baremblitt gregorio introducao a esquizoanalise

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5/27/2018 BAREMBLITTGregorioIntroducaoaEsquizoanalise-slidepdf.com http://slidepdf.com/reader/full/baremblitt-gregorio-introducao-a-esquizoanalise 1/128  Introdução à Esquizoanálise Gregório Baremblitt Belo Horizonte: Biblioteca Instituto Félix Guattari, 2003, 138p 2.edição Baremblitt, Gregório [2003].  Introdução à Esquizoanálise 2.ed, Belo Horizonte: Biblioteca Instituto Félix Guattari, 2003, 138p

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  • 5/27/2018 BAREMBLITT Gregorio Introducao a Esquizoanalise

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    Introduo EsquizoanliseGregrio Baremblitt

    Belo Horizonte: Biblioteca Instituto Flix Guattari, 2003, 138p

    2.edio

    Baremblitt, Gregrio [2003]. Introduo Esquizoanlise 2.ed, Belo Horizonte:

    Biblioteca Instituto Flix Guattari, 2003, 138p

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    Apresentao 2.aEdio

    com gratido e satisfao que o Instituto Felix Guattari de Belo Horizonte apresentaa segunda edio do "Introduo Esquizoanlise" de Gregorio F. Baremblitt.

    Os exemplares da primeira edio se esgotaram com uma rapidez que no

    espervamos, e os leitores, especialmente alunos universitrios, os de nossos cursos e

    outros interessados na obra de Deleuze e Guattari nos solicitaram uma ampliao da

    mesma. Essa estimulante demanda fez com que a presente edio seja de um nmero

    limitado de exemplares e possa ser considerada como preliminar de uma terceira,

    muito mais extensa, que est no prelo.

    O autor considerou necessrio acrescentar a essa segunda edio um apndice no qual

    se trata de temas, preferencialmente includos em "Mil Plats", que foram pouco

    desenvolvidos na primeira.

    Fazemos presente aqui nosso agradecimento ao staff do Instituto Felix Guattari pelaeficiente e generosa colaborao nas tarefas de traduo, correo e montagem do

    presente texto, assim como por valiosas sugestes recebidas para o contedo do

    mesmo: Oalva A . Lima, rika Rianni, Irene Ferreira do A . Oliveira, Luciana Tonelli,

    Neuza Beatriz H. G. Pereira e Patrcia Ayer de Noronha.

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    In Memoriam de Felix Guattari*

    Este evento especialmente emocionante para mim por vnos motivos. Ele emocionante no sentido das emoes entusisticas, porque as idias de Guattari tm

    sido fundamentais em minha formao e, como pretendo explicar, tambm em minha

    vida cotidiana, pessoal.

    Mas tambm um momento duplamente triste porque estarnos reunidos para

    prestar homenagem a uma figura que faleceu em uma idade e com uma vitalidade que,

    fazia-nos pensar, poderamos aguardar muito ainda de sua capacidade produtiva. Por

    outro lado, uma grande amiga nossa, Sonzia Maria de Castro Mximo, que foi a

    gestora de todo esse encontro, tambm faleceu, de forma bsolutamente inesperada,

    vtima de um acidente de trnsito: Sendo assim, hoje estou aqui para falar a vocs no

    marco da perda de dois grandes amigos, e tentaremos transformar esta situao de luto

    em, pelo menos, um encontro produtivo, que nos permita superar essa tristeza.

    Felix Guattari, em uma vida relativamente breve, conseguiu desenvolver

    tantas atividades, produzir tanto, criar tanto, que falar acerca desta vida, em um tempo

    curto, uma tarefa quase impossvel. Mas fao questo de falar de todas e de cada

    uma das coisas que ele fez, embora apenas mencionando-as, enumerando-as. Eu acho

    que, entre todos os mritos que Guattari tem ou teve, o fundamental o de fazer ver

    ao mundo, este mundo um tanto ctico, um tanto decepcionado no qual ns vivemos,este mundo utilitarista, pragmatista (no mal sentido da palavra), este mundo, em

    muitos sentidos, medocre e cnico, que possvel viver de uma maneira produtiva, de

    uma maneira brilhante, de uma maneira herica. No dentro das modalidades do

    herosmo revolucionrio clssico, mas abrindo a perspectiva de um novo tipo de

    herosmo... um herosmo mais amoroso, mais moderado, como Guattari mesmo o

    chamou, em algum livro, "uma nova suavidade". Ento, parece-me importantedetalhar tudo o que Guattari fez, porque uma das queixas que eu formulo, e que sei

    que muitas pessoas formulam em nosso meio, de que "no tm tempo" para fazer

    grandes coisas. interessante poder

    Conferncia proferida por Gregorio F. Barcmblitt na Aliana Francesa em 26/1 0/92,

    como homenagem pstuma a Felix Guattari.

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    exaltar, poder examinar a vida de uma pessoa que tinha tanto ou menos . tempo que

    ns. E, sem dvida, foi capaz de fazer uma quantidade de coisas que deixaram o

    mundo diferente depois de ele ter passado por onde passou.

    Guattari faleceu aos sessenta e dois anos de idade, na noite de 28 de agosto

    passado, no hospital onde ele trabalhava muitos anos, desempenhando tarefas

    clnicas. Ele nasceu em trinta de abril de mil novecentos e trinta, em Colombes,

    Frana. Sua escolaridade foi muito irregular e difcil. Estudou farmcia e filosofia,

    mas no conseguiu formar-se em nenhum desses dois cursos. Na Segunda GuerraMundial participou de um movimento destinado a construir albergues juvenis,

    moradias para os refugiados de guelTa. Dentro de suas tarefas polticas, ele teve

    contato com muitas figuras intelectuais da Frana, e se encontrou com duas

    especialmente importantes. Uma, a do trabalhador em sade mental de orientao

    anarquista e libertria, Franois Tosquelles, que tinha imigrado da Catalunha, no

    tempo da guerra civil. E com Jean Oury, um grande psiquiatra francs. Por outrolado, Guattari tinha descoberto as idias de outro grande psiquiatra, Franz Fannon,

    um psiquiatra argelino, que posteriormente chegou a ser Ministro da Sade Pblica

    da Arglia, autor daquele grande livro "Os Condenados da Terra".

    Jean Oury, Guattari e outros acharam um castelo em runas e, fazendo

    uma reforma do mesmo, construram uma clebre clnica psicoteraputica e

    psiquitrica denominada "La Borde", que se transformou em um verdadeiro campoexperimental para uma srie de propostas psiquitricas modernas, alternativas e at

    revolucionrias, que continua existindo e sendo uma fonte de inspirao para todos

    os movimentos alternativos psiquitricos do mundo.

    Guattari militou na Juventude Comunista, mas foi expulso por sua

    oposio aos acontecimentos de Budapeste e poltica do Partido Comunista naArglia. Participou na organizao de ajuda "Frente de Libertao Nacional

    Argelina". Escreveu para um peridico comunista relacionado com a Liga

    Comunista e com as organizaes marxistas e anarquistas. Interessou-se p-ela

    Psicanlise e se analisou com o professor Jacques Lacan durante sete anos.

    Pertenceu Escola Freudiana de Paris, que, como veremos mais para a frente, teve

    vrios dissidentes, mas nenhum destes chegou a questionar a razo da existnciadessa escola,

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    ou seja, a Psicanlise em si mesma. Guattari fundou a Federao de Grupos de Estudo

    e Pesquisa Institucional, ou seja, uma enorme corrente que reunia experts de diferentes

    disciplinas, antroplogos, socilogos, economistas, etc., que se ocupavam em estudar

    as instituies. Guattari fundou tambm a revista "Recherche", que teve um papel

    importantssimo na, divulgao das idias institucionalistas. Em 1966, organizou um

    jornal e um grande agrupamento que se denominou "Oposio de Esquerda".

    Participou tambm da redao das novas teses da "Oposio de Esquerda", propondo

    uma tica militante que reunia os descontentes de todos os partidos polticos de

    esquerda, particularmente da Liga Trotskista e do Partido Comunista Francs.

    Participou na operao de ajuda ao povo do Vietn na guerra contra os Estados

    Unidos. Em 1967 foi um dos fundadores da Organizao de Solidariedade com a

    Revoluo Latino-americana, organizao esta do intelectual Rgis Debray, que

    estava preso na Bolvia. Em maio de 1968, Guattari associou-se a vrios setores

    protagonistas desse impQrtantssimo fato histrico e participou, pessoalmente, de uma

    das manobras tticas que foi a ocupao do teatro Odeon. Fundou o CEPFI Centro

    de Estudos e Pesquisas de Formao Institucional, centro esse que publicou obras tais

    como "Genealogia dos Equipamentos Coletivos", "O ideal militante", etc. Dentre suas

    publicaes na Revista "Recherche", uma em particular se referia aos movimentos

    homossexuais, o que motivou sua priso, tendo sido anistiado por Giscard d'Estaign.

    A partir de 1970, militou ativamente pela implantao da rede de rdios livres, a

    primeira das quais se chamou "Alice". Fundou o CINEL Comit de Iniciativa pelos

    Novos Espaos da Liberdade, organizao que defendeu os extremistas autnomos

    italianos e que lutou pela libertao do intelectual italiano Tony Neri, preso n Itlia,

    por sua. vinculao com as Brigade Rose. Em 1981 foi um dos artfices da

    candidatura do clebre cmico francs Coluche. Foi membro ativssimo de uma

    grande organizao ecolgica chamada "Gerao Ecolgica" e, finalmente, fundador

    da Rede de Alternativa Psiquitrica, um Movimento com propostas psiquitricas

    crticas que se estendeu pelo mundo inteiro.

    Bem, tudo isto fala acerca da militncia ativa de Guattari no campo, no

    apenas da cultura, mas dos fatos polticos concretos, os principais que agitaram a

    Histria durante o perodo de sua juventude e de sua maturidade. Por outro lado,

    Guattari escreveu os seguintes livros:

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    "Psicanlise e Transversalidade", que pertence ao perodo em que ainda era

    psicanalista; "A Revoluo Molecular", um belo livro que resume suas propostas de

    militncia poltica; "O Inconsciente Maqunico", onde expe a reformulao que fez

    da idia do inconsciente freudiano; posteriormente escreveu com Gilles Deleuze, o

    grande filsofo e seu amigo pessoal, "O Anti-dipo", um livro que foi expressivo do

    movimento poltico e cultural de maio de 68. Fez um estudo com Deleuze sobre o

    escritor Kafka, a quem eles consideram uma das maiores expresses de um gnero

    que seria "uma literatura menor"; depois, escreveu, tambm com Deleuze, "Mil

    Plats", que algo assim como o segundo tomo de "O Anti-dipo". MaIs

    recentemente ele publicou um livro chamado "Caosmose", e imediatamente antes

    deste, um belo livro sobre Ecologia, chamado "As Trs Ecologias", e depois, com

    Gilles Deleuze, "Que Filosofia?". Isso sem mencionar inmeros artigos publicados

    em todos estes rgos que acabamos de expor. Por outra parte, publicou, em

    portugus, em colaborao com S. Rolnick,o livro "Cartografias do Desejo", e, na

    mesma lngua, foi editado um pequeno volume de suas conversas com Lula.

    Ento, encontramo-nos aqui evocando a figura de um intelectual,

    praticamente autodidata, que no chegou a cumprir a burocracia de nenhum ttulo

    universitrio, que produziu uma quantidade assombrosa de textos, que conseguiu

    relacionar-se de forma produtiva com as figuras mais importantes das ltimas duas ou

    trs dcadas, que militou poltica e ativamente, tanto nas organizaes tradicionais,como na maioria das alternativas importantes deste perodo, e, alm do mais, foi

    criador de uma srie de movimentos, fundador de uma srie de dispositivos polticos

    que tiveram um papel importantssimo nas tentativas de transformao do que o

    mundo moderno e ps-moderno. Eu acho que uma figura deste tipo, desta magnitude,

    desta transcendncia, estamos acostumados a descrever e a encontrar antes de 1920,

    de 1930. Estas so figuras do porte de um Trotsky, de um Marx, de uma Rosa deLuxemburgo, ou um Gramsci, que, desde a Segunda Guerra Mundial, pareciam ter-se

    extinguido. Como tambm parece ter-se extinguido, de nossas vidas cotidianas, todo o

    impulso firme, ambicioso, entusiasta para a construo de uma existncia

    decididamente mais digna. Por isso, creio que ao se falar neste homem, Guattari, no

    se trata de destacar um ideal, porque a obra de Guattari est toda encaminhada a

    demonstrar que os ideais no

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    existem, que os ideais so "idias puras", que ningum tem por que reproduzir ou

    copiar. Por este motivo, no diramos que Guattari um ideal, no diramos que

    Guattari um modelo, mas sim, diramos que Guattari um exemplo de como se

    pode viver de forma que a vida seja a realizao de um bem, de uma forma de criao

    e de inspirao, que a vida ps-moderna parece ter proscrito completamente de nosso

    cotidiano.

    Bem, se s fazer este detalhamento da militncia poltica, da produo

    bibliogrfica, da atividade cientfico-societria de Guattari j toma tanto tempo, e

    espero ter dado pelo menos uma imagem panormica, como que ns podemos

    sintetizar essa fulgurante produo terica de Guattari, difcil de dissociar da sua

    produo unida a Gilles Deleuze? Essa unio produtiva com Gilles Deleuze j

    configura uma espcie de milagre intelectual que absolutamente inslito na Histria

    da Cultura. Um comentarista francs, um jornalista, afirma que essa obra uma

    "filosofia a duas cabeas", frmula que no me parece afortunada. Para comear, creio

    que a obra de Deleuze e Guattari no uma filosofia. E, por outro lado, justamente o

    fantstico, o assombroso, que essas obras escritas pelos dois j no so de "duas

    cabeas". Para quem estuda cuidadosamente "O Anti-dipo", "Mil Plats", "Que a

    Filosofia?" (este, o ltimo livro que publicaram), impossvel saber de quem so as

    idias, se de um ou de outro. Ento, muito mais que criar uma filosofia a duas

    cabeas, criar um conhecimento, um saber, que faz os dois, no devir um, mas devir

    muitos. a transformao de um dueto em um enorme coral, em que no apenas no

    se sabe se isto foi escrito por Deleuze e aquilo por Guattari, mas tambm que neste

    coral cantam as vozes mais revoluciomirias, mais crticas, mais escolhidas de nosso

    sculo.

    Como se poderia qualificar essa obra? muito complexo, porque essa obra

    inclui as cincias formais, a matemtica, a geometria, a lgica; contm as cincias

    naturais, a fsica, a qumica, a biologia; contm as cincias humanas, a antropologia, ahistria, a economia poltica, a semitica, a psicanlise, e contm tambm muitos

    elementos da literatura, da pintura, da msica; contm as melhores idias de toda a

    tradio filosfica do ocidente, preferencialmente um ramo da filosofia representada

    fundamentalmente pelas idias dos esticos, de Espinoza, de Nietzsche, de Bergson,

    de Hume. E at contm alguns momentos do discurso cotidiano, do saber popular, do

    senso comum. Entopara

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    quem pretende exp-lo em meia hora, o que isto? Se ns a chamamos de filosofia,

    um pouco injusto e limitativo, a no ser que a comparemos com a tica de Espinoza,

    que uma filosofia declaradamente feita para se aprender a viver de acordo com ela.

    uma disciplina? No . Porque serve para ser aplicada em qualquer lugar, por qualquer

    pessoa, e com qualquer motivo, sempre que este motivo inclua uma proposta de

    produo, de criao, de inveno, de felicidade, de transformao do mundo. Ento,

    o que diremos? Que uma proposta poltica? Claro que uma proposta poltica.

    Fundamentalmente micropoltica. Mas uma proposta poltica que pode ser utilizada

    por um indivduo, ou por um grupo, por um movimento, em um partido, em uma

    igreja, em um jogo de futebol, em qualquer lugar. Ento, no um discurso

    propriamente poltico, mas sim, politicamente utilizvel em qualquer de suas

    dimenses. O que resta para dizer que essas idias so, segundo a velha frmula,

    uma concepo do mundo, uma weltanschauung, como diziam os alemes. Eu no

    gostaria de dizer isso na presena de algum guattariano ou deleuziano assumido,

    porque seguramente no estaria de acordo. Uma concepo do mundo uma srie de

    idias, de crenas, de convices acerca de como o mundo e de como devemos nos

    comportar nele. E esta obra de Deleuze e Guattari, embora esteja feita com

    representaes, pois est escrita com palavras, no uma ideologia. No um

    pensamento discursivo, mas segundo a prpria definio deles, uma mquina

    fundamentalmente energtica, destinada a vibrar e a fazer vibrar aqueles que dela se

    aproximam e a engaj-los em um movimento produtivo, que no passa exatamente

    pelas idias nem pelas palavras, passa pelos afetos. Por afetar e ser afetado. Passa pela

    capacidade de vibrar em consonncia, passa pela capacidade de despertar o

    entusiasmo, a vontade de viver, a vontade de criar. E curioso que isto que eu acabei

    de dizer, costuma-se dizer, por exemplo, sobre os discursos religiosos ou sobre os

    discursos ideolgicos. E no se pode dizer que a obra de Deleuze e Guattari no tenha,

    em certo sentido, uma vocao religiosa. Mas religiosa na melhor definio de re-ligare, de unir novamente os homens, sobretudo os homens que a merecem, ou as

    partes dos homens que so capazes de unir-se para gerar produtos novos e dignos.

    Esse discurso, como vocs seguramente podero apreciar, se so leitores de Deleuze e

    Guattari, um discurso incrivelmente erudito, de um rigor e de uma seriedade, de uma

    literalidade nas citaes, que

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    chega a ser um tanto desesperador. Porque a gente no consegue saber como que

    dois intelectuais conseguem ler tantas coisas, entend-las to bem e extrair delas

    estritamente aquela parte que eles podem integrar no discurso prprio, com essa

    vocao revolucionria e produtiva. Mas toda essa erudio, toda essa severa lgica,

    toda essa ortodoxia no discurso acadmico no o mais importante dessa obra. O

    mais importante aquilo que fervilha por baixo, sob o discurso. essa capacidade de

    capturar o leitor e de ir integrando-o a um mundo que, aparentemente mgico, um

    mundo aparentemente de fico, infinitamente mais real que os discursos

    acadmicos. que os discursos filosficos especulativos, que as prdicas religiosas, ou

    que as promessas polticas. importante destacar essas caractersticas dos textos e dos

    discursos de Deleuze e Guattari, porque eles esto sempre integrados a um tipo

    particular de militncia. Eles sempre tm um "p" numa ao concreta que se exprime

    e se inspira nesses escritos, dentro da famosa idia de prxis, ultimamente to

    esquecida. A proposta de uma micropoltica a ao poltica que acompanha a

    proposta analtica desses autores, que se chama "Esquizoanlise". A Esquizoanlise

    uma leitura do mundo, praticamente de "tudo" o que acontece no mundo, como diz

    Guattari em seu livro sobre as ecologias, sendo uma espcie de Ecosofia, uma

    "episteme" que compreende um saber sobre a natureza, um saber sobre a indstria, um

    saber sobre a sociedade e um saber acerca da mente. Mas um saber que tem por

    objetivo a vida, no seu sentido mais amplo: o incremento, o crescimento, a

    diversificao, a potenciao da vida. importante saber que essa micropol tica noest instrumentada por partidos polticos, embora no seja proibido exerc-la dentro

    deles. No toma, como lugar privilegiado de atuao, a academia, com suas produes

    ortodoxas e rgidas. No prope a formao de uma igreja, mais ou menos desptica.

    No necessita atuar dentro dos mbitos do Estado, apesar de no se negar a faz-lo.

    No precisa dos partidos polticos tradicionais, nem dos sindicatos, especialmente se

    eles so corporativos. No define um campo de esquerda mais ou menos global, queseria melhor do que o de direita. A proposta a de uma poltic que se pode fazer em

    todo e qualquer pequeno, mdio ou grande mbito em que transcorre a vida humana, a

    poltica dos movimentos singulares, dos movimentos que exprimem idiossincrasias, a

    poltica feminista, a poltica dos movimentos homossexuais, a poltica das minorias

    raciais, a poltica

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    dos imigrantes, a poltica dos sem-terra, a poltica de todos aqueles que sofrem a

    explorao, a dominao, a mistificao do mundo atual, mas que no pertencem

    necessariamente aos organismos, s entidades molares respeitadas e consagradas pelo

    mundo em que vi vemos, e que so responsveis pelo mundo estar como est. uma

    poltica baseada em uma proposta bsica que diz que a essncia da realidade a

    imanncia do desejo e da produo. O desejo, aquele descobrimento de Freud, o

    desejo inconsciente, dito no sentido no apenas de um espao do psiquismo, de uma

    fora do psiquismo, mas dito no sentido da essncia, da substncia de tudo aquilo que

    existe. Ele tem, dizem Deleuze e Guattari, o mesmo processo de funcionamento que

    Freud descreve no inconsciente psquico, particularmente em seu processo primrio.

    E, por outro lado, esse mesmo processo um processo substancialmente produtivo, a

    permanente criao do diferente, a gerao constante do novo. Ento, quando Deleuze

    e Guattari dizem que o processo ltimo da realidade produtivo e desejante, eles

    introduzem a idia de desejo na materialidade produtiva, e a idia de produo neste

    processo criativo que o desejo, e que habitualmente se atribui ou apenas ao campo

    do psquico ou s esferas mais ou menos ultraterrenas do metafsico. Esta proposta da

    substncia da realidade como repetio do diferente, do diferente radical, esta,

    chamemo-la assim, ontologia de Deleuze e Guattari, o pilar de sua proposta tica.

    Porque uma afirmao acerca da realidade, que diz que esta, em si mesma, uma

    fonte inesgotvel de criao, uma potncia incoercvel de transformao. No existe,

    na realidade, nenhuma fora definitria que equivalha a essa famosa "pulso demorte" freudiana ou a qualquer processo entrpico como os fsicos o descrevem nos

    sistemas fechados. uma ontologia, uma teoria do devir que, desde a base (se isto se

    pode chamar "base"), prope um tipo de vida que confie nisto, que acredite que somos

    portadores de uma energia criativa que nos faz formar parte de um mundo que

    simultaneamente fsico, natural, humano e maqunico. As separaes que se

    estabelecem neste mundo, e as hierarquias que se postulam nessas relaes soproduto de uma concepo autoritria do universo, que sempre tem que ter algum

    setor da realidade que seja mais respeitv.el, mais temvel, mais poderoso que o outro.

    Deleuze e Guattari dizem que em tudo que existe h uma imanncia que faz com que

    cada um dos campos seja igualmente importante.

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    No descrevem a natureza como aquele campo da realidade que existe para

    ser dominado pelo homem, no descrevem as mquinas como criaes do homem que

    devem servi-lo, descrevem tudo isso em um nvel de interpenetrao, de igualdade

    hierrquica, em que cada segmento desse real deve combinar-se com o outro,

    procurando o crescimento harmnico de todos esses setores ao mesmo tempo. Por

    outro lado, atribuem a esta conexo de potncias uma natureza produtiva, que no

    precisa fazer-nos acreditar que somos resultado de uma criao falida de alguma

    entidade sobrenatural ou transcendente. E tambm no precisa fazer-nos acreditar que

    somos um produto monstruoso de alguma natureza que funciona exclusivamente

    guiada por leis mais ou menos fascistas. Este saber e este afazer que estas duas figuras

    tm criado e promovido atravs de suas vidas militantes e de suas produes tericas,

    so feitos por um procedimento epistemolgico, digamos assim, que os autores

    assumem valente e quase humoristicamente.

    Eles postulam o procedimento do "roubo", eles "roubam", elespegam de cada teoria, de cada prxis, aquela parte que lhes parece mais inspirada,

    aquela engrenagem que eles podero colocar no interior de sua mquina terica e

    militante, sem interessar-se por completo pelo rtulo geral que possa ter essa

    disciplina da qual pinaram e "roubaram" um conceito.

    Assim como para eles no existe hierarquia entre o mundo natural, o mundo

    subjetivo e o mundo maqunico e social, assim tambm no existem discursosconsagrados, textos adorveis e discursos insignificantes.

    Um dos conceitos essenciais desta teoria, o conceito de "Corpo sem rgos",

    foi tomado simultaneamente de um poema de um literato louco, Antonin Artaud, de

    um mito dos ndios Dgons e de um mito das religies orientais que se chama "o Ovo

    Csmico". Acontece que esta categoria, "Corpo sem rgos", criada tomando

    elementos de um discurso "psictico", de um mito indgena e de um ideologema de

    uma religio oriental, um conceito que acaba dizendo uma coisa muitssimo

    parecida com o que diz a fsica quntica atual, com o que diz a teoria dos fractais, a

    teoria das catstrofes de Ren Thom, o que tem de mais evoludo na fsico-qumica

    atual. Estas coincidem. Por outro lado, o discurso do texto de Deleuze e Guattari

    feito da mesma maneira utilizada pelos artistas primitivos para fazerem seus quadros e

    obras de

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    arte cotidianas. Eles se declaram bricoleurs, juntadores de idias, sobretudo

    juntadores de elementos cuja caracterstica em comum no ter nada em comum.

    Isto, primeira vista, poderia fazer supor que encontraremos uma salada de

    palavras. E no uma salada de palavras o que se encontra nestes textos, mas um

    discurso fulgurante, como eu dizia, revelador, crtico e, sobretudo, incrivelmente

    inventivo. Ento, esses ladres bricoleurs fazem depender essa criatividade

    justamente da sua irreverncia. Porque, apesar de fazerem citaes com uma preciso

    assombrosa e com um cuidado bibliogrfico surpreendente, eles conseguem fazercom que aquilo que roubaram diga alguma coisa nova, de tal forma que, se o autor

    que foi vtima do roubo chegasse a l-lo, no se reconheceria nele. H uma passagem

    no livro de Deleuze que se chama "Dilogos", onde o autor define seu mtodo de

    criao terica de uma maneira metafrica ou alegrica, dizendo que se trata de

    aproximar-se sigilosamente de um autor, pelas costas, e fazer-lhe um filho

    monstruoso, onde ele no se reconheceria. S que monstruoso, neste caso, no querdizer teratolgico, no quer dizer ridculo, absurdo, disforme. Quer dizer maravilhoso,

    quer dizer absolutamente impensvel para o prprio autor deste conceito.

    Sem poder ir mais alm nesta introduo e supondo que haver algum

    perodo destinado ao dilogo entre este amvel pblico e eu gostaria de concluir

    referindo-me a uma das tantas relaes que estes textos de Deleuze e Guattari

    estabelecem, e que interessante: a relao com a Psicanlise. Eu a escolho quaseque por um vcio profissional, porque eu sou psicanalista, e a escolho tambm por

    ter uma certa suspeita da presena de vrios especialistas na matria, aqui, no

    pblico. Mas poderia falar tambm da relao crtica da Esquizoanlise com o

    Materialismo Histrico. Ou poderia falar da relao crtica da Esquizoanlise com a

    Lingstica estruturalista, com a Antropologia estruturalista, ou com as concepes

    capitalistas da Economia. Mas vou escolher provisoriamente a relao com aPsicanlise.

    Os textos de Deleuze e Guattari, a meu modo de ver, pelo menos para a

    minha leitura, vm tendo uma modificao no percurso do tempo, com relao

    Psicanlise. Quando, por exemplo, Guattari escreve "Psicanlise e

    Transversalidade", um analisado de Lacan, e assina embaixo da teoria do

    significante, da concepo estrutural do psiquismo,

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    etc. Mas manifesta uma franca preocupao poltica e social, que, como se sabe,

    estava ausente na obra de Lacan e na da maioria de seus continuadores. J quando

    Guattari escreve, junto com Deleuze, "O Anti-dipo", faz neste livro uma crtica

    radical Psicanlise, que se pode resumir da seguinte maneira: a Psicanlise seria a

    cincia que d conta de um modo de produo do sujeito psquico. E este modo de

    produo do sujeito psquico , sem dvida, o modo de produo edipiano. no seio

    da estrutura edipiana, que todos os psicanalistas consideram nica, eterna e universal,

    que se gera "o sujeito psquico". Toda outra forma considerada incompleta e

    aberrante. Deleuze e Guattari, no que dizem acerca do sujeito psquico, afirmam que

    no existe um modo de produo deste que seja universal e eterno. Mas sim, que

    existe um modo historicamente dominante de produo do sujeito psquico que,

    obviamente, o edipiano. E se pode dizer que o modo edipiano de produo do

    psiquismovamos diz-lo de uma maneira um tanto vulgar a produo de homens

    narcisistas, egostas, ciumentos, invejosos, petulantes, facilmente decepcionveis,

    majoritariamente heterossexuais, enfim, o que constitui o psiquismo habitual do nossomodo de ser, que universal. Mas no universal no sentido de que seja o nico. No

    universal no sentido de que sempre tenha sido assim, e no universal no sentido de

    que continuar sendo assim. Mas universal no sentido de que um modo de

    produo do sujeito psquico que teve sucesso em sua capacidade de impor-se aos

    outros, e at na sua capacidade de produzir uma teoria que seja prpria para descrev-l

    o tal como ele : a Psicanlise. Mas tambm universal no sentido de que ele tem sidocapaz de produzir elementos tericos que lhe permitem fazer sua autocrtica. E

    descobrir que no eterno, descobrir que no o nico possvel, e descobrir que essa

    dominao que ele impe sobre os outros um imperialismo, como existe o

    imperialismo poltico, o imperialismo ideolgico, o imperialismo econmico e at um

    imperialismo ecolgico. Em "O Anti-Edipo", ento, o psicanalista qualificado de

    algo assim como um mecnico especialista na restaurao, na reparao de umaparelhinho eletrodomstico que cumpre uma funo pobre, mas muito difundida.

    No percurso das obras posteriores, esta severa crtica inclui, alm do mais,

    uma reformulao completa do que o inconsciente (porque Deleuze e Guattari

    dizem que o inconsciente da Psicanlise ou um teatro antigo, com dipo, Jocasta,

    Laio e companhia, ou est

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    estruturado como uma linguagem, e ento parece um jogo de palavras cruzadas,

    dessas que saem nos suplementos de jornal aos domingos), que nunca foi pensado

    como uma fbrica, como um lugar de produo, pura e exclusivamente de produo,

    de uma produo desejante, de uma produo que ao mesmo tempo que cria, goza. E

    que s abafada, s sofre, s entra em conflito com aquelas estruturas scio-

    econmicopolticas e psquicas que vivem da reproduo e no toleram a produo do

    novo.

    Nota-se tambm uma espcie de maior compatibilidade ou tolerncia emrelao Psicanlise em "Caosmose", de Guattari, e no livro "O que a Filosofia?"

    Nestas duas obras est colocado, com toda a clareza, que a teoria, o mtodo, a tcnica

    e o campo clnico psicanaltico so uma espcie de "valor do nosso mundo", da nossa

    cultura, e que o fato de que tenha sido enfatizada nele toda uma tica de resignao,

    de castrao, de falta, de morte, no impede que, na prtica cotidiana, os aspectos

    vitais, os aspectos produtivos, os aspectos revolucionrios que todo psicanalista tem,apesar de ser psicanalista, se conectem, se articulem com aquilo que seu paciente tem

    de vivo, de produtivo, de revolucionrio e gerem curas que, uma vez analisadas com a

    metapsicologia freudiana, so entendidas de uma maneira diferente daquela que as fez

    acontecer. Mas isso no importa. O que importa que um espao social onde duas

    pessoas se encontram mais ou menos abrigadas, mais ou menos a salvo das formas

    mais grosseiras de represso do sistema. E onde, dependendo do poder criativo deseus desejos, podem dar origem a um bom encontro, que deixe os dois realizados em

    uma dimenso que nada tem a ver com os axiomas do procedimento.

    Bom, eu no posso estender-me muito mais, porque no quero cans-los e

    porque aguardo sempre, com expectativa, a participao do pblico. Mas queria

    concluir dizendo que Guattari veio ao Brasil pela primeira vez, trazido por uma

    instituio que eu fundei, junto com outros, o IBRAPSI Instituto Brasileiro dePsicanlise, Grupos e Instituies que no ano de 1978 fez um congresso no Rio de

    Janeiro, no qual estiveram presentes, junto com Guattari, as mximas figuras da

    psiquiatria alternativa do mundo. Esteve Basaglia, esteve Castel, esteve Thomas

    Szasz, esteve Goffman, esteve Beker, enfim... E tambm, os colegas desta orientao

    do Brasil e da Amrica Latina. Posteriormente a essa vinda de Guattari, eu tive

    ocasio de conviver e conversar com ele

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    em vrias oportunidades, quando o IBRAPSI o trouxe novamente e quando outras

    organizaes o trouxeram. Guattari tinha uma particular simpatia pelo Brasil e parece

    que o Brasil, tambm, pelas idias de Guattari. Penso que as idias de Guattari nunca

    encontraram um campo to frtil como aqui no Brasil. Devo dizer que, nessa

    convivncia, eu tive umas tantas discordncias com ele. Tivemos polmicas pblicas,

    em alguns congressos, porque tnhamos algumas divergncias no que se refere

    estratgia e ttica no processo de transformao do panorama da sade mental. Mas,

    transcorrido o tempo, eu tive a oportunidade de constatar que minhas opinies a

    respeito eram aparentemente mais realistas que as de Guattari. Eu prognostiquei, emvrias ocasies, para Guattari, que as transformaes que ele propunha e que pareciam

    estar se realizando aqui no Brasil, particularmente no campo da sade mental, e que

    outros companheiros haviam trazido com igual energia, por exemplo, Basaglia, no se

    iam realizar to rpida e facilmente como eles pensavam. Bom, isso j tem uns doze a

    treze anos. E quando examinamos o panorama da sade mental aqui, o que se v

    ainda uma dominncia da proposta psiquitrica clssica, da administrao excessivade psicodrogas, da terapia biolgica com choques e insulina, um tratamento carcerrio

    feito ao doente mental. E v-se que os movimentos deflagrados por Guattari e por

    Basaglia, por Castel, Foucault e por ns mesmos no tm tido o sucesso que se

    esperava. Alis, eu fao questo de insistir em que, pode ser que eu tenha tido razo

    quando adverti que a coisa no iria ser to fcil, porque junto com essa permanncia

    da Psiquiatria clssica, tambm vemos a proliferao de um tipo de Psicanlise que,justamente, Deleuze e Guattari criticaram de maneira irrefutvel. Mas devo confessar

    que no sinto nenhuma satisfao em ter tido razo. Pelo contrrio, devo a Guattari

    uma fora, um entusiasmo, uma vontade e um desejo, que realmente se despertaram

    em mim com a leitura de sua obra e com meu conhecimento pessoal dele, e que todas

    as dificuldades passadas no conseguiram apagar por completo. Nesse sentido estou

    muito grato a meu amigo, e prometo, publicamente, e peo a quem se interesse poristo que me acompanhe, porque no abandonaremos a luta. Pode-se fazer a crtica da

    organizao, pode-se fazer a crtica dos resultados, como disse Guattari, mas no se

    pode fazer a crtica do desejo. E este desejo o que Guattari fez viver em muitos e

    que continuar vivendo. Muito obrigado.

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    Debate

    Pergunta: Qual a proposta da Ecosofia?

    Baremblitt: A relao entre o gnero humano e esse campo denominado

    natureza uma relao que tem sido pensada e tem sido atuada, executada, quase

    sempre de forma assimtrica e hierrquica. Quer dizer, supe-se que o homem no ,

    ou pelo menos no exclusivamente um ser natural. E que ele deve relacionar-se

    com a natureza submetendoa, colocando-a a seu servio, e utilizando-a, segundo um

    conhecimento ditado pela razo por UMA razo, sobretudo a razo ocidental, que

    seria sinnimo de verdade, sinnimo de eficincia e sinnimo de justia. Aconteceque tem havido pensadores, tem havido povos, tem havido modos de analisar a vida

    que no aceitam essas premissas. Que consideram que o homem um ser natural e

    que sua relao com a natureza no deve ser uma relao de domnio, deve ser uma

    relao de acompanhamento, de harmonia, em que o homem no pode impor sua

    forma natureza com a suposio de que essa forma racional sinnimo de verdade

    indiscutvel. Mas ele pode aprender da natureza, porque a natureza contm um saberque no racional, mas que mais propcio para a vida que a organizao que os

    homens se deram em nome da razo. Ento, isso se pode dizer para qualquer modo de

    produo, para qualquer organizao social, mas se pode dizer especialmente para o

    capitalismo. Porque o capitalismo um modo de organizao das relaes humanas

    que est baseado na explorao do homem pelo homem, na dominao do homem

    pelo homem, na mistificao do homem pelo homem. E uma concepo assim, se fazisso com o homem, como no iria fazer o mesmo com a natureza? A concluso que

    esse sistema, que contm em sua estrutura, em sua essncia, a racionalidade, o saber

    cientfico, a conscincia, tem conduzido o mundo a uma situao como a atual, em

    que, dentro do gnero humano, a riqueza, o peso da misria, so distribudos de

    forma cada vez pior. No mundo atual temos cada vez mais miserveis, cada vez mais

    analfabetos, cada vez mais enfermos, cada vez mais deserdados. E temos levado anatureza a um ponto tal, que at essa soberba da cientificidade e do produtivismo

    capitalista teve que parar para examinar como as coisas esto, porque corremos o

    risco de perder o lugar em que vivemos, sejamos pobres, ricos

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    ou como for. E por outro lado, o mundo da mquina um mundo que j tem sido

    acusado, em diversos graus, de demonaco, ou tem sido idealizado como a salvao

    do universo. Deleuze e Guattari dizem que o mundo das mquinas um mundo quetem muito para ensinar-nos tambm. Mas que um mundo que no pode ser isolado

    dos interesses da humanidade em seu conjunto e no pode ser utilizado na

    explorao destrutiva da natureza, que imanente com a vida humana.

    Ento, a Ecosofia de Guattari prope um saber acerca do mundo da

    sociedade, do mundo da natureza e do mundo da mente, incluindo no mundo da

    sociedade a vida maqunica, o mundo das mquinas. uma espcie de democracianosolgica: tudo tem o mesmo nvel de valor, tudo forma de vida, tudo produtivo

    e tudo pode ser encaminhado no sentido de uma harmonia crescente. Mas esse

    trabalho de conhecer e de transformar no pode ser feito em nome de nenhuma

    entidade que seja considerada superior s outras, de nenhuma tirania, de nenhuma

    transcendncia. Esta mais ou menos uma forma de resumir essa questo.

    P.: Eu queria saber o que voc pensa a respeito da questo do caos. Guattarifala muito sobre o caos que inerente como forma de criar novas formas de

    conhecimento.

    B.: Bom, nessa observao que fiz anteriormente, mostro que a obra de

    Deleuze e Guattari tem um componente muito importante de Ontologia, ou seja, de

    Teoria do Ser, de como as coisas so. Essa Ontologia afirma que a essncia ltima

    produo desejante os processos da mesma so aqueles segundo os quais o maissubstancial do existente funciona ao acaso. Ou seja, a realidade constitutivamente

    desordenada, constitutivamente imprevisvel, constitutivamente catica, coisa que

    j diziam alguns filsofos, e coisa que hoje a microfsica e a macrofsica certificam.

    O que a cincia tinha estudado e aquilo no qual a poltica se baseia o estudo da

    regularidade de pequenas ilhotas de ordem que se do tanto no campo da natureza,

    como no campo da vida social, e no campo do psiquismo. Pequenas ilhotas em que oque predomina uma repetio, uma regularidade, que a cincia estuda e que

    formaliza em leis. Mas, a rigor, toda a potncia produtiva da realidade em qualquer

    mbito de que se trate depende mais dessa natureza catica, dos encontros ao acaso,

    das pequenas partculas (como diziam os esticos, ou Demcrito), mais do que desse

    planejamento racional e

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    exploratrio que se faz daquelas reas de regularidade sujeitas a leis. O que Guattari

    prope, tanto como tema de investigao, de pesquisa, como forma de atuao tica,

    como forma de militncia poltica, a construo de dispositivos que tenham emconta essa potncia produtiva do caos, do acaso, e elaborem estratgias e tcnicas

    destinadas a produzir forrmaes complexas no seio do acaso. Isto quer dizer

    formaes mais ou menos ordenadas, mas com uma ordem elstica, com uma ordem

    fraca, que permita o efeito produtivo, que permita a emergncia do caos criador. Nesse

    sentido, politicamente, e este talvez seja o tema da discusso, Deleuze e Guattari tm

    muito a ver com a tradio anarquista e com a tradio autogestiva de todos osmovimentos histricos dessa caracterstica. Mas esta afirmao feita no apenas

    desde uma leitura poltica, mas tambm de uma leitura das afirmaes da fsica das

    nebulosas, ou da fsica do comportamento das partculas atmicas, ou de certa

    caracterstica das combinatrias biolgicas, pelas protenas alostricas, ou dos

    sistemas tipo cadeia de Markoff ou da matemtica de Riemann, enfim, de todos

    aqueles campos do saber em que se tem descoberto isto mesmo: a natureza catica doser e a importncia de construir dispositivos que no sejam rigidamente ordenados,

    mas sim que dem possibilidade da emergncia criativa do caos. Deleuze havia

    produzido o termo Caosmos, que essa combinao de cosmos com caos. Isto no

    quer dizer que seja a hegemonia de uma ordem constituda e mantida rigidamente.

    Guattari acrescenta CAOSMOSE. Eu suponho que no se refere tanto a esse universo

    catico e ao mesmo tempo cosmtico, mas sim ao procedimento pelo qual se podeviver e produzir dentro dele. Existe a palavra osmose, ento, eu imagino que uma

    metfora tomada dacaos e cosmos articulados e propostos como procedimento.

    P.: Quando ele fala dessa ordem em um movimento de desordem que

    uma ordem que no quer dizer normativizao, o que se faz com a angstia que a

    gente sente perante a perda da certeza e da segurana que dada pelo Institudo?

    B.: Nas caractersticas que apresentam certas propostas da f'ilosofia

    socrtica, platnica; ou de certas correntes psicanalticas atuais, que tm uma enorme

    influncia de Heidegger, de Kierkegaard, ns vemos que a angstia atribuda a uma

    caracterstica essencial do sujeito psquico. Quer dizer, das trs teorias freudianas da

    angstia, a que

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    predomina, nestas leituras, a de que a angstia uma espcie de percepo da ao

    da pulso de morte. Entretanto, em Freud, encontramos uma primeira teoria da

    angstia que era produto do recalque, do impedimento de que a libido se realizasse emencontros criativos e prazerosos. Desde logo, nestas duas posturas, existe uma

    filosofia por detrs. Ento, se ns pensamos que a angstia a percepo de uma fora

    no nosso interior, que a pulso de morte, e que constitutiva da realidade no mesmo

    nvel, na mesma hierarquia que a de vida, logo, naturalmente, a angstia adquire um

    estatuto, adquire uma respeitabilidade, a angstia promovida como necessria, como

    inevitvel e como "atendvel", no sentido de que uma certa dose de angstia umelemento indicador para levar-nos a um comportamento adequado, apropriado. Na

    concepo de Deleuze e Guattari, a angstia produto da antiproduo, que o mundo

    do institudo e do organizado exerce sobre nossas foras fsicas, psquicas e sociais.

    Em conseqncia, um efeito indesejvel e contornvel. Agora, no h receita contra

    a angstia. Mas, se sabemos que essa angstia exprime um mal-estar perante a

    possibilidade da perda e da destruio de coisas que no nos fazem bem, a receitacontra a angstia o entusiasmo, e, como dizia Espinoza, as "paixes alegres". a

    plena certeza de que o que est sendo libidinalmente feito vai ser melhor, porque

    novo. No que se desconhea, nessa teoria, a existncia da angstia, mas eu acho

    que se poderia resumir dizendo que esta teoria se nega a fazer-lhe propaganda, porque

    considera que "a propaganda a alma do negcio".

    P.: O senhor trouxe para ns um Guattari de final de anlise, e nesse ponto

    eu acredito que a tica que ele traz de um desejo decidido e no vejo como essa tica

    de um desejo decidido de final de anlise faa contraposio ou entre em contradio

    com a tica da Psicanlise a partir de Lacan. Porque me parece que a partir d Lacan,

    esse termo, cincia do real, que est descrito no L'tourd, em Lacan, essa proposio

    dele do real como algo que impossvel, como algo que escapa, que sempre novo

    isso est em Lacan. Acredito que Guattari traz esse final de anlise, esse entusiasmo

    do final de anlise, de um sujeito que produz e que traz um desejo decidido por algo

    que totalmente novo. Ento, por que essa contraposio com relao ao que o senhor

    estava dizendo? Que a tica da Psicanlise seria uma tica da resignao, da falta, da

    morte... Ser que ainda no seria uma leitura de Freud, ainda, talvez, com

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    pressupostos anteriores aos que Lacan trouxe para ns depois desse retomo a Freud?

    Onde justamente ele resgata, no texto freudiano, essa radical idade do novo na

    estrutura? Eu gostaria que o senhor falasse, porque me parece que Guattari fruto deuma anlise, ele traz esse entusiasmo prprio de algum que pde chegar ao seu final

    de anlise e trabalhar e viver e produzir... Gostaria que o senhor falasse um

    pouquinho sobre isto.

    B.: Eu acho uma observao interessante e no muito fcil de responder.

    Porque, por exemplo, Reich tambm fruto de uma anlise e, sem dvida, eleproduziu uma teoria do psiquismo, uma teoria das pulses, uma proposta de

    articulao entre a tcnica psicanaltica e a militncia poltica, que radicalmente

    diferente de todo "retomo a Freud", e particularmente do kleiniano e do lacaniano.

    Tausk, por exemplo, tambm foi analisado, e ficou psictico e se suicidou. Otto

    Rank,tambm. Jung, que tambm foi bem analisado, foi qualificado, por Freud, de

    profeta, ironicamente, porque teria abandonado a Psicanlise. Toda a Psicanliseanglo-saxnica, e particularmente a norte-americana, qualificada por Lacan,

    depreciativamente, de human engineering, para significar que uma anlise que s

    serve para a "adaptao", e que o nico retomo verdadeiro a Freud o de Lacan.

    Ento, esse problema de atribuir os mritos produtivos de Guattari ao fim de uma boa

    anlise, pelo menos, discutvel.

    P.: Estou me referindo tica que o senhor traz de Guattari, de um desejo

    novo. Ela me faz lembrar os conceitos, inclusive, de algo que se produz em um final

    de anlise um desejo desse tipo, que fundamentalmente novo. Ento, eu no vejo

    a nenhuma contradio.

    B.: Eu sei, mas esse o ponto seguinte. O primeiro ponto se Guattari foi o

    que foi como resultado de uma anlise. Eu no afirmo o contrrio, mas, pelo menos,

    eu deixaria em aberto. Agora vou passar aos pressupostos. Em princpio, digamos,

    deixemos entre parnteses o resultado de um procedimento. Porque, por exemplo,

    Deleuze, que provavelmente responsvel por cinqenta por cento desta obra, jamais

    se analisou. Isso, deixamos entre parnteses. Mas, com respeito aos pressupostos, isso

    mais complexo de explicar. Fazendo um resumo injusto, eu acho que se pode fazer

    passar a questo por isto que voc mencionou. Por exemplo, na teoria dos trs

    registros, para Lacan, o Real impossvel. Esse real impossvel o que exige uma

    produo

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    imaginria, que, por sua vez, subordinada ao simblico, vai ser o pr-requisito de toda

    a produo do novo. Justamente, a famosa tica do analista consiste em colocar-se em

    um lugar de suporte da transferncia e da no resposta demanda, para que omecanismo imaginrio dispare, e para poder pontu-lo impondo o simblico. Para

    Deleuze e Guattari, no real "tudo" possvel, porque o sujeito parte do real. No

    existe essa diferena entre o mundo da subjetividade, que o mundo de

    negatividades, na linguagem pensada, por exemplo, como "a morte da coisa", no

    existe o pr-requisito da castrao, no existe a submisso lei, no existe a

    identificao com a metfora paterna; o que existe o funcionamento do psquico quetem a mesma essncia do real. Ento, a proposta no a de uma repetio diferencial,

    como em Lacan, mas a proposta a de uma pura diferena, de uma multiplicao

    diferencial incoercvel. No se precisa de um procedimento que nos convena de que

    o real impossvel, e que, por esse motivo, ns poderemos "primeiro" imagin-lo,

    "depois" simboliz-lo. Isso implica uma teoria da linguagem, isso implica uma teoria

    do Real, em geral, e isso se adere a toda uma linha filosfica que a que enfatiza oSer como falta, ou a falta constitutiva do Ser. Para Guattari e Deleuze, isso no existe,

    a no ser no molar. Para estes autores nada mais absurdo do que afirmar que houve

    um retomo "verdadeiro" a Freud. A Freud, houve milhares de retornos. E o que h

    um retomo de moda, ultimamente. Mas, utilizando Freud como matria-prima terica,

    pode-se fundamentar a proposta de um desejo como produo e no de um desejo

    como insistncia em reeditar um objeto perdido e jamais tido. Ou seja, o fundamentala o estatuto do nada, da ausncia, da falta, e a tica no a tica heideggeriana, no

    a tica do ser para o nada, mas a tica de Nietzsche, a tica de um ser para a luta,

    de um ser para a vida, que lhe vai permitir uma superao da dificuldade, no a de um

    ser para a resignao.

    P.: No final do seminrio onze, Lacan fala, quando trata dos quatro

    conceitos fundamentais, desse desejo como uma diferena pura. Desse desejo como

    pura diferena no final, ele define desejo nesse sentido. Estou insistindo nisso,

    porque Lacan, nesse seminrio, l pelos anos setenta, faz uma retificao nestes

    conceitos de Real, Simblico e Imaginrio, e ele d uma prevalncia ao conceito de

    Real, dizendo que, quando afirmou que o "inconsciente era estruturado como uma

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    linguagem", ele no havia dito que o inconsciente era uma linguagem. Ele disse

    apenas que o inconsciente era estruturado COMO uma linguagem. E da ele vai

    extrair toda uma cincia do Real, vai estabelecer uma lgica, que vai desestimular osfalsos maternas, e vai trazer toda uma concepo do real. A rigor, a estrutura vai ser

    Real. Ento, ele vai fazer um corte a nessa primeira leitura dele, anterior, e vai

    privilegiar o registro do real.

    B.: Mas acontece que esse um Lacan para o qual o Real estrutura. Para

    Deleuze e Guattari, a estrutura uma dessas "ilhotas de ordem", de regularidade, dasquais a cincia produz as leis. Mas a essncia do Real, o que verdadeiramente

    produti vo, no so as estruturas, so os fluxos, so o reverso da estrutura. Ento,

    falam de dois reais totalmente diferentes, distintos. O problema que, quando Lacan

    formula as estruturas, em realidade, ele , digamos assim, mais platnico que nunca.

    Porque voc se lembra da famosa farmcia de Plato, a famosa tentativa de ordenar o

    mundo todo em espcie, gnero, etc., ou seja, o mtodo da diviso. A propostalacaniana uma forma matmica, de fazer a mesma coisa. Ento, o que Deleuze e

    Guattari dizem que, quando um sujeito produzido, quando produzida uma

    subjetivao, ela produzida como componente de um acontecimento. E no existe

    uma forma estrutural que d conta desse sujeito. Porque esse sujeito no uma

    variao de uma forma, pelo contrrio, uma forma radicalmente nova. Ento, no

    tem comparao possvel. So dois reais diferentes.

    P.: Como Guattari poderia se entusiasmar com a situao tica do Brasil

    noventa e dois?

    B.: Bom, eu no sei como poderia no se entusiasmar, eu apenas sei como

    foi que me entusiasmou a mim. Guattari disse, textualmente, uma vez, que

    considerava o Brasil como um imenso laboratrio social, de onde podiam surgir os

    mais incrveis inventos. claro que a gente sabe que um laboratrio onde alguns ou

    muitos dos experimentos acabam em resultados socialmente trgicos. Mas ao mesmo

    tempo eu acho que talvez se trate simplesmente de comparar, por exemplo, o Brasil

    com a Comunidade Europia, ou com os Estados Unidos na atualidade. Eu acho que

    (bom, uma .opinio pessoal) mas eu acho que, nesse momento, as possibilidades de

    uma desordem produtiva no Japo, ou no Mercado Comum Europeu, ou nos Estados

    Unidos, so, no mnimo, menos provveis que na Amrica Latina. Eu viajo

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    freqentemente para a Europa e vejo que, neste momento, a luta poltica convencional

    na Europa, na Espanha, suponhamos, que tem Partido Anarquista, Partido Comunista,

    Partido Social-Democrata, Partido Democrtico Cristoa luta poltica convencional consiste em que, nessas eleies, os anarquistas perdem um vereador e os

    democratas cristos ganham um. E na prxima vez acontece o contrrio, e mais ou

    menos nisso consiste o movimento poltico, digamos, clssico, visvel. Bom, at desde

    este ponto de vista, um pas como o Brasil, que sofreu uma ditadura de mais de vinte

    anos e que, em pouqussimo tempo, consegue, digamos assim, uma eleio direta, tem

    a desgraa de perder o presidente que escolheu, inicia um novo processo eleitoral eescolhe errado, mas escolhe errado por cinco milhes de votos, sobre um parque

    eleitoral de setenta milhes; que consegue, de uma forma ou outra, visualizar seu eno

    e, atravs de seus representantes, duvidosos ou no, afastar seu presidente do cargo

    alm disso, ainda existe um partido poltico que no tem similar em nenhum outro

    lugar na Amrica Latina... eu acho que um pas interessante. Eu no digo que seja

    para ser otimista, mas pelo menos entusiasta se pode ser.

    P.: Eu gostaria que o senhor colocasse um pouco a questo do paradigma

    esttico. Gostaria que o senhor falasse um pouco sobre os significados desse

    paradigma esttico.

    B.: Acho que esta ser nossa ltima troca. Eu acho que essa questo do

    paradigma esttico est prefigurada em toda a obra de Deleuze e Guattari, na medidaem que eles consideram que o discurso, por exemplo, musical, e nesse sentido seguem

    Nietzsche claramente, que diz que as verdades, ou o novo, o transformador, isso vem

    de qualquer tipo de produo. E particularmente da produo artstica. Em diversas

    passagens da obra eles fazem questo de tomar contribuies literrias, musicais,

    pictricas, estticas, como lgicas que inteligibilizam o processo do real e propiciam

    as mudanas com muito maior antecipao do que outros paradigmas. Ento, comocrticos que so do paradigma cientfico, que caracterstico da modernidade, essa

    proposta de adotar um paradigma esttico tem a ver com essa potncia que eles

    atribuem produo artstica.

    P.: Como antecipadora?

    B.: Como antecipadora e como preservadora da criao, da vida, da

    harmonia. E tambm como receptora da desordem criativa, como se

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    v, por exemplo, na msica moderna, na msica abstrata... enfim, a arte sempre est

    alm de qualquer descobrimento praticado com outra metodologia em outro campo.

    Provavelmente o nico campo a que eles atribuem a mesma capacidade de gerar essefamoso pensamento do fora, como dizia Foucault, a loucura.

    Bom, agradeo muitssimo a ateno de vocs e espero que, em alguma outra

    ocasio menos triste, nos encontremos outra vez. Muito obrigado.

    Livros de autoria de Felix Guattari:

    Psicanlise e Transversalidade

    Revoluo Molecular: Pulsaes Polticas do Desejo

    Inconsciente Maqunico

    Cartographies Schizoanalitiques

    As Trs Ecologias

    Caosmose. Um Novo Paradigma Esttico

    Em colaborao com Gilles Deleuze:

    Anti-dipo. Capitalismo e Esquizofrenia

    Poli tique et Psychanalyse

    Kafka. Por uma Literatura Menor

    Mil Plats

    O que a Filosofia?

    Em colaborao com Suely Rolnik:

    MicropolticaCartografias do Desejo

    Em colaborao com Antonio Negri:

    Novos Espaos de Liberdade

    Outros:

    Felix Guattari entrevista Lula

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    A ltima Viagem do Capito Guattari*

    Nos ltimos dias de agosto, faleceu durante o expediente de trabalho no

    Hospital La Borde, em Paris, o militante poltico, psicanalista e intelectual francs,

    Felix Guattari.

    A notcia deixou terrivelmente penalizados todos aqueles que de uma ou de

    outra maneira foram seus amigos, companheiros de percurso e beneficirios de suas

    extraordinrias idias e iniciativas.

    A cultura mundial perdeu um dos mais originais e produtivos expoentes nosltimos quarenta anos.

    Ainda prematuro avaliar a estatura de Guattari, da qual difcil falar sem

    associ-la de seu inseparvel companheiro, o filsofo Gilles Deleuze (co-autor de

    boa parte de sua obra), apesar da projeo quase planetria que lhe atribumos.

    Guattari morreu aos 62 anos de idade, de forma sbita e no pleno uso de uma

    formidvel vitalidade fsica, bem como de uma inteligncia to vigorosa quantoesplndida.

    Outro importante pensador recentemente desaparecido, Michel Foucault,

    disse em certa ocasio, referindo-se obra de Gilles Deleuze, uma frase que se tomou

    clebre:"O sculo ser deleuziano". Por extenso, e guardada a devida distncia que

    separa Foucault deste que escreve estas linhas, permito-me afirmar que todas as prxis

    libertrias das prximas dcadas sero, assim denominadas ou no, guattarianas.

    No exagerado afirmar que a "singularidade" Guattari de um tal porte

    que, seguramente, o toma membro relevante de uma famlia (ou melhor dizendo, de

    uma filiao intensiva) que inclui entre seus membros, arbitrariamente mencionados,

    Sartre, Fanon, Basaglia e outros. Esses "outros" so, ao mesmo tempo, poucos

    escolhidos... e infinitamente numerosos, de cuja vida e morte nada se saber

    publicamente, Guattarianos de fato.

    literalmente impossvel listar aqui os textos escritos por Guattari, bem

    como os que publicou com Gilles Deleuze, Tony Neri e outras relevantes figuras

    intelectuais (algumas delas brasileiras), porm,

    * Artigo publicado no Jornal do Movimento lnstituinte de Belo Horizonte, 1993.

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    cabe ressaltar que toda sua obra contm certas caractersticas, que imperioso

    pontuar.

    Em primeiro lugar, todos e cada um desses escritos esto ligados a

    movimentos e aes concretas de transformao do mundo, no sentido do combate a

    qualquer forma de explorao, dominao e desinformao ou mistificao do homem

    pelo homem.

    Em segundo lugar, nunca se reduzem a um gnero que possa ser enquadrado

    em uma especificidade acadmica ou profissional consagrada e que permita qualific-las de cientficos, literrios, ideolgicos... ainda que contenham elementos do que de

    melhor h em cada um destes campos do saber.

    Em terceiro plano, nada do que Guattari escreveu ou instituiu e desenvolveu

    repetio, continuao, ampliao ou comentrio do discurso ou da escola de algum

    mandarim terico da moda, por mais ilustre e exitoso que este seja considerado.

    Invariavelmente, as idias do extinto amigo so autnticas invenes, em que o

    essencial a novidade radical, surpreendente, islita, audaz, produto de uma erudio

    e de um rigor assombrosos, porm empregados com fora, leveza e entusiasmo plenos

    de inspirao e refratrios a qualquer pretenso de sistematicidade doutrinria

    destinada a formar igrejas, partidos, corporaes ou sociedades multinacionais de

    epgonos, adeptos ou iniciados.

    Por ltimo, convm admirar-se de que a profunda modstia, assim como o

    humor que percorrem seus textos (o que o levou a qualific-los de "proposies

    descartveis") no impedem que os mesmos se postulem espinozianamente como

    proposies de vida ou para a vida, e se coloquem, incondicionalmente, a servio de

    todo aquele que deles queira se apropriar, sem qualquer ritual de iniciao para

    adquiri-las e sem dvida nenhuma a pagar pela "paternidade" dos conceitos. Seu nicomotivo o incremento da Produo e do Desejo em todos os domnios da realidade e

    para todos "os homens de boa vontade", que, como dizia Nietzsche, somente pode ser

    a Vontade de Potncia.

    O capito Guattari empreendeu sua ltima aventura de explorao de

    mundos desconhecidos. Os que viajaram com ele em vrias de suas expedies no

    tiveram a .sorte de receber as cartas de navegao deste ltimo itinerrio.

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    Mas as fascinantes cartografias que produziu at agora esto disposio das

    novas geraes que anseiam por planejar trajetrias intrpidas para metamorfosear o

    sinistro universo que o Capitalismo Planetrio Integrado lhes tem destinado.

    Os amantes do Poder, do Lucro e do Prestgio, os politiqueiros engomados,

    os "homens cinzentos" (segundo o terrvel diagnstico de D.H. Lawrence, um dos

    favoritos de Felix) ficam dispensados da leitura das memrias do Capito Guattari.

    Porm nunca dormiro tranqilos... a Revoluo Molecular est em marcha.

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    In Memoriam de Gilles Deleuze*

    Filsofo NmadeSenhoras e Senhores,

    Desejo comear essa conversao agradecendo ao Movimento Instituinte de

    Belo Horizonte e s entidades que colaboraram na organizao desse evento, por

    haverem-me dado a honra de dissertar acerca da obra e da figura de Gilles Deleuze.

    Igualmente sou grato ao auditrio por sua presena.

    Essa homenagem deveria ser muito mais ampliada e reiterada no mundo

    inteiro, e no sabemos se haver de s-lo. Por isso nossa contribuio nesse sentido

    nos parece to discreta quanto necessria e insuficiente.

    Como uma aclarao, antes de entrar no tema, creio obrigatrio pontuar o

    seguinte: supe-se que, para falar acerca de um autor dessa envergadura, e em

    circunstncias to solenes como a presente, preciso conhec-lo integralmente.

    Por razes que, segundo espero, ficaro explcitas no curso dessa

    conferncia, devo reconhecer que no tenho esse privilgio. Meu domnio desse

    monumento do saber limitado, e questiona meu direito a ocupar hoje este lugar de

    expositor. No obstante, tenho o consolo de crer que, se bem existem muitos que tm

    estudado Deleuze mais e melhor que eu, ningum pode estar seguro de ser capaz deum trnsito exaustivo por esse pensamento, que, por sua prpria natureza,

    inesgotvel.

    Resulta to pouco original quanto inevitvel comear esse breve percurso

    com a famosa sentena pronunciada pelo talento de Michel Foucault. sabido que

    esse formidvel intelectual disse: "O SCULO SER DELEUZIANO".

    Os comentrios acerca dessa frase, que encantou somente uns poucos e

    escandalizou muitos, poderiam ocupar toda essa conferncia.

    Que pretendia dizer Foucault com tal afirmao?

    * Palestra organizada pelo Movimento Instituinte de Belo Horizonte em dezembro de 1995

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    O mesmo Deleuze, consultado sobre o assunto, e com a modstia que

    sempre lhe foi prpria, lhe atribuiu um sentido ao mesmo tempo carinhoso e

    humorstico.Sem descartar esses significados, tratarei de reduzi-los a dois, formulados,

    por minha vez, como interrogaes:

    Trata-se de prognosticar que a cultura dos anos que viro chegar a

    reconhecer a obra de Deleuze como a mxima expresso do sculo XX? Ou, talvez,

    trata-se de manifestar a esperana de que o perodo que falta para completar este

    sculo, ou, quem sabe, todo o curso do sculo XXI, ser, em sua realidade, expressoconcreta das idias de Deleuze?

    Permito-me sustentar que a primeira interpretao altamente provvel, e a

    isso me referirei a seguir, dentro das limitaes dessa dissertao. Creio sinceramente

    que a obra de Deleuze , seno a nica, uma das mais perfeitas do nosso tempo.

    E quanto segunda compreenso, temo que no tenhamos a menor

    segurana sobre o assunto. Assim como nosso sculo vai mal, e como o prximo nosantecipa, no apenas no podemos dizer que ser deleuziano, seno que nem sequer

    sabemos se ser, de maneira alguma. O certo que tentar sintetizar, em uma breve

    exposio, a obra e a figura desse pensador, que, segundo Foucault, dar seu nome

    histria de nossa poca, uma tarefa rdua.

    Devemos, inclusive, registrar outra peculiaridade que contribui para essas

    dificuldades: a extraordinria co-autoria de Deleuze e Felix Guattari, seu diletoamigo, tambm recentemente falecido.

    Se bem a publicao a dois no seja uma novidade absoluta (basta recordar

    os textos de Marx e Engels ou de Freud e Bullit), a colaborao entre Deleuze e

    Guattari provavelmente a nica em seu gnero, dado que a mesma a prova

    coerente de toda uma teoria assumida no-autoral da escrita.

    Ainda que possa resultar um pouco pesado, devido fabulosa e prolficaobra desse autor, nosso dever comear por uma mnima biografia e por uma sucinta

    enumerao da bibliografia deleuziana.

    Deleuze nasceu em Paris em 18 de janeiro de 1925. Graduou-se em Filosofia

    em 1948, tendo sido aluno de Ferdinand Alquie e Georges Canguilhelm. Ensinou

    Filosofia em um liceu e freqentou as aulas e conferncias de Jacques Lacan, Pierre

    Klossowsky, Michel Butor e Jean

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    Paulhan. Em 1957 obteve o ttulo de professor assistente na Sorbonne; em 1960, o de

    agregado de pesquisas no CNRS (Conselho Nacional de Pesquisas Sociais).

    A partir de 1964 deu aulas por vrios anos na Universidade de Lyon, e de1969 a 1987 foi professor na Universidade de Vincennes em Paris VIII. Em 1987 se

    aposentou.

    Segundo Deleuze, dois encontros foram fundamentais em sua vida

    intelectual. O primeiro com Michel Foucault, em 1962, e o segundo com Felix

    Guattari, em 1969.

    Sintetizando humoristicamente suas tiradas, Deleuze disse algo que talvez se

    possa traduzir assim: "Viajando por a, jamais aderi ao Partido Comunista, jamais fui

    fenomenlogo ou heideggeriano, nunca renunciei a Marx, nem jamais repudiei Maio

    de 68". (Le Magazine Littraire, Setembro de 1988).

    Essa orao despretensiosa resume algumas das singularidades do Mestre, s

    quais, tomando a liberdade de falar em primeira pessoa, eu poderia, figuradamente,acrescentar:

    "Nunca me preocupei em estar na moda, nem a dos crculos polticos, nem a

    dos acadmicos. Nunca venerei filosoficamente a Parmnides, nem a Scrates, nem a

    Plato, nem a Aristteles, nem aos neo-platnicos, nem a Descartes, nem a Kant, nem

    a Hegel, nem aos positivistas... assim como nunca fui propriamente existencialista,

    nem estruturalista, nem materialista dialtico. O mesmo me aconteceu cientfica eartisticamente com Euclides, Newton, Freud, Saussure, Weber, Wittgenstein, Lacan,

    Lvi-Strauss ou Toynbee... ainda que me empenhe a conhec-los tanto como a

    Sfocles, Leonardo ou Shakespeare.

    Meus personagens filosficos favoritos tm sido, sem dvida, ou bem

    estranhos, ou pouco exitosos, ou pouco freqentados, ou quase francamente

    marginais. Herclito, Demcrito, Arquimedes, os sofistas, os esticos, os epicuristas,os hedonistas, tanto quanto Duns Escotto, Espinoza, Leibniz, Hume, Nietzsche e

    Bergson, assim como Pierce, Hejmlev, Clastres, Riemann, Chatelet, ou bem Reich,

    Kafka, Artaud, Carroll, Beckett, Proust, Miller, Canetti, Bacon, Kleist, Duchamps... e

    tantos outros".

    Essa larga e incompleta enumerao tenta apenas ilustrar, em primeiro termo,

    a fabulosa erudio e versatilidade de Deleuze e, em

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    segundo lugar, dois tipos de relao heurstica com as obras e com seus criadores.

    Ao primeiro grupo citado, aplica-se a proposta que Deleuze enunciava como

    seu projeto juvenil: "Acercar-me sigilosamente a um autor pelas costas e fazer-lhe umfilho monstruoso, em que no se possa reconhecer". Mas com a ressalva de que "para

    fazer isso com o dito por esse autor, teria de estar absolutamente seguro de que o

    havia efetivamente dito". Aqui, "monstruoso" deve entender-se de acordo com o que

    Deleuze aprendeu de seu mestre Canguilhem... ou seja, como o anmalo, aquilo que

    est nos limites, ou at mais alm de sua prpria espcie. Por outra parte, esse af de

    certeza o que explica a insuportvel preciso das citaes nos escritos deleuzianos.

    Ao segundo grupo mencionado, corresponde uma apropriao menos crtica,

    muito mais emptica, mas tampouco integralmente fiel, nem literal, tpica dos

    comentrios e teses acadmicas que Deleuze detestava.

    Essa capacidade de Deleuze, compartilhada por seu amigo Guattari, de

    conhecer e circular pela Filosofia, pelas Cincias, pelas Artes, pela Poltica e at pelo

    saber popular, plenamente demonstrada pela lista de seus quase trinta livros

    editados, cuja extenso prodigiosa pode resultar, nesse contexto, to esmagadora

    como indispensvel:

    Instinto e Instituio

    Empirismo e Subjetividade

    Nietzsche e a FilosofiaA Filosofia de Kant

    Proust e os Signos

    N::tzsche

    O Bergsonismo

    Apresentao de Sacher-Masoch

    Espinoza e o Problema da Expresso

    A Lgica do Sentido _

    Diferena e Repetio

    Espinoza, Filosofia Prtica

    Espinoza e os Signos

    Francis Bacon: Lgica da Sensao

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    Cinema IA Imagem-Movimento

    CinemaIIA Imagem-Tempo

    FoucaultPricles e Verdi. A Filosofia de Franois Chatelet

    A DobraLeibniz e o Barroco

    Conversaes

    Crtica e Clnica

    Em colaborao com Felix Guattari escreveu:

    O Anti-dipo. Capitalismo e EsquizofreniaKafka. Por uma Literatura Menor

    Mil Plats

    O que a Filosofia?

    Politique et Psychanalyse

    Em colaborao com Carmelo Bene:

    SuperposiesEm colaborao com Claire Parnet:

    Dilogos

    Obs: esclarecemos que esta lista no est ordenada cronologicamente

    A esta lista devem se somar vrios artigos, prlogos e eplogos de outros

    textos. Desde logo a literatura acerca da obra de Deleuze j soma outras tantas

    publicaes. Segundo uma classificao leve e algo ingnua, os livros de Deleuzepodem ser divididos em trs grupos.

    O primeiro consiste em Teses e Monografias Filosficas, de formato

    aparentemente acadmico, mas que constituem verdadeiros Cavalos de Tria.

    O segundo se compe de grandes exposies de enorme abrangncia. Mais

    adiante me referirei a elas, arriscando para as mesmas uma categorizao pessoal.

    Momentaneamente peo que se aceite para esses escritos o qualificativo de

    "Concepes de Mundo", que, por razes que veremos, incorreta.

    O terceiro conjunto de escritos se refere aparente e prevalentemente s

    Cincias e s Artes.

    Mas h pelo menos duas razes pelas quais essa classificao panormica

    inadequada e insuficiente.

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    Por um lado, porque a obra de Deleuze e Guattari um Rizoma, ou seja, um

    sistema anti-sistema, uma espcie de rede mvel de canais, fluxos, remoinhos e

    turbulncias, de limites internos e externos difusos, do qual se pode entrar e do qual sepode sair em qualquer ponto, que se pode percorrer em infinitas direes e que

    reinventado a cada viagem e por cada um que o percorre. Apenas apresenta uma

    alternncia de mesetas de intensidade homognea em que se pode transitar passando

    de uma a outra por saltos, s vezes perceptveis, s vezes desapercebidos.

    Por outro lado, no se pode considerar cada livro como uma unidade isolada,

    porque, segundo a prpria teoria do pensamento, da escritura, da leitura e da realidadeltima a que um livro se acopla, impossvel dissociar a produo bibliogrfica do

    que a realidade faz fluir nela, nem do que ela faz fluir na realidade na qual se insere.

    Para esses autores, um livro uma mquina engendrada por mquinas heterogneas,

    heteromorfas e heterlogas a ele mesmo, sendo que seu sentido depende de como

    atravessa a outras (literrias ou no), ou seja, de como esto funcionando dentro dele,

    e ele dentro daquelas.Assim sendo, como seria vivel separar radicalmente um tema bibliogrfico

    de outro, e dos Mundos com que se conectam, se todos so imanentes entre si?

    Finalmente, no cabem separaes, porque Deleuze e Guattari dizem que

    todo texto ou discurso pura performance, quer dizer, pura pragmtica, que importa

    apenas por como afeta e como afetado. Para ilustrar, por exemplo, as relaes entre

    os conceitos filosficos, as funes cientficas, as variaes artsticas, apelam teoria

    da Msica. Cada um dos recursos desses saberes e trabalhos ressoam entre si, nos

    espaos da Realidade. Essa ressonncia pode ser ouvida em dimenses tais como a

    Harmonia, a Desarmonia, a Consonncia, a Dissonncia, a Fuga, o Contraponto, o

    Ritmo, etc... mas nunca desde uma taxonomia dos textos ou discursos estanques. Intil

    confundir essa concepo com alguma que postule deslizamentos de cadeias de

    significantes, elos ordenados como anis, que por sua vez so elos de anis maiores,etc. A escrita de Deleuze e Guattari, densa edifcil, composta de fluxos, pode incluirparadoxos e aporias, mas no metforas ou metonmias, e menos ainda adivinhaes,

    hermetismos ou mistrios.

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    Talvez este seja o nico ponto dessa exposio no qual m aventurarei a dar

    uma opinio pessoal, to arriscada como segurament pouco compartilhada.

    Tudo leva a supor que Gilles Deleuze foi um filsofo, professor de Filosofia e escritorde livros de Filosofia.

    O ttulo mesmo dessa conferncia qualifica Deleuze de "filsofo nmade",

    aludindo a sua forma errante de viajar por todos os saberes, por itinerrios

    absolutamente inslitos e sem compromisso algum com Escolas ou Doutrinas.

    Um de seus ltimos livros, escrito junto com Guattari, leva por ttulo "Que

    a Filosofia?"e, em suas pginas, a Filosofia definida com uma preciso e beleza

    incomparveis, como a prtica de inveno de Conceitos.

    No obstante, em vrias passagens de outras obras, Deleuz havia exposto,

    com toda clareza, uma crtica s perguntas com as quais se costuma propor as

    questes que se deseja resolver. Nesses pargrafos rechaava que a frmula"que ?"

    fosse um bom enunciado para formular um problema.

    No nada fcil explicar o porqu dessa impugnao, mas, simplificando

    uma vez mais, quando se pergunta "que ?" se interroga acerca do Ser de um Ente, ou

    seja, por sua Identidade ou sua Mesmidade e no por seu Devir, por seu

    funcionamento, por sua Diferena em Ato.

    De um outro ngulo, quando Deleuze se refere ao pensamento, sustenta que

    pensar exige a incessante criao, no apenas de novos contedos, nem sequer denovas maneiras do mesmo Pensamento. Deleuze d a entender que pensar implica,

    nem mais nem menos, que criar novos pensares, ou seja, responder quilo que "d a

    pensar", o que "faz pensar", com uma multiplicidade de Pensares singulares

    diferentes, originais, inditos.

    por isso que me atrevo a postular que Deleuze, em seu nomadismo, ou

    bem acabou no sendo mais um filsofo, ou bem foi um criador de Pensares que, entreoutras coisas, redefiniu a Filosofia, ou bem foi o Demiurgo e o agente de um novo

    pensar e um novo fazer que ele e Guattari inventaram... e que se chamou

    esquizoanlise ou pragmtica universal. Esses dois termos esto definidos

    respectivamente, no primeiro e no segundo tomo de seu livro "Capitalismo e

    Esquizofrenia". O que estou afirmando que Deleuze e

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    Guattari engendraram algo que Filosofia mas, que tambm Cincia e tambm

    Arte... e Poltica... e Saber Espontneo... e muito mais que tudo isso preexistente.

    Por que, ento, cham-los por nomes de "partida" e no pelos de "chegada"?A rigor, no nenhuma novidade que os cientistas de uma especialidade

    tenham incursionado por pensamentos filosficos, restritos ou no, s reas de suas

    disciplinas. Basta mencionar, rapidamente, os casos de Pitgoras, Euclides, Averroes,

    Cassirer, Jaspers, Russel, Poincar, Monod e outros tantos.

    Tampouco inslito que grandes literatos tenham sido filsofos (ou o

    inverso), como so os exemplos paradigmticos de Kierkgaard, Novalis ou Goethe.

    Igual coisa ocorreu com grandes estadistas e polticos como Demstenes,

    Maquiavel, Hobbes, etc.

    Mas meus conhecimentos de histria da Filosofia, das cincias e das prticas

    sociais em geral (bastante pobres), no me permitem evocar um caso igual ao de

    Deleuze e Guattari.Talvez o mais parecido a isso, que me ocorre, a figura e a obra de Foucault,

    no por casualidade amigo proeminente de Deleuze, de quem se tomou difcil dizer se

    era filsofo, historiador, socilogo, arquivista ou genealogista.

    Agora, bem: por razes pedaggicas, o paradoxal que, se me proponho

    introduzir o que alcano entender como as principais contribuies da Esquizoanlise,

    no consigo faz-lo de outra maneira que abord-las segundo as clssicas ramificaescom as quais se costuma dividir a Filosofia.

    Refiro-me Ontologia (Teoria do Ser), Gnoseologia (Teoria do Conhecer)

    e Axiologia (Teoria dos Valores).

    Mas como resumir os aportes dos principais trinta livros de Deleuze de uma

    maneira suportvel para o pblico em geral?

    Apesar de a palavra "impossvel" ser uma das mais detestadas por Deleuze eGuattari, este simples comentarista que lhes fala se sente a ponto de declarar esta

    tarefa como irrealizvel.

    Peo antecipadamente desculpas pelas insuficincias, incorrees e

    obscuridades do que se segue. De todo modo, quem no tenta, nada consegue.

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    Na Ontologia, creio que se pode dizer que o Pensar de Deleuze a

    culminao de duas clebres contraposies que percorrem a histria da Filosofia

    Ocidental.A primeira a que ope o Ser como esttico, eterno, invarivel, imvel e

    idntico, do qual s se pode predicar que (cujo paradigma seria Parmnides), contra

    o Ser como dinmico, variante, mvel e em permanente transformao (cujo

    paradigma seria Herclito, que sustentava que o Ser Devm).

    "Que , e como o Ser Devm?" que at a declarao da Morte de tais

    perguntas ou do Fim da Metafsica... ter suas diversas formulaes na FilosofiaAntiga, na Patrstica, na Escolstica, no Romantismo e na Filosofia Moderna e

    Contempornea.

    O que do ser passa por todos os avatares do Espiritualismo, do Idealismo

    Objetivo e Subjetivo, assim como por todos os Realismos, Substancialismos,

    Materialismos, Agnosticismos, etc.

    O como transcorre pelos inumerveis avatares da Linearidade, da

    Circularidade e da Dialtica.

    Mas a onde entra a segunda oposio, que antagoniza os que afirmam que

    o Ser (seja qual seja sua natureza) diverso do Pensar (digamos, a Metafsica da

    Substncia e da Essncia) contra os que, principalmente desde Descartes, identificam

    o Ser com o Pensar (digamos, a Metafsica do Sujeito), seja qual seja o papel que seatribua linguagem nessa identidade ou distino.

    Ante essas duas famosas oposies da Ontologia (que, como se v, so

    indissociveis da Gnoseologia), Deleuze postula:

    1) o ser devir.2) o devir devm como repetio incessante, infinita e no totalizvel da diferena.3) a essncia das diferenas consiste em puras intensidades.4) por sua posio nos mundos, sua composio interna proteiforme e seus limites

    externos difusos, o devir devm como multiplicidades.

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    5) pela condio nica e irrepetvel das diferenas, intensidades, multiplicidades,estas se expressam como singularidades, tais "proto-realidades" (por assim

    cham-las) so virtuais, pr-ontolgicas e, assim sendo, so pr-fsicas, pr-biolgicas, pr-sociais, pr-subjetivas, pr-semiticas, pr-reais, pr-possveis e

    pr-impossveis, at serem atualizadas.

    6) o surgimento por atualizao das novidades ontlogicas absolutas, assimentendidas, denomina-se individuaes.

    7) as individuaes resultam do encontro entre complexos de intensidades,multiplicidades e singularidades sintetizadas como corpos, e a emergncia, a

    partir desses encontros, de uma dimenso incorporal dos mesmos, denominada

    incorporais-sentidos-acontecimentos.

    8) as individuaes no podem reduzir-se a seres ou entes individuais efetuados poridias, substncias ou essncias previamente diferenciveis em espcies ou

    gneros.

    9) as aes e paixes que se exercem ao acaso nos encontros entre corpos eincorporais-sentidos-acontecimentos que deles surgem, assim como as

    individuaes resultantes, no se relacionam como causas e efeitos e no

    obedecem a leis.

    10) a realidade, assim integralmente entendida, compreende trs superfciesimanentes entre si. A primeira, a da produo, que a que acabamos de

    conceitualizar, composta por funcionamentos protagonizados pelas

    singularidades intensivas que mencionamos (mquinas desejantes), dispostas

    sobre o corpo sem rgos (que seu "suporte" e o grau zero das intensidades).Nela se d o processo puro de produo de produo. A segunda a superfcie de

    registro-controle, em que se distribuem as entidades j identificadas, ordenadas,

    determinadas em causas e efeitos, dotadas de funes especficas em que

    predominam os processos de reproduo e de antiproduo. A terceira a

    superfcie de consumao, em que culminam e/ou consomem a potncias das

    individuaes de toda ndole.

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    Este imenso "fluxograma" transmutante possibilita a Deleuze e Guattari uma

    extraordinria reformulao das definies e das relaes dos continentes da Natureza,

    da Sociedade, da Subjetividade, das Semiticas e do Parque Maqunico da Realidade,assim como da Histria Universal, tanto quanto dos pensares que os pensam e das

    prxis que os metamorfoseiam e os destroem.

    Em absoluta coerncia com essa "Ontologia", a Gnoseologia, a tica e a

    Esttica de Deleuze tm como valor supremo a inveno tanto de Conceitos

    Filosficos, como de Funes Cientficas, como de Variaes Artsticas e de Saberes

    Espontneos. Tal inventivatem como proposta "Metodolgica"sui generis a Intuio,o uso disjunto das Faculdades, o emprego das tcnicas do Cut-up e da Colagem, e a

    plena considerao do Acaso para o exerccio de Pensares sem Fundamento, sem

    Sistemtica, sem Meta-Categorias transcendentes. Pensares inexatos, mas rigorosos,

    de realidades pluripotenciais e imprevisveis, cartografias sempre "princeps" de

    transmigraes e conjuntos difusos.

    Para concluir, a tica proposta por Deleuze uma poltica da avaliao, daresoluo e do ato sempre singulares, criados para cada situao, produtos da Vontade

    de Potncia e da desconstruo do Valores imperantes, a servio da inovao

    permanente, jamais subordinada a algum Imperativo Categrico Universal ou Eterno,

    nem baseado em Princpios Transcendentes.

    nessa produo de pensares, na anlise varivel de seus "N" componentes

    de Produo, Reproduo e Antiproduo, na montagem de dispositivos destinados apropiciar a Revoluo Inventiva dos Processos Produtivos e a neutralizar sua brusca

    interrupo, ou sua acelerao ao infinito, dada pelos buracos negros da Reproduo e

    da Antiproduo... nisso consiste a esquizoanlise ou pragmtica universal.

    Mas se por razes pedaggicas optei por essa introduo geral apoiada num

    andaime filosfico clssico, como ousar sintetizar aportes mais circunscritos a temas

    mais delimitados, que esto implicitamente includos no panorama anteriormente

    exposto?

    Porque a obra de Deleuze e Guattari importa tambm redefinies crticas e

    reinvenes dos Universais mais caros ao saber do

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    Ocidente. Apenas como exemplo, mencionarei as categorias de Tempo e de Espao,

    de Todo e de Partes, de Razo e Desrazo, de Verdade e Falsidade, de Bem e de Mal,

    de Potncia e de Poder, de Vida e de Morte e, em um sentido mais especfico ainda,de Histria, de Sociedade, de Estado, de Economia, de Antropologia, Geologia,

    Etologia, de Lingstica-Semitica, de Cincias Exatas, de Urbanismo, de Tecnologia,

    de Literatura, de Cinematografia, Pintura, Escultura, Arquitetura... e assim por diante.

    No pude resistir, ao final desta, por sua vez, pobre e pretensiosa

    simplificao, a comentar brevemente a qui mais clebre proposta de Deleuze e

    Guattari, principalmente exposta em "O Anti-dipo". Os autores propem, como amedula desse livro imortal: "introduzir o desejo na produo e a produo no

    desejo". Sem pretender ignorar a larga trajetria desses dois conceitos gigantescos,

    no se pode negar que, nas acepes centrais de sua definio, Deleuze e Guattari

    partiram basicamente de Freud e Marx. Mas o fizeram para ampliar a idia de Marx,

    no a restringindo gerao de bens materiais indispensveis para a vida, processo

    ligado fora de trabalho, que o criador do Materialismo Histrico atribua infraestrutura dos Modos de Produo. Deleuze e Guattari estenderam essa idia

    Produo de Produo em "todos" os domnios da Realidade. Igualmente, tomaram a

    idia de Freud, de Libido e Desejo, no como sendo apenas a energia-fora que anima

    exclusivamente a economia, a dinmica e a estrutura do Aparato Psquico freudiano,

    cujas caractersticas so, como sabido, em ltima instncia, repetitivas e

    conservadoras.Deleuze e Guattari recriaram e ampliaram esses conceitos-funes, assim

    como do Inconsciente e do Id psicanaltico, assumindo plenamente as caractersticas

    do chamado Processo Primrio, dando-lhes uma essncia produtivo-revolucionria e

    tornando-os imanentes ao processo de produo de produo da realidade inteira.

    Devo concluir essa modesta apresentao dizendo algumas poucas palavras

    acerca de Gilles Deleuze como "homem".

    Ao considerar a figura e a biografia de Deleuze como "ser humano",

    encontramo-nos comuma rara ilustrao da exigncia de que um autor deveria ser uma

    fiel expresso de suas idias.

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    Pessoa de uma imensa erudio, de uma formidvel dedicao a seu

    empreendimento, de uma incrvel versatilidade, de uma enorme criatividade, de uma

    abertura e de u