demandas derivadas e ampliacao do nucleo essencial...
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DEMANDAS DERIVADAS E AMPLIACAO DO NUCLEO ESSENCIAL DO DIREITO A MORADIA:
deferência como critério judicial de solução
DERIVED LAWSUITS GOING BEYOND THE MINIMUM CORE PROTECTION IN A RIGHTS DO HOUSING:
deference as an adjudicatory criterion
Vanice Regina Lírio do Valle
RESUMO: Direitos sociais são conceitualmente compreendidos como dinâmicos
e fluidos. Isso vai permitir, mesmo na arena judicial, diferentes postulações no
que respeita a seu conteúdo e nível de proteção. A casuística judicial no Rio de
Janeiro revela o já surgimento de uma “segunda geração” de feito judiciais,
denominados no texto “demandas derivadas”, onde os autores pretendem a
reconfiguração do conteúdo de anteriores decisões administrativas ou judiciais
no que toca a proteção ao direito à moradia. O artigo sustenta que essas
postulações pretendem expandir a proteção ao referido direito para além de seu
núcleo essencial. Nestas situações, considerando o critério de justiça distributiva
que deve inspirar o desenho da política pública em curso, a decisão final
pertence, em verdade, a arena política. Assim, a deferência para com as
anteriores escolhas materializadas nessas mesmas politicas publicas deve ser a
resposta judicial.
Palavras-chave: direitos socioeconômicos – núcleo essencial – demandas
derivadas – justiça distributiva – deferência.
ABSTRACT: Socioeconomic rights are conceptually understood as dynamic and
fluid. This will allow, even in the judicial arena, different claims when it comes to
its content and level of protection. Rio de Janeiro’s case law reveals a “second
generation” of lawsuits, called in the paper “derived lawsuits”, in which plaintiffs
intend to reconfigure the content of previous administrative or judicial decisions
when it comes to the right to housing. The paper argues that these claims intend
to expand that rights protection beyond the minimum core. In these situations,
considering the distributive justice criteria that should inspire the design of the
ongoing public policy, the final decision belongs in fact to the political arena,
therefore, deference to those previous administrative choices should be the
judicial response.
Visiting Fellow junto à Harvard Law School / Human Rights Program. Pós-doutorado em Administração na EBAPE/FGV, Doutorado em Direito pela UGF. Professora Permanente o PPGD/UNESA. Procuradora do Município do Rio de Janeiro. Membro da International Society of Public Law e do Instituto Brasileiro de Direito Processual.
Key-words: socioeconomic rights – minimum core – derived lawsuist –
distributive justice – deference
1. Introdução
A tradução para a linguagem do direito das reivindicações de fundo
eminentemente moral relacionadas à proteção à dignidade da pessoa, vista por
muitos como um triunfo, propõe, todavia, um expressivo conjunto de desafios. A
indeterminação inerente do que seja o padrão “adequado” de proteção à
dignidade propõe uma ideia de direitos humanos permanentemente revisíveis,
verdadeiras molduras de um incessante debate que não prescinde da arena
política, em relação ao que se possa pretender como resposta a novas
necessidades humanas.1 Esse dinamismo impulsionará um movimento de
expansão das condições de pleno desenvolvimento da pessoa, donde a
enunciação em si dos direitos humanos não pode figurar como elemento
constritivo a esse mesmo impulso ampliador.2
A vis expansiva dos direitos humanos num ambiente de alto índice de
litigiosidade como o é o brasileiro, tem proporcionado a manifestação de um
fenômeno de demandas judiciais “derivadas”, onde o que se tem em discussão
são os efeitos ou a adequação de uma providencia inicial de proteção a direitos
fundamentais. Este texto se dedica a um delineamento disso que se está a
denominar de “demandas derivadas”, explorando a casuística que se tem já por
posta nos litígios envolvendo a reivindicação de prestações positivas de proteção
ao direito à moradia no Município do Rio de Janeiro. A tese central é de que,
considerando que as “demandas derivadas” expressam uma pretensão de
ampliar os limites da proteção a direito fundamental para além do seu núcleo
essencial anteriormente já assegurado por ação administrativa ou determinação
1 YOUNG, Katharine. Freedom, want and economic and social rights: Frame and law. 24 Md. J. Int'l L. (2009), 182-208, propondo que os direitos socioeconomicos devem ser tidos não só como
um método para exercer pressão no plano jurídico sobre os agentes de decisão, mas também como uma moldura discursiva no âmbito do debate político sobre critérios aplicáveis de justiça distributiva. 2 “O tema dos direitos humanos e dinâmico, fluido, sempre aberto a novos mecanismos de expansão do ideal de florescimento do homem, e menos constrito pelas listas finitas e pelas estruturas institucionais do passado”. (GEARTY, Conor Gearty. Against Judicial Enforcement, in _____. e Debating social rights, USA: Bloomsbury Publishing, 2010, p. 18). No mesmo sentido, YOUNG, Katharine. Freedom, want and economic and social rights: Frame and law. 24 Md. J. Int'l L. (2009), 182-208, p. 184.
judicial; disso deve decorrer a utilização de um critério de controle judicial que
opere primordialmente a partir da deferência para com a manifesta escolha
administrativa anterior que presidiu o equacionamento da primeira postulação.
Isso se sustenta, não a partir do argumento de separação de poderes
como pura e simples cláusula de bloqueio ao escrutínio judicial. O que se virá a
demonstrar é que a deferência se apresenta como critério a evitar diversas
possíveis patologias nesta “judicialização de segunda ordem”3; nessa re-
submissão ao Judiciário de uma mesma suposta lesão a um direito fundamental
já equacionado no que respeita à sua proteção. O potencial regressivo das
decisões judiciais exaradas nestas mesmas demandas, já enfrentado em
trabalhos anteriores4, se intensifica com as chamadas “demandas derivadas”, e
tem-se por de todo recomendável a antecipação desses possíveis efeitos
deletérios de uma providencia de controle judicial se que pretende assecuratória
do projeto de transformação veiculado pelos direitos humanos.
O texto se desenvolverá da seguinte forma. Feitas nesta Parte 1 as
considerações iniciais, proceder-se-á na Parte 2 ao delineamento do que se
esteja a denominar “demandas derivadas”, ilustrando o desenho conceitual com
exemplos extraídos da casuística no tema da proteção à moradia no Município
do Rio de Janeiro. Na Parte 3, o texto clarifica que a veiculação de demandas
derivadas a título de pretensão de natureza reparatória oculta em verdade, uma
postulação de controle de adequação da providencia anterior de proteção ao
direito à moradia, sendo esse o real objeta da requerida adjudicação.
A parte 4 desenvolve o argumento de que a “demanda derivada”,
expressa uma postulação que extrapola os limites do minimum core do direito
em debate, seja a partir da perspectiva da capacidade institucional, seja do que
se possa conceitual identificar como núcleo essencial. É essa localização das
referidas “demandas derivadas”, para além das fronteiras do núcleo essencial,
3 A expressão de “segunda ordem” aqui se utiliza no sentido do caráter decorrente, derivado da demanda – sem qualquer pretensão valorativa no que toca ao conteúdo em si do postulado judicialmente. 4 Discorrendo sobre o potencial regressivo das decisões judiciais, consulte-se VALLE, Vanice Regina Lírio do. Judicialização das políticas públicas no Brasil: até onde podem nos levar as asas de Ícaro. Themis: Revista de Direito (Revista da Faculdade de Direito da Universidade Nova
de Lisboa), Ano 2011, Ano 11, Número 20-21, p. 185-210), e VALLE, Vanice Regina Lírio do Valle. Mercantilização dos direitos fundamentais e potencial regressivo das decisões judiciais. in: V Congresso Brasileiro de Direito Processual, 2014, Salvador. Constituição, processo e cidadania. Brasília: Gomes & Oliveira Livraria & Editora, 2014. p. 265-306
que sustentará a argumentação desenvolvida na Parte 5, segundo a qual em
hipóteses que tais, a deferência para com a escolha administrativa se apresente
como a opção mais acertada. Uma suma das conclusões se tem na Parte 6.
Constitui premissa de raciocínio da autora, aquela segunda a qual a lógica
da criação de uma categoria especifica de direitos diretamente instrumentais à
proteção da dignidade da pessoa expressa o intuito de conferir a essas mesmas
relações, um signo de prioridade5. Distinguir e privilegiar os conflitos que
envolvam diretamente a proteção a direitos fundamentais se mostra, portanto,
como uma profissão de fé no seu caráter central no que toca à normatividade
nacional, e no especial regime jurídico que lhe é reconhecido em relação
especialmente à enforceability que emana diretamente do art. 5º., & 1º. CF6, bem
como dos efeitos que lhe são próprios nas dimensões subjetiva e objetiva.
Para que esse signo de relevância e prioridade possa prevalecer, é
preciso evitar o risco de que todo e qualquer conflito de interesses se pretenda
veiculado a partir do discurso de proteção a direitos fundamentais7,
extremamente ampliado em suas potencialidades interpretativas a partir da
liberdade que nesse campo se entendeu de conferir ao Judiciário em tempos de
neoconstitucionalismo. 8 Distinguir e depurar os conflitos que tenham na sua raiz
uma violação a direitos fundamentais é condição sine qua non para a prevenir o
manejo retórico desta categoria.
2. “Demandas derivadas” transpondo a luta política para o Poder Judiciário
5 Vieira já apontava que se o papel dos direitos é assegurar esferas de autonomia ou dignidade que permitam aos seres humanos se relacionar e conviver sem que essa liberdade e interesses se encontrem constantemente ameaçados pelas liberdades e interesses dos demais; sua proteção através da linguagem dos direitos significa reivindicar uma situação especial para esses mesmos valores ou interesses (VIEIRA, Oscar Vilhena. A gramática dos direitos humanos. Boletim Científico. Escola Superior do Ministério Público da União, Ano I, Número 4,
Julho/Setembro 2002, p. 13-33. 6 A clausula de aplicação imediata se revela decorrência da institucionalização destes mesmos direitos, e expressa o seu caráter preferencial, ambos atributos específicos, já lição de Alexy, dos direitos fundamentais (ALEXY, Robert. Direitos fundamentais no Estado constitucional democrático. Revista de Direito Administrativo 217 (1999): 55-66). 7 Essa era já a advertência de Vieira de Andrade, segundo a qual a excessiva proliferação desse mesmo qualitativo, inclusive em sede infraconstitucional, induz a vulgarização da categoria, o que se revelaria incompatível com o próprio conceito de jusfundamentalidade, e ainda enfraqueceria a pretendida especial rede de proteção normativa (VIEIRA DE ANDRADE. Os direitos fundamentais no século XXI. [on-line]. (2012), disponível em
http://georgemlima.xpg.uol.com.br/andrade.pdf, acesso em 28 de abril de 2016). 8 SARMENTO, Daniel. O neoconstitucionalismo no Brasil: riscos e possibilidades. in
QUARESMA, Regina, OLIVEIRA, Maria Lucia de Paula e OLIVEIRA, Farlei Martins Riccio de. Neoconstitucionalismo. Rio de Janeiro: Forense (2009): 267-302.
Comentado [VV1]: Paragrafo
A opção estratégica por uma constituição de caráter transformador, com
um vasto elenco de direitos fundamentais que encontram na possibilidade da
tutela jurisdicional um dos seus mecanismos de garantia é dado da história
constitucional brasileira já reportado pela doutrina.9 Esta estrutura normativa,
associada a um momento inicial de baixa efetividade no que toca a
compromissos constitucionais axiológicos deflagraram um processo de intensa
judicialização das mesmas demandas sociais. Esse processo se intensificou
com o passar do tempo, e com a incorporação à prática jurisdicional da ideia de
controlabilidade não só das ações individuais desenvolvidas pela Administração,
como também das políticas públicas enquanto planos mais amplos desse
mesmo agir administrativo.10
Este movimento identificado como “judicialização da política”, traduz
enquanto processo social e político, uma “expansão do âmbito qualitativo de
atuação do sistema judicial, do caráter dos procedimentos de que dispõem e,
ainda aumento do número de processos nos tribunais”.11 A ampliação da esfera
de atuação dos atores judiciais para todo o sistema de direitos fundamentais
envolverá o escrutínio de hipóteses as mais diversas, muitas delas revestidas de
baixa densidade normativa – e essa é a raiz do fenômeno que se está
identificando como “demandas derivadas”.
Indicou-se no título do subitem que este padrão reivindicatório traduz um
deslocamento da luta política para o Judiciário, eis que o litigio decorre de uma
percebida omissão ou inadequação das opções materializadas pelos demais
braços especializados do poder político. Inequívoco que o quadro subjacente
revela na perspectiva de quem demanda, uma patologia do funcionamento da
política; esse déficit funcional se busca superar com a ação controladora do
Judiciário. Só se pode aludir a uma percepção de déficit no funcionamento
9 WERNECK VIANNA, Luiz. O Terceiro Poder na Carta de 1988e a Tradição Republicana: Mudança e Conservação. A Constituição de1988 na Vida Brasileira. São Paulo: Aderaldo & Rothschild, ANPOCS (2008): 91-109, e DRIMOULIS, Dimitri et. al., Resiliência constitucional
[livro impresso]: compromisso maximizador, consensualismo político e desenvolvimento gradual. São Paulo: Direito GV, 2013. 10 Para uma análise mais ampla dos limites e possibilidades do controle judicial de políticas públicas, bem como um percurso a jurisprudência na matéria nos Tribunais Superiores, consulte-se VALLE, Vanice Regina Lírio do. Políticas públicas, direitos fundamentais e controle judicial.
Editora Fórum, 2009ç 2ª. edição no prelo. 11 MACIAL, Débora Alves, e KOERNER, Andrei. Sentidos da judicialização da política: duas análises. Lua Nova 57 (2002): 113-133.
ordinário das instituições políticas, em razão dos termos usualmente vagos e
indeterminados em que os referidos direitos são trazidos ao texto constitucional.
Indeterminação, como se sabe, é atributo típico do direito; resposta
estratégica à permanente tensão existente entre liberdade e constrição;
fenômenos intimamente relacionados à qualidade do convívio social.
Especificamente no plano constitucional, indeterminação das cláusulas pode se
revelar um recurso estratégico para a formação de consensos possíveis,
remetendo-se a tarefa do desenvolvimento legislativo para um posterior
momento político. 12 Na seara dos direitos fundamentais, indeterminação se põe
como atributo a viabilizar a tradução de novos reclamos morais para a linguagem
do direito13, facilitando assim a construção social de seu conteúdo.14
É a vagueza do conteúdo destes mesmos direitos fundamentais que abre
espaço, no contexto do fenômeno da judicialização, para a imputação de
ativismo, com o amplo debate que se tem sempre por associado a esse padrão
de ação institucional. Especialmente no campo dos direitos de baixa intensidade
legislativa, a oferta da jurisdição assecuratória de sua efetividade envolverá
necessariamente a superação desse vácuo legislativo. Esta operação pode
envolver a (re)formulação de relevantes escolhas públicas a partir de critérios
abstratos de estruturação do convívio social, como por exemplo, a justiça
distributiva. Embora o discurso veiculado nas referidas demandas tenha por
base a linguagem do direito, o que se tem na essência é a busca da formulação
de uma escolha política que não encontrou nos órgãos revestidos de
representação stricto sensu, o eco que a cidadania (ou parte dela) entendia como
necessário à proteção ao direito fundamental em discussão.
O caso que ilustra as presentes cogitações – direito fundamental à
moradia – evidencia esse fenômeno. Do ponto de vista constitucional, aludindo
especificamente à moradia, a par de sua alusão no elenco do art. 6º, caput CF,
tem-se a referência à competência comum dos entes federados para “promover
12 SUNSTEIN, Cass R. Acordos constitucionais sem teorias constitucionais. Revista de Direito Administrativo 246 (2007): 79-94. 13 OREND, Brian. Justifying Socioeconomic Rights, in Economic Rights in Canada and the United States, USA: University of Pennsylvania Press, 2006, p. 26. 14 FITZPATRICK, Suzanne; BENGTSSON, Bo e WATTS, Beth. Rights to Housing: Reviewing the Terrain and Exploring a Way Forward. HOUS. THEORY SOC. 447 (2014) p. 31.
programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais
e de saneamento básico” expressa no art. 23, IX CF.15
No plano infraconstitucional, no tema especifico dos deveres positivos
relacionados à proteção à moradia, identifica-se a Lei 11.124/05, que “Dispõe
sobre o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social – SNHIS, cria o
Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social – FNHIS e institui o Conselho
Gestor do FNHIS”, criando uma macroestrutura institucional e o desenho de
mecanismos de financiamento para iniciativas no campo da habitação de
interesse social. Dispondo já sobre linhas concretas de ação relacionadas a
efetividade desse mesmo direito, tem-se as Leis 10.998/04, que “altera o
Programa de Subsídio à Habitação de Interesse Social”; 11.888/08, que
“assegura às famílias de baixa renda assistência técnica pública e gratuita para
o projeto e a construção de habitação de interesse social e altera a Lei no 11.124,
de 16 de junho de 2005” e a Lei 11.977/09, que “Dispõe sobre o Programa Minha
Casa, Minha Vida – PMCMV e a regularização fundiária de assentamentos
localizados em áreas urbanas”.16
O referido quadro normativo infraconstitucional cuida de formular um
desenho institucional relacionado a ações integradas a serem desenvolvidas na
seara da moradia. Nenhuma das normas, todavia, municia o julgador de critérios
objetivos para solver a demanda que postula prestações positivas no campo do
direito à moradia, eis que pelo menos dois elementos substantivos da
delimitação da substancia deste mesmo direito não se tem por clarificados:
destinatários do direito, e determinação do conteúdo prestacional a ser
assegurado. Uma leitura possível é de que essa matriz normativa pretendesse
15 Decerto se pode extrair inferências acerca da valorização constitucional do direito à moradia em referencias constitucionais mais genéricas como aquela relacionada à sua inviolabilidade, bem como aquela atinente à função social da cidade, dentre outras – mas a alusão expressa ao direito social correspondente, e aos possíveis deveres positivos dele emanados, a rigor, só se tem nos dois preceitos acima mencionados. 16 Outros preceitos legais se podem identificar associados à proteção ao direito à moradia, como a impenhorabilidade do bem de família (Lei 8.009/90), os instrumentos urbanísticos direcionados a esse mesmo resultado contemplados no Estatuto da Cidade (Lei 10.257/01), a Lei 11.481/07 que disciplina a regularização fundiária de interesse social, ou mesmo a recente alteração introduzida no regime jurídico das desapropriações, pela Medida Provisória 700/15, que condiciona a referida medida de intervenção do Estado na propriedade privada, quando a hipótese envolver imóvel “ocupado coletivamente por assentamentos sujeitos a regularização fundiária de interesse social”. Tais regras, todavia, não dizem respeito a delimitação do conteúdo em si das prestações positivas tidas como devidas pelo Estado lato sensu, no exercício dos
deveres relacionados a dimensão objetiva dos direitos fundamentais.
justamente remeter a delimitação desses componentes específicos do acesso a
prestações positivas relacionadas a proteção ao direito à moradia para a
formulação das políticas públicas a serem aplicáveis na matéria. Afinal, se
diversas são as ações públicas que se pode levar a cabo tendo em conta essa
mesma proteção, a calibragem dessas distintas possibilidades de ação e seus
destinatários preferenciais clama por políticas públicas distintas, cada qual delas
com suas próprias condições de elegibilidade e prestações positivas.
Em que pese essa ausência de parâmetros normativos claros, as
demandas afetas à proteção à moradia acontecem ordinariamente, muitas vezes
envolvendo situações que não encontram resposta numa política pública
especifica em curso.17 Significa dizer que aqueles mesmo componentes
delimitadores do conteúdo do direito em discussão não se tem por delimitados
nem mesmo em política pública em curso.
No Município do Rio de Janeiro, as demandas deflagradas por iniciativas
de proteção à ordem urbana18 tem sido equacionadas a partir das premissas do
dever de proteção à dignidade da pessoa e da eficácia imediata dos direitos
fundamentais. Ambos os vetores induziram a construção de uma prática judicial
que, quando reconhece a existência em si de um direito a ser tutelado (não
obstante ausência de programa público especifico orientado a esta hipótese),
trabalha com a aplicação analógica da política pública existente, associada à
proteção ao direito à moradia alcançado pelo desenvolvimento de ação pública
consciente e voluntária que requer o desalijo de uma ou mais famílias para a sua
execução19 (no mais das vezes, realização de obra pública, seja de provimento
17 O Programa Minha Casa, Minha Vida, por exemplo, destina-se ao suprimento do déficit de moradia em geral, e não oferece resposta especifica para situações como coletividades atingidas por desastres naturais, ou desalijadas de propriedades privadas, ou moradia como item complementar para aqueles portadores de deficiência ou patologia a exigir especiais condições de abrigo. Significa dizer que do ponto de vista de políticas públicas, não se tem uma resposta especifica a uma pretensão de prioridade associada a essas mesmas hipóteses fáticas. 18 Abrigam-se sob esta categoria – demandas fundadas em iniciativas relacionadas a ordem urbana – aquelas associadas ao desenvolvimento de uma iniciativa de preservação da segurança e da adequação do meio ambiente natural e urbano. O espectro de situações compreenderá desde ações de polícia relacionadas a violação da ordem edilícia, defesa de áreas de preservação, desocupação de faixa marginal de proteção, recuperação de áreas públicas, até a interdição de edificações em áreas de risco ou em que se tenha identificado comprometimento estrutural. 19 O primeiro registro de ato administrativo normativo no âmbito do Município do Rio de Janeiro na matéria é o Decreto 20.454 de 24 de agosto de 2001, que “aprova as diretrizes de realocação em edificações de assentamentos populares”. À época, as alternativas de realocação compreendiam a construção de unidade imobiliária no local, a indenização de benfeitorias, e a compra de uma nova moradia, preferencialmente na própria comunidade. O pagamento de
de infraestrutura adequada ao local em si20, seja para a oferta de equipamento
urbano). Na sua formulação mais atual, esse programa de ação se tem
disciplinada pelo Decreto 38197 de 16 de dezembro de 2013, que agora se
estende igualmente as hipóteses de demolições promovidas pelo Poder Público,
No que toca as alternativas de realocação, estas agora compreendem, além da
construção de unidade imobiliária no local e indenização (medidas já
contempladas na regulação inicial)21; também a liquidação antecipada do
parcelamento do contrato de compra e venda de imóvel residencial celebrado
conforme as regras do Programa Minha Casa, Minha Vida em hipóteses
especificamente autorizadas pelo Chefe do Poder Executivo. A figura
originariamente denominada “aluguel provisório” segue contemplada, agora sob
o título de “auxilio habitacional temporário”, ainda associada ao reassentamento
definitivo em outra moradia.
Em já quase 10 anos de debate jurisdicional no tema da moradia no Rio
de Janeiro22, tem-se já esboçada uma matriz teórica de enfrentamento destes
mesmos conflitos, massivamente veiculados sob o patrocínio da Defensoria
Pública Geral do Estado do Rio de Janeiro23. A solução judicial mais comum tem
sido, na hipótese de reconhecimento efetivo de violação ao direito à moradia,
empreender-se à aplicação analógica da disciplina atinente à demolição e
reassentamento voluntários contida no Decreto 38.197/13. Disso resulta no mais
“aluguel provisório” já se tinha contemplado na referida normativa, sempre associada a futura outorga da unidade imobiliária que estaria em processo de construção. 20 A criação até mesmo de vias de circulação em comunidades originárias de ocupação irregular pode muitas vezes, exigir a derrubada de edificações ali existentes. 21 A modalidade que compreendia a aquisição de outra unidade imobiliária, preferencialmente na mesma comunidade, se viu descontinuada pelas dificuldades inerentes a viabilização de uma operação desta natureza, com recursos públicos, envolvendo edificações situadas em áreas de ocupação irregular, e portanto, sem titulação regular. 22 O primeiro conflito judicializado em que se postulava a proteção especifica do direito consignado no art. 6º. caput CF, segundo os registros da Procuradoria de Urbanismo e
Desapropriações do Município do Rio de Janeiro data de 2006. Não e ocioso demarcar que isso se dá com já 5 anos de vigência da normatização acima indicada na matéria. 23 No período entre 2006 e agosto de 20015, 84% (oitenta e quatro por cento) das demandas requerendo a outorga de prestações positivas de proteção ao direito à moradia relacionadas ao desenvolvimento de ações de ordenamento urbano se viram patrocinadas pela Defensoria Pública Geral do Estado do Rio de Janeiro, conforme apurado no perfil de litigiosidade desenvolvido em relação a estas mesmas demandas (VALLE, Vanice Regina Lírio do. Litígios fundados no direito à moradia na Cidade do Rio de Janeiro: uma análise empírica das demandas relacionadas à preservação da ordem urbana. Working paper, 2006). Este fenômeno se explica
a partir do elevado grau de estruturação institucional da referida função essencial à justiça no Estado do Rio de Janeiro, e tem por efeito uma certa homogeneidade nos termos segundo os quais o debate em torno deste mesmo direito, e dos possíveis mecanismos de sua proteção – tudo formulado a partir de uma especifica visão institucional.
Comentado [VV2]: Crase
das vezes na cominação, em caso de procedência, de duas possíveis prestações
positivas: a inclusão em benefício de caráter pecuniário e transitório hoje
denominado “auxilio habitacional temporário”; e a determinação de inscrição nos
programas públicos em curso que objetivem a outorga da unidade imobiliária.24
É a consolidação dessa matriz teórica que vem propiciando agora o
surgimento do que se está a denominar “demandas derivadas”, que expressam
uma irresignação com os termos da composição judicial ou administrativa que
antes se tenha desenvolvido em relação à tutela do direito reclamado.25 Tem-se
“demanda derivada”, portanto, quando o cidadão que se julga credor da proteção
constitucional ao direito à moradia, tendo já recebido do Estado lato sensu, por
determinação administrativa ou judicial, prestações positivas de qualquer
natureza, manifesta sua irresignação com a solução, e postula judicialmente
nova providencia completar e/ou substitutiva da primeira que já lhe tenha sido
assegurada.
A “demanda derivada” constitui, portanto, pretensão judicial distinta da
anteriormente examinada ou reconhecida como aplicável pela Administração
Pública26; nova demanda que se oferta, postulando providencias diversas, todas
ainda fundadas no discurso do imperativo de proteção ao direito fundamental a
moradia. A casuística do contencioso no Município do Rio de Janeiro aponta
como principais motivos de irresignação:
Reassentamento em local distante daquele da ocupação original, em
detrimento dos laços estabelecidos com a localidade onde inicialmente
se tinha a moradia do Autor;
24 Este tema foi examinado em trabalho anterior – “Enforcing socioeconomic rights through immediate efficacy: a case study of Rio de Janeiro’s right to housing” – onde se empreendeu a crítica em relação a esse equacionamento jurisdicional, que desconsidera os critérios de justiça distributiva que inspiram os programas públicos em curso, e outorga prestação que a rigor, dispensa a intervenção jurisdicional para a sua incidência (VALLE, Vanice Regina Lírio do. Enforcing socioeconomic rights through immediate efficacy: a case study of Rio de Janeiro’s right to housing. Working paper desenvolvido durante fellowship havida junto ao Human Rights Program da Harvard Law School, 2015-2016). 25 A hipótese clássica de composição administrativa de suposta violação ao direito fundamental a moradia se tem quando a Administração, objetivando o desenvolvimento de determinada intervenção urbana, ou mesmo a solução de riscos ou conflitos sociais envolvendo moradia, adianta-se em promover a negociação preliminar requerida para o desenvolvimento da medida administrativa de reassentamento. 26 As “demandas derivadas” relacionadas a anterior providencia desenvolvida pela Administração Pública normalmente envolvem reassentamento de uma determinada coletividade, operação essa precedida de informações e negociação em relação as condições de desocupação e de proteção aos direitos fundamentais eventualmente alcançados pela transferência.
Reassentamento de toda uma comunidade em locais diversos, em
detrimento dos laços sociais antes estabelecidos pelos ocupantes;
Reassentamento com o dever de pagamento de prestações
associadas ao Programa Minha Casa, Minha Vida, quando a
expectativa era de recepção de um imóvel livre e desembaraçado;
Demora na materialização do reassentamento, ainda que com a
outorga do auxílio pecuniário identificado como “aluguel social”;
Observe-se que em todas estas hipóteses, já houve a entrega de
prestações positivas em favor do litigante, por iniciativa da Administração ou por
determinação judicial. Não obstante isso, o Autor, por fas ou por nefas reputa
inadequada ou insuficiente a outorga, e dessa alegada inadequação pretende
extrair distintas consequências jurídicas. Urge compreender a natureza da
pretensão apresentada nas referidas “demandas derivadas”, de modo a que se
possa avançar na identificação do critério de escrutínio judicial aplicável.
3. Descaracterização das referidas demandas derivadas como pretensões
exclusivamente reparatórias
Uma primeira possível aproximação desta “segunda onda” de postulações
assume o discurso de que se esteja a cogitar de uma reparação de dano,
decorrente de uma medida administrativa ou judicial que, ainda que lícita, teria
determinado de um dano que se pretende ver superado pela reparação
pecuniária. Assim, as iniciais que veiculam esse tipo de pretensão aludem a
“dano social” – decorrente do deslocamento geográfico imposto pelo
reassentamento em relação ao seu ponto inicial de moradia, ou relacionado à
dispersão de coletividades antes reunidas num mesmo local.
A evocação do discurso de proteção a direito fundamental para dele
extrair uma pretensão reparatória é revestida de uma insuperável contradição
interna. O discurso de proteção aos direitos fundamentais como base para o
reclamo judicial objetiva, como indicado no subitem 1, a aplicação do regime
especial de proteção que é próprio a estes direitos. Isso envolverá, por exemplo,
a superação de um argumento de legalidade estrita27 como bloqueio à
pretensão, eis que o atributo de eficácia imediata se apresenta como fundamento
constitucional à sua tutela. Na forma do decidido pelo STF, tampouco o
argumento da reserva do possível se apresenta como óbice absoluto a este tipo
de pretensão. Existem, portanto, consequências jurídicas especificas relevantes
relacionadas à apresentação de uma demanda como fundada em proteção a
direito fundamental.
O que parece insustentável na narrativa veiculada nas referidas
demandas derivadas, é a seletividade no que toca à evocação desse mesmo
regime jurídico – eis que a pretensão apresentada propõe a substituição da
satisfação in natura do interesse dito violado, por reparação pecuniária. Isso
significa dizer, uma renúncia ab initio ao exercício do direito fundamental in
natura, em favor de uma prestação pecuniária, escolha que se revela
incompatível com a teoria dos direitos fundamentais, que se reputam
irrenunciáveis.28
A veiculação em primeiro plano, de “demanda derivada” buscando
reparação pecuniária em detrimento da persecução da prestação in natura que
se destinaria a potencializar a proteção ao direito à moradia na conformação
vislumbrada pelo autor, revela-se hipótese clássica de mercantilização do direito
fundamental. O bem da vida que a Carta de 1988 reputa instrumental à garantia
da dignidade da pessoa se teria por substituído por prestação pecuniária –
resultado teórico que não pode ser recepcionado por uma jurisdição que se
presta sob a orientação valorativa de obtenção do resultado in natura, e não de
seu sucedâneo pecuniário.
Conferir-se, portanto, a essas “demandas derivadas”, a qualificação de
pretensões reparatórias importaria em admitir-se um fracionamento do regime
especial que é próprio aos direitos fundamentais (com o descarte da
irrenunciabilidade), reforçando uma prática jurisdicional que se revelaria em
alguma medida regressiva, eis que assumiria como pressuposto, a
impossibilidade da garantia in natura do direito.
27 A rigor, inexiste parâmetro normativo estabelecendo qual o grau máximo de distância que se tem como tolerável, quando se cogita de reassentamento de comunidades promovido por autoridades públicas. 28
Comentado [VV3]: Incluir referencias de manuais sobre essa irrenunciabilidade
É certo que a busca judicial de proteção a direitos humanos pode
compreender pretensões reparatórias, a par de providencias estruturantes
relacionadas à eficácia desse mesmo direito.29 Mas para que se possa aludir a
existência em si de dano (elemento indispensável da responsabilidade civil,
ainda que no regime objetivo que é próprio à Administração Pública), o
pressuposto é o reconhecimento em si da existência de um de direito afetado.
O discurso estratégico que alude ao direito fundamental à moradia para
diretamente extrair dele uma pretensão reparatória, cujo fundamento jaz na
incorreção ou insuficiência da ação publica anterior, em verdade oculta a questão
prejudicial lógica que diz respeito ao alcance em si do direito fundamental a
moradia. Só se pode aludir a um dano decorrente do modo de materialização da
sua tutela, a partir da delimitação clara de qual seja o seu conteúdo – se ele
compreende, por exemplo, nos termos em que se tem por formuladas as
referidas demandas derivadas, o direito ao reassentamento próximo ao local
originário, ou ainda, se ele compreende o direito ao reassentamento de uma
coletividade como um todo, sem a dispersão de seus integrantes.
De todo o exposto, se extrai como conclusão em verdade, as “demandas
derivadas” veiculadas como supostas pretensões reparatórias, em verdade
materializam a busca de um juízo de censura em relação ao modo de
cumprimento dos deveres positivos de ação. Situam-se estas demandas,
portanto, não no campo da reparação de dano, mas naquele da proteção a
direitos fundamentais (como afirmado nas próprias iniciais).
Relevante para a identificação da adequada matriz jurisdicional de
solução é ainda sublinhar que estas mesmas demandas derivadas não mais
estariam a censurar a omissão administrativa, mas sim a inadequação da
resposta institucional anteriormente ofertada pela Administração ou pelo
Judiciário.
4. Demandas derivadas e o núcleo essencial do direito fundamental em
discussão
29 ROACH, Kent. The Limits of Corrective Justice and the Potential of Equity in Consitutional Remedies, Arizona Law Review 33 (1991): 859.
Indicou-se no subitem 3 acima que o verdadeiro conteúdo das “demandas
derivadas” ofertadas sob a alcunha de pretensões reparatórias, em verdade é a
censura da estratégia utilizada para anterior proteção ao direito fundamental à
moradia. Reassentamento em local distante, ou com a dispersão da população
envolvida na anterior ocupação, nos termos da “demanda derivada” ofertada, se
reputa inadequado por não observar o parâmetro de proximidade geográfica e
de preservação das relações de convívio antes mantidas no local.
No que toca às duas outras hipóteses, tem-se mais claro que o cerne do
dissidio está igualmente na estratégia de proteção ao direito fundamental à
moradia. O pedido que manifesta inconformismo com a cobrança de prestações
associadas ao Programa Minha Casa, Minha Vida; ou ainda que alega a
imperatividade da entrega de imóvel livre e desembaraçado traduz em verdade,
uma aproximação entre o direito à moradia e o direito à propriedade. Já o pedido
que afirma a inadequação do auxílio pecuniário (aluguel social) como prestação
estatal protetiva, e reclama a entrega imediata de unidade imobiliária; este
claramente evidencia um intuito de reformulação da providencia administrativa
reputada adequada, providencia essa que se tem por sujeita a termo – mas não
a período delimitado de tempo30, até porque o evento futuro e certo de que se
cogita (entrega da unidade imobiliária) está sujeito a externalidades outras, fora
do controle da Administração Municipal.
Equalizadas as demandas no que toca a seu pano de fundo – todas
aludem a uma pretendida reconfiguração da prestação positiva anteriormente
assegurada em aval ao direito fundamental à moradia – segue-se examinar a
possibilidade em tese de seu deferimento em sede de controle judicial.
4.1 A proteção ao núcleo essencial como signo legitimador da decisão
anterior (judicial ou administrativa) na perspectiva das capacidades
institucionais
30 O pagamento de aluguel social nas hipóteses disciplinadas pelo Decreto 38197/13 se dá até o momento da entrega da unidade habitacional em si. A transposição dessa mesma matriz para a prestação jurisdicional, empreendida por aplicação analógica desta mesma disciplina a situações que não são especificamente regradas pelo referida ato administrativo normativo, deveria estar circunscrita ao mesmo modelo, a saber, a prestação pecuniária se paga pelo tempo necessário até a outorga da unidade habitacional in natura.
O tema da sindicabilidade das ações públicas relacionadas à efetivação
dos direitos fundamentais, como se sabe, requer a combinação de distintos
parâmetros igualmente constitucionais. Assim, se de um lado o pilar institucional
de equilíbrio e harmonia entre poderes opera a partir de uma lógica de
segregação das áreas de atuação segundo um princípio de especialização
funcional; de outro lado a inefetividade dos direitos fundamentais reclama a
atuação corretiva da infidelidade constitucional manifesta pelo poder.
Em que pese a carga de expectativa traduzida no caráter aspiracional da
constituição brasileira31 já referida no subitem 2 acima, a dissociação entre esta
parte dogmática, e aquela atinente ao desenho institucional do poder gera
obstáculos à efetivação da proposta transformadora32, por isso o desafio do
equilíbrio entre efetividade de direitos e preservação da estrutura cratológica se
apresenta incessantemente no curso da judicial review.
Superados os primeiros momentos de perplexidade em relação à
conciliação possível entre os referidos vetores, a jurisprudência nacional,
orientada pela Suprema Corte, dedicou-se à identificação de parâmetros que
possam traçar os limites dessa mesma intervenção controladora, recepcionando
conhecidos parâmetros da teoria dos direitos fundamentais. Em síntese
formulada pelo próprio STF tem-se a referência à proibição de retrocesso social,
proteção ao mínimo existencial, vedação à proteção insuficiente e ainda,
proibição de excesso, por exemplo.33 Mais recentemente, reforçando essa
mesma matriz de legitimação da intervenção jurisdicional corretiva, teve-se a
31 A identificação de constituições orientadas a mudança como aspiracionais foi formulada na doutrina americana (DORF, Michael C. The Aspirational Constitution. George Washington Law Review 77.1631 (2009): 13-82), consignando a possibilidade de conferir-se este mesmo
atributo pela via da interpretação, ainda que não se cuide de Texto Fundamental originalmente assim concebido (WEST, Robin L. The Aspirational Constitution. Northwestern University Law Review 88.1 (1993): 11-68). 32 Destacando o caráter refratário do desenho de poder a mecanismos (por exemplo) de ampliação da participação popular na formulação das escolhas publicas inerentes a um Estadp de marcante cariz social, consulte-se GARGARELLA, Roberto. Grafting Social Rights onto Hostile Constitutions, 89 Texas Law Review 1537 (2010). Assinalando os escassos resultados
das propostas transformadoras das constituições latino-americanas, leia-se UPRIMNY, Rodrigo. Latin American Constitutionalism: Models of Constitutionalism: Historical and Contemporary Perspectives: The Recent Transformation of Constitutional Law in Latin America: Trends and Challenges. Texas Law Review 89 (2011): 1587-1977. 33 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. AI 598212 ED, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 25/03/2014, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-077 DIVULG 23-04-2014 PUBLIC 24-04-2014
desqualificação da cláusula da reserva do possível como bloqueio abstrato à
judicial review.34
Indispensável destacar que o debate em torno dos limites do controle
judicial não pode se ver reduzido a uma discussão sobre reserva de poder, mas
envolvendo outro aspecto do imperativo de proteção à constituição como
unidade. Afinal, inexiste um signo de prioridade entre os preceitos constitucionais
que permita formular, em abstrato e a priori, um juízo de sobrevalor em favor dos
direitos fundamentais, em desfavor da dimensão institucional, orgânica. Em
verdade, os dois pilares do texto constitucional guardam uma relação de
interpendência reciproca; efetividade de direitos fundamentais é projeto que não
se realiza sem funcionamento regular do poder em estrita consonância com os
deveres de fidelidade constitucional.
No campo específico do direito à moradia, esses mesmos parâmetros têm
sido utilizados para superar a sua baixa densidade normativa. Assim, é a
evocação ao imperativo de proteção à dignidade da pessoa, associada ao
parâmetro de salvaguarda do núcleo essencial dos direitos fundamentais que
tem determinado a garantia jurisdicional do auxílio pecuniário conhecido como
“aluguel social”, no mais das vezes associado ainda à ordem de inscrição dos
autores nos programas habitacionais um curso no âmbito da Municipalidade.
Esta matriz de resolução do conflito em torno dos deveres de proteção ao direito
à moradia decorre de uma afirmada aplicação analógica dos termos do Decreto
nº. 38.197/13, que materializa a política pública aplicável no Município do Rio de
Janeiro à hipótese de reassentamento determinado pelo desenvolvimento de
ação pública no local da edificação35.
Significa dizer que a determinação judicial no sentido da outorga do auxílio
pecuniário como providencia prévia e temporariamente substitutiva do
atendimento final materializado pela entrega da unidade habitacional traduz,
quando menos, a garantia do núcleo essencial do direito fundamental em debate.
34 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 592581, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno, julgado em 13/08/2015, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-018 DIVULG 29-01-2016 PUBLIC 01-02-2016). 35 A perfeita aplicação analógica do referido ato administrativo normativo da solução ofertada pelo Judiciário fluminense às demandas em que se persegue a garantia de prestações positivas em favor do direito à moradia pode ser ainda objeto de alguma controvérsia. A disciplina normativa existente destina-se a hipóteses em que o provimento da moradia se põe como imperativo imediato por forca da relação causal entre o desalijo e o desenvolvimento de obra pública especifica em curso.
Isso porque, se a teor da compreensão mais restritiva no que toca ao controle
judicial de políticas públicas, essa e a área em que a intervenção jurisidicional
não malferiria o preceituado sistema de checks and balances, uma decisão
judicial que empreende a proteção ao direito fundamental à moradia pode estar
a preservar esse mesmo minimum core, ou eventualmente a ir além dele – o que
não se revela possível é a outorga de jurisdição que expresse menos do que a
garantia a esse núcleo duro.
Já no que toca à Administração Pública, os deveres de ação decorrentes
da dimensão objetiva dos direitos fundamentais igualmente jungem seu agir à
proteção desse núcleo mínimo. A presunção, considerada a juridicidade que
rege o agir administrativo36, é que a prestação positiva ofertada àquele que agora
litiga contemplava, observadas as condições da época e local, o minimum core
da obrigação em debate. Cuida-se aqui de presunção relativa, é verdade, mas
ainda assim, a presunção existe.
Em suma, o que se está a afirmar é que na perspectiva da capacidade
institucional (portanto, do patamar mínimo de deveres também institucionais),
tanto a prestação administrativamente assegurada, quanto aquele outorgada em
sede do conflito judicializado, atendem ao dever de proteção que integra o arco
conceitual dos direitos fundamentais – quando menos, nos limites inerentes ao
minimum core. Se assim o é, as “demandas derivadas” partem de um ponto em
que se tem presumivelmente atendido o minimum core do direito fundamental à
moradia, e ainda assim sustentam a insuficiência ou inadequação do que foi
reconhecido como devido, e provido por intermédio de prestação positiva.
É certo que a existência anterior de provimento administrativo ou
jurisdicional não encerra o debate em torno do conteúdo e extensão do direito
fundamental em debate, dado a sua natureza essencialmente dinâmica. A par
disso, direitos (em especial os fundamentais) só podem ser entendidos segundo
um determinado contexto social37, e a sua reivindicação expressa um debate
entre o que uma determinada sociedade é, e o que ela, segundo a visão do
36 A alusão aqui e ao sentido ampliado da literalidade do art. 37, caput CF, quando refere ao
princípio da legalidade. Considerada a própria baixa densidade normativa do direito fundamental em discussão, o que se está a cogitar e de aplicação do quadro normativo nacional a partir da perspectiva da constituição, por isso a quaestio se situa no plano da
juridicidade. 37 TUSHNET, Mark. Essay on rights. Texas Law Review 62 (1983): 1363-1403, p. 1364.
Comentado [VV4]: Incluir referencia ao Diogo...
litigante, deve vir a ser.38 Finalmente, num contexto já afirmado de
constitucionalismo aspiracional, direitos fundamentais traduzem um meio de
modificação do status quo, e não de preservação de valores constitucionais já
aceitos.39
Disso decorre que o debate pode se ter ainda por aberto, e, portanto,
justiciável – mas a partir da perspectiva de que o que se pretende não é mais a
proteção em si ao mínimo existencial, mas sim um avanço em relação a esse
conteúdo inafastável, o que atrairia, na forma do sistema vigente, a deferência
para com as escolhas administrativas.
4.2 Transbordamento da proteção ao núcleo essencial nas “demandas
derivadas”
Não resta dúvida que a delimitação do que se tenha por efetivamente
contido no núcleo essencial de um determinado direito fundamental não se
constitui tarefa fácil, abarcando teorias diversas que buscam se apoiar, ora numa
afirmada essência normativa, ora em consensos mínimos coletivamente
formulados, ou ainda em obrigações mínimas objetivamente estatuídas.40 Acima
se indicou, a partir da perspectiva das capacidades institucionais, que o mínimo
essencial é de se presumir tenha sido atendido na decisão (administrativa ou
judicial) primária. Aqui, o que se pretende demonstrar é que as “demandas
derivadas”, também sob a perspectiva teórica do que se possa ter por minimum
core, expressam em verdade uma pretensão de seu transbordamento – e não
de asseguração desse patamar essencial.
Dialogando com as teorias orientadas à determinação do conteúdo
mínimo de direitos fundamentais, pode-se de pronto afirmar que aquelas afetas
aos chamados mínimos obrigacionais não socorrem as “demandas derivadas”.
38 TUSHNET, Mark. Essay on rights. Texas Law Review 62 (1983): 1363-1403, p. 1370. 39 DORF, Michael C. The Aspirational Constitution. George Washington Law Review 77, 1631-
1672 (2009), p. 1633. 40 As teorias relacionadas a essência normativa dialogam diretamente com as necessidades ditadas pela sobrevivência ou com os valores determinados pela dignidade; as teorias associadas ao consenso mínimo buscam incorporar valores comunitários, e aquelas do conteúdo obrigacional mínimo repousam nessa mesma determinação de deveres. (YOUNG, Katharine G. The Minimum Core of Economic and Social Rights: A Concept in Search of Content. Yale J. Int'l L. 33 (2008): 113-175).
As teorias relacionadas à fixação de um mínimo obrigacional para a
delimitação do núcleo essencial de direitos fundamentais, apostam na relevância
da normatividade em sentido estrito como meio de clarificação desse mesmo
conteúdo, e como suporte para uma avaliação realista do grau de cumprimento
por parte dos Estados, destes mesmo compromissos.41 O referido mínimo
obrigacional pode se ter por estabelecido (segundo essa visão) seja em
normatividade nacional, seja em documentos internacionais delimitadores de
obrigações especificas a seus subscritores.
No tema em debate a normatividade nacional não cogita de componentes
mínimos relacionados ao direito à moradia; portanto, não socorre à pretensão de
ampliação do que já se tenha tido por administrativa ou judicialmente
assegurado. Também o plano internacional não ampara o intento de incluir as
pretensões veiculadas nas chamadas “demandas derivadas”, nos estreitos
limites do que se possa identificar como núcleo essencial do direito fundamental
à moradia.
É certo que a referência a um direito a um nível de vida adequado, que
proporcione bem-estar, nisso se incluindo abrigo, se tem já por contemplada pela
Declaração Universal dos Direitos do Homem em seu art. 25.42 É esse mesmo
diploma internacional, todavia que em seu art. 22, aludindo a um direito à
segurança social, materializável nos direitos econômicos, sociais e culturais a
ela indispensáveis, aponta o esforço nacional e a cooperação internacional como
meios de alcance deste objetivo, “de harmonia com a organização e os recursos
de cada país”, temperando portanto uma pretensão de caráter absoluto.
A enunciação normativa da Declaração Universal se teve por reiterada no
art. 11 do Pacto Internacional Sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais,
ratificado pelo Brasil por intermédio do Decreto 591/9243, depois da devida
aprovação pelo Congresso Nacional Decreto Legislativo 226/91.44 A ressalva
41YOUNG, Katharine G. The Minimum Core of Economic and Social Rights: A Concept in Search of Content. Yale J. Int'l L. 33 (2008): 113-175, p. 151 42 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇOES UNIDAS. Declaração Universal dos Direitos do Homem, 1948, art. 25. 43 BRASIL. Decreto 591, de 6 de julho de 1992. Atos Internacionais. Pacto Internacional
sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Promulgação. 44 BRASIL. Decreto Legislativo 226 de 12 de dezembro de 1991. Aprova os textos do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ambos aprovados, junto com o Protocolo Facultativo relativo a esse último pacto, na XXI Sessão (1966) da Assembleia-Geral das Nações Unidas.
atinente às possibilidades de cada qual das partes convenentes se tem agora
incorporada ao art. 11, que afirma que “os Estados Partes tomarão medidas
apropriadas para assegurar a consecução desse direito”
O alcance do preceituado na referida Declaração se teve por clarificado
pelos Comentários 245 e 746 do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais, o primeiro aludindo ao direito à moradia em geral, e o segundo,
disciplinando o desalijo forçado. Deflui do aludido Comentário no. 2, os atributos
do direito à moradia de que cogita a Convenção, a saber: 1) segurança da posse;
2) disponibilidade de serviços, materiais, instalações e infraestrutura; 3)
acessibilidade quanto ao preço47; 4) habitabilidade; 5) acessibilidade; 6)
localização e 7) adequação cultural.
Como se vê, dos atributos acima indicados se extrai que as pretensões
de localização próxima ao ponto de anterior ocupação, bem como aquela de
preservação da unidade social que antes convivia no local primário de ocupação
não se contém entre os atributos expressamente consignados do direito à
moradia que é objeto mesmo da cogitação ampliada do Comitê de Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais. Ainda que se pretendesse estender as
hipóteses sob exame a qualificação de “expulsão forcada” (o que só se admite
para fins de dialética), as recomendações constantes do Comentário Geral no. 7
do CESCR envolvem garantias procedimentais – e no que toca à substancia da
proteção em si à moradia, reportam-se ao regramento já contido no Comentário
Geral no. 4. Com isso se tem por clarificado que na perspectiva das teorias
afeitas a um mínimo obrigacional, as postulações veiculadas em “demandas
derivadas” expressam uma ampliação do grau de proteção ao direito
fundamental em debate – e não a tutela ao seu minimum core.
Melhor sorte não terá a aplicação à hipótese, da concepção expressa nas
chamadas teorias de consensos mínimos. Neste segmento teórico, busca-se a
45 UNITED NATIONS. Committee on Economic, Social and Cultural Rights (CESCR), General Comment No. 4: The Right to Adequate Housing (Art. 11 (1) of the Covenant), 13 December 1991, E/1992/23, available at: http://www.refworld.org/docid/47a7079a1.html [accessed 4 May 2016]. 46 UNITED NATIONS. Committee on Economic, Social and Cultural Rights (CESCR), General Comment No. 7: The right to adequate housing (Art.11.1): forced evictions, 20 May 1997, E/1998/22, available at: http://www.refworld.org/docid/47a70799d.html [accessed 4 May 2016]. 47 A expressão em inglês e affordability, e compreende a ideia da existência em si de um preço
– mas um preço que seja acessível aqueles que são os destinatários primários da referida moradia.
superação do vazio normativo, por um perceptível acordo generalizado em
relação ao que o grupamento social entenda como conteúdo daquele direito. A
lógica aqui presente se relaciona com a própria matriz de incorporação de um
direito humano, que parte de uma compreensão instintiva do grau de cuidado e
deveres recíprocos que se deva ter para com um ser humano como nós, para
alcançar a tradução na linguagem dos direitos. Esse processo não é simples, e
envolve a articulação de princípios que fluem dos valores morais inspiradores
dos direitos humanos, até se terem por efetivamente traduzidos em pertinência
subjetiva e obrigações especificas.48
A indicação de que consensos mínimos possam informar o minimum core
de um direito fundamental se harmoniza com o ideário de sua efetivação, que
pode eventualmente acontecer, ainda que no vazio normativo, impulsionada por
esse acordo geral identificado no corpo social. No tema especifico, ainda que se
possa pretender sustentar consenso mínimo em relação à proteção à moradia,
os elementos que corporificariam esse mesmo direito envolvem um juízo de
justiça distributiva – e esse objetivo exige critérios objetivos que não se tem por
clarificados no corpo social.
Aa “demandas derivadas” pretendem afirmar que integra o núcleo
essencial desse mesmo direito, um conjunto de atributos que não dizem respeito
exatamente à proteção contra ao desabrigo – mas a uma concepção de welfare
que, ainda que se possa pretender compreendida num ideal de moradia
adequada, não se pode afirmar suficientemente adensada para integrar um
quadro normativo em sentido estrito desse mesmo direito. Moradia no local que
se deseja, com os vizinhos que se deseja, desprovida de qualquer ônus é sem
sombra de dúvida um ideal – mas um ideal que não se pode afirmar contido no
conteúdo traduzido em direito judicialmente exigível, da proteção à moradia.
Restariam como alternativas argumentativas, a busca do enquadramento
destas reivindicações derivadas nas teorias associadas à chamada essência
normativa do direito em debate. Cuida-se aqui de teorias claramente afeitas a
uma matriz de orientação da delimitação de direitos sociais em favor da
suficiência. Uma vez mais, quando se tem em conta concepções relacionadas
ao atendimento às necessidades básicas de sobrevivência, parece claro que as
48 GEARTY, Conor Gearty. Against Judicial Enforcement, in _____. e Debating social rights,
USA: Bloomsbury Publishing, 2010, p. 15 e 18-19.
hipóteses de “demandas derivadas” pretendem avançar para além do chamado
minimum core. Derradeira opção compreensiva seria buscar amparo para as
referidas “demandas derivadas” nas teorias da essência normativa de caráter
valorativo – a saber, aqueles que identificam como cerne dos referidos direitos
fundamentais, a proteção à dignidade da pessoa. Esse tem sido o discurso em
abstrato das referidas demandas, que associam o valor dignidade como
essência normativa dos direitos fundamentais – portanto, a partir dessa mesma
dignidade, pretendem a proteção as postulações vazadas na inicial a título de
efetivação do minimum core.
O problema que se põe aqui em verdade, é que essa afirmação no plano
puramente teórico e abstrato pode culminar por determinar um círculo vicioso –
o núcleo essencial dos direitos fundamentais se definindo a partir da essência
normativa, que repousaria no valor de preservação da dignidade da pessoa, que
se vê assegurada pela proteção do núcleo essencial. Em que pese o caráter
sonoro da proclamação, o mero conceitualismo abstrato revela-se
predominantemente retórico, e pouco operacional para a oferta diária da
prestação jurisdicional49.
Mais ainda, esse raciocínio circular – de que o núcleo essencial se define
a partir da essência valorativa da dignidade, que se protege pelo núcleo
essencial – levaria à descaracterização do que seja, afinal, o minimum core.
Porque se tudo que se pode associar à preservação da dignidade da pessoa
constitui essência normativa, toda e qualquer postulação tendente a sua
promoção encontraria guarida no núcleo essencial. Essa não pode ser,
certamente, a compreensão, eis que toda a teoria de direitos fundamentais opera
a partir da lógica da existência de um núcleo duro, inegociável, e de uma outra
área de cogitação legal que contém as possibilidades de expansão do conteúdo
desse mesmo direito num dado sistema jurídico, dadas as condições históricas,
sociais, econômicas e geográficas de um determinado momento.
49 O conceitualismo abstrato falha na superação da incerteza normativa buscada pela adjudicação porque premissas relacionadas às capacidades e interações entre as instituições são indispensáveis para traduzir princípios constitucionais postos em abstrato em conclusões efetivamente operacionais (VERMEULE, Adrian. Judging under uncertainty. An institutional theory of legal interpretation. Cambridge, London: Harvard University Press, 2006, p. 2)
É neste contexto que a deferência para com as escolhas administrativas
se apresenta como uma adequada alternativa de solução – e essa a proposta
central do presente artigo.
Se a resposta à indagação acerca da possibilidade de extensão dos
atributos debatidos nas demandas derivadas ao núcleo essencial do direito
fundamental à moradia depende de uma avaliação acerca do que constitua a
essência normativa desse mesmo direito numa perspectiva predominantemente
valorativa; isso não pode se dar em decisões ad hoc, sem uma perspectiva
sistêmica e uma aplicação generalizada dessa mesma concepção de valor50 – e
isso só se pode verificar no plano da ação administrativa.
5. Deferência para com as escolhas administrativas: critério objetivo de
solução
O uso do critério da essência normativa valorativa para de definição do
que se entenda por núcleo essencial de direitos fundamentais – portanto, o que
admita a intervenção jurisdicional controladora – não é estratégia infensa a
críticas. A associação a um vetor valorativo permanente e consensual como a
dignidade, contribui para uma blindagem dessa mesma ideia de um minimum
core normativamente protegido de formulações contingentes.51 De outro lado, é
essa mesma pretensão de universalização e abstração no critério delimitador do
conceito de núcleo essencial, que o torna incapaz de responder a outras
indagações de caráter também valorativo, que concorrem no tema da
preservação do projeto dos direitos humanos. O principal deles, desconsiderado
na cogitação exclusivamente da dignidade como ideia-forca, é o da igualdade.
O projeto emancipatório contido na linguagem dos direitos humanos,
traduzido em alguma medida (mas não na integra) quando da sua incorporação
50 É ainda de Vermeule a observação de que falece ao Judiciário a coordenação interpretativa necessária a assegurar uma uniformidade instrumental a generalização do regime tido por aplicável na ausência de normatividade expressa. Coordenação de seus órgãos de atuação é princípio organizacional próprio da estrutura da Administração – e não do Judiciário, que ao revés, opera a partir da lógica da independência (VERMEULE, Adrian. Judging under uncertainty. An institutional theory of legal interpretation. Cambridge, London: Harvard
University Press, 2006, p. 129-132). 51 YOUNG, Katharine G. The Minimum Core of Economic and Social Rights: A Concept in
Search of Content. Yale J. Int'l L. 33 (2008): 113-175, p. 138.
aos direitos fundamentais52 contém uma tensão intrínseca entre o excesso de
generalização e de particularização. A proposta de uma prática emancipatória
que se aplique indistintamente a todos, opera a partir de estereótipos sobre
vítimas e violadores53, e reduz a possibilidade de consideração de
particularidades e variações nas posições subjetivas e nas molduras fáticas.54 A
aposta na generalização como atributo do discurso dos direitos fundamentais
ignora que a sua interdependência envolve igualmente uma dimensão de inter-
relação entre pessoas – seja pelos efeitos favoráveis que a proteção a “A” pode
gerar indiretamente a “B”55, seja pelo possível efeito contrário dessa mesma
interdependência.56
A particularização do discurso dos direitos humanos, de outro lado,
estimula o conflito interpessoal e a concorrência pela prioridade no seu
atendimento. Mais do que isso, a apropriação pessoal do discurso dos direitos
fundamentais desestimula o uso da arena política como sede de deliberação,
criando uma percepção subjetiva equivocada de que a tradução destas
pretensões no código do direito seja suficiente para garantir-lhes a efetividade57.
O eixo de solução para esse dilema entre particularização e
generalização, especialmente no plano muito concreto das políticas públicas em
52 É de Neuman a observação de que não obstante a relação de proximidade entre o sistema internacional de proteção aos direitos humanos, e a incorporação desses mesmos componentes no direito constitucional nacional; os sistemas não se confundem, embora devam necessariamente guardar uma relação de cross-fertilization. (Neuman, Gerald L. Human rights and constitutional rights: harmony and dissonance. Stanford Law Review (2003): 1863-1900). 53 MUTUA, Makau W. Savages, victims, and saviors: the metaphor of human rights. Harvard International Law Journal 42.1 (2001): 201-245. 54 KENNEDY, David. International human rights movement: part of the problem? Harv. Hum.
Rts. J. 15 (2002): 101-125, p. 111. 55 É de Scott a observação de que por força das relações de interdependência também entre as pessoas, a proteção aos direitos fundamentais de “A” (mãe, por exemplo, de criança portadora de deficiência) pode concorrer para o incremento das condições emancipatórias de “B” (no exemplo, o filho, não diretamente contemplado pela medida protetiva). SCOTT, Craig. Reaching Beyond (without abandoning) the category of" economic, social and cultural rights". Human Rights Quarterly 21.3 (1999): 633-660, p. 645-650 56 O efeito contrário no que toca à proteção aos direitos fundamentais se da quando a interpendência entre os sujeitos “A” e “B” envolva posições concorrentes, onde o favorecimento a “A” importa em restrições a posição de “B”. 57 Os riscos inerentes a essa visão mítica do direito, como capaz por si só, a partir de uma simples enunciação normativa, de promover transformação social é denunciado em SCHEINGOLD, Stuart A.. The politics of rights: lawyers, public policy and political changes,
USA: Yale University Press, 1974. O autor propõe uma visão mais crítica em relação a essa proposição, revalorizando a dimensão da política no projeto de materialização dos avanços perseguidos por uma enunciação normativa.
curso, parece ser o critério de justiça distributiva aplicado.58 Assim, a postulação
universal dos direitos humanos se vê temporariamente particularizada em favor
de um contingente especifico segundo um critério de justiça distributiva que
identifica nesse mesmo grupo de favorecidos, aqueles que o organismo social,
por seus meios de representação, decidiu priorizar. É esse mesmo critério de
justiça distributiva que ocasionará eventualmente a constatação de que as
circunstancias fáticas ou econômicas ou sociais se modificaram – o que permitirá
sua revisão, mantendo o dinamismo próprio dos direitos sociais.
Decidindo no plano da incerteza quanto a matriz normativa, o argumento
institucionalista já sugere a aplicação da deferência para com as escolhas
administrativas como o mecanismo de solução59. Afinal, na perspectiva de
arranjo institucional, é a Administração que se vê em melhor posição para um
desenho da estratégia generalizável que, segundo um critério distributivo,
especifique não só os destinatários primários das prestações positivas, mas
também o conteúdo obrigacional a ser atendido. A identificação do universo de
possíveis postulantes, e a exploração de alternativas estratégicas que possam
efetivamente dar resposta às necessidades especificas segundo um critério de
igualdade, essa é perspectiva privilegiada da Administração.
Observe-se que o desenho do critério de justiça distributiva aplicável na
construção das obrigações positivas reconhecidas como decorrentes do múnus
constitucional de conferir eficácia a direitos fundamentais é deliberação que
reclama necessariamente a interseção de estruturas democráticas de regulação.
Promover justiça distributiva é uma deliberação relacionada a arranjos sociais
que tornem vantagens econômicas acessíveis àqueles que em princípio, delas
não dispõe. Esse tipo de deliberação, indo diretamente ao centro das escolhas
acerca de um especifico arranjo social, certamente transborda o papel
puramente adjudicativo, e reclama o signo democrático.
Não é ocioso acrescentar que a distribuição que se virá a empreender em
cada hipótese pode expressar a manifestação de princípios orientados ao
suficientarianismo, prioritarianismo, até alcançar as proposições afinadas com o
58 WALDRON, Jeremy. Socioeconomic Rights and Theories of Justice. NYU School of Law, Public Law Research Paper 10-79 (2010). Disponível em
http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=1699898, acesso em 5 de maio de 2016. 59 VERMEULE, Adrian.
igualitarianismo60. Cada qual dos princípios expressa uma concepção de
sociedade e convívio coletivo substantivamente distinta – portanto, mais uma
vez, transborda os limites do que se possa desenvolver (ao menos de maneira
adequada) no campo da adjudicação.
O uso da deferência para com a escolha administrativa como critério para
o enfrentamento da questão remanescente – se a ampliação do âmbito de
proteção já ofertado em relação ao direito fundamental a moradia pode ser tida
por contida no núcleo essencial – favorece uma solução que opera a partir do
signo de generalidade. Mais ainda, a deferência para com a escolha
administrativa anteriormente manifesta previne os riscos de uma decisão que se
forma em favor da “vítima identificada” (os autores da demanda), não porque
essa seja a resposta sistemicamente adequada, mas pela tendência humana de
desenvolver empatia com esse igual, materializado na narrativa do feito judicial,
em detrimento das vidas estatísticas que se tem representadas em
contraposição, na postulação de outorga de tratamento igualitário.61
Aplicar a deferência para com as escolhas administrativas na discussão
travada em demandas derivadas, tendo os novos atributos pretendidos conferir
ao direito fundamental a moradia por excluídos do núcleo essencial protegido,
significa preservar uma coerência sistêmica, onde de um lado se preserva o que
já foi objeto de deliberação administrativa ou judicial; mas de outro lado se
prestigia o desenho institucional no que toca às estruturas habilitadas a
formulação de decisões regulatórias necessariamente generalizáveis e
equânimes.
Não é ocioso destacar – embora o argumento principal que aqui se está
a desenvolver seja de cariz funcional – que também na perspectiva substantiva,
os atributos pretendidos incluir como integrantes do núcleo essencial dos direitos
fundamentais nas “demandas derivadas” identificadas na casuística do Rio de
Janeiro não encontram guarida no plano internacional, como integrantes das
60 GLOBAL JUSTICE. in BEVIR, mark (ed.). Encyclopedia of Political Theory. Sage, 2010, [on line], disponivel em http://philpapers.org/archive/GILGJ, acesso em 4 de maio de 2016. 61 O efeito “vítima identificada”, que resulta no favorecimento daquele que se tem materialmente a frente, com suas particularidades, em detrimento do “vítima potencial” ou estatista, ainda que disso resulte uma injustificável relação de custo-benefício e fartamente noticiado na literatura dos sistemas de saúde pública. (JENNI, Karen, e LOEWENSTEIN, George. Explaining the identifiable victim effect. Journal of Risk and Uncertainty, 14.3 (1997):
235-257).
obrigações primarias dos subscritores do Pacto Internacional Sobre Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais. A UN-HABITAT no tema especifico do direito à
moradia adequada62, endereçou claramente alguns dos temas em discussão nas
“demandas derivadas”. Sob o título “concepções errôneas sobre o direito à
moradia adequada”, se tem estatuído que ele não exige do Estado construir
moradia para toda a sua população; que o direito à moradia adequada não se
confunde com o direito à propriedade, e finalmente, que ele não obsta projetos
de desenvolvimento que possam resultar no reassentamento de pessoas. 63
A proposta aqui defendida de aplicação do critério de deferência no que
toca às demandas derivadas, em nada diminui as possibilidades do controle do
poder, ou as a garantias inerentes aos direitos fundamentais. O que ela
preconiza é que direitos hão de ser entendidos como sistema, a ser efetivado
sob o signo da igualdade. A deferência para com a escolha formulada sob a
matriz da generalidade que é própria das políticas públicas é a que melhor serve
ao sistema em situações em que se tenha claramente acirrada a concorrência
entre pretensões de atendimento ao que inequivocamente expressa ainda o
patamar mínimo; e a postulação de ampliação do seu nível de proteção.
Não se está descartando totalmente a discussão em torno da escolha
administrativa previamente havida. Mas se o signo é de deferência, o ônus
argumentativo e probatório de que a ampliação pretendida integra o núcleo
essencial, e revela-se capaz de ser aplicado em grau de generalidade e
inteiramente do autor, e não se terá por atendido a partir da retorica, por mais
veemente que seja, da relevância dos direitos humanos.
6. Conclusão
62 UNITED NATIONS. UN-Habitat. The right to adequate housing. Fact Sheet n. 21/Rev. 1,
disponível em http://www.ohchr.org/Documents/Publications/FS21_rev_1_Housing_en.pdf, acesso em 6 de maio de 2016. 63 Essa mesma matriz compreensiva se tem por praticamente reproduzida em documento similar
originário da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República Brasil. Secretaria de
Direitos Humanos da Presidência da República Direito à moradia adequada. – Brasília:
Coordenação Geral de Educação em SDH/PR, Direitos Humanos, Secretaria Nacional de
Promoção e Defesa dos Direitos Humanos, 2013. Disponível em
http://www.sdh.gov.br/assuntos/bibliotecavirtual/promocao-e-defesa/publicacoes-
2013/pdfs/direito-a-moradia-adequada.
O incremento da curva de judicialização de direitos sociais tem proposto
ao Judiciário a difícil questão já referida neste texto, entre a particularização e a
generalização. Sua própria matriz original de funcionamento institucional
favorece a particularização, com a lógica adjudicativa do “dar a cada um o que e
seu”, a partir da perspectiva isolada do caso concreto. O problema está em que
a interdependência dos direitos fundamentais não se adapta perfeitamente a
essa lógica da análise e proteção ad hoc.
É preciso, portanto, construir matrizes de decisão que empreendam a
harmonização possível entre o caso concreto, e o sistema de direitos
fundamentais. As demandas derivadas, travestidas de caso concreto, pretendem
a modificação do sistema de proteção a estes mesmos direitos como hoje
concebido.
Proteção ao núcleo essencial associada a deferência para com as
escolhas administrativas nas demais hipóteses, e a matriz de solução que
harmoniza as duas dimensões do particular e do geral; protegendo a igualdade
sem descurar dos reclamos da individualidade. Essa foi a proposta aqui
desenvolvida.
O avanço dos limites de proteção aos direitos fundamentais e aspiração
legitima, e integra a própria essência da sua proposta emancipatória. Mas este
é de se dar no campo da luta política, onde as aspirações podem concorrer entre
si, num exercício mutuo de persuasão, até a formação do consenso possível.
Não se pode reconhecer a iniciativa individual do autor “A” ou “B”, o condão de
fixar a pauta política de ampliação dos limites do direito fundamental à moradia
como hoje protegido.