da literatura, do corpo e do corpo na literatura - derrida, deleuze e mostros no renascimento

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    DA LITERATURA, DO CORPO

    E DO CORPO NA LITERATURA:Derrida, Deleuze e

    Monstros no Renascimento

    Fernando Manuel Machado Arnaldo Pinto daSilva

    2007

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    Covilh, 2009

    FICHA TCNICA

    Ttulo: Da Literatura, do Corpo e do Corpo na Literatura:Derrida, Deleuze e monstros do RenascimentoAutor: Fernando Manuel Machado Arnaldo Pinto da Silva

    Coleco: Teses LUS OSOFIA: PRESSDireco: Jos Rosa & Artur MoroDesign da Capa: Antnio Rodrigues TomComposio & Paginao: Filomena S. MatosUniversidade da Beira InteriorCovilh, 2009

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    Universidade de voraDissertao de Mestrado

    Fernando Manuel Machado Arnaldo Pinto da Silva

    DA LITERATURA, DO CORPO EDO CORPO NA LITERATURA:Derrida, Deleuze e Monstros no

    Renascimento

    Orientadores:Prof. Dr. Hlio J. S. Alves

    Prof. Dr. Olivier Feron

    vora, 2007

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    ndice

    1 RESUMO 62 INTRODUO 93 O CORPO DA ESCRITA E A ESCRITA DO CORPO 13

    3.1 Escrita em Derrida . . . . . . . . . . . . . . . . . . 133.2 O corpo e a diffrance . . . . . . . . . . . . . . . . . 213.3 Escrita em Deleuze (e Guattari) . . . . . . . . . . . . 253.4 O corpo enquanto mquina . . . . . . . . . . . . . . 36

    4 O CORPO 424.1 As possibilidades do Corpo . . . . . . . . . . . . . . 424.2 A questo do Rosto . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49

    5 LITERATURA 545.1 Literatura e o lugar da verdade e do sentido . . . . . 565.2 Literatura e o lugar da experincia, da paixo e do

    testemunho . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 605.3 Literatura como mquina . . . . . . . . . . . . . . . 675.4 O corpo, a literatura e a arte como mediadora . . . . 70

    6 MONSTRO 816.1 O monstro enquanto phrmakon . . . . . . . . . . . 896.2 O monstro enquanto suplemento do homem . . . . . 92

    7 A METFORA 988 O RASTO DE ORIGEM 1129 LEITURAS 123

    9.1 O Mouro Velho . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1249.2 Adamastor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1479.3 O(s) Monstro(s) de Milton . . . . . . . . . . . . . . 166

    9.3.1 Monstros reais . . . . . . . . . . . . . . . . 167

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    6 Fernando M. M. Arnaldo Pinto da Silva

    9.3.2 Hipteses monstruosas . . . . . . . . . . . . 1769.3.3 Sero os nossos pais monstros? . . . . . . . 191

    10CONCLUSO 19811ANEXOS 20212B IBLIOGRAFIA 224

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    1 RESUMO

    Esta dissertao procura entender que relao existe, ou poder exi-stir, entre a Literatura e o Corpo, abordando vrios conceitos filos-ficos dos filsofos Jacques Derrida e de Gilles Deleuze, aplicados Teoria da Literatura e prtica de anlise de textos renascentistas.

    Nesse sentido aborda-se a figura do Monstro, como corpo privi-legiado, pela sua particular relao entre o Real e a Fico, uma vezque indica no s os limites como, tambm, as possibilidades empotncia do Corpo na Literatura.

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    8 Fernando M. M. Arnaldo Pinto da Silva

    Seremos o calar do corpo, a ele deixaremos os lugares, e sescreveremos, s leremos para abandonar aos corpos os lugares

    dos seus contactos.

    Jean-Luc Nancy

    A decifrao de uma vida passa por um corpo

    Joaquim Manuel Magalhes

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    No fim de contas, o que somos, o que cada um de ns seno umacombinatria, diferente e nica, de experincia, de leituras, de

    imaginaes?

    Enrique Vila-Matas

    Viam-se no vale, maiores que dois alfinetes, dois pilares que no eradifcil, e possvel ainda menos, tomar por embondeiros. Eram, com

    efeito, duas enormes torres. E, embora dois embondeiros no separeam primeira vista com dois alfinetes, nem mesmo com duas

    torres, no entanto, puxando com destreza os cordelinhos daprudncia pode afirmar-se sem medo de errar (. . . ). (. . . ) e quando

    comecei por comparar os pilares aos alfinetes com tantapropriedade (claro que no acreditava que viessem um dia

    censurar-me o facto), baseei-me nas leis da ptica, queestabeleceram que, quanto mais o raio visual est afastado de um

    objecto, mais diminuta a imagem se reflecte na retina.

    Isidore Ducasse, Conde de Lautramont

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    2 INTRODUO

    O que pode haver de comum entre a Literatura e o Corpo? Estafoi a questo principal que colocmos como fundo para a realizaoda presente dissertao. Paralela a esta questo surgiu-nos outra nodecorrer do percurso do nosso ano acadmico no Mestrado em Liter-aturas e Poticas Comparadas: o que o Monstro? O Monstro, comoveremos, um corpo significante catico e, ao contrrio de nos rep-resentar de forma (apenas) deformada ou como algo que transcendede algum modo a nossa compreenso, ele surge para nos limitar. Ele

    a est para indicar no s os nossos limites, mas as possibilidadesem potncia dos nossos corpos, do Corpo. A escrita sobre os mon-stros, ou a escrita de textos onde os monstros tm a importncia depersonagens, contribuem bastante para a compreenso do que umCorpo, como tambm criam pontes para a questo principal destadissertao, j que os monstros literrios encontram a sua fonte deinspirao no Real. Mas, por conseguinte, outra questo se ergue:como se representa um Monstro?

    Para responder a estas perguntas servimo-nos principalmente dedois filsofos, Gilles Deleuze e Jacques Derrida, que se debruaram

    sobre a Literatura, o Corpo e a outros conceitos inerentes a estes dois,bem como nos servimos de textos renascentistas, nos quais o Monstrotem um papel importante. Abordmos igualmente outros filsofos einvestigadores pela sua pertinncia aos temas em questo.

    Sugerindo j uma resposta ao tema de fundo, pensamos que entre

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    Corpo e Literatura se jogam vrios conceitos. O primeiro de todos a Escrita. Como numa possvel oposio binria entre Naturezavs. Cultura, os horizontes dos conceitos Corpo e Literatura no seconfrontam. As suas fronteiras comunicam-se, partilham-se atravsda escrita, onde se transicionam questes como a presena, a ausn-cia, a metfora, a representao, o dentro, o fora, etc. Se, contudo,a escrita (no seu sentido mais geral) se presta a servir de meio paraestas transaces, estas transferncias ou tradues, ela prpria se

    revela problemtica contendo em si estas mesmas questes.Por outro lado e a partir de um texto de Maria Augusta Babo,

    onde podemos ler que se o corpo no linguagem mas espao dasua inscrio, ele estar, desde logo, ex-posto s mltiplas inscriesdos vrios cdigos que nele se vm alojar (Babo, 1990: 8. Sublin-hado da autora), pensamos que a noo de Experincia igualmenteum conceito fulcral na relao do Corpo e da Literatura. Mas comoentendemos o que a experincia?

    Tomamos a experincia como um Acontecimento, um aqui e ago-ra vivido por um corpo, um instante que se escreve no corpo sem que

    ns tenhamos um conhecimento imediato. um instante de recepotemporal e espacial de afeces e percepes sem mediao da con-scincia pensamos, alis, que no existe separao entre corpo emente. A tomada de conscincia, por ser to rpida, parecer imedi-ata, mas encontra-se sujeita a uma diferenciao e a um diferimento(temporal e espacial), os quais potenciaro o entendimento e conhec-imento da e sobre a experincia.

    Cremos que pensando sobre a(s) sua(s) experincia(s) que oautor constri a sua imaginao, o jogo da linguagem, que d in-cio escrita, literatura, ao conhecimento do seu corpo. Contudo,

    tambm a escrita, a leitura, a conscincia do seu corpo, so exper-incias. H por isso, pensamos, toda uma rede de experincias (as-sim como Derrida fala de uma rede metafrica, no seu texto Mitolo-gia Branca (s.d.)) que no s se apresentam como singularidades e que constantemente construiro a impossvel de se abarcar, con-

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    struir e definir na totalidade, identidade e presena de um corpo como tambm esto sujeitas ao conceito de diffrance derrideano.Esta rede de experincias ser aquilo que nomearemos mais adiantede Somatografia, isto , uma escrita das experincias (singularidadesdiferenciadas e diferidas) num Corpo (entendido como physis-psyche como um Uno-Mltiplo) que potenciam e concebem novos mundospelo escritor (a sua escrita, a sua literatura, as suas personagens, odevir si-prprio e de todos estes conceitos e corpos).

    De modo a responder e clarificar as dvidas que estas perguntascolocavam o tema da dissertao, como a escrita e qual a suaimportncia, qual a importncia da experincia para a criao arts-tica, o que e como se representa um monstro foi necessrio esta-belecer um campo e encontrar os conceitos que nos pareceram maisrelevantes (alguns deles j apresentados neste pargrafo anterior).

    Para isso, sentimos necessidade de dividir este trabalho em vrioscaptulos e sub-captulos, de modo a permitir uma mais fcil leiturados conceitos, as suas aplicaes e as suas adequaes aos problemasaqui tratados. Tentmos, onde nos foi possvel, tornar os conceitos e

    questes concretos e evitar a demasiada abstraco dos mesmos.O primeiro passo, que se concretizou com o 1, foi constituir a

    Escrita como ponto de encontro do Corpo e da Literatura. H umcorpo que escreve, e o que escrito ir-se- introduzir na literaturacomo um corpo. Mas o que a Escrita? No 1.1 analismos aquesto a partir de Derrida, relevando a oposio Fala/Escrita e osconceitos de diffrance, rasto e arquiescrita. De seguida, no 1.2,tratmos a questo do corpo a partir da diffrance, como conceito,para ns, principal na investigao da experincia e do Corpo e con-cretizado na ideia de Somatografia.

    A mesma separao foi aplicada em Deleuze. Analismos o con-ceito de escrita relevando a importncia da definio deleuzo-guatta-riana de conceito, dos agenciamentos colectivos de enunciao e daslnguas maiores e menores (1.3), e depois a questo do corpo en-quanto mquina (1.4).

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    De modo a melhor fundamentar e explicar os conceitos principaisda tese, o 2 centrou-se volta do Corpo, as suas possibilidades e osdevires (2.1) e o Rosto como subjectivao do autor e das person-agens (2.2), enquanto que o captulo que respeita a Literatura (3),estruturou-se volta de algumas questes que nos parecem ligarem-se ao corpo e ao monstro, tais como o lugar do sentido e da verdade(3.1), o lugar da experincia, da paixo e do testemunho (3.2),a ideia deleuzo-guattariana da literatura como mquina (3.3) e a

    funo da arte como mediadora entre o Corpo e a Literatura (3.4).De seguida tratmos o Monstro no 4, apresentando-o comophr-

    makon (4.1) e como suplemento do homem (4.2) ligando-o prob-lemtica da Metfora no 5, comparando as investigaes de Ricure de Derrida, bem como as relaes da metfora com o corpo, e oMonstro como metfora do limite do homem.

    Por fim, no 6, evidencimos o problema da origem, de comoconceitos como Bem e Mal, entre outros no seio da dissertao (efora dela), no se podem separar, e as possibilidades da utilizaoda teoria dos regimes semiticos de Deleuze e Guattari no estudo de

    textos literrios. Terminmos a tese analisando alguns monstros doRenascimento, tais como o Mouro Velho, o Adamastore outros quesurgem no poema de John Milton Paraso Perdido (sub-captulos do7).

    Para terminar, no poderamos esquecer de deixar por escrito osnossos sinceros agradecimentos a quem so devidos: Selma San-tos (companheira, primeira leitora e crtica de qualquer texto que es-crevemos), famlia (pelo apoio), ao Tiago de Faria, Eduardo Gama,Carlos Alberto Machado, Rui Cancela e muitos mais (amigos, leitoresatentos e interessados nesta pesquisa) e, claro est, aos meus orienta-

    dores Prof. Dr. Hlio Alves e Prof. Dr. Olivier Feron (pelo trabalhode orientao, pelas crticas e ajuda, e por acreditarem nas nossas

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    capacidades).

    3 O CORPO DA ESCRITA E AESCRITA DO CORPO

    3.1 Escrita em Derrida

    Como do conhecimento geral, o maior e mais produtivo contributodo lingusta Saussure foi a sua descrio de signo. O signo seria um

    composto de duas partes: o significado, a imagem mental ou con-ceito, e o significante, a representao grfica ou verbal (fontica).Assim, o signo ao mesmo tempo conceptual e material, sentido esom, esprito e carne, por assim dizer. A relao entre significado esignificante casual, arbitrria, uma vez que entre os dois a ligaono natural mas condicionada por convenes1 que no podem sermodificadas vontade por qualquer indivduo falante. Mas se, porum lado, o vnculo entre significado e significante se realiza por umconjunto de regras, leis, convenes, por um acumular de camadasalheias ao indivduo, por outro lado, o contrato colectivo torna-se

    natural

    2

    .1 Barthes, 1997: 42. (...) a associao do som e da representao fruto deuma educao colectiva.

    2 Ibid.: 43. Cl. Lvi-Strauss precisa que o signo lingustico arbitrrio apriori mas no arbitrrio a posteriori.

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    Mas por que razo a relao interior, o vnculo que liga o conceitoe a representao arbitrria? Para Saussure o que era relevante noestudo da linguagem no dependia nem da histria (a diacronia)nem da realidade (o referente), mas aquilo que fazia com que umsigno, na sua estrutura sincrnica, no fosse tomado por outro, isto, um sistema diferencial3 de relaes. Sabemos que Saussure opeLngua e Fala como o problema fulcral para a Lingustica, no en-tanto Derrida, para desenvolver a sua tese da Gramatologia, transfor-

    mou essa oposio em Fala e Escrita. A questo agora ser entender,perceber e compreender as suas razes luz da desconstruo.

    O que a desconstruo? Em poucas palavras, trata-se de umaestratgia de leitura, profunda e atenta, da construo dos argumentosque estruturam um texto, procurando identificar as operaes retri-cas que conduzem qualquer leitor ao conceito chave desse mesmotexto. Essas operaes retricas estabelecem hierarquias de termos,fazendo com que um seja dominante e o outro dominado, um o centroo outro o marginalizado. Num primeiro passo, inverte-se essa hier-arquizao demonstrando como o termo marginal pode ser o centro.

    Essa no a inteno final, pois deste modo cairamos novamentenuma nova hierarquia. O que a desconstruo acaba por realizar, nofim da sua leitura, uma destruio da oposio primeira horizon-talizando os termos na qual as suas posies j no se apresentamsecundarizadas ou devedoras uma da outra. Assim, esta estratgiaabre o horizonte de sentidos, no acto da leitura, nunca permitindo acentralizao de figuras.

    Grande parte das leituras desconstrutivistas, como as presentes noGramatologia (2004a) ou A Voz e o Fenmeno (1996), identificam asoposies de conceitos que configuram as operaes retricas dos

    textos filosficos (e literrios, tambm) no seio do logocentrismo,3 Esta noo de diferena ser um dos conceitos chave tanto de Derrida como

    de Deleuze, com resolues diferentes em cada um, noo que daremos especialateno em Derrida. Cf. Derrida, 2001a e 2004a; Deleuze, 2000. Esta obra deDeleuze no foi abordada no presente estudo, mas indicamos a sua referncia umavez que um livro essencial para o conhecimento do pensamento deste filsofo.

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    isto , uma das faces do pensamento filosfico ocidental desde Platoat aos nossos contemporneos, no qual o mundo visto como umacomplexa rede de binrios opostos hierarquizados, tais como alma ecorpo, imaterial e material, bem e mal, homem e mulher, presena eausncia, etc.

    Ora, quando Derrida substitui Lngua/Fala por Fala/Escrita no sse empreende numa oposio e um confronto contra Saussure como,tambm, contra a histria da metafsica ou o logocentrismo. Con-

    fronto e substituio permitida pelo prprio lingusta suo quandoreflecte sobre a escrita-fontica4, pois Derrida encontra subordinada aesta oposio binrios opostos: Natureza/Cultura, presena/ausncia,vida/morte, esprito/corpo, interior/exterior; apesar do esforo de Saus-sure de abandonar os conceitos metafsicos no estudo da lingustica(vd. Derrida, 2004a: 40).

    Na Lngua a relao entre Fala e Escrita, comeando talvez noFedro de Plato, sempre foi entendida como no-natural e de de-pendncia de uma em funo da outra. Segundo Derrida, o priv-ilgio da Fala, da phon, corresponde a um dado momento histrico

    que proporcionou a organizao do mundo e o estar do homem nomundo. Inaugurou o acontecimento do homem enquanto ser pre-sente, enquanto presena e, ao mesmo tempo, a diferena agregada noo de presena, a ausncia. Esse privilgio , por exemplo, visvelna ideia de monlogo, uma vez que joga no s no limiar da ausnciaplena de um outro mas, tambm, no perptuo contacto consigo pelapresena de si a si, enquanto auto-afeco pelo ouvir-se-falar5.

    4 Derrida, 2004a: 41. Citando Saussure: Conquanto a escrita seja, por si,estranha ao sistema interno, impossvel fazer abstraco de um processo atravsdo qual a lngua ininterruptamente figurada; cumpre conhecer a utilidade, os

    defeitos e os inconvenientes de tal processo.5 Ibidem.: 9. O sistema do ouvir-se falar atravs da substncia fnica que se d como significante no-exterior, no-mundano, portanto no-emprico ouno-contingente teve de dominar durante toda uma poca a histria do mundo,at mesmo produziu a ideia de mundo, a ideia de origem do mundo a partir dadiferena entre o mundano e o no-mundano, o fora e o dentro, a idealidade e a

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    Atravs da voz, da phon, da Fala, portanto, esta auto-afecoconquista um valor prximo da pureza pelo seu lugar no interior docorpo, podendo dispensar o exterior e aproximar-se da transcendn-cia, da idealidade onde significante e significado se encontrariamnum estado de plena (ou quase plena) naturalidade entre si. Diz-nosmesmo Derrida que, idealmente, na essncia teleolgica da palavra,seria, pois, possvel que o significante fosse absolutamente prximodo significado visado pela intuio e guiasse o querer-dizer. O sig-

    nificante tornar-se-ia perfeitamente difano precisamente devido proximidade absoluta do significado. Esta proximidade rompidaquando, em vez de ouvir-se falar, eu me vejo a escrever ou a co-municar por gestos (1996: 96). Neste sentido, a Fala encontrar-se-ia numa posio privilegiada da escrita, numa posio imanente alma, ao pensamento enquanto logos, mais prximo do Sentido,possibilitando Fala uma relao de traduo ou de significaonatural (id; 2004a: 13). A Fala teria ento uma relao de imediatezcom o significante, de interioridade prxima da verdade do Signo,enquanto a Escrita lanada para o lado exterior, da representao,

    da duplicao, do mediato.Como vimos, Saussure no se encontra no territrio da pura e

    dura Metafsica, no joga com a linha da fronteira desta separao.A distino realiza-se na clivagem entre o natural e a tcnica, emboraprxima das definies de Plato e Aristteles, no que respeita falae escrita fontica6. Para Saussure a Fala j se apresentava como umaunidade de sentido e de som, era j unidade de significado e signif-icante, a palavra falada era j uma unidade de conceito e represen-tao verbal (som), passando a Escrita a ser o fora, a representao

    no-idealidade, o universal e o no-universal, o transcendental e o emprico, etc.

    Sublinhado do autor.6 Ibid.: 37. Lembremos a definio aristotlica: Os sons emitidos pelavoz so os smbolos dos estados da alma, e as palavras escritas, os smbolos daspalavras emitidas pela voz. Saussure: Lngua e escrita so dois sistemas distintosde signos; a nica razo de serdo segundo representaro primeiro. Sublinhadodo autor.

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    cerco da sua crtica a Saussure e esbate a separao da Fala e Es-crita. Assim como ao nvel do significante os signos diferenciam-sede outros (vaca, maca, laca, etc.), afastando o significante de umantima correspondncia com o sentido, tambm o significado estimerso num sistema de diferenas. As identidades, tanto do signifi-cante como do significado, nascem das diferenas e a escrita possi-bilita de forma directa tornar notrio o jogo das diferenas, uma vezque esse jogo das diferenas que se encontra na Fala como o da

    Escrita, isto , a Fala uma escrita. importante, neste momento,fazermos uma pausa e prestarmos ateno a uma outra perspectivadesta questo da Fala como escrita, reportando-nos a um outro textoderrideano: A Farmcia de Plato (Derrida, 1997)9.

    Este texto analisa, no Fedro de Plato, os binrios opostos defala/escrita, logos/mythos, entre outros. Partindo da leitura do mitode Thoth (deus da escrita, das cincias, dos nmeros e da medic-ina), contado por Scrates a Fedro, Derrida desconstri o termo phr-makon, que de certa forma estrutura o dilogo platnico. Esta palavradever-se-ia traduzir por remdio, veneno, droga, filtro, etc.

    (ibid.: 16) e aqui surge ento o problema para a desconstruo.Scrates/Plato identifica(m) a escrita com o phrmakon e com

    esta identificao cola-se ao conceito de escrita toda uma maldio.A escrita mentira, ausncia, morte, engano, uma repetio oca dosaber (i.e., sem o saber), local do esquecimento, o phrmakon [aescrita] contraria a vida natural (ibid.: 47). Do lado oposto, a Fala,encontramos, claro est, o phrmakon do phrmakon, toda ela ver-dade na sua proximidade com o logos, presena de si em relao aooutro e presena da verdade, vida, saber, memria. Mas o prpriotermo phrmakon extremamente ambivalente, o lado mau deste

    conceito pode ser virado para a fala, e a escrita pode transformar-seno local do saber, numa presena distante, uma morte viva, o rem-dio para as falhas da fala. O phrmakon est na fala como na es-crita, o phrmakon coloca a escrita ao lado da fala, promove a sua

    9 Este texto integra originalmente o volume Dissmination.

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    coincidncia:Se o phrmakon ambivalente, , pois, por constituir o meio

    no qual se opem os opostos, o movimento e o jogo que os relacionamutuamente, os reverte e os faz passar um no outro (alma/corpo,bem/mal, dentro/fora, memria/esquecimento, fala/escrita, etc.) (. . . ).Ele a diferncia10 da diferena. Ele mantm em reserva, na suasombra e viglia indecisa, os diferentes e os diferidos que a discrimi-nao vir a recortar. (ibid.: 74-75).

    Embora apresentando de forma diferente a relao da Fala/Escritaa partir do Fedro e desconstruindo o conceito phrmakon, Derridavai aos poucos e poucos assegurando o seu argumento de que a fala uma Escrita. Em Plato a fala mais prxima da vida, da presenafsica do indivduo na transmisso de ideias. Ora, se considerarmosescrita como a inscrio de ideias comunicadas na conscincia deum outro e a conscincia como um material fsico, a fala, por serde acordo com Plato uma inscrio fsica na alma do ouvinte, uma escrita. Na Fala, como na Escrita, existe um espaamento, umatraso, um adiar ou mesmo uma discrepncia do que imaginado

    como ideia original e o que depois dito/escrito. Esta leitura descon-10 Diffrance no original. Neologismo derrideano, de grande importncia no seu

    pensamento, devedor do conceito de signo em Saussure. Vrias so as traduesdeste conceito, como por exemplo diferncia de Maria Beatriz Marques Nizza daSilva e utilizado pelos tradutores na Gramatologia, Miriam Chnaiderman e RenatoJanine Ribeiro; diferana proposto por Joaquim Torres Costa e Antnio M. Maga-lhes no volume Margens da Filosofia; ou diferncia de Maria Margarida CorreiaCalvante Barahona em Posies. Pensamos ser mais correcto, exceptuando no casodeste excerto, a utilizao do termo no original pela impossibilidade da lngua por-tuguesa em resolver o obstculo no jogo da semelhana fontica/alteridade grficaque para Derrida decisivo. Apresentamos aqui uma sucinta descrio do queesse conceito significa: Diffrance (from the verb diffrer, meaning both to differand to defer) is a Derridean neologism referring to a differentiation which he alsoterms spacing, and which prevents any sign from having a self-enclosed identity.

    Diffrance is the unresolved deferral of the identity one might have ascribed to aparticular term: an entirely fixed meaning (...) never definitively arrives. Meaningendlessly differs, and any original presence of meaning is endlessly deferred(Deutscher, 2005: 31).

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    conscincia como as da inconscincia, sem nenhuma predominnciade uma sobre a outra, ao contrrio do pensamento metafsico e dealguma fenomenologia18.

    No prprio jogo destas duas foras, a conscincia e a inconscin-cia, age a diffrance como fora, mas a prpria fora nunca estpresente: ela no mais do que um jogo de diferenas e de quanti-dades. No haveria fora em geral sem a diferena entre as foras;e aqui a diferena de quantidade conta mais do que o contedo da

    quantidade, do que a grandeza em absoluta em si mesma (Derrida,s.d.: 50).

    Um Corpo nunca o mesmo, a sua identidade sempre diferidaem cada experincia e a somatizao constante dessas experinciasde diferentes foras e intensidades faz o Corpo19. Mesmo a presenae ausncia no so oposies no jogo da diffrance. No aconteci-mento da diffrance a nossa identidade, enquanto presena frente aum outro, sempre diferida/diferenciada pela identidade do outro(e vice-versa), sempre marcada pela ausncia do que foi presenaantes do acontecimento. Assim como a identidade sempre o so-

    matrio das diferenas passadas e futuras, a presena tem em si amarca da ausncia do que foi e do que vir; para ser presena, ela,deve passar por uma fase de devir-ausncia, isto , a presena s presena porque ocupou o lugar da sua prpria ausncia no acon-tecimento (o que poderamos chamar de uma somatografia no seuaparecer exterior, presena como escrita do corpo no espao), pre-

    18 Derrida, s.d.: 49. O privilgio atribudo conscincia significa pois o priv-ilgio atribudo presena; e mesmo se se descrever, profundidade em que o fazHusserl, a temporalidade transcendental da conscincia, ao presente vivo quese atribui o poder de sntese e de reunio incessante dos rastos. / Este privilgio oter de uma metafsica, o elemento do nosso pensamento enquanto prisioneiro dalngua da metafsica.

    19 Id. 1996: 98. Este movimento da diffrance no se verifica num sujeitotranscendental. Produ-lo. A auto-afeco no uma modalidade de experinciaque caracteriza um ente que seria j ele prprio (autos). Produz o mesmo comorelao a si na diferena consigo, o mesmo como o no-idntico. Sublinhado doautor.

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    Por essa mesma razo o pensamento (a fala, a escrita, etc.) no omesmo que no sculo passado, no Renascimento ou na AntiguidadeClssica: so outros corpos e outras imagens de pensamento. Osconceitos no nascem no plano de imanncia mas com a filosofia, en-quanto o plano a prpria instaurao da filosofia: um movimentoduplo como pensar e ser. O plano, dizem os autores, pr-filosfico:

    Pr-filosfico no quer dizer nada que preexista, mas qualquercoisa que no existe fora da filosofia, embora esta suponha que sim.

    So as suas condies internas. O no-filosfico talvez esteja mais nocerne da filosofia do que a prpria filosofia e significa que a filosofiano pode contentar-se em ser compreendida de maneira filosfica ouconceptual, tem de se dirigir tambm aos no-filosficos, na sua es-sncia. (ibid.: 41)

    Este pr-filosfico traz-nos mente aqueloutro conceito derri-deano, arquiescrita, que joga contra a questo da escrita lanada parafora, e ser fora, da fala, na maneira como a arquiescrita apresen-tada como condio interna tanto da escrita como da fala (nuncacomo origem), como a ideia da escrita est mais prxima da fala

    do que a fala de si prpria. Mas no so a mesma coisa. Dois corposdiferentes, dois pensamentos diferentes. E isso ainda mais evi-dente quando Deleuze e Guattari concebem a criao de personagensconceptuais, a par da criao dos conceitos, ou a importncia dos de-vires no Corpo25 como caminhos sempre percorridos pelo homemquando pensa, escreve, compe, age26.

    As personagens conceptuais so os vrios discursos que expemos conceitos, como tambm se podem considerar como personagensmas apenas dos discursos filosficos (como Scrates e Fedro, por ex-emplo). Deleuze e Guattari estabelecem uma enorme diferena entre

    25 Veremos mais adiante a permanncia da maiscula na apresentao destanoo de corpo, quando falarmos do Corpo sem rgos (CsO) como um corpo

    j no separado em physis e psychmas physis-psych.26Ibid.: 42. que no pensamos sem nos tornarmos uma outra coisa, qualquer

    coisa que no pensa, um animal, um vegetal, uma molcula, uma partcula, queregressam ao pensamento e o voltam a lanar.

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    amor pode ser representado por um corao atravessado por umaflecha, por uma unio de almas, etc. (ibid.: 19), mas quando umdeles diz ao outro um simples amo-te, o seu enunciado expressaum atributo no corporal dos seus corpos. Ou, por exemplo, no mo-mento de defender esta tese, na sala estaro presentes vrios corpos(o meu, o dos meus orientadores, os arguentes, testemunhas, etc.),todos em estados diferentes de paixes (nervosismo, confiana, ex-pectativa, dvida, etc.) momento esse que pode ser representado por

    um tribunal, um cadafalso, A Lio de Anatomia de Doutor NicolaesTulp de Rembrandt, etc., mas quando um dos arguentes disser Oque quis dizer com. . . ns estaremos perante uma transformaoincorporal.

    A transformao, o acto, um Acontecimento32, um hic et nuncdatado que fora das circunstncias em que se deu j no ser o mesmo,porque ns prprios j no seremos os mesmos numa ou noutra cir-cunstncia de enunciao33. Deste modo, todos os enunciados eactos so dependentes das mltiplas situaes em que estes se po-dem dar, isto , a mistura dos vrios corpos sujeitos a diferentes

    aces e paixes, a diferentes espaos e tempos, tudo isso so var-iveis que modificam um mesmo enunciado. A reunio destas var-iveis fazem o agenciamento de enunciao, que poder transformar-se num regime de signos ou mquina semitica.

    Uma sociedade composta por vrias semiticas, gerando novaspalavras de ordem, podendo ou no formar-se como regime; comotambm composta de vrios regimes mistos. A razo pela qual aspalavras de ordem sero redundantes (a tautologia da linguagem queindicmos) encontra a sua resposta no s na sua transmisso, mas

    32Ibid.: 19. A transformao incorprea reconhecida por sua instantaneidade,

    por sua imediaticidade, pela simultaneidade do enunciado que a exprime e do efeitoque ela produz.

    33 Ibid.: 21. A palavra de ordem , precisamente, a varivel que faz da palavracomo tal uma enunciao. A instantaneidade da palavra de ordem, a sua imediati-cidade, confere-lhe uma potncia de variao em relao aos corpos aos quais seatribui a transformao.

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    desde a sua emisso e em si mesma, o que justifica, para os autores,o discurso indirecto como expresso de qualquer agenciamento deenunciao:

    O discurso indirecto a presena de um enunciado relatado numenunciado relator, a presena da palavra de ordem na palavra. todaa linguagem que discurso indirecto. Ao invs de o discurso suporum discurso directo, este que extrado daquele, medida que asoperaes de significncia e os processos de subjectivao num agen-

    ciamento se encontram distribudos, atribudos, consignados, ou medida que as variveis do agenciamento estabelecem relaes con-stantes, por mais provisrias que sejam. O discurso directo um frag-mento de massa destacado, e nasce do desmembramento do agencia-mento colectivo; mas este sempre como o rumor onde coloco o meunome prprio, o conjunto das vozes concordantes ou no de onde eutiro a minha voz. Dependo sempre de um agenciamento de enunci-ao molecular, que no dado na minha conscincia, assim comono depende apenas das minhas determinaes sociais aparentes, eque rene vrios regimes de signos heterogneos. Glossollia. Escr-

    ever talvez trazer luz esse agenciamento do inconsciente, selec-cionar as vozes sussurrantes, convocar as tribos e os idiomas secretos,de onde extraio algo que denomino Eu [Moi]. EU [JE] uma palavrade ordem. (ibid.: 23-24)

    O nosso corpo apresenta-se-nos assim como que uma enormegeografia, com elevaes e depresses, zonas quentes, frias e tem-peradas, zonas solitrias e desrticas, e campos e cidades populosashabitadas pelas palavras de ordem, por discursos indirectos34.

    Continuamos, porm, ainda na dvida do porqu das palavras deordem. que a lngua acima de tudo uma instituio de poder,

    do poder. A lngua institui-se por uma centralizao, homogeneiza-o, uma padronizao dos mltiplos agenciamentos de enunciaotornando-se como que um enorme territrio35, e dizemos enorme

    34Ibid.: 14. A linguagem um mapa e no um decalque.35 Ibid.: 46. A unidade de uma lngua , antes de tudo, poltica. No existe

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    porque cada agenciamento por si s um territrio.Como referimos, os agenciamentos compem-se de misturas de

    corpos e transformaes incorporais e Deleuze e Guattari identificam-nos, respectivamente, como contedos e expresses36. Estes con-ceitos indicam duas formas independentes entre elas. As expressesno representam os contedos, intervm sobre estes, inserem-se noscontedos e, por sua vez, os contedos na expresso. Os conte-dos, ligados ideia de mistura de corpos, apresentam a forma mo-

    ferramenta, ou a lio das coisas (ibid.: 26); enquanto as expresses,as transformaes corporais, formalizam-se como rosto-linguagem,a lio dos signos (ibid.: 26).

    Tanto a lio das coisas como a lio dos signos referem-se aoscorpos, aos corpos agidos e aos corpos ditos. Comeamos, timi-damente, a entrever a complexidade desta filosofia: a lngua umgrande Agenciamento, um territrio inteiramente ocupado por umamquina abstracta; anexado a ela ou constituindo-a, como engrena-gens dessa enorme mquina que um territrio, outras mquinas;pelo territrio, por todas as mquinas passam fluxos codificados e de-

    scodificados que ligam e cortam a ligao das mquinas s mquinas;as circunstncias e variveis que tnhamos referido surgem como var-iveis de contedo (que so propores nas misturas ou agregadosde corpos (ibid.: 29)) e variveis de expresso (que so factoresinteriores enunciao (ibid.: 29)); estas mesmas variveis podemformar linhas de fuga no seio do territrio, criar uma desterritorial-izao formando os tais regimes de signos ou mquinas semiticas.

    Por outro lado, o poder da mquina abstracta da lngua tal quepode mesmo reterritorializar essa desterritorializao (isso visvel,por exemplo, na grande Mquina Abstracta de Cultura, que sur-

    preendida por vrias linhas de fuga, escritores, pintores, cineastas,lngua-me, e sim tomada de poder por uma lngua dominante, que ora avanasobre uma grande frente, ora se abate simultaneamente sobre centros diversos.

    36 Estamos, de facto, perante os conceitos de Louis Hjelmslev, mas, como ver-emos, estes conceitos ganham contornos um pouco diferentes dos compreendidospelo lingusta.

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    vanguardas, que constroem grandes continentes desterritorializados,mas que terminam inevitavelmente reterritorializados). O interessepara estes autores, de facto, encontra-se na apresentao e demon-strao de como funcionam os vrios mecanismos e, atravs dessaspeas, continuamente procurar a linha de fuga para as percorrer. Nessesentido, pretendem reconhecer processos ou elementos lingusticosdesterritorializantes como o estilo ou tensores que permitem a vari-ao das variveis (por exemplo, o e . . . e) e, deste modo, criar lnguas

    dentro da lngua e/ou evolu-la. assim que, na relao lngua-fala(que conjuntamente englobe a escrita), a fala conquista uma predom-inncia sobre a mquina pelo seu poder de variar, de evolucionar alngua37.

    Conquanto esta mquina seja uma instituio de poder necess-rio evidenciar o poder dos corpos, essas outras mquinas que a com-pem, que a singularizam sem nunca a tornar individualizada, isto ,um indivduo singulariza a lngua mas o indivduo sempre porta-dor e transmissor ou emissor de um enunciado colectivo38. Tendoem ateno estes aspectos da lngua, Deleuze e Guattari determi-

    nam dois possveis tratamentos da lngua no que respeita manip-ulao das variveis. De uma parte aquele do qual se extraem con-stantes, que territorializa ou reterritorializa, que encerra a lngua (asregras obrigatrias), noutra parte aquele que pe a lngua em fuga,em desvario, em constante variao (as regras facultativas). Essestratamentos fazem com que a lngua se apresente como lngua maiorou lngua menor, sendo a ltima, pela linha de fuga que traa, aquelaque mais interessa estes autores. A lngua menor comporta tanto

    37 Ibid.: 43. A agramaticalidade, por exemplo, no mais uma caractersticacontingente da fala que se oporia gramaticalidade da lngua; ao contrrio, a car-

    acterstica ideal da linha que coloca as variveis gramaticais em estado de variaocontnua.38 Ibid.: 45. A mquina abstracta sempre singular designada por um nome

    prprio, de grupo ou de indivduo ao passo que o agenciamento de enunciao sempre colectivo, no indivduo como no grupo. (. . . ). Nenhum primado do indiv-duo, mas indissolubilidade de um Abstracto singular e de um Concreto colectivo.

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    cariz holstico relao do Homem com tudo o que o rodeia, o que ofaz ser o que , o que produz, o que recebe; faz com que tudo se co-munique (comunicao no no sentido lingustico do termo, uma vezque, como j vimos no 1.3, no h informao mas direco, orde-nao). Comunicao como passagem, como ligao, conexo entrepartes, no havendo lugar a independncias, a mecanismos solitrios.Sendo tudo mquinas, o que os dois autores pretendem avaliar a suaproduo e o seu funcionamento maqunico.

    De facto, o que apenas existe produo e produo de trs tipos:produo de produes, produo de registos e produo de con-sumos. A primeira produo trata as aces e reaces, a segunda adistribuio e referncias, a terceira os afectos e perceptos. Seguimosa par e passo a lei de Lavoisier, na Natureza nada se perde tudose transforma. Por outro lado, Deleuze e Guattari promovem umanoo alterada da realidade do Homem e da Natureza, bem como dohomem/homem e de si a si. J no existe separao de essncia entrehomem e natureza, pois ambos so produtores, o homem deixa de serum criador para passar a ser a mquina que pe a funcionar todas as

    outras mquinas (o eterno encarregado das mquinas do universo)(ibid.: 10).

    A primeira instncia das mquinas, de todas as mquinas, seremmquinas desejantes de sistema binrio linear, isto , uma mquinaliga a outra, uma produz um fluxo e depois a outra extrai ou cortapara si esse mesmo fluxo. Como o nome indica, o que h produode desejo e o desejo faz constantemente a ligao de fluxos contn-uos e de objectos parciais essencialmente fragmentrios e fragmen-tados. O desejo faz correr, corre e corta (ibid.: 11). necessrioentender estes objectos parciais como tudo, tanto uma pedra como

    um rim, de onde se podem destacar outros objectos parciais queso os fluxos desses objectos e destes ainda outros e outros e...e:Qualquer objecto supe a continuidade de um fluxo, e qual-

    quer fluxo a fragmentao de um objecto. No h dvida que cadamquina-rgo interpreta o mundo inteiro a partir do seu prprio

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    divduo acha-se num determinado local e tempo (a realidade desseponto); d-se um acontecimento que ele presencia; o indivduo expe-riencia esse acontecimento, que j se encontra inserido numa mquinasocial tcnica (um corpo pleno)42 e aqui entra a mquina desejante afuncionar; do evento extrai o cdigo do fluxo de desejo na ligaoentre o indivduo e o acontecimento, a seguir destaca e regista noseu corpo e depois enquanto consome essa energia produz desejo quepoder ser canalizado para outros produtos (como a arte). O que

    que o desejo produz? Real:O desejo esse conjunto de snteses passivas que maquinam

    os objectos parciais, os fluxos e os corpos, e que funcionam comounidades de produo. O real resulta disso, o resultado das sntesespassivas do desejo como autoproduo do inconsciente. Ao desejono falta nada, no lhe falta o seu objecto. antes o sujeito quefalta ao desejo, ou o desejo que no tem sujeito fixo; sempre a re-presso que cria o sujeito fixo. O desejo e o seu objecto so uma s emesma coisa: a mquina, enquanto mquina de mquina. O desejo mquina, o objecto de desejo tambm mquina conectada, de modo

    que o produto extrado do produzir, e qualquer coisa no produto seafasta do produzir, que vai dar ao sujeito nmada e vagabundo umresto. O ser objectivo do desejo o Real em si mesmo. (ibid.: 31)

    Todo o homem habita uma mquina social tcnica (um pas eo seu Estado, uma religio, uma cultura, uma justia, uma lngua,etc.), isto , um corpo pleno (molar) que condiciona um conjunto demodos de vivncias e prticas aos vrios indivduos (moleculares)43.

    42 A Terra o grande corpo pleno, a grande desterritorializada, sempre a criarlinhas de fuga, fluxos de desejo a serem povoados por outros corpos plenos: Amquina , em primeiro lugar, uma mquina social constituda por um corpo pleno

    como instncia maquinizante, e pelos homense

    utenslios que so maquinizadosna medida em que esto distribudos sobre esse corpo. Ibid.: 419. Sublinhado doautor.

    43 Molar e Molecular so termos relacionados com os devires do homem (queiremos analisar mais adiante) que indicam estados das passagens psicofsicas docorpo que podem condicionar uma escrita, por exemplo. Mas correspondem igual-

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    4 O CORPO

    4.1 As possibilidades do Corpo

    Os devires no so representaes, nem imitaes, nem metforas,nem sequer uma exterioridade visvel e apontada num texto ou a sub-jectividade do autor. Os devires qualquer coisa50 so as linhas defuga que partem do CsO no acto criativo, so estados intensivos das

    sensaes (afeces e percepes, o que indicaremos como o queganhamos das experincias, o que fica em ns das experincias)inscritas, marcadas, registadas no corpo. O delrio e a viagem de quefalmos so reais e primeiramente fsicas. O fluxo amorfo que nospercorre, no momento do nosso CsO, destaca dos objectos parciais asmarcas das experincias transformando-as em blocos de sensaes deafectos e perceptos que sero depostos no texto pela escrita51. um

    e trajectrias interiores que a compem, que constituem a sua paisagem ou o seuconcerto.

    50 Deleuze e Guattari definem pelo menos cinco devires essenciais, que o

    homem desencadeia no seu corpo, e que podem ou no estar conectados encon-trando o limite no ltimo que indicaremos aqui nesta nota: devir-mulher, devir-minoritrio, devir-revolucionrio, devir-animal e devir-imperceptvel.

    51 Id.; 1992: 149. Os afectos so precisamente esses devires no humanos dohomem, como os perceptos (incluindo a cidade) so as paisagens no humanas danatureza. Sublinhado dos autores.

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    processo psicofsico, a dificuldade e depois o correr desenfreado daescrita, o Corpo a funcionar para que haja Literatura, ou, segundoos autores, uma fenomenologia da arte:

    O ser da sensao, o bloco do percepto e do afecto, surgir comoa unidade ou a reversibilidade entre aquele que sente e o sentido, oseu ntimo entrelaamento, semelhana das mos que se apertam: a carne que se vai separar simultaneamente do corpo vivido, domundo percebido, e da intencionalidade de um a outro ainda demasi-

    ado ligada experincia enquanto a carne nos d o ser da sensao,e traz a opinio originria distinta do juzo de experincia. (Deleuzee Guattari, 1992: 157. Sublinhado dos autores)

    O corpo determinantemente, a partir desta articulao dos pen-samentos de Derrida e Deleuze/Guattari em resposta quilo que julg-amos existir imanentemente na relao entre o Corpo e a Literatura,a unidade potenciadora de toda a literatura. No nos queremos re-duzir afirmao real e simplista, de que sem um corpo no h lit-eratura, o que nos parece bvio. Mas tambm pode haver corpo semexistir literatura. A literatura um produto do corpo se pusermos a

    nossa mquina desejante a funcionar nesse sentido. pergunta deEspinosa, que Deleuze recorrentemente cita, o que pode um corpo?,respondemos quase de rompante que ele pode tudo, embora saibamosque o conhecimento do que realmente pode um corpo ter de ser pro-duzido infinitamente na conjugao de vrias disciplinas cientficas enunca alcanado, porque uma vez tocado perde-se o corpo pela dif-

    france e pela prpria finitude de um corpo, o seu fim desde origeminscrito no corpo, a sua morte.

    O que nos parece um paradoxo, uma vez que temos mo umobjecto finito, como que fechado, limitado pelo seu fim, mas nunca

    apercebido porque qualquer um se perde, se desorienta na sua ge-ografia, nas suas paisagens, nos abismos. Como no aforismo de Ni-etzsche, que citamos de memria, que nos diz que quando olhamospara o abismo ele olha para ns, quando olhamos para um corpo re-

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    cebemos de volta um corpo, possumos um corpo, vemos um corpo 52

    e por esse motivo se pergunta o que um corpo?Um corpo um complexo de relaes de foras (no sentido ni-

    etzscheano), de fluxos de energia ou desejo (no sentido deleuzo-guattariano), o jogo da diffrance (no sentido derrideano). um erroconceber um corpo ainda na concepo platnica e religiosa, comodualidade de matria e esprito, e no como physis-psychcompostosempre pela mesma energia embora com funcionamentos diferentes,

    com produes diferentes em relaes diferentes53. O corpo esseUno-Mltiplo, conjunto de quantidades de fora com diferentes qual-idades (aquilo que, no entender de Nietzsche, surge como activo oureactivo) em relao com outras quantidades e qualidades de fora.Um corpo faz-se pela relao e exprime-se em relao a outros cor-pos, tocar e ser tocado, ver e ser visto, sentir e dar a sentir, afectar eafectar-se. Contudo isto no diz o que um corpo, a dificuldade dese falar do corpo existe porque ele resiste linguagem, isto , tudoo que ele implica no desenrolar da sua histria, nas suas potncias epossibilidades esquiva-se linguagem, lngua.

    Essa alis a maior dificuldade apontada pelos filsofos Jos52 Deleuze, 2005: 14-15.Possuir, dar a possuir e ver isso que dado, v-lo

    multiplicar-se na ddiva. (. . . ) O eu dissoluto porque, primeiramente, ele dissolvido: no apenas o eu que olhado e que perde a sua identidade sob o olhar,mas tambm quem olha e desse modo se coloca fora de si e se multiplica ao olhar.Sublinhado do autor.

    53Id., 2001: 62. O que define um corpo esta relao entre foras dominantese foras dominadas. Qualquer relao de foras constitui um corpo: qumico, bi-olgico, social, poltico. Duas foras quaisquer, sendo desiguais, constituem umcorpo a partir do momento em que entrem em relao: por isso que o corpo sempre fruto do acaso.

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    ativamente ao ritual de cura xamnico e momos, acreditamos queesta plasticidade ou inteligncia corporal do mundo no se perdeu,, alis, bastante presente na maior parte dos processos e activi-dades artsticas (como confirmam muitos estudos de antropologia daarte)57. A infralngua forma-se ao mesmo tempo que a linguagemverbal, tem o mesmo tempo. Uma e outra so sncronas no instantede qualquer aprendizagem e a infralngua arrasta-se, cola-se lin-guagem verbal. Talvez possamos dizer que a escrita tem uma in-

    fralngua que se manifesta a par com o acto escrito, os contnuosmovimentos e gestos mnimos que se desencadeiam no nosso corpo,cruzares e descruzares de pernas, coares, esgares, caretas incom-preendidas, imperceptveis, certas deslocaes bruscas que correspon-dem a outros no pensamento. Isso acontece porque no existe o no-movimento, existem sempre nfimos esforos, foras que se mani-festam no espao interior do corpo que, por exemplo, concretizam oequilbrio constante e banal. Mas tambm porque a infralngua ofer-ece ao pensamento e linguagem mais que uma matriz (por exemplo,de oposies lgico-empricas, esquerda/direita, interior/exterior), um

    procedimento geral para pensar o mundo, quer dizer, para que omundo sensvel, varivel, catico, adquira ordem e sentido (Gil,1997: 47).

    Ora, o que sucede, no acto da escrita, que a conscincia setorna conscincia do corpo. Pensamento e corpo so um s, physis-

    psych, e qualquer movimento fsico igualmente movimento men-tal, do pensamento. Quando se escreve que algum se senta e tambmnos encontramos sentados, o nosso pensamento senta-se connosco ecom aquele(a) que foi escrito(a), quando lemos o mergulho de MobyDick, o nosso pensamento mergulha com a baleia branca, semel-

    hana dos traos dinmicos apontados por Deleuze e Guattari. Ocorpo presentifica-se no pensamento.A par da infralngua, Gil, a partir de Lvi-Strauss, indica a pre-

    sena de um significante flutuante como aquilo que possibilita o pen-

    57 Vd. por exemplo Barba e Savarese, 2004.

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    samento simblico, no apenas presente nas sociedades primitivasmas igualmente no fazer artstico. O significante flutuante designasempre uma energia, uma fora que impossvel ver significadas emcdigos, visto que estes falam das coisas e das suas relaes e no doque as torna possveis (ibid.: 19). O significante flutuante assimcomo uma superabundncia de significncia, um excesso de sentidodas coisas. Se o corpo percorrido por energia, o significado flu-tuante o que permite o transbordamento de vida, do imprevisvel,

    mltiplo e espontneo da vida. Contudo, devido a uma ordenao so-cial do mundo, do estabelecimento de regras em todos os campos, osignificante flutuante no desponta no seu mximo fulgor. Ele surgeainda por toda a (p)arte mas sujeito a uma economia de poderessingulares e dos signos colectivos, cujo fim , mais uma vez, o depermitir ao corpo desempenhar o seu papel de suporte de cdigos ede acumulador de energia. Qualquer desregramento deste equilbrioeconmico se traduzir ou por uma hipertrofia do signo, ou do corpo(ibid.: 48), o que resultaria na criao de monstros.

    O que pensamos ser necessrio realar a extraordinria mu-

    dana histrica da atitude do corpo frente s coisas ou aos signos.No Ocidente, especialmente, deu-se um afastamento particular entreo corpo e os signos com a transformao de um regime semitico58,no s na relao do corpo com o tempo histrico (de um tempocclico para um tempo linear), mas, e de forma mais determinante eassertiva, o esvaziamento do significante flutuante, que emanava detudo, tornando-o em significante supremo, que domina, regula, reen-viando a uma transcendncia. Esta mudana do regime semiticoapresenta-se, no Ocidente, com a religio judaico-crist59, mudana

    58 Para uma histria da evoluo do corpo na sua relao com os regimes

    semiticos vd. Ieda Tucherman, 2004. Para uma (possvel) aplicao do conceitode regime semitico na literatura vd. mais adiante o 6.

    59 Jos Gil identifica outra mudana de regime semitico no Ocidente europeupor volta do sculo XIV, no plano do saber cientfico: Esta evoluo traduz-se naiconografia do corpo humano (ou na do corpo de Cristo) por mudanas notrias,especialmente no que se refere representao do interior. Mas igualmente

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    rostoidade. Quando isso acontece, a cabea enquanto rosto, ela ar-rasta os volumes-concavidades at torn-los buracos numa superf-cie. Tudo comea com uma desterritorializao (quase como ir con-tra o No princpio era o Verbo, para No princpio era o movimento)63.

    A desterritorializao implica quatro teoremas: 1) a desterrito-rializao sempre de dois termos e cada um deles se reterritorial-iza sobre o outro (mo-ferramenta, boca-seio, rosto-paisagem, etc.);2) cada termo da desterritorializao tem diferentes velocidades e

    intensidades, e a velocidade/intensidade de desterritorializao nodeve ser confundida com as do desenvolvimento, o que resulta queuma desterritorializao mais lenta mas mais intensa pode recolheruma outra na sua reterritorializao (da a boca-seio inserir-se narostoidade); 3) o termo menos desterritorializado reterritorializa-sesobre o mais desterritorializado, isto , regra geral, as que so relati-vas reterritorializam-se nas absolutas (razo pela qual o rosto arrastao corpo na sua rostoidade) e 4) a mquina abstracta no se efectuaapenas nos rostos que produz, mas, em diversos graus, nas partes docorpo, nas roupas, nos objectos que ela rostifica segundo uma ordem

    das razes (no uma organizao de semelhanas) (ibid.: 42).O conceito de rostoidade, assim exposto, representa tambm a

    separao entre povos primitivos e desenvolvidos. Segundo osautores, os povos ditos primitivos no se regulam pelo mesmo regimesemitico que os ditos desenvolvidos. Como vimos, a relao quetm com o corpo e a sua sociedade, a sua cultura e natureza, e apossibilidade de serem preenchidos/possudos por energias exterioresem rituais (os devires animais) no lhes confere a necessidade deterem um rosto. Por outro lado, num regime que inaugura um corpoprprio, a individualidade, necessita da produo de rostos:

    Trata-se de uma abolio organizada do corpo e das coordenadas63 Ser por essa razo que o prefcio de Movimento total, livro sobre o corpo e

    dana de Gil abre com essa frase? Porque a verdade que antes de falarmos, deemitirmos qualquer som, o que acontece o movimento de foras, o arrombamentode um sopro, a animao de um movimento interior que leva a um grito.

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    corporais pelas quais passavam as semiticas polvocas ou multidi-mensionais. Os corpos sero disciplinados, a corporeidade ser des-feita, promover-se- a caa aos devires-animais, levar-se- a desterri-torializao a um novo limiar, j que se saltar dos estratos orgnicosaos estratos de significncia e de subjectivao. Produzir-se- umanica substncia de expresso. (ibid.: 49)

    portanto, acima de tudo, pelo rosto, como entrada de subjecti-vao e choque de significncia, que temos acesso ao outro e que

    adquirimos igualmente um rosto. No se trata de um reflexo deespelho, mas antes como que uma equivalncia, como um jogo depergunta-resposta, em que um envia signos de significncia e sub-jectivao e recebe a resposta com os traos do outro64. Os traosdo rosto so os traos da paisagem do interior, das foras que o an-imam, das energias que o percorrem, dos afectos e das percepesmarcadas.

    Quando se estabelece a relao ver e ser visto, o olhar no seprende ao exterior, penetra para l da pele pelos buracos negros queso os olhos, o que torna o rosto a entrada principal de qualquer indi-

    vduo. E da mesma forma que no temos apenas uma lngua, tambmno temos somente um rosto, ele instvel, depende das experin-cias, dos encontros, mas esses outros rostos partem de um s, o rosto(do) Homem branco, o rosto de Deus65.

    64 Gil, 1997: 169-170. O meu rosto -me significado indirectamente, atravsde pequenas percepes refractadas nos rostos dos outros. Sem os outros eu noteria rosto. Mas o rosto que tenho, e que nunca vejo, depende do processo designificncia e de subjectivao que o sistema buraco negro/muro branco dos rostosdos outros induzem em mim.

    65 Deleuze e Guattari, 1997, vol. III: 43. O rosto no nem universal, nemmesmo o do homem branco; o prprio Homem branco, com as suas grandesbochechas e o buraco negro dos olhos. O rosto Cristo.

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    5 LITERATURA

    Como os corpos os textos literrios partilham a condio da singu-laridade, esse ir e vir no tempo e no espao (diffrance), mas podemseparar-se dos seus autores como marcas, rastos que levam glorifi-cao (ou no) do criador. Como os corpos os textos encerram umahistria de sensaes, de experincias e nenhuma criao existe semexperincia (Deleuze e Guattari, 1992: 114), sem uma responsabil-idade66 e um confronto com e para com os outros. Como nos dizSilvina Rodrigues Lopes, nesse abandono da cognio pura e sim-

    ples, o que no quer dizer da sua recusa, consiste a fundao da lit-eratura, uma prtica da escrita que no se subordina identificaodo singular com o particular, mas onde o desejo de o salvar ou inven-tar traz consigo a necessidade de passar para alm do desejvel e doindesejvel (1994: 137).

    De acordo com Derrida, a literatura caracteriza-se por um du-plo movimento. Um, que tende para a universalizao construindo amemria e a identidade cultural de um povo, sempre actualizando ourevitalizando a memria sem nunca a deixar ser um arquivo morto;outro, que indica sempre a singularidade de um acontecimento, de

    uma experincia do autor e do leitor, de uma paixo, um lugar onde a66 Aplico este termo de acordo com Georges Steiner, isto , no sentido de dar

    uma resposta: Falarei de responsabilidade (answerability) a propsito da respostainterpretativa que surge da exigncia de actualizao de sentido; mas tambm serresponsvel pela sua obra perante o leitor ou intrprete. vd. Steiner, 1989: 14.

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    razo se perde perante a construo de fices, por vezes, para almdos limites imaginveis. Estas duas faces da literatura fazem comque, no seu seio, a razo entre em crise, porque cada movimento an-ula o outro, isto , a universalizao, a criao da memria, impede ainscrio das singularidades enquanto acontecimentos, hic est nunc,impossveis de se acumularem num arquivo. Para que a memriapudesse encerrar a singularidade, a memria necessitaria de ser tres-passada pela sua negao, pelo esquecimento, uma vez que a singu-

    laridade como aqui e agora sempre relativa a um presente quenega a inscrio que a tornaria passado, outra coisa que no a singu-laridade em si.

    Desta forma, a literatura sempre espao de diffrance, de difer-imento/diferenciao que revivifica a memria da literatura, porquesem a diffrance a memria, enquanto conservao do material, apenas o depsito das palavras mortas. A identidade de um textono o seu acontecimento diacrnico na histria, o que significariaa morte do texto, mas a possibilidade do seu devir, o seu diferimentoe diferenciao nas mos dos leitores passados, presentes e futuros,

    e as possibilidades e diferenas que cada um, na sua experincia sin-gular de leitura, concede ao texto: essa a sua identidade.

    Mas como poder, ento, a literatura dar lugar verdade, quandoos textos se apresentam nestas derivas? A questo da verdade con-tinua a ser o problema da escrita enquanto phrmakon da fala. Afala, como vimos, na sua imediatez, na sua presena, encontra-semais prxima da verdade porque esta marcada directamente namemria. E embora a fala, quando produzida, quando re-produz oconhecimento, repete a verdade, esta repetio ainda fiel ao saber, saber vivo. A escrita, o phrmakon, pelo contrrio, contrria

    vida, reproduo da reproduo do saber, repetio da repetio, um gesto de afastamento da memria. Como o rei replicando aThoth, no mito contado por Scrates/Plato, mas pelas palavras deDerrida: (...) sob o pretexto de suprir a memria, a escrita67, faz

    67 No mito de Thoth, o deus egpcio apresenta a escrita como um phrmakon da

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    Esta condio dos textos, a sua iterabilidade, ou a diffrance ima-nente literatura na escrita e na leitura, representa um resistncia aum sentido transcendente e a uma interpretao fechada, o que noimplica uma ausncia de sentido mas, pelo contrrio, a sua relaocom a experincia como produtora de sentidos. possvel, de certomodo, observarmos a problemtica do sentido a soltar-se desta total-idade ou transcendncia, numa linha de ascendncia que remonta aNietzsche (pensador que, como sabemos, muito influenciou Deleuze

    e Derrida).No filsofo alemo e de acordo com a leitura de Deleuze, o sen-

    tido nunca seria encontrado se no se conhecesse que ou quais forasentravam no objecto, que dele se apropriavam ou se exprimissem.Por outro lado, a fora sempre uma apropriao, dominao, ex-plorao de uma quantidade de realidade (Deleuze, 2001: 8-9). Ahistria de uma determinada coisa a sucesso de foras que se apro-priaram dessa coisa, so as camadas ou plats e rastos deixadas poressas foras. O que da deriva o sentido de um objecto, dependendoda(s) fora(s) que entra(m) em contacto consigo, sendo a histria

    a variao desses sentidos: Qualquer subjugao, qualquer dom-inao equivale a uma interpretao nova (ibid.: 9). Subjugar,dominar so formas de utilizao no sentido lato, isto , aproveita-mento, e quanto mais uma coisa utilizada por vrias foras tantomais sentido ter.

    Tanto Derrida como Deleuze-Guattari, vem este processo de in-terpretao, a busca de um sentido transcendente, como uma coisa, sepossvel, a evitar. No s pela imposio de figuras de poder, limites,transcendncias, mas igualmente para abrir o sentido ao (im)possvele experincia.

    Deleuze e Guattari, de facto, parecem-nos ir mais longe do queDerrida, definindo o sentido como utilizao. Mas utilizao deacordo com critrios imanentesque promovam a legitimao desseuso e nunca ilegtimos, os quais nos direccionam para uma tran-

    hado do autor.

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    abstracto, a objectividade e a subjectividade, real e fico, verdade ementira, a ordem e a experincia, o fora e o dentro. Ao delimitarmoso corpo que literatura como um plano onde certos conceitos se in-terrogam uns aos outros, semelhante ao plano de imanncia deleuzo-guattariano, mas no totalmente igual como veremos, pretendemosrealar as suas linhas de fuga, as componentes do conceito literaturaque a permitem desterritorializar-se. Analisaremos uma componente,afim de clarificarmos a sua importncia na literatura e para o corpo.

    Examinaremos a experincia pois cremos que esta implica e abre ocampo para a interveno de outras componentes, tais como o jogo ea inveno, para alm de estar intimamente ligada ao corpo.

    5.2 Literatura e o lugar da experincia, da paixo edo testemunho

    A experincia um acontecimento irrepetvel e pessoal. A sua ques-to na literatura tem sido sempre colocada no lado da recepo, seesta passiva ou activa. De acordo com Lopes, a afirmao da fic-cionalidade, como condio da literatura, coloca a realidade no exte-rior da literatura, permitindo que qualquer leitura se faa sempre semreferncia realidade. Mas a obra literria auto-referencia-se, umacontecimento, enquanto traa um sentido. Por essa razo nos dizLopes que, a experincia da arte o paradigma de toda a experin-cia (1994: 459), uma vez que nela se comunicam o pessoal com o

    geral, o dizvel e o inefvel, a recepo e a criao.A experincia tambm a diffrance, porque se d numa relaotemporal e espacial, na memria das marcas, dos rastos, na experin-cia do tempo e do espao, experincia como singularidade e arrom-bamento na universalizao, na Histria, na Verdade, que permite

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    o jogo e a inveno, o (impre)visvel. A importncia da experin-cia decorre desta afirmao de Lopes, a experincia de cada um nasua absoluta singularidade uma escrita: no uma memria que seacumula e actualiza carregando o presente com um peso morto queo determina, mas sim um registo vivamente problemtico (ibid.:460. Sublinhado nosso).

    Esta escrita uma inveno, uma fico. Qualquer inscrio daexperincia, por no poder ser testemunhada, falsa mas, por isso

    mesmo, necessariamente verdadeira, como promessa da verdade euniversalizvel72. A experincia como escrita divide o homem entrea honestidade (a sinceridade para com a Histria, o vivido e a reali-dade) e a paixo para com a imaginao e a possibilidade de vida(s)a partir da sua prpria. Mas a experincia tambm jogo, jogo da re-lao indecidvel entre a necessidade e o acaso, contemplando regras.A experincia, a experincia esttica, a experincia literria, d-sesempre como afecto, como tocar o outro, um toque de um corpo nocorpo do outro.

    Realmente, para Derrida a literatura tanto uma paixo como um

    enigma, um abismo profundo de latinidade73. Foi com esses doisconceitos em mente que, ao abrigo de uma responsabilidade paracom uma audincia, Derrida analisou uma obra de Maurice Blan-chot, O Instante da Minha Morte, num encontro intituladoAs Paixesda Literatura. Conquanto o desconstrutor comentasse a narrativablanchotiana, o seu exame ultrapassava esse limite na explicao dapaixo e do testemunho na literatura.

    A paixo, outra palavra plena de latinidade, enche a literatura desete sentidos diferentes, segundo Derrida: 1) A paixo compreendeantes de mais uma histria da cultura crist, desenvolvida em estreita

    ligao com o desenvolvimento do Direito, do Estado, da Igreja, da72 Derrida, 2004b: 38. O singular deve ser universalizvel, essa a condio

    testemunhal.73 Derrida, 2004b: 14. Em todas as lnguas europeias, e mesmo nas lnguas em

    que o latim no dominante, como o ingls e o alemo, literatura continua a seruma palavra latina. Sublinhado do autor.

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    sagem de fluxos de cdigos para outros cdigos. Nada intraduzvelnum sentido, mas num outro sentido tudo intraduzvel (ibid.: 88),porque no limite toda a experincia o impossvel de ser traduzido,pelo contrrio, a fico da experincia que dita/escrita, que traduzida:

    (. . . ) intraduzvel permanece (. . . ) a economia potica do id-ioma (...), a onde uma dada quantidade formal falha sempre aotentar restituir o acontecimento singular do original, ou seja, a faz-

    lo esquecer, uma vez registado, a arrebatar o seu nmero, a sombraprosdica do seu quantum. Uma palavra para uma palavra, se quis-eres, slaba por slaba. (ibid.:: 88)

    5.3 Literatura como mquina

    De que modo a literatura uma mquina? A literatura correspondeaos parmetros de uma mquina social tcnica, mquina conectada aoutra mquina maior, produto do desejo das possibilidades da lngua,agenciamento maqunico de um corpo pleno que a lngua. Atravsda literatura a lngua pe em funcionamento os seus agenciamentoscolectivos de enunciao, institui os seus poderes jurdicos, os seusmodos de apresentao, os indicadores sociais, de vivncia, comotambm os processos tcnicos de criao, de produo de mquinasdesejantes.

    Como corpo pleno (condio molar das mquinas desejantes, con-

    junto de escritores e escritas, associaes, etc.) que integra mquinasdesejantes (condio molecular das mquinas sociais tcnicas, a pos-sibilidade de um escritor modificar um agenciamento colectivo deenunciao, como o que se costuma dizer quando se falam de de-terminadas lnguas: a lngua de Cames, a lngua de Shakespeare, a

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    lngua de Cervantes, de Goethe, etc.) a literatura traa uma histriade corpos, constri uma memria e determina a sujeio do indiv-duo a uma instituio de poder. A literatura encerra as mquinasdesejantes dos escritores, faz com que elas se conectem umas comas outras (aquilo que poderamos entender como uma intertextuali-dade), permite, com essa produo de uma historicidade, instaurarregimes semiticos, isto , agenciamentos colectivos de enunciao,como as escolas literrias do Simbolismo, Naturalismo, Realismo,

    Romantismo, Neoclassicismo, etc., coabitando na mesma mquina eadmitindo a passagem de segmentos de cdigo de uns para os out-ros83.

    O primeiro objectivo da literatura , de certa forma, permitir obom funcionamento da mquina territorial (o que os autores enten-dem como a primeira forma de qualquer mquina social tcnica),que, neste caso, tanto pode ser a lngua como a cultura. Isso visvelpor todo o Iluminismo e Romantismo, no esforo de definir a Liter-atura e as literaturas, culturas e lnguas nacionais, o desaparecer dedialectos e unificaes de pases segundo uma s lngua. Este fun-

    cionamento executado pelos homens corresponde ao que Deleuze eGuattari nomearam como a construo da lngua maior.

    Observmos j a diferena entre as mquinas, de como uma al-terao do regime semitico proporciona a transformao de umaproduo desejante numa produo social tcnica, como a produoimplica igualmente a anti-produo. A mquina desejante extrai-regista-consome da mquina social tcnica o desejo que far a linhade fuga de uma lngua menor. A literatura maior, outra mquina doterritrio da lngua maior e marcada pelas possveis linhas de fuga, povoada por escritores que podem maquin-la para ser literatura

    menor, isto , experimentar a lngua da e na literatura, experimentaros desejos do seu corpo, criar e percorrer as linhas de fuga (criar umestilo, utilizar os tensores, etc.). esse uso da lngua, um uso inten-

    83 Deleuze, 2002: 15.Embora ela remeta sempre para agentes singulares, aliteratura agenciamento colectivo de enunciao.

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    5.4 O corpo, a literatura e a arte como mediadora

    Ora, a arte (como a literatura, a poesia, a arte plstica, a msica, eat mesmo a body art), como linha de fuga de desterritorializao, um processo de se deixar de ter um rosto85. Um modo, segundoDeleuze-Guattari e Gil, de se escapar a uma individuao social, a

    um estatuto, uma possibilidade de devir-outro. A arte permite re-gressar, ou ressuscitar, os vrios devires guardados em ns, potenciara vida e alcanar as regies do a-significante, do a-subjectivo e dosem-rosto (Deleuze e Guattari, 1997, vol. III: 57. Sublinhado dosautores)

    Mas ento como que o corpo entra em relao com a literatura?Que importncia tem o corpo na literatura? Como que se faz corpocom a literatura? Por que razo dissemos o corpo, a literatura e aarte como mediadora? No a literatura uma arte? Sim, a literatura arte, um corpo que integra vrios corpos (corpo da lngua, corpojurdico, corpos ausentes de autores e leitores, etc.). Por um lado,tomamos a literatura de momento por necessidade de a question-armos bem como o corpo como uma coisa que se destaca, que sedesprende do corpo, na relao de ausncias dos corpos de quem faze quem recebe; por outro lado, apreendemos a arte como um espaovirtual de criao de mquinas desejantes, de onde a literatura, ento,se separa trazendo a marca ou os traos desse espao. Temos apre-sentado tambm o corpo como physis-psych, como um lugar onde oexterior e o interior esto interminavelmente em comunicao. Pen-samos, todavia, que ainda necessrio explanar este corpo, para en-tendermos esta premissa da arte, de como ela se faz CsO (corpo vir-

    tual de desejo) e como dela se despertam os devires do corpo e que85 Tal como nos mostra Hlio Alves, no seu estudo sobre Bernardim Ribeiro

    (2006: 61-82), podemos conquistar um rosto atravs da arte, mas este igualmente(se) dilui, utilizando a metfora da gua e do ribeiro de Bernardim, (n)o rosto-prprio.

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    surgem na literatura.De acordo com Gil, o corpo percepcionado, a sua exterioridade,

    coberto de traos da subjectividade do indivduo (todas as suasemoes, sensaes, afectos, percepes), uma traduo expressivarealizada por gestos, movimentos, sons, tiques, mmicas. Se o inte-rior um espao de inscrio, que passa para o exterior, preciso verque o prprio exterior tambm espao de inscrio. O espao inte-rior o papel poroso que permite comunicar a psychcom a physis,

    o que permite falar de um espao psquico, talvez outro murobranco-buraco negro onde se escrevem as significncias e subjecti-vaes do que se diz ser o inconsciente. Mas todo o espao exterior envolvido por um ciclorama imenso de duas faces que a pele, fron-teira entre o interior e o exterior, condicionante principal para a re-alizao do corpo como physis-psych. o que o filsofo portuguschama de espao-charneira, uma vez que a pele enquanto fronteirade um espao exterior e de um interior, igualmente passagem co-municativa.

    A comunicao faz-se acima de tudo por um acordo e contam-

    inao de ritmos afectivos entre duas pessoas, por concordncias(choques e filtragem de significncias e subjectivaes), por esboaro corpo do outro no nosso, o que pode despertar um devir-outro. Por-tanto, pele e psych, em contnua comunicao, produzem o Corpode que temos vindo a falar. Mas este tambm um corpo que nunca nosso seno num limite que jamais teremos conscincia, uma vezque cada experincia, cada acontecimento, cada comunicao, etc.,se escreve como marca do outro. A nossa identidade diferenci-ada/diferida pelos rastos do(s) outro(s), o nosso espao interno deoutros, povoado pelos outros. No h qualquer objectividade na con-

    struo do nosso corpo j que ele se compe atravs das nossas per-cepes, o que significa que toda a percepo do corpo do outro subjectiva.

    Quando percepcionamos realizamos um agenciamento de sen-saes e foras e, exactamente por essa razo, no nos possvel

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    separarmos do objecto observado, somos atravessados pelos olhos,pela pele, pelo nariz por milhares de determinantes subjectivas, so-mos iluminados pelos halos das pequenas percepes:

    H sempre um halo de pequenas percepes que (. . . ) imprimem[aos objectos] infinitos movimentos imperceptveis, dando-lhes maisou menos fora atractiva, pregnncia, brilho. Assim se explica queo amor transforma a percepo do corpo amado: no h invarianteobjectivo percepcionado, mas sim um turbilho de movimentos mi-

    croscpicos que envolve e arrasta as formas. Por isso, a percepodo corpo humano tem sempre uma carga afectiva: percepcionar transferir, entrar em relao de transferncia. (Gil, 1997: 182-183)

    Ns no temos, no dia-a-dia, conscincia do que o nosso corpo,a nossa conscincia uma inconscincia do corpo. O momento con-sciente de physis-psychsurge com a produo de um CsO, o qualtambm no temos conscincia pela sua prpria virtualidade, mas,pleno de desejo, cheio de um poder transformador e [de] devir devir sensitivo, afectivo que atinge e desorganiza a unidade da con-scincia (ibid.: 185). Quando se trabalha nos objectos, eles no so

    j partida artsticos, o criador no pensa que est a produzir um ob-jecto artstico, esttico. A sua conscincia est centrada no objectoem si, na produo e inscrio do seu desejo no objecto, e na aberturade si ao exterior, a toda a atmosfera, a todas as pequenas percepesque o rodeiam86.

    O Homem faz CsO com a atmosfera-arte para criar, produzir ob-jectos artsticos. Uma s mquina com duas componentes virtuais,que apenas surgem, se produzem, se houver uma certa concentrao:concentrao em si, concentrao no objecto, concentrao na at-mosfera. Queremos dizer que, concentrao tanto significa estarmos

    atentos ao nosso corpo, ao que se est a produzir no interior, isto ,centrarmo-nos em ns; mas tambm, estarmos despertos a receber

    86 Gil, 1987: 164. O fim da arte no exterior arte; por conseguinte o escritorno escreve para fazer arte, mas para completar um processo de exteriorizao dointerior, que iniciou com a anlise das sensaes.

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    o que vem de fora para reencaminhar as sensaes, afeces e per-cepes, para o que se est a produzir, isto , (con)centrarmo-nos emrelao a. Esta concentrao uma abertura, uma conscincia in-conscientemente consciente, despreocupada, physis-psych, CsOque se maquina com uma atmosfera-arte. Queremos dizer que, entre,ao lado, por cima, por baixo, volt