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MELO, M. A.; RAMOS JÚNIOR, D. V. Educação e revolução em Angola. As aventuras de Ngunga de Pepetela. In: RAMOS, Dernival V; ANDRADE, Karylleila dos Santos, PINHO, Maria José. (Org.). Ensino de Língua e Literatura. Reflexões e Perspectivas Interdisciplinares . Campinas: Editora Mercado das Letras, 2011, pp.127-138. EDUCAÇAO E REVOLUÇÃO EM ANGOLA: AS AVENTURAS DE NGUNGA DE PEPETELA MÁRCIO ARAÚJO DE MELO 1 DERNIVAL VENÂNCIO RAMOS 2 ANGOLA: HISTÓRIA E LIBERTAÇÃO NACIONAL A construção de um projeto de nação no contexto das lutas de libertação na África portuguesa esteve ligada à elaboração de uma ideologia educacional chamada “Homem Novo”. Para sua formação era preciso expulsar o colonizador e investir na educação da população, concomitante. De modo que o ensino era percebido pelos movimentos de descolonização como algo central para erguer, viabilizar e consolidar tal projeto. Tanto que ele não se limitava a liberar o território; a formação de cidadãos politicamente ativos e preparados para continuar o processo de luta contra o colonizador colocava também como prioridade. Ademais, repensar as tradições locais que não se enquadrassem no projeto nacional que estava sendo gestado complementaria tais propostas. 1 DOUTOR EM CRÍTICA LITERÁRA PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS E PROFESSOR DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO TOCANTINS, CAMPUS DE ARAGUAÍNA. 2 DOUTOR EM HISTÓRIA PELA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA E PROFESSOR DO PROGRAMA DE PÓS- GRADUAÇÃO EM LETRAS DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO TOCANTINS, CAMPUS DE ARAGUAÍNA.

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MELO, M. A.;RAMOS JNIOR, D. V.Educao e revoluo em Angola. As aventuras de Ngunga de Pepetela. In: RAMOS, Dernival V; ANDRADE, Karylleila dos Santos, PINHO, Maria Jos. (Org.). Ensino de Lngua e Literatura. Reflexes e Perspectivas Interdisciplinares. Campinas: Editora Mercado das Letras, 2011, pp.127-138.

Educaao e revoluo em Angola: As aventuras de Ngunga de PepetelaMrcio Arajo de Melo[footnoteRef:1] [1: Doutor em Crtica Literra pela Universidade Federal de Minas Gerais e Professor do Programa de Ps-graduao em Letras da Universidade Federal do Tocantins, Campus de Araguana.]

Dernival Venncio Ramos[footnoteRef:2] [2: Doutor em Histria pela Universidade de Braslia e Professor do Programa de Ps-graduao em Letras da Universidade Federal do Tocantins, Campus de Araguana. ]

Angola: Histria e Libertao NacionalA construo de um projeto de nao no contexto das lutas de libertao na frica portuguesa esteve ligada elaborao de uma ideologia educacional chamada Homem Novo. Para sua formao era preciso expulsar o colonizador e investir na educao da populao, concomitante. De modo que o ensino era percebido pelos movimentos de descolonizao como algo central para erguer, viabilizar e consolidar tal projeto. Tanto que ele no se limitava a liberar o territrio; a formao de cidados politicamente ativos e preparados para continuar o processo de luta contra o colonizador colocava tambm como prioridade. Ademais, repensar as tradies locais que no se enquadrassem no projeto nacional que estava sendo gestado complementaria tais propostas.Dos movimentos revolucionrios que surgiram na Angola colonial, destaca-se o MPLA (Movimento Popular para a Libertao de Angola), fundado em 1956 por Viriato da Cruz, Agostinho Neto e outros estudantes angolanos exilados. Movimento este que com os objetivos de conquistar a independncia de Portugal e formar a nao Angola trava por mais de quinze anos longa luta contra os colonizadores, quando consolida o primeiro dos objetivos em 1975. Todavia, formar uma ideia de nao, para alm de uma vitria sobre o colonialismo, implica, antes de tudo, a formulao de conceitos bases: lngua e literatura nacionais, por exemplos. Os portugueses estavam presentes em parte desse territrio desde o sculo 16, quando fundaram Luanda, atual capital do pas, e outros entrepostos comerciais. Contudo, apenas a partir da dcada de 1890, no contexto detonado pela Conferncia de Berlim, foi que Portugal comeou uma poltica de ocupao efetiva. Tal Conferncia dividiu o continente africano entre as vrias potncias europias, dentre elas Portugal. Alm de Angola, aos lusos coube, na partilha do continente africano, Moambique, Guin Bissau e as ilhas de Cabo Verde, So Tom, Prncipe.O territrio da atual Angola estava dividido entre seis grandes grupos tnicos-lingusticos: kikongo, cokwe, umbumdu, kimbundo, mbunda, kwanyama. Tais grupos haviam criado, no passado, estados poderosos como os Reinos do Kongo e do Ndongo, os quais mantiveram forte unidade poltica em torno de seus territrios tradicionais; essas e outras lealdades polticas pr-colonais produziram relaes nem sempre pacficas entres os vrios povos que viviam nessa regio. Posto desse modo, ainda que rapidamente, na dcada de 1960, retirando a populao urbana, mestia e imigrante, a maioria da populao que habitava o territrio se entendia em termos tnicos, no poucas vezes em conflito.De 1890 at 1961, o estatuto jurdico de Angola foi de colnia; a partir de ento, a metrpole modificou esse estatuto, transformando-o em Provncia Ultramarina. Todos esses indgenas, como os colonizadores os chamavam, ganharam a cidadania portuguesa. Contudo, essas estratgias de aproximao entre colonizador e colonizado no foram suficientes para aplacar os movimentos de descontentamentos e a guerra oficial pela descolonizao comeou no incio da dcada de 1960.Em quaisquer aes destinadas liberdade das amarras do colonialismo, os movimentos de independncia tiveram que enfrentar as dificuldades da etnia, sobretudo nas populaes das zonas rurais, onde a guerrilha se instalara num primeiro momento. Diferentemente da populao urbana, nelas o problema residia em fomentar a criao de um sentimento nacional num lugar em que a identidade e a lngua da populao eram e continuam sendo a das tribos.Do confronto dessas aes urbanas e rurais, uma das questes que pde ser desprendida pelo MPLA foi o papel fundamental que a educao deveria assumir no processo de descolonizao, sobretudo, o ensino de lngua portuguesa. O Movimento escolhera a lngua do colonizador como aquela capaz de criar uma identidade poltica e cultural supra-tnica para a nacionalidade angolana, porque privilegiar qualquer lngua tnica seria fomentar ainda mais a rivalidade histrica entre os grupos. Assim, h opo por uma educao que privilegiasse o trabalho com o ensino da lngua portuguesa na formao dos guerrilheiros e futuros cidados de uma Angola independente. Ento, medida que o MPLA, nos seus dez primeiros anos, conseguia liberar uma rea onde viviam cerca de um milho de habitantes, houve a criao de uma poltica de educao baseada nos Centros de Instruo Revolucionria. Neles a proposta era uma educao que aliasse ensino de lngua portuguesa com aulas nas vrias lnguas tnicas , aulas de teoria marxista-leninlista, de tticas guerrilheiras, de tcnicas agrcolas, bem como o cultivo de pequenas parcelas de terras, que forneceriam alimentos aos alunos e aos guerrilheiros.Nesse ensino politcnico como diz Manuel de Brito Neto, a relao entre o guerrilheiro e o aluno devia ser profunda, pois

o professor devia criar nos estudantes um esprito de integrao na ao armada; o estudante devia ver no guerrilheiro um irmo mais velho, devendo existir laos estreitos entre estudante e guerrilheiro. O aluno devia desenvolver um guerrilheiro participando em vrias tarefas ao lado do guerrilheiro. (NETO, 2005: 86)

O primeiro Centro de Instruo Revolucionria foi criado em 1965, em Cabinda, tendo como diretor Fernando Brito e, como professores, Carlos Eduardo Rocha e David Moiss. O segundo na regio oeste de Angola, tendo como diretor Loureno Casimiro e nele trabalharam Lcio Lara e Pepetela, como professores. Alm destes centros, o MPLA possua uma rdio, que do Congo, transmitia em portugus e nas lnguas tnicas uma programao educacional, que dava auxlio aos professores que militavam no meio ou nas franjas da floresta tropical. Para alm da precria estrutura fsica e do fato de estarem localizadas em regies que ainda eram alvos de ataques portugueses, as escolas tambm tinham problemas no que dizia respeito ao material didtico usado no ensino de lngua portuguesa. Tanto que As aventuras de Ngunga de Pepetela surgiram, em 1971, como um suporte didtico para seu ensino. Como se pode ler pela fala do autor, ao anunciar que:

O Ngunga no ia ser livro. Eu estava no Leste e estava a fazer um levantamento das bases do MPLA, pela primeira vez ia-se saber quantas bases havia, quantos homens havia, quantas armas... eu ia de base em base e ao mesmo tempo acompanhava o ensino, dava uma ajuda aos professores com os manuais de matemtica que eram da Ex-RDA [Repblica Democrtica da Alemanha], demasiado modernos, e os professores tinham dificuldades com eles, comecei tambm a aperceber-me que os midos s tinham os livros da escola para ler o portugus, conclui que era preciso fazer textos de apoio, a que comea o Ngunga. Eram textos muito simples que pouco a pouco se iam tornando mais complexos. Como ainda assim no era suficiente os textos eram traduzidos para Mbunda e depois eu tentava dar-lhes regras gramaticais reescrevendo o Mbunda, assim os midos podiam aprender a ler na sua lngua e recorrer a ela sempre que tivessem dificuldade nalguma palavra em portugus. Quando acabei cheguei concluso que aquilo era uma estria, dei-lhe um fio condutor e mais tarde decidimos public-lo.

As aventuras da educao em Angola durante a luta de independnciaEscritas nas manhas de dez dias, debaixo de uma rvore, numa cratera da mata, na Frente leste (PEPETELA apud LAJOLO, 1983), As aventuras de Ngunga so, a priori, um texto de apoio para o processo de alfabetizao dos guerrilheiros, como deixa claro Pepetela. Contudo, para alm de um projeto ideolgico ou material didtico, elas alcanam propores literrias. Para tanto, seu escritor constri uma histria em que seu protagonista, uma criana rf, sai procura de aventuras, quando Nossa Luta, seu nico amigo e responsvel, parte para guerrilha. Ngunga comear, ento, a arquitetar sua histria passando por situaes variadas: primeiro quando adotado pelo presidente Kafuxi, que o convida a morar em seu kimbo[footnoteRef:3], no para trabalhar, pois segundo ele, Ngunga ainda era pequeno. No entanto relata Ngunga, acordava com o sol e ia ao rio buscar gua. (...) Depois acompanhava as trs mulheres do Presidente lavra, de onde saam quando o Sol deixava de ser forte, (...) mas talvez no fosse suficiente. Prometeu trabalhar mais. (PEPETELA, 1983:12) Se esforava porque segundo o presidente Kafuxi era preciso produzir para os soldados, pois os guerrilheiros defendem-nos e ns alimentantamo-los. (PEPETELA, 1983:12) At o momento que Ngunga descobre que o presidente escondia toda comida dos soldados para poder troc-la por alguma mercadoria. Afinal o velho estava a aproveitar, pensou Ngunga. (PEPETELA, 1983:15) Ento foi ao celeiro, encheu uma quinda grande com fub, mais um cesto. Trouxe tudo para o stio onde estavam as visitas e o Presidente Kafuxi. Sem nenhuma palavra poisou a comida no cho. Depois foi cubata arrumar as suas coisas (PEPETELA, 1983:16) [3: Segundo o glossrio do livro: Kimbo povoado.]

A partir deste instante, ele prope buscar saber se em toda parte os homens so iguais, s pensando neles, (PEPETELA, 1983: 17) pois para ele todos os adultos eram assim egostas. E tendo, nessa procura, experincias variadas, uma delas a de passar certo tempo numa seo de guerrilheiros, onde conhece o Comandante Mavinga, que conduzir Ngunga a uma escola para se tornar um guerrilheiro alfabetizado. Na escola conhecer seu grande amigo: professor Unio. Com Unio experimenta a priso e a tortura, quando a escola atacada e destruda pelos colonizadores. Para fugir consegue assassinar o chefe da PIDE[footnoteRef:4] e roubar algumas armas. Aps a fuga, chega ao kimbo do velho Chipoya, e se apaixona pela quarta esposa dele, Uassamba, uma rapariga da sua idade, muito bonita (PEPETELA, 1983: 42) comprada pelo velho. [4: - Polcia Internacional em Defesa do Estado]

A partir desse momento e situao, Ngunga se prope a ir para uma nova escola objetivando aprender a escrever, pois s assim poderia mudar tudo aquilo de que no gostava. Ao contrrio de antes, quando tinha preguia de estudar, se diz preparado para levar a srio seus estudos. Pois durante a fuga da priso no pode enviar um bilhete a seu amigo Unio para combinarem a sada; do mesmo modo, a experincia com Uassamba lhe mostrar a necessidade de rever algumas das tradies locais. Na tradio, queria mudar o sistema de alambamento, uma espcie de dote que o noivo tem que pagar aos pais da futura esposa; a adoo, que tem seu maior interesse no aumento da mo-de-obra para a lavoura; e a poligamia, que serve tambm para crescimento da mo-de-obra, pois so as mulheres que fazem os trabalhos agrcolas. Por outro lado, agora Pioneiro do MPLA, ele tenciona ir contra o sistema de explorao e opresso que dos chefes sejam eles os Presidentes de kimbos, ou Responsveis dos Setores, mantm sobre os povoados que so administradores.Pode-se dizer que ser nas vrias viagens e no processo de experimentao, que Ngunga vai adquirir seus conhecimentos sobre o carter do homem, seus desejos, maldades, dio e amor. a partir dessas experincias de confronto, no s com o mundo adulto, mas tambm com a humanidade colonizada e colonial, que poder compreender seus defeitos e virtudes para tentar transformar o que no gostava. De maneira que seus atritos ocorrero exatamente com as pessoas adultas que so ms apenas por serem adultas ; com a escola que apenas um stio onde tinha de se estar sempre sentado, a olhar para uns papis escritos (PEPETELA, 1983: 20) ; com as tradies negativas; e, por final, com a colonizao. Todavia, Ngunga vai descobrindo e revendo tais conceitos e situaes. Ao partir pela primeira vez do Kimbo do seu amigo Nossa Luta, onde morava, vai se transformando, deixando de ser a criana medrosa para se tornar um pioneiro, um guerrilheiro alfabetizado que luta contra o colonialismo. Mesmo tendo apenas treze anos de idade e reaes infantis, como ter medo de injeo, Ngunga faz coisas que s uma pessoa adulta poderia executar, ou pelo menos o que se esperaria de uma. Como, por exemplo, nas aes que tem quando preso. Ao contrrio de entrar em pnico como o colega Chitangua que delata o local da escola e diz que era o professor Unio quem lia as cartas com as instrues da guerrilha para o Comandante Mavinga , Ngunga consegue produzir, semelhante seu professor, toda uma estratgia de resistncia perante o colonizador e, ao mesmo tempo, suportar a tortura e a humilhao na priso. Ademais, mantm-se quase sempre calado frente a todas as situaes no crcere, conseguindo aprender um bocado de portugus mas fingia que no (PEPETELA, 1983: 36); o que lhe ajudar a descobrir onde Professor Unio estava preso. Nessa mesma fase infantil, consegue sozinho imaginar e executar um plano para escapar da priso dos tugas[footnoteRef:5], pois no havia como meter um bilhetinho na cela de Unio e combinarem juntos a fuga (PEPETELA, 1983: 37), porque no sabia escrever. tambm com esse plano de fuga, que Ngunga conseguiu eliminar o chefe da polcia colonial, a PIDE. [5: - Termo pejorativo dado pelos angolanos para os portugueses.]

De um kimbo para outro, de uma escola para outra, as viagens de Ngunga vo dando a dimenso da unificao, da compreenso do princpio de nacionalizao e nessa tomada de conscincia, que o heri principia o rompimento dos valores preestabelecidos pelas tradies negativas. Assim, elas levam Ngunga progresso, conquista da identidade nacional e ao embate com o mundo colonial e tribal, para ao final de sua jornada transform-lo no modelo de homem novo. Esse um dos resultados do processo de libertao das amarras da colonizao, como mostra Frantz Fanon ao pronunciar que

A descolonizao jamais passa despercebida porque atinge o ser, modifica fundamentalmente o ser, transforma espectadores sobrecarregados de inessencialidade em atores privilegiados, colhidos de modo quase grandioso pela roda-viva da histria. Introduz no ser um ritmo prprio, transmitido por homens novos, uma nova linguagem, uma nova humanidade. A descolonizao , em verdade, criao de homens novos. (FANON, 1979: 26)

Apropriando-se do olhar do autor de Os condenados da terra, pode-se dizer que Ngunga modelo do homem ps-colonial, do vir-a-ser da descolonizao, tanto que ele seria o contrrio da concepo do homem velho: egostas, vinculado s tradies negativas e assimilado. Talvez, o nico que poderia se aproximar desse homem seria professor Unio, que tem muito de criana nas suas aes segundo o Pioneiro do MPLA: No disse Ngunga O camarada professor capaz de ser ainda um bocado criana. (PEPETELA, 1983: 30).Para revolucionar a concepo de adulto, no s em sua pessoa, mas tambm nas que estavam ao seu lado, Ngunga a sntese e prtica do homem novo, que supera a si mesmo, quando, no final do livro, vai para uma nova escola, propondo, depois de ter passado pela experincia da priso do colonizador, no s destruir o mundo colonial, mas tambm os valores estabelecidos por uma tradio negativa, vinculada cultura angolana. Para outro exemplo, tambm se pode ver que um possvel casamento com Uassamba criaria a impossibilidade de uma progresso do protagonista, progresso esta que ele prprio estipulou para si, que era construir um mundo novo. Assim, destruir tais tradies negativas que impediam sua unio era mais que roubar a jovem esposa do velho Chipoya, era extinguir as estruturas desse sistema de tradies. Tais tradies reproduzem velhos padres que impedem a consolidao de um projeto nacional. Para tanto, Mavinga conduzir Ngunga sua verdadeira luta.

Ests maluco ou qu? Se ela casada, pronto, no penses mais nisso. Como vais pagar o alambamento? Nunca hs-de arranjar o dinheiro. Fugir muito bonito. Mas depois sero os pais dela a pagar o que receberam. E, alm disso, se foges com ela, como vo viver? Tu dizes que sempre assim viveste. Mas ela? No pensas nela? Julgas que pode agentar? s um mido e tens de estudar; isso que vais fazer. (PEPETELA, 1983: 53)

De forma consciente e pontual, o Comandante provoca no Pioneiro uma reflexo que pe em xeque o interesse individual frente ao coletivo, colocando em anlise os valores nacionais e as tradies negativas. Dessa maneira, em As aventuras de Ngunga, o que est em discusso o modelo de homem novo. Tanto que para propor qualquer questionamento, Ngunga deve voltar escola o nico lugar para o Mavinga onde as pessoas deixam de ser ignorantes e passam a ser escutadas.O Comandante no conseguia ter a dimenso do mal que a tradio, uma grande fora retardadora que escamoteia e enfraquece os fatores de mudana (BALANDIER, 1976: 175) criava ou, se o sabia, no se achava disposto a tal batalha. Para ele, ela sempre existiu e foram seus avs que lhe ensinaram. Da incentivar Ngunga a ir para a escola, pois s os homens novos podem refletir sobre as situaes, compreender e tentar mud-las.

Oh, este Mundo est todo errado! Nunca se pode fazer o que se quer! Hei-de lutar para acabar com a compra das mulheres gritou Ngunga raivoso. No so bois! Para isso precisas de estudar. Eu no sei sobre o alambamento. Sempre se fez, os meus avs ensinaram isso. Mas, se achas que est mal e que preciso acabar com ele, ento deves estudar. Como aceitaro o que dizes, se fores um ignorante como ns? (PEPETELA, 1983: 54)

Ainda que no fosse alfabetizado ou crtico do sistema tradicional, o Comandante Mavinga v no processo de escolarizao uma etapa para a conquista da liberdade da colnia, para alm da que praticava uma oposio ativa na luta contra o colonizador. Orientado pelo amigo e espelhado no professor Unio, Ngunga v na escola e na luta armada as possibilidades de sua transformao pessoal e da criao da nao Angola. Assim, o Pioneiro do MPLA o futuro guerrilheiro alfabetizado que tem a conscincia da destribalizaro, mesmo com uma clareza poltica de senso-comum, mas que aos poucos vai se tornando terica. Sobretudo quando decide ir para a escola pela segunda vez. Todavia por necessidade e no mais por obrigao ou curiosidade, pois descobre que

Se (...) soubesse escrever... Sim, se soubesse escrever, podia meter um bilhetinho na cela de Unio e combinarem juntos a fuga. Mas pouco se interessara por aprender, s gostava mesmo era de passear. Pela primeira vez, Ngunga deu razo ao professor, que lhe dizia que um homem s pode ser livre se deixar de ser ignorante. Agora era tarde. Tinha de preparar tudo sozinho. (PEPETELA, 1983: 37)

Se a primeira experincia com o mundo escolar no foi levada muito a srio por Ngunga, pois o ideal escolar (adulto e ocidental na origem...) no parece seduzir muito o menino que defende o aprender-vivendo-e-fazendo em lugar da aprendizagem institucionalizada da escola (LAJOLO, 1994: 92), seu retorno para ela ser a tentativa de construir uma nova afinidade com o saber escolarizado. Sobretudo no que este pode se relacionar com o ideal de libertao nacional e destruio das tradies negativas. Marisa Lajolo, analisando as diferentes situaes frente escola vividas por Ngunga, comenta quePara todos os efeitos, o ponto de vista do comandante [Avana] (e do narrador?) leva a melhor e Ngunga vai efetivamente para a escola. A lio que ele l aprende, entretanto, a lio de solidariedade e lealdade, ficando a alfabetizao para mias tarde, e assim mesmo s tolerada como instrumento para a causa maior, a da libertao de Angola. (LAJOLO, 1994: 92)

Prevalece a concepo que Mavinga possua da escola, por assim dizer. Uma escola onde todos possam estudar, um local de construo da conscincia nacional e de luta contra o colonizador. Para ele, ela ser de extrema importncia porque

No tempo do colonialismo, ali nunca tinha havido escola, raros eram os homens que sabiam ler e escrever. Mas agora o povo comeava a ser livre. O Movimento, que era de todos, criava a liberdade com as armas. A escola era uma grande vitria sobre o colonialismo. O povo devia ajudar o MPLA e o professor em tudo. Assim, o seu trabalho seria til. As crianas deveriam aprender a ler e a escrever e, acima de tudo, a defender a Revoluo. Para bem de todos, tinham de estudar e ser disciplinados. (PEPETELA, 1983: 24)

Consideraes finais Interessante notar o lugar que a escola teve na concepo de revoluo em Angola: um dos lugares de gestao da nao independente. Essa viso destoa da filosofia de Michel Foucault (2001) que v a escola como instituio total e assim como a clnica, um lugar de represso e controle social. No pensamento de Pepetela e outros lderes guerrilheiros, ao contrrio, a escola o lugar de crescimento, o lugar onde se alcana a autonomia, se gesta o homem descolonizado poltica e mentalmente. Se constri a nao, enfim. Neste sentido, um texto como As aventuras de ngunga exemplar do esforo de produo e instaurao, pela educao, das bases da sociedade que se queria criar na Angola ps-colonial. Sua importncia se d pelo esforo de criar um exemplo do homem novo, que ensinado na escola deveria ser levado at a vida pblica nacional, depois da libertao. Se complicado saber como e se aqueles cem exemplares foram lidos pelos pioneiros do MPLA, possvel afirmar a importncia que a produo e a publicao de um texto como o aqui estudado no contexto de luta de libertao. Pois, desde muito cedo os movimentos de libertao nacional, na frica, entenderam que a descolonizao poltica no bastava; compreenderam que aquilo que Ngugi Wa Thiongo (1982) chamou de descolonizao mental era de central importncia. Da a escola como lugar de libertao; da o exemplo do pioneiro Ngunga.

Referncia BibliogrficaBALANDIER, George. Antropo-lgicas. Traduo de Oswaldo Elias Xidieh. So Paulo: Cultrix; Ed. Da Universidade de So Paulo, 1976.BRITO NETO, Manuel de. Histria e Educao em Angola: do Colonialismo ao Movimento Popular de Libertao de Angola (MPLA). Campinas: UNICAMP (tese de doutorado), 2005. FANON, Frantz. Os condenados da terra. Traduo de Jos Laurnio de Mello. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2edio, 1979.FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrpolis: Vozes, 2001.LAJOLO, Marisa. As aventuras de Ngunga. EPA Estudos Portugueses e Africanos. Nmero 01, pp. 67-78, 1983. LAJOLO, Marisa. Do mundo da leitura para a leitura do mundo. So Paulo: tica, 1994.PEPETELA. As aventuras de Ngunga. So Paulo: tica, 1983.PEPETELA. Entrevista. In: www.citi.pt. Acesso 13 de abril de 2010.THIONGO, Ngugi Wa. Decolonising the Mind. Harare: Zimbabwe Publishing House, 1982.