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MEMÓRIA DESCRITIVA E ANALÍTICA Dimenti: cena, afetos e prótese Por: Ellen Mello dos Santos Cruz Salvador Julho de 2005 Created with novaPDF Printer (www.novaPDF.com). Please register to remove this message.

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MEMÓRIA DESCRITIVA E ANALÍTICA

Dimenti: cena, afetos e prótese

Por: Ellen Mello dos Santos Cruz

Salvador

Julho de 2005

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Universidade Federal da Bahia

Faculdade de Comunicação

MEMÓRIA DESCRITIVA E ANALÍTICA

Dimenti: cena, afetos e prótese

Projeto Experimental para obtenção do título de

Bacharel em Comunicação Social, com habilitação em

Jornalismo, na Faculdade de Comunicação da

Universidade Federal da Bahia.

Por: Ellen Mello dos Santos Cruz

Orientador: Nadja Miranda

Salvador

Julho de 2005

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“Era uma vez um equilibrista. Vivia em cima de um fio, sobre um abismo.

O equilibrista ainda era bem jovem quando descobriu que ele mesmo é que

tinha de ir inventando o que acontecia com o fio.”

O Equilibrista - Fernanda Lopes Almeida

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO....................................................................................... 5

2. AS FRONTEIRAS.................................................................................. 6

3. AMBIENTE INFORMACIONAL........................................................ 9

4. AUTORIA COMPARTILHADA.......................................................... 12

5. HISTÓRICO NOSSO............................................................................. 16

6. DOS ESPETÁCULOS............................................................................ 17

7. A PRODUÇÃO........................................................................................ 23

8. DAS ETAPAS.......................................................................................... 26

9. BIBLIOGRAFIA.................................................................................... 32

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MEMÓRIA DESCRITIVA E ANALÍTICA

Dimenti: cena, afetos e prótese

INTRODUÇÃO

Nem sempre pude ter uma relação tão bem resolvida com a faculdade. Comecei a

trabalhar com as artes cedo, logo no segundo semestre da minha trajetória universitária, e era algo

que detonava um prazer fora do comum. Foi com o Dimenti – grupo que trabalha com artes

cênicas numa perspectiva interdisciplinar - que comecei a investigar e me aprofundar num

trabalho que coordena e relaciona gestão cultural, assessoria de comunicação e planejamento de

marketing. Talvez por falta de maturidade, não conseguia fazer as relações entre os conteúdos

estudados na Academia e a tão suculenta “vida real”. O certo é que acabei dicotomizando as

coisas, indo de encontro ao pensamento complexo que rege a contemporaneidade1, e fiz uma

perigosa divisão entre prática e teoria. Acabei optando pela “prática” e a faculdade foi na maioria

das vezes ocupando um lugar menos privilegiado dentro das minhas prioridades.

Meu Projeto Experimental é um ensaio de redenção, uma espécie de tentativa de reaver

qualquer tempo perdido e, pela primeira vez, fazer uma articulação honesta entre o meu trabalho

“fora” da faculdade e as reflexões nela apreendidas. Assim optei por trazer - finalmente - o

Dimenti para o meu trabalho de fim de curso. Mas ainda precisava descobrir como inseri-lo neste

ambiente, por vezes estranho até mesmo a mim. Visitando textos, livros, rememorando aulas e os

trabalhos elaborados, fui pesquisando a melhor forma de trazer a minha experiência e formação

1 “É nessa mentalidade que se deve investir, no propósito de favorecer a inteligência geral, a aptidão para problematizar a realização da ligação dos conhecimentos. (...) Não esqueçamos que a cultura das humanidades favorece a aptidão para a abertura a todos os grandes problemas, para meditar sobre o saber e para integrá-lo à própria vida, de modo a melhor explicar, correlativamente, a própria conduta e o conhecimento de si.” (MORIM, Edgar. A Cabeça Bem-Feita. Rio de janeiro: Bertrand Brasil, 2003 – p.33).

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de uma maneira que pudesse dar conta de explorar de forma aprofundada a minha relação com o

Dimenti. Como dizia Dom Casmurro2, era preciso atar as duas pontas...

Outro dado que não poderia ocultar aqui é a minha primeira graduação em Publicidade e

Propaganda na UCSAL. Concluí o curso em 2000 e, por se tratar de uma outra faceta da

comunicação, somou informação e experiência ao meu Projeto Experimental. Assim trabalho

com o Dimenti, buscando equalizar três vertentes da Comunicação: a publicidade, o jornalismo e

a produção cultural. E articulá-las verdadeiramente é um objetivo que estou sempre perseguindo.

Cada situação por se resolver ou decisão a se tomar, buscamos analisá-las à luz desses três vieses

comunicacionais. Ver um objeto sob diversas formas é sempre interessante para um debate mais

aprofundado.

AS FRONTEIRAS

Não foram poucas as vezes que eu e minha orientadora debatemos e trocamos idéias sobre

esse limbo conceitual no qual se encontrava o produto que estava sendo elaborado – livro-

reportagem, folder, catálogo, diário, manual. Nenhuma delas conseguia com os seus conceitos

preencher em sua totalidade as características do produto que estava desenvolvendo. Por vezes,

isso foi um dificultador. É sempre muito complicado não estar inserido numa categoria. A

bibliografia a ser estudada é maior, a escolha da banca precisa ser cautelosa.

O Dimenti, que trabalha borrando as fronteiras das linguagens artísticas, muitas vezes já

sofreu as conseqüências de não poder suprir uma necessidade que as pessoas teimam em

segregar, engavetar, separar “o joio do trigo”, para se sentirem mais aptas para fruir uma obra. Já

2 ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. São Paulo: Editora Ática, 1999. O personagem título do romance diz: “O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice adolescência.”

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perdemos editais, prêmios, seleções de festivais e espaço na mídia. Mas ganhamos também um

público diverso, um raio de ação maior e desdobramentos estéticos interessantes. “Cada um sabe

a dor e a delícia de ser o que é”3.

Parecia que não tinha outro destino para o livro, teria que expurgar as mesmas

dificuldades. Não ser essencialmente nenhum modelo pré-existente e, ao mesmo tempo, muitos

deles juntos – algo que fosse único e diverso. Não que essa mistura de gêneros seja algo

exatamente novo. “O Alienista”4 de Machado de Assis, lançado em 1882, por exemplo,

revolucionou, e causa furor até hoje, quando misturou características de conto, romance e novela

em sua obra. Tolo, quem perde tempo para matar essa charada tendo coisas tão mais interessantes

a fruir nesta obra de Machado.

Da publicidade, trouxe a idéia de complementar os sentidos com as imagens. De cortar

palavras também. O lema de “uma imagem vale mais do que mil palavras” me serviu algumas

vezes. Um livro que não precisasse ter calhamaços de páginas, que pudesse extrapolar uma

diagramação comum, uma tipografia clássica... A poética visual do seu layout era algo a ser

levado em conta. Era preciso experimentar e poder jogar fora o que não nos fosse útil. Viver tudo

que o nome “arte gráfica” pode nos remeter. O design do livro não viria como um bônus, um

acessório, mas seria parte dele, assim como a escritura. Este projeto gráfico, sua metodologia e

suas contribuições poéticas singulares irão ser discutidos melhor mais tarde, nas etapas de

produção do Projeto.

Essa importância do aspecto gráfico deste produto viria para dar conta da necessidade que

o livro tinha de ser, por si só, a linguagem dimentiana, não apenas um veículo, um falar sobre.

Era preciso, em si mesmo, ser a linguagem. Assim, cores, visual feérico e modernoso, excessos,

3 Caetano Veloso em música intitulada “Dom de Iludir” – Disco “Totalmente Demais ao Vivo”, 1986 – Polygram. 4 “O Alienista” foi a primeira montagem do Dimenti.

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barroco e clássico em doses apropriadas, eram alguns ingredientes que conviviam no briefing5 da

programação visual deste livro. Um processo de criação também muito difundido dentro do meio

publicitário – e utilizado por outros tantos segmentos - é o brainstorm6. Essa é uma ferramenta

que uso até hoje em todos os trabalhos e utilizei também para o meu Projeto Experimental, desde

quando ainda não sabia exatamente o que gostaria de fazer como trabalho de fim de curso, até

mesmo para decidir as fotos que seriam interessantes para compor este livro. O brainstorm pode

ser praticado individualmente ou em grupos de 10 ou 12 pessoas. A parte fundamental do método

é a ideação, durante a qual deve haver total desinibição e contínua estimulação dos presentes,

para externarem qualquer idéia, sejam as mais evidentes, sejam as mais absurdas. Banir qualquer

crítica. Freqüentemente, duas ou mais idéias, mesmo absurdas, quando combinadas, são a chave

para a solução do problema em discussão, isto é, uma idéia cresce pela anexação de outras, por

contigüidade, semelhança ou contraste. Juntos é mais fácil!

Ao pensar em palavras como aprofundamento, liberdade, relação, sinceridade e

ampliação, fui chegando perto do gênero jornalístico do Livro-Reportagem. Ao mesmo tempo, a

possibilidade de ter um produto concreto, um projeto vivo, algo que eu não colocasse dentro de

uma gaveta para cair no esquecimento, uma ferramenta de propaganda e divulgação e que

pudesse somar à minha formação profissional, ia também gerando um desejo em empreender e

produzir essa idéia. Mais uma vez os três pilares da minha formação se encontravam e se

combinavam.

E assim como estava trazendo o Dimenti para a Faculdade de Comunicação da UFBA,

queria levá-la “lá para fora” também, levá-la para o Dimenti, para o mercado cultural da nossa 5 Em seu termo mais simples, briefing significa a passagem de informação de uma pessoa para outra. Briefing é onde estão as primeiras especificações do que o cliente quer desse trabalho. É a matéria-prima que o designer precisa para sair do zero e começar a esboçar uma solução. Com um briefing detalhado, não há possibilidades de “brancos” ou uma desorientação de não saber por onde começar. O começo é o briefing. 6 Técnica Brainstorm ou Tempestade Cerebral, de autoria do Prof. Alex F. Osborn. O nome original é “brainstorm session”.

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cidade e para outros espaços de troca. Uma verdadeira circulação de informação, uma mão dupla

de tráfego de conhecimento. Tempo empreendido ao invés de tempo perdido.

AMBIENTE INFORMACIONAL

Diversas poderiam ser as ferramentas utilizadas para tomar o Dimenti enquanto foco de

discussão, experimentando diferentes procedimentos de captação da realidade – entrevistas,

pesquisa de material jornalístico, história oral, acervo de imagens, minhas próprias memórias

(advindas de uma observação participante), fotos, textos e depoimentos da recepção. Essa

metodologia multiprocessual, que exije muito mais tempo e atenção do que a imprensa periódica

está interessada, também me levava a crer que alguns conceitos do Livro-Reportagem poderiam

servir como bons norteadores dessa empreitada. Lima7 assinala que o Livro-Reportagem tem a

capacidade de preencher as lacunas deixadas habitualmente pela cobertura jornalística na sua

abordagem.

Detectar esses conflitos, circunscrever seu sentido, antecipá-los no tempo, buscar

suas raízes na interação sistêmica estrangulada são tarefas nobres da reportagem

que se proponha a ultrapassar a epiderme rasa dos fatos e penetrar no âmago das

questões contundentes do nosso tempo, para proporcionar um conhecimento

qualitativo da realidade ao homem contemporâneo. Essa missão escapa muitas

vezes ao jornalismo cotidiano e ganha cada vez mais guarida no livro-reportagem.

(LIMA, 1995, p.68)

7 LIMA, Edvaldo Pereira. Páginas Ampliadas: o livro-reportagem como extensão do jornalismo e da literatura. São Paulo: Editora da UNICAMP, 1993.

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Nadja Miranda, em seu texto Divulgação e Jornalismo Cultural8 nos traz uma preocupante

estatística.

Nos cadernos de cultura dos jornais A Tarde e Correio da Bahia pesquisados em

2001, chegavam diariamente às redações, em média, oitenta press-releases e o

aproveitamento deste material era quase total, segundo Suzana Varjão e Isabela

Laranjeira, editoras do Caderno 2 e do Folha da Bahia. (MIRANDA, 2005, p.91)

Esses números demonstram que o aprofundamento nas pautas acaba sendo mínimo,

baseado nos releases enviados, aproveitando as fotos de divulgação9 e entrevistas por telefone, na

maioria das vezes, com uma fonte apenas. Mesmo que o jornalismo cultural dispense um

tratamento diferenciado no lidar com a notícia, mesclando informação e opinião, com critérios de

noticiabilidade próprios, essas características, pelo menos aqui na Bahia, não garantem um maior

debruçamento sobre a notícia, até mesmo por falta de tempo e pessoal. Como mesmo salienta

Miranda, “para um espetáculo cênico, em cartaz num teatro da cidade, é importante que ele seja

anunciado na agenda dos segundos cadernos, que tenha publicada matéria com fotografia na sua

estréia e até uma resenha, no decorrer da sua temporada” (2005, p. 94). Com o Dimenti não foi

muito diferente. Mesmo tendo sempre uma cobertura na mídia nas suas estréias e reestréias, os

jornalistas não possuem o tempo necessário – nem o espaço – para se aprofundar no processo de

8 MIRANDA, Nadja. Divulgação e jornalismo cultural. In: Organização e Produção da Cultura. Salvador: EDUFBA, 2005. 9 Outra estatística: “Dentre as fotografias utilizadas nas páginas dos dois cadernos, a maior incidência é de fotos de divulgação, ou seja, produzidas por profissional da área e pagas pelas produções dos espetáculos. De um total de 667 fotos referentes a 51 espetáculos que tiveram suas coberturas pesquisadas, 44% estavam nesta condição, contra 33% da reportagem” (MIRANDA, 2005, p. 96 e 97)

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criação de um espetáculo ou sobre a necessidade de manutenção de um grupo. Como bem coloca

Edvaldo Pereira Lima.10

Não é intenção nossa desmerecer (...) a imprensa regular, que contribui para o

conhecimento da contemporaneidade. Mas é objetivo apontar as limitações

conjunturais ao próprio fazer do jornalismo convencional. (LIMA, 1995, p.68)

Assim, entendemos que o jornalismo diário dificilmente conseguirá trazer determinadas

reflexões aos seus leitores. Mas o meu Projeto Experimental poderá funcionar como um

complemento de informações dessa cobertura jornalística tão efêmera e quase instantânea, saindo

dessa “epiderme rasa11”.

Seria fundamental para mim não ignorar o fato de estar embrenhada na temática a ser

trabalhada. Não poderia fingir uma certa imparcialidade objetivada (alguém pode?), uma

distância de meu objeto de trabalho. Era preciso assumir a relação entre mim e o Dimenti. Não

poderia e nem queria tentar um distanciamento. Muito pelo contrário, queria exercitar um olhar

de dentro da moldura, para nos analisarmos, nos conhecendo mais e melhor. A pesquisa auto-

etnográfica, o exercício de auto-reflexão, a análise do próprio tempo são sempre tarefas difíceis,

conflituosas e, por vezes, exasperantes, mas também muito honestas e corajosas. E, mais uma

vez, era o Livro-Reportagem, “liberto da objetividade reducionista e puramente tecnicista”

(LIMA, 1995, p.84) que permitiria o meu depoimento nada isento, nada externo, nada

distanciado. Outro risco desse tratamento é que “o perigo de cair na pieguice está sempre à

10 LIMA, Edvaldo Pereira. Páginas Ampliadas: o livro-reportagem como extensão do jornalismo e da literatura. São Paulo: Editora da UNICAMP, 1993. 11 Termo utilizado por Lima e citado anteriormente.

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espreita”12 e seria difícil garantir que essas derrapagens não aconteceriam em algum momento.

Mas no Dimenti aprendemos a tocar no assunto, assumindo os riscos das nossas escolhas e o

patético das situações. Assim, em Chuá, por exemplo, última montagem do grupo, o tempo todo

os intérpretes falam “isso é um espetáculo infantil”, porque sabíamos que isso seria questionado

pela recepção por se tratar de um “infantil atípico13”. Ou, ainda, quando falamos em cena “um

espetáculo que ninguém sabe se é dança ou teatro”.

AUTORIA COMPARTILHADA

Edvaldo Pereira Lima14 sobre a revista Realidade – uma publicação mensal lançada em

novembro de 1965 pelo Grupo Abril – diz:

O texto onde cada profissional testava a sua força de expressão. Onde cada um

manipulava como lhe aprouvesse os elementos da artesania literária emprestados à

escritura do real contemporâneo. (LIMA, 1995, p.173)

Essas imagens me fizeram enxergar a possibilidade de ter neste livro a impressão de

várias vozes, de várias expressões. A idéia de autoria muitas vezes ganha contornos

individualizantes. O autor, enquanto única e centralizada voz. Somos um grupo de trabalho,

acreditamos nessa forma de produção. Era preciso coletivizar. A autoria colaborativa, repartida,

multiplicada. Seria importante democratizar a verdade, para ganhar versões singulares, visões

12 Utilizando frase da professora Rosângela Vieira Rocha no prefácio do livro de Cleidiana Patrícia Ramos, “Os Caminhos da Água Grande”, concebido também como trabalho final para a conclusão da graduação na Facom. 13 Título de uma matéria sobre o espetáculo Chuá no Jornal A Tarde, escrita por Laura Dantas, em 06/11/2004. 14 LIMA, Edvaldo Pereira. Páginas Ampliadas: o livro-reportagem como extensão do jornalismo e da literatura. São Paulo: Editora da UNICAMP, 1993.

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parciais, e por isso mesmo, ilimitadas. Os aprendizados da convivência em grupo com o Dimenti

me ajudavam a apontar o melhor caminho. Pistas de que estava funcionando a articulação que

estava me propondo a fazer, e cada vez mais encontrava respaldo para o meu projeto, ora nos

textos, ora nas experiências anteriores. Importante frisar que essa perspectiva multifocal é

inclusive um dos pilares da estética do Dimenti, que sempre leva para a cena essa possibilidade

de escolha, deslocando para a platéia a co-responsabilidade de complementação de sentidos e o

exercício de autonomia e liberdade. Cabe ao espectador fazer escolhas, guiar o seu próprio olhar,

sem estar submetido a uma rigidez e imposição de um teatro aristotélico.

Para concretizar tais imagens, pessoas foram convidadas para escreverem textos que

traduzissem e trouxessem aquilo de mais particular de sua relação com o Dimenti (ver nota sobre

os atores em anexo). Quando o convite era enviado, as palavras-chave eram tatuagem/escritura,

experiência pessoal, estilo e o ritmo que lhe aprouverem, criar relações, impressões afetivas.

Esses eram, de fato, os aspectos mais relevantes para esse projeto. A escritura performática e a

linguagem plástica também eram muito bem-vindas. Assim, nesse livro poderemos encontrar

poesias, textos em outras línguas, artigos, contos e desabafos. Era essa diversidade que estávamos

procurando.

Outro ponto decisivo para essa multiplicação de autoria foi a participação constante de

textos e depoimentos dos integrantes do Dimenti. Eles que são parte e construtores dessa história.

Desde cartões postais, depoimentos, cartas, garranchos escritos à mão, textos quase ininteligíveis,

e-mails, diários de ensaios, tudo foi vasculhado, sendo aproveitado muitas coisas que poderiam

parecer banais, porém que muito revelavam nas entrelinhas. Carlos Antônio Leite Brandão15, ao

publicar seus registros de montagem do espetáculo Romeu e Julieta, do grupo Galpão diz:

15 BRANDÃO, Carlos Antônio Leite. Grupo Galpão: Diário de montagem. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.

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Para publicá-lo, tive de reescrevê-lo durante dez meses. Em primeiro lugar, por ser

necessário digitar aquilo que originalmente fora escrito à mão (...) Conferir clareza

aos registros, portanto, exigiu uma cuidadosa reescritura. Contudo, permaneceu

intocado o frêmito das anotações e dos eventos que as motivaram. (...) mantive

várias coisas que antes me pareciam irrelevantes, mas que tornavam-se

extremamente valiosas para outras pessoas. (BRANDÃO, 2003, p. 11 e 12)

Por último, a parceria/co-autoria/co-organização com Jorge Alencar, diretor do Dimenti,

nasceu por uma dificuldade em tecer uma narrativa (fragmentada e não-linear) sem me dissociar

das suas influências, das suas idéias e de sua filosofia. Seria meio ficção ignorar essa parceria em

algo tão visceralmente nosso. No Dimenti, a direção artística é quase indissociável da direção de

produção e vice-versa. Jorge é a pessoa responsável por aglutinar todas essas partículas-

identidades16 em torno de algo que nos parece infindável e imensurável: a construção e

manutenção de um grupo. Partiu dele, por mais que tenha sofrido modificações em contato com

os outros integrantes, os princípios da ética e da estética do Dimenti.

Desde o início da elaboração do Projeto Experimental, discutindo com Alencar e Miranda,

vimos que esse livro não poderia se resumir a um tom memorialista ou historicizador, até porque

o Dimenti ainda não atingiu uma suposta maturidade canônica – não possui “trocentos” anos de

carreira e inserções no Fantástico. O Dimenti está longe de poder dizer “cheguei lá”... Mas era

justamente nessa localização do gerúndio que estava interessada. Assim, chegamos a um

alinhamento de conceito e conteúdo, que tem o processo, o andamento, as dificuldades não

romantizáveis como foco principal. E mais uma vez recorremos ao pensamento contemporâneo,

16 “Esse corpo (...) não está mais preso a uma identidade unificada, mas passa a ser composto de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não-resolvidas, dando um caráter mais provisório, oscilante e problemático ao processo de identificação.” (MATOS, Lúcia. “Corpo, identidade e dança contemporânea. In: Cadernos do Gipe-Cit n.10. Salvador: PPGAC/UFBA, 1998 –p.78)

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que vem valorizar o processo em detrimento de um ápice. Lima, em entrevista17 concedida a

Anamaria Rinaldi Ferreira18, diz, “faltam no mercado brasileiro mais livros-reportagem sobre

pessoas comuns. (...) Não conquistam espaço porque estamos focados no palácio”. Normalmente

os livros reportagens que estão no mercado brasileiro são as biografias19, muito mais centradas

naqueles artistas que estão na mídia, vítimas de escândalos ou personalidades públicas. Ao

falarmos sobre um grupo de artes cênicas nordestino, composto por jovens, com menos de dez

anos de existência, com dificuldades comuns a muitos outros artistas desse tempo, estaremos

representando um grupo social, “passando como que a personificar a realidade do grupo em

questão” (LIMA, 1995, p.45). Com certeza, será muito menos glamuroso ou vendável, mas e daí?

Trata-se de procurar sempre as relações e inter-retroações entre cada fenômeno e

seu contexto, as relações de reciprocidade todo/parte: como uma modificação local

reflete sobre o todo e como uma modificação sobre o todo repercute sobre as partes.

Trata-se, ao mesmo tempo, de reconhecer a unidade dentro do diverso, o diverso

dentro da unidade; de reconhecer, por exemplo, a unidade humana em meio às

diversidades individuais e culturais, as diversidades individuais e culturais em meio

à unidade humana. (MORIN, 2003, p.25)20

17 *Entrevista publicada no site da Faculdade Cásper Líbero - www.facasper.com.br. 18 Anamaria Rinaldi Ferreira é aluna de Jornalismo da Cásper Líbero. 19 “Livro-reportagem-biografia é quando um jornalista (...) centra suas baterias mais em torno da vida, do passado, da carreira da pessoa em foco, normalmente dando menos destaque ao presente.” (LIMA, 1995, p.45) 20 MORIM, Edgar. A Cabeça Bem-Feita. Rio de janeiro: Bertrand Brasil, 2003

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HISTÓRICO21 NOSSO

Meu encontro com o Dimenti se deu em 1998. Desde os ensaios do projeto-piloto “O

Alienista” até à criação da empresa Dimenti Produções Culturais Ltda, muita coisa mudou.

Venho ao longo desses anos participando ativamente da construção dessa história.

Trabalho com o Dimenti, sistematicamente, como produtora22, assistente de direção,

assessora de imprensa e na elaboração do planejamento de comunicação do grupo. Participo

desde a escolha do que será montado, dos novos integrantes, defino datas, crio estratégias,

carrego peso. As decisões da produção se borram com as escolhas artísticas. E como num real

trabalho em conjunto, as responsabilidades são divididas, as hierarquias diminuem e a

cumplicidade aumenta. Em linhas gerais, o Dimenti vem consolidando, ao longo de sete anos de

existência, o desenvolvimento de uma linguagem baseada na pesquisa de formato, dos clichês

estéticos e da corporeidade do cartoon.

Hoje, o Dimenti possui seis espetáculos no repertório, CDs gravados com músicas

originais das peças, material em vídeo, site institucional, acervo fotográfico, exposições

inauguradas, prêmios no currículo, viagens... Atualmente, é composto por oito integrantes além

de mim: Adelena Rios, Daniel Moura, Fábio Monteiro, Lia Lordelo, Márcio Nonato, Paula Lice,

Vanessa Mello e o diretor Jorge Alencar.

Em 1998, sem ainda muita (ou nenhuma, para ser ainda mais sincera) certeza do que me

apetecia profissionalmente, fui chegando perto do grupo, aproveitando que existia Jorge como

essa ponte enfatizada pelo cruzamento de nossos trajetos acadêmicos (éramos colegas do Curso

21 Histórico construído com a colaboração do texto “Histórico do Dimenti”, escrito para o Projeto de Especialização em Literatura da integrante Paula Lice, que será utilizado no novo site do grupo. 22 Não conheço aqui em Salvador outra produtora que trabalhe continuamente com um grupo, em todas as suas etapas de produção. Vejo recorrências de parcerias, mas que estão relacionadas a projetos específicos.

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de Comunicação, tanto na UCSAL como da UFBA). Tudo me encantava demasiadamente e era

capaz de assistir aos ensaios por horas a fio. Com privilégio, Jorge me mostrava os roteiros antes

e discutíamos idéias para o espetáculo. O certo é que o prazer de estar junto ao grupo era algo tão

urgente que até suspeitei que talvez pudesse ter um talento artístico frustrado qualquer. Hoje até

me orgulho de poder estar trabalhando nesse campo por escolha; afinal, muitas das pessoas que

desenvolvem o papel de produtor parecem estar ali para passar uma chuva ou por falta de opção.

Muitas vezes é o próprio artista que acaba abandonando sua função inicial para preencher esse

nicho mercadológico.

Em junho de 1998, fiz o meu primeiro release “profissionalmente”. Cursava a matéria de

Assessoria de Imprensa com Nadja Miranda, minha atual orientadora, não por acaso. Senti um

imenso orgulho quando vi sair publicado uma notinha de umas sete linhas – acompanhada de foto

e tudo! Aí vieram as necessidades de elaborar projeto, orçamentos, programação visual... O

prazer em estar trabalhando longe dos palcos, nas coxias, me parecia muito atraente. A passagem

dessa suposta invisibilidade à posição que ocupo hoje foi quase que natural... Fiz a minha estréia,

enquanto produtora executiva, na temporada de “O Alienista” no Teatro do SESI (em 1999) e não

deu mais para parar. The show must go on!

DOS ESPETÁCULOS

“O Alienista” é inspirado na obra homônina de Machado de Assis. A partir dele já é

possível identificar características das escolhas dimentianas: livres adaptações de gêneros

compartilhados, a começar pelo consagrado Machado de Assis. Tais escolhas são pautadas na

liberdade criativa, que prevê, em detrimento de uma suposta fidelidade e/ou respeito a um autor

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ou obra a que se pretenda referir, a reflexão, problematização e des-hierarquização, que

contribuem para a revisitação do clássico.

Já nessa época era visível o caráter intersemiótico dessa empreitada, não só no que diz

respeito à adaptação de um conto para um espetáculo, mas também no que concerne ao

hibridismo semiótico promovido pelo grupo, já que a dança, o teatro, a música são elementos

presentes e, por vezes, indistinguíveis. Por último, é interessante frisar, o início comprometido

com a crítica que o grupo marca com “O Alienista”: o distanciamento crítico presente no corpo

dos atores, a proximidade do formato corporal do desenho animado e o gestual dos intérpretes

remetem a uma reflexão dos clichês presentes no gestual exagerado de certas interpretações

exacerbadamente “teatrais”.

“Chá de Cogumelo” (1999) foi o primeiro espetáculo que acompanhei desde o início.

Desde as primeiras improvisações, oficinas e ensaios. Até a sua estréia no então Espaço Xis,

foram nove meses de trabalho. Utilizando recursos próprios do grupo e dos integrantes e

contando com menos de meia dúzia de apoiadores, o espetáculo fez duas longas temporadas e

viajou para participar de festivais. “Chá de Cogumelo” vem aprofundar o debate sobre a

fomentação de uma linguagem. O espetáculo, uma releitura dos contos infantis, traz esse universo

tão compartilhado por todos. O Dimenti se debruça sobre a investigação das representações

desses contos, focando os diversos clichês que devastam algumas dessas propostas. A releitura

aqui promove o encontro com outras possibilidades de representação para os personagens desses

contos da carochinha e propõe reflexões inclusive sobre o que consideramos masculino e

feminino, o papel da mulher nos contos de fadas, o papel político da arte, entre outros temas.

Em “A Novela do Murro” (2001), o meu trabalho dentro do grupo pareceu chegar à sua

maturidade e profissionalização. Além do espetáculo, lançamos CD, videoclip e portfolio.

Eduardo Mattedi diz em sua resenha sobre o espetáculo:

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Parece que esqueceram de avisar à rapaziada que há uma crise por aí e que produção

cultural anda muito difícil. Desvairados, na noite de estréia, no Teatro SESC-SENAC

Pelourinho, com casa cheia, fizeram espetáculo, exposição de fotos, coquetel e apresentação

musical, e ainda, lançamento de CD, videoclip e portifólio do grupo. Tudo numa produção

bem acabada e cuidadosa sob coordenação de Ellen Mello. Com mais de duas dezenas de

apoiadores e nenhum grande patrocinador, o grupo, dirigido por Jorge Alencar, demonstra

que não é fogo de palha. Como o próprio Dimenti afirma no portifólio, eles estão "... entre

cara-de-pau e franqueza...” fazendo teatro duplamente alucinado, seja na produção – que

desconsidera condições adversas - seja no palco, onde arriscam misturar um tudo. O

resultado: diversão, deboche e a impressão que o Dimenti está para a juventude 2000,

ocupando o espaço que nas décadas passadas foi do Besteirol.23

“A Novela do Murro” faz parte de uma fase especialmente conceitual no Dimenti. Olhos

voltados para a observação do que foi desenvolvido até então e da proposta por vir. A obra

referida é novamente de Machado de Assis, o clássico romance Dom Casmurro. O formato

estético explorado, a telenovela brasileira e sua gama de clichês.

“Pool Ball” (2002) foi um projeto bem mais ambicioso. Pela primeira vez, possuíamos

uma verba para a sua montagem, já que tínhamos recebido o Prêmio Estímulo da Fundação

Cultural do Estado da Bahia. Processo longo, difícil, equipe grande, teatro de maior porte,

parafernália de equipamento de som... “Pool Ball” é inspirado em Hamlet de Shakespeare, talvez

o texto teatral mais canonizado da história. Nele, é explorado o formato musical da Broadway e

alguns dos clichês que cercam o referido objeto. Aqui a sutileza da crítica requer um olhar atento

23 MATTEDI, Eduardo. O Desvairio da Rapaziada. Salvador: Soterópolis, maio/2001.

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do espectador, uma vez que a linha é tênue entre promover a reflexão e prestar homenagem ao

formato escolhido.

Chegamos então a “Chuá” (2004), baseado no ballet O Lago dos Cisnes, o mais recente

espetáculo encenado pelo grupo. Esse ano foi de muitas conquistas – recebemos o Prêmio

Estímulo da Fundação Cultural, o que foi uma grande vitória se tratando de um projeto tão

arriscado como “Chuá”. Afinal, se falar para o público infanto-juvenil é sempre muito delicado.

Ganhamos ainda o Prêmio da Caravana Funarte de Circulação Intra-Regional Nordeste, o que

também nos surpreendeu; afinal, a grande maioria dos projetos aprovados tratava de questões

ligadas ao nordeste e a seus personagens. A idéia de ter um grupo que trabalha com arte

contemporânea, numa perspectiva multidisciplinar e trazendo temáticas urbanas, parecia distante

da realidade de um prêmio desse tipo. Mais tarde, ganhamos o Prêmio Braskem de Melhor

Espetáculo pelo Júri Popular por “Chuá”. Foram três fatores que com certeza nos levaram a um

espaço de maior respeito, credibilidade e aval de qualidade na cidade.

Esse é um espetáculo para criança. Também. O pepino é que no lago estão:

avestruz, Barbie, Supeman, Free Willie. Parece aberrante, quase sem sentido. Em

Chuá, no entanto, esse protótipo nos lembra a roda de tão apropriado, quase óbvio.

Também esse tabuleiro é para adulto não-preguiçoso. Que o gabarito de respostas

rasurou. Borrou, provavelmente respingou esse lago-caldo. Também nós

procuramos entender a tudo isso, incansáveis, a custo de muita sopa de letrinha e

poros escancarados. Eis algumas pistas menos movediças. O Dimenti, ao longo

desses anos, tem sua obsessão declarada: o clichê - suas armadilhas estéticas, logo,

éticas. No universo infantil poderíamos colecioná-las junto aos brindes da

Mc’Donalds. Menina mal comportada, Chuá, portanto, aponta o dedão para os

clichês de corpo - do consumo e de sapatilha, de gênero rosa azul teatro dança, de

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educação doméstica pé de galinha não mata pinto e de pensamento era uma vez

felizes para sempre a moral da história. E qual seria mesmo o problema com aquela

magia light lemon do Papai Noel? E com Ariel, a pequena sereia emudecida? Qual

é mesmo o mal em ser cisne? As legendas estão disponíveis na bilheteria por uma

quantia bem módica. Por fim, como arrematou nossa sábia Ellinha Mello: Chuá é

Chuchu! E eu gabarítico: carinhoso como apelido de bem amado, mas de sabor

esquisito.24

Por fim, “Tombé” (2002), que investe na dessacralização bem-humorada dos rituais e

códigos da dança contemporânea, abre o Circuito Dimenti, projeto de 2005 do grupo. O Circuito

Dimenti prevê a apresentação de todos os espetáculos do grupo, em espaços variados na cidade e

no interior do estado, além de abrigar eventos paralelos como debates, workshops, lançamento de

novo CD, reformulação do site do grupo, etc. O Circuito Dimenti foi lançado no dia 27 de maio,

no Theatro XVIII, e se estende até o fim de setembro. A idéia é que a publicação do meu Projeto

Experimental seja feita para celebrar o fim do Circuito.

O Circuito Dimenti é muito representativo dentro da trajetória do grupo, comprovando a

existência de um repertório ativo e de uma linguagem solidificada. O Circuito Dimenti tem

aprovação no FazCultura e patrocínio da Pererê Peças Motociclo. A idéia é valorizar os

processos criativos do grupo, trazendo reflexões sobre a sua trajetória, promovendo debates em

torno da linguagem e do trabalho de pesquisa em grupo.

O Dimenti, ainda que enfrente em grupo as adversidades estruturais e financeiras de uma

rotina diária de trabalho sem patrocínio de manutenção, acredita que o trabalho colaborativo em

companhia tem a possibilidade de aprofundamento conceitual e expressivo que as produções

24 Texto intitulado “Pepino e Chuchu” de Jorge Alencar escrito para o programa da peça.

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pontuais e sazonais – uma imensa maioria no cenário cultural baiano – não possuem pela própria

fugacidade da natureza desses trabalhos.

Sem dúvida, um dos fatores que faz com que o grupo permaneça coeso e produzindo tão

avidamente é o desafio, tomado por todos nós, de construção de uma linguagem com emergência

própria, que extrapola o palco e chega a outros veículos e mídias utilizados. E depois de sete

anos, é possível observar o objeto com certo distanciamento e maior nitidez. Muitas horas são

dedicadas a conversas sobre o nosso fazer artístico, à elaboração de regras de convivência, à

sistematização de nossa tecnologia cênica e também a assuntos mais pragmáticos, como iremos

viabilizar o próximo espetáculo ou pagar as contas no final do mês.

Rosa Villas-Boas encerra seu texto “Gestão Cultural” com um trecho do livro “Encontro e

Travessias”, de Antonio Carlos Gomes da Costa. Acredito ser muito apropriado utilizar a mesma

citação para arrematar esse histórico do Dimenti. Continuaremos seguindo rumo ao

desconhecido.

O que se espera do outro lado da linha do horizonte? Para saber é preciso

atravessar, empreender a travessia. Há duas maneiras básica de fazer isso. Uma

delas é deixando-se levar pelas correntes marítimas. Elas sempre vão dar em algum

lugar. Se você tiver sorte, será um lugar que vale a pena. Porém, se a sorte não

estiver do seu lado, as coisas podem ficar realmente complicadas para você. O

outro jeito de empreender a travessia é navegando, ou seja, não se deixando

conduzir passivamente pelas águas. Navegar é ter mapa, roteiro, bússola, vela

bandeira e timão. Navegar é saber de onde se está vindo e para onde se está indo.25

25 COSTA, Antonio Carlos Gomes da. Encontros e Travessias. São Paulo: Instituto Ayrton Senna, 2001.

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A PRODUÇÃO

Escolher o Dimenti como tema de estudo foi uma faca de dois gumes – toda vez que

deixava de me concentrar no meu projeto de fim de curso para uma viagem ou nova estréia a

experiência acabava me rendendo mais outros bons capítulos para esse livro. Era um eterno

processo, um eterno acúmulo de novas informações, de novos aprendizados e assim cada vez

mais o meu projeto abrigava mais e mais terrenos. Detectamos, então, que o melhor seria falar de

forma mais generalizada sobre o grupo, não entrar nas miudezas dos eventos isolados. Nem na

esfera cronológica e temporal. Seria algo mais amplo, já que acreditamos firmemente na

continuidade do grupo e na sua dimensão: o Dimenti é maior do que as partes-espetáculos dos

quais é formado e é até maior do que as pessoas que o compõem.

Os fatos e as datas estariam apenas servindo de pano de fundo para uma espécie de

compêndio filosófico, sem linearidade. Seria muito mais uma reunião de pensamentos e

testemunhos do que uma valoração dos aspectos temporais. Permanecendo, porém, o

compromisso com a verdade, já que não se trataria de uma obra ficcional.

A preparação do livro me fez estar ainda mais atenta aos registros de processo, das

viagens, das reflexões... Todo o grupo começou a dar uma atenção especial ao registro de suas

idéias, dos ensaios, de apreensões da linguagem. Esse exercício de reflexão diminuiu, inclusive,

uma sanha desenfreada de novas montagens anuais. Retomadas de repertório, discussões,

conversas sobre a ética interna do grupo passaram a ocupar a agenda do Dimenti. Foi preciso

lidar também com uma certa expectativa do público que queria saber sempre “o que o Dimenti

vai aprontar esse ano?” O fato é que hoje sabemos melhor dosar o tempo que ficamos nos palcos

e na sala de ensaio. E lá, muita conversa, aprofundamento, e DR (discutir relação) foram nos

levando a uma sistematização do que fazíamos. Foi nesse período que criamos os primeiros

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exercícios para desenvolver algumas capacidades especiais para a linguagem. O projeto de fim de

curso da FACOM foi um norteador, um disparador e um catalisador desse movimento de

sistematização.

Ainda assim me debati bastante até achar o meu lugar ao sol nesse projeto. Qual seria

exatamente a minha função? Era preciso ser a pessoa que criaria a dramaturgia desse caos

organizado.

Atualmente não se admite uma editoração ao sabor da inspiração intuitiva e

espontânea, sem que se obedeça a um planejamento e à aplicação de um método.26

Numa publicação de 1981, Ivani Kotait traz que “editorar significa preparar tecnicamente

um manuscrito para publicação”27. Alguns outros aspectos e características do editor podem ser

considerados:

- Levantamento e análise dos custos dos projetos;

- Contato com escritores, redatores, clientes, patrocinadores;

- Leitura e seleção de textos;

- Supervisão de todo o processo de produção, controlando prazos e orçamentos;

- Acompanhamento do processo de redação, tradução, adaptação e revisão da obra;

- Coordenação e supervisão de projetos gráficos, decidindo sobre apresentação, capa, ilustrações,

tipo de letra, tipo e tamanho do papel;

- Coordenação e supervisão do processo de distribuição;

26 SEVERINO, A. J. Metodologia do Trabalho Científico. São Paulo: Cortez & Moraes, 1978. 27 KOTAIT. Ivani. Editoração Científica. São Paulo: Ática, 1981.

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- Decisão sobre tiragem, periodicidade, época de lançamento da publicação;

- Coordenação e supervisão do processo de propaganda e marketing.

Começava a entender melhor a função que havia assumido de maneira mais efetiva – um

papel de editor/organizador, já que sou responsável pela seleção e compilação de todo o material

visitado, além de contar com a participação de uma série de textos “independentes” entre si,

ligados por uma temática. As palavras-chave para o desenvolvimento de meu trabalho eram

pesquisar, selecionar, priorizar, organizar, relacionar. Entendia, porém, que isso não me

resguardaria uma maior isenção, porque entendo que todas essas palavras acima citadas estão

baseadas em subjetividades e o trabalho de edição e organização, neste caso, ganhava contornos

de autoria.

Optamos por deixar nossos convidados totalmente à vontade para escreverem da forma

que achassem melhor e, como haveria uma grande diversidade de estilos, vocabulários e

tratamentos, o meu papel cada vez mais parecia ser o de responsável por manter essas idéias

aglutinadas. Como bem observa Gisela Marques, coordenadora editorial da editora Companhia

das Letras, em São Paulo, "Sem um editor, falta unidade ao conjunto. E isso vale tanto para um

livro quanto para um CD de música"28.

Entre a privacidade da criação do autor e a exposição irrestrita operada por sua

publicação, o livro faz um trânsito que exige determinadas providências. Delas se

ocupa o editor29.

28 Matéria publicada no site http://www.vestibular1.com.br/tendencias/td28.htm. 29 JAHN, Heloisa. O Livro da Gráfica. São Paulo: Edições Rosari, 2001.

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A intimidade do Dimenti e seus integrantes estava sendo totalmente devassada. Assim

como depoimentos de convidados, ora feitos especialmente para o livro, ora escritos

originalmente para o grupo, que agora, passavam a virar material que seria exposto. O primeiro

passo foi ler. Ler todo o material disponível. Ler de uma forma bem abrangente já que fotos e

ilustrações também podem e devem ser lidos. Era preciso travar conhecimento com o texto e,

estabelecida essa aderência com a obra — com o estilo, a estrutura, a temática e a forma de

trabalhar do autor —, o passo seguinte era deslocar-se para a posição do autor, identificando

ajustes que pudessem contribuir para uma melhor qualidade do texto.

Todos os convidados me deram carta branca para usar seu texto como preferisse,

deixando-me sempre livre para operar as mudanças necessárias. O mesmo aconteceu com os

textos dos dimentianos. Como editora, trabalhei com grande autonomia, numa postura ao mesmo

tempo crítica e cúmplice.

Para que o editor possa desempenhar esse papel, contudo, condição indispensável, é

o autor reconhecer em sua intervenção um procedimento análogo a sua própria

forma de lidar com a escrita. Em outras palavras, as observações do editor têm,

invariavelmente, o sentido de aperfeiçoar o livro tal como o concebe seu autor30.

DAS ETAPAS

Comecei num processo de catalogação de material do Dimenti. Criamos uma tecnologia

para organizar as fotos de cena e de bastidores, numerando e organizando negativos e fotos. O

investimento financeiro foi grande nessa primeira etapa, tendo que fazer copiões de todos os

30 JAHN, Heloisa. O Livro da Gráfica. São Paulo: Edições Rosari, 2001.

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filmes para melhor ter acesso às fotos. Muitas delas também foram digitalizadas. A popularização

das fotos digitais adiantou bastante o trabalho e o grupo investiu na compra de uma boa máquina

digital para um registro mais ágil da nossa rotina de trabalho. Solicitamos também o acervo

fotográfico pessoal dos integrantes do grupo, com fotos amadoras e situações mais informais.

Partimos para catalogar todo o material de imprensa, organizando por datas e tirando

xerox colorida e em preto e branco de todas elas. Digitamos todas as matérias, o que demandou

longas horas de trabalho.

Agrupamos todas as referências e afetividades do grupo, que iam desde trechos escritos

em agendas, cartas recebidas por cúmplices e amigos a desenhos, memórias e textos dos

integrantes do grupo nunca antes publicados.

É importante frisar algumas coisas nesse ponto. Primeiro que o grupo e o meu trabalho

como produtora facilitaram bastante essa parte do trabalho. Muitas dessas coisas já estavam

organizadas. Não foi necessário mergulhar em arquivos de jornais, por exemplo. Sempre tivemos

muito cuidado em estar guardando esse material, assim como as fotos e tudo mais. Com muito

mais intimidade com todo esse material, o trabalho maior foi de me concentrar em estudar uma

forma de dispor esse material de forma que facilitasse o meu acesso a ele, tanto para o livro,

como para elaboração de projetos, exposições, enriquecimento do site, etc. E, mais uma vez,

apareceu a articulação de propósitos, o que me fazia sentir um grande prazer, apesar da grande

quantidade de tempo empreendido nesta etapa. Sabia que seria algo que nos salvaria do excesso

de informações que vão se perdendo. Não adianta ter um arquivo recheado de informações se

você não consegue localizá-las facilmente. Queime-o! Rezam as regras da administração

empresarial.

Por conta do trabalho continuado do grupo, o material só tende a aumentar. Estamos agora

preparados. Confesso que, mesmo com a colaboração de todos do Dimenti, essa foi uma etapa

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longa e, por vezes, desesperante, pois quando estávamos começando a terminar uma etapa vinha

uma nova viagem ou temporada, ou seja; mais fotos, mais matérias de jornal, mais depoimentos,

mais história a se catalogar. Agora descobrimos uma forma de agilizar esse registro, com a

divisão de tarefas. Ainda é algo caro, pois exige copiões, xerox de qualidade, cópias de matérias

de TV, etc. Mas a satisfação é grande. Por todos esses motivos, essa etapa do projeto

experimental levou quase todo um semestre, adiando a minha formatura.

Não tive que passar pela dificuldade em agendar entrevistas com fontes escorregadias.

Isso foi uma grande ajuda para que não perdesse tempo com essas incompatibilidades de

interesse. Por outro lado, como o livro possui um espaço dedicado a pessoas que conhecem o

grupo, sendo convidados a darem seus valiosos depoimentos sobre a nossa trajetória, isso me fez

perder parte da autonomia com relação ao tempo. Não poderia me programar para escrever um

capítulo por semana ou coisa parecida. Meu tempo era a união do tempo de todos, dos integrantes

do Dimeni aos meus ilustres convidados...

É interessante perceber também que o conceito de organizador é bastante difundido para

descrever o ofício do produtor. Segundo o conceito de Antonio Gramsi, em sua divisão dos três

tipos de intelectuais, os organizadores são os gestores e produtores culturais e, segundo ele, sem

os quais um sistema cultural não pode subsistir. Linda Rubim explica:

Ele fala de outros três tipos de intelectuais: aqueles que criam, como os artistas e

cientistas, por exemplo; os que transmitem e difundem a cultura, tais como os

educadores e os profissionais de comunicação (...) e, por fim, aqueles que

organizam a cultura, dentre os quais podem ser destacados os gestores e os

produtores culturais.31 (RUBIM, 2005, p.14 e 15)

31 RUBIM, Linda. Produção cultural. In: Organização e Produção da Cultura. Salvador: EDUFBA, 2005.

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Dessa forma, os conceitos e atividades de organização-produção se cruzam e reafirmam a

minha função dentro do meu Projeto Experimental. Outro aspecto importante que Gramsci traz é

a impossibilidade de dissociação entre os três agentes culturais – o criador, o transmissor e

organizador. Ao descartar uma suposta (e muitas vezes praticada no mercado) hierarquia entre

esses agentes, a teoria gramsciana aposta numa complexificação da cultura. Posso dizer que essa

interdependência é vivida em sua plenitude dentro da estruturação e prática do Dimenti, nas quais

a rotina de trabalho sempre mescla discussões sobre a criação, a divulgação e a organização

cultural.

Outra coisa que não poderia ser diferente. Acredito firmemente do “juntos é mais fácil”,

jargão do grupo desde os seus primórdios. No livro também teria que ser assim: escrito a muitas

mãos, muitas cabeças e memórias. Afetos e desafetos. Rosa Villas Boas32 ressalta a importância

do envolvimento da equipe.

Também é o momento em que sentimos a importância do planejamento

participativo, com a equipe envolvida e comprometida com os resultados do

trabalho. Ao gestor líder cabe dar autonomia ao grupo, cuidando para não haver

desvios dos objetivos almejados, e associar as áreas de trabalho. (VILLAS-BOAS,

2005, p.106)

Tratando de idéias como fragmentação, assimetria, multifocalidade, liberdade de escolha,

recombinação, chegamos ao formato de livro não encadernado, sem brochura. Assim, o leitor

também poderia fazer o papel de organizador, optando por ordens diversas de leitura e, assim,

32 VILLAS-BOAS, Rosa. Gestão cultural. In: Organização e Produção da Cultura. Salvador: EDUFBA, 2005.

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propiciando uma cartela inesgotável de sentidos. O leitor-autor poderá criar outras lógicas,

dramaturgias, sentidos para obra, exercitando a sua autonomia (tão necessário exercitar a

automia!). As páginas não estarão obrigatoriamente dispostas em uma única ordem, impondo

uma seqüência de leitura. A caixa chegou para limitar o espaço – o limite que liberta.

As ilustrações (...) funcionam como catalisadoras e não como limitadoras. Ao

mesmo tempo, os textos não se subordinam completamente às ilustrações, nem se

referem a tudo o que nelas aparece. Apostando na leitura da imagem e no diálogo

das linguagens verbal e visual, os poemas apresentam elipses que são completadas

pelas ilustrações. Ou melhor, essas elipses são possíveis porque as ilustrações dão

pistas para a compreensão dos poemas.33

Apesar do autor estar falando sobre livros e poesia infantis, muito nos serve para falar

sobre essa dramaturgia que vai além de palavras. Com a parceria de Moisés Garcia, que é

responsável pela maioria dos projetos gráficos do Dimenti – CD, portfolio, espetáculos e Circuito

Dimenti – será possível contar com a participação de fotos e ilustrações como integrantes do

sentido. Importante frisar que, quando falamos em sentido, também estamos nos referindo à

incompletude dos sentidos, característica da poética e linguagem do grupo. O sentido que não se

fecha imediatamente, o não óbvio e imediato. Os próprios nomes do grupo e dos espetáculos nos

remetem a idéias e metáforas – Pool Ball, Chuá, Dimenti. Assim, o encarte do primeiro CD do

grupo traz a ilustração de um cotonete. A recepção é convidada a complementar os sentidos. E

Moisés, que usa e abusa da pós-modernidade nos seus trabalhos gráficos, consegue imprimir no

papel toda essa complexidade de sentidos.

33 CAMARGO, Luís. A Poesia Infantil no Brasil, publicada em http://www.blocosonline.com.br/literatura.

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Já estou em contato com a EDUFBA, mas vou esperar as observações da banca

examinadora para que nós possamos dar seguimento à publicação do livro. O Dimenti já tem,

inclusive, parte do recurso captado para tal.

O processo de construção do Projeto Experimental foi longo muito em parte por uma

convicção minha de não querer me afastar das atividades do grupo para fazer o livro. Seria um

contra-senso. Era importante estar em contato com as pessoas, as situações, os problemas do dia-

a-dia. Era preciso construir história, viver mais experiências, todas elas, com um olhar

sistematizador, registrador. Nos últimos vinte dias, para a entrega do material final, afastei-me

um pouco das demandas diárias do grupo. Um distanciamento rápido e curto, mas necessário,

para um mergulho mais concentrado para a finalização desta importante etapa.

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Page 33: MEMÓRIA DESCRITIVA E ANALÍTICA · MEMÓRIA DESCRITIVA E ANALÍTICA Dimenti: cena, afetos e prótese Por: Ellen Mello dos Santos Cruz Salvador Julho de 2005 Created with novaPDF

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