravetinho.

    Cheio de dio pelo pai, James afastou o irritante galhinho, que ele roava naperna despida do filho de uma forma que lhe era peculiar, composta de um misto deseveridade e humor.

    Estava tentando acabar essas meias interminveis para mand-las ao filho menorde Sorley amanh, disse a Sra. Ramsay.

    No havia a menor possibilidade de irem ao Farol amanh, irrompeu o Sr.Ramsay irascivelmente.

    Como podia sab-lo?, perguntou ela. Freqentemente o vento mudava.O extraordinrio irracionalismo de sua observao, a ilo-gicidade da mente

    feminina o enraiveciam. Ele cavalgara atravs do vale da morte, fora arrasado edestroado; e agora ela queria fugir realidade dos fatos, e fazia seus filhos esperarempor algo absolutamente fora de propsito. Na verdade, mentia. Bateu o p no degrau depedra e gritou: Dane-se! Mas que dissera ela? Simplesmente que talvez o dia ficassebonito no dia seguinte. E talvez ficasse mesmo.

    No com o barmetro caindo e o vento soprando do oeste.

    Perseguir a verdade com uma falta de considerao pelos sentimentos dos outrosto impressionante, to brutal, era para ela um ultraje to horrvel decncia humanaque, sem responder, entorpecida e cega, baixou a cabea como para deixar a saraivadade pedras, a enxurrada de gua imunda resping-la, sem qualquer censura. No havianada a dizer.

    Ele permaneceu ao seu lado em silncio. Por fim, humildemente, disse quepoderia sair e perguntar aos guardas se quisesse.

    No havia ningum a quem ela respeitasse tanto quanto a ele.

    Estava pronta a acreditar na sua palavra, disse. S que assim no precisavamfazer sanduches, apenas isso. Vinham at ela, o dia inteiro, precisando de uma coisaou outra, naturalmente, j que era mulher; cada um queria uma coisa; as crianasestavam crescendo; muitas vezes sentia que no passava de uma esponja encharcada,cheia de emoes humanas. Ento ele dissera: "Dane-se" e "Deve chover". E quando

  • ele dissera: "No chover", instantaneamente um cu de segurana se estendeu diantedela. No havia ningum a quem respeitasse mais. Sentia que no era boa o bastantepara amarrar o cordo de seus sapatos.

    J envergonhado de sua petulncia, da gesticulao de suas mos quandocomandava, frente de suas tropas, o Sr. Ramsay ainda uma vez roou, bastantehumildemente, as pernas despidas de seu filho e, depois, como se ela lhe tivesse dadopermisso para tal com um movimento que estranhamente lembrou sua mulher umgrande leo-ma-rinho no jardim zoolgico, dando uma guinada para trs aps engolir epartindo com dificuldade, fazendo a gua do tanque mexer de um lado para outro ,mergulhou no ar noturno que, j menos espesso, privava as folhas e as sebes de suaforma, mas, como que em troca, restitua s rosas e aos cravos um brilho que nohaviam tido durante o dia.

    Algum se equivocara tornou a dizer, andando com largas passadas paracima e para baixo no terrao.

    Mas como seu tom mudara! Era como o cuco que "em junho comea a desafinar";como se tentasse descobrir uma frase condizente com seu novo estado de esprito, e sconseguindo encontrar esta, usava-a, embora estivesse desafinando. Mas soavaridculo: "Algum se equivocara", dito assim, quase como uma pergunta, sem qualquerconvico, melodiosamente. A Sra. Ramsay no pde deixar de sorrir, e logo, andandode cima para baixo, ele passou a cantarolar e por fim silenciou.

    Estava a salvo e protegido em si mesmo. Parou para acender o cachimbo, olhouuma vez a mulher e o filho janela e como algum viajando num trem expresso, quelevanta os olhos de uma pgina e v uma fazenda, uma rvore, um amontoado dechals, como uma ilustrao, uma confirmao de um texto impresso, ao qual retornafortalecido e satisfeito sem distinguir a mulher, ou o filho, sua viso o fortaleceu eo satisfez, permitindo que seu esforo fosse consagrado, atingindo uma compreensoperfeitamente clara do problema que agora ocupava as energias de seu esplndidocrebro.

    Pois tratava-se de um crebro esplndido. Se o pensamento como o teclado deum piano, dividido em muitas notas, ou como o alfabeto, arrumado em vinte e seisletras, bem ordenadas, seu esplndido crebro no tinha a menor dificuldade empercorrer essas letras, uma por uma, resoluta e primorosamente, at alcanar, digamos,

  • a letra Q. Ele alcanava Q. Muito poucas pessoas em toda a Inglaterra chegam aalcanar Q. Nesse momento, detendo-se por um instante perto do vaso de pedra ondeestavam os gernios, viu, mas no muito longe como crianas catando conchas,divinamente inocentes e ocupadas com pequenas insignificncias a seus ps, e de certaforma completamente indefesas contra um destino que ele percebia , a mulher e ofilho juntos janela. Eles precisavam de sua proteo, e isso ele lhes dava. Masdepois de Q? O que vinha? Depois de Q havia um sem-nmero de letras, a ltima delasquase invisvel a olhos mortais, reluzindo a distncia, vermelha. Z s alcanada umavez, por um homem, em cada gerao. Porm, se pudesse alcanar R, j seria algumacoisa. Pelo menos, aqui estava o Q. Fincou os ps em Q. Estava seguro do Q. Poderiademonstrar o Q. Se Q Q-R... aqui ele esvaziou o cachimbo com duas ou trspancadinhas ressoantes na ala de chifre de carneiro do vaso e prosseguiu. "EntoR..." Endireitou-se. Contraiu-se.

    Qualidades que teriam salvo toda uma tripulao exposta ao mar agitado, comapenas seis biscoitos e uma garrafa d'gua resistncia, justia, preciso, devoo,habilidade vinham em seu auxlio. R ento... o que R?

    Algo se encobria como a plpebra encouraada de um lagarto epestanejava sob a intensidade de seu olhar, obscurecendo a letra R. Nesse segundo deescurido ele ouviu pessoas dizendo: voc um fracasso. R ficava alm de seualcance. Nunca alcanaria R. Adiante em direo ao R, mais uma vez. R...

    Qualidades que, numa expedio solitria atravs das desoladas extensesgeladas do rtico, t-lo-iam feito o capito, o guia, o conselheiro, cujo carter, nemardente nem desalentado, presidiria com equanimidade e encararia o inevitvel,viriam em seu auxlio mais uma vez.

    O olho do lagarto pestanejou de novo. As veias de sua testa intumesceram. Ogernio no vaso tornou-se surpreendentemente visvel e destacado entre as folhas;podia ver, sem o desejar, a velha, a bvia distino entre as duas espcies de homens;de um lado os que avanam com fora sobre-humana e, com esforo e perseverana,repetem o alfabeto inteiro, ordenadamente, vinte e seis letras ao todo, do comeo aofim; do outro lado os bem-dotados, os inspirados que, miraculosamente, vislumbramtodas as letras de uma s vez, numa nica viso o caminho dos gnios. Ele no era

  • genial; e no tinha nenhuma pretenso quanto a isso; mas tinha, ou poderia ter, acapacidade de repetir cada letra do alfabeto, de A a Z, primorosamente em ordem.Enquanto isso, fincou-se em Q. Adiante, ento, em direo ao R.

    Sentimentos que teriam desonrado um capito que agora, com a nevecomeando a cair, e o topo da montanha encoberto pela bruma, sabe que deve deitar-see morrer antes que chegue a manh abateram-se sobre ele, empalidecendo a cor deseus olhos, dando-lhe, mesmo naqueles dois minutos de seu passeio pelo terrao, o aresbranquiado e emurchecido da velhice. Ainda assim, no se deitaria; arranjaria umrochedo, e l, os olhos fixos na tormenta, tentando penetrar na escurido, at o fim,morreria de p. Nunca alcanaria R.

    Permaneceu de p, fincado no cho, junto ao vaso, onde flutuava o gernio. Mas,afinal, quantos homens em um bilho, perguntou-se, alcanam Z? Certamente o capitodos soldados desesperados pode se perguntar isso, e responder, sem trair o batalhoatrs de si: "Um, talvez." Um em cada gerao. Deveria ser culpado ento, se no eraele esse um, uma vez que trabalhara honestamente e dera o melhor de si, at que nadamais lhe restara para dar? E quanto duraria sua fama? permissvel, mesmo a um heri beira da morte, pensar, antes de morrer, que os homens falaro dele dali por diante.Sua fama duraria dois mil anos talvez. E que so dois mil anos (perguntou o Sr.Ramsay ironicamente, mirando a sebe)? O que so, na verdade, se voc olha do altode uma montanha para o longo passar dos sculos? At mesmo a pedra que a pessoachuta com a bota perdurar alm de Shakespeare. Sua pequena luz brilharia, mas nomuito, por um ano ou dois, e depois se fundiria em alguma luz maior, e esta numa aindamaior. (Olhou para dentro da escurido, para dentro do emaranhado dos ramos.) Ento,quem poderia culpar o capito desse batalho desesperado que, afinal, subirasuficientemente alto para ver o passar dos anos e o findar das estrelas se, antes damorte, enrijecesse suficientemente os membros para no mais poder moviment-los eerguesse com alguma solenidade os dedos entorpecidos at a fronte, endireitasse osombros, para que, quando o esquadro de salvamento chegasse, o achasse morto emseu posto, bela figura de soldado? O Sr. Ramsay endireitou os ombros e parou, muitocorreto, perto do vaso.

    Quem o culparia se, detendo-se assim de p por um instante, se preocupasse coma fama, com esquadres de salvamento, com as pirmides que seus discpulosagradecidos ergueriam sobre seus ossos? Por fim, quem culparia o capito da esquadracondenada se, tendo-se aventurado ao mximo e esgotado toda a sua fora, e tendoadormecido sem pensar muito se acordaria ou no, agora percebesse, por uma

  • comicho nos dedos dos ps, que ainda vivia? Em geral, no tinha objeo algumaquanto a viver; exigia apenas simpatia e usque, e algum para ouvir a histria de seusofrimento naquele mesmo instante. Quem o culparia? Quem no se rejubilariasecretamente quando o heri tirasse sua armadura e, parando junto janela, olhasse suamulher e seu filho a princpio muito distantes, mas gradualmente se aproximandocada vez mais, at que lbios, livro e cabea surgissem nitidamente diante de si,embora ainda adorveis e estranhos devido intensidade da solido dele, o passar dossculos e o findar das estrelas , e, finalmente, colocando o cachimbo no bolso,curvasse sua magnfica cabea diante da mulher, quem o culparia se ele prestassehomenagem beleza do mundo?

  • 7

    Mas seu filho o odiava. Odiava-o por se ter aproximado deles, por ter parado e

    olhado para eles. Odiava-o por t-los interrompido; odiava-o pela exaltao egrandeza de seus gestos; pela magnificncia de sua cabea; pela sua exigncia eegosmo (pois ali estava ele, exigindo-lhes ateno); mas, acima de tudo, odiava oescrnio, a afetao e a emoo de seu pai, cujas vibraes perturbavam asimplicidade perfeita, o bom senso de sua relao com a me. Olhando fixamente apgina, esperava com isso faz-lo retirar-se; apontando uma palavra, esperava chamaroutra vez a ateno da me para si, pois sabia, irritado, que esta comeara a vacilardesde o instante em que o pai chegara. Mas no. Nada faria o Sr. Ramsay sair dali. Aliestava ele, exigindo compreenso.

    A Sra. Ramsay, que at ento se sentara descontraida-mente, abraando o filho,empertigou-se e, voltando-se um pouco, pareceu se soerguer com esforo eimediatamente irradiar uma chuva de energia, um jato de espuma. Parecia ao mesmotempo animada e viva, como se todas as suas energias estivessem sendo fundidas numanica fora, ardendo e iluminando (embora se achasse tranqilamente sentada,retomando mais uma vez suas meias), e nessa deliciosa fecundidade, nessa fonte ejorro de vida, a esterilidade fatal do macho se lanou, como um bico de cobre, estril enu. Ele queria compreenso. Ele era um fracasso, disse. A Sra. Ramsay agitou asagulhas. O Sr. Ramsay repetia, sem despregar os olhos do rosto dela, o que ele queria.Ela devolveu-lhe as palavras em pleno rosto. "Charles Tansley..." disse. Mas eleprecisava mais do que isso. Era compreenso o que ele queria; que, antes de tudo, lheconvencessem de sua genialidade, e ento que o trouxessem de volta ao mago da vida,aquecido e reconfortado, para que seus sentidos lhe fossem restitudos, sua aridezfertilizada, e todos os cmodos da casa abarrotados de vida a sala de visitas e,atrs da sala de visitas, a cozinha; acima da cozinha, os quartos; e alm deles, osquartos das crianas; precisavam todos ser mobiliados, precisavam ser abarrotados devida.

    Charles Tansley o achava o maior metafsico de seu tempo, disse ela, mas eleprecisava mais do que isso. Precisava de compreenso. Precisava que o convencessem

  • de que ele tambm vivia no mago da vida; que era necessrio; no apenas ali, mas nomundo todo. Agitando as agulhas, confiante, correta, ela criou a sala de estar e acozinha, e as iluminou; convidou-o a acomodar-se l, entrar e sair, divertir-se. Ela riae tricotava. De p, entre seus joelhos, James, rgido, sentiu toda a fora dela emergindoe sendo tragada e dissipada pelo bico de cobre, pela rida cimitarra do macho, queferia impiedosamente, incessantemente, vida de compreenso.

    Ele era um fracasso repetia. Bem, ento veja, compreenda. Agitando asagulhas, olhando de relance a seu redor, pela janela, a sala, e o prprio )ames, ela lheasse- , gurou, para alm de qualquer sombra de dvida, por seu riso, seu equilbrio,sua competncia (como a ama, carregando uma luz atravs do quarto escuro, confortauma criana agitada), que tudo era real; a casa estava ntegra; ventava no jardim. Se eledepositasse uma f implcita nela, nada o atingiria, no importa quo fundo cienaufragasse ou quo alto subisse, nem por um segundo ele se veria sem ela. Assim,vangloriando-se de sua capacidade de vigiar e proteger, quase nada restava de si comque ela pudesse se reconhecer, tanto se prodigalizara e dissipara-; e James, sentadorgido entre seus joelhos, sentiu-a desabrochar numa rvore carregada de frutos, deflores rosadas, com folhas e galhos balouantes, em meio qual o bico de cobre, arida cimitarra do pai, o homem egosta, cravava-se e golpeava, vida decompreenso.

    Refeito pelas palavras dela, restabelecido, renovado, disse, por fim, olhando-acom humilde gratido como uma criana que adormece satisfeita , que iria daruma volta; iria olhar as crianas jogando crquete. E se foi.

    Imediatamente a Sra. Ramsay pareceu dobrar-se em copas, como se uma ptala sefechasse sobre a outra e todo o conjunto tombasse exaurido sobre si mesmo, tanto queela mal tinha fora para mexer o dedo, num delicioso abandono ao cansao, por sobrea pgina da histria fantstica de Grimm, enquanto palpitava atravs dela como avibrao de uma mola retesada ao mximo e que agora cessasse suavemente de pulsar o xtase da criao, vitoriosa.

    Cada uma das vibraes desse pulsar, enquanto ele se afastava, parecia uni-la aseu marido e dar a cada um deles a consolao que duas notas diferentes, uma grave,outra aguda, feridas ao mesmo tempo, se do uma outra quando se combinam.

  • Contudo, quando a ressonncia se desvaneceu e ela retornou histria de fadas, a Sra.Ramsay sentiu-se exausta, no apenas no corpo (afinal, no era s precisamentenaquele instante, pois sempre sentia isso); tambm toldava sua fadiga fsica uma levesensao desagradvel, que tinha outra origem. No era isso; enquanto lia em voz alta ahistria da Mulher do Pescador, sabia exatamente de onde aquilo advinha, mas no sepermitiu expressar seu desagrado quando percebeu ao virar a pgina, parando eouvindo o som surdo e ameaador de uma onda quebrando que aquilo advinhadisto: no gostava, nem por um instante, de sentir-se melhor que o marido. Alm domais, no podia suportar sua prpria incerteza quanto veracidade de suas palavras,ao falar-lhe. As universidades e as pessoas que o procuravam, as conferncias e oslivros nem por um instante duvidava da mxima importncia de tudo isso; era suarelao, e o modo como ele se aproximava dela, assim, abertamente, de tal forma quetodos podiam ver, que a perturbavam. Pois as pessoas diziam que ele dependia dela,quando deveriam saber que, dos dois, era ele o infinitamente mais importante, e que,comparada a ele, o que ela dava ao mundo era desprezvel. E havia tambm outracoisa: ela no era capaz de contar-lhe a verdade; receava, por exemplo, o estado dotelhado da estufa e o custo de seu conserto talvez umas cinqenta libras; e no quedizia respeito a seus livros: temia que ele percebesse o que ela suspeitava: que o seultimo livro no era exatamente o melhor (descobrira isso atravs de William Banhes);e, depois, havia os pequenos problemas cotidianos que era preciso esconder e que ascrianas percebiam e que pesavam sobre todos tudo isso diminua a alegriaperfeita,] a pura alegria das duas notas soando juntas, e fazia com que o som sedesvanecesse em seu ouvido, com uma horrvel insipidez.

    Havia uma sombra sobre a pgina; ergueu os olhos. EraAugustus Carmichael passando, com seu andar bamboleante, precisamente agora,exatamente no instante em que lhe era to doloroso lembrar-se de que as relaeshumanas so falhas e no resistiam ao exame a que ela as submetia em meio ao amorpor seu marido e com sua nsia de veracidade; no instante em que lhe era penososentir-se convencida da sua indignidade e impedida de cumprir suas funes devido aessas mentiras, esses exageros foi nesse instante, quando se agitavato ignominiosamente no despertar de sua exaltao, que o Sr. Carmichael passou, comseus chinelos amarelos, e algum demnio dentro dela obrigou-a a gritar, quando elepassava:

  • J vai entrar, Sr. Carmichael?

  • 8

    Ele no disse nada. Tomara pio. As crianas diziam que tingia a barba de louro

    com pio. Talvez. O que lhe parecia bvio que o pobre homem era infeliz, e vinhapara ali todos os anos como uma fuga; e mesmo assim, a cada ano ela sentia a mesmacoisa: ele no confiava nela. Dizia-lhe: "Vou cidade. Quer selos, papel, fumo?" e osentia estremecer. No confiava nela. Era por culpa da mulher dele. Lembrava-se desua perversidade para com ele, o que a fez sentir-se rgida e penalizada naqueleterrvel quartinho em St. John's Wood, quando vira, com seus prprios olhos, aquelaodiosa mulher coloc-lo porta afora. Ele era descuidado; derramava coisas no casaco;tinha o cansao de um velho sem nada para fazer da vida; e ela o pusera porta afora.Ela dissera, com seus modos odiosos: "Agora a Sra. Ramsay e eu queremosconversar", e a Sra. Ramsay pde ver assim, com seus prprios olhos, as inmerasinfelicidades de sua vida. Teria ele dinheiro suficiente para comprar fumo? Teria depedi-lo? Meia coroa? Dezoito pences? Oh, ela no podia suportar o pensamento daspequenas indignidades que ela lhe impusera. E sempre, agora (por qu, no conseguiadescobrir, exceto que provavelmente se devia, de alguma forma, quela mulher), elefugia dela. Nunca lhe contava nada. Mas o que mais podia fazer? Ela lhe reservava umquarto ensolarado. As crianas eram boas para ele. Nunca lhe mostrava o menor sinalde repdio. Na verdade, ela se desviava de seu caminho apenas para ser gentil. Querselos, quer fumo? Aqui est um livro de que dever gostar, etc. E afinal afinal (aquise contraiu insensivelmente, pois a noo de sua beleza tornou-se-lhe presente, coisaque acontecia poucas vezes), afinal geralmente no tinha dificuldade alguma em fazeras pessoas gostarem dela; por exemplo, George Manning; o Sr. Wallace; famososcomo eram, se aproximariam dela tranqilamente noite para conversarem sozinhosjunto ao fogo. Ela trazia consigo, sem que pudesse se impedir de sab-lo, a tocha dabeleza; e a carregava aprumada, em qualquer sala que entrasse; e, afinal, emboraquisesse escond-la ou recuar diante da monotonia que lhe impunha carreg-la, suabeleza era evidente. Fora admirada. Entrara em salas onde se sentavam pessoas deluto. Lgrimas correram em sua presena. Homens, e tambm mulheres, esquecendo-sepor um instante da multiplicidade das coisas, se permitiram sentir com ela o alvio dasimplicidade. Ofendia-a que ele lhe fugisse. Magoava-a. E ainda, fugia-lhe de forma

  • errada, incorreta. Era isso que a importunava, vindo exatamente depois do desgostoque seu marido lhe dera; era esta a sua sensao agora que o Sr. Carmichael passava,bamboleante, apenas sacudindo a cabea como resposta sua pergunta, com um livrodebaixo do brao e os chinelos amarelos: ele desconfiava dela; e todo esse seu desejode dar, de ajudar, no era seno vaidade. Era para sua auto-satisfao que queria toinstintivamente dar, ajudar, para que as pessoas dissessem: "Oh, a Sra. Ramsay! aquerida Sra. Ramsay... a Sra. Ramsay, decerto!" e precisassem dela, e a chamassem e aadmirassem? No era isso que queria secretamente? E por isso, quando o Sr.Carmichael fugia dela, como fez naquele momento, refugiando-se em algum canto ondecomporia versos acrsticos sem fim, no se sentia repudiada apenas em seu instinto,mas consciente da mesquinharia que havia em alguma parte dentro dela e daimperfeio dos relacionamentos humanos, e de como as pessoas eram desprezveis eegostas, por mais que se esforassem. Velha e gasta, j no sendo, presumivelmente,uma viso que enchesse os olhos de alegria (suas faces estavam cavas, o cabelobranco), seria melhor que devotasse seu esprito histria do Pescador e sua Mulher, eassim acalmasse esse feixe de sensibilidade que era seu filho James (pois nenhum deseus filhos era to sensvel quanto ele).

    "O corao do homem se entristeceu" leu em voz alta ; "ele no queria.Disse consigo mesmo: No direito mas mesmo assim, foi. E quando chegou aomar, a gua estava prpura e azul-marinho, cinzenta e espessa e no mais verde eamarela mas ainda tranqila. Ficou ali e disse..."

    A Sra. Ramsay desejaria que seu marido no tivesse escolhido aquele instantepara se deter. Por que no foi olhar as crianas jogarem crquete, como dissera? Masele no falava; olhava, concordava, aprovava; continuou andando. Prosseguia, vendodiante de si aquela sebe que, vez aps vez, ilustrara alguma incerteza, significaraalguma concluso, vendo a mulher e o filho, vendo de novo os vasos com os gerniosvermelhos enfileirados, que tantas vezes ornamentaram seqncias de pensamento eque as traziam escritas entre suas folhas, como se fossem pedaos de papel em que serabisca notas, na pressa da leitura prosseguiu, vendo tudo isso, se deixandosuavemente deslizar numa especulao sugerida por um artigo do Times sobre onmero de norte-americanos que visitam a casa de Shakespeare todos os anos. SeShakespeare nunca houvesse existido perguntou-se seria hoje o mundo muitodiferente do que ? Ser que o progresso da civilizao depende dos grandes homens?Seria o destino do ser humano mdio melhor hoje do que no tempo dos Faras?

  • Contudo, continuou se indagando, ser o destino do ser humano mdio o critrio parajulgarmos a civilizao? Possivelmente no. Possivelmente o bem-estar dahumanidade exige a existncia de uma classe de escravos. O ascensorista do metr uma necessidade eterna. Esse pensamento lhe foi desagradvel. Sacudiu a cabea. Paraevit-lo, acharia algum modo de se opor superioridade das artes. Argumentaria que omundo existe para o ser humano mdio, que as artes so mera decorao imposta vida humana e que no a expressam. Nem Shakespeare necessrio. Sem saberprecisamente por que queria desprezar Shakespeare e chegar libertao daquelehomem que fica eternamente porta do elevador, arrancou bruscamente uma folha dasebe. Teria de repassar tudo isso aos jovens de Cardiff, no prximo ms, pensou; aqui,em seu terrao, estava somente acumulando as provises, fazendo um piquenique(atirou fora a folha que pegara to ansiosamente), como um homem que se estica, noseu cavalo, para pegar um ramo de rosas ou encher os bolsos com nozes, trotando vontade atravs das plancies e campos de um lugar conhecido desde a infncia. Tudolhe era familiar; essa curva, essa cancela, aquele atalho atravs dos campos. Passariahoras seguidas numa noite pensando assim, com seu cachimbo, vagando de um ladopara o outro nas velhas e familiares plancies e pastos que identificava pela histria deuma campanha aqui, a vida de um homem de estado mais adiante, por poemas eanedotas, e tambm por figuras ilustres, por este pensador, aquele soldado; tudo muitorpido e claro; mas por fim a plancie, o campo, o pasto, a nogueira cheia de frutos e asebe florida o levavam alm da curva da estrada, onde sempre desmontava do cavalo,amarrava-o a uma rvore e prosseguia a p, sozinho. Chegava extremidade dogramado e olhava a baa, embaixo.

    Era seu destino, sua peculiaridade, desejasse-o ou no, vir dar assim naquelaponta de terra que o mar roa vagarosamente, e ficar ali, como um pssaro marinhodesgarrado e s. Era seu poder, seu dom, dispersar todas as superficialidades,encolher e diminuir, parecendo mais despojado e se sentindo at fisicamente poupado,sem contudo perder nada da intensidade de sua mente. Permanecendo de p ali, naquelaponta de terra, voltado para a escurido da ignorncia humana, pensava que nadasabemos, e como o mar corri o solo onde estamos era este seu destino, seu dom.Mas tendo se libertado, ao desmontar do cavalo, de todos os gestos esuperficialidades, todos os trofus de nozes e rosas, tendo mirrado tanto, que seesquecera no s da fama, como tambm de seu prprio nome, manteve, mesmonaquele deserto, uma vigilncia que no dispensava nenhuma imagem, nem sedispersava em viso alguma, e era por esse aspecto que infundia em William Bankes

  • (intermitentemente) e em Charles Tansley (obsequiosamente) e agora em sua mulher quando ela erguia os olhos e o via de p na extremidade do gramado umareverncia, uma compreenso e uma gratido profundas; assim tambm a estacaespetada num canal, onde pousam as gaivotas e as ondas quebram, inspira umsentimento de gratido em alegres barcos de carga por ter tomado somente a si oencargo de marcar o caminho ali, no meio da correnteza.

    Mas o pai de oito filhos no tem outra alternativa. . . murmurou a meia-voz.Deteve-se, voltou-se, suspirou e, erguendo os olhos, procurou a figura de sua esposacontando estrias para seu filho pequeno; encheu o cachimbo. Fugiu viso daignorncia humana, do destino humano e do mar corroendo a terra onde pisamos, que,fosse ele capaz de encarar fixamente, talvez tivesse levado a algum resultado; eencontrou consolo em insignificncias to pequenas, se comparadas com o magnficotema que tivera diante dos olhos ainda h pouco, que se sentiu inclinado a reprovaresse consolo, desvaloriz-lo, como se o fato de ser apanhado feliz num mundo demisrias, para um homem honrado, constitusse o mais desprezvel dos crimes. Eraverdade; ele era quase completamente feliz; tinha sua esposa; tinha seus filhos;prometera que dali a seis semanas diria "algumas tolices" aos jovens de Cardiff sobreLocke, Hume, Berkeley e as causas da Revoluo Francesa. Mas isso, e o prazer quelhe proporcionava, as frases que compunha, o ardor da juventude, a beleza de suamulher, as homenagens que lhe mandavam deSwansea, Cardiff, Exeter, Southampton, Kidderminster, Oxford, Cambridge tudotinha de ser desvalorizado e dissimulado sob a frase "dizer tolices", porque, comefeito, no fizera o que poderia ter feito. Era um disfarce; era o refgio de um homemque temia se apoderar de seus prprios sentimentos, que no podia dizer: disso quegosto, isto o que sou; e isso parecia bastante lastimvel e desagradvela William Bankes e Lily Briscoe, que se perguntavam por que ele precisava dessasdissimulaes; por que precisava sempre de elogios; por que um homem to valente noterreno do pensamento era to tmido na vida; e como ele era estranhamente respeitvele ridculo ao mesmo tempo.

    Ensinar e pregar ultrapassam as foras humanas, suspeitava Lily. (Estavaguardando suas coisas.) Os que aspiram muito alto acabam se dando mal. A Sra.Ramsay dava com facilidade demais tudo o que ele lhe pedia. Por isso que amudana deve ser to perturbadora continuou Lily. Sai de seus livros e nos encontrajogando e dizendo tolices. Imagine o contraste entre isso e as coisas que pensa.

  • Ele caminhava na direo deles. De repente se deteve e, esttico, ficou olhando omar, em silncio. Agora se voltou, e afastou-se novamente.

  • 9

    Sim, disse o Sr. Bankes, vendo-o afastar-se. Era terrvel (Lily dissera algumacoisa sobre como ele a assustava ao mudar de estado de esprito to repentinamente).Sim, disse o Sr. Bankes, era terrvel que Ramsay no conseguisse se comportar comoas outras pessoas (pois gostava de Lily Briscoe; podia discutir sobre Ramsay com elacom toda a franqueza). Por essa razo continuou que os jovens no lemCarlyle: acham-no um jogador velho e rabugento, que perde a calma sem a menorrazo. Com que direito ele nos faz pregaes? era isso que o Sr. Bankes entendiacomo a opinio dos jovens modernos. Era terrvel pensar como ele fazia queCarlyle foi um dos grandes pregadores da humanidade. Lily ficou envergonhada deconfessar que no lia Carlyle desde que sara do colgio. Mas em sua opinio aspessoas ainda gostavam mais do Sr. Ramsay por ele achar que uma pequena dor nodedo mindinho era o fim do mundo. Mas no era isso que a importunava. Pois quem sedeixaria enganar por ele? Pedia abertamente a todos que o admirassem, e seuspequenos rodeios no enganavam a ningum. Ela no gostava era de sua intolerncia,sua cegueira, disse, seguindo-o com os ; olhos.

    Um tanto hipcrita talvez? sugeriu o Sr. Bankes, olhando tambm as costasdo Sr. Ramsay, pois no estava pensando na sua amizade por Cam, no fato de ela ter senegado a lhe dar uma flor, e em todos esses meninos e meninas, e em sua prpria casa,muito confortvel, mas, desde a morte de sua mulher, to silenciosa? Claro, tinha seutrabalho. . . De qualquer forma, bem que gostaria de ouvir Lily concordar que Ramsayera, conforme afirmara, "um tanto hipcrita".

    Lily continuou guardando os pincis, erguendo e baixando os olhos. Ao levantar acabea, ela via o Sr. Ramsay, caminhando em sua direo, num andar incerto,descuidado, o ar ausente, distante. Um tanto hipcrita?, repetiu ela. Oh, no, o maissincero dos homens, o mais honesto (l estava ele), o melhor; mas, baixando os olhos,pensou: ele egosta, tirnico, injusto; e continuou com os olhos baixospropositadamente, pois somente assim poderia manter-se imperturbvel entre os

  • Ramsays. No momento em que ela os erguia e os via, sentia-se inundada pelo quechamava de "estado de amor". Passavam a fazer parte do universo irreal, maspenetrante, que o mundo visto atravs dos olhos do amor. O cu se ligava a eles; ospssaros cantavam atravs deles. E, o que era ainda mais emocionante, alm disso elasentia ao ver o Sr. Ramsay derrotado, retirando-se abatido, e a Sra. Ramsaysentada com James janela e a nuvem movendo-se e a rvore dobrando-se que avida, por ser composta dos pequenos incidentes insignificantes que uma pessoa viveum a um, se tornava contnua e completa, como uma onda que a tivesse alado com elae depois a lanado de novo na areia da praia, ao quebrar-se.

    O Sr. Bankes aguardava sua resposta. E, quando ela estava para criticar a Sra.Ramsay, dizendo que tambm ela era temvel a seu modo, arbitrria, ou uma coisadesse gnero, o Sr. Bankes sentiu um tal enlevo que lhe tornou inteiramentedesnecessrio falar. Pois era enlevo o que sentia, considerando-se sua idade maisde sessenta , sua correo, seu desprendimento e a aura cientfica que pareciaenvolv-lo. Pois o olhar que Lily o viu dirigir Sra. Ramsay era, nele, um enlevoequivalente, sentiu ela, ao amor de dzias de jovens (e talvez a Sra. Ramsay nuncativesse despertado o amor de dzias de jovens). Era amor, pensou, fingindo mexer natela, amor destilado e filtrado; amor que nunca chegou a apreender seu objeto; masque, como o amor que os matemticos tm por seus smbolos ou os poetas por suasfrases, deveria se espalhar por todo o mundo e se tornar parte do quinho universal. Eassim era. O mundo poderia ter compartilhado desse amor amplamente, se o Sr. Bankestivesse conseguido dizer por que aquela mulher lhe agradava tanto; por que, ao v-lasentada e lendo um conto de fadas para o filho, ela exercia sobre ele exatamente omesmo efeito que a soluo de um problema cientfico, fazendo-o permanecer emcontemplao, com uma sensao semelhante que tinha ao chegar a alguma conclusoirrefutvel sobre o sistema digestivo das plantas, vencendo a barbrie e subjugando oreino do caos.

    Tal enlevo pois de que outra forma se podia cham-lo? fez Lily Briscoeesquecer-se completamente do que ia dizer. No era nada de importante; algumcomentrio sobre a Sra. Ramsay, que se desvanecera diante desse "enlevo", desseolhar silencioso, pelo qual se sentiu imensamente grata; pois nada a consolava tanto,diminua tanto sua perplexidade diante da vida, como esse poder sublime, esse domcelestial. E, enquanto durasse, ningum pensaria em perturb-lo, bem como a essa

  • fmbria de luz derramando-se pelo cho.

    Enlevava-a que as pessoas se amassem assim, ajudava-a que o Sr. Bankessentisse tudo isso pela Sra. Ramsay. Olhou-o meditativa enquanto secava, um a um, ospincis num trapo, propositadamente servil. Ela se refugiou na reverncia devotada atodas as mulheres e se sentiu lisonjeada. Que olhasse. Ela mesma daria uma espiadelaem seu quadro. Poderia chorar. Estava ruim, ruim, infinitamente ruim! Pol deria t-lofeito completamente diferente, no h dvida; a cor poderia ser mais fluida edesmaiada; as formas, mais etreas assim o teria visto Paunceforte. Mas ela no ovia assim. Via a cor queimando numa moldura de ao; ai luz da asa de uma borboletapousada nos arcos de uma catedral. De tudo isso, restavam somente uns poucos traosriscados ao acaso no restante da tela. E esta nunca seria vistas nem mesmodependurada. E ali estava o Sr. Tansley sussurrando no seu ouvido: "As mulheres nosabem pintar, as mulheres no sabem escrever..."

    Agora se recordou do que pretendia dizer sobre a Sra. Ramsay. No sabia comoo expressaria, mas seria algo crtico. Tinha-se irritado, uma noite dessas, com certaarbitrariedade por parte dela. Enquanto olhava na mesma direo que o Sr. Bankes,pensava, mulher alguma reverenciaria outra mulher como ele o fazia; a elas restavaapenas abrigar-se sombra que o Sr. Bankes estendia a ambas. Seguindo o olhar do Sr.Bankes, e emprestando-lhe sua maneira de ver, pensou que a Sra. Ramsay (curvadasobre o livro) era, sem dvida, a mais adorvel, talvez a melhor das pessoas; mastambm diferente daquela forma perfeita que se via ali. Mas em que e por quediferente?, perguntou-se, raspando de sua palheta todos os montculos de azul e verdeque lhe pareciam agora apenas massas inertes. Contudo, esperava inspir-las, for-lasa se mover e flutuar e de novo a obedecer-lhe, no dia seguinte. Em que ela eradiferente? Que havia de espiritual, de essencial nela, a ponto de, se encontrassem umaluva no canto do sof, saberiam, devido a um dedo torcido, que era incontestavelmentedela? Era como um pssaro feito para a velocidade, uma fleeha para o alvo. Eraperseverante, autoritria ( claro, estou me lembrando de sua relao com as mulheres,e sou muito mais moa que ela uma pessoa insignificante que mora alm da estrada deBrompton). Abria as janelas dos quartos. Fechava as portas. (Assim tentavareconstituir o ritmo da Sra. Ramsay em sua mente.) Chegava tarde da noite, batia deleve na porta do quarto, envolvida num velho casaco de peles (pois sua beleza sempresurgia assim casual, mas apropriada), imitaria qualquer coisa: Charles Tansley

  • perdendo o guarda-chuva; o Sr. Carmichael fungando e espirrando; o Sr. Bankesdizendo "perde-se todo o sal mineral dos legumes". A tudo isso ela daria forma comhabilidade, at mesmo exagerando, e com malcia; e, movendo-se at a janela, fingindoter de partir amanhecia, podia ver o sol nascendo , voltava-se parcialmente, commais intimidade, mas sempre ainda rindo, e insistia em que ela precisava, e Mintatambm, todas precisavam casar-se. Pois no mundo inteiro, por mais homenagens quelhe concedessem (mas a Sra. Ramsay no dava a mnima importncia sua pintura),por mais triunfos que lhe granjeassem (a Sra. Ramsay provavelmente tambm tiveraos seus) e aqui entristeceu-se, abateu-se, e voltou a sentar-se , no se poderiane