barbosa, luciane muniz ribeiro - as concepções educacionais de martinho lutero

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8/14/2019 BARBOSA, Luciane Muniz Ribeiro - As Concepções Educacionais de Martinho Lutero. http://slidepdf.com/reader/full/barbosa-luciane-muniz-ribeiro-as-concepcoes-educacionais-de-martinho-lutero 1/21 163 Educação e Pesquisa, São Paulo, v.33, n.1, p. 163-183, jan./abr. 2007  As concepções educacionais de Martinho Lutero * Luciane Muniz Ribeiro Barbosa Faculdade Montessori de Educação e Cultura Resumo  Este artigo tem como objetivo apresentar a concepção de educa- ção de Martinho Lutero no movimento da Reforma Protestante do século XVI, revelando aproximações entre história, religião e po- lítica. Em um século marcado por inúmeras indagações e mudan- ças, Lutero apresenta críticas em prol de uma Reforma na Igreja e também faz propostas para uma reforma da educação escolar de sua época, até então marcada pela formação exclusiva de religi- osos e eclesiásticos. Ele propõe, em dois textos de sua autoria, uma educação escolar cristã que apresente uma nova organiza- ção em relação a: currículos, métodos, professores, formas de fi- nanciamento e manutenção das escolas. Também reflete sobre a utilidade dessa educação e propõe que ela: atenda a todos; seja criada e mantida pelas autoridades públicas e não mais pela Igre-  ja; seja de freqüência obrigatória, para a qual apela aos pais e às autoridades por essa tarefa. Ainda que algumas dessas caracterís- ticas não apresentem Martinho Lutero como precursor, é inevitá-  vel o reconhecimento de que ele, aliado à figura de Filipe  Melanchthon e às transformações ocorridas em seu tempo, con- tribuiu significativamente para a extensão do direito à Educação, marcada sobretudo em sua proposta de criação das escolas ele- mentares, além da reorganização dos colégios secundários e da universidade, enfatizando a ação do Estado como responsável pela educação escolar. Palavras-chave  Martinho Lutero – Reforma protestante – Direito à Educação – Esta- do e Educação. Correspondência: Luciane Muniz R. Barbosa Rua Parnamirim, 20 apto 11 05331-020 – São Paulo – SP e-mail: [email protected] * Texto adaptado do Trabalho Com- plementar de Curso apresentado à Faculdade de Educação da Universi- dade de São Paulo (FEUSP) como requisito parcial para a obtenção da graduação em Pedagogia, desenvol- vido sob orientação do Prof. Dr. Romualdo Luiz Portela de Oliveira. Participaram da banca examinado- ra: Profa. Dra. Maria Lucia Spedo Hilsdorf e Profa. Dra. Beatriz Alexandrina de Moura Fétizon.

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8/14/2019 BARBOSA, Luciane Muniz Ribeiro - As Concepções Educacionais de Martinho Lutero.

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163Educação e Pesquisa, São Paulo, v.33, n.1, p. 163-183, jan./abr. 2007

 As concepções educacionais de Martinho Lutero *

Luciane Muniz Ribeiro BarbosaFaculdade Montessori de Educação e Cultura 

Resumo

 Este artigo tem como objetivo apresentar a concepção de educa-ção de Martinho Lutero no movimento da Reforma Protestante doséculo XVI, revelando aproximações entre história, religião e po-lítica. Em um século marcado por inúmeras indagações e mudan-ças, Lutero apresenta críticas em prol de uma Reforma na Igreja e

também faz propostas para uma reforma da educação escolar desua época, até então marcada pela formação exclusiva de religi-osos e eclesiásticos. Ele propõe, em dois textos de sua autoria,uma educação escolar cristã que apresente uma nova organiza-ção em relação a: currículos, métodos, professores, formas de fi-nanciamento e manutenção das escolas. Também reflete sobre autilidade dessa educação e propõe que ela: atenda a todos; sejacriada e mantida pelas autoridades públicas e não mais pela Igre-

 ja; seja de freqüência obrigatória, para a qual apela aos pais e àsautoridades por essa tarefa. Ainda que algumas dessas caracterís-ticas não apresentem Martinho Lutero como precursor, é inevitá-

 vel o reconhecimento de que ele, aliado à figura de Filipe

 Melanchthon e às transformações ocorridas em seu tempo, con-tribuiu significativamente para a extensão do direito à Educação,marcada sobretudo em sua proposta de criação das escolas ele-mentares, além da reorganização dos colégios secundários e dauniversidade, enfatizando a ação do Estado como responsávelpela educação escolar.

Palavras-chave

 Martinho Lutero – Reforma protestante – Direito à Educação – Esta-do e Educação.

Correspondência:

Luciane Muniz R. Barbosa

Rua Parnamirim, 20 apto 11

05331-020 – São Paulo – SP

e-mail: [email protected]

*Texto adaptado do Trabalho Com-plementar de Curso apresentado àFaculdade de Educação da Universi-dade de São Paulo (FEUSP) comorequisito parcial para a obtenção dagraduação em Pedagogia, desenvol-vido sob orientação do Prof. Dr.Romualdo Luiz Portela de Oliveira.Participaram da banca examinado-ra: Profa. Dra. Maria Lucia SpedoHilsdorf e Profa. Dra. BeatrizAlexandrina de Moura Fétizon.

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Educação e Pesquisa, São Paulo, v.33, n.1, p. 163-183, jan./abr. 2007164

The educational conceptions of Martin Luther * 

Luciane Muniz Ribeiro BarbosaFaculdade Montessori de Educação e Cultura 

 Abstract 

This article presents Martin Luther’s conception of education in the 

16 th century Protestant Reform, revealing associations between

history, religion, and politics. In a century marked by countless 

quests and changes, Luther offers criticisms in favor of a Reform of 

the Church, and also makes proposals for a reform of the school 

education of his time, hitherto characterized by the exclusive 

formation of religious and ecclesiastic men. He proposes in two of 

his texts a Christian schooling that shows a new organization with

respect to curricula, methods, teachers, and forms of funding and 

maintenance of schools. He also reflects upon the usefulness of 

such education, and suggests that: it should be open to everyone; 

be created and maintained by public authorities and not by the 

Church; that it should be mandatory, for which task he appeals to 

parents and authorities. Even if some of these features may not 

have Luther as their precursor, there is no escape recognizing that he has, together with Philipp Melanchton and the transformations 

occurred during his time, contributed decisively to the extension of 

the right to education, particularly notable in his proposal for the 

creation of elementary schools, apart form the reorganization of 

secondary school and the university, emphasizing the role of the 

State as responsible for school education.

Keywords 

Martin Luther – Protestant Reform – Right to Education – State and Education.

Contact: 

Luciane Muniz R. Barbosa 

Rua Parnamirim, 20 apto 11

05331-020 – São Paulo – SP 

e-mail: [email protected] 

* This text was adapted from the Final 

Work presented to the Faculty of Education of the University of São 

Paulo – FEUSP – as part of the requirements of the undergraduate 

course in Pedagogy. The work was supervised by Professor Romualdo 

Luiz Por te la de Ol iveira; the 

evaluation committee also included 

Professors Mar ia Lucia Spedo Hilsdorf and Beatriz Alexandrina de 

Moura Fétizon.

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165Educação e Pesquisa, São Paulo, v.33, n.1, p. 163-183, jan./abr. 2007

Como sempre, recusar uma reforma é um

convite à Revolução.

(Laski, 1973, em “O liberalismo europeu”) 

A história da Educação e a história daIgreja mostram-se articuladas sendo, em determi-nados momentos, fonte de influências recíprocas.

 Foi na Idade Média que essa relação se mostrouainda mais intensa sendo a Igreja a única encar-regada pela educação escolar que visava à garan-tia da instrução de seus clérigos, ou seja, bispose abades procuravam formar crianças e jovenscom aspirações à vida religiosa.

 Dessa maneira, desde o século V, a instru-ção escolar passa a estar estreitamente ligada àsações da Igreja, sendo ela a responsável pela suaorganização e manutenção. Paul Foulquié (1957)afirma que a formação cristã era o essencial da

 Educação nesse período e os pais que desejassemoferecer instrução aos seus filhos eram obrigadosa enviá-los para as aulas que preparavam os fu-turos clérigos. Por ordem do Papa e do Concílio,a Igreja passa a abrir suas escolas também paraas demais crianças e jovens e “mostra-se zelosasobretudo em proporcionar a gratuidade do en-

sino e a colação de graus” (p. 31).Surgem, então, categorias de escolas

eclesiásticas mantendo público e objetivos espe-cíficos para a própria Igreja: as escolas catedraisou episcopais, que formavam novos pregadorese posteriormente se abriram (em 529, no Con-cílio de Vaison) para as populações do campo;as escolas monacais ou claustrais, ligadas aosconventos, que se transformaram nas mais im-portantes instituições de ensino entre os sécu-los V e XI; e as escolas catedrais ou episcopaisligadas às catedrais das cidades, que reaparecemcomo um surto no século XII, acompanhando omovimento do renascimento urbano.

 Data do início do século XVI a criaçãodos colégios secundários que ofereciam, aos

 jovens, estudo preparatório para ingresso nasuniversidades e que se transformaram, comoobserva Ruy Nunes (1980), em veículos dohumanismo. Essa é a época em que os prínci-pes dos estados emergentes passam a apoiar a

nova forma de educação escolar, visando àestabilização de suas cortes e à formação deseus cortesãos. Foulquié (1957) reforça essaidéia localizando no Antigo Regime, a partir doséculo XVI com os movimentos da Renascença eda Reforma, o período em que os príncipes quise-ram “dominar as Universidades e, de maneira ge-ral, se ocuparam com o ensino que começaram aconsiderar como público” (p. 47). Contudo, essainstrução escolar, como já explicitado, se destina-

 va ao público que teria acesso à universidade.A Educação medieval, que tinha como

pressuposto uma formação religiosa e intelectual

e que, nas universidades, visava um ensino prá-tico com objetivo profissional, no início da Idade Moderna, passa, segundo Nunes (1980), porprofundas mudanças em suas concepções emeios de alcançar seus objetivos: a educaçãocomeça “a visar de modo claro e definido àformação integral do homem, o seu desenvolvi-mento intelectual, moral e físico” (p. 41).

A Educação, sob influência do movimen-to humanista que se expandia, sofreu diversasmudanças e desenvolveu características particu-lares nos diferentes países nos séculos em que as

tradições medievais foram suprimidas pelos novosideais do Renascimento. Contudo, a Educação doséculo XVI, como será mostrada adiante, conti-nuou apresentando um caráter cristão.

O que se pretende analisar, portanto, são aspropostas que, no contexto do movimento da

  Reforma Protestante, Martinho Lutero (1483-1546), monge da ordem de Santo Agostinho, apre-senta em defesa da reforma do ensino secundárioe da universidade e da criação de escolas de edu-cação elementar que atinjam toda a população.

As concepções de Lutero sobre Educa-ção, principalmente sobre uma educação cris-tã, acabam perpassando todos os seus tratadose escritos na medida em que neles expõe eataca os problemas da Igreja e também dasociedade, aconselhando-as como deveriamser. Contudo, é em dois textos específicos queele registra sua posição sobre a educaçãoescolar: Aos conselhos de todas as cidades da

Alemanha para que criem e mantenham esco-

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166 Luciane M. R. BARBOSA. As concepções educacionais de Martinho Lutero.

las cristãs , carta escrita em 1524, e Uma

prédica para que se mandem os filhos à esco-

la , sermão proferido em 1530. Esses dois es-critos serão tomados como fonte principalpara a análise da educação escolar propostapor Martinho Lutero na tentativa de compre-ender a concepção de Educação por ele apre-sentada em suas propostas de reforma.

Os dois textos citados representam, decerta forma, o quanto Lutero fez suas propostase interferências baseadas sobretudo na sua dou-trina dos dois reinos, ou seja, o quão relevanteseria, tanto para o Estado (a “mão esquerda de

 Deus”) como para a Igreja (sua “mão direita”),pais compromissados e cidadãos bem-educadospara atuarem no governo secular e espiritual.

  Neles, Lutero apresenta não somentequestões de caráter conceitual e os princípioscontidos em sua proposta de reforma do siste-ma escolar, mas orienta sobre a forma comodeveria ser organizado esse novo ensino quepropõe que seja para todos. No entanto, estu-diosos afirmam que, apesar de ele esclarecer emseus tratados diversos pontos sobre a formacomo deveria se dar esse ensino escolar, eles

“não chegam a formular uma teoria cristã deeducação” (Beck apud Lutero, 1995, p. 301).

 Ricardo Rieth compartilha dessa idéiaafirmando que “Lutero não teve por objetivodesenvolver uma teoria da educação em pers-pectiva cristã. Quis, isso sim, seguir estimulan-do a sociedade a empenhar-se por uma educa-ção formal de qualidade” (apud  Lutero, 2000,p. 5), baseada na compreensão que ele tinhada atuação de Deus no mundo por meio dosdois governos.

Antes de iniciar as análises específicassobre essas questões educacionais, cabe ressal-tar que, atualmente, os estudos sobre Luterotêm atingido outros círculos que não somenteo da história da Igreja reformada. Essa conquis-ta deve-se graças às recentes publicações emlíngua portuguesa dos textos de sua autoria eao contato com a bibliografia estrangeira quecontinua desenvolvendo estudos sobre Luteroe as questões que o envolvem.

Influências

 Mediante a análise de obras de históriada Educação, pode-se constatar que as orien-tações de Lutero sobre a forma de organizaçãoda educação escolar, tanto para os colégios deensino secundário e para a universidade comoem sua proposta de criação das escolas elemen-tares, sofreram forte influência de seu amigo

 Filipe Melanchthon (1497-1560), sendo difícilsaber de fato a autoria e originalidade de algu-mas de suas idéias.

 Lutero conhece Melanchthon em 1518 e

torna-se, conforme sua própria declaração, seuamigo até a morte. Melanchthon o teria acom-panhado durante todas as fases da Reforma,tornando-se uma pessoa fundamental para

 Lutero no período em que traduziu a Bíblia eservindo de consultor sobre o grego e sobre aspassagens bíblicas.

 É Melanchthon o responsável por intro-duzir na universidade, com os estudos sobre osclássicos gregos e latinos, uma nova forma deensinar muito diferente da da escolástica. Paraexplicitar sua importante atuação nas reformas

na universidade, Ruy Nunes (1980) afirma que

[...] restaurou-se a aliança da reforma com ohumanismo graças ao talento e ao esforçode Melanchthon que tornou a Universidadede Wittenberg a mais popular da Germâniae facho iluminante de humanismo e teolo-gia. (p. 64)

  É sob iniciativa e orientação de Melanchthon que o Conselho de Nürenberg fun-da, em 1526, o Ginásio de Egídio ao lado de trêsescolas de latim já existentes na cidade. Dadasua capacidade de promoção e organização dasescolas, ele ficou conhecido como o ‘preceptorda Germânia’ e, segundo Franco Cambi (1999),“a elaboração das estruturas organizativas e dosconteúdos culturais próprios das escolas secun-dárias da Reforma é devida sobretudo a Filipe

 Melanchthon” (p. 250), que tentava efetuar umaconvergência entre humanismo e luteranismo.

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167Educação e Pesquisa, São Paulo, v.33, n.1, p. 163-183, jan./abr. 2007

 Não há dúvidas de sua relevância e in-fluência na vida de Lutero, no próprio desenca-deamento da Reforma proposta para a Igreja eprincipalmente para a ocorrida na organizaçãodas escolas, sobretudo as de ensino secundá-rio. Nunes (1980) expressa bem essa relaçãoafirmando que “[...] Lutero prescreve as normasfundamentais para a organização das escolas”,entretanto, é Filipe Melanchthon

[...] o ministro da educação de Lutero. Escre- veu manuais escolares, organizou o sistemaescolar de Saxe, redigiu juntamente com

 Lutero as Diretivas aos inspetores escolares eo livro Visita das Escolas, reorganizou as uni- versidades de Marburg, Koenigsberg, Iena, Halmstadt, Dorpat, Leipzig e Heidelberg, edava orientação e assistência aos mestresluteranos da Germânia. (p. 100-101)

 No ensino elementar, Lorenzo Luzuriaga(1959; 1963) destaca Johannes Bugenhagen(1485-1558) como colaborador de Lutero eresponsável pela inspiração de uma série deordenações municipais no norte da Alemanha

onde ele, em processo de reorganização dasigrejas da região, estabelece diversos preceitossobre a educação pública. Em todos esses es-tatutos religiosos, de diferentes cidades donorte da Alemanha,

[...] se recomenda e ordena a criação de es-colas, ao ponto de haver-se chamadoBugenhagen de pai da Escola primária pú-blica alemã, embora também predominassenele a consideração eclesiástica. (Luzuriaga,1959, p. 08)

 Nunes (1980) afirma ter sido Bugenhageno “mais ardente defensor da reforma da Igrejaalemã”, após ter aderido ao luteranismo em1520. Ele também teria ajudado Lutero no seutrabalho de tradução da Bíblia e pronunciado suaoração fúnebre; pois “labutou ardentemente afavor do luteranismo” (p. 178). No entanto, naquestão educacional, apesar de, na avaliação de

  Nunes, ter superado Lutero e Melanchthonquanto às realizações em prol das escolas pro-testantes germânicas, seus planos escolares

[...] não conseguiram, no fim das contas,implantar a escola popular na Alemanha doséculo XVI, uma vez que a Guerra dos TrintaAnos acabou com esses primeiros e animo-sos ensaios de renovação escolar. (p. 179)

Organização do sistema

escolar

O que se pode constatar, então, é que,ainda que sob influência e auxílio de seus ami-gos e colaboradores, Lutero também toma parasi a luta por uma reforma no ensino da época eregistra suas orientações sobre a forma como osistema escolar deveria ser organizado, procu-rando responder, entre outras, questões como: Oque deve ser ensinado às crianças e aos jovens?

 De que forma esse ensino deve ser ministrado?Como a escola deve ser financiada? Quem ecomo devem ser os mestres? Onde e em queperíodo as crianças deverão estudar?

Ao analisar esses diversos pontos, o pri-meiro aspecto a ser ressaltado é o fato de

 Lutero propor a criação e manutenção de esco-las cristãs . Segundo Martin Volkmann (1984),

[...] para Lutero ainda era óbvio que todasas pessoas fossem cristãs. Na sua épocaainda não havia o que hoje conhecemospor secularização. As autoridades seculares,mesmo no exercício de sua função especí-fica, não deixavam de ser cristãos. (p. 97)

 Diante desse argumento e do fato de o Estado daquele momento possuir um carátercristão, explícito na doutrina dos dois reinos,ressalta-se que Lutero requer a criação de es-colas que tenham a Bíblia como o centro doensino e que formem bons cristãos para atua-rem na sociedade, quer seja como pastorescomuns na pregação do Evangelho ou comoautoridades da vida secular.

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168 Luciane M. R. BARBOSA. As concepções educacionais de Martinho Lutero.

A propósito dos conteúdos e temas pro-postos por Lutero para compor o currículo dasnovas escolas cristãs, bem como da organiza-ção da estrutura de ensino no que diz respei-to aos métodos e professores, muitas vezes nãoficou explícito, nos escritos analisados, a qualgrau do ensino se destina, ou seja, ele nãoafirma claramente o que é recomendado para oensino elementar, para os colégios de ensinosecundário ou para as universidades. Por essemotivo, a distinção se torna possível muito maispor leitura de historiadores da Educação do quepelos escritos específicos de Lutero. Dessa

maneira, optou-se por apresentar, em cada umdos temas expostos a seguir, as propostas con-tidas nos dois textos analisados e, posterior-mente, explicitar a separação que seus comen-taristas lhe atribuem para os níveis de ensino,bem como a discussão apresentada por elessobre cada item.

Currículo

 Em seus escritos, Lutero apresenta umanova proposta para o currículo escolar, após críti-

cas de que o ensino, principalmente nas universi-dades, baseava-se, até então, nas obras deAristóteles que, com livros nocivos, levava as pes-soas para mais longe da Bíblia – em uma crítica aosistema medieval que se baseava na filosofia deAristóteles – e na qual nada de útil se aprendia:

Afinal, que se aprendeu até agora nas uni- versidades e conventos a não ser tornar-seburro, tosco e estúpido? Houve quem estu-dasse vinte, quarenta anos e não saiba nemlatim nem alemão. (Lutero, 1995, p. 306)

O novo currículo proposto tem a Bíbliacomo cerne do ensino e, como conseqüênciadesse fato, para melhor estudá-la, Lutero defen-de, como algo indispensável para as novasescolas, o ensino das línguas antigas. Principal-mente no tratado de 1524, apresenta váriosargumentos sobre a importância de se aprendero hebraico e o grego, línguas consideradas

santas e necessárias para um estudo maisaprofundado do Velho e do Novo Testamento,além do estudo do latim, o que se mostrouindicado para o ensino secundário na propos-ta dos colégios humanistas.

Apesar de, nesse momento, Lutero (1995) já ter traduzido parte da Bíblia e estar trabalhan-do para a tradução de toda a Escritura, demons-trando ser o incentivador maior da leitura da

 Bíblia na língua alemã, ele afirma que conheceras línguas clássicas e estudá-las seria fundamen-tal para tratar a Escritura com autonomia e com-bater os que a interpretam erroneamente. Além

disso, para ele

[...] a fé e o Evangelho podem ser pregadospor simples pregadores sem conhecimentoslingüísticos; no entanto é uma coisa pobre emiserável, e por fim a gente cansa e se enfa-da e assim somos seduzidos. Onde, porém,há conhecimento das línguas, aí as coisas sedesenvolvem com frescor e vigor, e a Escri-tura é trabalhada; aí a fé se encontra semprede forma nova por meio de outras e maisoutras palavras e obras. (p. 316)

A valorização de Lutero ao ensino das lín-guas clássicas mostra-se como conseqüência dosideais do movimento humanista com a propaga-ção do Renascimento na Alemanha e tambémcomo forma de alcançar o que pregava como seuobjetivo inicial: que os cristãos tivessem nãosomente livre acesso à Bíblia, mas fossem capa-zes e tivessem condições de interpretá-la semmediação. A aprendizagem das línguas seria,então, um instrumento para a garantia da liber-dade do cristão no conhecimento da Escritura.

 Para a conquista desse objetivo, a línguanacional também é valorizada, tanto que Luteropropõe a leitura da Bíblia em língua vernáculapara o aprendizado das crianças no ensino ele-mentar. Contudo, isso não bastaria. Era funda-mental que se estudasse latim, grego e hebraico,além do ensino da gramática e a leitura detextos mediante o estudo de obras literáriaspagãs e cristãs.

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169Educação e Pesquisa, São Paulo, v.33, n.1, p. 163-183, jan./abr. 2007

Apesar de a educação escolar de Lutero(1995), especificamente para o secundário,apoiar-se, sobretudo, no aprendizado das lín-guas antigas, ele também recomenda o estudodas ciências, das artes liberais e da história. Édada uma ênfase ao ensino de história, visto quepor meio dela as crianças poderiam conhecer asabedoria de todo o mundo e

[...] isto lhes serviria de orientação para seupensamento e para se posicionarem dentrodo curso do mundo com temor de Deus.Além disso a História os tornaria prudentes

e sábios, para saberem o que vale a penaperseguir e o que deve ser evitado nesta vida exterior, e para poderem aconselhar egovernar a outros de acordo com estas ex-periências. (p. 319)

Também chega a recomendar o ensinode música, com toda a matemática necessária,a jurisprudência e a medicina, entendidas essasduas últimas como sendo recomendação para auniversidade.

Alguns autores apresentam uma distin-

ção clara do que era contemplado no currícu-lo do ensino elementar e do secundário. Se-gundo Antônio Frago (1993), pode-se percebera estrutura do currículo nos diferentes Estadosalemães como: “os catecismos para as escolas[elementares] e a Bíblia em latim e grego paraos ginásios [de ensino secundário]” (p. 48),sendo que os catecismos se propunham a en-sinar, sobretudo, a doutrina da nova igreja.

 Maria Lúcia Hilsdorf (2006) confirmaessa separação afirmando que, ao longo doséculo XVI, as escolas de confissão reformadareorganizaram-se sendo que:

[...] a maioria delas adotou a orientaçãohumanista segundo o programa definidoem 1528 por Melanchthon, baseado nadoutrina, no latim e na retórica escrita,dando origem aos colégios reformados dehumanidades. As demais se organizaram, apartir dos meados do século, pelo padrão

das pequenas escolas, com ensino das pri-meiras letras em alemão, contas, música edoutrina. (p. 167)

 Vale ressaltar que o currículo existentepor longo período na Idade Média era o queenvolvia os conteúdos do trivium e quadrivium

(as Sete Artes Liberais)1 , mas já na concepçãodos humanistas, a educação era baseada nosstudia humanitatis que abrangiam as disciplinasde Gramática, Retórica, Poética, História e Filo-sofia Moral e devia ser completada com o estudodas obras dos santos padres da Igreja (principal-

mente Santo Agostinho) e de matemática, astro-nomia, demais ciências, música, dança e outrasartes e exercícios físicos (Nunes, 1980).

Outra questão importante que envolve ocurrículo e que foi objeto de discussão por

 Lutero (1995) foram os livros que deveriamcompor as bibliotecas das escolas e universida-des. Ele pede àqueles que aceitassem criar emanter as escolas que “não poupem esforçosnem dinheiro para a instalação de livrarias oubibliotecas” (p. 322), para que o Evangelhopudesse ser conservado por meio da preserva-

ção dos livros e para que os príncipes espirituaise seculares tivessem literatura para ler.

  Julga os livros da época (incluindo osde Aristóteles) como sujos e venenosos equestiona:

 Não foi uma tristeza lamentável que atéagora um menino tivesse que estudar vinteanos ou mais somente para aprender ummau latim, suficiente apenas para tornar-sepadre e ler a missa? [...] Que era de se espe-rar a não ser alunos e mestres tolos como oslivros que ensinavam? Uma gralha não pro-duz uma pomba, e um tolo não produz umsábio. Esta é a recompensa da ingratidão,por não se ter dedicado esforço à criaçãode bibliotecas, mas porque se deixaram

1. As Artes Liberais, conjunto das sete disciplinas que constituíam a for-mação na Idade Média, eram divididas no Trivium – compreendendo Gra-mática, Retórica, Dialética – e no Quadrivium – Aritmética, Geometria,Astronomia, Música.

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170 Luciane M. R. BARBOSA. As concepções educacionais de Martinho Lutero.

perder os bons livros e se preservaram osinúteis. (Lutero, 1995, p. 323)

 Dessa forma, ele orienta que a preocu-pação não deveria ser com a quantidade de li-

 vros, mas com a seleção daqueles que se mos-tram importantes, a saber: em primeiro lugar, aSagrada Escritura em latim, grego, hebraico,alemão e outras línguas; depois os melhores eos mais antigos intérpretes da Bíblia, ambos emgrego, hebraico e latim; depois os livros úteiscomo os poetas e oradores para aprender aslínguas e a Gramática, independente de serem

gentios ou cristãos, gregos ou latinos; depoisos livros sobre as artes liberais e outras disci-plinas; entre os mais importantes deveriamconstar as crônicas e os compêndios de Histó-ria; e por último, livros jurídicos e de Medici-na, fazendo-se uma boa seleção entre eles(Lutero, 1995).

 Essa seleção dos livros completa o queele propunha para o currículo das escolas e uni-

 versidades reformadas, sendo sua forte posiçãocontra Aristóteles, na interpretação de TimothyGeorge (1993), sua própria campanha contra a

teologia escolástica da época e a favor de seusplanos de reforma no currículo:

 Lutero não tinha nada contra Aristóteles emsi. O que ele rejeitava era todo o esforço dateologia escolástica de fazer da filosofiaaristotélica a pressuposição da doutrina cristã,de interpretar a revelação bíblica relativamen-te à ‘sofística’ pagã, de reduzir os grandes te-mas das Escrituras – graça, fé, justificação – àalgaravia escolástica. (p. 59)

Métodos

 Por ter recebido uma educação basea-da na escolástica medieval e estando em con-tato com as inovações propostas pelo Huma-nismo, Lutero (1995) faz uma crítica severa aoensino nas universidades e nos conventos ereivindica a aplicação de novos métodos noprocesso educativo:

[...] se as universidades e conventos continua-rem como estão, sem a aplicação de novosmétodos de ensino e modos de vida para os jovens, preferiria que nenhum jovem aprendes-se qualquer coisa e ficassem mudos. (p. 306)

Como sugere Walter Altmann (1994),“Lutero, em geral, aceitou os princípios peda-gógicos da escola humanista” (p. 206), sendoessa constatação prova da forte influência dohumanista Felipe Melanchthon, levando Fran-co Cambi (1999) a afirmar que

[...] o modelo de cultura que o movimentoreformador tem em mira para organizar aspróprias escolas é o humanístico, baseadona prioridade das línguas e na centralidadeda educação gramatical. (p. 248)

Contudo, cabe ressaltar que, apesar daspropostas pedagógicas de Lutero se assemelha-rem em partes à dos pedagogos humanistas, seusobjetivos diferiam dos desses autores e, emborase aproximasse de humanistas como Melanchton,ele não chegou a se declarar um humanista.

  Maria Lúcia Hilsdorf (2006) apresentauma posição distinta em relação a essa aproxi-mação, defendendo que Lutero não seguia alinha humanista na sua prescrição do que de-

 veria ser a escolarização da infância protestantena escola elementar, chegando a afirmar que talescolarização é possível que “fosse baseada nacatequese da doutrina, ao que parece, maispróxima dos saberes da Igreja do que dos sa-beres ligados aos ofícios” (p. 168, grifo meu).

 Na proposição de novos métodos, Lutero(1995) opõe-se ao antigo sistema escolar baseadoem punições físicas e pressões psicológicas quecausavam sofrimento aos alunos (ou seja, a disci-plina severa que recebeu na educação familiar eescolar). Questiona mesmo a disciplina rígida comque os pais educavam os filhos afirmando que

[...] quando a disciplina é aplicada com mai-or rigor e tem algum resultado, o máximoque se alcança é um comportamento força-

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do ou de respeito; no mais continuam sen-do meras toras, que não têm conhecimentonem nesta nem naquela área, não sabemresponder nem ajudar ninguém. (p. 319)

Segundo ele, na escola, o ensino deve-ria acontecer com prazer e por meio de brinca-deiras. A posição apresentada é em favor deuma educação lúdica, resgatando o exemplo daeducação grega cujo alto padrão, segundo ele,se infere das qualidades do povo que nela seforjou. Se os jovens gostam de dançar, cantare pular e estão sempre em busca de algo que

lhes dê prazer, então que as disciplinas sejamestudadas com prazer e brincando. Para Lutero,“os métodos didáticos devem adaptar-se ànatureza da criança” (Nunes, 1980, p. 100).

 Martin Volkmann atenta para o fato deque, ao orientar a forma de educar a juventu-de, Lutero dá ênfase à liberdade no processoeducativo. Em prefácio do Catecismo menor ,

  Lutero ressalta novamente que não se devecoagir ninguém à fé ou ao sacramento, desta-cando a liberdade do sujeito no seu processoeducativo. Para Volkmann (1984), a “educação

cristã, segundo o princípio de Lutero, é educa-ção para a liberdade” (p. 104).

 Em relação ao período de estudo, sãoapresentadas posições diferentes segundo osexo: aos meninos, caberia a freqüência diáriaà escola por uma ou duas horas e, fora dela,deveria se aprender um ofício; já as meninasdeveriam estudar por uma hora na escola etambém cumprir com as tarefas domésticas.Segundo Hilsdorf (2006), esse pouco tempodestinado ao estudo era explicável, visto que setratava de uma escola elementar em que oensino era apenas religioso e voltado para aaprendizagem da doutrina.

Apesar da ênfase dada por Lutero à lei-tura da Bíblia e mesmo ao estudo das Sagradas

 Escrituras em alemão em benefício do trabalhode interpretação, no período da Reforma, ain-da se manteve a tradição oral, presente na Ida-de Média. Assim, as escolas, sobretudo as ele-mentares, teriam então continuado a tradição

do aprendizado “mais pelo ouvir-dizer-fazer ea memorização do que pelo domínio da leitu-ra e escrita” (Hilsdorf, 2006, p. 167).

  Dessa mesma maneira, Jean-FrançoisGilmont afirma que no século XVI há umamultiplicação de livros, mas essa multiplicaçãoacontece em um mundo em que as relações sãoessencialmente orais. Lutero não somente nãoquestiona essa tradição oral, o que era de seesperar dada sua ênfase na leitura e interpreta-ção pessoal da Bíblia, mas a utiliza e defendenas igrejas. Segundo Gilmont (1997),

Ao passo que a criação das Igrejas protes-tantes está consumada, o final do século XVI não parece ter vivido uma revolução nomodo de lidar com o escrito. No domínioreligioso, o oral conserva seu lugar de des-taque. [...] A preponderância da oralidadenão parece, portanto, de forma algumaquestionada pela Reforma. (p. 71)

Contudo, se é fato que a Reforma nãoquestiona a oralidade, suas conseqüências po-dem não ter sido determinantes, mas contribu-

íram para o início de um processo de passagemde uma cultura oral para uma cultura da leitu-ra e da escrita ou ao menos alteraram sua for-ma. Antônio Frago (1993) analisa essa questãosituando-a em seu contexto histórico e social:

Ao difundir-se a alfabetização e o texto es-crito, por intermédio da imprensa, mudamas relações com o mesmo: a função demediador desaparece e as condições decomunicação, de coletivas, passam a serindividuais. [...] As duas vítimas desses pro-cessos são o velho e o padre. O primeiroperde a utilidade de sua memória; o se-gundo, o segredo de seu prestígio e o nú-cleo de seu poder como elo entre o escritoe o oral. (p. 34-35)

 Esse autor defende posição semelhanteà de Jean-François Gilmont sobre a não inter-ferência da reforma na tradição da cultura oral

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e afirma que apesar de ser “inegável a coinci-dência no tempo, na Alemanha do século XVI,da Reforma com um crescimento da rede esco-lar e da alfabetização”, seria naturalmente “er-rôneo conectar, no século XVI, a leitura da

 Bíblia em língua vulgar com a alfabetização”(Frago, 1993, p. 47). Contudo, apesar da cau-tela necessária em não se verificar na situaçãouma relação de causa-efeito, o autor não che-ga a esclarecer o que poderia ter contribuídopara tal ‘coincidência’.

 Em relação à questão da oralidade na Igre- ja, Timothy George (1993) analisa a posição de

 Lutero e afirma que para ele “a igreja não era uma‘casa da escrita’, mas uma ‘casa da fala’” (p. 91),afinal o próprio Cristo nada tinha escrito, mas simpregado pela palavra falada; e baseia-se, também,no ensinamento do apóstolo Paulo de que “a fé

 vem pelo ouvir e o ouvir pela Palavra de Deus”(Rm 10:17)2 . Dessa maneira, se na escola manti-nham uma cultura oral, na Igreja, para o ensinoda Palavra de Deus, ela era também mantida eindicada como a melhor maneira.

Professores

 Nos dois textos analisados, Lutero (1995)enfatiza a relevância de mestres bem prepara-dos. Reclama a falta de pessoas qualificadaspara o ensino e adverte que “para ensinar eeducar bem as crianças precisa-se de genteespecializada” (p. 308). Ao discorrer sobre otempo de ensino, uma ou duas horas parameninos e uma hora para meninas, aliado auma ocupação, afirma que se alguém quisessese tornar uma pessoa qualificada para o cargode professor – juntamente com o de pregadorou outros cargos clericais –, deveria se dedicara um estudo prolongado e intensivo ou atémesmo destinar exclusividade aos estudos.

 No elogio que faz, em 1530, ao Conselhoda cidade de Nürenberg pela fundação do Giná-sio de Egídio, ele ressalta a relevância de teremescolhido e contratado as pessoas mais qualifica-das, não tendo, na ocasião, nenhuma universida-de tão bem provida de docentes, com mestres

especializados para o ensino de grego, latim,hebraico, poética e matemática (Lutero, 1995).

Os professores deveriam, então, ser pes-soas especializadas que tivessem se interessa-do e se disposto ao estudo por longo tempo,

 visto que essa profissão era muito valorizadapor Lutero (1995):

 De minha parte, se eu pudesse ou tivesseque abandonar o ministério da pregação eoutras incumbências, nada mais eu deseja-ria tanto quanto ser professor ou educadorde meninos. Pois sei que, ao lado do minis-

tério da pregação, esse ministério é o maisútil, o mais importante e o melhor. Inclusi- ve tenho dúvidas sobre qual deles é o me-lhor [...]. (p. 359)

Financiamento

 É aos pais a quem Lutero se dirige eapela para que enviem os filhos à escola, mas éàs autoridades das cidades a quem ele conclamapara a criação e manutenção de escolas cristãs.A quem, de fato, se destinaria a responsabilida-

de pelo financiamento dessa educação escolar? Em 1524, ele faz um apelo aos pais

para que estes, além de enviarem seus filhos àescola, também contribuam com doações paraseu sustento financeiro, argumentando que aresistência ou a má vontade em contribuir fi-nanceiramente para as escolas seria ‘obra dodiabo’, afinal,

[...] até agora dispendeu inutilmente tantodinheiro e bens com indulgências, missas, vigílias, doações, espólios testamentários,missas anuais para falecimentos, ordensmendicantes, fraternidades, peregrinações etoda a confusão de outras tantas práticasdeste tipo; estando agora livre dessaladroeira e doações para o futuro, pela gra-ça de Deus, que doravante doe, por agra-decimento e para a glória de Deus, parte

2.Bíblia Sagrada. Versão corrigida e revisada. São Paulo, 1994, p. 1229.

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disso para a escola, para educar as pobrescrianças, onde está empregado tão bem.(Lutero, 1995, p. 305)

 No entanto, Lutero não se apóia na de-pendência da boa vontade dos pais e não res-ponsabiliza a Igreja por assumir essa tarefaeducacional. Também não conclama os prínci-pes para essa tarefa o que, segundo Altmann(1994), seria o mais provável visto que “a ima-gem corrente do Reformador coloca-o na pro-

 ximidade deles” (p. 203). Propõe a responsabilidade aos conselhos

municipais das diversas cidades da Alemanha,ou seja, o sustento econômico para a criação emanutenção das escolas seria de responsabili-dade das instituições políticas locais, afinal: “Aeles, como curadores, foram confiados os bens,a honra, corpo e vida de toda a cidade” (Lutero,1995, p. 309).

 Dessa maneira, visto que o progresso deuma cidade não se deve contabilizar pelo acúmulode riquezas, mas por possuir cidadãos bem instru-ídos, os conselhos municipais deveriam despenderde todo o recurso necessário para a criação e

manutenção das escolas cristãs visando o seu pró-prio progresso.

Princípios e fundamentos da

Educação

 Da análise dos dois textos citados de Lutero, a carta de 1524 e o sermão de 1530, pode-se encontrar, ainda, discussões fundamentais sobrea educação escolar, algumas inovadoras, merece-doras de reflexão. Entre outras, encontram-sequestões como: A que público essa escola deve-ria atender? Qual a utilidade do estudo oferecidopor essa escola? Ela deve ser de caráter obrigató-rio? Quem deveria ser responsável pela oferta esupervisão dessa educação formal?

Algumas dessas questões não são simplesde serem analisadas e há diferentes opiniões deautores que apresentam posições diferentesquanto ao que seria inovador nas propostas de

 Lutero. Optou-se novamente por, em um pri-

meiro momento, expor o que há registrado nostextos citados para cada tema escolhido paraaqui ser analisado e, posteriormente, apresen-tar a discussão que os autores realizam.

Uma educação popular

 Em 1530, no apelo que faz aos pais paraque enviem os seus filhos à escola, Lutero explicitaque o seu objetivo é o de que todas as criançasrecebam uma educação formal cristã, ou seja, quetodas, independentemente do tipo de família a quepertençam, freqüentem a escola. Sendo assim, ele

conclama os ‘filhos dos patrões’ e os ‘filhos degente pobre’ para freqüentarem a escola. Denuncia também o fato de as pessoas

simples muitas vezes se preocuparem apenas eminstruir os filhos quanto a um ofício para quepossam contribuir financeiramente com o rendi-mento da família ou apresentarem uma preocu-pação única com sua alimentação e saúde, pre-

 judicando-os por não os enviarem à escola.Os filhos de gente pobre, portanto, tam-

bém deveriam freqüentar a escola visto quepossuíam capacidade para tal e poderiam, ins-

truídos, servir a Deus:

 Esses meninos capazes deveriam ser encami-nhados ao estudo, especialmente os filhosda gente pobre, pois para essa finalidadeforam instituídas as prebendas e tributos detodas as fundações e conventos. Natural-mente também os outros meninos deveriamaprender ao menos a entender o latim, aescrever e ler, mesmo que não fossem tãocapazes; pois não precisamos somente de eru-ditos doutores e mestres na Escritura; tambémprecisamos de pastores comuns, que preguemo Evangelho e o catecismo ao povo jovem erústico, que batizem e administrem o sacra-mento etc. (Lutero, 1995, p. 342)

 Já para os filhos dos que eram patrões nacidade, ou seja, daqueles que possuíam recursose que talvez já tivessem oportunidade de ter umaeducação formal como se dava no antigo modelo,

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ele conclama que também sejam enviados para aescola cristã; contudo, após receberem a instru-ção, poderiam exercer outros tipos de funções:

[...] não quero ter insistido que todos de- vem educar seus filhos para esse ministério,pois não é necessário que todos os meni-nos se tornem pastores, pregadores ou pro-fessores. E é bom saber que os filhos dospatrões e grandes senhores não se destinama essa finalidade, pois o mundo também pre-cisa de herdeiros e gente, do contrário sedestroçaria a autoridade secular. (p. 342)

 E essa instrução seria necessária pois,

[...] sabemos, ou deveríamos saber, o quan-to é necessário e útil e o quanto agrada a Deus quando um príncipe, senhor, conse-lheiro ou outra pessoa que deve governar éinstruída e apta para exercer essa funçãocristãmente. (p. 318)

Ainda que apresente uma utilidade dife-rente para a educação escolar dependendo da

situação econômica e social das crianças, fazum grande esforço de proclamá-la como sen-do uma educação para todos e não somentepara uma pequena parcela da população liga-da aos cargos eclesiásticos ou às famílias dospríncipes e dos que pertenciam a uma elitecrescente na época. Todos deveriam freqüen-tar a escola, ainda que ela oferecesse umensino diferenciado (o que não fica claramen-te explícito nos textos em questão) e, poste-riormente, cargos distintos dependendo dotipo de população.

  É baseado, sobretudo, nessa distinçãoque Lorenzo Luzuriaga (1959) entende que:

[...] o ensino pedido por Lutero é antespara a burguesia, para as classes que hãode prover os cargos de direção da socieda-de: eclesiásticos, funcionários, médicos, ad- vogados. O que exige para a educação dopovo é muito elementar [...]. (p. 7)

 Dessa forma, com esses preceitos, Luteroteria consagrado a

[...] tradição de encaminhar os nobres e aalta burguesia de comerciantes para os co-légios, e os artesãos, negociantes e cam-poneses para a escola elementar popular e 

religiosa. (Hilsdorf, 2006, p. 168)

 Das orientações de Lutero para a cons-trução de boas bibliotecas, surgem as críticasde Jean-François Gilmont (1999), que ressaltao fato de ele ter atribuído aos magistrados

também a tarefa de conservação dos livros e depermissão para que os dirigentes espirituais etemporais pudessem estudar. Ou seja,

[...] para Lutero, o objetivo da escola não éo acesso de todos à cultura. A escola tempor função formar uma elite capaz de diri-gir tanto a sociedade civil quanto a religio-sa. [...] Nada de leitura popular. (p. 54)

 Nos escritos de Lutero, não se encon-tram evidências de uma proposta de diferentes

escolas para as populações dependendo daclasse a que pertenciam. Como já observado, oque se pode constatar são usos diferentes parao ensino escolar que ele propõe que todos fre-qüentem. Historiadores trazem essa divisão nasescolas por registros (que não os de Lutero) deobservação de como as escolas passaram a seorganizar no século XVI a partir das interferên-cias de Lutero, mas cabe ressaltar que, em seusescritos, não há nada que permita a afirmaçãode que ele teria planejado escolas distintas paradistintas classes.

 Não seria compreensível que no século XVI os colégios secundários em plena reorga-nização e a recém-fundação de novas escolas,para esse tipo de ensino, recebessem os filhosdas camadas burguesas? Não seriam estes osque já teriam condições de acompanhar o en-sino oferecido pelo colégio dos humanistas por

 já terem se iniciado nas ‘primeiras letras’ sejapor meio da freqüência à antiga escola ou do

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contato com os professores itinerantes, profis-sionais contratados muitas vezes pelos pais?

  Pode-se não encontrar respostas claraspara essas questões, mas o que se torna impor-tante destacar é que, independente da forma e doque se concretizou das propostas de Lutero, emesmo se ele as tivesse realmente formulado dessamaneira, este propôs que todos freqüentassem aescola para serem instruídos na Palavra de Deuse agirem de forma cristã na sociedade, quer noâmbito espiritual como no secular.

Apesar dessa forte e clara posição nãoser muito comum em seu tempo e ir contra uma

longa experiência de ensino voltado apenaspara a formação de sacerdotes e eclesiásticos,historiadores concordam que ele não foi oinaugurador na defesa de uma instrução esco-lar para todos, sendo que na época da Refor-ma já teria havido algumas manifestações afavor de uma educação popular.

 Nunes (1980) afirma que “de forma algu-ma as escolas elementares surgiram por iniciativade Lutero” (p. 100) e relata as fases da congre-gação dos Irmãos da Vida Comum (fraternidadefundada por clérigos pobres) que desde 1400

começaram a ensinar crianças e dirigir escolaselementares e que, a partir de 1450, converte-ram suas casas em ginásios e passaram a aplicaras idéias humanistas.

O autor ainda relata que, no que dizrespeito ao ensino elementar, as cidades italia-nas já se destacavam desde o final da Idade

 Média, sendo que até mesmo os vilarejos dis-punham de escolas nas quais se instruíamgrande parte da população urbana (Nunes,1980). Essas escolas também já se adiantavampor serem financiadas pelas suas próprias cida-des e não mais por instituições religiosas.

  Da mesma maneira, Lorenzo Luzuriaga(1963) faz uma avaliação do que, ao terminar oséculo XVI, compunha a educação na Alemanhae apresenta três tipos de escolas: as escolas pri-márias ou elementares “para o povo, nas aldeiase pequenas localidades, com ensino muito ele-mentar dado na língua alemã, por eclesiásticos ousacristãos, e com caráter principalmente religio-

so”; as escolas secundárias ou colégios huma-nistas, “para a burguesia, de caráter humanista,mas também religioso, como preparação princi-palmente para os cargos eclesiásticos e profissõesliberais”; e as universidades e escolas superiores,umas “transformadas no espírito da religião refor-mada, e outras, de nova criação dos príncipes pro-testantes” (p.111).

 Diante das propostas de Lutero e da cons-tatação de historiadores, o que se conclui é queeste pode não ter sido realmente o primeiro a sepreocupar com uma educação popular. Entretan-to, segundo Manacorda (1989), é evidente que

o impulso prático que ele deu e sua força po-lítica foram os responsáveis pelos novos progres-sos. Nunes (1998) corrobora essa constataçãoafirmando que

[...] nas regiões em que se implantou a refor-ma de Lutero ou Calvino, ao lado do amorpelos clássicos, surgiu o interesse pela educa-ção popular, devido ao preceito do estudo da Bíblia, que foi primordial para os adeptos da Reforma Protestante. Daí as escolas popula-res do tipo elementar e secundário. (p. 54)

Uma educação pública

Segundo Lutero, a responsabilidadepela educação escolar, um direito-dever detodos, deveria ser transferida do âmbito daIgreja para o do Estado, mais especificamentepara as autoridades municipais. Essas instânciaspolíticas locais deveriam ser as responsáveispela criação, pela manutenção e pelo financi-amento das escolas e pela supervisão dos pais,garantindo que eles enviassem de fato os filhosà escola. Lutero (1995) afi rma claramente:

[...] será da competência do conselho e dasautoridades dedicar o maior cuidado e omáximo empenho à juventude [...] o me-lhor e o mais rico progresso para uma cida-de é quando possui muitos homens beminstruídos, muitos cidadãos ajuizados, ho-nestos e bem-educados. (p. 309)

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As autoridades municipais deveriam ser,portanto, as responsáveis pelo oferecimento dasescolas cristãs, visto que seriam elas próprias asmais beneficiadas e, caso se negassem a cum-prir essa tarefa, as próprias culpadas pelo faltade sucesso, “pois de quem é a culpa se hojesão tão raras nas cidades as pessoas bem pre-paradas, senão das autoridades?” (p. 310).

 Para ele, tanto o financiamento e a or-ganização quanto a supervisão das escolasdeveriam ser de responsabilidade pública. Má-rio Manacorda (1989) ressalta como benefícioda Reforma a sua capacidade de relacionar

escola e cidade, instrução e governo e afirma:

Testemunho da força também educativa da Reforma no plano político é o fato de quea própria autoridade imperial teve de assu-mir esta nova concepção de uma escolapública para a formação dos cidadãos ou,pelo menos, dos governantes. [...] é, porém,de grande importância histórica a tomadade consciência do valor laico, estatal dainstrução, concebida não mais como algoreservado aos clérigos, mas como funda-

mento do próprio Estado. (p. 199)

 Luzuriaga (1959) é ainda mais enfáticonesse ponto e chega a afirmar que “a educaçãopública, isto é, a educação criada, organizada emantida pelas autoridades oficiais – municípios,províncias, Estados – começa, como dissemos,com o movimento da Reforma religiosa no século

 XVI” (p. 5). Ele identifica Lutero, ainda, como “oprimeiro a chamar a atenção, de modo insisten-

te , para a necessidade de criar escolas por meiodas autoridades públicas” (p. 6, grifos meu).

 Em um estudo sobre a origem da esco-la pública, Eliane Lopes (1981), apesar de situarcomo conquista da Revolução Francesa osprincípios de universalidade, gratuidade,laicidade e obrigatoriedade que compõem aescola pública como a que se concebe hoje,afirma que “modernamente, a educação torna-se pública nos países atingidos pelo movimentoda Reforma” (p. 14).

 Entretanto, essa visão é amplamente reba-tida na historiografia mais atual, pois já havia,como já mostrado, experiências de oferecimentode ensino pelas comunas italianas onde, desde oséculo XIV, elas cobriam os salários dos professo-res oferecendo aulas gratuitas. Nunes (1980) re-lata que no final da Idade Média, em cada cida-de da Itália e até nos vilarejos, havia escolas e

[...] as próprias comunas rurais nada fica- vam a dever aos grandes centros, já quefundaram escolas e pagaram professorespara os meninos aprenderem a ler, escrever,

assim como a conhecer um pouco de latim. Embora as crianças não freqüentassem re-gularmente a escola no meio rural, o nívelcultural da população campesina era supe-rior ao de outros países europeus. (p. 66)

 Hilsdorf (2006) também relata essas ex-periências como fator histórico para comprovarque Lutero não foi o primeiro a idealizar umaeducação pública. Ela afirma que ele

[...] não criou a escola elementar popular e

pública, como diz a historiografia da edu-cação: antes dele, ela já era uma tradiçãoescolar da Europa, inclusive no sentido deque o seu controle era assumido em partepelas autoridades das cidades. (p. 168)

Se há provas de que Lutero não foi o pre-cursor na iniciativa por uma educação elementarpopular e pública, talvez ele tenha se destacadopelo seu ‘modo insistente’, como relatou

 Luzuriaga (1959), de apelar às autoridades. Nunes(1998) aponta a iniciativa de Lutero em relaçãoà responsabilidade pública para educação secun-dária afirmando que: “a escola média começou aser custeada pelos cofres públicos e ser mantidapelo Estado nos países protestantes”; porém, osestabelecimentos eram essencialmente religiosos,sendo que “só no século XVIII, na Alemanha,começou a educação pública puramente estatalcom os reis da Prússia, Frederico Guilherme I e

 Frederico II, o Grande” (p. 55).

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Teria Lutero recorrido ao Estado para aresponsabilidade pela tarefa educacional apenaspara assegurar o sucesso de suas propostas?Que garantias tinha ele de que isso acontece-ria? Por que recorrer às autoridades locais e nãoaos príncipes? As respostas a essas indagaçõesnão são simples, dado que a própria noção de

 Estado, caminhando-se para a formação de um Estado moderno, estava sendo reformulada e arelação de Lutero com o Estado se apresentacomo um aspecto de análise complexa.

Contudo, cabe relembrar que, para Lutero,o Estado possuía um caráter cristão e este de-

 veria assumir um papel em prol da paz e justi-ça do povo governando como a mão esquerdade Deus. Nesse sentido, talvez fosse natural quea Igreja em decadência tivesse que deixar de sera organizadora e mantenedora da educação es-colar e, em seu lugar, o Estado se ocupasse dessatarefa para promover uma educação cristã, queinstruísse as crianças e os jovens para se torna-rem religiosos que atuariam tanto na esfera es-piritual como também na secular.

Ao refletir sobre o caráter estatal que Lutero atribui à educação, Walter Altmann

(1994) sugere algumas questões relevantes: porque teria atribuído a responsabilidade da edu-cação às autoridades das cidades e não aospríncipes? Ele responde em favor de Luterodefendendo essa posição como progressista:

[...] o chamamento de Lutero às autorida-des municipais e à nova burguesia emer-gente, no sentido de que assumissem aresponsabilidade da educação, foi um pas-so nitidamente progressista. Lutero mos-trou aguda sensibilidade quando, nessaquestão, não apelou simplesmente para aautoridade dos príncipes, mas chegou bemmais perto da base do cotidiano, escolhen-do as autoridades municipais, mais direta-mente ligadas com as necessidades con-cretas de seus habitantes. De fato, foi umaescolha que veio a se comprovar comocorreta, pela ampliação das oportunidadeseducacionais. (p. 208)

Contudo, além dessa afirmação se mos-trar marcada por uma visão do presente, omesmo autor reflete sobre uma conseqüêncianegativa que resultou dessa escolha ao se con-

 vocar as autoridades municipais para assumirema responsabilidade pela educação: as cidadesque já estavam em franco desenvolvimento sótenderam a prosseguir com os ganhos educa-cionais. Entretanto, nas áreas rurais, que nãotinham muitas condições de acesso à educaçãoescolar, a proposta teria sido menos exeqüível.

Contribui para uma melhor compreensãorelembrar o fato de a Alemanha se encontrar di-

 vidida em cidades independentes, o que permitiu,com o desenrolar do movimento da Reforma, quepor algum momento cada autoridade escolhessea religião de seus súditos. Sendo assim, cada localteve que optar pelo apoio à Igreja Católica ou à

 Reforma e, no caso de apoio a esta, era compre-ensível o fato de que precisavam atender às pro-postas educacionais propagadas por Lutero.

 Entretanto, havia a possibilidade de prín-cipes que pudessem não ter aderido aos ideaisda Reforma e daí, talvez, se justifique o fato de

 Lutero convocar o Conselheiro de cada cidade

para atentar à sua proposta de criação e manu-tenção de escolas como responsabilidade dasautoridades locais e não mais da Igreja, tentan-do convencê-los de que os mais beneficiadoscom essa atitude seriam as próprias cidades.

Outro argumento que pode explicar o fatode Lutero ter convocado as autoridades locais enão os príncipes para a responsabilidade pelatarefa educacional é o próprio exemplo do que

 vinha ocorrendo na Itália com as já citadascomunas italianas em que as autoridades de cadalocal financiavam professores para as criançasquando os pais não podiam fazê-lo. Ou mesmoo fato de que a Alemanha encontrava-se dividi-da em diversos territórios marcados pela disputade terras e o poder dos príncipes locais muitas

 vezes sobrepunha o poder formal do imperador. Entretanto, apesar das hipóteses apresentadas,evidenciou-se a necessidade de estudos maisaprofundados, específicos sobre esse tema, paraque se alcance uma conclusão consistente.

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Qual a utilidade da educação

A proposta de Lutero em relação às esco-las é a de que elas sejam cristãs e atendam a to-dos, e essa educação por ele defendida apresentaobjetivos bem definidos: tem sua utilidade prá-tica para a preparação de ministros e de bonsadministradores da casa, mas é, sobretudo, umautilidade social a que Lutero explicita como re-sultado dessa instrução.

Com seu próprio exemplo e baseado nadoutrina dos dois reinos, convoca os cristãospara participarem ativamente do mundo em

que se encontram e contribuírem para que setornem mais cristão. Esse posicionamento dian-te do curso do mundo, com o temor de Deus,só poderia acontecer mediante uma nova edu-cação que é a que ele propõe.

Cambi (1999) afirma que a concepçãopedagógica de Lutero “baseia-se num fundamen-tal apelo à validade universal da instrução, a fimde que todo homem possa cumprir os própriosdeveres sociais” (p. 249). Para isso, as escolascristãs deveriam ser criadas e mantidas, para queas crianças e os jovens aprendessem as ciênci-

as, a disciplina e o verdadeiro culto a Deus deforma que, posteriormente, elas pudessem se tor-nar “pessoas capazes de governar igrejas, países,pessoas, casas, filhos e criadagem” (Lutero,1995, p. 330).

 Manacorda (1989) ressalta essa utilida-de social da instrução em Lutero que, segundosua análise, era

[...] destinada a formar homens capazesde governar o Estado e mulheres capazesde dirigir a casa, segundo uma divisão dotrabalho entre os sexos, divisão que, em-bora não revolucionária, pelo menos é re-alista. (p. 197)

 Da instrução, dependia também a conti-nuidade de existência do ministério e do esta-do eclesiástico, o que faz Lutero apelar paraque os pais enviem seus filhos para a escolapara que estes não venham a cair no abando-

no e, com isso, o mundo sofra com a falta depessoas que preguem a Escritura.

Sendo assim, um filho educado e instru-ído em uma escola cristã poderia ser muito útilà causa de Cristo e a toda a sociedade:

[...] ele também realiza tão-somente grandes eimportantes obras em favor do mundo: ensinae instrui todas as categorias sociais como sedevem conduzir exteriormente em seus cargose suas posições, para agirem com justiça pe-rante Deus. (Lutero, 1995, p. 338)

 Lutero ainda segue dizendo que não ha- veria problemas se um menino que estudouaprendesse um ofício e se tornasse um cidadão,ou seja, que o estudo não atrapalharia seu traba-lho, mas, antes, o ajudaria a administrar melhorsua casa e estaria apto para o ministério da pre-gação ou do pastorado caso precisassem dele.

Aliás, como já ressaltado, o aprendizadode um ofício era recomendado aos meninos ea tarefa doméstica, às meninas, após o perío-do de aula. Dessa forma, com a Reforma, cria-ram-se “escolas elementares que conciliavam o

aprendizado da língua com a formação paraatividades produtivas” (Hilsdorf, 1998, p. 29).

 No entanto, os pais não deveriam permitir queas crianças aprendessem apenas o suficientepara exercer uma atividade rentável, ou seja,não bastaria apenas aprender a contar e a ler,pois “para aprender a pregar, governar e admi-nistrar a justiça, tanto no estado clerical ousecular, não bastam sequer todas as ciências elínguas do mundo [...]” (Lutero, 1995, p. 328).

 Dessa forma, se os pais queriam agradar a Deus e contribuir para o sucesso futuro da cida-de, deveriam enviar os filhos para a escola deforma que a instrução os tornasse pessoas úteis àpropagação da palavra de Deus e à toda a socie-dade, independente da função que exerceriam.

Uma educação obrigatória

 Lutero não somente faz um apelo paraque se criem e mantenham escolas cristãs e

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para que os pais enviem seus filhos a essasescolas. A educação escolar não deveria depen-der apenas da adesão ou aceite ao seu apeloquanto aos benefícios que a instrução escolarpoderia proporcionar. Ele defende que a edu-cação escolar, além de ser para todos, tenha umcaráter obrigatório, forçando os pais e as auto-ridades atentarem para ela.

Cambi (1999) ressalta que, “com o pro-testantismo, afirmam-se em pedagogia o princí-pio do direito-dever de todo cidadão em relaçãoao estudo, pelo menos no seu grau elementar, edo princípio da obrigação e da gratuidade da

instrução” (p. 248). Se a história revela que antesde Lutero já havia pessoas que defendiam umaeducação popular, ela nada revela sobre aobrigatoriedade do ensino, o que leva a pensarque esse avanço na reivindicação da educaçãoelementar tenha Lutero com um dos pioneiros.

 Ele afirma aos pais que é mandamentode Deus, por meio de Moisés, que eles instru-am os filhos e que, no seu ponto de vista, nãohaveria pecado que merecesse maior castigoque o cometido contra as crianças quandodeixam de educá-las. No entanto, como afirma

que para ensinar e educar bem as crianças épreciso gente especializada, a obrigação dospais seria, então, enviá-los à escola.

Ameaça os pais dizendo que, se eles nãocumprissem sua obrigação de encaminhar osfilhos à escola, se tornariam os responsáveiscaso o serviço de Deus se arruinasse; e tam-bém os relembra de que não são os donosabsolutos de seus filhos, pois estes tambémpertencem a Deus e por isso devem entregá-lospara Ele, enviando-os à escola de forma a ga-rantir sua instrução que muito poderia contri-buir para a obra cristã.

 No que se refere aos recursos financei-ros necessários para essa educação, ele orien-ta os pais para que esse não seja um motivo depreocupação ou de recusa no envio dos filhospara a escola, afirmando que antes faltarãopessoas do que recursos. Contudo, ainda queisso aconteça, ou seja, ainda que faltem recur-sos para a instrução de seus filhos, relembra que

ele mesmo havia sido um mendicante paraconseguir realizar seus estudos até seu pai tercondições de sustentá-lo e dá o seguinte con-selho aos pais:

[...] manda teu filho estudar com toda con-fiança. Ainda que, por enquanto, tenha queficar mendigando pão, estás oferecendo a Deus nosso Senhor uma madeira preciosada qual pode talhar-te um senhor. (Lutero,1995, p. 357)

 Dessa maneira, não havia motivo ou

desculpas para que qualquer criança deixassede receber a instrução escolar. Todas deveriamser enviadas à escola e aos pais caberia essaresponsabilidade. Conclama, ainda, as autorida-des para que essa obrigação seja de fato cum-prida: “Em minha opinião, porém, também asautoridades têm o dever de obrigar os súditosa mandarem seus filhos à escola [...]” (p. 362),além de serem as responsáveis pela criação emanutenção dessas escolas.

Assim, cabia às crianças a obrigatoriedadede freqüência à escola, e às autoridades, a sua

garantia e supervisão. Segundo Luzuriaga (1959),

A principal característica dessa educaçãopública religiosa, [...] é seu apelo às autori-dades (e a resposta delas) no sentido dafundação de escolas mantidas com recursospúblicos e do estabelecimento de freqüên-

cia obrigatória. (1959, p. 6, grifos meu)

A educação encontra em Lutero o seuprimeiro defensor de uma escola que fosse aomesmo tempo para todos, de freqüência obri-gatória e como responsabilidade (de financia-mento e supervisão) das autoridades leigas enão mais religiosas. Ao defender essa escolapública cristã, ele coloca a instrução comosendo, “portanto, uma obrigação para os cida-dãos e um dever para os administradores dascidades” (Cambi, 1999, p. 249).

Sendo assim, os princípios de uma edu-cação popular, gratuita e obrigatória e de ca-

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ráter estatal podem ser encontrados já no sé-culo XVI nas propostas de Lutero para a edu-cação no movimento da Reforma Protestante.

Considerações finais

 Uma reflexão sobre a atuação de Lutero nocontexto educacional não deve estar distanciadade seu contexto histórico e dos seus objetivosiniciais que se encontravam, sobretudo, no âmbitoreligioso. A educação era tema tratado por estu-diosos da época e, posteriormente, assim o foiprincipalmente por aqueles que se intitulavam

humanistas. Entretanto, compreender o que levou Lutero a apresentar propostas educacionais ino- vadoras – que se não o foram na criação, semdúvida o foram na forma de sua proposição paraseu tempo –, que repercutiram ao longo da his-tória, não se mostra uma tarefa de fácil realização.

Talvez a primeira questão a ser posta é se Lutero se propunha ser um reformador da educa-ção da mesma maneira como se colocou para aIgreja. Era seu objetivo reformar a educação es-colar ou essa proposta surgiu como conseqüên-cia e extensão de sua reforma na Igreja? Alguns

autores o vêem como um reformador da edu-cação e até mesmo analisam suas ações comoas de um pedagogo. Contudo, outros, comoAltmann (1994), consideram-no sobretudo umreformador religioso que acabou afetando ocampo educacional por ser o processo educa-tivo intrínseco ao ser humano.

Sem se propor a questionar o fato dereligião e educação serem ou não processosinerentes ao ser humano ou ainda a relação quehá entre elas, o que se mostra necessário ressal-tar é que Lutero foi, como bem observa Geoffrey

 Elton (1982), um homem profundamente religi-oso e teólogo de formação e, sendo assim, suasações em prol da reforma estavam dentro dodomínio da religião e da teologia, sendo que“quaisquer que sejam os outros efeitos e tribu-tários da história, esse é o ponto de que se devepartir” (p. 220).

Contudo, se as suas preocupações cen-travam-se no campo religioso e teológico, por que

ele teria se levantado para propor uma nova or-ganização do sistema escolar e ainda convocadoautoridades e pais para atentarem para essa edu-cação? Para refletir sobre essa questão, é neces-sário ressaltar que as idéias educacionais de

 Lutero e todo o movimento da Reforma Protes-tante não devem ser analisados fora dos acon-tecimentos de sua época. Nesse sentido, outrasperguntas se juntam à anterior: teria Lutero in-terferido na educação influenciado pelos ideaishumanistas que se propagavam pela Europa ediante dos quais ele aproveitava para criticarainda mais a escolástica em que fora educado?

A relação de Lutero com os humanistase sua posição em relação a esses ideais indicanão ser consenso entre os autores que ou acei-tam essa aproximação ou a negam, atribuindo-a muito mais ao humanista Filipe Melanchthon.

 No entanto, essa posição de Lutero de aceitaçãode novos ideais concomitante com a sustentaçãode algumas práticas conservadoras e medievaisreflete o próprio contexto em que ele estava in-serido dentro de um período de transição entre aIdade Média e o início da Idade Moderna.

 No entanto, em relação aos ideais huma-

nistas, o que se questiona é se estes seriam sufi-cientes para provocar as transformações na educa-ção independentemente das ações de Lutero ou deoutros personagens dentro do movimento da Re-forma3 . Se a força da mudança intelectual estavano Renascimento, por que os progressos educaci-onais, no sentido da criação de um sistema esco-lar público e popular que impactasse outros locais,não saíram da Itália e França nos séculos em quese iniciou a corrente renascentista?

 Pode ser que alguns fatores tenham au- xiliado Lutero nas suas conquistas educacionaiscomo: o fato de ele ter se tornado notório emsua luta pela Reforma da Igreja e, além da rela-ção próxima que já tinha com as autoridades, ao

3. Geoffrey Elton (1982), ao escrever sobre as divergências entre Luteroe Erasmo, faz esse questionamento em relação às mudanças na Igreja: “oque consta é saber se a Reforma de Lutero era realmente necessária ou sea Igreja podia ter sido renovada e restabelecida pelo vasto movimento dohumanismo cristão que se inspirava em Erasmo e que (como vimos) semdúvida contribuiu para preparar o terreno para os ataques mais drásticoscontra o protestantismo” (p. 226).

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se tornar uma figura pública, suas reivindicaçõese seus apelos talvez tenham tido maior repercus-são. Pode ser que o seu objetivo realmente fosseo de ensino da doutrina e então ele não teriamedido esforços para a construção de uma pro-posta educacional que o auxiliasse na conquis-ta com êxito de seu propósito religioso.

A tentativa de fundamentar esse argu-mento de interesse no ensino da doutrina podese encontrar no fato de que Lutero realmentedefendia que as autoridades financiassem umaeducação que fosse cristã, além do fato de quehistoriadores indicam o uso dos Catecismos por

ele escritos nas escolas elementares. Contudo,não parece ter sido esse o único nem o principalobjetivo de Lutero e, se assim o foi, não encon-trou nele êxito, afinal, sua figura é amplamenteassociada à criação de uma escola elementar epopular e não de uma escola doutrinária que seespalhou pelos territórios, moldando pessoas paraa religião protestante.

A análise dos textos escritos em 1524 e1530 evidencia que ele se preocupou com umanova organização das escolas. Ele não explicitaexatamente o que era destinado para o ensino

elementar e para o secundário, mas propõe umensino baseado nas línguas (a vernácula para oensino elementar e as clássicas e o hebraicopara o secundário, segundo os historiadores) ena leitura da Bíblia. As alterações sugeridas parao currículo e os métodos mostram uma tenta-tiva de inserir o novo – dos humanistas – comcontinuidades do antigo sistema escolástico. Apreocupação com o tempo destinado ao ensi-no, tipo de professores, forma de financiamento,entre outros, evidenciam a preocupação com aestruturação de um sistema de ensino diferen-te e até mesmo a criação do oferecimento deuma ‘modalidade’ de educação escolar que nãoexistia nas cidades alemãs, como foi o caso dasescolas elementares.

 Há críticas de que as escolas elementa-res se destinariam a um público popular paraensino da doutrina e de preparação para o tra-balho no comércio, enquanto os colégios se-cundários se destinariam para as classes bur-

guesas, preparando os alunos para ingresso na Universidade. Contudo, apesar de no texto de1524 Lutero propor que as crianças aprendamum ofício, isso não parece fundamentar o argu-mento exposto acima, pois se pode constatar,no sermão escrito em 1530 (após o episódio daguerra dos camponeses que teria levado Luteroa repensar suas propostas para as camadaspopulares), que ele insiste para que os pais nãodeixem de enviar os filhos à escola e assimdeixá-los trabalhando no comércio.

 Dessa maneira, mostra-se inquestionávela reivindicação de Lutero para que a escola seja

aberta a todos. Independentemente de objetivose propostas de ensino diferenciadas, todas ascrianças deveriam freqüentar uma escola financi-ada e mantida pelas autoridades locais. E talvezesteja aí, em um apelo pela criação de uma escolapública e estatal, com as particularidades queenvolviam o Estado alemão naquele período, umadas maiores contribuições de Lutero para o siste-ma de ensino. E se a história mostra que houveantecedentes também nesse caso, como é o dascomunas italianas do século XIV, convém reco-nhecer e analisar o ‘impulso prático’, como des-

creveu Manacorda (1989), que deu a elas. Porque, se encontramos na Revolução

  Francesa do século XVIII os princípios degratuidade, obrigatoriedade, universalidade elaicidade do ensino que se espalharam portodos os lugares e constituíram o que hoje sechama de escola pública, foi antes, em Lutero,que encontramos uma defesa por uma educa-ção gratuita, universal e obrigatória que seespalhou como apelo a todas as autoridades enão se restringiu a experiências locais sem re-percussão (como se pode perceber no caso dascomunas italianas, pois apesar de as autorida-des locais atentarem para a necessidade de fi-nanciamento da educação escolar, não há indí-cios de que tenham repercutido por todo oterritório italiano e fora dele nem ganharam um‘impulso’ insistente para sua propagação comofoi o dado por Lutero no caso alemão).

Com isso, volta-se à questão das pro-postas educacionais de Lutero estarem ligadas

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e envoltas em sua luta maior pela reforma re-ligiosa. Teria ele conseguido uma respostapositiva das autoridades, que atenderam ao seuapelo e construíram escolas, se tivesse apenasse levantado por uma luta pela reforma doensino de sua época? Não é o que parece. Areforma e a construção de um novo sistemaeducacional para Lutero aparecem intimamen-te ligadas à sua proposta de reforma do âmbi-to religioso e de mudanças na sociedade. O

 Estado para ele era confessional, ou seja, deve-ria ser um Estado cristão, e daí o seu apelo paraque ele interferisse tanto na religião quanto na

educação da população. E se essa posição cris-tã era o que ele entendia ser a base do Estadoe de toda a sociedade, não havia como serdiferente com a educação que deveria ser cristãe, assim, estar relacionada à religião em umaforma até mesmo de dependência recíproca.

Cabe ressaltar que a própria noção de Estado estava em reformulação e, talvez, tam-bém se encontre aí outra grande contribuição de

 Lutero: para a criação de um Estado forte eauto-suficiente, caberia a ele a responsabilidadepela educação escolar de seus cidadãos. Se nesseperíodo encontra-se o nascimento do Estadomoderno, Lutero pode em muito ter contribuí-do apelando para que ele, e não mais a Igreja ououtra instituição religiosa, fosse o responsávelpela oferta e manutenção de escolas que aten-dessem a todos. Sendo assim, nasce um Estadoque deve ser consciente de que é seu deverproporcionar a todos o direito à Educação.

 Para concluir, não há como não reconhe-cer o avanço dado por Lutero no que diz respei-

to ao direito à Educação de todos. Pode ele nãoter sido o primeiro a criar (pelo exemplo dascomunas italianas e da Congregação dos Irmãosda Vida Comum) nem o executor (não se deveesquecer Filipe Melanchthon) de tais propostas,contudo, foi ele um grande propugnador e defen-sor, junto às autoridades e à população, da criaçãode escolas que não atendessem somente aos clé-rigos e religiosos, mas que fossem abertas a todos.

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Recebido em 28.09.05 Modificado em 22.03.06 

 Aprovado em 22.05.06 

Luciane Muniz Ribeiro Barbosa é pedagoga; aluna do programa de pós-graduação da FEUSP – mestrado, na área deEstado, Sociedade e Educação, sob orientação do Prof. Dr. Romualdo Luiz Portela de Oliveira; e professora na FaculdadeMontessori de Educação e Cultura (FAMEC) e Universidade Bandeirantes (UNIBAN), no curso de Pedagogia.