eduardo de noronha - com os olhos na pátria

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Visão pessoal de Eduardo Noronha sobre Portugal, no Inicio do século XX

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  • PURCHASED FOR THE

    UN1VERSITY OF TORONTO L1BRARY

    FROM THE

    HUMNITIES RESEARCH COUNCILSPECIAE GRANT

    FOR

    BRAZIL GOLLECTION

  • COM OS OLHOS NA PTRIA!

  • Composto e impressona Tipografia I^eito,Rua da Picaria, 73 Porto

  • EDUARDO DE NORONHA

    Gom os Olhosna Ptria!

    Episdios Dramticos da Lucta

    entre Portuguezes, Brazileiros

    e Hollandezes no Sculo XVII

    LIVRARIA CIVILIZAO - EDITORA - DE

    AMRICO FRAGA LAMARES & C.a , L.daRUA 0A3 OLIVEIRAS, 75 PORTO

  • 1Qf

    i

  • PRIMEIRA PRRTE

    Bertha van Dorth

    Lisboa em 1622

    A formosa cidade de Lisboa, hoje, em extenso,uma das mais vastas do universo, strebuxava aindanos princpios do sculo XVII dentro de um estreitocinto de muralhas, esboroadas aqui e ali pela ex-panso dos habitantes suffocados e opprimidos emto diminuto mbito. Datavam do reinado de D.Fernando esses esguios lanos de muros, rasgados

  • tuosas e praas irregulares bastos edifcios publicos >o que concorria no pouco para a fama de magni-fica que ento gozava no estrangeiro.

    O viajante, conduzido por qualquer barco veleiro,,extasiava-se ento, como hoje, ante o maravilhosoespectculo que lhe accendia as pupillas em relm-

    pagos de enthusiasmo e lhe alvoroava o espiritocom promessas de visitar um recanto do paraso.Contemplada do Tejo, formava como duas cidades,,recheadas de moradores, unidas pelo cordo umbi-lical dos baluartes, to differentes se apresentavamno aspecto os seculares bairros aconchegados proteco da velha alcova, comprimidos em redorda gide da cathedral, reclinados nas vertentes das.collinas, retalhados de emmaranhadas e exguasviellas e congostas a descerem at o valle, contor-nando a base das eminncias, marginando as aguasora remanosas ora crespas do rio.

    A parte da capital denominada presentementeBaixa constitua n'essa poca um quasi inextricvellabyrintho de pssimos e srdidos arruamentos, quese estendiam desde o Rocio at o Terreiro do Pao.As vivendas da aristocracia accumulavam-se noBairro Alto, considerado ento o sitio nobre porexcellencia e o mais cuidado pela amplido e boaapparencia das suas artrias. O bairro da Lapa con-servava-se ainda em estado embryonario; a rua doAlecrim principiava a esboar-se, ladeando-se demoradias, dominada l de cima, a distancia, pelaermida de S. Roque pertencente aos jesutas.

  • Duas villas tinham transbordado do antigo pe-rmetro amuralhado : Villa Nova de Gibraltar e VillaNova de Andrade. A fundao da primeira nem alenda a explicava. Debruada sobre o rio, emanci-pada da tutella das vetustas barbacans e dos cu-belos ameados dos moiros, a sul sueste, virava-seao nascente, sequiosa dos beijos matutinos do sola erguer-se. Fora, e at certo ponto ainda era, avilla dos judeus, a judiaria, o bairro da Esnoga, ouSynagoga, templo que D. Manuel usurpara para oculto catholico sob o patrocnio de Nossa Senhorada Conceio.

    A importncia da villa decahira com o exter-mnio e desterro dos israelitas portuguezes.

    A Villa Nova de Andrade sorrira-lhe mais pro-picio o fado. Devia o nome aos proprietrios docho em que profundara os alicerces. A expansomartima de Portugal obrigara Lisboa a ampiiar-se.Povoaram-se os terrenos, mais tarde designados porChagas e Santa Catharina, e que se prolongavamdesde a porta deste nome at do Duque de Bra-gana. Conhecia-se n'essa quadra o actual ThesouroVelho, porque o palcio dos duques se converteraem errio da famlia Bragana, pela Cordoaria Nova.Ento, toda a rea, e no era pequena, contidaentre o Loreto e a Esperana, e desde o Tejo atos Moinhos de Vento, depois Patriarchal Queimada,verdecia em hortas, pomares e trigaes.

    No corao da cidade, em logar sobranceiro, aj denegrida S, desenhava no fundo esmeraldino

  • 8das encostas o perfil austero das suas torres incom-pletas. No valle que se dilata para o norte e quese lhe cava e se contorce, como isolando-lhe os ca-

    boucos, ainda se divisavam os restos da mesquitarabe, ponto de concentrao das ermas habitaesmouriscas, o bairro dos vencidos, perseguidos eexpulsos mussulmanos, a Mouraria.

    De uma fusta ancorada no Tejo, popa do qualfluctuava a bandeira vermelha, com um leo alado,tendo n'uma das garras uma espada e na outra umlivro aberto, de Veneza, desembarcaram, perto doforte que Filippe II mandara construir, aps a con-quista, na praia junto do Terreiro do Pao, trezpessoas evidentemente estrangeiras. Eram dois ho-mens e uma dama. Um dos homens, seco de carnes,de estatura mediana, modos sacudidos e enrgicosapparentava de quarenta e dois para quarenta ecinco annos. Usava cabello cortado, barba em bico.Nos olhos fuzilava-lhe a resoluo prompta no con-jurar do perigo; a sua pele cortida e tisnada pelosol de muitas latitudes denunciava n'elle um mari-nheiro ou um militar to habituado a arrostar amorte como as intempries.

    O outro, muito mais novo, de vinte para vintee dois annos, com o mesmo corte de cabello e feitiode barba, um pouco mais alto e menos espigado,tambm revelava no seu aspecto marcial e modosexpeditos no lhe serem estranhas as bruscas mu-danas do Oceano nem os riscos da profisso dasarmas.

  • A dama, joven, nenhum pintor a classificariacomo um typo de belleza, mas possua o condoespecial de attrahir sobre si todas as vistas. O ca-bello louro, excessivamente louro, incendia a alvatoalha de Hollanda que o envolvia com os fulvosclares das suas madeixas de fogo ; os olhos azuesabyssalmente azues, ora se velavam e amorteciamn'um retrahimento tmido de pudor virginal, orafaiscavam e explodiam em labaredas estonteantesde provocadora sensualidade. Corrigia-lhe as feies,midas, mas fortemente accentuadas, um ar fagueirode bondade natural. A bocca rosada, ao entreabrir-se,mostrava-se como um teclado de dentes pequeninose regulares. Envolvia-lhe o corpo flexvel e donai-roso uma modesta saia de l com barra, enfeitadacom debrum da mesma fazenda e um gibo de ta-fet. Por baixo da fmbria do vestido transparecia-Ihe a ponta de um chapim apurado, de verniz. Que linda cidade estai exclamou em fla-

    mengo a joven com voz sonora e fresca.Mais bonita, todavia, encarada do mar e de

    longe, que vista em terra e de perto contrariou ohomem mais edoso. E que bello palcio aquellelcommentou o

    mancebo.Os rez viajantes enccnravam-se agora em frente

    do antigo palcio real, ou Paos da Ribeira, prin-cipiados a construir por D. Manuel. O edifcio,erigido de comeo na banda norte do Terreiro doPao, no ponto onde hoje se vem os ministrios

  • 10

    do Interior e da Justia, alongou- se mais tarde paraoeste do terreiro em busca da margem do rio. Deaspecto magnifico, ostentava soberbos prticos,bellas columnatas, pateos espaosos, artsticas va-

    randas e eirados, sumptuosos sales e uma infini-dade de esplendidos aposentos. Que formoso jardim! exclamou de novo a

    joven, pregando os rasgados olhos nas copadas ala-medas, nas ramalhadas arvores e nos canteiros ma-tizados de flores, annexos rgia moradia. E que ser aquella construco para alm?

    perguntou, sem nenhuma esperana de obterresposta, o rapaz.

    O deposito de armas, o nosso arsenal in-formou um militar que se approximra dos trez fo-rasteiros, seno em puro flamengo, pelo menos em

    flamengo quasi correcto, muito comprehensivel.A dama e os seus companheiros viraram-se com

    extrema vivacidade e bastante surpreza para a pessoa

    que proferira estas palavras. No vos admireis nem assusteis; embora

    tenham acabado as trguas e esteja de novo decla-rada a guerra entre ps Paizes-Baixos e a Hespanha,o capito Francisco de Padilha nunca se entregou

    ao vil mister de espio, nem a sua espada procuroununca peito de inimigo seno no campo de batalha.

    Fazia esta abrupta declarao, no tom emphaticoda poca, um militar de vinte e cinco para vinte eseis annos, esvelto, de physionomia risonha e aberta

    ,

    pupillas negras e rtilas, bocca de lbios volu-

  • 11

    ptuosos vida de beijos, bigode e pra moda dotempo. Que se aprimorava no traje provava- o ojustilho enfeitado de espiguilha e passamanes, asmeias e cales de seda, o talabarte doirado, opunho da espada lavrado por cinzel de mestre, oflgido brilhante que lhe prendia a pluma aochapo. Acompanhou a declarao uma palacianamesura, que muitos aulicos da corte de Valladolid

    ou dos paos do vice-rei de Portugal no se digna-riam perfilhar.

    Os trez estrangeiros quedaram-se perplexos, sematinar de momento com a resoluo a tomar. Noentrementes a joven envolveu o militar n'uma ful-gurao interrogativa dos seus olhos curiosos. Porque persumis que somos dos Paizes-

    Baixos?

    perguntou o homem maduro aps algunsinstantes de hesitao. No presumo, tenho a certeza. Conheo-vos

    muito bemaffirmou o capito. A mim?A vs. Sois o coronel dos teros neerlandezes

    Johan van Dorth, senhor de Horst e Pesh, um doshomens em quem os estados geraes da republicados Paizes-Baixos e o seu stadthouder, ou chefe dafora armada, mais confiam. Vivestes em Flandres, pelo que vejo obtem-

    perou aquelle a quem Francisco de Padilha cha-mara coronel.

    Vivi confirmou o capito. Parti para ali

    com meu pae, sargento-mr de batalha, n'um tero,

  • 12

    e l me demorei desde 1607 a 1609, poca em que,como sabeis, se assignou o tratado de 9 de abril,pelo qual cessaram durante doze annos as hostili-dades entre a Hespanha e a Republica. reis ento muito novo? Contava treze annos de edade, mas voltei ali

    ha pouco tempo, quando o conde-duque de Oli-vares resolveu proseguir na guerra, com o meu

    tero.

    Sois hespanhol ou portuguez? inquiriu van

    Dorth. Portuguez; eu e todos os meus antepassados

    declarou n'uma exploso de altiva arrognciaPadilha. Portuguez era o tero em que meu paeserviu, portuguez aquelle em que ora sirvo. E seno continuo combatendo contra vs em Flandres, porque ali a guerra s interessa a hespanhoes

    ;

    prefiro combater-vos n'outra parte em que s aminha ptria aproveita. Por isso regressei a Por-tugal.

    A joven que ladeava o coronel seguia muitoattenta a expansiva fluncia do capito.

    *arece que no gostaes dos hespanhoes?... observou o coronel depois de vacillar uns se-gundos. Desteste-os, retorquiu com fogoso azedume

    Francisco de Padilha.No ha corao verdadei-ramente portuguez que no sangre com a perda daindependncia da sua ptria. S eguala o dio quevotamos a Fiiippe II e ao duque de Alva, factores

  • 13

    principaes da invaso de 1580, a esperana de umdia despedaar as algemas que nos agrilhoam ospulsos.

    Se os hespanhoes vos ouvissem... notouo coronel e em seguida acrescentou em tom menosreservado, mais benvolo: Se vs, portuguezes,odiaes os hespanhoes, se ns, hollandezes, os abor-recemos, porque que, em vez de pelejarmos unscontra os outros, nos no unimos para destruir oinimigo commum? Era este o trilho da razo e da convenincia,

    mas. . . e o militar calou-se, mudou subitamentede inflexo e adduziu : Acauieiae-vos, ha emLisboa quem bem perceba o flamengo, e emboraencontreis na cidade algumas famlias vossas com-patriotas, a desconfiana geral para os que surgemde novo. Depois, a Inquisio precisa de dinheiropara as suas arcas e de rprobos para os seus autosde f, e em tudo descobre scisma e em todos vchristos novos e herticos.

    Era manifesta a sympathia com que a jovenexaminava de soslaio esse consummado exemplarda raa meridional, loquaz, communicativo, incan-descente, faliando a estranhos como se convivessede ha muito na sua intimidade, invencivelrnemeattrahido pelas damas no sffrego e irreaisaveldesejo de as possuir a todas.

    A desempennada cachopa relanceou com olharainda mais profundo e demorado o capito, e emseguida trocou algumas rpidas palavras, em voz

  • 14

    baixa, com o coronel. Este reflectiu um momentoe logo se dirigiu a Padilha, que, discretamente,

    recuara alguns passos, nos seguintes termos:

    Usaes uma espada e basta essa circumstancia

    para vos considerar um homem de honra. Quereisindicar-nos a habitao de uns parentes afastados aquem viemos visitar aqui, em Lisboa e que moramperto do chamado bairro da Esnoga? Christos novos? perguntou, sorrindo, o

    capito. No, christos velhos, mas scismaticos re-

    darguiu com egual intonao o hollandez. Mau dia para o encontrardes em casa a esta

    hora objectou Francisco de Padilha. Pouco mais so do que nove horas da

    manh! Porqu?... inquiriu o estrangeiro maismoo, abrindo a bcca pela primeira vez e in-clinando a cabea n'uma cerimoniosa, mas fria re-verencia. Principiam as festas com que os religiosos

    filiados da Companhia de Jesus celebram a cano-nisao de Santo Ignacio de Loyola e de S. Fran-cisco Xaxier. S os entrevados e os lzaros nosahiro para a rua.

    Os trez forasteiros pareceram ficar contrariadis-simos. Consultaram-se rapidamente coin a vista.Todos manifestaram por gestos, mais ou menos si-gnificativos, que se resignavam. A melhor delibe-rao aconselhada para o irremedivel. Eis explicado tanto movimento de povo e

  • 15

    tanta agglomerao de gente, que se me afigurouociosa notou van Dorth. Assim confirmou Francisco de Padilha, e

    aps uma pausa propoz: Assisti primeira partedos festejos. Conduzir-vos- hei a sitio onde os pos-saes contemplar sem mortificao. Quando soar omomento do jantar eu vos guiarei moradia quebuscaes.

    Os trez tornaram a consultar-se mudamente;conformaram-se. Acceitamos, embora nos cause grande trans-

    torno essa dilao declarou o coronel, e ajuntou. J que com tanta galhardia vos dispondes aservir-nos de agulha de marear n'este oceano re-volto de Lisboa, permitti que vos apresente minhafilha, Bertha van Dorth, e o meu sobrinho, Jacobvan Dorth e o senhor de Horst e Pesh ia indi-cando as pessoas da famlia a quem apresentava.

    Francisco de Padilha arqueou o busto esbeltoem nova e mais profunda cortezia, e disse

    :

    Consenti que seja eu quem me apresente amim mesmo. J sabeis o meu nome e o meu cargo,falta accrescentar que sou filho segundo de um fi-dalgo oriundo de uma casa antigamente opulentae hoje arruinada pela unio de Portugal Hes-panha, de Andr de Padilha, actualmente no Brazil.Pouco mais possuo que o sufficiente para manter adignidade da minha posio sem contrahir dividas.

    A despreoccupada franqueza com que a decla-rao foi feita agradou sem reservas aos trez neer-

  • 16

    landezes. Bertha van Dorth encarou ento de frenteo official portuguez, e dirigi u-lhe pela primeira veza palavra: Mas tendes a vossa espada e a vossa coragem

    com as quaes podeis obter as mais elevadas e re-muneradoras dignidades. E naturalmente a ambio da juventude com

    que se conquistam reinos adduziu o coronel. O futuro o dir conceituou entre risonho e

    sonhador Francisco deTadilha. Por agora busque-mos sitio azado para gozardes os festejos.

    E o capito poz-se a caminho frente dos fo-rasteiros e conduziu-os para a vivenda onde se alo-jara, situada n'um dos melhores locaes para con-templar as diverses em perspectiva.

    As festividades attingiram um grau de apparatoe de magnificncia nunca admirado at ahi. Os fol-guedos no se limitaram apenas capital. Braga,vora, Porto, Villa Viosa e outras terras esmera-ram-se em que os passatempos deslumbrassem osseus moradores e ainda os que acudiam de fora. Osjesutas dispunham de fartas riquezas e capricharamem ostentar o maior esplendor alliado a requintadaarte.

    Corrida a adufa de uma das janellas da moradiado capito, n'uma das ruas sinuosas do antiqus-simo bairro da S, ali assomaram os trez convi-dados. Moraes quasi n'um palcio disse Jacob van

    Dorth, relanceando a vista, como que ciumenta,

  • 17

    pelo vasto e luxuoso aposento para onde os guiaraFrancisco de Padilha. Modesto domicilio de rapaz solteiro e nada

    mais. O aspecto de grandeza que vedes devo-o aoscuidados de minha ama de leite e de um antigocampanheiro de armas, nicas pessoas que merestam no Velho Mundo que sintam por mimalgum carinho retorquiu o capito n'um tom quasimelanclico. Perdi minha me era muito novo, e meu

    pae ha cinco annos que reside na Bahia ; os outrosmembros da famlia so parentes afastados, vivemlonge; quasi no sabem que existo. Pairo por aqui,em quanto no embarco para o Brazil, com a velhi-nha de quem vos falei, e com esse soldado encane-cido na guerra, nos joelhos do qual eu brinquei naminha infncia redarguiu Francisco de Padilha.

    O coronel, ao ouvir citar as palavras Bkjiia^Brazil ergueu de sbito a cabea como se ela acor-dasse no seu crebro echos de um pensamento ilxo.Ao mesmo tempo Bertha, que sondava a rua,exclamou: i sb oihisxsAhi vem a procisso 1 Ahi vemsacprocisso

    !

    Principiou entou o lento desfile -de :iiBi)pfocis-

    so interminvel, intercallada com, copioso 31 uroer)de andores de estupenda sumptuosidadeOb trajectoestendia-se desde a S at Casa ^rofessaotie^J.Roque. No cortejo emparelhava>se aisagracte a$mo profano. Aos hombros dos fieis ou em cima^cl*carros triumphaes deslisavarmas #itlude>^yittbc#-

  • 18

    zadas e personificadas; imagens de individualida-des que tinham deixado rasto piedoso e santo na

    sua travessia pelo mundo; alluses artsticas ssciencias e lettras; danas e folias com abundanteturba de figurantes; musicas dotadas com os ins-

    trumentos mais singulares, desde as trombetas bas-

    tardas, charamelas at os adufes; mascarados comdisfarces de rara extravagncia e phantasia; acro-

    batas bailando com andas; jograes e folgadoresexhibindo truanescos esgares e cabriolas; um mixto

    de allegorias serias e dignas de contemplao e detypos cmicos e ridculos. Que prstito to curioso! Tudo isto deve ter

    custado avultadas sommasl...commentou Berthavan Dorth. Que podiam ser empregadas em fins mais

    teis concluiu o official portuguez, quem sabe secompletando o ntimo raciocnio da joven. As quantias despendidas com a ostentao do

    culto externo em Portugal e Hespanha subvencio-navam vontade uma esquadra formidvel e umexercito de muitas centenas de milhares de homens notou o coronel.

    O exerccio da religio nos dois paizes absorvecerca de um tero dos rendimentos pblicos ad-duziu o capito, e em seguida acrescentou: Osfestejos no se reduzem procisso que acabaes devr passar. Logo noite effectua-se uma represen-tao de grande espectculo, Defeza do castllo dePamplona, em homenagem s proezas que o fun-

  • 19

    dador da Companhia de Jesus praticou n'aquel!apraa hespanhola, corno official da sua organisao,quando nos princpios do sculo XVI os francezesa acommetteram. No se esquecem os seus disc-pulos que o grave ferimento ai recebido na pernadireita foi a causa primordial da sua existncia comocommunidade religiosa. O espectculo deve estar em hormonta com

    a magnificncia da procisso obtemperou Jacobvan Dorth. Ah, sem duvida, confirmou Francisco de

    Padilha os canhes so a valer, cedidos do ar-mazm do duque de Aveiro, afora artificiosas visua-lidades, jogos de cannas, torneios com os seusrespectivos mantenedores e.

    .

    .

    O capito inerrompeu-se bruscamente. Virasurgir entre os humbraes da poria a figura alta esecca, o rosto enrgico e severo de Paro Rodrigues,o antigo companheiro de armas de seu pae, agoraurna espcie de escudeiro que arrogara a si prero-gativas de quasi tutor. Que desejaes, Pro Rodrigues? perguntou

    Francisco de Padilha, comprehendendo que s casourgente o levara a entrar n*aquelle aposento sern

    ser chamado. Falar comvosco puridade, sem demora

    retorquiu o veterano de cem combates. Aguardae um s instante, breve serei a vosso

    lado respondeu o capito, e virando-se para osseus hospedes slicitou-lhes auetorisao para se

  • 20

    ausentar por alguns momentos, e seguiu no encalo*

    do ancio.Caracterstica individualidade de soldado, essa,,

    de Peio Rodrigues. Consubstanciava em si a epopasublime dos ltimos quarenta e cinco annos. Irmacolao do pae de Francisco Padilha, recebera comelle o baptismo de fogo em Alcacer-Kibir. Um ver-dadeiro milagre fizera com que ambos escapassems cimitarras dos mussulmanos e ao captiveiro sof-frido pela quasi totalidade dos vencidos. Partidrios,porfiosos do prior do Crato, recuaram, verdade,na batalha de Alcntara, mas os seus golpes tinhamsido dos derradeiros vibrados nas nos es invasorasdo castelhano duque de Alba. Desde ento as suasespadas nunca mais se embainharam na defesa daspraas de Marrocos, nas luctas permanentes dandia, nas expedies homricas contra o gentiaafricano, nas campanhas sangrentas de Flandres,nos combates navaes com inglezes e francezes, naconsolidao do domnio de Portugal no Brazil. Oseu irmo de leite necessitara partir para as terrasde Santa Cruz, para acudir ao pouco que lhe res-tava de um farto patrimnio, e jurara-lhe no mo-mento solemne do embarque dedicar ao filho amesma incondicional e nunca desmentida estimaque o ligava ao pae.

    Fora o mestre de armas de Francisco de Padilhae, sem ser um homem culto, o seu conselho valiamais que o de muito sbio pouco judicioso. Aedade, que no lhe quebrantava o vigor nem a co-

  • 21

    Tagem, tornara-o talvez um tanto rabugento. Era otinico defeito em que se cevava a m lingua dacarinhosa Maria do Rosrio, ama do capito, ciosade que aquelie a quem criara ao seio se visse obri-gado a repartir o seu affecto em parcelias eguaesentre a respeitvel mulher e o velho militar. Que quereis, que urgncia essa, que suc-

    cedeu?

    perguntou Francisco de Padilha, comcerta impacincia, apenas se viu a ss com ProRodrigues, fora do aposente.Senhor, ento l em baixo quatro ou cinco

    familiares do Santo Officio com um escrivo. De-claram que desejam conferenciar comvosco imme-diatamente. Que pretendem?Ao cerco no sei respondeu Pro Rodrigues;

    mas por palavras sitas, trocadas entre os qua-

    drilheiros, parece que houve denuncia de terem de-sembarcado de uma fusta ou de uma asca fundea-da no Tejo vrios hollandezes herticos e inimigosde Filippe IV. Os meus hospedes! exclamou Francisco de

    Padilha. Quem os denunciaria?! Parece que vossa merc ignora como os es-

    pies da Inquisio e do Conselho do governo for-migam em Lisboa?! Nunca ha de ter emenda. Emvendo uma mulher bonita ou feia, nova ou ve-lha, nobre ou pleba, logo se lhe varre o juizo.Quem se lembra de trazer para casa gente des-conhecida, que no teme a Deus e ainda por cima

  • 22

    de um paiz com o qual andamos em guerra ?! de-sabafou Pedro Rodrigues. Bem, guarda a rabugice para circumstancia

    mais azada rebateu o capiio entre familiar e so-branceiro. preciso salvar esses forasteiros dasgarras dos beleguins inquisitoriaes. Emquanto euconverso com o escrivo, f-los sahir pelas trazei-

    ras do prdio, pela porta que deita para a outrarua . .

    .

    Tal no farei. Comprometter-me-hia eu e vs.E os braos do Santo Officio so compridos e for-tes declarou Pro Rodrigues, acenando negati-vamente com a cabea.E em seguida cond-los e occulta-os na mo-

    radia que sabes, n'essa mesma rua continuouFrancisco de Padilha, como se no ouvisse asobservaes do escudeiro. Na moradia onde vossa merc se avista com

    as perdidas que comfiam em promessas de mance-bo voltvolo. A toca de molde para abrigar seis-maticos da sua espcie, mas no serei eu quem lhesservir de guia accentou ainda mais categorica-mente o militar. Se perceberes que ha perigo, desces com elles

    at o subterrneo e no consintas que saiam de lat o risco desapparecer de todo. Jogo n'isto aminha honra.

    Pro Rodrigues preparava-se para proferir novaobjurgaoria, mas o capito to convencido estavaque as suas instrues seriam fielmente cumpridas,

  • 23

    que lhe voltou as costas, e dirigiu-se para a entra-da, a informar-se do escrivo do omnipotente tribu-nal religioso a que devia a sua presena ali. Conversaste esta manh defronte dos Paos

    da Ribeira com trez estrangeiros, no assim ?

    inquiriu o escrivo, de Francisco de Padilha, depoisde sccas saudaes e de declinar a sua qualidade. Assim comfirmou o capito. E trouxeste-los para vossa casa; onde se

    encontram?

    perguntou o funccionario do SantoOfficio.

    Manifestaram desejo de assistir ao desfile daprocisso, convidei-os para virem at aqui, masapenas o desfile terminou agradeceram-m'o, despe-diram-se e sahiram respondeu o capito, pensan-do que mentir a um familiar da Inquisio nochegava a ser pecado venial. Ha muito tempo?Ha pouco; se andardes lestos talvez ainda os

    acheis no topo da rua.So hollandezes, na verdade? inquiriu ainda,

    mas apressadamente, o escrivo. No vos posso esclarecer n'esse ponto; fala-

    vam uma algaraviada onde a custo se percebiamtermos em portuguez e castelhano. Pareceram-me

    pessoas de boa linhagem e quiz ser cortez com eilesAfigurou-se-me desprimor indagar a sua prove-nincia.

    Exprimiam to despreoccupada naturalidadeestas palavas, que o escrivo, embora desconfiado

  • 24

    por dever de officio, acreditou n'ellas. Virou-separa os seus quadrilheiros e determinou-lhes. Dois que examinem a rua a vr se encon-

    tram as pessoas com os signaes que sabeis; outros

    dois que percorram esta habitao de cima abaixo,em cumprimento das ordens recebidas.

    Nos olhos de Francisco de Padilha fuzilou umrelmpago de cholera, logo reprimida, e a voz tre-meu-lhe n'um sibilo quando disse: Pesquizae a vosso bel-prazer; a minha casa

    vossa e do Santo Officio.

  • II

    Separao violenta

    A busca no deu nenhum resultado.Pro Rodrigues desempenhara-se escrupulosa e

    inteligentemente da misso que lhe fora incumbida.Os quadrilheiros revolveram o domicilio do capi-to com uma mincia que provava bem quantoestavam habituados a esse gnero de deligencias.No se lhes deparou o minimo rasto da permann-cia ali dos holiandezes.

    Quando os aguazs terminaram a devassa, Fran-cisco de Padilha, com as pupilas em fogo e com

    os lbios brancos de furor, murmurou

    :

    Desditoso Portugal! Todas as calamidadesdesabaram sobre ti : a opresso castelhana, a cobiae o fanatismo dos inquisidores, a inveja e a friade exterminio das naes estrangeiras. No possu-mos nem autonomia politica nem liberdade indivi-dual. Oh, quando soar a hora de sacudirmos estejugo atrozmente infame?!

  • 26

    Maria do Rosrio, gil criatura de cincoentaannos, com patentes vestgios, no rosto e na figura,

    da sua mocidade guapa, quedara-se assustadssimaante a inslita invaso dos sinistos esbirros, e bal-buciou, quando os viu pelas costas: Senhor, Senhor, amereceae-vos de ns

    !

    Livrae-nos de peste, fome, guerra, das tentaes deSatanaz e do mau olhado dos nossos inimigos!

    Esta ultima parte da fervorosa prece referia-seaos incorrigveis propsitos galanteadores do capi-to, que norteava o rumo da sua existncia pelospoios to divirgentes, e ao mesmo tempo to liga-dos, dos combates e das mulheres.

    Maria do Rosrio que, para no desmentir astradies do seu sexo, no podia manter se muitosminutos silenciosa, depois de uma pausa, com-mentou : Debaixo dos ps se levantam os trabalhos,

    mas para vossa merc deante dos olhos que sur-gem ; em pregando a vista em qualquer palminhode cara razovel esquece-se de tudo. Que mausestro esse!

    Foste tu que m'o d'este a beber no teu leite. Tarrenego! Jesus, cruzes, anjo bento! So

    diabruras do Mafarrico e no outra coisa ! repli-cou aodada Maria do Rosrio, persignando-sedevotamente.

    Francisco de Padilha no se sentia com dispo-sies de espirito para proseguir n'um dialogo queno o interessava nada. Entardecera e as sombras

  • 27

    do crepsculo no vinham longe. Tirou do cabideuma capa, afivelou o boldri recamado de desenhos,experimentou se a espada se desembainhava comfacilidade e aprestou-se para sahir. Nas ruas princi-piava a escassear o movimento dos transeuntes,attrahidos pelo desfile da procisso.Ama disse o capito para Maria do Rosrio,

    tomae dois escudos e preparae uma ceia abun-dante e apurada para quatro commensaes. Gastaes o dinheiro e a sade. .

    .

    Maria do Rosrio calou-se.Francisco de Padilha descia os degraus da esca-

    da de servio do prdio a quatro e quatro. Nolimiar da porta demorou-se a examinar com cautelase por ali rondava qualquer vulto suspeito. Des-canado por esse lado, rebuou-se com a gola dacapa at os olhos, atravessou em duas pernadas aestreita viela e metteu-se n'um portal quasi fron-

    teiro sua vivenda. Bateu de um modo particular,e decorridos instantes encontrava-se n) patamar deuma moradia, de um s andar, a mesma para ondemandara as suas estupefactas visitas. Pode explicar-me o que significa todo este

    singularissimo mysterio?! interpelou o coronelhollandez apenas o capito se apresentou ante os

    seus trez hospedes forados.Francisco de Padilha relatou succintamente

    quanto occorrera, e epilogou: Os espies e os delatores enxameiam, como

    as varejeiras, em Portugal e Hespanha.

  • 28

    Mas ns somos gente pacifica retorquiu vanDorth com inflexo que denunciava o contrario. Mas militar de um pais com o qual se

    romperam as trguas e segue uma religio con-demnada pelo Santo Officio. No traz salvo-con-ducto, viaja naturalmente com um nome de emprs-timo e desembarcou sem preencher as formalidadesrequeridas. Pois no isto?

    O coronel conservou-se mudo, o que equivaliaa uma significativa acquiescencia. O official portu-guez continuou : Procura-vos a auctoridade martima por con-

    traveno das leis do porto, a civil por effeito demedidas de policia, a militar para que um inimigono devasse o que se passa entre ns, a Inquisiopara que um relapso no se lhe escape das presas. .

    .

    Que quadro to tenebroso! interrompeu afilha do coronel. No exag^ero as cores retorquiu Padilha.

    Foi uma imprudncia vossa desembarcarem euma leviandade minha conduzi-los at aqui. Escu-sado se torna olhar para traz; remediemos o malfeito.

    De que modo?

    perguntou van Dorth. Permanecendo n'esta casa al perderem a

    vossa pista e desanimarem de vos perseguir. Novos offereo um asylo seguro, mas arriscaes-vos

    menos acceitando esta priso voluntria por algunsdias que, recusando-a, obrigarem-vos a entrar paraoutra menos hospitaleira e mais rigorosa.

  • 29

    Ser abusar da vossa fidalga generosidade

    obtemperou Bertha van Dorth, mergulhando assuas pupilias fulgurantes nas do capito. Generosidade... nenhuma...; o simples cum-

    primento de um dever, que os prprios mussulma-ncs, com serem infiis, praticam, no negando nun-ca hospitalidade nem aos seus acrrimos inimigos.E ns somos, na verdade, inimigos obser-

    vou entre sombrio e cortez Jacob van Dorth. Imaginemos interveio Bertha com a sua

    voz insinuante que as trguas ainda se prolonga,am por mais algum tempo. Pois imaginemas accedeu com galantaria

    Francisco de Padilha, despedindo sobre a jovemum olhar to incendirio como uma manganellada Edade-Media, mas agora no seria jusio quedepois de vos encarcerar aqui vos matasse fome.Breve chegar o necessrio repasto, que constituirsimultaneamente, por vosso mal, jantar e ceia.

    Na verdade, decorrido o espao indispensvel,a senhora Maria do Rosrio, coadjuvada pelo seirreconcilivel inimigo Pro Rodrigues, esmerara-sena confeco de uma ceia oppara e transportara-aella prpria, sem descuidar nenhuma precauo,para a vivenda prxima. Comeram todos com excel-lente appetite, no obstante as pragas que de sipara si o escudeiro rogava aos herticos intrusos. Quantas aventuras estupendas forja o acaso ?!

    A imaginao mais febril sempre menos phanta-siosa que a realidade da vida! commentou a

  • 30

    official porluguez assestando a bateria dos seus

    olhares contra o rosto da dama flamenga.Na vida no surgem acasos, desenvolvem-se

    factos, consequncia lgica de leis naturaes e davontade do Senhor objectou o coronel com aausteridade caracterstica dos protestantes. Curvo-me ante as suas soberanas resolues,

    meu tio redarguiu Jacob van Dorth mas deve-mos concordar que a vontade do Senhor, na pre-sente conjuntura, se manifesta bem desagradavel-mente para ns. No to desagradavelmente acudiu Bertha

    que no nos proporcionasse o ensejo de conhe-cermos um cavalleiro to pundonoroso como esteofficial portuguez.

    O semblante de Francisco de Padilha irradioun'uma expanso d'amor prprio satisfeito, o coro-nel franziu o sobr'olho n'um rpido movimento dedesagrado, Jacob van Dorth tornou-se lvido.

    Pro Rodrigues, ao ouvir declarar a seu amoque trazia a honra empenhada em salvar os hollan-dezes, votara-os do mais intimo da sua alma aoEspirito das Trevas, mas jurara tambm aos santosda sua maior devoo empregar todas as diligen-cias para que no se erguesse nenhum estorvo realizao do promettido. J reparou inquiriu a senhora Maria do

    Rosrio, do escudeiro, com o modo rude com quesempre se lhe dirigia n'umas sombras de mauagouro que andam rua abaixo rua acima ?

  • 31

    Graas a Deus no padeo de cataratas, nempreciso que ningum me ensine as minhas obriga-es redarguiu ainda mais azedo Pro Rodrigues,doido com o remoque da ama. Seria melhor prevenir Sua Merc continuou

    Maria do Rosrio, satisfeita pela lio dada aorival, tanto se entretm na conversa com essesadventcios e tanto se embevece na contemplaoda seresma, que esquece os podengos do SantoOfficio. Mau elles farejarem pista de caa grossa;no largam facilmente a mouta onde pensam que seabrigou.

    Socegue que a mouta est bem guardadaretorquiu o escudeiro, em tom agressivamente

    scco. Demais cada um para o que nasceu; aroca e a certa nunca emparelharam com a espadae o arcabuz; cosinhe bons piios e fie linho esco-lhido, que pela segurana de quem to ruim leitebebeu responde quem pode.

    E Pro Rodrigues, volvendo com desdm odorso sua antagonista, espreitou a rua atravez dagelosia. Cosidos com os humbraes das portas, acusto se divisavam cinco ou seis perfis, como

  • 32

    visinho chocalheiro informou essas toupeiras deque Vossa Merc buscava aqui pousio.

    O official portuguez pediu licena aos seuscommensaes, levaniou-se e procurou medir a im-portncia da noticia. Convencido que o veteranono a exaggerara voltou pensativo para a meza.Van Dorth, que percebia alguma coisa de portu-guez, que o estudara at para fins que o leitor maistarde saber, interrogou : Ha novidade, no assim ? Vigiam-nos a moradia; desconfiam ou certi-

    ficaram-se de qualquer maneira que ainda aquipermanecem redarguiu Francisco de Padilha como rosto ensombrado. Precisamos sahir d'esta emboscada que nos

    armaram bradou o coronel com varonil e suspei-tosa intonao, pondo-se de p.

    O capito deu um salto brusco, chisparam-lheas pupillas, enrubesceram-se-lhe as faces, e excla-

    mou : No quero investigar agora qual o sentimen-

    to que dieta essas vossas palavras. Sim, convmsahir. E juro-vos que ou vos conduzirei a salvo ata praia ou morrerei junto de vs.

    A physionomia de Francisco de Padilha transf-gurara-se ao formular esta promessa. Reflectia-se

    n'ella a coragem de um homem que nenhum peri-go intimida. Bertha fitou- o com mal disfaradaadmirao, Jacob van Dorth envolveu-o n'um olharde imprimi veis zelos.

  • 33

    Meu pae certamente no pretendeu magoar-vos e nem por sombra offencier-vos declarouBertha, estendendo ao capito a sua mo delgadae branca n'um impulso de generoso protesto. No, na verdade, no vos quiz ofender

    repetiu o coronel sem desannuviar o semblante

    mas. .

    .

    Mas repisou Jacob van Dorih este amon-toado de coincidncias convida a meditar o menosdesconfiado . .

    .

    Bertha e Francisco de Padilha, ambos, prega-ram n'elle a vista. A primeira com expresso devigorosa censura, o segundo patenteando tal des-preso, se no dio, que transformou em segundosesses homens, indifferentes um ao outro at ahi,em inimigos irreconciliveis.

    Meditae tanto quanto quizerdes, mas aprestaea vossa espada, que talvez careceis d'eila breve re-

    plicou o oficial portuguez, transmitiindo phrase du-

    plo sentido, que no consentia duvidas a ningum. Ha ocasies, crede, que se desembainha por

    si mesma e em que a mo apenas serve para aarrancar do peito do adversrio retrucou Jacobvan Dorth no mesmo tom.

    O convvio com os hespanhoes, embora emarraial opposto, contaminou-vos do seu espiritohyperbolico e jactancioso. Emfira.

    .. Emfim.

    .. De

    todos os dueilos, o menos proveitoso aquelie emque s se trocam palavras, e do que mais precisa-mos agora so obras.

  • 34

    O mancebo hollandez dispunha-se a replicar,mas conteve-o o olhar severo e dominador deBerha. Pro Rodrigues disse o capito virando-se

    para e escudeiro, testemunha muda e impassveldo aggressivo dialogo, ide verificar se algumd'esses negregados esbirros fareja a sahida do sub-terrneo. Andae lesto.

    O veterano de Alcacer-Kibir engoliu uma praga,que por um triz no lhe salta da bocca, e, sempreresmungando, desappareceu a cumprir as instru-ces recebidas. Os morcegos adejam por este lado parti-

    cipou decorridos cinco minutos Pro Rodrigues,cada vez mais mal encarado, e apontando para abanda da rua onde estacionavam os vultos suspei-tos; d'aquel!e, parecem no desconfiar de quepossam por ali esvoaar corujas agourentas ou ps-saros de arribao. A caminho, pois, minha senhora e meus

    senhores-- convidou Francisco de Padilha, embru-lhando-se na capa e tateando a adaga que entalarano cinto, e, em seguida, virando-se para o velhoescudeiro, ordenou-lhe: Tu caminhas na frente,para nos allumiares, sem esqueceres a espada, deque talvez tambm necessitemos. Para amanhar esses arenques da Hollanda.

    .

    com a melhor vontade redarguiu Pro Rodriguespor entre dentes. Encosiae-vos ao meu brao, senhora offe-

  • 35

    Teceu o capito o caminho no se recomrnendapor bom nem se abre livre de embaraos.

    Jacob van Dorth adeantara-se eguaimente e aomesmo tempo, para que sua prima escolhesse aelle para seu apoio. A joven, porm, aps umsegundo de vaciilao acceitou o ofereicimento deFrancisco de Padilha, explicando. Sais o dono d'esa casa, s me resta esta

    forma de vos manifestar o meu reconhecimento pelavossa bizarra hospitalidade.

    O coronel carregou ainda mais o sobrencenho,seu sobrinho contrahi o rosto n'um esgar quemetteria medo ao prprio Lcifer.

    O escudeiro abrangera n'um relance toda estasignificativa mmica, e resmungou: Eila j dispz as escutoas para reconhecer o

    terreno, ao bonifrate dehe o cotovelo como selhe dessem urna pranchada n'eiie, o pae no mostraboa. cara manobra e o capito deixa-se envolvercomo o> perros infiis de Muley-Moiuk nos envol-veram a ns em Alccer-Kibir. Ao lado de mulhe-res esquece-se das lies de tctica com que semprelhe azoino os ouvidos.

    Pro Rodrigues pegara n'urn velho candieirode lato e abriu a marcha. Seguiu-o immediata-mente o oicial portuguez com Bertha ao lado e

    aps estes dois hollandezes. No se deu no trajecto

  • 36

    das nas florestas da ndia, sondou as visinhanas:com a mais escrupulosa mincia.Ningum informou o velho soldado nem

    mesmo o punhal de um bandoleiro esquina dacongosta.

    Pro Rodrigues no se encanava. A sua pupillade felino devassara as trevas e encontrara os.rinces e os portaes ermas de qualquer aguazil oumalfeitor, to perigoso uns como outros. Saiamos

    propoz Francisco de Padilha;

    entregam-nos a rua livre, no sei se por descuido,se por aleive. Eu formarei a vanguarda da nossacoiumna, o meu escudeiro a cauda. Ficais amboslivres de fugir com esta senhora, se algum nosacommetter, e, como derradeiro recurso, de defen-del-a at ultima. Quando chegarem at vs, jns no nos poderemos aguentar de p.

    A brisa a ciciar no produz menos ruido. Oscinco aventuraram-se afoitamente pelo tortuoso-beco adeante. A noite, e acabavam de bater as trezhoras da madrugada, desdobrara-se opaca, compoucos luzeiros no firmamento. Pro Rodrigues,precavido, munira-se de uma lanterna, objecto indis-pensvel a quem percorria as ruas da capital quandoo luar no se incumbia amavelmente da sua illumi-nao. Mas no convinha accendel-a em conjun-ctura to apertada. Esperam-vos na praia?

    perguntou Francis-co de Padilha para o coronel van Dorth. Devem esperar. So essas as instrues deixa-

  • 37

    das por mim ao comandante da fusta, que, emboradesfralde a bandeira veneziana, hollandeza.

    O patro de escaler tem por obrigao ali aguardaro nosso embarque at de madrugada.

    Os cinco noctvagos continuaram no seu emma-ranhado percurso, sem nenhum encontro desagra-dvel. O maior perigo parecia conjurado.No ha policia n'esta cidade? inquiriu

    Bertha do official portuguez, de uma das occasiesque este se acercou d'elia para se informar se lhe^ra muito penoso o trajecto.Ha annos, em 1603, creou-se uma policia

    urbana esclareceu Francisco de Padilha. Recen-searam-se os mesteiraes mais honrados de cada fre-guezia e organizou-se com elles uma corporao

    de quadrilheiros com a imposio de serviremdurante trez annos. um servio onoroso commentou o coro-

    nel desejando apagar no espirito do official portu-guez a m impresso do dialogo anterior. Coadjuvam-n'os vinte visinhos em cada fre-

    guezia, promptos ao primeiro rebate para os refor-

    mar, armados de lanas de dezoito palmos, chuosou partazanas. Existem actualmente quatro correge-dores e dez juizes distribudos por outros tantosbairros

    pormenorizou o capito. As leis so geralmente sabias em toda a

    parte, o difficil, porm, tornal-as effectivasconceituou Bertha. Os regulamentos determinam que os juizes

  • 38

    rondem as suas jurisdices, pelo menos, duasvezes por semana, e os alcaides iodas as noites.

    Incumbe-lhes investigar da existncia dos habitan-

    tes, policiarem os tunantes, os tavolageiros e crea-

    turas de vida suspeita elucidou Francisco dePadilba. Bellas determinaes escriptas no papel e

    que raro transitam para a pratica definiu o

    coronel.

    Aos alcaides pertence-lhes socegar as rixas e

    tumultos, fiscalizarem o porte dos moradores decada arruamento, se vivem com a continncia exi-gida, e partilham com os familiares do Santo Officioda responsabilidade de denunciar os impios, osblasphemos e os desordeiros ampliou o capito.

    A tarefa fatiganteobservou Johan vanDorth. Com todas estas expressas incumbncias de

    prender vagabundos dos dois sexos e simuladosmendigos, de banir quem no tenha exemplar con-ducta, de manter a ordem e proteger a propriedade,de a um dos corregedores do crime competir visitartodos os antros da cidade continuou Francisco dePadilha, os conflictos sangrentos so quotidianos^as brigas ostentam-se at luz do sol. Acontece o mesmo por toda a parte subli-

    nhou B:rtha. Ha sete annos, em 1615, succediam-se de tal

    modo os roubos, as emboscadas, o derimir de vin-ganas pessoaes, os duellos entre fidalgos e na

  • 39

    fidalgos, a onda do crime subiu com tal mpeto,que ningum, timorato, ousava sahir apenas anoi-tecia, e os que se viam obrigados a fazel-o rodea-vam-se de uma escolta bem armada. O escndaloe abuso assumiram taes propores que Filippe IIIordenou que juigassem os nobres com severidadee que lhe enviassem para Madrid uma relao comos nomes dos culpados, os quaes por castigo noreceberiam nenhuma graa ou beneficio. Ora essasscenas de bandoleirismo e de rixas homicidas nos no melhoraram de ento para c, mas talvezpeorassem at epilogou o capito. Esta noite, porm, apezar da espionagem dos

    esbirros da Inquisio, os ladres e os desordeirosno nos deram motivo de queixa observou a ju-venil flamenga.

    Francisco de Padilha reoccupou de novo, nafrente, o seu logar. Os fugitivos chegavam perto doTerreiro do Pao. Distinguia-se j no silencio danoite, o marulhar do rio. Todos estugaram o anda-mento. Cinco minutos depois encontravam-se beirado Tejo. Apezar das trevas profundas, que desdobra-vam sobre Lisboa como um toldo de burel denso enegro, divisavam-se indecisas as mastreaes e cascoscTalguns navios fundeados mais perto da margem. Em que sitio deve esperar o bote? inquiriu

    o official portuguez.

    Por aqui respondeu o coronel, perscrutandoa escurido atentamente, e ao mesmo tempo mo-dulava um assobio com uma toada particular.

  • 40

    Quasi logo, cTalgumas dezenas de braasadcante, vindo das agua sremanosas, mas de umaopacidade de caligem, trilou um assobio idntico eouviu-se acto continuo a bulha de remos incidindona ondulao larga, quasi quieta. So os vossos marinheiros? perguntou de

    novo Francisco de Padilha. Creio que sim retorquiu Johan van Dorth. s tu, Pieter? interrogou Jacob, que se

    adeantara alguns passos ao grupo.

    A embarcao continuava a approximar-se, masde bordo d'ella ningum respondia. O coronel hol-landez esboou um gesto de impacincia e repetiua pergunta antecedente formulada por seu sobrinho : s tu, Pieter?Exactamente n'este instante, como se surdissem

    do cho ou se despenhassem das nuvens, precipi-taram-se sobre o grupo dos hollandezes e poru-guezes uns dez homens. Uma voz do meio d'ellesbradou

    :

    Segurae-os bem, mas no os mateis.No se concebe surpreza mais completa. Mas nin-

    gum perdeu o sangue frio. A sbita aggresso reta-lhara o grupo em dois. De uma banda ficaram Johane Jacob van Dorth ; da outra o capito, Pro Ro-drigues e Bertha. As espadas sahiram das bainhascom a rapidez de um corisco, e os aggressores de-pressa comprehenderam que no comprariam barataa victoria.

    No resistaes ordenou a mesma voz de ha

  • 41

    pouco; acompanhae-nos por determinao doSanto Tribunal.

    Esbirros da Inquisio! rugiu n'um clamorde fria Francisco de Padilha. Entregae-nos as vossas armas e acompanhem-

    nos insistiu a mesma voz, a do chefe dos quadri-lheiros, evidentemente.

    O escaler abicra no momento da acommettida praia. Pertencia na realidade fusta hollandeza.

    O mestre e os marinheiros perceberam n'um realceo que suecedia. Como o coronel e seu sobrinhoficavam mais prximos do barco, saltaram para aareia uns quatro ou cinco tripulantes, distriburam

    uma saraivada de pancadas com os remos e croques,legaram deante de si os aguazias do Santo Officio,que no esperavam to brusca e contundente inter-veno, pegaram em Johan e Jacob van Dorth como arrebatamento de quem pretende salvar amigosde uma conjuntura afflictiva, arrastaram-^os a des-peito dos seus protestos e da sua resistncia para oescaler e impelliram a embarcao para o largo.Esta espcie de rapto effectuara-se com to aturdidaceleridade, que s se lembraram que Bertha ficaraem terra quando distavam algumas centenas debraas do local do embarque.Minha filha! bradou Johan van Dorth,

    rfum grito pungentssimo.Meu pae! gemeu a desditosa senhora n'um

    angustiosssimo queixume.

  • III

    fias garras da Inquisio

    Ao mesmo tempo que soavam as duas excla-maes, ouvia-se o baque n'agua de dois corpos.O coronel e seu sobrinho, apenas conseguiram es-quivar-se violncia libertadora dos marinheiros oescaler, movidos ambos por anlogo sentimento deindignao, atiraram-se ao rio, a fim de nadar paraa praia, na inteno de salvar Bertha ou participarda sua sorte.M raa de tubares vos devorem! pra-

    guejou o patro do barco, no percebendo o motivode to inesperada resoluo. Pensaes agora que omeu mister se reduz a pescar xarrocos d'este ta-manho?!

    E no se lembrando, nem raciocinando que fi-cara uma passageira na margem, e que essa passa-geira pertencia famlia dos dois homens a quemarrancara, de forma to inslita, das mos dos qua-drilheiros do Santo Oficio, considerando um acto

  • 44

    de inexplicvel demncia a deliberao dos seusdois compatriotas, dispoz-se immediatamente e coma energia dos homens da sua profisso a evitar arematada loucura, e bradou: Eh, rapazes, lanae os harpos a esses baleotes

    e fisguem-nos bem que o tempo escasseia e o arcntrovisca-se.

    Os tripulantes em duas remadas vigorosas acer-caram o barco de Johan e Jacob van Dorth, empol-garam-n'os pelos cabellos e, apesar das vehementesdiligencias em contrario, iaram-n'os para bordo. No vedes, scelerado, que minha filha se

    queda em terra merc d'aquelles canibaes??

    rugiu o coronel.

    O velho lobo de mar hollandez manteve-se per-plexo durante segundos, depois, n'um encoiher dehombros brusco e significativo, retorquiu: Sa voltsseis agora para terra tambm vos

    deitavam a fateixa, sem vantagem para vs nempara a senhora vossa filha, vamos para bordo, ali

    o com mandante da fusta, de combinao comvosco,que resolva como melhor entender.

    E no houve argumentos nem supplicas quedemovessem o marinheiro hollandez de aproar fusta e de para ali se dirigir com a maior celeri-dade possvel.

    Vejamos agora o que occorria na praia. Que pretendeis de ns? bramiu Francisco

    de Padilha interpondo-se ante a joven, ao passoque Pro Rodrigues procedia de egual modo.

  • 45

    Que nos acompanheis, repito, declarou ochefe do bando, furioso por ver escapar-se-lhe umaparte da caa, exactamente a que mais interessetomara em apanhar. um abuso de autoridade que praticaes

    comnosco. Somos pessoas ordeiras obtemperou ocapito, vencendo o desejo que sentia de passar aespada atravez do peito do seu interlocutor, eoptando pelos meios brandos, em vista da situaotorturante de Bertha. To ordeiras replicou o caudilho dos esbir-

    ros que duas foram- nos tiradas fora e as que nopodem fugir dispem-se a appellar para as espadas. Senhor capito, senhor capito, supplicou

    Bertha, com voz apoquentadissima e recorrendo atodo o seu animo para no cahir desfallecida nosbraos de Padilha pedi a este gentilhomen paraque me deixe ir ter com meu pae. No nos enganamos, so estrangeiros hollan-

    dezes com toda a certeza resmoneou o chefe dosaguazis, e em seguida ordenou-lhe: Arranjae depressa um barco e segui no encalo do que trans-poria os fugitivos; se o no puderem alcanar, aomenos que saibam em que navio se refugiaramesses inimigos de Nosso Senhor e de Sua Mages-tade Fillippe IV.

    Durante este curto intervallo Francisco de Pa-dilha reflectiu no partido que lhe convinha adoptar.Quando o chefe dos quadrilheiros se approximoude novo d'elle, propoz-lhe:

  • 46

    A noite vae adeantadissima, permitti que con-duza a minha casa esta menina prestes a desmaiarpelo grande choque que acaba de soff-er e quea confie ali guarda de uma mulher honesta e deconfiana. No vos arrependereis da vossa condes-cendncia.

    Ao mesmo tempo o capito apartava da bolsaalguns dobres e introduzia-os na mo do chefe dosesbirros.

    Se no freis o capito Francisco de Padiiha,demasiado conhecido em Lisboa pela valentia dasua espada e pela nobreza do seu corao, no arris-caria o meu emprego e a minha liberdade accedendoa tal rog'3. Levas essa dama, como desejaes, masdae-me a vossa palavra que amanh vos apresen-tareis, vs e ella, ante o bispo D. Ferno MartinsMascarenhas, inquisidor geral. Elle condescende resmungou Pro Rodri-

    gues no s por causa dos dobres, mas aindaporque diminudos em metade os gguazis, pois lhefaltam os que perseguem os fugitivos, receia nolevar a melhor comnosco se lhe batermos o p. Apresentar-me-hei eu amanh ao inquisidor

    geral declarou Francisco de Padilba, e, se obispo o exigir, comprometto-me tambm a apre-sentar esta senhora. Estaes livres, podeis retirar- vos disse o fa-

    milliar do Santo Officio. E iembrar-me que assume ares de vence-

    dor este mocho a quem eu podia torcer o gasnete

  • 47

    como a um frango! commentou o velho escu-deiro.

    Francisco de Padilha to preoccupado se encon-trava que no reparou no tom de proteco doesbirro, to irritante para o seu leal servidor. Todosos seus pensamentos se encontravam em Bertha,ainda de manh desconhecida para elle e enchendoagora um vasto espao na sua existncia. Desejarialeval-a para casa da familia de compatriotas seus,que procuravam, ella o pae e o primo, em Lisboa,mas no eram horas para semelhantes diligencias.Deliberou, pois, entregal-a em deposito a Maria doRosrio, at o dia seguinte, em que esperava poderrestituil-a ao coronel, terminando assim aquelledolorosssimo pesadelo. Que desaforo irazer-me a taes deshoras um

    embrechado d'esia espcie!. . . principiava a com-mentar Maria do Rosrio quando Francisco de Pa-dilha entrou em casa com Berha. Silencio, mulher mal pensada, corao cheio

    de fel interrompeu o capito, carregando severoo sobrecenho.A esta senhora afflige-a tal magnaque nem todos os consolos de uma alma carinhosabastariam para !h'a mitigar, quanto mais tu querereslanar-ihe a triaga que abunda na tua.

    Melindrou-se a ama do capito at o mais inti-mo do seu ser com esta imprecao porque noa esperava, nem, no fundo, a merecia. Com que ento s tenho fel no corao e

    triaga na alma?! repetiu Maria do Rosrio com

  • 48

    os olhos marejados de lagrimas Ora aqui estpara que damos o leite do nosso peito a umacriana e para que a creamos como se fora nosso

    filho!

    Francisco de Padilha conseguira o seu fim, enter-

    necer a boa mulher. Para isso empregara a aspe-reza. Quando a viu no ponto desejado narrou-lhequanto occorrera. Maria do Rosrio derramou co-pioso pranto. Bertha no poderia encontrar seiomais hospitaleiro. Pelo lado do carinho descanavao oficial portuguez, quanto ao lesto Deus se pro-nunciaria. Dirigiu algumas palavras de conforto joven hollandeza, outras affectuosas ama, e reti-rou-se, para coordenar um pouco as idas, porquedormir, nem de tal se lembrava, para a vivendafronteira, theatro das suas leviandades de mancebosolteiro.

    Que sestro o d'este rapaz I As mulheres paraelle so corno o vinho e o po nosso de cada dia.No pode passar vinte e quatro horas sem provarum pito d'aquella cosinha. Praza a Deus que esta

    no lhe cause alguma indigesto.Escusado ser informar o leitor que quem resa-

    va esta litania era Pro Rodrigues.Amanhecera-se e erguia-se j alto o sol no nori-

    sonte e ainda Francisco de Padilha no atinara cemo que devia declarar ao inquisidor geral. Depois demuito cogitar resolvera narrar-lhe toda a verdadesem omittir o mais pequeno pormenor. O contrarioseria at m tctica, visto como o omnipotente.

  • 49

    prelado, segundo todas as probabilidades, sabiatanto como elle.

    Conheo-vos de pequenino e sempre fuiamigo de vossa famlia, sois um homem de pundo-nor e bom christo, espero pois que honreis o vossocaracter no desprestigiando os meus cabellosbrancos; narrae-me tudo quanto vos aconteceudesde hontem de manh para c.

    Esta exhortao fazia-a o bispo D. Ferno Mar-tins Mascarenhas, n'um recanto da sala do conse-lho do paiacio da Inquisio, a Francisco de Padi-Iha, s nove horas da manh do dia immediato aosacontecimentos atraz relatados. S a verdade sahir da minha bocca decla-

    rou o capito com solemnidade e assentando-scn'uma poltrona de couro de Utrecht a convite doinquisidor geral.

    E o official em tom breve e phrases concisas,descreveu succintamente quanto j do domniodo leitor. No ignoraes por certo que data de muitos

    annos, de quasi sculos, a lucta que sustentou Por-tugal e Hespanha contra a Hollanda principiouo prelado acabada a narrativa do capito. Os piratas inglezes e hollandezes juraram ani-

    quilar as nossas colnias e o nosso commercio

    confirmou Francisco de Padilha sem bem attingrqual o desgnio do seu interlocutor. Se os inglezes n'estes ltimos tempos ceva-

    ram a fria da sua avidez invadindo a costa, lan-4

  • 50

    ando golpes de gente em Cascaes e assolando oAlgarve, a titulo de proteger os interesses do Priordo Crato, os hollandezes no nos trataram melhor continuou D. Ferno Mascarenhas. Ha ahi dois pontos a considerar obtempe-

    rou o capito; as hostilidades dos Paizes Baixosarruinam o povo portuguez por causa da invejaque sentem por Portugal e do dio que votam aoshespanhoes. mais um dos mil gravames que nosacarretou essa desgraada unio Hespanha. Cautela com a lingua, Francisco de Padilha,

    que a tendes demasiado solta e perto do corao! recomendou o inquisidor geral, e logo n'outrotom proseguiu Lembraes-vos certamente como oalmirante hollandez van der Don incendiou esaqueou a ilha de S. Tom, como outros marinhei-ros da mesma nacionalidade se apoderaram dasnossas feitorias do Gobo, do cabo de Lopo Gon-alves, da ilha de Ferno do P, do rio d'El-rei,de Calabar, do porto de Pinda, no Zaire. No ha duvida que todas essas calamidades

    se despenharam sobre ns concordou Franciscode Padilha, mas Estevam de Athaide de tal modoescarmentou em Moambique as treze naus e osdois mil soldados de Pedro Willemoz Verhcevenque no tornaram por ali a surgir durante unspoucos de annos.

    .

    .

    No esmiucemos por prolixo interrompeuo bispo a maneira como Andr Furtado de Men-dona derrotou em 1603 os hollandezes em Am-

  • 51

    boino, expulsando-os das Malucas, como maistarde repetiu anloga proeza no cerco posto porelles, a Malaca, como todos os nossos capites se

    nivelaram com os heroes retalhando e aniquillan-

  • 52

    de contrabando e de heresia, obteve dos seus com-patriotas que o libertassem dos ferros de el-rei satis-fazendo a importante quantia da fiana e compro-mettendo-se em troca a revelar quanto sabia dosnegcios de alm-mar. Eis a origem dos armadores hollandezes

    enviarem as suas naves para longnquas paragens conceituou Francisco de Padilha.Hautmann permenorisou o inquisidor geral

    fez-se de vela em 1595, desembarcou em Mada-gscar, fundeou na costa norte de Java e visitoudiversas ilhas da Oceania. Em agosto de 1597regressava ao Texel com perdas srias em naviose tripulaes, mas com a convico de que seabriam ali mercados importantes ao commercio hol-landez.

    No se andar longe da verdade consideran-do essa viagem como o inicio da rivalidade entrens e elles observou o capito. Rotas as trguas pactuadas pelo tratado de 9

    de abril de 1609, que suspendia as hostilidadesdurante doze annos narrou o bispo, e falecidoo estadista Olden Barneveld, preponderou nosEstados Geraes a opinio de Usselinx, que prega-va a guerra a todo o transe e aconselhou a queas armas hollandezas assolassem, quando no pu-dessem conquistar, as possesses hespanholas e por-tuguezas no Novo Mundo. Continente que pouco conheciam atalhou

    Francisco de Padilha.

  • 53

    Van Vord visitara- o em 1598 e s depois, ern1614, por ali navegara o almirante Joris van Spil-

    bergen, a quem os colonos repeliram, mas quesempre foi apresando uma caravela carregada deprata e bulias da Santa Cruzada. L pelas bulias... mas o official calou-se

    immediaamente amordaado por um olhar severoque lhe lanou o prelado. A America tentava-os continuou o bispo

    Pairaram por ali em 1615 Jacob le Maire eWislen Corneliozoon Schouien. As informaes eos relatrios d'esses navegadores despertaram noespirito de Usselinx o plano de crear uma compa-nhia que se tornasse to nociva a ns do outrolado do Atlntico como a sua similar britannica nosprejudica e guerreia na sia.A Companhia constituiu-se com a proteco

    do Stadthouder, dos Estados Geraes ampliou D.Ferno Mascarenhas approvando-!he o governoos estatutos a 3 de Junho de 1631. Essa companhiagosa durante vinte e quatro annos do monopliodo commercio e navegao em quasi toda a Africa

    America, nomeia e demitte governadores e empre-gados, estipula tratados de alliana e de trafico comos navios, declara a guerra, faz a paz, constroe for-tificaes e funda colnias. Frue todos os privilgios de uma companhia

    soberana sublinhou o capito. Alm de todas estas vantagens os Estados Ge-

    raes fixaram-lhe um subsidio de duzentos mil florins

  • 54

    por cinco anncs com direito a descontar metaded'esta somma das presas martimas e dos despojosobtidos por combate expoz o inquisidor geral.

    Os fundos da companhia elevaram-se sem detena fabulosa quantia de trez mil duzentos e tantos

    contos de reis. .

    .

    Quasi todas as camars das principaes cida-des dos Paizes Baixos esto ali representadas

    adduziu Francisco de Padilha ; formam o conse-lho executivo dezenove directores delegados das

    seces, personalidades rnais em evidencia, e os

    estatutos obrigam a assembla a reunir-se alterna-damente em Amsterdam ou Middelburgo. Os intuitos d'esta companhia assentam mais

    era planos de aggresso e projectos de extermnioque em concepes de presentes lucros mercantis

    expoz o bispo. Os proventos fornecidos, poragora pela America, no atulham as arcas da com-panhia neerlandeza, mas os marinheiros holande-zes, pirateando por aquelles mares, protegem o con-

    trabando nas colnias portuguezas e hespanholas^

    desviam as tropas de Madrid e Lisboa para acudironde o perigo maior, desenvolvem a sua marinhae as suas industrias e collaboram activa, emboraindirectamente, na campanha que os Paizes Baixossustentam contra a sua antiga suzeranna. Confessemos, a tctica no despida nem de

    lgica, nem de previso declarou o official. Concordo, mas significa o aniquilamento do

    nosso commercio e toma-se necessrio contrarial-a

  • 55

    com energia, tanto mais, e vergonha reconhe-cel-o, os, seus corsrios. .

    .

    Excedem as bizarmas dos nossos vagarososgalees e naus na celaridade da marcha, perciada manobra e proficuidade da artilharia. Guarne-cem os seus barcos tripulaes escolhidas; os nossos

    largam do fundeadouro com agua aberta, atestadosde mercadorias e passageiros e mareados quasisempre por marinheiros compellidos a embarcarnas vsperas da viagem e que no momento docombate no secundam, em geral, o esforo e aintrepidez dos seus camaradas de armas e de quemos commanda. Mas.

    .. e Francisco de Padilha

    interrompeu se subitamente.A que propsito vem todo este lamentvel es-

    tendal de incurias e de desgraces, no verdade? completou D. Ferno Mascarenhas Vou dizer-vo-lo. Ignoraes certamente de que espcie demisso o rebelde governo dos Paizes Baixos incum-biu o coronel Johan van Dorh, a quem vs offe-recestes guarida e a quem arrancastes aos represen-tantes da nossa justia. Ignoro completamente declarou o capito

    com inilludivel accento de verdade. El-rei D. Fillippe IV ordenou que se fortifi-

    cassem as cidades da Bahia e de Pernambuco. No se indica, porm, contra que paiz se to-

    mam semelhantes precaues. Ameaam-nos tan:o aFrana, a Inglaterra, os turcos, os mouros, que pre-

    caver-nos contra os flamengos no causa estranheza.

  • 56

    As medidas promulgados ha tempos, como asde negar residncia aos estrangeiros, as de inter-nar os christos novos para os vigiar mais de perto,a exigncia de rol de nomes com a designao doshaveres e dos misteres desempenhados pelos foras-teiros estabelecidos em Lisboa, e as ultimas, queos exilam e mandam sahir pela barra fora, nopadecem de tanta iniquidade quanto de relance sepresume argumentou o prelado. Consenti, senhor retorquiu o official,

    que vos assegure que aquelles a quem a mingoada liberdade no tolhe a rectido do juizo acoi-mam essas providencias de injustas, molestas paraa riqueza publica, attentatorias da equidade e dobom direito. E no se alheiavam da razo.. . se no acu-

    dissem argumentos ponderosos a justificar-lhe origor replicou o bispo e ides julgar. Mau juiz em litigio to momentoso redar-

    guiu polidamente o capito; talvez o rancor la-tente dos israelitas vexados.

    .

    .

    Singraes por ptimo rumo approvou D.Ferno Mascarenhas. Os judeus e bastantes fla-mengos a quem muito seduzem os encantos doBrazil aconselharam aos Estados Geraes dos PaizesBaixos a enviarem uma expedio s terras de SantaCruz. Onde?... Constitue sigillo impenetrvel,mas, informaes de origem segura apontam o hol-iandez Manuel Vendale e vrios hebreus conhece-dores d'aquellas regies como os futuros guias do

  • 57

    emprehendimento que planeiam realizar os neerlan-dezes.

    O caso grave. Como vos communiquei ha pouco, o Stad-

    thouder, em harmonia com o voto exprimido pelanao, e d'estas nomeaes adquirimos toda a cer-teza, escolheu para commandar a armada o almi-rante Jacob Willekens, para seu immediato e vice-almirante Pieter Piterzoon Heiyn e para chefe dasforas de desembarque e governador do territrioconquistado, o coronel Johan van Dorth, senhorde Horst e Pesh.

    Francisco de Padilha deixou pender a cabeasobre o peito n'um arroubo meditativo. Comprehendeis agora, por certo continuou

    O inquisidor geral quanto nos conviria sequestrar,no uso pleno do nosso direito, uma das personali-dades mais em evidencia, se no a maior, o coro-nel van Dorth, cabea pensante e mo forte d'essatentativa.

    Quem o adivinhara?! murmurou o capitoa seu pezar.

    No escapou ao bispo a observao e logoaccrescentou

    :

    Deus, porm, no se esquece dos seus fieisservidores nem poupa aos herticos o merecido cas-tigo. Se o coronel van Dorth conseguiu subtrahir-se captura que ordenramos, o acaso ou a Provi-dencia entregou-nos um refns que lhe deve sercaro a todos os respeitos e que por consequncia

  • 58

    representa para ns uma garantia de inestimvelvalor.

    A que refns alludis? perguntou o official,erguendo a fronte em sobresalto. filha do coronel van Dorth, depositada

    em vossa casa e a quem o Santo Officio custodiara fim de neutralisar a aco de perniciosa rebeldiaque seu pae se dispe a praticar elucidou comvoz meliflua o inquisidor geral. Mas esse acto uma ignominia, incide sobre

    mim como um labo de infmia! bradou revolta-do Francisco de Padilha.O servio da ptria, seja elle qual for, no com-

    porta ignominias, e Deus conferiu Egreja latospoderes para acalmar os escrpulos de conscincia,ainda os mais torturantes, concedendo perdo eabsolvio aos que se suppem transgressores dedeterminados preceitos, que no passam de merasconvenes sociaes explicou o prelado em tomuntuoso.

    D. Ferno de Mascarenhas, pela sua edade,acercava-se das raias da velhice, o seu aspecto,

    com alvas cans a emmoldurarem-lhe o rosto, torna-va-o venerando; demais conhecera e affagara desdea meninice o capito. A imponncia dominadora doseu physico, e as recordaes affectivas da sua in-fncia contiveram o primeiro repello de Franciscode Padilha que rouco, balbuciou

    :

    A honra obedece apenas a um cdigo, a pro-bidade s conhece um caminho

    :

  • 59

    Phrases de romance de cavallaria, mas desentido co quando as definem as imperiosas exi-gncias da alta razo do Estado. Qual ento o vosso desgnio, consenti que

    vol-o pergunte?

    J vo-lo expuz claramente. Conservar a bomrecato a filha do coronel van Dorth de modo quea liberdade, a segurana e, impondo-o as circums-tancias, a vida d'ella respondam pelos actos d'essesperigosos inimigos de Portugal e Hespanha.

    Francisco de Padiha sentiu de novo uma ondade sangue escaidar-lhe o crebro, mas ainda encon-trou foras para se refrear d'esta vez, e, com voz

    que denotava apparente calma, perguntou: Encerra-la-heis nos crceres da Inquisio? Por ora no. Tratl-a-hemos por ernquanto

    com todas as attenoes informou o inquisidorgeral. Como, porm, a decncia no permitteque continue na vossa moradia, recoiher-se-ha aum convento de regra austera e grades solidas.

    O capito refleiiu durante segundos. Homemd'aco, assentou rapidamente no que lhe cumpriafazer, mas no deixou transparecer nada no rostod'esse sbito propsito, e indagou : Hoje mesmo? Hoje mesmo confirmou o bispo. Espero

    saber dentro em pouco qual o destino de seu pae, sedesembarcou, se ainda se encontra a bordo da fustahollandeza, mas que navega com bandeira vene-ziana, ou se j sahiu a barra. At l confio essa

  • 60

    joven vossa guarda e rogo-vos que a prepareis,que a persuadaes a conformar-se com a sua sorte. Diligenciarei bem desempenhar-me da misso

    de que me incumbis e o official levantou-se, bei-jou o annel do bispo e despediu-se. O co vos abenoar e a ptria e el-rei D.

    Filippe IV vos recompensaro de subordinardes osvossos sentimentos pessoaes e falsos melindres depundonor aos interesses da religio e ao servio deSua Magestade.

    Francisco de Padilha inclinou a cabea n'umgesto que tanto podia significar acquiescencia comooutra deciso, e quando o amplo reposteiro, reca-mado com as armas do Santo Officio, se correunas suas costas, murmurou:

    Veremos para que banda se pronuncia Deus!

  • IV

    O domnio castelhano

    Francisco de Padilha amadurecia pelo caminhoo piano que de sbito concebera. Apodava-o elleprprio de audacioso, temerrio, inexequvel at,mas tental-o-hia. Dentro da sua alma bramia o diocontra dois inimigos irreconciliveis contra o ini-

    migo castelhano e contra o fanatismo interesseiro daInquisio. Para realisar o que projecto monologava o

    capito necessito em primeiro logar certificar-me

    se a fusta hollandeza j velejou com o coronel van,Dorth a bordo, depois arranjar dinheiro e em seguirda encontrar dois ou trez amigos decididos, almdo meu fiel Pro Rodrigues.

    Deixemos por um momento Francisco de Padi-lha e os seus projectos e tracemos mui succinta-mente o quadro que ento apresentava o nosso desrditoso paiz.

  • 62

    A Hespanha guerreava com quasi toda a Euro-pa, j antes de absorver Portugal, e entre a serie

    de males que essa absorpo determinara, no sepode considerar dos menos graves o sermos tambmofferecidos em holocausto as frias dos inimigos deCastella. A nossa ptria era uma espcie de animavili em que todas as potencias experimentavam osseus golpes. Muito por sentimento patritico, e nopouco por instigao dos governos adversos ao go-verno de Madrid, o povo no se conformava coma juno dos dois reinos e no perdia ensejo de omanifestar.

    Um dia, que o carrasco justiava um piloto porcrime de contrabando, apedrejou o palcio domarquez de Castello Rodrigo, D. Christovo deMoura, outra vez vicc-rei de Portugal desde 1868.O duque de Lerma, valido de Filippe III, traba-lhava com a maior pertincia para acabar com osprivilgios portuguezes concedidos por Filippe II emThomar e obter a fuso completa das duas naes,Cerceava-lhe pouco a pouco todas as imm unidadese adiava systematicamente a convocao dos esta-dos. A plebe calava-se, nutria vagas aspiraes dedesforo. O monarcha castelhano, amigo de jorna-dear pelos seus domnios, prometteu que visitariaPortugal; conjecturava ser remdio efficaz paraapaziguar descontentamentos.

    No entanto, ou por escassez de meios, ou porespirito de extorso, exigiu sommas de importnciapara o custeio da viagem. Pagou-se-lhe tudo quanto

  • 63

    quiz, mas a visita promettida em 1612 s se effe-ctuou sete annos depois, em 1619.

    As exaces no se interrompiam. Constrange-ram os mercadores de Lisboa a darem trezentosmil escudos para o armamento de trez navios equatrocentos soldados, a fim de expulsarem oshollandezes da costa da Mina. Os cargos mais ren-dosos eram distribudos a quem menos os sabiadesempenhar e a quem mais valioso patrocniodispunha. O errio gemia esmagado com taes cm-bios e juros que tornava os seus compromissos in-solveis. Os impostos multiplicavam-se, o deficitcrescia sem medida, o corso e a pirataria dos ingle-zes e dos flamengos traziam os portos do reino edas colnias quasi fechados.

    A D. Christovam de Moura succedera no vice-Teinado de Portugal o bispo-conde D. Pedro deCastilho, nomeado em 1612, e que pouco tempose demorou n'esse logar, cedendo-o ao arcebispode Braga no anno seguinte, 1613, que o occupouat julho de 1615, com o titulo de presidente doconselho de Portugal. Desde essa data at maro de1617, substituiu-o D. Miguel de Castro, arcebispode Lisboa, poca em que foi provido definitiva-mente D. Diogo da Silva Mendona, conde deSalinas e marquez de Alemquer. Essa nomeaocausou to m impresso entre ns, que nenhumamedida, durante os trez annos incompletos queadministrou os negcios pblicos, conseguiu mo-dificar.

  • 64

    Por esse tempo, 1617, levantou-sc um conflicto

    de certa gravidade com a cria romana. O pontificePaulo V enviou a Portugal como collector OctvioAccoramboni, bispo de Fossambruno, com poderesespeciaes para arrecadar os esplios dos religiosos.O conselho considerou o facto como abusivo,e prohibiu o enviado papal de se intrometer emcasos dependentes da jurisdico dos bispos.

    Accoramboni desprezou a prohibio. Seguidosuns certos trmites foram-lhe occupadas as tempo-ralidades e prenderam-lhe o fmulo Miguel Leito.O representante de Roma explodiu. Lanou aex-communho sobre os magistrados, interdisse acidade de Lisboa, os ministros e officiaes, e quei-xou-se para Madrid do rigor com que o chamavam ordem. A pendncia levou um anno a dicidir-se,mas d'esta vez Filippe III escreveu, a 25 de marode 1618, uma carta enrgica ao nncio collocando-ona contingncia ou de se submetter s leis ou desahir dentro de oito dias. A cria atemorizou-se.Accoramboni recebeu ordem de recolher a CidadeEterna.

    O descontentamento alastrava em Portugal deforma assustadora, a ponto do marquez de Alemquercommunicar que julgava imprescindvel a visita dosoberano para conjurar as c?lamidades que se amon-toavam no horizonte. Filippe III acquiesceu, nasem que d'aqui se lhe remettessem novas e avulta-das quantias para auxilio de jornada to dispen-diosa.

  • 65

    Entremos agora iTuma casa de avolagem dobairro da Esnoga. Jogava-se n'essa quadra em Lis-boa, como no havia memoria, no obstante todasas leis repressivas a tal respeito. Era de dia, era denoite.

    Como os costumes mudaram dizia umhomem de certa edade, de aspecto militar, obser-vando trez parceiros, tambm de apparencia mar-cial, que jogavam o passa-dez todos alardeiam oque no possuem e assoalham o que no so. Cada vez ests mais rabugento, Manuel Gon-

    alves; guarda essas lamurias para quando chegar-mos Bahia; no nos faltaro l occasies defalarmos dos acontecimentos d'aqui retorquiu umdos jogadores. Leva tudo uma volta, Jorge de Aguiar in-

    sistiu Manuel Gonalves; a mania das grandezastudo perverteu: os soldados degeneraram em mer-cadores, os capites em palacianos, e as qualidadesd'outras epochas, que nos tornaram respeitados efortes, s so hoje defeitos que nos deslustram eenfraquecem. Tudo jogou, desde o nosso pae Ado e ha de

    jogar-se at consumao dos sculos ; leis, orde-naes, providencias tudo se esvae como o fumo objectou outro tavolageiro. E demais repara, Luiz de Sequeira acudiu

    o que at ahi no falara, el-rei D. Manuel prohi-biu o jogo da bola aos fidalgos e cavalleiros nosdomingos e dias santificados antes da missa e aos

  • 66

    officiaes mechanicos e homens de trabalho em todaa semana, mas a prohibio no coartou o uso nemo abuso. Pois sim, Loureno de Brito, e a multa de

    trezentos ris pagos da cadeia a quem se encon-trasse a jogar o tintini nas varandas do pao ser-viu para alguma coisa?! argumentou Jorge deAguiar. Onde isto ir parar, no sei ! exclamou Ma-

    nuel Gonalves. D'antes na bola, no xadrez, nas

    damas e na plla as apostas no excediam um vin-tm cada partida, agora significam a ruina. Haquem case dez dobres no mate de plla e vintee cem re?es na partida.

    como no ganha perde e nas tabulasaduziu Luiz de Sequeira, as entradas mais peque-nas, que nunca iam alm de dois vintns, e cadapedra cinco e seis reaes, sobem actualmente aquatro e seis dobres, e o bolo uma exorbitn-cia. .

    .

    Mas apesar d 'esses reparos Vossas Mercsno deixam de jogar e caro censurou ManuelGonalves. Se os juizes nos do o exemplo e apontam

    at contra os demandistas cujos pleitos ho-de sen-tenciar defendeu-se Loureno de Brito. Se os da corte empenham os morgados, se

    se desfazem das baixellas, vendem fazendas, heran-as, commendas; se so tantos os fidalgos quemorrem na penria e no hospital e no poucos os

  • 67

    mercantes que terminam os dias na grilheta, nsseguimos-lhe no encalo,. . . mas sem cahirmos emtaes excessos,. .. que somos gente honradaaceres-centou Jorge de Aguiar.E ainda mais, o fisco quem protege a ta-

    volagem adduziu Luiz de Sequeira, contractouo estanco das cartas de jogar e permittiu o jogo-em que ellas fossem empregadas. .

    .

    Por isso o governo recebe dezesseis contos

    de ris de Joo de Almedo, que arrematou essaindustria, e at para que elle no se queixe e peaindemnisaes e para que o monoplio no soffraquebras prohibu os dados e quasi cancellou as leissobre a tavolagem pormenorisou Loureno deBrito.

    Assim se explica que nos corpos de guardado Castello e do Terreiro do Pao se jogue comum desaforo que brada aos cos! commentouManuel Gonalves. Todavia...

    principiou Jorge de Aguiar, mascalou-se, e, aps um breve silencio, exclamou:

    Ahi vem Francisco de Padiiha! Sucesso de costaarriba o deve trazer por estas casas.

    Os trez jogadores e Manuel Gonalves sada*ram com ruidosa sympathia o capito, pois erarealmente elle. Tu, aqui, e de olhar to torvo! reparou

    Luiz de Sequeira. Preciso ganhar pelo menos trezentos dobres

    e encontrar depois alguns amigos dedicados prs-

  • 68

    tes a arriscar a cabea por uma causa justa disseFrancisco de Padilha a meia voz.

    -^-Cabea. . . pelo menos tens a minha que no-vale um ceitil declarou Luiz de Sequeira, agoratrezentos dobres, nem todos quatro vendidos apu-rvamos a decima parte d'essa somma. Pois no saio d'aqui sem os levar insistiu

    o capito.

    Nem ir,esmo trazendo-os. . .duvidou ManuelGonalves. S\ se os ganhares quelie castelhano, alm

    abancado, que teve a habilidade de despejar as es-carcellas de quantos aqui entraram desde esta ma-drugadagracejou Jorge de Aguiar. E quanto trazes para ganhar esses trezentos

    dobres? inquiriu Loureno de Brito. Trez respondeu com a maior singeleza o

    capito.

    a centessima parte; no falta tudo zom-bou Manuel Gonalves. Conto tanto com esse ganho como com o

    auxilio dos quatro affirmou Francisco de Padilha. Lembra-te dos sapatos de defunto... insi-

    nuou ainda mais irnico Manuel Gonalves. Vo vr respondeu Francisco de Padilha

    dirigindo- se resolutamente para a meza do caste-lhano.

    Que quiere usted, caballero? perguntou-lhe o castelhano com intonao zombeteira. Experimentar se a sorte continua a ser-vos.

  • 69

    fiel respondeu cora mal disfarada insolncia oportuguez. E's usted algun milionrio? redarguiu-lhe

    ainda mais altivo o interlocutor. Trago aqui declarou Francisco de Padilha,

    batendo-ihe na escarcellacom que comprar Cas-el!a em peso. Caramba! Tambien a mi?Nunca se compra o cortelho sem os porcos. .. Despues de sacar a usted su dinero, le sa-

    car la lengua, que la tiene mui larga retorquiufurioso o hespanhol. Vamos primeiro ao dinheiro; em seguida a

    esvaziar-Ihe a bolsa, se fizer muito empenho, esva-ziar-lhe-hei tambm as tripas declarou o capitocom a mais imperturbvel serenidade, e logoaccrescentou :A que jogamos?A lo que quiera respondeu o castelhano

    com desdenhosa indifferena. Aos dados indicou Francisco de Padilha.Vieram os dados e quantos noctvagos e tres-

    noitados se encontravam n'aquelle recinto de liber-tinagem e de vicio todos se agruparam em redorda banca, que serviria de arena aos dois contendo-res. Batera j o meio dia, mas com excluso deFrancisco de Padilha e de Manuel Gonalves to-dos traziam bem impressos no semblante os vest-gios da recente orgia. Quanto, para principiar? perguntou com a

    arrogncia de um Cresus o capito.

  • 70

    Um dobro respondeu com secura o hes-panhol.

    Retiniram imrnediatamente sobre as taboas man-chadas de vinho e lustrosas de gordura as duas so>-noras moedas de ouro. Quem joga primeiro? inquiriu o de Castella. Para mim indifferente retorquiu Padilha.O jogador, que at ahi agrilhoara a sorte aos

    seus lances, pegou nos dados com a confiana quetransmitte uma longa serie de victorias e depois deos sacudir arremessou-os para cima da mesa. Onze

    gritaram de todos os lados.Padilha repetiu os mesmos movimentos, mas

    com a m?is fleugmatica indifferena. Sete bradaram os circumstantes.O principio no lhe favorvel observou

    o hespanhol radiante de contentamento e guardandoo dinheiro ganho. Outro proferiu com a mxima naturalidade

    o portuguez, atirando com o segundo dobro. Dez exclamaram os presentes, debruan-

    dose curiosos sobre a jogada do castelhano. Nove repetiram os espectadores da scena,,

    aps a vez de Padilha. S te resta um dobro disse Manuel Gon-

    alves baixinho para o seu compatriota, e, tirandoda escarcella o que quer que fosse, adduziu : tomaoutro, para no ficares desarmado logo primeira - tudo quanto possuo.

    Padilha guardou a moeda offerecida e atirot*

  • 71

    com a terceira, n'um movimento impulsivo, paracima da gordurentissima mesa. Depois, como se lheacudisse uma ida repentina, propoz: Dobremos a parada, joguemos dois dobres

    em vez de um.O castelhano ficou um tanto desconcertado com

    o aprumo do portuguez, mas, no querendo mostrarmenos confiana na sua estrella, redarguiu imme-diatamente

    :

    Quatro at se quizer. L chegaremos se fr preciso.Os araigos de Francisco de Padilha entreolha-

    ram-se pasmados de tanta audcia.O hespanhol pegou no copo dos dados, no sem

    uma certa tremura nervosa, agitou-os com quasifrentica precipitao e lanou-os sobre a banca.Todas as cabeas com egual intensidade de impeose debruaram por cima da tavola. Trez! exclamaram todas as vozes com di-

    versas intonaes.

    Escusado ser afirmar-se que a partida apaixo-nara os circumstantes. Mais uma vez se accentuavao radical antagonismo, manifestado a propsito detudo e aproveitando os pretextos mais fteis, entreportuguezes e castelhanos. Os de Castella presentesna tavolagem almejavam pela victoria do seu com-patriota ; os nossos, ainda os de reconhecido sanguefrio, como Manuel Gonalves, supplicavam namente aos santos da sua maior devoo que otriumpho pertencesse a Padilha.

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    O portuguez agarrou por seu turno com a maiorserenidade no copo que o hespanhol n'um gesto

    bem visvel de furor e de desalento arredara para olado, sacudiu-o com placidez e jogou

    :

    Dois azes! resoou pela denegrida sala.A phrase brotara dos lbios de alguns n'uma

    expanso de contentamento irreprimvel ; jorrarad'ouros como um tiro partido da bocca de um ar-cabuz. Todos, n'urn movimento instinctivo de ran-corosa hostilidade, levaram as mos aos punhos dasespadas.

    Acasteiiava-se a trovoada. Que sorte to adversai murmuraram os

    portuguezes com despeito. Ganha sempre quem o merece conimen-

    taram os castelhanos no tom desdenhoso e arro-gante que lhes era peculiar.

    Francisco de Padiha mantinhase n'um socegoinaltervel. Limitou-se a levantar os olhos e a pre-

    ga-los nos seus amigos n'uma interrogao muda.Os rostos d'elles ainda se assombraram mais, o quesignificava que nenhum possua um simples dobropara prolongar a contenda com o feliz e aborrecidohespanhol. Continuamos a partida? inquiriu o caste-

    lhano com inflexo to exaggeradamente cortez, quetogo se adivinhava o que ella continha de humi-lhante.

    Certamente replicou o capito como se a

    sua escarcella regorgitasse de ouro.

  • 73

    A dois dobres ? perguntou o castelhanocom mal soffreado orgulho. A dez retorquiu Padilha com a naturalidade

    de um millionario.O hespanhol esboou um sorriso, que no pas-

    sou de uma careta, e, fazendo um violento esforosobre si, condescendeu, declarando

    :

    Pois sejam dez dobres.O capito metteu a mo na escarcella, para tirar

    o que sabia de sobejo l no se encontrar, remexeu,e, corando d'esta vez um pouco, moveu os lbiospara falar, mas antes de articular qualquer som,um homem de aspecto varonil, que entrara nocomeo da partida e em quem ningum reparara,disse-lhe:

    Capito Francisco de Padilha, da vossa escar-cella acaba de cahir esta bolsa ; naturalmente oque procuraes. E o desconhecido apresentava aojogador uma bolsa de malha, das que se usavamento, de volume respeitvel, e atravez da qualbrilhavam numerosas moedas de ouro. Senhor... balbuciou o capito um tanto

    enleiado.

    Restituo-vos o que a vs pertence declaroua singular personagem.

    E acompanhou estas palavras com um olhar toeloquente de franqueza e de generosa imposio,que recusar a magnnima dadiva seria offensagrave.

    D. Manuel de Menezes aqui, n'esta tavola-

  • 74

    gemmurmurou, como de si para si ManuelGonalves.

    No pde ser reputou Jorge de Aguiar. , com certeza retorquiu Manuel Gonalves

    convencido e agastado.O motivo que o trouxeaqui no foi por certo jogar, que um homem dasua austeridade no joga.

    A aco do desconhecido passara despercebidados castelhanos e at da maioria dos portugue-zes, anciosos como estavam pelo desenlace da par-tida.

    Eis os dez dobres declarou o capito enfi-leirando negligentemente a avultada quantia nabanca.

    O castelhano empalideceu, mas logo recuperoua serenidade e com a arrogncia caracterstica dasua raa casou outras tantas moedas ao lado das doseu parceiro. Pegou de novo no copo dos dados eatirou-os.

    Onze!

    gritaram hilariantes de contentamentoos bons compatriotas. Onzel repetiram como um dobre de finados

    os portuguezes.

    Aposto ainda mais cinco dobres disse Fran-cisco de Padilha com tal inflexo de confiana quetodos os olhares se pregaram n'elle com admirao. Que pressa tendes de ficar seco como um rio

    sem aguacommentou o hespanhol com insultuosaironia na sua lngua nativa. Acceitaes ou no?

  • 75

    No acceito para no se tornar verdadeiraa fabula do leo que devorou o cordeiro de umtrago.

    Lamento retorquiu o capito, com a maiorsimplicidade, e jogou os dados.Doze!exclamaram todos como tomados de

    assombro.Eu bem o sabia declarou mofando e com

    negligencia Padilha.

    S se os dados estavam marcados objectouapopletico de furor o castelhano. Para ganhardes o que vs ganhastes aos

    incautos replicou o capito com absoluta calma,

    e, depois de uma pausa, disse: Vinte dobres? Pois sejam, vinte dobres acquiesceu o

    hespanhoi, com as pupillas a fuzilar como as deum gato na escurido. .

    A quantia era grande para a poca. A anciedadecentuplicou.

    O hespanhoi pegou no copo, mas logo o pou-sou, declarando: Quero ser o ultimo a jogar. Como vos aprouver condescendeu Padilha

    com a mesma serenidade, e jogou

    :

    Quatro! clamaram de todas as bandas.A fronte do castelhano iiluminou-se com um

    claro de triurapho. Todas as probabilidades erama seu favor. Arremessou os dados. Trez! parece impossvel, commentaram os

    presentes favorveis e adversos.

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    O hespanhol empallideceu como um cadver.Os tendes e as veias do pescoo retezaram-se-lhecomo os estaes de um navio. D'esse momento emdeante as victorias do capito succederam-se cominterrupta celeridade. Ao cabo de meia hora o pre-cioso recheio da bolsa do castelhano transitara nantegra para a do portuguez. O jubilo dos seusamigos manifestou-se em exclamaes retumbantes;o exaspero dos seus contrrios explodiu em protes-tos insolentes e em vaias affrontosas.

    bom que ns paguemos, de quando emquando, o sermos donos de Portugal e dos portinguezes resmoneou o castelhano com o ultrajanteentono de um fidalgo soberbo. Prometti que depois de vos esvasiar a bolsa

    vos esvasiaria egualmente as tripas, e a minhapalavra sagrada disse Francisco de Padilha, aomesmo tempo que na face do castelhano estalavaumas das mais sonoras bofetadas que mos portu-guezas teem assentado em cara alheia.

    O castelhano desembainhou immediatamene aespada cego de furor. Todos os circumstantes o imi-taram excepto Padilha. Este declarou com inalte-

    rvel placidez

    :

    No me baterei agora; preciso pr este di-nheiro em logar seguro e o meu gasnete no desejaser apertado pelo brao do verdugo. Logo tarde,um pouco antes das Av Marias, serei comvoscofora das portas de Santa Catharina. No perdeisnada com a delonga.

  • 77

    Covarde! retorquiu o castelhano apalpandoo rosto dolorido,

    Apodae-me do que entenderdes que no con-seguis indignar-mereplicou Padilha e depois acres-centou: Podeis levar quem vos aprouver parasegundos, e combateremos dois a dois, trez a trez,tudo me serve.

    Francisco de Padilha voltou costas e sahiu datavolagem acompanhado dos seus amigos. Aguardouna primeira esquina o desconhecido, cuja interfe-rncia fora providencial, para lhe entregara somma

    que to generosamente lhe offerecera e apresentar- lheos seus agradecimentos.

    5 Beijo vos as mos, senhor disse o capitoapenas este lhe surgiu ao alcance da palavra e de-volvendo-lhe o dinheiro, sem vs nunca poderiarealizar a boa aco a que esta quantia desti-nada. Uma boa aco praticada por intermdio de

    uma tavolagem perde muito do seu valor con-ceituou o desconhecido com ar bondoso.Nem sempre se pode olhar aos meios para

    conseguir os fins desculpou-se o capito. o principio attribuido a Machiavello e

    aproveitado pela Inquisio murmurou o desco-nhecido mas de modo que foi ouvido por ManuelGonalves. Bem demonstraes que sois o chronisa-mr e

    o cosmographo-mr do reino observou Gonalves. Conheceis-me?

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    Quem, tendo embarcado, no conhece o ca-pito-mr das naus da ndia, o Flamengo? Folgo em encontrar um