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  • 7/25/2019 - Verso Final Corrigida_ Igor_modelo

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAU

    CENTRO DE CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE CINCIAS JURDICASGRADUAO EM DIREITO

    Igor Sampaio Felismino

    Democracia e ensino jurdico: um estudo no estilo Lapidariumdastransgresses como condies de possibilidade atravs do dilogo entre direito e

    Harry Potter

    Teresina - PI

    2016

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    IGOR SAMPAIO FELISMINO

    DEMOCRACIA E ENSINO JURDICO: UM ESTUDO NO ESTILOLAPIDARIUMDAS TRANSGRESSES COMO CONDIES DE POSSIBILIDADE

    ATRAVS DO DILOGO ENTRE DIREITO E HARRY POTTER

    Monografia apresentada ao Cursode Graduao em Direito daUniversidade Federal do Piau, comorequisito parcial para a obteno doGrau de Bacharel em Direito.

    Orientadora: Profa. Dra. MARIA SUELI RODRIGUES DE SOUSA

    Teresina-PI

    2016

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    IGOR SAMPAIO FELISMINO

    DEMOCRACIA E ENSINO JURDICO: UM ESTUDO NO ESTILO LAPIDARIUMDAS TRANSGRESSES COMO CONDIES DE POSSIBILIDADE ATRAVS DO

    DILOGO ENTRE DIREITO E HARRY POTTER

    Trabalho de concluso de curso apresentado ao Departamento de CinciasJurdicas da Universidade Federal do Piau, como requisito para concluso do Cursode Bacharelado em Direito.

    Aprovadoem 07 de Maro de 2016.

    _____________________________________________

    Profa. Dra. Maria Sueli Rodrigues de Sousa

    Orientadora

    _____________________________________________

    Profa. Andreia Marreiro Barbosa

    Examinadora

    _____________________________________________

    Prof. Macell Cunha Leito

    Examinador

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    SumrioINTRODUO..................................................................................................................................... 7

    CAPTULO 1Literatura, Harry Potter e democracia: incio da jornada.................................. 10

    1.1 Entretenimento....................................................................................................................... 11

    1.2 Edificao moral.......................................................................................................................... 161.3 O papel social da literatura........................................................................................................ 18

    CAPTULO 2O direito em Warat e a literatura em Harry Potter: duas faces da democracia............................................................................................................................................................. 23

    CAPTULO 3Instaurao de nova jornada: aquele que levanta e segue.............................. 31

    CONCLUSO.................................................................................................................................... 39

    Referncias bibliogrficas................................................................................................................ 42

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    Resumo

    O trabalho que vocs esto prestes a ler partiu do questionamento a respeitodas qualidades que deve ter o direito para nutrir a democracia. Partindo dopressuposto de que as transgresses ao Direito so fundamentais para a existnciado regime democrtico, utilizei os referenciais tericos principais de Warat eCastoriadis. Aquele considera que democracia transgresso e este, que ela umadimenso simblica da poltica. Analisou-se a saga Harry Potter luz dessestericos. Arte e psicanlise foram utilizadas para analisar o direito. Por fim, lanou-seuma proposta de ordem prtica para o ensino jurdico. O primeiro captulo tem comoprotagonistas a literatura e a saga Harry Potter, e culmina com a funo social da

    arte literria; o segundo coteja a srie Harry Potter com vrios temas do direito, que,apresentados de forma metafrica, se tornam, em seu turno, mais fortes. Por fim, noltimo captulo, cria-se uma proposta de ordem prtica amparada em uma estratgiade enredo discutida no captulo inicial.

    Palavras-chave: transgresses; democracia; literatura.

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    Abstract

    The work you are about to read started from the wondering regarding thetraits which Law must have, in order to nourish democracy. Starting from the tenetthat the transgressions against Law are fundamental to the existence of a democraticpolicy, I employed Warat and Castoriadis as the main theoretical referentials. Theformer entertains the idea that democracy is transgression, and the latter, thatdemocracy is a symbolic dimension of politics. I analyzed Harry Potter saga underthose theorists light. Art and psychoanalysis were used in order to analyze Law.Finally, a practical-order proposal for the teaching of Law was launched. First chapterhas literature and Harry Potter saga as main characters, and culminates with the

    social function of literature; second one compares Harry Potter series to several lawthemes, which, metaphorically presented, become, on their way, stronger. Finally, inlast chapter, we created a practical order proposal, sustained on a plot strategyargued about in first chapter.

    Key-words: transgressions; democracy; literature.

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    INTRODUO

    Fala Warat no seu compndio de textos de ttulo Territrios surrealistas: a

    procura surrealista pelos lugares do abandono do sentido e da reconstruo da

    subjetividadea respeito de um termo chamado Lapidarium, que indica um arsenal

    de peas antigas e desconectadas, como restos de esttuas ou pedras de

    construes antigas em runas. O terico, no entanto, no menciona o termo apenas

    porque admira sua riqueza sonora, do mesmo jeito que Humbert Humbert no

    admira apenas a sonoridade sensual do nome Lolita, no primeiro pargrafo do

    clebre romance de Vladimir Nabokov. Lapidarium utilizado como metfora a

    caracterizar o processo de escrita do autor, que pode parecer fragmentrio para os

    padres de pensamento e elaborao de pensamento cientfico, mas que liberta o

    pensamento e o deixa pronto para ser verdadeiro, o que pode implicar (por que

    no?) ser paradoxal.

    No Lapidarium s existem fragmentos. A realidade um imensoLapidarium, constitudo somente de fragmentos. A literatura,

    qualquer escrita no transcende as dimenses de um Lapidarium.Toda escritura fragmentria. Eu assumo esta afirmao e por issosempre rendi tributo literatura de fragmentos e desprezei asaparncias da literatura monoltica. Sempre me pareceu um esforoque, alm de vo, nos deixava sempre o sabor de uma mentira(WARAT, 2004, p.23).

    Dessa forma, a estrutura desse meu filho de produo intelectual no se

    preocupou exatamente com a rigidez da forma, mas sim com a sinceridade dos

    pensamentos. E todos sabemos que os pensamentos muitas vezes agem sozinhos,

    sem a nossa interveno, algumas vezes contra a nossa vontade. Nietzsche, emAlm do bem e do mal nos alerta contra o perigo, em casos como esse, de confiar

    na gramtica, e achar que s porque na frase Eu penso, o sujeito o eu, isso

    significa que na realidade de fato esse sujeito controla os turbilhes no interior de

    sua cabea.

    J nessa apresentao da estrutura formal deste trabalho monogrfico, est

    contido o princpio que o orienta. Ele visa a responder a seguinte pergunta: qual a

    importncia dos conflitos, das incertezas, das transgresses, enfim, para a

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    manuteno da democracia? Com base em Warat e Castoriadis, a resposta

    pressuposta que no h democracia de verdade com respostas prontas, pois o

    ideal no existe, e ancorar-se em utopias, como a da autonomia poltica dos

    indivduos na democracia institucional, uma atitude que s fortalece a rede de

    mentiras do atual jogo poltico.

    Tendo em vista isso, o trabalho teve como objetivo defender a criatividade

    no ramo jurdico, que passa por um exerccio inventivo da linguagem e pela

    autonomia das escolhas sem base em receitas prontas.

    No h receio algum de classificar parte desse trabalho como sendo feito

    com base na pesquisa de campo, muito embora o campo envolvido seja um mundoem que o prprio autor no pde entrar, nem provavelmente o poder nenhum dos

    leitores dessa monografia: o mundo dos bruxos, conforme descrito por J.K.Rowling,

    na saga Harry Potter. Vrios aspectos desse livro foram analisados e confrontados

    com lies de Warat a respeito do carter da democracia e da poltica, e sua

    inegvel ligao com conflitos e incertezas.

    Torna-se claro, ao mesmo tempo, que a ligao entre o personagem bruxo e

    o trabalho do escritor argentino dupla: por um lado, temos a pesquisa de campo

    propriamente dita, com seu mtodo emprico de colher dados de uma sociedade (no

    caso, uma sociedade imaginriae aqui Castoriadis me agradeceria pelo trocadilho

    no-intencional) e analis-los luz dos diversos elementos que Warat trabalha,

    como amor, indiferena, xtase comunicacional, incidentes de ternura, dentre outros;

    e por outro lado temos, mediante a escolha da sociedade, que a do mundo dos

    bruxos, a concretizao das ideias de Warat a respeito da importncia da arte para a

    vida.

    Pesquisa bibliogrfica, ento, como se chama essa segunda parte do

    trabalho. Foram realizadas inmeras leituras a fim de amadurecer as reflexes

    acerca do papel da literatura no mundo jurdico, e da importncia de uma nova

    postura existencial, artstica e criativa, no processo de lidar com a democracia.

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    A orientao metodolgica, portanto, consistiu na anlise jurdica da saga

    Harry Potter sob a luz dos tericos supracitados, alm de uma discusso a respeito

    dos prprios aspectos das propostas tericas desses autores.

    O texto est organizado em 3 captulos. O primeiro trata de apresentar as

    principais funes da literatura, e realiza uma anlise de diversas ideias de Warat

    cotejadas com aspectos da srie Harry Potter. Alm disso, apresenta o conceito de

    monomito, ou jornada do heri, que ser retomado no ltimo captulo.

    O segundo captulo realiza uma anlise direta de diversos incidentes da obra

    Harry Potter sob a luz de Warat e Castoriadis, o que inclui incurses tambm na

    psicanlise, ramo do conhecimento utilizado intensamente por ambos os autores.

    O terceiro captulo, por fim, realiza uma proposta de ordem prtica para o

    ensino jurdico com base na jornada do heri analisada no primeiro captulo.

    Que sejam perdoadas algumas possveis falhas que esse meu rebento

    apresentar. Como pai de primeira viagem, e criando um filho sozinho, devo admitir

    que s agora tenho muitas experincias adquiridas em primeira mo.

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    CAPTULO 1 Literatura, Harry Potter e democracia: incio da

    jornada

    Desde a aurora da humanidade at a era contempornea, verifica-se a

    presena ininterrupta da Literatura na vida do ser humano. possvel atestar como

    suas funes, de acordo com Jos Guilherme Merquior (2014), o entretenimento, a

    edificao moral e a problematizao da vida; e poderamos acrescentar ainda,

    consoante as lies de Luiz Gonzaga de Carvalho Filho (2015), o relato de

    experincias. Pode-se dizer, juntamente com o primeiro terico mencionado, que a

    hipertrofia da funo de problematizao da vida caracterstica tpica da era

    moderna, de tal forma que as obras que se voltam para as trs primeiras funes

    frequentemente so discriminadas como subliteratura. Desde a ascenso da prosa

    impressionista, no final do sculo XIX, o questionamento dos valores sociais parece

    ter se tornado o objetivo primordial no apenas da literatura, mas de toda obra que

    se diga artstica (adjetivo que, alis, parece, nos dias de hoje, poder se estender a

    qualquer objeto ao qual se possa associar uma mnima ideia crtica). No entanto,obras imortais do cnone literrio, como A divina comdia e a Eneida, foram

    construdas com o objetivo principal de transmitir valores morais. Literatura

    altamente considerada pela crtica e pelos leitores, como Decameron e Orlando

    Furioso, j foi feita com a finalidade de entretenimento. Existiram at as obras

    monumentais, como a Odisseia, construdas com os intuitos de divertire edificar.

    Mas por que era possvel, nesses tempos que atualmente muitos

    consideram ureos (tempos que incluam a honra de poder ser conduzido ao reino

    dos mortos por uma febre de tifo ou uma varola), o divertimento poder ser usado

    para divulgar e inculcar valores morais importantes? Porque, como declarou

    Merquior, tratava-se de tempos de valores estveis. Por isso, o prprio divertimento

    era capaz de atuar como veculo de formao tica(MERQUIOR, 2014, p. 248) Os

    tempos atuais, porm, no conseguem oferecer a seus filhos uma bssola moral

    uniforme e unnime para a vida, visto que os valores atualmente so variados e

    privilegia-se o dilogo em detrimento das certezas; dessa forma, a literatura toma

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    para si essa funo de procurar essa bssola moral, atravs de diversos

    questionamentos.

    Exemplo admirvel de literatura que une essas funes a obra principal daescritora britnica J.K.Rowling, qual seja, a saga Harry Potter, srie dividida em sete

    volumes, cujo primeiro, Harry Potter e a pedra filosofal, foi publicado em 1997. A

    srie consegue, de forma natural, unir entretenimento, edificao moral e

    problematizao da vida. Um de seus inmeros mritos como obra de arte

    justamente fazer com que os temas socialmente importantes abordados cresam de

    forma orgnica, sem que sejam berrados de forma escandalosa, como o

    dogmatismo dos militarizados grupos antidogmticos de defesa dos direitos

    humanosguardem isso na memria, pois ser desenvolvido mais adiante, no meio

    da explicao acerca das ideias de Lus Alberto Warat.

    De agora em diante, vou apresentar as supracitadas funes da Literatura

    em trs tpicos, com base nos j citados Luiz Gonzaga de Carvalho Filho (2015) e

    Jos Guilherme Merquior (2014); o primeiro tratar do entretenimento, o segundo,

    da edificao moral, e o terceiro, denominado o papel social da literatura, abarcar

    ao mesmo tempo a funo de problematizao da vida e a funo de relato deexperincias, misses que considero interconectadas e impossveis de separar.

    1.1 Entretenimento

    O materialismo cada vez mais intenso da nossa sociedade tende a

    desmerecer a importncia de momentos que no so (pelo menos diretamente)

    capitalizveis, isto : os momentos de entretenimento, de lazer, que se exercem fora

    do ambiente de trabalho. Esqueam o cio criativo: os momentos de tempo livre dosindivduos no lhes so lucrativos, ento devem ser reduzidos o mximo possvel e

    preenchidos com atividades entorpecedoras, verbi gratia, a prtica da libao

    profana (nome elegante para a bebedeira, que tem associao estreita com o

    ambiente de festas), a fim de que estes se esqueam da falta de profundidade que

    suas existncias possuem.

    Nessa esteira, tende-se a desmerecer as narrativas de fico, a literatura

    particularmente, como inteis e sem valor, porque no produzem nada

    imediatamente monetizvel. No entanto, o engano aqui consiste em considerar

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    utilidade e valor financeiro como critrios axiolgicos. No apenas o til que

    importante. Se fosse assim, qual seria o valor dos programas de televiso, dos

    filmes, dos causos, dos devaneios, das anedotas? Alm do mais, deve-se ter

    cautela redobrada com quem ostenta a atitude de desprezo fico, pois ela pode

    esconder a inteno de acabar com as reflexes sobre o ser humano e o mundo

    sua volta.

    A fico uma necessidade universal humana. Do pobre ao rico, do

    primitivo ao civilizado, do jovem ao velho, todos apreciam fico ao longo de suas

    vidas, seja na forma de telenovelas, seja de gibis, vdeos de Internet, piadas, filmes,

    histrias de pescador, contos folclricos, lendas etc. A produo de fico tambm

    no incomum. H quem finja amar uma pessoa e construa um inteiro

    relacionamento que parece verossmil nos mnimos detalhes. H quem finja gostar

    do prprio trabalho e ignore o fato de que se sente mais satisfeito quando precisa

    faltar do que quando obrigado a comparecer. H ainda quem ocupe altos postos

    de comando e tenha se especializado em fingir satisfao com situaes que no a

    merecem e desconhecimento de esquemas fraudulentos em que j participou.

    notrio que a fico faz parte do cotidiano de muitos indivduos, mesmo daqueles

    que em suas opinies pblicas consideram poetas e romancistas como seres

    ultrapassados e desnecessrios para a sociedade hodierna.

    Dessa forma, uma histria ficcional de boa qualidade como Harry Potter veio

    muito a calhar. De fato, a srie foi responsvel por catapultar o gosto pela leitura de

    muitos infantes cujo universo estava reduzido aos desenhos animados matutinos. E

    o enlevo que ela produziu se deve enorme habilidade da autora com recursos

    narrativos. Ela tinha as cartas certas na mo e soube-as utilizar de forma precisa,

    como um experiente jogador de pquer.

    Conduzindo a narrativa como ningum, a autora vai guiando seus leitores

    por inmeras peripcias pelas quais passa seu protagonista, um jovem bruxo

    desajeitado de culos, olhos verdes e uma cicatriz na testa. Os livros utilizam o foco

    narrativo da terceira pessoa seletiva, e nesse caso isso significa que ns leitores s

    sabemos o que Harry Potter sabe (com poucas excees), criando suspense em

    cada um dos sete livros, construdos de forma anloga a uma narrativa policial

    clssica, de Conan Doyle ou Agatha Christie. Trata-se de uma estrutura que, junto

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    com seu enredo e personagens, fascinou milhares de crianas, adolescentes e

    adultos ao redor do mundo. O fato de os passos de Harry Potter seguirem a

    estrutura do monomito s contribui para a imediata identificao dos leitores com o

    protagonista. Mas o que seria esse tal monomito?

    O monomito, tambm chamado de Jornada do heri, um termo utilizado

    pelo antroplogo Joseph Campbell (1995) para designar um paradigma de

    construo de enredo presente em vrias mitologias do mundo. Constitui um ciclo,

    de base psicanaltica, que orienta os rumos que os heris dessas histrias tomaro,

    de forma que sua trajetria parea envolvente e interessante para os

    leitores/interlocutores. Essa disposio narrativa faz com que os leitores se

    identifiquem imediatamente com os personagens retratados: visto que o heri

    inicialmente uma pessoa comum com um cotidiano isento de aventuras, e que de

    repente recebe um chamado que muda sua rotina, a histria parece possvel de

    acontecer com qualquer um. De fato, uma gerao inteira esperou (e continua

    esperando) sua carta de Hogwarts.1

    Mas quais so os passos que essa jornada do heri segue? Bem,

    originalmente Joseph Campbell (1949) dividiu sua teoria em 17 estgios, mas aquiser utilizada a verso popularizada por Christopher Vogler, que a dividiu em 12

    passos. Ei-los, com a descrio de como ocorre sua correspondncia em Harry

    Potter e a pedra filosofal, o primeiro livro da saga:

    Passo n. 1: o mundo comum. Aqui se introduz o heri, ou melhor, o

    indivduo que futuramente ser o heri, em seu cotidiano. No caso, Harry Potter

    um garoto aparentemente normal, com a exceo de uma cicatriz em sua testa, e

    que vive com tios que o tratam como lixo: ele dorme em um armrio embaixo da

    escada, e utilizado como saco de pancadas pelo primo Duda.

    Passo n. 2: o chamado da aventura. Neste ponto ocorre a entrada do

    inusitado, ou seja, algo inslito quebra a rotina do heri. Harry Potter recebe milhes

    de cartas de uma escola de magia e bruxaria chamada Hogwarts, que o convida a

    comear o ano letivo.

    1Trata-se da escola de magia e bruxaria que constitui o microcosmo da saga. Todos os jovens bruxosde 11 anos selecionados para nela ingressar recebem uma carta de aviso, atravs de uma coruja.

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    Passo n. 3: a recusa ao chamado. Aqui o heri nega a possibilidade de

    mudar sua rotina e prefere continuar na zona de conforto de sua vidinha conhecida.

    No caso, quem cumpre esse papel na saga o Sr. Dursley, tio de Harry, que o

    impede de ter acesso a qualquer carta (e cumpre esse papel com unhas e dentes,

    chegando a arrastar a famlia para uma ilhota rochosa em meio a uma tempestade,

    a fim de impedir que o garoto tenha qualquer contato com o mundo dos bruxos).

    Passo n. 4: encontro com o mentor. Aqui o heri se depara com a figura de

    um velho sbio, isto , algum experiente no mundo estranho, que faz o heri

    tomar uma deciso importante. O meio-gigante Hubeus Hagrid o mentor que

    encontra Harry, conversa com ele a respeito de sua condio de bruxo e da

    existncia de Hogwarts, e o retira do mundo comum, para desespero de seus tios.

    Passo n. 5: travessia do umbral/ liminar. O heri cruza uma fronteira fsica

    que o conduz do mundo ao qual est acostumado para o novo mundo, em que

    viver aventuras pelas quais ele no esperava. Essa travessia ocorre primeiramente

    em um muro que se localiza nos fundos do Caldeiro Furado, um bar decadente

    localizado em meio a uma das ruas mais movimentadas de Londres, que conduz

    Harry ao Beco Diagonal, uma movimentada rua de lojas do mundo dos bruxos; e emseguida, na estao de trem de Londres, onde, ao atravessar a diviso entre as

    plataformas 9 e 10 (que os bruxos chamam de plataforma 9 ), chega-se

    estao mgica em que se pode pegar um trem para Hogwarts.

    Passo n. 6: Testes, aliados e inimigos. neste estgio que a maior parte da

    histria se passa. O heri comea a viver aventuras no novo mundo, e passa por

    inmeros testes em que precisa demonstrar suas qualidades, faz alianas com

    amigos e tambm consegue inimigos. Sortudamente para Harry, sua aliana com

    Rony Weasley e Hermione Granger supera o rancor de seu inimigo rapidamente

    adquirido, o preconceituoso Draco Malfoy.

    Passo n. 7: Aproximao do objetivo. O heri se aproxima cada vez mais do

    objetivo principal relacionado a seus testes. O clmax est cada vez mais ululante,

    bem como o nvel de tenso da histria. No primeiro livro da saga, Harry, juntamente

    com Hermione e Rony, atravessam uma planta assassina, um jogo de xadrez com

    peas vivas, e um enigma lgico, at que o protagonista, sozinho, se depara com o

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    professor Quirrel e com Voldemort. O sr.Quirrel era o professor de Defesa contra as

    Artes das Trevas, e abrigava (como Harry acabou descobrindo nessa tensa

    situao) em seu corpo Lord Voldemort, que ainda estava fraco e se recuperava do

    choque que sofrera 11 anos antes, quando tentou assassinar o prprio Harry.

    Passo n. 8: Provao mxima. Trata-se do auge dos testes. Harry, mesmo

    tendo apenas 11 anos, consegue, com a ajuda da fora que sua me lhe transmitiu

    ao se sacrificar por ele, enfrentar o professor Quirrel e atrasar o retorno de

    Voldemort. Ser revelado posteriormente, ao longo da saga, que Lilian Potter, a me

    de Harry, ao se deixar matar por Voldemort, que procurava matar o ainda beb

    Harry, transmitiu a esse, por meio do Amor, uma fora muito poderosa que refletiu

    para Voldemort o feitio da morte que este lanou para tentar matar o garoto.

    Passo n. 9: Conquista da recompensa. O heri recebe uma recompensa

    aps passar por todas as suas crises. No caso, temos como recompensa de Harry a

    prpria salvao de Hogwarts (seu novo lar) e do mundo dos bruxos, atravs da

    derrota de Quirrell e do temporrio impedimento de Voldemort.

    Passo n. 10: Caminho de volta. O heri regressa ao mundo de sua

    residncia anterior. Trata-se da parte mais curta da jornada, inclusive no existindo

    em algumas delas. Harry se restabelece de seu enfrentamento, e se prepara para

    retornar para o mundo dos trouxas (como se chamam aqueles que no possuem

    sangue mgico, isto , indivduos como ns).

    Passo n. 11: Depurao. O heri pode vir a ter que resolver desafios

    secundrios que se encontravam pendentes. Harry e seus amigos, pelos servios

    prestados escola, ganham muitos pontos para sua casa2, Grifinria, que termina

    como a casa vencedora naquele ano.

    Passo n. 12: Retorno transformado. No desfecho da histria, o heri retorna

    a seu mundo totalmente diferente de como a iniciou. Harry retorna para passar as

    frias de Hogwarts na casa de seus tios, e a relao entre eles nunca mais ser da

    2Ao ingressar em Hogwarts, todos os alunos so selecionados, atravs de um Chapu Seletor que lsuas mentes e analisa suas personalidades, em uma das quatro casas da escola: Grifinria, aqueladestinada aos corajosos e de corao puro; Sonserina, que abriga os alunos ambiciosos por poder egeralmente inescrupulosos; Corvinal, a casa dos inteligentes e dedicados aos estudos; e Lufa-lufa,que abriga estudantes conhecidos por sua lealdade.

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    mesma forma. Harry nunca mais se adaptar vida no mundo trouxa, ao passo que

    seus tios passaro a ter medo da possibilidade de ele usar mgica contra eles.

    Basta a leitura de um dos volumes da saga para perceber como uma boaconduo da narrativa, seguindo esses passos, capaz de prender facilmente o

    leitor em suas pginas e faz-lo sonhar de olhos abertos com devoo de

    intensidade similar que os gregos antigos, por exemplo, devotavam a seus mitos,

    que seguiam inconscientemente os mesmos passos.

    1.2 Edificao moral

    Segundo a prpria autora, o significado moral das histrias

    ofuscantemente bvio(2000), e est relacionado escolha, to crucial, pela qual

    todos ns j passamos e hemos de continuar a passar, entre fazer o certo e fazer o

    fcil. Isso fica evidente na fala de Albus Dumbledore, o diretor de Hogswarts, ao final

    de Harry Potter e o clice de fogo, o quarto livro da saga:

    Lembrem-se, se chegar a hora de terem de escolher entre o que

    certo e o que fcil, lembrem-se do que aconteceu com um rapazque era bom, generoso e corajoso, porque ele cruzou o caminho deLord Voldemort.Lembrem-se de Cedrico Diggory. (ROWLING, 2001,p. 575)

    Albus Dumbledore conclama os estudantes dessa forma aps o retorno de

    Lord Voldemort, com sua ambio de construir um imprio e eliminar todos os

    trouxas, e todos os bruxos que tenham familiares no-mgicos. Em seu retorno,

    assassinou o estudante de Hogswarts Cedrico Diggory e quase assassinou Harry

    Potter.

    neste ponto, consoante a autora, que a tirania comea: quando as

    pessoas se tornam apticas e escolhem a via mais fcil, que a da submissoat

    se arrependerem profundamente de sua escolha, geralmente quando tarde

    demais.

    A relao entre literatura e edificao moral acima estabelecida permite

    conduzir a uma outra, entre literatura e direito. No trabalho em anlise, ser

    explorada a relao de Warat com a democracia.

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    A democracia, que podemos entender, e a ela nos referiremos, daqui em

    diante, lato sensu, como o oposto da tirania, um permanente processo de

    transgresso da legalidade instituda (WARAT, 1997, p. 72). A apatia comea a

    brotar perigosamente no instante em que regada com a ideia falsa, implantada no

    solo estril de mentes fechadas que no leem nem escrevem, de que o Estado e a

    sociedade so neutros e harmoniosos pura e simplesmente porque so movidos por

    regras metdicas e estabelecidas. A concepo puramente procedimental de

    democracia produz uma deturpao demaggica da regra de maioria.

    As maiorias manipuladas suportam, em seu prprio nome, ofuncionamento heternomo das decises coletivas. Sobre a base da

    vontade da maioria se cria uma aparncia de autonomia que servepara ocultar o carter heternomo das decises coletivas. Em nomeda autonomia os juristas conseguem legitimar a constituioheternoma dos sujeitos de direito e das significaes jurdicas,deixando nas mos de instncias institucionais a formao da prticapoltica e jurdica da sociedade (WARAT, 1997, p. 103)

    Desta forma, a democracia como se encontra estruturada nos moldes atuais,

    de forma neutra e higienizada, processando suas decises atravs de diversas

    instituies, pode, na verdade, ocultar interesses. E no os interesses da maioria,

    infelizmente. A tendncia hodierna de esvaziar o contedo ideolgico dos direitoshumanos, como se eles servissem a androides, e no a seres de carne e osso,

    esconde, na verdade, como Warat explicou, um processo de composio

    heternoma das decises.

    O termo ps-modernidade constantemente utilizado para descrever a era

    altamente informatizada que se desenrola a olhos vistos. E essa era pode

    transformar os homens em androides sem emoes, sem sentimentos, sem sequer

    o senso de dignidade que leva os indivduos a procurar a felicidade. Temos umtempo em que o lucro, a tecnologia e seus avanos so servidos por indivduos

    indiferentes e apticos. O cenrio vislumbrado por George Orwell parece estar

    cedendo lugar para o de Aldous Huxley3: indivduos mentalmente condicionados a

    3George Orwell, em 1984, prev um futuro distpico em que todos os cidados so diuturnamentecontrolados pelo Grande Irmo, entidade que tudo v. Aldous Huxley, por sua vez, em Admirvelmundo novo, profetiza uma civilizao em que os prprios indivduos controlam a si mesmos, apslongos processos de lavagem cerebral que culminam com a alienao total.

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    servir o poder, anestesiados por um grande vazio existencial. No existe cenrio

    mais perigoso do que esse para a sobrevivncia da democracia.

    Certamente, no existe outra forma de salvar a cultura humana que nopasse por um projeto de autonomia dos indivduos, que so os pontos de partida e

    de chegada dessa cultura. Somente em um sistema democrtico onde amor e

    trabalho se encontrem na unidade de uma relao fraterna ser possvel atravessar

    o difcil processo transicional de demolio das utopias da modernidade. No

    obstante, nenhum processo de autonomia pode ter incio sem que se tenha

    conscincia das prprias foras internas latentes. E aqui que chegamos a uma

    importante funo da literatura, que a de nutrir a existncia humana. Ela

    desencadeia energias internas ocultas, que de outra forma talvez permanecessem

    eternamente adormecidas. O resultado que o relacionamento que o leitor passa a

    estabelecer entre direito e moral colabora para o ldico da vivncia e destaca a

    importncia da autonomia.

    1.3 O papel social da literatura

    A arte uma mentira que nos faz compreender a verdade. Essa frase

    clebre de Pablo Picasso reafirma de forma elegante no s a importncia, como

    tambm o poder da criao artstica e da literatura, mais especificamente, nesta

    monografia.

    Em face de todas as significaes imaginrias da sociedade, a fico trazida

    pela literatura se oferece como imagem da imagem, mas no mais no pejorativo

    sentido platnicoe isso porque, como numa dupla de espelhos o reflexo do reflexoresulta na imagem real, as supostas distores da literatura colocam o leitor numa

    posio privilegiada, que lhe permite compreender de forma profunda, como num

    microscpio eletrnico, sua prpria realidade.

    Em meio a personagens de outras pocas, com costumes e cultura diversos,

    o vislumbre do universal, daquilo que prprio da condio de ser humano

    independentemente do contexto em que se viva, produz um estado de compreenso

    diferenciado, que a realidade em si dificilmente proporciona. No s de eltrons

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    vive o princpio de Heisenberg4: quando o escritor explicita seus sentimentos, ele os

    est modificando, tornando-os perceptveis aos olhos do pblico. Os leitores, quando

    participam desse processo, aprendem muito sobre si mesmos.

    Desse modo, possvel perceber um processo cclico na literatura: em

    primeiro lugar, com suas narrativas ficcionais, ela mobiliza energias latentes em

    cada indivduo, ao conduzi-lo por situaes heterclitas pelas quais muitos seres

    humanos no teriam a oportunidade de passar e por pontos de vista privilegiados

    ausentes nas existncias ordinrias. Em seguida, essas energias retornam para a

    realidade com o intuito de transform-la, aps terem transformado o interior do

    indivduo. Ao menos, esse o ciclo ideal no se pode dizer que so os mais

    frequentes aqueles que so encorajados por experincias artsticas e tomam

    decises arrojadas baseadas nelas. De qualquer maneira, esse princpio to srio

    que levou o poeta e terico Ezra Pound a afirmar:

    A literatura no existe num vcuo. Os escritores, como tais, tm umafuno social definida, exatamente proporcional sua competnciaCOMO ESCRITORES. Essa a sua principal utilidade. Todas asdemais so relativas e temporrias e s podem ser avaliadas deacordo com o ponto de vista particular de cada um. [grifo do autor]

    (...)

    A linguagem o principal meio de comunicao humana. Se osistema nervoso de um animal no transmite sensaes e estmulos,o animal se atrofia.

    Se a literatura de uma nao entra em declnio a nao se atrofia edecai.

    O legislador no pode legislar para o bem pblico, o comandante nopode comandar, o povo (se se tratar de um pas democrtico) nopode instruir os seus representantes a no ser atravs da

    linguagem(grifo meu) (POUND, 2001, p. 36)

    E mais na frente escreve dois pargrafos muito importantes:

    Um povo que cresce habituado m literatura um povo que estem vias de perder o pulso de seu pas e o de si prprio.

    4Lei segunda a qual no possvel conhecer a velocidade e a posio de um eltronsimultaneamente. Os mtodos empregados para visualizar um eltron, que incluem o uso de radiaosobre ele, alteram sua velocidade. Dessa forma, temos a cincia natural nos mostrando como astcnicas de conhecimento da realidade acabam alterando a prpria realidade.

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    E essa frouxido e esse relaxamento no so nem to simples nemto escandalosos como a sintaxe brusca e desordenada(grifo meu).(POUND, 2001, p. 37)

    A respeito do ltimo pargrafo: vamos imaginar uma bela supermodelo, de

    rosto e atitudes extremamente jovens, desfilando no tapete vermelho das

    celebridades em belos saltos stilettos, com o corpo esbelto e escultural guarnecido

    pelo vestido de decote astronmico que a ltima moda em Paris. Ela sorri,

    mostrando uma fileira de dentes perolados que ofuscam a vista, e, quando

    interpelada por paparazzi que, por qualquer motivo, esto interessados em que o

    decote caia mais um pouco, borrifa algumas frases ensaiadas a respeito da

    liberao feminina das ltimas dcadas, ou de como tem se livrado de coisas que

    fazem mal para ela, ou ainda apenas fala a respeito da sua dieta e de quantos

    abdominais faz por dia. Ningum fica chocado se o senhor que est de mos dadas

    com ela tem mais de 80 anos, e talvez nem se lembrem de que ele o proprietrio

    de uma revista masculina que j mostrou a mesma modelo, que est ao seu lado,

    com o decote to mais embaixo que era impossvel v-lo, alm de, alguns anos

    antes, outras mulheres que ele acompanhou ao tapete vermelho, antes de o tempo

    comear a sulcar seus rostos de rugas e seu corpo com estrias.

    Ningum se importa se essa radiante modelo fugiu de casa aos quinze anos

    para no precisar mais ver todos os dias sua me alcolatra chegando a casa

    noite e batendo nela e em seus irmos mais novos quando esses choravam de

    fome, e, nos poucos intervalos de lucidez, falando com amargura do pai que a largou

    para ficar com uma modelo. Ningum se importa se, em sua fuga e em seu incio de

    carreira de modelo, precisou dormir no cho frio, foi estuprada ou se utilizava uma

    espcie de p branco, que no farinha, para ficar acordada durante a noite e no

    precisar dormir nesse cho frio. Ningum se importa com para onde ela ia depois

    dos primeiros desfiles, nem se conhecia seu empresrio com uma intimidade que

    poderia parecer um pouco exagerada demais, por assim dizer.

    Talvez se ela fosse magra, plida, tsica (um termo arcaico, para acrescentar

    histria um tom mais romntico e sombrio), ou fosse sustentada por um homem

    que no se importasse de ser discreto nem sonora nem visualmente sempre que

    deixasse hematomas na pele dela, ou precisasse, como Fantine em Os miserveis,

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    vender alguns dentes para conseguir dinheiro para sustentar sua filha que deixou

    crescendo na casa de conhecidos abusivos (melhor do que deixar a filha sabendo

    do infame trabalho da mame), talvez algum se levantasse com veemncia e

    gritasse um Basta a todo o episdio. Talvez algum, aps derramar algumas

    lgrimas, atirasse tomates podres ao homem indiscreto supracitado, e incitasse mais

    colegas contra ele.

    Mas no assim que ocorre. A modelo, como j descrevi, extremamente

    linda e no se lamenta de nenhuma tragdia na sua vida. Ao contrrio, quando se

    abre uma revista culturalcomo Carasou Contigo, suas fotos em castelos com

    seu marido octogenrio transmitem sono, no revolta. Por isso, a plateia continua

    sorrindo e encarando o belo sorriso da modelo.

    O que quero dizer com isso que estamos ingressando cada vez mais fundo

    numa era de inrcia sentimental, que tornar desnecessrias as estratgias da

    alienaoalis, tornar desnecessria a prpria linguagem. Vivemos num contexto

    que Warat chama de xtase comunicacional, caracterizado por um oximoro: ao

    mesmo tempo em que a comunicao cada vez mais eficiente, ela cada vez

    mais inacessvel. As informaes dominam as telas de todos os aparelhos digitaisque pululam nas mos e nas casas das novas geraes, mas o conhecimento em si

    parece estar cada vez mais distante (visto que se mostra cada vez mais

    desinteressante, face instantaneidade da comunicao), pronto para ser utilizado

    como ttica de poder.

    Ao se preparar uma raa de proletariado de androides, as tticas da

    alienao podero ser colocadas de lado e substitudas por telas informativas. As

    violaes autonomia e produo independente dos desejos passaro a ser

    encaradas com naturalidade. Despidos de sua dimenso psicolgica, os indivduos

    passaro a praticar a crueldade sem crueldade.

    Anunciam-se tempos em que a comunicao tecnolgica estar to

    estreitamente vinculada com o poder que a linguagem deste no precisar mais ser

    trabalhada. Nada mais dos dramas pomposamente encenados de outrora, com fins

    de doutrinao; ao invs disso, todo o teatro ser destrudo, j que no h mais

    espectadores.

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    Assim o indivduo do sculo XXI: uma criatura isolada e incomunicvel, que

    se recusa a agir porque no sabe se comunicar DE FORMA VERDADEIRA.

    Fechado em sua concha, no sabe como manejar seus sentimentos, suas angstias

    e suas frustraes. Est cercado de amigos, muitos deles virtuais, mas no

    consegue fugir da solido, enfermidade que parece estar se tornando uma epidemia,

    particularmente detectvel em meio a multides.

    A respeito da luta contra a morte entrpica da sociedade humana, Warat

    quem nos fala:

    Penso que a catstrofe da histria a catstrofe da linguagem. Aexistncia de sujeitos produtores de sentido o nico antdoto paraas formas inerciais do espao social. Assim, o homem precisa lutarpor sua linguagem, por sua imaginao e por sua criatividade, paraevitar as condies que assegurem o ponto de inrcia do espaosocial. (WARAT, 1997, p.43)

    A literatura, que, de acordo com Pound, linguagem carregada de significado

    no mais alto grau possvel, um excelente meio de combate para a paralisia

    emocional. Atravs dela, ficamos sabendo que nossas dores no so to exclusivas

    assim, e passamos a nos sentir parte de uma irmandade maior do que nosso crculo

    de amizades reais. O tempo e o espao se tornam barreiras flexveis, visto queentramos em contato com pocas e naes distintas, com pessoas que apresentam

    sentimentos, problemas e dramas universais.

    Neste captulo, traamos, ento, o panorama da perspectiva contempornea

    de pensamento, e seu enfoque nos direitos humanos de um ngulo de indiferena e

    gelidez. Demonstramos como a linguagem se constitui na ferramenta central de

    todos os ramos da vida humana que demandam um agir, seja direto ou mediato. Ao

    mesmo tempo, mostramos como a literatura ocupa um papel insubstituvel na

    construo da linguagem do indivduo e do povo, sendo inclusive uma das

    responsveis, nas palavras de Ezra Pound (2001), para o florescimento de uma

    nao.

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    CAPTULO 2 O direito em Warat e a literatura em Harry Potter:duas faces da democracia

    - Oua, Harry. Por acaso voc tem muitas das qualidades queSalazar Slytherin prezava nos alunos que selecionava. O seu domraro de falar a lngua das cobras, criatividade, determinao, umcerto desprezo pelas regras acrescentou, os bigodes tremendooutra vez.Contudo, o Chapu Seletor colocou voc na Grifinria. Evoc sabe o porqu, Pense.

    - Ele s me ps na Grifinria disse Harry com voz de derrota porque pedi para no ir para a Sonserina...

    - Exatamentedisse Dumbledore, abrindo um grande sorriso. Oque o faz muito diferentede Tom Riddle. So as nossas escolhas,

    Harry, que revelam o que realmente somos, muito mais do que asnossas qualidades (ROWLING, 2000, p. 280).

    Se h um tema que considero que perpassa a saga Harry Potter de forma

    interessante, sem ser explicitado, O perfeito frustra o desejo para usar palavras

    de Warat (1997, p.48).

    Os direitos humanos, como prticas polticas que visam conquista da

    autonomia, no podem ser vistos sob a ptica da iluso presente no juridicismo do

    sculo XIX. O mundo jurdico continua sendo povoado por verdades reveladas,

    concepes incessantemente ruminadas, clichs reaproveitados cegamente, que se

    tornam srios obstculos para a transformao social. Na medida em que

    idealizamos existncias perfeitas atingveis a partir da aplicao de todas as regras

    jurdicas, estamos vivendo um engodo, porque o ideal no existe. O ideal no

    considera as transformaes da realidade, no considera o devir, que a todos

    atinge.

    Nenhum desejo emerge a no ser como paradoxo, como diferena de uma

    fantasia perfeita, diz Warat (1997, p. 49). Por isso a cena dos direitos humanos

    deve ser vivenciada no presente e isso ser retomado mais adiante. A partir do

    momento em que negamos o presente em nome de utopias perfeitas, ou seja, em

    nome de um futuroinatingvel, estamos praticando um niilismo, que negao da

    vida.

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    O famoso Harry Potter no um bruxo excepcional. Na verdade, quando

    entra em Hogwarts, seu nico mrito ter sobrevivido inexplicavelmente a uma

    maldio da morte. Ele no o mais bonito, nem o mais alto, nem o mais inteligente

    dos garotos. Seus traos caractersticos so olhos verdes, uma cicatriz na testa e

    culos redondos. A propsito, J.K.Rowling afirmou em entrevista que deu culos ao

    protagonista porque estava cansada de ler livros em que o personagem que usava

    culos era sempre inteligente, e que ela gostaria de ver um heri de culos (2005).

    Em resumo, Harry tira sua fora no de uma conformao a algum ideal de heri,

    mas de sua lealdade, sua coragem e sua sede de liberdade. Seu certo desprezo

    pelas regras decorre de sua prpria energia vital, que, no af da curiosidade e da

    justia, se debate no interior das formas rgidas do sistema de leis, sempre que aordem e a lei representam comandos que conduzem ao comodismo e esterilidade.

    Outra forma de paralisao mediante utopias consiste na persistncia de

    frustraes passadas no imaginrio seja esse imaginrio coletivo ou individual.

    Iluses perdidas, amores no correspondidos, projetos no realizados tudo que

    represente um obstculo s vivncias do presente. Trata-se de uma forma de utopia

    porque, paradoxalmente, o passado frustrado considerado inatingvel, e, portanto,

    idealizado, impedindo que o tempo atual seja aproveitado. Dessa forma, torna-se o

    indivduo ou o povo incapaz de se superar no presente, porque sempre passar a

    comparar tudo que acontea nele a um passado idealizado e distante na noite dos

    temposalis, quanto mais distante, mais cmodo.

    Redimir os passados e transformar todo Foi assim num Assim eu quis!

    somente a isso eu chamarei redeno (NIETZSCHE, 2014, p.142). O filsofo do

    martelo aqui se refere postura de construir seus itinerrios autonomamente e sema crena culposa na existncia de um ideal que no estaria sendo cumprido, o que

    pode ser relacionado difundida estratgia de enredo do arco de redeno, da qual

    falaremos no prximo pargrafo.

    Assim como a jornada do heri, o arco de redeno constitui uma estratgia

    de enredo, na qual um personagem de uma histria comete faltas gravssimas.

    Chama-se arco de redeno ao processo em que esse personagem pagar pelos

    seus erros, a fim de se redimir aos olhos de ns leitores e, se possvel, tambm aos

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    olhos dos outros personagens da trama. O arco de redeno, para ser efetivo como

    recurso literrio, exige cumplicidade dos leitores, e isso s pode ser conseguido se

    houver habilidade por parte do autor em jogar o jogo da fico respeitando suas

    regras. H quem discorde que o arco de redeno de Snape na saga Harry Potter

    tenha sido realizado de forma perfeita, e isso que veremos nos prximos

    pargrafos.

    Severus Snape provavelmente to odiado quanto Lord Voldemort, e seu

    desenvolvimento passa por plot twists5to surpreendentes quanto. Apresentado no

    primeiro livro como o professor de poes e o chefe da casa Sonserina, ele

    descrito como tendo o nariz oleoso e a pele macilenta, alm de ostentar uma eterna

    careta de desdm para os alunos que no so da sua casa. Sua antipatia por Harry

    quase instantnea, e ele faz questo de tornar a vida do garoto insuportvel de

    modo que o protagonista no entende como Dumbledore pode ter o professor em

    to grande estima.Snape, em vrias ocasies, acaba salvando Harry de situaes

    perigosas, mas seu comportamento sempre soa forado e calculista, de forma que o

    garoto no se convence da existncia de uma boa personalidade no professor.

    Ademais, o fato de ele j ter sido um Comensal da Morte, mesmo que

    aparentemente regenerado, fornece suficiente motivos para desconfianas. No

    quinto livro da saga, Harry Pottere a Ordem da Fnix, o garoto descobre que no

    passado, quando estudava em Hogwarts, o prprio Snape era humilhado

    continuamente por James Potter, pai de Harry, que namorava Lilian, a qual por sua

    vez era o objeto de uma paixo constante por parte de Snape. Isso ajudava a

    explicar o dio que o professor sentia por Harry, que encarava como uma espcie de

    continuidade de James e um bode expiatrio do intenso bullyingque sofria.

    No sexto volume, porm, qualquer fagulha de comiserao que Harry e os

    leitores possam ter sentido por Snape definitivamente apagada quando este mata

    Dumbledore e se junta aos Comensais da Morte na guerra de Voldemort para tomar

    o poder no mundo bruxo. Snape desprezado por todos como um traidor. No stimo

    e ltimo volume, no entanto, em mais uma reviravolta, descobre-se que Snape era

    um espio de Dumbledore, incumbido de se infiltrar no grupo dos Comensais da

    5Expresso inglesa para designar reviravoltas inesperadas no enredo de uma narrativa.

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    Morte e que havia sido o prprio Dumbledore que havia implorado a ele que o

    matasse, para convencer os bruxos das trevas de que Snape estava definitivamente

    do lado deles. Todavia, o Bruxo morto por Voldemort devido a outra questo

    paralela, mas enquanto agoniza consegue passar suas lembranas a Harry6, que

    passa a conhecer em profundidade toda a histria de Snape. O bruxo, assim,

    definitivamente se redime aos olhos do garoto e no eplogo final, passado

    dezenove anos depois, ficamos sabendo que Harry deu a um de seus filhos o nome

    de Albus Severus.

    O problema : h uma grande quantidade de leitores, e aqui eu me incluo,

    que no se convenceu da redeno de Snape. De fato, seu trabalho como infiltrado

    de Dumbledore mostrava seu arrependimento completo de sua vida pregressa de

    Comensal da Morte. No entanto, ele no pareceu reconhecer seus outros erros nem

    se arrepender deles. O tratamento que ele dispensava a diversos alunos da

    Grifinria, alm de Harry, era degradante e refletia a personalidade de um indivduo

    que nunca superou suas frustraes passadas e acumulou rancor durante muito

    tempo. Mais ainda: denunciava um indivduo que nunca superou seus traumas de

    infncia.

    A respeito da presena de memrias culpabilizadoras, escreve Warat:

    Os fracassos tm que ser aceitos e ultrapassados para que sepossam edificar novos sonhos. Instalamo-nos na morte quandopretendemos viver o presente, trazendo, para ele, os fracassos dopassado, quando levamos esses fracassos to dentro de ns que sconseguimos ler o presente atravs dele. (...) De alguma maneiraestaramos inconscientemente idealizando o fracasso, continuando alutar contra ele, sem atrevermo-nos a reconhecer que perdemos(WARAT, 1997, p. 49).

    Isso acontece na poltica. Isso acontece com os povos. O modelo de

    pensamento conservador e burocrtico alimenta a persistncia nostlgica das

    frustraes passadas. O passado se torna mito, inscrito nas representaes

    simblicas da sociedade como ideal que talvez algum dia ainda possa ser

    alcanado. A existncia de idealizar decepes de anos anteriores equivale a se

    6No mundo mgico, possvel passar os pensamentos, como se fossem uma substncia em estadolquido, da cabea para um jarro denominado Penseira, para que possam ser vistos posteriormentepor outra pessoa.

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    entregar morte, na medida em que todos os acontecimentos da vida presente

    passam a ser encarados sob o prisma dessas frustraes anteriores. O passado se

    torna um fantasma juiz. E no o juiz Hrcules de Dworkin, mas um juiz importado da

    era do Cdigo Napolenico, era de niilismo jurdico em que se fingia que a vida no

    era cheia de vicissitudes, e o mtodo lgico era a nica forma de hermenutica

    utilizada: com a simples subsuno do caso concreto letra da lei, estava resolvida

    a questo.

    necessrio aceitar os fracassos para seguir em frente. No possvel

    apagar os erros de anos anteriores, mas eles podem, e devem, afinal sua nica

    utilidade, ser empregados como valiosos itens de experincia para sugerir que

    caminhos tomar na vida presente, que afinal a nica realidade. Utilizando um

    termo waratiano, trata-se de uma existncia tantica, isto , de culto morte, aquela

    em que persiste a ideia de ainda realizar as frustraes passadas. a existncia de

    uma viva que diariamente se senta lpide do falecido marido e passa horas em

    conversa engajada com o tmulo. A nica possibilidade de redeno, como j

    indicou Nietzsche no trecho supracitado, fazer as pazes com o passado, atravs

    de um foco perene no tempo presente.

    Todo idealismo deve ser evitado. E o idealismo do passado no muito

    diferente do idealismo do futuro, dos deuses, das leis ou do Estado, e todos

    conduzem mesma insatisfao e culpa aniquiladora. De certa forma, todos so

    uma forma de tanatismo e de niilismo, isto , de negao da realidade, pois

    impossvel chegar ao ideal. O ideal no considera as flutuaes da realidade, nem

    capaz de prever as mudanas que as prprias formas de mudanas podem

    apresentar.

    O problema do tanatismo se torna ainda maior quando esse discurso

    utilizado pelo poder como forma de encerrar o povo numa redoma intransponvel de

    ressentimento, e de memria transformada em projeto. Talvez seja uma forma de

    fazer o povo esquecer as misrias presentes para se concentrar em frustraes

    passadas. Uma forma de pio, de maneira similar religio para Marx, em sua

    famosa citao. Concentrar-se em iluses mitificadas ajuda a esquecer as mazelas

    do presente que impedem a transformao da realidade. At this time, violence

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    against the Jews might take the public's mind off its stomach7, disse o Ministro do

    Interior para Adenoyd Hynkel, o personagem caricatura de Adolf Hitler interpretado

    por Charlie Chaplin no filme O grande ditador (1940). Nesse sentido, faz-se mister

    abandonar as quimeras das grandes arquiteturas simblicas, porque a poltica, em

    sua essncia, o espao dos afetos, dos desejos e a democracia, sua

    concretizao como espao das indefinies. Um desejo no frustrado um desejo

    no perfeito, um desejo que no venha com garantias que predeterminem seu devir.

    o espao onde as incertezas podem confluir para moldar a democracia.

    Warat usa a interessante metfora do amor cigano para tratar do

    compromisso com a democracia: assim como o amor cigano precisa entregar o

    morto morte, para sua chama ser levantada, na prtica dos direitos humanos,

    preciso entregar as certezas morte tambm, resolvendo o grave problema de

    onipotncia pela qual o direito e as geraes hodiernas passam. preciso esquecer

    Lilian Potter e no martirizar as geraes presentes por erros que fantasmas

    passados cometeram.

    Mas como desconstruir essa estrutura simblica aere perennius8? No h

    respostas prontas para esse problema (como para nenhum problema da vidapoltica). Podemos, no entanto, tirar inspirao da explicao que Cornelius

    Castoriadis (1982) faz em A estrutura imaginria da sociedade a respeito do

    processo de transio da criana de seu mundo privado, em que todo conhecimento

    que adquire tem como filtros os pais, para a realidade em si propriamente dita (seja

    l o que ela signifique). Pelo que passamos a saber dessa leitura, nem o contato

    direto com a realidade suficiente para que esse processo se complete, porque as

    lentes simblicas construdas atravs do contato fsico e lingustico com osprogenitores impedem a chegada de qualquer outra viso de mundo. Como

    proceder?

    Antes de passar para a soluo apresentada, vamos a uma breve explicao

    a respeito de estruturas simblicas. Os smbolos so elementos da vida humana que

    se encontram num estgio intermedirio entre o que se convenciona chamar de

    7Nessa poca, a violncia contra os judeus pode fazer o pblico esquecer o prprio estmago.8Mais perene do que o bronze. De uma ode de Horcio (1975) .

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    CAPTULO 3 Instaurao de nova jornada: aquele que levanta e

    segue

    Para no dizerem que no cumprimos nossas promessas, vamos aprofundar

    a proposta de soluo, aplicvel ao ensino jurdico e, por extenso, a todas as

    dimenses polticas da democracia vigente nos Estados Democrticos de Direito do

    mundo hodierno. Para quem no se lembra (o que improvvel, pois falei disso h

    pouco tempo), a base do ensaio localizava-se na insero da criana no mundo

    exterior. Vamos ver melhor como isso acontece, de acordo, novamente, com

    Castoriadis (1982).

    O primeiro passo no processo de retirada da criana do seu mundo puro e

    incomunicvel de beb que no compreende, mas se esfora em apenas ser

    compreendido e servido, a linguagem. A linguagem a primeira ponte criada entre

    o infante e seus progenitores. Paradoxalmente, porm, ela tambm se constitui

    numa forma de abstrao, ao criar significaes que comparam, em nveis de

    processo mental, diversos objetos e seres existentes, por mais incompatveis que

    possam parecer aos inocentes olhos iniciais de quem explora o mundo pela primeira

    vez. A linguagem tambm se torna uma espcie de cdigo secreto que o pequeno

    estabelece com os genitores de modo que as significaes que aquele apreende

    do mundo so as dadas por esse. Esse incio da cadeia de montagem de

    indivduos permite perpetuar no apenas conhecimentos e experincias, mas toda

    sorte de tradies inventadas e imaginrios simblicos j instalados nos crebros

    dos adultos. Desse modo, os pais se tornam os senhores da significao, passando

    a ocupar o papel de intermedirios do mundo para o infante.

    De qual maneira esse muro sem pulo derrubado? Explica o autor grego

    que o simples contato com a realidade ou com o desenvolvimento da linguagem no

    podem operar esse processo, porque esta continua fazendo parte da categoria de

    linguagem privada, e aquela continua sendo interpretada luz dessa. o que se

    v na perpetuao de diversos sistemas sociais e religiosos, que constituem um

    ciclo infinito dentro de si. A nica maneira de insero do infante no mundo real a

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    quebra da onipotncia daqueles que o iniciaram no mundo. E essa queda deve ser

    iniciada por eles prprios. Os senhores pais so os que devem mostrar aos filhos

    que eles so apenas mais indivduos dentre todos os indivduos que povoam o

    planeta e, por extenso, que as suas significaes tambm so apenas algumas

    dentre as milhares. preciso e basta que o outro possa significar para a criana

    que ningum, entre todos aqueles que ela poderia encontrar, fonte e senhor

    absoluto da significao (CASTORIADIS, 1982, p. 342).Isto equivale a remeter a

    criana para a ideia superior de significao, e, posteriormente, para a de sociedade,

    de tecido social composto por hierarquia e processos retroalimentveis

    relativamente independentes dos indivduos.

    No cerne desse encadeamento, pode-se verificar, est a ideia de incerteza.

    Trata-se, afinal, de uma ruptura violenta efetuada na mentalidade do infante, que o

    coloca no mundo junto com outros pares e o afasta da segurana da sociedade

    secreta que desenvolve com dois seres adultos. Trata-se de uma insero da ideia

    de imperfeito, que socializa a criana e a retira do seu autismo inicial. Parece

    irnico como uma ideia, isto , a ideia de outro, de sociedade, que mergulha

    profundamente o indivduo no tecido social, na realidade em si, seja l o que isso

    signifique. a ideia, a razo criativa que nos separa dos gatos, que encaram seus

    donos como outros gatos, isto , gatos lderes.

    Quem se surpreenderia ao pensar que esse mesmo processo poderia ser

    aplicado a muitos estudantes de direito? Afinal de contas, j gastei pginas e

    pginas explicando a respeito da incapacidade de sentir que a sociedade de xtase

    comunicacional anda atravessando, com indivduos sendo transformados em

    androides esquizofrnicos cujo nico sentido na vida se comunicar febrilmenteatravs de telas frias. Ora, esse tipo de isolamento pode ser ainda considerado uma

    forma deturpada e igualmente perigosa do autismo infantil de crianas que no

    completaram sua socializao. Castoriadis (1982) nos faz pensar como se trata de

    uma questo universal e independente do ambiente, ao comparar como uma me

    que criou seu filho numa ilha deserta pode, ao retornar sociedade, inserir seu filho

    na cadeia de significaes do mundo, assim como um lar em Paris pode ser

    psicotizante (Castoriadis, 1982) para suas crianas. Tendo em vista isso, sou de

    opinio de que necessrio provocar rupturas violentas aos atuais acadmicos, que

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    os despertem de seu sono dogmtico. Para isso, nada melhor do que utilizar a

    literaturatambm j falei disso, e de como ela, com sua linguagem carregada de

    significado (Pound, 2001) responsvel pelo desenvolvimento de uma nao e de

    uma democracia. Porm, agora gostaria de estabelecer um plano de metas mais ou

    menos consistente no consistente ao extremo, a ponto de se tornar rgido! No

    quero ser pego em flagrante cometendo perjrio, e sendo acusado de empurrar

    milagrosas solues profticas, quando eu mesmo passei uma monografia inteira de

    braos dados com Warat e me opondo s certezas sistematizadoras do direito

    estabelecido. No se trata disso ainda mais que o que vou fazer um retorno

    singelo Jornada do Heri. E algumas vezes, como se observar a seguir, fundindo

    dois passos numa mesma explicao.

    A Jornada do Heri no nenhuma agenda de famlia real seguida risca,

    com o escritor de culos de fundo de garra riscando em seu caderninho os itens j

    percorridos. Nada disso. As diversas civilizaes que as utilizaram em seus mitos

    tampouco eram consciente de que seguiam alguns passos mais ou menos

    estabelecidos. Trata-se de tendncias que apenas apontam a direo da histriae

    aqui podemos apontar alguns caminhos a ser seguidos na pedagogia do direito;

    inclusive quando so caminhos ao lu, como nos fala Warat (1997).

    Os caminhos ao lu, alerta o prprio autor, no devem ser confundidos com

    um ir deriva. Trata-se de seguir uma trilha com infinitas paradas, sempre lutando

    para que o caminho seja o mais longo possvel e sem certezas estabelecidas.

    Ademais, o caminho no deve ter um mtodo pr-estabelecido que enrijea o saber

    e predetermine que tipo de resultados se devem alcanar. No existem mtodos

    nem fundamentaes sistemticas para que uma sociedade, tomando conscinciade si mesma, lute por sua transformao radical (WARAT, 1997,p. 64). Mais ainda,

    com uma pulso libidinal a orientar a caminhada; Warat alerta que a represso dos

    desejos a principal estratgia do totalitarismo. Afinal, quem tem seus desejos

    reprimidos, no sabe o que quer. E aquele que no sabe o que quer, facilmente

    conduzido a fazer o que o poder lhe diga que deve fazer. Somente a autonomia traz

    a dignidade to necessria para o exerccio da democracia.

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    Iniciemos ento a jornada rumo ... Sem rumo definido, mas com a certeza de

    sempre estar escolhendo o caminho por si prprio:

    Passo n. 1: o mundo comum.

    O costume o melhor Prosac, escreve Warat (2004). O costume d

    segurana, tranquilidade e impede o gozo de uma existncia plena. Muitas vezes

    nem estamos plenamente satisfeitos com a existncia diria, como Harry na casa de

    seus tios, e podemos sentir fascas de insatisfao de vez em quando, manifestadas

    a partir de tristezas sbitas ou inexplicveis sensaes de solido. No entanto,

    mesmo quando isso se manifesta, breve e rapidamente abafado pelos gerentes da

    cadeia de montagem social, que no admite peas defeituosas. As vriasferramentas de conduo da hipnose comunicacional procuram garantir que

    quaisquer episdios de dvida ou de insegurana sejam anulados.

    Assim entram muitos estudantes de direito, o que pode ser demonstrado pela

    prpria escolha do curso, analisada em conjunto com a realidade brasileira (no cito

    o resto do mundo simplesmente por falta de conhecimento), conforme j expliquei.

    Longe de se encarar a universidade como um espao amplo de descoberta do novo,

    de intertextualidade com diversas reas do conhecimento. O mundo acadmico

    jurdico escolhido quase sempre por estudantes sem um pingo de originalidade

    que gostam de rotina.

    Passo n. 2: o chamado da aventura.

    No se recomenda simplesmente bradar aos jovens que ingressem num

    mundo diferente do qual esto acostumados. A muralha criada pelo hbito da

    segurana e da familiaridade bastante slida para ser rompida com apenas um

    arete. Necessita-se, portanto, comear sutilmente, atravs de microrrevolues

    dirias. Warat (1997) chama isso de incidentes de ternura. O autor ope-se

    posio excessivamente militarizada de grupos que lutam justamente contra o

    totalitarismo, utilizando armas semelhantes s deles.

    Ao invs disso, todavia, deve o professor instigar em seus pupilos a busca da

    dignidade, isto , da procura independente de significados para a existncia, isto ,

    da criao individual de um arsenal de representaes simblicas, que no fiquem

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    atreladas ao padro de indiferena catatnica verificada no paradigma societrio

    atual. Estratgias eficientes para abalar sutil e diariamente, que podem incluir o

    envolvimento de diversos tipos de atividades que no se reduzem ruminao

    mecanizada de verdades eternas.

    Passo n. 3: a recusa ao chamado.

    Foi dito anteriormente que nem todos os passos do monomito precisam

    ocorrer, visto que no se trata de um esquema rgido. No entanto, a recusa ao

    chamado talvez seja a nica parte unnime nas salas de direito de professores que

    decidem efetuar o chamado aventura. No apenas porque o nmero de

    prisioneiros dos sistemas de iluses alheios seja enorme, mas tambm porque umaaceitao imediata poderia levantar a suspeita de que o estudante talvez no esteja

    se dando conta da seriedade da aventura para a qual esteja sendo chamado.

    preciso deixar claro aqui que o comeo que o estudante deve efetuar

    individual e intransfervel. O outro presente, no caso, o professor, deve ser um guia

    que o ensine a procurar os prprios caminhos, no que escolha os caminhos por ele.

    Afinal, a verdadeira liberdade se encontra quando se cria um sistema de iluses

    prprias, e no se simplesmente compra um pacote de iluses padronizado.

    Passo n.4: encontro com o mentor.

    Todo comeo representa uma ruptura com algum processo antigo. Para ser

    impulsionado a descobrir novas possibilidades e novos amores no seio da

    democracia instituda, preciso companhia, pelo menos no incio.

    Todo comeo gregrio, nunca solitrio. Preciso sempre do outroque me ajude a aprender a comear. Precisamos sentir queconstrumos juntos nossa casa. O outro o calor de nossa casa.(WARAT, 2004, p. 20)

    No ambiente acadmico, o papel desse outro cabe ao professor. O mestre

    deve incorporar a jovialidade leonina de Hagrid e conclamar seus estudantes a uma

    odisseia, a respeito da qual se deve rezar que seja longa, cheia de caminhos a

    percorrer e que o destino final nunca chegue.

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    Passo n.5: travessia do umbral/limiar.

    A sociedade, os polticos e os sacerdotes de todos os tipos imaginveis

    fecharam todas as portas que levam a voc mesmo. Sair da castrao abrir essasportas (WARAT, 2004, p. 66). Essas portas, contudo, no levam a nenhuma sala,

    nenhum vestbulo decorado no qual se deve esperar o rei chegar para lhe fazer um

    rapap antes de implorar miseravelmente por algum tipo de ajuda. Trata-se de um

    porto do parasoe causar uma profunda impresso nos alunos sensveis, assim

    como a chegada ao Beco Diagonal causou ao jovem Harry.

    Passo n.6: testes, aliados e inimigos.

    No ser fcil no incio. Deixar o mundo das verdades estabelecidas implicaem fazer escolhas e estar condenado a ser livre. Implica numa profunda

    reconstruo da arquitetura simblica que passar a dar significado vida. No

    significa que no ser possvel aproveitar nenhuma pedra da fortificao anterior. A

    necessidade de posar como rebelde sem causa em nada contribuir para a criao

    do prprio sistema de iluses. H uma razo especfica para Warat ter chamado a

    esse processo de incidentes de ternura. O amor uma fora bastante poderosa,

    mas que passa despercebida, assim como a superfcie calma do lago esconde osturbilhes de redeimonho em seu interior. O amor impulsiona busca das verdades,

    alm de qualquer aparncia descartvel e passageira. Muitos podem julgar o heri

    nessa etapa como contraditrio, paradoxal e at fraco. Mas esse julgamento s lhe

    lembrar como a preocupao em agradar aos indivduos da sociedade

    interminvel e v, como o tormento das danaides.9

    Os outros continuam importantes aqui, na medida em que sejam amigos

    verdadeiros do heri. Amizade do tipo que Aristteles (1973) descreve, em que osamigos so unidos pelo que cada um em si, no por razes acidentais. Amigos

    que, como Rony e Hermione, contribuam para o bem-estar, e no pensem

    egoisticamente apenas em si mesmos portanto, amigos que no passam a mo

    na cabea do outro, quando este desanima ou pensa em desistir.

    Passos n.7 e n.8: aproximao do objetivo e provao mxima.

    9Entidades da mitologia grega que foram condenadas a passar a eternidade a tentar encher de guaum vaso furado.

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    Dizem que a hora mais escura da noite imediatamente antes do amanhecer.

    Nesse sentido, a aproximao do processo de libertao do estudante-heri pode

    lhe ocasionar dvidas e solidoafinal, por mais que tenha a companhia de amigos,

    o curso da autonomia percorrido solitariamente; e no poderia ser de outra forma.

    No entanto, deve o estudante pensar que, por mais que as circunstncias paream

    inspitas, uma coisa nunca muda, e a responsvel pelo fornecimento de energia

    de todo o rito de passagem: a VONTADE. Com a vontade forte, por mais que os

    galhos do bom-humor sejam cortados, sempre crescero novamente.

    Passo n.9: conquista da recompensa.

    J foi dito inmeras vezes que a dimenso das incertezas e dos conflitos, da

    verdadeira democracia, , por definio, sem destino certo. Dessa forma, pordefinio, a recompensa a ser alcanada no se constitui em nenhum projeto em

    longo prazo, nem nenhum plano quinquenal. Em termos de filosofia grega clssica,

    ela se constitui numa potncia e no num atoisto , trata-se de uma coisa que tem

    capacidade de sempre se transformar em diversas outras coisas (como uma clula-

    tronco), e no algo j realizado e concludo. Esta coisa pode ser mais concretamente

    definida como uma disposio do esprito para a constante luta e adaptao s

    mudanas do mundo. Isso mesmocom todo o enfoque em psicanlise que Waratnos mostra, no de se espantar que possamos definir que a recompensa de todo

    esse projeto seja uma disposio do esprito.

    Passo n.10 e passo n.11: caminho de volta e depurao.

    Ao fim do curso, inicia-se de fato o rduo jogo de videogame dos anos 90 que

    a vida. Se o professor-mentor soube conduzir de forma sensvel seus estudantes-

    heri, o ambiente acadmico trouxe a eles a compreenso perfeita da necessidade

    de conflitos e combates no espao democrtico. Dessa forma, eles estopreparados para sair do ambiente de certa forma acolhedor e seguro da

    universidade, a fim de em seguida realizar suas misses com dignidade e

    solidariedadeos dois carros-chefe da democracia.

    Passo n.12: retorno transfigurado.

    O nosso heri agora aprendeu importantes e indelveis lies. Aprendeu que

    no h possibilidade de redeno da condio limitada de ser humano, se o

    passado no for superado. Aprendeu que no h dignidade humana sem um

    suprimento autossuficiente de iluses. Aprendeu que a viagem rumo ao

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    desconhecido requisito imprescindvel para a manuteno da democracia.

    Aprendeu, por fim, que a VONTADE uma fora-motriz que permite ao homem

    atravessar todos os perodos sombrios da vida.

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    CONCLUSO

    A vantagem da atividade da escrita que nosso filho de produo intelectual

    pode ser moldado em momentos de silncio e concentrao, de forma autnoma e

    independente, sem a nem sempre bem-vinda interferncia da sociedade a que os

    filhos de produo biolgica esto sujeitos. Tendo em vista isso, estando a se

    avizinhar o momento em que meu rebento ser apresentado sociedade no salo,

    sinto-me na obrigao moral de rever todos os momentos da criao. Aqui vamos,

    ento.

    A criao desse trabalho teve como um de seus intuitos colocar em prtica

    seu objetivo, ao mesmo tempo em que o defendia. E, se quisermos resumi-los,

    podemos dizer que ele consiste em demonstrar que a estrada do inusual, do

    desconhecido, no s bem-vinda, como imprescindvel para a sobrevivncia do

    ambiente democrtico. A democracia s existe se houver marginalidade, se houver

    coragem para a tomada de caminhos autnomos, que no sejam necessariamente

    os mais usuais. Ao se apresentar diante dos senhores, meu filho vos ensinar como

    esse caminho de dignidade e de solidariedade pode ser construdo.

    Como ferramenta para abertura dessa trilha, temos a arte e a psicanlise,

    que, por natureza, so ramos do conhecimento que se aventuram em terrenos

    virgens da mente. A arte o principal veculo de exerccio criativo da linguagem, por

    intermdio da qual se faz poltica, se faz direito, se governam os povos. A

    psicanlise, por sua vez, cumpre seu importante papel de tapa na cara, isto , dealerta ao egocentrismo humano acerca do seu instinto. Ela demonstra como a

    simples razo instrumental da modernidade insuficiente para a aquisio da

    autonomia to necessria liberdade. Mais do que isso, essa razo tem sido

    utilizada de forma glida para a produo de mentalidades em cadeias de

    montagens que no enfrentam a vida, a vida pura, em si, sem utopias nem conceitos

    plastificados.

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    Como defensor da utilizao da literatura no direito e no ensino do mesmo,

    utilizei eu prprio metforas ao longo do trabalho. Uma delas, que se estendeu por

    alguns pargrafos, se referia ao carter de espetculo, o qual utilizado

    hodiernamente para revestir as mais diversas questes, retirando a humanidade dos

    indivduos. (...) Vamos imaginar uma bela supermodelo, comeo eu, e aqui

    exponho caminhos perigosos da alienao, que retira a necessidade de vigilncia

    externa porque parte do prprio indivduo. Estou, em suma, a falar da indiferena

    robtica que impera no inconsciente coletivo atual, e que favorece a dominao.

    Afinal, aquele que no tem sonhos, ou no sabe quais os so, aceita o que lhe

    impem.

    Essa pesquisa possui um forte enraizamento nas matrias de Sociologia

    Jurdica e Teoria Geral do Direito estudadas nos perodos iniciais do curso de direito

    da UFPI, e que, juntamente com tantas outras, constituem o estgio de puberdade

    do ensino jurdico. Isso porque no estudo desses temas basilares que se efetivam

    nos estudantes a tomada de conscincia real a respeito do papel do direito na

    sociedade, e da importncia de cidados conscientes dos seus papis jurdicos. No

    entanto, esse papel pode passar despercebido pela maioria dos estudantes presos

    em cadeias de representaes exclusivamente materialistas da realidade. Esse tipo

    de estudante, que procura o curso por razes de falta de imaginao e necessidade

    de rotina, motivos opostos aos que deveriam incitar sua escolha, precisam do

    encontro com um mentor sbio que os faam atravessar o umbral para o caminho

    das transgresses. E esse mentor nada mais do que o professor.

    Com inspirao na jornada do heri, dissecada no captulo inicial, constitu o

    meu prprio caminho ao lu (WARAT, 1997) para o docente jurdico, atravs deuma correspondncia entre uma estratgia de enredo de narrativas e o ensino

    jurdico em sala de aula. Mediante isso, espero ter contribudo para a concretizao

    do meu objetivo, ou seja, a insero da criatividade flexvel da arte na sala de aula

    jurdica.

    Dessa forma, deixem-me convoc-los para colocar em prtica a transgresso.

    Esta monografia de nada adiantaria se as reflexes que ela instiga no forem

    utilizadas para a reinveno da vida. Se em cada sala de curso de direito mais

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    incidentes de ternura forem postos em prtica, cada vez mais heris enrustidos

    sairo do armrio, orgulhosos de ter a certeza de que a realidade mutvel e que

    todo idealismo um ledo engano.

    A importncia da pesquisa desse tema para o meu desenvolvimento pessoal

    foi imensa. A sensao foi similiar de quem limpa as lentes sujas dos culos, s

    quais j havia se acostumado, e sente agudeza maior em cada detalhe da realidade.

    Tal sensao paradoxal ao mesmo tempo entusiasmante e assustadora, pois por

    trs dela est a conquista da liberdade, qual os seres humanos so condenados.

    Trata-se de um projeto que cobra um preo elevadssimo e exige bastante fora

    psquica. Importante destacar aqui que por fora eu no quero dizer poder no

    sentido poltico ou financeiro da coisa. No h fora verdadeira no imperador quemanda os batedores irem frente para se poupar da luta. No; a tarefa do indivduo

    verdadeiramente forte custa alegria e sangue, e ele expe a prpria pele ao perigo.

    Mas a sua fora ser medida na persistncia de sua vontade de prosseguir.

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