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FACULDADE DE DIREITO DE SANTA MARIA

REVISTA JURÍDICA DA FADISMA

Editora FADISMA Santa Maria - RS

2010

Revista Jurídica FADISMA Santa Maria v. 5 n. 1 p. 01-208 2010

v.5, n.1, 2010

ISSN 1982-1034

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Profª. Ms. Carolina Elisa SuptitzProf. Ms. Clodoveo GhidolinProfª. Ms. Cristine Koehler ZanellaProfª. Ms. Daiane Moura de AguiarProf. Ms. Felipe Dias RibeiroProf. Ms. Igor CezneProf. Ms. Jair Pereira CoitinhoProfª. Ms. Luciane Maria Padoin DiasProf. Ms. Marcelo Carlos ZampieriProfª. Ms. Olinda BarcellosProfª. Drª Valéria Ribas do Nascimento

Revista Jurídica da FADISMA. v. 5, n. 1 (2010) – Santa Maria: FADISMA, 2010v. 5, n. 1

AnualISSN: 1982-1034

1. Direito. 2. Periódico.

Responsabilidade editorial e administrativa: Editora FADISMA – Santa Maria, RS, Brasil.Capa: Diâine MorinEditoração e Diagramação: Multideia Editora Ltda. – Curitiba, PR, BrasilOrganização e Revisão: Profª. Ms. Candisse SchirmerImpresssão: Gráfica e Editora Nova Letra Ltda. - Blumenau, SC, Brasil

Prof. Dr. André Jean ArnaudProf. Athos Gusmão CarneiroProf. Dr. Dalmo de Abreu DallariProf. Dr. Eros Roberto GrauProf. Dr. Jorge Luiz da CunhaProf. Dr. Leonel Severo RochaProfª. Drª Nádia de AraújoProf. Nelson de Azevedo JobimProf. Dr. Ricardo Antonio Silva SeitenfusProf. Dr. Ricardo RossatoProf. Dr. Rui StocoProfª. Drª. Sueli DallariProf. Dr. Umberto Celli Jr.Profª Drª Wanda Capeller

Conselho Editorial Conselho Consultivo

Dados Internacionais de Catalogação da Publicação (CIP):

Ficha catalográfica elaborada pela bibliotecária Sheila M. Carvalho CRB 10/1672

© 2010. Editora FadismaTodos os direitos desta edição estão reservados à FADISMA.

A reprodução total ou parcial desta publicação está autorizada, desde que citada a fonte.

FADISMA | BibliotecaRua Duque de Caxias, 2.319 – Bairro MedianeiraCEP 97060-210 Santa Maria, RS, BrasilFone/fax: (55) [email protected]

Revista Jurídica da FADISMA disponível em:http://revista.fadisma.com.br/revistafadisma/index.php/revistafadisma

Aceita-se permuta

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REVISTA JURÍDICA DA FADISMA

Editora FADISMA Santa Maria - RS

2010

Revista Jurídica FADISMA Santa Maria v. 5 n. 1 p. 01-208 2010

v.5, n.1, 2010

ISSN 1982-1034

www.fadisma.com.br

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Prof. Eduardo de Assis Brasil RochaDireção Geral da Faculdade

Prof. Esp. Giovani BortoliniVice-Direção Geral da Faculdade

Prof. Carlos Norberto Belmonte VieiraCoordenação Geral de Graduação da Faculdade

Prof. Ms. Felipe Dias RibeiroVice-coordenação Geral de Graduação da Faculdade

Profª. Ms. Luciane Maria Padoin DiasCoordenação de Pesquisa e Monografia

Prof. Ms. Clodoveo GhidolinCoordenação de Extensão

Profª. Esp. Marícia de Azambuja Fortes MisselCoordenação do Núcleo de Prática Jurídica

Prof. Ms. Marcelo Carlos ZampieriCoordenação de Pós-Graduação

Faculdade de Direito de Santa Maria – FADISMA Rua Duque de Caxias, 2.319 – Bairro Medianeira97060-210 Santa Maria, RS, BrasilFone/fax: (55) [email protected]

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EDITORIAL

É com grande satisfação que a Faculdade de Direito de Santa Maria apresenta o 5º volume de sua REVISTA JURÍDICA, fruto de um trabalho de aprimoramento e revitalização constantes por meio do qual buscamos eleger textos de forte conteúdo e relevância para a comunidade acadêmica.

Ao logo do processo de desenvolvimento, nosso intuito tem sido proporcionar ao leitor um momento para a discussão jurídica - tanto docentes quanto discentes, cabendo a estes um legado de estudo e aperfeiçoamento social.

Assim, a exemplo de edições de outrora, corrobora-se a importância da pesquisa no âmbito acadêmico, mantendo-se o compromisso de oferecer um espaço para a crítica e reflexão.

Nesse contexto, a FADISMA vem representando um expoente em disseminação do conhecimento, servindo como instrumento de transformação e difusão de ideias valorando e solidificando cada vez mais sua missão: Educar Sempre.

Boa leitura!Profª. Ms. Candisse Schirmer

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sumário

Artigos:A TEORIA GERAL DO PROCESSO E OS FILÓSOFOS PRÉ-SOCRÁTICOS DO RACIONALISMO (PARMÊNIDES) À HERMENÊUTICA FILOSÓFICA (HERÁCLITO) .................................................................................................................. 011

Carolina Elisa Suptitz

O DIREITO COMO SISTEMA AUTOPOIÉTICO: REGULAÇÂO SOCIAL ATRAVÈS DO DIREITO ......................................................................................................031

Suélen Farenzena

O DEVER DE INFORMAÇÂO NA RELAÇÂO MÉDICO-PACIENTE E RESPONSABILIDADE MÉDICA ........................................................................................055

Amanda Lúcia Araújo LaranjeiraFábio da Silva Veiga

PUBLICIDADE ILÍCITA: O TRATAMENTO LEGAL PÁTRIO VOLTADO PARA A CRIANÇA ................................................................................................................085

Aline Raquel Cazzaroli

DIREITO AMBIENTAL E O CIDADÃO ECOLÓGICO ......................................................101Aline Andrighetto

ESTADO, JUSTIÇA E PARTICIPAÇÃO CIDADÃ: UMA ANÁLISE SOBRE A REIVENÇÃO DEMOCRÁTICA BOLIVIANA ................................................................121

Pâmela Marconatto MarquesCarlos Roberto Bueno Ferreira

DEMOCRACIA, CONSTITUCIONALISMO E PARTICIPAÇÃO CIDADÃ: A ATIVIDADE JURISDICONAL NA CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS .................................................................................................................161

Francielli Silveira Fortes

DIREITOS HUMANOS E COSMOPOLITISO: A QUESTÃO DOS APÁTRIDAS E REFUGIADOS A PARTIR DA ÉTICA DA ALTERIDADE ............................................175

Gustavo Oliveira de Lima Pereira

Resenha:É POSSÍVEL O DIREITO SER INSTRUMENTO PARA A EFETIVAÇÃO DA DEMOCRACIA? ....................................................................................................................203

Candisse SchirmerMarcio Luiz Simon Heckler

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A TEORIA GERAL DO PROCESSO E OS FILÓSOFOS PRÉ-SOCRÁTICOS: do racionalismo (Parmênides) à

hermenêutica filosófica (Heráclito)1

Carolina Elisa SuptitzMestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS, Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, Graduada em Direito pela Universidade Federal de Santa Maria – UFSM. Professora de Teoria Geral do Processo, Direito Processual Civil e Hermenêuti-ca na Faculdade de Direito de Santa Maria – FADISMA e de Teoria Geral do Processo na Universidade da Região da Campanha – URCAMP, campus São Gabriel. Contato: [email protected].

RESUMO:A Teoria Geral do Processo é a parte introdutória e fundamental do estudo do direito processual. Atualmente faz-se necessário atualizá-la, deixando refletir as concepções filosóficas contemporaneamente aceitas. A principal novidade que deve se recepcionada pela Teoria Geral do Processo diz respeito à percepção da falibilidade do paradigma racionalista para explicar teoria, práticas e expe-riências jurisdicionais, e, para, além disso, a própria vida. Em contraponto ao racionalismo, cujas origens podem ser buscadas no filósofo pré-socrático Par-mênides, surge a hermenêutica filosófica, fundada no contemporâneo e opositor de Parmênides, Heráclito. De modo a demonstrar as causas e, de certo modo, as origens, do paradigma racionalista, bem como dos princípios da generalidade e abstração, rico é o estudo de referido embate, contribuindo para a ruína de mitos e fantasias tidas como dogmas – eternos e inquestionáveis – em prol de uma Teo-ria Geral do Processo mais consentânea com a realidade humana.Palavras-chave: Paradigma racionalista. Pré-socráticos. Hermenêutica.

1 O presente artigo é fruto das pesquisas realizadas em dois grupos de estudo da Faculdade de Direito de Santa Maria – FADISMA, coordenados por esta autora: Repensar o contexto, reformar a jurisdição: O estudo do direito a partir dos autores “mal-ditos” (2. ed.) e O direito processual civil brasileiro e os paradigmas científico- -culturais: o tributo racionalista.

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SUMÁRIO: 1. Considerações Iniciais. 2. A teoria geral do preocesso e os paradigmas racionalistas e hermenêutico. 3. A filosofia pré-socrática de Parmênides e Heráclito refletida na teoria geral do

processo e no direito processual civil brasileiro4. Considerações Finais. • Referências.

Somos el tiempo. Somos la famosa parábola de Heráclito El Oscuro. Somos El agua, no el diamante duro, la que se pierde, no la que reposa.

Somos el rio y somos aquel griego que se mira en el rio. Su reflejo cambia en el agua del cambiante espejo,

en el cristal que cambia como el fuego. (Jorge Luis Borges. Los conjurados)

Qualquer curva de qualquer destino que desfaça o curso de qualquer certeza [...]

Qualquer coisaQualquer coisa que não fique ilesa

Qualquer coisaQualquer coisa que não fixe.

(Arnaldo Antunes. Qualquer)

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Em qualquer área do conhecimento muitos são os enfoques de análise necessários para uma compreensão cada vez maior e mais adequada de um determinado tema. Em termos de direito proces-sual, há que se estudar os institutos e instrumentos vigentes, os re-vogados ou alterados e, ainda, os que estejam sendo criados ou em vias de inserção no ordenamento jurídico pátrio. Da mesma forma, é imprescindível conhecer quais são as instituições jurisdicionais, suas funções e como são compostas e estruturadas.

Também se faz necessário estudar os princípios protetivos da atuação jurisdicional, seja na figura dos julgadores, seja na das par-tes e intervenientes, seja ainda na figura dos demais envolvidos

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numa determinada situação e experiência jurisdicional. Sem falar em inúmeros outros enfoques não tão tradicionais nos cursos de direito, mas com espaço cada vez maior junto aos juristas e pes-quisadores do direito, com destaque para as formas alternativas de resolução de conflito ou lide, o direito processual comparado, o direito processual internacional, a uniformização supraestatal do direito processual, etc.

Contudo, há também uma perspectiva que antecipa tudo isso. Referida perspectiva está atrelada ao próprio modo de pensar os institutos, instrumentos, instituições e princípios e é reflexo da própria inserção da ciência do direito2, assim como todas as de-mais ciências – sociais e também naturais –, num contexto muito mais amplo do que o englobado pelos objetos diretos e imediatos de estudo.

Toda produção humana, técnico-operacional ou teórico-cientí-fica, está necessariamente inserida num espaço e tempo e sob deter-minadas ideologias; e com o direito processual não acontece diferen-te. Infelizmente, porém, as disciplinas e obras jurídicas nem sempre manifestam ter esta consciência3.

A proposta do presente artigo é tentar romper com a tradição que ignora ou pouco se preocupa com esta perspectiva, adentran-do, a partir da Teoria Geral do Processo, na investigação de dois

2 O presente artigo pretende negar, como paradigma do direito processual (e do di-reito), o paradigma da cientificidade, também conhecido como paradigma racio-nalista, cartesiano, das ciências naturais ou matemáticas, etc. Isto não significa, porém, que a ciência, como um todo, esteja sendo recusada, mas apenas a ciência definida e pensada segundo o paradigma em questão. A ciência, na verdade, assim como o direito, precisa ser rediscutida, de modo a adequar-se à perspectiva con-temporânea acerca da produção de conhecimento. Tal questão foi tratada por Luis Alberto Warat no texto Metáforas para a ciência, inserido no volume III da coletâ-nea editada pela Fundação Boiteaux (Surfando na pororoca: o ofício do mediador. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004), quando o argentino defende o reconheci-mento de uma nova epistemologia, a qual deverá englobar não só a racionalidade, mas também a sensibilidade.

3 Em matéria de direito processual brasileiro, dentre os autores que trabalham bas-tante a partir da constatação da inserção do direito num tempo e contexto, social e intelectual, estão, além de Ovídio Baptista da Silva, que será bastante utilizado no presente trabalho, também Luiz Guilherme Marinoni, como se pode ver na obra Teoria Geral do Processo (MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria Geral do Processo. 4.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010).

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marcos teóricos da filosofia pré-socrática que representam formas bastante distintas de pensar a natureza e a própria produção de conhecimento.

Referida investigação é o ponto de partida de uma pesquisa bastante recente e que tem por objeto: a) uma análise espaço-tem-po-ideológica de alguns aspectos do direito processual, o que se fará tendo por base trabalhos de excelência realizados na doutrina bra-sileira neste sentido; b) e a apresentação e crítica do pensamento de alguns filósofos, sobremodo Parmênides e Heráclito, para pensar o instituído e projetar o instituinte.

Para atender a tal propósito, o presente artigo está subdivido em duas partes. Na primeira, a ideia é justificar a importância de re-conhecer a superação do paradigma racionalista e necessária adoção de um novo paradigma para fim de inserir a realidade natural e hu-mana no estudo do direito e especialmente da Teoria Geral do Pro-cesso. Num segundo momento, o objetivo é pensar nas influências do pensamento de Parmênides e Heráclito para o paradigma proces-sual vigente e, quem sabe, para um novo modelo em construção ou a ser construído, mais adequado às vicissitudes humanas, ainda mais diante do que se apresenta na contemporaneidade.

O presente artigo se insere na Linha de Pesquisa Constituciona-lismo, Concretização de Direitos e Cidadania da Faculdade de Direito de Santa Maria – FADISMA na medida em que o direito processual tem por objeto estudar a forma mais tradicional de concretização de direitos, qual seja a atuação jurisdicional, com todos seus institu-tos, instituições e princípios, conforme antes mencionado. Ademais, preocupar-se com a (re)inserção e/ou (re)adaptação de uma ciên-cia ou parte dela num contexto histórico-social e ideológico também faz parte da preocupação pela concretização de direitos dos sujeitos pertencentes a uma comunidade.

2 A TEORIA GERAL DO PROCESSO E OS PARADIGMAS RACIONALISTA E HERMENÊUTICO

O direito processual se dedica a estudar, nos seus pormenores, as diferentes formas e práticas de resolução de conflitos, com ênfase na jurisdição, que é a forma heterônoma de resolução de lides em

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que o terceiro que intervém com a capacidade de impositivamente apreciar e julgar a contenda apresentada é o Estado. A Teoria Geral do Processo (TGP)4, por sua vez, é a parte introdutória e fundamen-tal do direito processual, responsável por oferecer uma base teórico- -crítica para o estudo de institutos, instrumentos e instituições pro-cessuais que ocupam papel relevante no que se refere às questões de cunho mais prático da atuação do profissional do direito.

A jurisdição é objeto de estudo do direito processual como um todo, mas a sua definição e crítica são realizadas quase que integral-mente no estudo da Teoria Geral do Processo. Em TGP, a jurisdição é investigada enquanto função do Estado, exercida por um dos poderes do Estado – o Poder Judiciário –, que atua segundo processo, finalida-de e procedimentos devidamente regulamentados e protegidos.5

De um modo ou de outro, tratar de direito processual ou, mais precisamente, da atuação jurisdicional, deveria implicar, necessaria-mente, a percepção de que se está tratando, antes de mais nada, de institutos, regras, princípios, práticas e experiências sociais e huma-nas e, em sendo assim, de linguagem6.

Contudo, apenas mais recentemente se têm recepcionado o ca-ráter social e humano – e tudo o que daí deriva – do direito proces-sual, posto que é o caráter científico-matemático que preponderou desde os séculos XVI e XVII, em termos de filosofia, ou XIX e XX, em termos de direito processual, tornando objeto do direito dogmas tão rígidos e imutáveis como as fórmulas das ciências naturais.

4 Muitas são as divergências acerca da existência de uma Teoria Geral do Processo. Muitos são os que entendem não ser possível falar numa Teoria Geral do Processo, senão que numa Teoria Geral do Processo Civil, Teoria Geral do Processo Penal, etc. Dentre estes estão Ovídio A. Baptista da Silva e Fábio Luiz Gomes (SILVA, Oví-dio A. Baptista da; GOMES, Fábio Luiz. Teoria Geral do Processo Civil. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006). No que diz respeito a este artigo, se adota entendimento favorável à possibilidade de falar numa Teoria Geral do Processo, desde que, porém, esta disciplina se dedique a poucos institutos comuns às várias subdivisões do direito processual (processo civil, processo penal, processo traba-lhista, etc.), como é o caso da jurisdição.

5 A definição de jurisdição não é pacífica. Inclusive não é pacífico que ela é função obriga-toriamente exercida pelo Estado. Nesse sentido, ver DIDIER JR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil. 9. ed. Salvador: JusPodivm, 2008. v.1.

6 A referência à linguagem se faz no sentido de antecipar o que será dito mais adiante quanto à teoria hermenêutica de Martin Heidegger trazida ao direito brasileiro por muitos autores.

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A dogmatização do direito atingiu não apenas o direito mate-rial, mas também e principalmente o processual, até mesmo porque é nesta área que se encontram as maiores resistências ao reconheci-mento da intrínseca mutabilidade jurídico-político-social, sendo tão comum definir o direito processual como um simples conjunto de regras procedimentais e burocráticas, passíveis de serem estabiliza-das e universalizadas.

Contudo, ainda mais prejudicial do que definir o direito pro-cessual como uma ciência cujo objeto é imutável, é acreditar que são fruto do processo verdades absolutas, não construídas, mas tão somente declaradas, o que se daria segundo procedimento típico das ciências da descoberta e não da compreensão. Na medida em que são princípios norteadores do racionalismo, segundo os quais ainda hoje atuamos, tanto no direito, como no direito processual, a generalidade e abstração, a função jurisdicional se resumiria à ‘descoberta’ da verdade a ser apenas ‘declarada’7.

O direito processual, pensado como disciplina dogmatizada, cujo principal objeto, o processo, seria criador de respostas de cer-ta forma igualmente dogmatizadas, tem como causa, então, dentre inúmeros outros aspectos, muitos deles de cunho histórico8, a ado-ção do paradigma científico racionalista, que explica a produção de conhecimento para toda e qualquer área a partir do método mate-mático de pesquisa e descrição dos fenômenos.

7 Ovídio Baptista critica a atuação jurisdicional segundo as ciências da descoberta: “No momento de construir a sentença, ao juiz interessa o individual, as diferenças, não as regras. Aqui, torna-se imperiosa a distinção entre ciências da descoberta e lógica da argumentação, ou da compreensão. As ciências da “descoberta” – que são as únicas que o pensamento moderno considera verdadeiras ciências – ignora o individual, aquilo que o fenômeno tem de singular, despe-o de tudo o que nele pos-sa representar a diferença, para, com o esqueleto que restou, com as identidades, construir a regra.” (SILVA, Ovídio A. Baptista da. Processo e Ideologia: O Paradigma Racionalista. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 266)

8 Aspectos históricos relacionados, em grande parte, a peculiaridades da Revolu-ção Francesa e ao modo como a classe burguesa pretendeu controlar institui-ções do Antigo Regime, do que é exemplo o próprio Poder Judiciário. O próprio capitalismo, que se desenvolvia, contribuiu para a dogmatização do direito. É possível simplificar, não isento da violência que toda simplificação representa, tais motivações sob o argumento da segurança, questão fartamente tratada por Ovídio Baptista da Silva, em inúmeras obras, inclusive na obra citada recente-mente (Processo e Ideologia).

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No século XVII foi Renè Descartes, na obra Discurso sobre o Método9, quem propagou o racionalismo. Contudo, segundo Ovídio Araújo Baptista da Silva, não é possível atribuir a referido mate-mático e filósofo a responsabilidade pela adoção do racionalismo no direito. Foram filósofos posteriores que “transferiram o Direito para o campo das ciências experimentais, basicamente para o do-mínio das ciências lógicas, sobretudo Spinoza e Leibniz, que ‘mate-matizaram’ o direito”10.

Desse modo, o direito processual foi criado11 e teorizado como se tratasse de dados exatos, prontos a serem observados (quiçá, num laboratório!), mecanicamente calculados e posteriormente descritos ou declarados. O direito processual está teórico e operacionalmente insculpido segundo as crenças racionalistas, coisa que, se nos sécu-los passados não era de grande problema e contradição – seja porque esta era a regra, já que todas as ciências assim estavam caracteriza-das, seja porque era o que a sociedade supostamente necessitava, na forma de segurança (ver nota de rodapé n. 8) –, em pleno século XXI não pode perdurar.

O paradigma racionalista ou, como prefere Boaventura de Sou-sa Santos, o paradigma da ciência moderna, atravessa uma crise ir-reversível que é resultado do seu próprio avanço. A desmitificação e recusa das características que lhe são típicas teve início exatamente naquelas áreas que melhor serviram aos seus propósitos: física, quí-mica, matemática, biologia, etc.12. O que explica, então, que o direito, ciência social e humana, ainda não tenha refutado o racionalismo e nem os princípios racionalistas da generalidade e da abstração?

9 Descartes cria um método pautado em quatro regras, aproveitando-se de conheci-mentos oriundos da área da matemática, onde, contrariamente à filosofia, era pos-sível demonstrar a veracidade de afirmações. DESCARTES, Renè. Discurso sobre o método. Trad. Alan Neil Ditchfield. Petrópolis: Vozes, 2008.

10 SILVA, Ovídio A. Baptista da. Epistemologia das ciências culturais. Porto Alegre: Ver-bo Jurídico, 2009. p. 7. Não foi Descartes quem transferiu o Direito para as ciências teóricas, que não dependem de experiência, mas apenas de definições (p. 50-51).

11 O direito processual enquanto ramo do direito autônomo do direito material sur-giu no século XIX, mais precisamente com Oscar von Bülow.

12 SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2005. Também, do mesmo autor: Um dis-curso sobre as ciências. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2008.

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Uma primeira e preliminar resposta estaria no refinamento com que a generalidade e a abstração se mantêm vivas na teoria e operacionalidade, assim como na função e estrutura jurídicas. Ora, não fosse estarmos atentos aos discursos e práticas, sequer perce-beríamos que, no fundo, o direito ainda é guiado pelo apego aos dois princípios supra.

Um segundo motivo para que o direito não tenha, até o momen-to, recusado a generalidade e a abstração diz respeito à preocupação com o exercício da função jurisdicional, que deveria promover segu-rança e estar imune à arbitrariedade humana, ao abuso de poder e às injustiças. Não seria o específico, o singular, nem o casuísmo que supostamente forneceriam a tão propagada segurança, mas, sim, os seus opostos.

Entre jusnaturalismos e positivismos, o direito evolui sempre preocupado em evitar injustiças, as quais seriam decorrência da ine-xistência de normas uniformes. O jusnaturalismo possibilita uma maior adaptabilidade às transformações sociais, deixando, porém, segundo a crítica, desguarnecidos os direitos previamente conquis-tados; o positivismo assegura garantias, engessando-os. Ambos, no entanto, são tradicionalmente construídos sob a ideia de generalida-de e abstração: o primeiro em prol da universalidade, ora de cunho divino, ora racional, o segundo em prol das normas estatais.

Por fim, há uma terceira resposta à pergunta sobre a não re-cusa da generalidade e da abstração pelo direito processual. Aqui, a questão é ainda mais embrionária: o direito não recusa a generali-dade e a abstração porque acredita na possibilidade de as respostas jurídicas serem dadas ou o conhecimento ser produzido a partir da mera reprodução (declaração) e não da criação/constituição.

O que, num primeiro momento, deve restar esclarecido é que inevitavelmente o sentido será criado, conforme defende a herme-nêutica.13 Não há, nem nunca houve, mecanismos, por mais opres-

13 Tal afirmação somente é possível a partir de outra que diz que a interpretação é sempre criadora. Neste sentido, utilizando apenas de algumas obras de auto-res brasileiros, é possível citar filósofos como Ernildo Stein (Aproximações sobre Hermenêutica. 2.ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004) e juristas como Ovídio Araújo Baptista da Silva (Verdade e significado. In: COPETTI, André; STRECK, Lenio Luiz; ROCHA, Leonel Severo (Orgs.). Constituição, Sistemas Sociais e Hermenêutica: pro-

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sores e autoritários que fossem os instrumentos utilizados, capazes de impedir a criação de sentido14. O homem, inclusive o moderno, reiteradamente criticado por sua passividade15, nunca foi um mero reprodutor de sentido.

Nas palavras de Naffah Neto, para Nietzsche sequer há o real, o ser ou o fato em si, mas apenas perspectivas ou interpretações. A linguagem, para o filósofo do século XIX, “interpreta, produz sentidos e, nesse sentido, constrói realidades. Há tantos discursos e tantas lin-guagens quanto as perspectivas possíveis”16.

Ainda que, para Heidegger, o ser existe e, portanto, como bem explicam Stein, Streck e Moreira da Silva Filho nas obras já citadas, a função da interpretação é a revelação ou desvelamento do ser do ente, não se pode afastar da interpretação a sua função criadora ou constitutiva, uma vez que imprescindível a figura do intérprete, que é quem atribuirá sentido. Comentando acerca da contribuição heideg-geriana para a filosofia, Moreira da Silva Filho afirma que “O sentido

grama de pós-graduação em Direito da Unisinos: mestrado e doutorado. Porto Ale-gre: Livraria do Advogado; São Leopoldo: Unisinos, 2005, p. 265-81), Lenio Luiz Streck (Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da cons-trução do Direito. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007), Eros Roberto Grau (Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do Direito. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2009) e José Carlos Moreira da Silva Filho (Hermenêutica filosófica e direito. O Exemplo Privilegiado da Boa-fé Objetiva no Direito Contratual. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006).

14 Cumpre observar, porém, que falar que os sentidos/significados são sempre cria-dos não impede que falemos que referidos sentidos/significados não sejam ‘ma-nipulados’. Afinal de contas, não é possível ignorar a advertência de Foucault de que todo saber tem, em sua gênese, relações de pode. (FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 23. ed. São Paulo: Graal, 2007). O que se pretende dizer, então, é que ainda quando o sentido é fruto de manipulação/pressão/poder terá ocorrido criação.

15 Críticas vindas das mais diferentes escolas e tempos, do que são exemplos os seguintes autores: Friedrich Nietzsche (A genealogia da moral. 3. ed. São Paulo: Moraes, 1991), Hannah Arend (A condição humana. 10. ed. Tradução de Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008) e Jürgen Habermas. Denise Mendes é quem trata deste, dentre outros aspectos, que aproximam Arendt e Ha-bermas (Modernidade e Democracia Participativa em Habermas e Hannah Arendt. Direito, Estado e Sociedade, Rio de Janeiro, n. 18, p. 72-93, jan./jul. 2001).

16 NAFFAH NETO, Alfredo. O inconsciente como potência subversiva. São Paulo: Es-cuta, 1991. p. 44.

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dos entes, antes de ser uma qualidade a eles inerente é uma determi-nação que parte do ser-aí.”17.

O homem, devido à sua própria humanidade e à inevitabilida-de da linguagem, sempre atribui sentido ao ente; é sempre criador e, portanto, compõe ou integra o resultado da interpretação. Trazendo esta discussão para o campo do direito, tem-se que o “significado da lei não é autônomo, mas heterônomo. Ele vem de fora e é atribuído pelo intérprete”18.

Valendo-se de Eros Grau19, é possível afirmar que o texto jurí-dico não tem sentido e muito menos é aplicado quando da prolação de decisões judiciais. É a norma jurídica a portadora de um signi-ficado e o instrumento que incide perante as situações submetidas ao Judiciário. A diferença entre texto e norma está no fato de que esta última é o resultado da interpretação, realizada, evidentemen-te, por um intérprete.

Se, então, o sentido é sempre criado, e, a contrario sensu, nun-ca meramente reproduzido, começa a perder importância a ideia de generalidade e abstração, a qual somente manteria sua utilidade na medida em que fosse possível à regra se limitar a incidir imutável ao caso concreto. Se a interpretação ou produção do conhecimento, jurídica ou não, é sempre criadora, não há que se falar em generali-dade e abstração; afinal de contas, o produto da interpretação será obrigatoriamente uma resposta específica, pensada e construída a partir do caso concreto.

Ademais, é fundamental perceber que, além de ser irrecusável a atividade criadora de sentido, inevitavelmente contribuem para que tal criação ocorra elementos que integram a subjetividade20,

17 SILVA FILHO, José Carlos Moreira da. Hermenêutica filosófica e direito. O Exemplo Privilegiado da Boa-fé Objetiva no Direito Contratual. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 41. O ser-aí é considerado como aquele ente que detém a capacidade de compreender-se a si mesmo, o que é primordial para a revelação do ser do ente.

18 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica (jurídica) e Estado Democrático de Direito: uma análise crítica. In: ROCHA, Leonel Severo; STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de (Orgs.). Anuário do Programa de Pós-graduação em Direito: Mestra-do e Doutorado 1998-1999. São Leopoldo: Unisinos, 1999. p. 77-120, p. 98.

19 GRAU, Eros. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do Direito. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2009.

20 Fala-se em subjetividade, aqui, não como sinônimo de arbitrariedade, parcialidade ou solipsismo, mas como sinônimo do próprio sujeito.

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historicidade e temporalidade do sujeito. Claro que não apenas isso, pois há um mínimo de sentido que deve ser acolhido e reconhecido quando do olhar (ou abrir-se) para o ente.

Sendo assim, todo o esforço da normatização e toda a prática e estrutura jurisdicional criadas na pretensão de evitar a intervenção do intérprete são, ao menos em parte, falaciosos, posto que incapazes de fornecer a segurança almejada. Não é possível ao intérprete limitar-se a “carimbar” a resposta previamente existente no ordenamento.

Destarte, o sentido é criado e, para tanto, contribuem, inevita-velmente, a subjetividade do intérprete, a tradição que o acompanha, o contexto em que inserido e a alteridade intrínseca ao ente, que, em se tratando de direito, abarca o caso concreto e as fontes jurídicas. Complementa o que vem sendo dito, Baptista da Silva:

O juiz terá – na verdade teve e continuará tendo, queiramos ou não –, uma margem de discrição dentro de cujos limites, porém, permanecerá sujeito aos princípios da razoabilidade, sem que o campo da juridicidade seja ultrapassado.21

Bruno Latour22 é quem afirma que jamais fomos modernos. No caso, o autor se refere à modernidade como instituidora de um sentido de mundo que pretendeu afastar, sem concretamente ter conseguido, o homem da sua facticidade e finitude, projetando um sujeito matematicamente rentável, maquinicamente eficiente e tecnicamente racional.

A pretensão moderna de isolar os elementos ciência e razão dos elementos natureza e sensibilidade não é passível de ser al-cançada, haja vista a interdependência entre eles. Nem mesmo o saber mais técnico consegue deixar de ser também sensibilidade, afeto e natureza. Neste sentido, Ernildo Stein quando fala que “a atitude do cientista, de modo algum está livre da sua condição de

21 SILVA, Ovídio A. Baptista da Verdade e significado. In: COPETTI, André; STRECK, Lenio Luiz; ROCHA, Leonel Severo (Orgs.). Constituição, Sistemas Sociais e Her-menêutica: programa de pós-graduação em Direito da Unisinos: mestrado e dou-torado. Porto Alegre: Livraria do Advogado; São Leopoldo: Unisinos, 2005. p. 265-281, p. 276.

22 LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. Tradução de Carlos Irineu da Costa. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1994.

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ser-no-mundo. Mesmo o cientista natural, faz parte de uma certa maneira, do ser-no-mundo, de uma certa totalidade existencial”23.

Reconhecer a humanidade e, por consequência, a especificida-de, singularidade, casuísmo e criação quando da construção e estudo da teoria geral do processo e das demais ciências é algo que pode ser feito (e, na verdade, foi e tem sido feito) mediante um resgate da filosofia de Heráclito. Do mesmo modo, a insistência no racionalismo e, destacadamente, na generalidade e abstração, pode ser justifica-da na teoria de Parmênides. Os dois filósofos viveram numa mesma época, no século VI a.C.

3 A FILOSOFIA PRÉ-SOCRÁTICA DE PARMÊNIDES E HERÁCLITO REFLETIDA NA TEORIA GERAL DO PROCESSO E NO DIREITO PROCESSUAL CIVIL BRASILEIRO

Como referido no item anterior, o direito processual, tal como atualmente vigente, está fundado numa crença racionalista – mate-mática, maquinista e técnica – de pensar o homem e as suas relações. De acordo com referida crença, as respostas jurisdicionais devem ser obtidas mediante a combinação de informações técnicas com pro-cedimentos supostamente neutros, os quais declararão (e imporão) tais informações aos casos concretos. O procedimento é a subsunção e as informações técnicas estão nos ordenamentos jurídicos.

Sendo assim, a grande preocupação do direito é dotar o intér-prete de informações técnicas, preferencialmente sistematizadas e suficientemente claras (o texto jurídico positivado), e afastá-lo de to-dos os elementos sensíveis, de modo a supostamente impedir, assim, que ele subjetivamente crie ou constitua, e não meramente declare, um sentido/significado.

O racionalismo tem suas origens na doutrina filosófica do gre-go Parmênides, que, nascido em Eleia24, viveu no período aproxima-

23 STEIN, Ernildo. Aproximações sobre Hermenêutica. 2. ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004. p. 49.

24 Em razão da localização geográfica, ele e outros filósofos (Xenófanes e Zenão) são conhecidos como eleatas.

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do de 515 a 450 a.C. Para Parmênides, a pluralidade de objetos e as mudanças e movimentos que presenciamos e vivenciamos no dia a dia da nossa realidade são uma ilusão ou, dito de outro modo, mera aparência25. O existente é apenas aquilo que pode ser pensado, o que, para o filósofo, é a unidade e a imutabilidade/imobilidade do ser.

Com esta teoria, Parmênides opõe racionalidade (inteligibi-lidade) e sensibilidade (percepção/experiência), privilegiando a primeira. Defensor da racionalidade e, portanto, da lógica fria, abs-trata e generalizante, tem como seu opositor o seu contemporâneo Heráclito, que, ao contrário, privilegia a intuição, a observação, o mundo sensível, apregoando a existência da pluralidade e do mo-vimento (devir).

A doutrina de Parmênides ainda afeta a produção do conhe-cimento em algumas áreas do saber, como é o caso do direito, e, no que interessa ao presente artigo, o direito processual e teoria geral do processo, berços do conservadorismo, conforme desde muito de-nunciou Ovídio A. Baptista da Silva26.

São prova de referida influência as críticas feitas por Friedrich Nietzsche27 ao grego, principalmente quando afirma que quem pen-sa como Parmênides deixa de ser um pensador da natureza e o in-teresse pelos fenômenos se esvai, que é exatamente como atua o di-reito processual, que cria e se concretiza mediante institutos, como é o caso dos recursos extraordinários (lato sensu) – Recurso Especial e Recurso Extraordinário –, fundados no pressuposto do total isola-mento entre norma (direito) e caso concreto ou fenômenos (fato)28.

25 BERGSON, Henri. A história da filosofia grega. In: ______. Cursos sobre a filosofia grega. Tradução de Bento Prado Neto. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

26 Jurista e processualista gaúcho falecido em junho de 2009, a quem incansavelmen-te devem ser prestadas homenagens devido à riqueza de uma obra que ainda tem muito para ser desvendada.

27 NIETZSCHE, Friedrich. A filosofia na Época Trágica dos Gregos. Tradução de Anto-nio Carlos Braga. São Paulo: Escala, 2008.

28 Vide Súmulas 07 do Superior Tribunal de Justiça e 279 do Supremo Tribunal Fede-ral. Críticas contundentes à tentativa de isolamento entre questão de fato e ques-tão de direito foram feitos por Baptista da Silva (Questão de fato em recurso ex-traordinário. Disponível em: <http://www.baptistadasilva.com.br/>. Acesso em: 9 jul. 2010) e Danilo Knijnik (O recurso especial e a revisão da questão de fato pelo Superior Tribunal de Justiça. Rio de Janeiro: Forense, 2005).

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Noutra crítica do alemão a Parmênides que se aplica perfeita-mente ao direito processual, Nietzsche afirma que, sob a influência do grego, é necessário que a verdade resida exclusivamente nas ge-neralidades mais pálidas e mais abstratas, questão presente, em ter-mos jurídicos, tanto na importância atribuída às normas jurídicas, considerada, em países de tradição jurídica romano-canônica, como a principal fonte de direito, senão a única, como na tendência cada vez maior de uniformizar entendimentos, atribuindo-lhes efeito vin-culante29, diante o que a particularidade do caso resta submetida ao entendimento geral e abstrato dado à questão.

Em outro momento também é possível identificar o quanto a crí-tica nietzschiana a Parmênides igualmente se aplica ao formato ainda vigente do direito e jurisdição. Para Nietzsche, o que surpreende na obra de Parmênides é a abstração e o esquematismo, mas, antes de tudo isso, “[...] a terrível energia da aspiração à certeza, numa época de pensamento místico, dotado de uma imaginação muito viva”30.

Por fim, cumpre transcrever Nietzsche na relação que faz entre Parmênides e Platão, atribuindo-lhes a maldição que, para ele, pesa sobre a filosofia e que, no nosso entender, pesa até hoje também so-bre o direito processual:

Com efeito, ao separar de repente e brutalmente os sentidos e a faculdade de pensar abstratamente, isto é, a razão, como se se tratassem de duas faculdades inteiramente distintas, de-sintegrou o próprio intelecto e impeliu para essa divisão total-mente errônea entre a “alma” e o “corpo” que, especialmente desde Platão, pesa como maldição sobre a filosofia.31

29 Atualmente, têm efeito vinculante: a súmula vinculante (criada pela Emenda Cons-titucional nº 45, de 2004 e prevista no art. 103-A, CF) e as decisões definitivas de mérito proferidas em ADin (Ação Direta de Inconstitucionalidade), ADC (Ação De-claratória de Constitucionalidade) e ADPF (Arguição de Descumprimento de Pre-ceito Fundamental), conforme consta nos arts. 102, § 2º, CF; 28, parágrafo único, da Lei nº 9869, e 10, § 3º, da Lei nº 9882. Também tem efeito vinculante a decisão que julga a repercussão geral e, de certo modo, as decisões que julgam recursos re-petitivos, uma vez que refletirão nos recursos equiparados que ficaram suspensos aguardando o julgamento do(s) caso(s) paradigmático(s).

30 NIETZSCHE, Friedrich. A filosofia na Época Trágica dos Gregos. Tradução de Antonio Carlos Braga. São Paulo: Escala, 2008. p. 76.

31 Idem, p. 73.

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A abstração, a generalidade, o predomínio do pensamento frio e matemático da lógica, a busca da certeza e a separação entre razão e percepção, com recusa e forte preconceito sobre a segunda, são todas características do racionalismo, que, oriundo de Parmênides e passando por vários autores, dentre eles Platão e sua dualidade de mundos – o mundo perfeito e inacessível das ideias e o mundo que vivemos, mera reprodução do transcendental –, chegou até a Idade Moderna e se propagou de tal modo que ainda hoje vemos as suas reminiscências pelas ciências e instituições.

De modo sucinto, lembrar da força que os dispositivos legais têm, se comparados com as particularidades e exceções dos casos concretos, confirma a afirmação acerca da influência de Parmêni-des e todos os que seguiram entendimento próximo ao seu. Pouco importa, na maioria das vezes, se, numa determinada situação, te-ríamos motivos para recusar a aplicabilidade de uma regra jurídica a um determinado caso. A resposta é sempre: não se devem abrir exceções!

A questão é que parece estarmos pensando nas relações so-ciais como pensamos nas fórmulas e cálculos matemáticos. Ou, lem-brando Parmênides: a) que não há pluralidade de comportamentos e que tudo é sempre igual; b) que não há mudança ou modificação de condutas, desejos, motivações, enfim, e que os objetos e as relações são imutáveis.

Lembrar de uma das justificativas que nos leva a ambicionar conhecer o posicionamento das Cortes Superiores sobre determi-nado assunto também faz prova de que nós, juristas, velamos pela teoria de Parmênides, da qual se desenvolveram os princípios da generalidade e abstração. O fato de a última palavra num processo ser dada por órgãos jurisdicionais que, de regra, são os que estão mais afastados das partes seguramente não se justifica pelo conhe-cimento que eles têm acerca das peculiaridades do caso. Tais pecu-liaridades, aliás, se relativas a fatos, sequer são admitidas.

O Poder Judiciário oferece aos jurisdicionados, como última resposta aos conflitos por eles apresentados, a apreciação por uma Corte que lhes é distante. Um dos argumentos para tanto é o fato de que ela é o órgão que supostamente melhor conhece do que o direito tem de mais abstrato e genérico: o ordenamento jurídico. Afinal, não

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é ela composta por cidadãos de “notável saber jurídico”32? Logo, o que realmente importa em termos jurisdicionais não é a sensibilida-de e experiência concreta de quem está perto, mas sim a abstração e generalidade uniformizante. E, ao que é uno (não plural) e imutável (não se modifica), é recomendável uniformizar!

No que diz respeito a esta questão, cumpre salientar que não são os opostos da generalidade e abstração – a casuística e a concre-tude – que promovem injustiças. Com efeito, aplicar a regra abstra-ta e genérica é tão capaz de promover injustiças como não aplicá-la sob o escopo de uma excepcionalidade do caso concreto. Contudo, como costuma acontecer, é mais fácil e confortável fazer prevalecer o entendimento normalizado/generalizado, realizando o previsível e, portanto, conservando o status quo, do que mudar a regra para acolher a diferença e a novidade.

O que será que é mais comum: que algo se repita ou que ocorra uma inovação? A partir de Parmênides, não há inovação, nem diferença. O que há é sempre o mesmo, o igual. Por via de consequência, mesmo que já aceitemos a existência do novo, ainda assim resistimos a pensar que a diferença possa aparecer com a mesma ou maior frequência que o igual. Ou, pelo menos, que ela merece a mesma atenção toda vez que haja suspeita sobre se a situação é de diferença ou repetição.

Ao contrário de Parmênides, para Heráclito, segundo Nietzs-che33, o universo é eterna transformação, mudança e luta entre opos-tos. O que é imutável é apenas a constância do combate e as regras a ele imanentes. O que existe e é real, o que caracteriza e/ou é a vida é o devir. Tivesse Heráclito exercido maior influência que Parmênides e Platão sobre a filosofia e o pensamento em geral, hesitaríamos tan-to a reconhecer o mutável e ‘anormal’?

Seguramente atribuiríamos à interpretação o viés perspecti-vista – o que não significa dizer arbitrário, pois há referências a serem seguidas –, já mencionado no item anterior. É neste momen-to que percebemos o quanto a teoria heraclitiana tem a contribuir para a compreensão contemporânea – leia-se: hermenêutica – do

32 Conforme consta nos artigos 101 e 104, parágrafo único, da Constituição Federal.33 NIETZSCHE, Friedrich. A filosofia na Época Trágica dos Gregos. Tradução de Anto-

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direito processual. Não é à toa que referido autor foi defendido por Friedrich Nietzsche, que, por sua vez, influenciou sobremodo a Martin Heidegger34.

A interpretação e, portanto, a resposta que o Poder Judiciário deve dar às questões que lhe são submetidas é sempre fruto de uma criação perspectivada, a partir a) do intérprete, na sua subjetividade, historicidade e contexto, b) do caso concreto específico e c) da fonte jurídica. Como o direito detém natureza política – coletiva e comu-nitária –, o juiz, intérprete imediato ou oficial, como representante que é do restante da população35, deve julgar o caso no que ele tem de casuístico e concreto.

Cabe aos juízes assumir a responsabilidade pela atividade que exercem36: mais do que simples conhecedores de normas, precisam laborar também com a sensibilidade, dispondo-se a perceber os in-teresses comunitários. O ativismo e a criatividade estão no fato de os juízes passarem a agir/atuar observando, atentamente, quais são os valores daquela comunidade quanto àquela determinada demanda e perante aquele caso concreto, dando origem, com isso, a uma nova e específica norma.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O pensamento de Heráclito ainda está longe de ser discutido com toda a atenção merecida pela ciência do direito, quanto mais pelo direito processual e teoria geral do processo. Contudo, é funda-mental conhecer melhor sua teoria para defender e teorizar o devir como sendo o princípio definidor da vida, do real e do existente. As-

34 Não se ignora, porém, que Heidegger divergiu de Nietzsche em muitos aspectos.35 Peter Häberle fala na sociedade aberta aos intérpretes da Constituição, no sentido

de que a interpretação constitucional deve ser feita por todos aqueles que vivem sob as suas normas (HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional - A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralis-ta e “procedimental” da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1997).

36 SALDANHA, Jânia Maria Lopes; ESPINDOLA, Ângela Araújo da Silveira. A Jurisdi-ção constitucional e o caso da ADI 3510: Do modelo individualista – e liberal – ao modelo coletivo – e democrático – de processo. REPRO, n. 154, p. 265-283, ano 32, dez. 2007, p. 281.

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sim como é talvez ainda mais importante desmascarar tudo o que está por traz do paradigma que ainda hoje influencia o direito pro-cessual – o Paradigma Racionalista.

A melhor forma de derrubar dogmas, tais como os da gene-ralidade, abstração, mas também da verdade absoluta e certeza, é conhecer os motivos que levaram à sua aceitabilidade e adoção. No caso, a generalidade e abstração são fruto de uma das formas de in-terpretar o mundo que saiu vencedora do debate com outra verten-te, na medida em que foi adotada pelos filósofos que se seguiram. Não é o caso, portanto, de a generalidade e abstração serem concei-tos pacíficos e naturalmente válidos.

Antes pelo contrário, são eles conceitos construídos teorica-mente e que podem tranquilamente não refletir, nem de perto, a re-alidade humana. São o produto de uma construção teórica que nós, muitas vezes acriticamente, acolhemos e deixamos nortear toda a nossa produção de conhecimento, como é o caso do direito proces-sual e do direito como um todo. Está na base da crença na generali-dade a na abstração uma outra crença: a crença, mesmo que indireta e mediatamente, na ideia de que nada muda, de que o que existe é o uno e uniforme.

Ora, inúmeros são os filósofos – e no texto foi enfocado basi-camente apenas o pensamento de Friedrich Nietzsche – favoráveis ao entendimento de que no lugar do imutável, da estabilidade, do uno e do uniforme, o que há é a mutabilidade, o movimento (devir), o plúrimo e o diferente. Sendo assim, a teoria geral do processo pre-cisa refletir acerca de tais questões a fim de adaptar suas teorias, conceitos, princípios, assim como todos os instrumentos, institutos e instituições do direito processual, ao devir heraclitiano e, portanto, à hermenêutica filosófica, com toda falibilidade e finitude humanas que estão aí intrínsecos.

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O DIREITO COMO SISTEMA AUTOPOIÉTICO:

REGULAÇÃO SOCIAL ATRAVÉS DO DIREITO1

Suélen FarenzenaMestranda em Direito pela UNISINOS/RS. Bolsista PROMESTRE.

Contato: [email protected].

RESUMO:O presente texto trata-se de uma síntese da contribuição trazida pela teoria de Gunther Teubner acerca da Regulação Social através do Direito – Capítulo V da obra O Direito como Sitema Autopoiético. Dizendo que o fracasso do direito regulatório constitui um problema de clausura autopoiética do sistema social, o autor sugere como saída justamente o desenvolvimento de formas de regulação jurídica mais indiretas e reflexivas, que respeitem a própria autorregulação so-cial. Diante disso, a proposta é contextualizar o cenário de ideias trazidas pelo mesmo, desde a autorregulação como princípio da regulação até chegar ao ponto da comunicação pela organização.Palavras-chave: Regulação Social. Interferência. Organização.

SUMÁRIO:1. Considerações Iniciais. 2. Autorregulação como Princípio da Regulação; Direito Reflexivo: Alguns Mal-en-

tendidos; a Autonomia como Autopoiese. 3. Modelos da Autonomia Social; Clausura, Circularidade, Resistência; a Observa-

ção Intersistêmica. 4. A Interferência Intersistêmica; Alguns Problemas com a Interferência Intersis-

têmica; Comunicação pela Organização.5. Considerações Finais. • Referências.

1 Seminário apresentado à disciplina de Sistemas Jurídicos Contemporâneos, mi-nistrada pelo Prof. Dr. Leonel Severo Rocha, no Mestrado em Direito do Progra-ma de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, elaborado a partir de TEUBNER, Gunther. O Direito como Sistema Autopoiético. Tradução de José Engrácia Antu-nes. Lisboa: Calouste, 1993.

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1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Teubner utiliza para ilustrar a questão do direito regulatório a Crônica de uma Morte Anunciada, de Gabriel Garcia Marques: Na presente, Angela Vicario casa com Bayardo San Román, um forastei-ro que exibe arrogantemente o seu poder, sendo devolvida logo após a noite de núpcias, depois que o noivo constata que Angela já não é virgem. Pressionada pela família, a jovem denuncia Santiago Nasar como sendo o autor da façanha, julgando que a sua fortuna fará dele um intocável, numa terra onde, segundo o costume, as dívidas de honra se pagam com a morte. Angela engana-se. Pressionada pela mentalidade dominante, típica de uma sociedade patriarcal, a família Vicario é incapaz de aguentar o escárnio motivado pela honra man-chada e sente-se compelida a matar o infame. Julgados pela própria comunidade que, ou nada fez, ou mesmo que contribuiu para a consu-mação do delito, todos os acusados, apesar da notoriedade dos fatos, razoáveis e verossímeis frente ao senso comum da comunidade em que eles se desenvolvem, são, ao fim, absolvidos pelo júri, num claro e manifesto alinhamento da ideia do grupo sobre a vontade da lei.

Partindo-se deste ponto da tese de doutorado do autor, o pre-sente texto propõe-se a tratar a paradoxal proposição de que o di-reito regula a sociedade regulando-se a si próprio (1), bem como a explicação para a articulação operacional e estrutural de sistemas dotados de um alto grau de autonomia (2), estudando-se, por fim, estratégias processuais e organizacionais de direito reflexivo como consequências práticas desse novo conceito (3).

2 AUTORREGULAÇÃO COMO PRINCÍPIO DA REGULAÇÃO; DIREITO REFLEXIVO: ALGUNS MAL- -ENTENDIDOS; A AUTONOMIA COMO AUTOPOIESE

Iniciando do questionamento se serão as ideias de clausura hi-percíclica e de coevolução “cega” do direito e sociedade compatíveis com as funções regulatórias próprias do direito moderno, o autor diz que não vai entrar na discussão sobre as funções e a instrumen-talização política da teoria autopoiética: Criticismos que pretendem penetrar no subsolo de uma teoria e trazer ao céu aberto as suas fun-

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ções políticas2 falham frequentemente, acabando por subestimar a autonomia própria dos discursos teórico e político, bem assim como a complexidade das respectivas inter-relações3. Por isso, afirma que vai concentrar-se sobre a análise da relação entre autopoiese jurídi-ca e regulação social.

Teubner assevera que essa análise depende da relação entre abertura e clausura sistêmica. Provocativamente, então, questiona: Como poderá conceber-se que a clausura radical das operações jurí-dicas signifique também a sua radical abertura aos fatos sociais, às exigências políticas e às necessidades humanas?

A essa indagação responde assinalando que a regulação social do direito é implementada por intermédio de dois mecanismos ra-dicalmente diferentes, que asseguram a mediação entre a clausura operativa do direito e a respectiva abertura ao meio envolvente. Por um lado, gerando continuamente informação interna a partir do in-terior do seu próprio sistema, o direito orienta as suas operações sem qualquer contato real com o meio envolvente; por outro, encon-tra-se ligado ao respectivo meio-envolvente através de mecanismos de interferência: as recíprocas pressões.4

Teubner esclarece que se pode pensar essa ação conjunta infor-mação-interferência a partir da afirmação: o direito regula a socieda-de regulando-se a si mesmo. Registrando que é sobre esse problema

2 Nesse sentido, em A Bukowina Global, Teubner analisa que teorias “políticas” do direito seriam provavelmente de pouca serventia para interpretar a globalização do direito. Isso vale para as teorias positivistas com ênfase na unidade de Estado e direito, tanto como para as teorias críticas, na medida em que essas tendem a dissolver o direito na política. Enquanto elas ainda fitam, com os olhos arregalados, as lutas pelo poder no palco mundial da política internacional – no qual a globaliza-ção jurídica somente transcorre com abrangência limitada –, ignoram os processos dinâmicos, em outros setores da sociedade mundial, que produzem os fenômenos do direito global à distância da política. A razão decisiva dessa produção jurídica distante da política reside no fato de que o acoplamento estrutural do sistema po-lítico e do sistema jurídico por meio de constituições não conta com uma instância correspondente no plano da sociedade mundial (TEUBNER, Gunther. A Bukowina Global: sobre a emergência de um pluralismo jurídico transnacional. Impulso: Revista de Ciências Sociais e Humanas, , Piracicaba, UNIMEP, v. 14, n. 33, jan./abr. 2003).

3 TEUBNER, Gunther. O Direito como Sistema Autopoiético. Tradução de José Engrá-cia Antunes. Lisboa: Calouste, 1993. p. 129.

4 Idem, p. 130.

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da hetero-regulação através de auto-regulação5 que vai se dedicar nas próximas linhas, propõe-se a elucidar, para tanto, o sentido de uma variedade de novos conceitos.

Teubner inicia este ponto preceituando que a expressão pro-cessualização do direito é frequentemente objeto de confusão de na-tureza técnico-jurídico, sendo comum vê-la interpretada como uma espécie de conselho endereçado ao legislador no sentido de este renunciar às normas substantivas em favor de normas puramente processuais. No entanto, esclarece que processualização tem menos o sentido de recomendação técnico-legislativa e mais o de reação ao desenvolvimento teórico: da evolução da teoria da argumentação ju-rídica para uma concepção processualista do discurso jurídico e da ênfase crescente do alcance da regulação processual.

Acentua o autor que as normas substantivas mantêm-se in-dispensáveis, só que o processo da respectiva produção deve ceder lugar a outras processualizações socialmente adequadas. A questão é a de saber, então, se a regulação deverá ser fruto de uma política econômica do Estado intervencionista (em que o direito implementa programas de regulação) ou deverá processar-se através de meca-nismos descentralizados de autorregulação (em que o direito estatal se limita a regular as condições de base dos processos)6.

5 Em Direito, Sistema e Policontexturalidade, o autor, trabalhando com a Crônica de uma Morte Anunciada, assevera que o fechamento do discurso em relação ao di-reito não é exclusivo do ritual de honra de sociedades arcaicas, e sim uma caracte-rística da sociedade moderna. Evidentemente, parece até que as coisas pioraram em sociedades fechadas, diz ele. Particularmente com o colapso dos grands récits, que ainda podiam tornar possível algo como um superdiscurso social, alastra-se, hoje em dia, a perspectiva da moda, segundo a qual os discursos sociais são, atual-mente, mais do que nunca, confrontados com uma dissociação dos seus sistemas de regras, uma variedade de jogos de linguagem, a diferenciação de subsistemas da sociedade, a clausura operacional da autopoiese, a variedade de grupos semió-ticos, e assim por diante (TEUBNER, Gunther. Direito, Sistema e Policontexturalida-de. Piracicaba: Unimep, 2005. p. 29).

6 Teubner diz que a questão de saber que tipo de orientação poderia guiar um dis-curso jurídico processualizado encontra em Ladeur uma resposta iluminante. Na obra Prozedurale Rationalität o mesmo propõe uma compreensão processualista do direito, a qual não é baseada em valores primários tais como razoabilidade e consenso, mas em secundários especificamente processuais, capazes de manter aberta uma variedade de alternativas e de assegurar a respectiva mutabilidade (TEUBNER, Gunther. O Direito como Sistema Autopoiético. Tradução de José Engrá-cia Antunes. Lisboa: Calouste, 1993. p. 136).

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Como segundo mal-entendido, atinente ao plano político-jurí-dico, Teubner assinala que autores que interpretam a autonomia so-cial de um ponto de vista puramente normativo, vendo nela um pro-grama destinado a garantir a liberdade social, identificam o direito reflexivo com as ideologias neoliberais, as estratégias de desregula-ção e autorregulação. Porém, da perspectiva do direito, é a dimensão fática, mais do que a normativa, da autonomia social, que prevalece, explicando que a autonomia social coloca juristas/políticos perante o problema de determinar exatamente o objeto das regulações jurí-dicas por eles mesmos criadas, independentemente do fato de estas visarem a libertação ou a restrição política das forças do mercado.

Por fim, Teubner pontua a comum confusão teórico-jurídica: Estaremos aqui lidando com uma teoria analítico-explicativa da evo-lução do direito-na-sociedade? Ou estaremos antes perante uma vi-são normativa (que como que “tira de si própria” certas evoluções jurídicas)? O autor afirma que se está diante de uma natureza dualis-ta, simultaneamente normativa e analítica do direito reflexivo. Refle-xibilidade no direito significa, pois, quer análise empírica da posição histórica atual do direito no contexto social, quer avaliação e seleção normativa7.

Concluindo o tópico, Teubner denuncia que esses mal-enten-didos insistem em aspectos marginais da essência do problema, ou seja, de como o direito lida com a sua própria autopoiese e a auto-poiese dos demais subsistemas sociais.

Recapitulando as ideias fundamentais da teoria autopoiética8, o autor examina que o sistema jurídico dos nossos dias pode ser visto

7 Neste momento esclarece que não é qualquer debate teórico no sistema jurídico que possa reconduzir-se à ideia de direito reflexivo: de direito reflexivo poder-se-á falar se, e apenas se, o sistema jurídico se identifica a si mesmo como um sistema autopoiético num mundo de sistemas autopoiéticos, e extraí dessa autoidentifica-ção consequências operacionais (TEUBNER, Gunther. O Direito como Sistema Auto-poiético. Tradução de José Engrácia Antunes. Lisboa: Calouste, 1993. p. 138).

8 A sociedade é entendida como um sistema autopoiético de comunicação. A partir do circuito de comunicação geral, desenvolvem-se circuitos comunicativos es-pecíficos. Alguns deles atingem um grau tão elevado de autonomia a ponto de transformarem-se em sistemas autopoiéticos de segundo grau. Unidades de co-municação autônoma, autorreprodutivas, gerando os seus próprios elementos, estruturas, processos e fronteiras, construindo o seu próprio meio envolvente e definindo a sua própria identidade. Esses componentes sistêmicos são, por sua

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como um sistema autopoiético de segundo grau: Trata-se de um sis-tema constituído por atos de comunicação particulares gravitando em torno da distinção “legal/ilegal”. Tais atos comunicativos definem as fronteiras do próprio sistema jurídico. Nas suas operações, o sis-tema jurídico constrói um meio envolvente próprio, no sentido estri-to de modelo interno do mundo exterior9.

Nesse sentido, assinala que a problemática da produção legis-lativa do direito encontra-se justamente nesta dupla autonomia: na autopoiese do direito e na autopoiese dos sistemas sociais. O fato é que, se autonomia significa, por definição, autorregulação, então, como é possível a legislação enquanto hetero-regulação?

O autor comenta que a resolução de conflitos através do direito pode ser construída como autorregulação jurídica operando exclu-sivamente dentro do sistema jurídico: o sistema jurídico detecta a presença de conflitos através de sensores especificamente jurídicos, reconstruindo-os como conflitos de expectativas jurídicas e proces-sando-os através de normas. Os problemas, adverte, começam quan-do se trata de implementar decisões judiciais concretas, tornando-se necessário para o direito desenvolver laços com a realidade social.

Em suma, para a sociedade, tudo o que o direito legislado pro-duz é ruído no mundo exterior, reagindo a sociedade a essas resso-nâncias externas através da mudança da sua ordem interna. Ou seja, não há intervenção direta. A autonomia social, enquanto problema para o legislador consiste numa relação de dupla circularidade10. Como romper, então, a clausura própria do circuito comunicativo do

vez, hiperciclicamente constituídos, no sentido em que se encontram articulados entre si no seio de um hiperciclo. Constituem unidades que vivem em clausura operacional, mas também em abertura informacional-cognitiva (TEUBNER, Gun-ther. O Direito como Sistema Autopoiético. Tradução de José Engrácia Antunes. Lisboa: Calouste, 1993. p. 139).

9 TEUBNER, Gunther. O Direito como Sistema Autopoiético. Tradução de José Engrá-cia Antunes. Lisboa: Calouste, 1993. p. 140-141.

10 Em “A Bukowina Global”, o autor ressalta que uma teoria jurídica das fontes do direito deveria concentrar a sua atenção em processos “espontâneos” de formação do direito que compõem uma nova espécie e se desenvolveram – independente-mente do direito instituído pelos Estados individuais ou no plano interestatal – em diversas áreas da sociedade mundial (TEUBNER, Gunther. A Bukowina Global: sobre a emergência de um pluralismo jurídico transnacional. Impulso: Revista de Ciências Sociais e Humanas, Piracicaba, Unimep, v. 14, n. 33, jan./abr. 2003).

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direito e penetrar nos circuitos próprios dos subsistemas sociais re-gulados é o questionamento que Teuber se propõe a resolver.

3 MODELOS DA AUTONOMIA SOCIAL; CLAUSURA, CIRCULARIDADE, RESISTÊNCIA; A OBSERVAÇÃO INTERSISTÊMICA

Usualmente, o fenômeno da autonomia social é tratado no de-bate jurídico em termos de uma simples liberdade dos autores indi-viduais de se afastarem da norma jurídica e da correspondente ne-cessidade do desenvolvimento de estratégias apropriadas. Perante a violação das normas jurídicas, os juristas reagem através da introdu-ção de novas normas: de normas que proíbem justamente a violação das normas jurídicas.

Para os sociólogos do direito o grau de imperatividade de uma norma é determinado pela relação entre obediência social e severi-dade sancionatória da mesma: sempre que a autonomia viole a lei, a solução reside em agravar a severidade das sanções normativas.

Tal problemática é retomada em law in the books versus law in the action, em que, reconhecendo-se a existência de esferas sociais au-tônomas, concebe-se que o acesso recíproco é apenas possível através de um processo de observação mútua11. Indo mais além, vários mode-los de filtragem e cibernéticos input-output ocupam-se diretamente desse problema da autonomia sistêmica, tematizando expressamente a questão das contradições entre os vários subsistemas sociais.

A esta altura Teubner desenvolve as teorias que trabalham com a transformação dos programas regulatórios quando estes chocam com as estruturas sociais autônomas12: Podgoreckj e os três níveis 11 Não obstante isso, Teubner postula que parece mais perto da verdade aqueles que

atribuem as regulatory failures às estruturas de poder e aos grupos de interesse. Porém ao sublinhar-se o caráter estrutural desses interesses (os quais são capa-zes de desenvolver estratégias aptas a contrariar e iludir os esforços do direito regulatório), mostra-se à evidência que o poder constitui um mero epifenômeno, ficando assim de fora e irrespondida a questão das contradições (inter)sistêmicas (TEUBNER, Gunther. O Direito como Sistema Autopoiético. Tradução de José Engrá-cia Antunes. Lisboa: Calouste, 1993. p. 146).

12 Adentrando antes nas teorias da mismath das estruturas regulatórias e regula-das, em que os insucessos regulatórios são atribuídos àquele desencontro entre

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de efetividade do direito, que defende que esse sofre uma modifi-cação fundamental ao atravessar o sistema global, o subsistema e a psique individual; Moore e os domínios sociais semiautônomos, que acentua o conflito entre leis e mecanismos de controle social operan-do no seio dos vários subsistemas; as concepções que perspectivam o direito e a sociedade como portadores de lógicas internas próprias e atribuem os efeitos patológicos desse fenômeno à diferença das estruturas, motivações e racionalidades organizacionais, conheci-da colonização do mundo-da-vida de Habermas; finalizando com os modelos cibernéticos input-output desenvolvidos pela teoria dos sistemas abertos, que defendem que os inputs jurídico-regulatórios sofrem uma radical transformação através de processos autônomos de conversão no contexto social.

O autor diz que, apesar de com eles manter algumas semelhan-ças, o modelo autopoiético difere dos modelos acabados de referir em três aspectos essenciais, trazendo, como ponto de partida, a clau-sura sistêmica: Ao passo que qualquer dos modelos referidos parte do postulado da possibilidade de uma intervenção direta, o sistema autopoiético trabalha com uma clausura operacional dos sistemas sociais que torna impossível a participação de um sistema na auto-poiese de outro13. Para esta teoria, muito embora o meio envolvente do sistema possua uma existência real, ele permanece inacessível às operações do sistema, que apenas poderá operar através de sua pró-pria construção intrassistêmica desse mesmo meio.

instrumentos regulatórios e a lógica interna própria do domínio de regulação, sen-do então proposta a introdução de instrumentos regulatórios apropriados à área regulada em causa, bem como, nos modelos de congruência, que procuram resol-ver o problema da conciliação de programas políticos, instrumentos regulatórios e estruturas nas áreas reguladas (TEUBNER, Gunther. O Direito como Sistema Auto-poiético. Tradução de José Engrácia Antunes. Lisboa: Calouste, 1993. p. 147-148).

13 Teubner, trabalhando mais uma vez com a Crônica de uma Morte Anunciada, res-salta que não nos encontramos diante de um conflito de normas no interior de um discurso, mas de um choque de discursos colidentes entre si, de um irreconciliá-vel conflito de diferentes sistemas de regras. A tematização do direito permanece excluída no decurso de todo acontecimento sangrento. Acontece uma “injustiça” com o direito: ele não é ouvido. O idioma da honra imuniza-se contra o idioma do direito. A lógica própria do discurso sobre a reparação da honra o proíbe de ser formulado em categorias jurídicas (TEUBNER, Gunther. Direito, Sistema e Policon-texturalidade. Piracicaba: Unimep, 2005. p. 28).

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Tendo em vista isso, os modelos legislativos deixam de poder ser concebidos na base de meros esquemas input-output ou em ter-mos de simples troca de informação entre direito e sociedade. Teuber alerta que temos de abandonar a velha ideia segundo a qual as nor-mas jurídicas produziriam diretamente mudanças sociais, em favor de uma causalidade circular interna, sujeita a influências modelado-ras e a choques exógenos. Não é o legislador que cria ordem nos sub-sistemas sociais, mas são os próprios subsistemas que, lançando mão seletiva e arbitrariamente daquela, criam a sua própria ordem14.

Dando um passo adiante, lembra que a natureza da autono-mia sistêmica é qualitativamente diferente. A autonomia tem sido regularmente vista como autorregulação. Para a teoria autopoiéti-ca, entretanto, autonomia significa antes circularidade. O entendi-mento dessa autonomia pode ser duplo: (i) para aqueles que parti-lham de uma visão estrita da autopoiese, a autonomia é identifica-da como autorreprodução circular dos elementos de um sistema; (ii) de acordo com uma outra visão, autonomia identifica-se com a circularidade própria de todo e qualquer fenômeno de autorrefe-rência social.

Nessa perspectiva, a autopoiese social representa apenas uma forma particular da autonomia social. Toda vez que um sistema se vê confrontado consigo mesmo na realidade social, emerge uma relação de autodeterminação impossível de ser condicionada do exterior: é isso que significa a autonomia15. A autonomia social, enquanto pro-blema para o fenômeno legislativo, deve assim ser entendida como uma realidade gradativa, contesta o autor: No lugar da rigidez infle-xível da autopoiese de que falava Maturana e Luhmann, devemos an-tes ver os subsistemas sociais como realidades dotadas de diferentes

14 TEUBNER, Gunther. O Direito como Sistema Autopoiético. Tradução de José Engrá-cia Antunes. Lisboa: Calouste, 1993. p. 150-151.

15 Para ilustrar tais observações, Teubner cita o exemplo da autonomia do sistema econômico, que consiste não apenas na autorreprodução dos seus próprios ele-mentos (pagamentos), mas também na autoprodução das suas estruturas (pre-ços), na orientação do primeiro em direção a uma crescente capacidade de paga-mentos (lucros) e nas suas formas de auto-observação (teoria e política econô-mica) (TEUBNER, Gunther. O Direito como Sistema Autopoiético. Tradução de José Engrácia Antunes. Lisboa: Calouste, 1993. p. 152).

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graus de autonomia, suscetíveis de colocar ao legislador uma varie-dade de diferentes problemas, na medida em que esses mesmos sis-temas formam os respectivos circuitos de autorreferência.

Finalmente consigna que o modelo autopoiético oferece claras indicações sobre a natureza da resistência oferecida pela autonomia social ao fenômeno legislativo. Teubner ressalta que não se trata sim-plesmente de um mero conflito entre normas jurídicas e sociais, mas sim uma questão de manutenção da circularidade, desde a menor operação autorreferencial até a autopoiese do sistema inteiro: Isto é mais e diferente da resistência dos habitantes de Bukowina16 a um direito oficial centralizado, assim como distinto da velha questão da manutenção sistêmica. A resistência dos subsistemas sociais torna- -se patente em dois aspectos diferentes, a saber, na indiferença à sua adequação ao meio envolvente e na imunidade as medidas político-re-gulatórias introduzidas. A resistência de uma autonomia social assim entendida força o fenômeno legislativo a desenvolver-se de um modo determinado pela dupla seletividade da autopoiese jurídica e social.

Ultrapassada essa etapa, observa o autor que seria hora de ten-tar analisar em que medida as ideias de um direito reflexivo pode-rão contribuir para que esse processo possa transpor os obstáculos colocados pela autonomia social ao processo legislativo. Sustenta,

16 Em “A Bukowina Global”, o autor trabalha com as feições de um direito mundial além das ordens políticas nacional e internacional, apresentando, como base de suas reflexões jurídicas, demonstrações de que setores sociais produzem normas com autonomia relativa diante do Estado-nação, formando um ordenamento jurí-dico sui generis. A reflexão é feita com base em três teses sobre o direito global. A primeira versa sobre a teoria do pluralismo jurídico como teoria jurídica reade-quada às novas fontes do direito, levando em conta, assim, os processos espontâ-neos da formação de direito na sociedade mundial que se revelam independentes das esferas estatais e interestatais. A segunda afirma que direito global não é di-reito internacional, mas constitui, isso sim, um ordenamento jurídico distinto do Estado-nação acoplado a processos sociais e econômicos, dos quais recebe seus maiores impulsos. Finalmente, desenvolve-se a tese de que a distância desse novo direito mundial da política nacional e do direito internacional não significa a for-mação de um direito apolítico, alegando que o jeito de agir dos novos atores jurí-dicos globais contribui para a sua repolitização não por meio de políticas institu-cionais tradicionais, mas de processos pelos quais o direito é acoplado a discursos sociais altamente especializados e politizados (TEUBNER, Gunther. A Bukowina Global: sobre a emergência de um pluralismo jurídico transnacional. Impulso: Revis-ta de Ciências Sociais e Humanas, Piracicaba: Unimep, v. 14, n. 33. jan./abr. 2003).

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porém, que os obstáculos mostram-se inultrapassáveis, por isso só nos resta recorrer a estratégias indiretas para enfrentar o problema, não podendo a própria reflexividade almejar senão a desempenhar uma modesta função de despiste de tais obstáculos: A autonomia dos subsistemas sociais os torna inacessíveis à intervenção jurídica direta. Possíveis são apenas intervenções indiretas, as quais, todavia, acarretam consigo consequências subsidiárias e negativas17, cujas questões Teubner se propõe a estudar.

O autor inicia o presente tópico trabalhando com a situação emblemática em que o legislador impõe um congelamento dos pre-ços na economia: Trata-se de uma situação normalmente vista como um caso evidente de intervenção jurídica direta no sistema econô-mico. Todavia, da perspectiva autopoiética, analisa o mesmo, não representa senão um ato de observação, em que o direito observa a economia. Observa as suas próprias operações e imagina o funciona-mento do sistema econômico deste ou daquele modo18.

Ou seja, no caso do sistema jurídico, o processo de subsunção de um determinado fato não consiste na transladação de informação procedente da envolvente para o sistema jurídico e de comparação com o material já aí existente, corresponde antes a uma reconstru-ção interna pelo direito da sua própria realidade social envolvente, sendo indiferente a mudança de sistema de referência: Quando con-sideradas no cálculo econômico, as normas jurídicas não são tidas em conta em virtude da sua validade normativa, mas na simples qua-lidade de itens no quadro de cálculos custo-beneficio.

17 TEUBNER, Gunther. O Direito como Sistema Autopoiético. Tradução de José Engrá-cia Antunes. Lisboa: Calouste, 1993. p. 155.

18 Esta ideia de um meio envolvente construído constitui um traço bem característico do construtivismo epistemológico constata Teubner: A existência do meio envol-vente é assim pressuposta antes que negada, diz o mesmo, citando von Foster, para quem existe de fato algo como um meio envolvente, embora sistemas cognitivos a ele não tenham acesso direto, podendo apenas observá-lo. O fato é que um proces-so ocorre no interior do próprio sistema, não permitindo nem o acesso sistêmico à realidade, nem inversamente da realidade exterior ao interior do sistema. Na base do modelo construtivista, as comunicações jurídicas constroem a realidade jurídi-ca no chamado tipo ou hipótese legal de uma norma jurídica. Desse modo, nos atos legislativos, o direito como que inventa o seu próprio meio envolvente (TEUBNER, Gunther. O Direito como Sistema Autopoiético. Tradução de José Engrácia Antunes. Lisboa: Calouste, 1993. p. 157).

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Os administradores das empresas não têm qualquer dever ético de obedecer às leis de regulação econômica apenas porque tais leis existem. Eles são obrigados a determinar a importância dessas leis. A ideia está baseada no pressuposto de que esses ad-ministradores não apenas podem, como também devem, violar tais normas sempre que tal seja economicamente proveitoso. De um ponto de vista construtivista, evidencia Teuber, essas intervenções devem ser entendidas como observações recíprocas entre dois sis-temas de comunicação.

Tal compreensão conduz à ideia de que a informação é pro-duzida exclusivamente dentro do sistema e não transferida de sub-sistema para subsistema. As observações recíprocas dos sistemas sociais, nesse sentido, não variam arbitrariamente, mas antes evo-luem segundo padrões similares de variação (covariação). Os atos jurídicos devem satisfazer, assim, a autopoiese de ambos os siste-mas (jurídico e regulado): disto depende o respectivo sucesso regu-latório, considera Teubner.

A propósito do presente, o autor traz a ideia da Estratégia de Conhecimento, que ensina que a solução para qualquer problema re-lativo à adequação social do direito num determinado domínio ou área de regulação deve consistir em tornar o aparelho mais inteligen-te, ou seja, o sistema jurídico deve aumentar os seus conhecimentos sobre os processos, funções e estruturas reais do subsistema social regulado e moldar as respectivas normas de acordo com modelos científicos dos sistemas envolventes19.

Teubner, no entanto, afirma que tal modelo mostra-se irre-alista no que concerne à pressuposta racionalidade dos agentes e incompleto no que concerne à consideração dos mecanismos jurí-dicos intrassistêmicos de seleção. Refere, porém, que sua utilidade mantém-se, eis que ele implica não apenas que o sistema jurídico

19 Para refletir essa concepção, o autor traz, ilustrativamente, o seguinte caso: Uma situação jurídica, tida como ineficiente do ponto de visita econômico, é trazida pelos operadores econômicos aos tribunais sob a forma de uma ação judicial. A de-cisão produzirá repercussões no sistema econômico, dando origem a novas ações até que os princípios estabelecidos nas decisões judiciais hajam atingindo o cha-mado óptimo de pareto (TEUBNER, Gunther. O Direito como Sistema Autopoiético. Tradução de José Engrácia Antunes. Lisboa: Calouste, 1993. p. 163).

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é, por assim dizer, como que condicionado pela desordem exterior, mas também que pode tornar-se deliberadamente mais sensível a essa mesma desordem.

Diz que o problema nem é tanto esse, mas mais o de expor tais concepções aos mecanismos evolutivos, que encontra sua mais evidente expressão na variação das condições de acesso à justiça: O aumento do número de tipos possíveis de ação judicial, as ações co-letivas e o reconhecimento de personalidade judiciária a entidades associativas não personificadas, são todos exemplos da tentativa de influenciar o processo de coevolução do sistema jurídico e do sub-sistema regulado.

O autor conclui, nessa senda, registrando que se trata, sem dúvida, de uma forma de regulação extremamente indireta, consis-tente em influenciar processos de coevolução sistêmicos através do aumento deliberado das possibilidades de variação dentro do siste-ma jurídico. Boa ou má, esta é a única que verdadeiramente respeita a natureza autônoma autorreferencial do sistema jurídico, que, por definição, nos ensina que este só poderá afinal regular outros subsis-temas sociais regulando-se a si próprio20.

4 A INTERFERÊNCIA INTERSISTÊMICA; ALGUNS PROBLEMAS COM A INTERFERÊNCIA INTERSISTÊMICA; COMUNICAÇÃO PELA ORGANIZAÇÃO

Na perspectiva dessa coevolução dos sistemas autopoiéti-cos, a lei aparece verdadeiramente como hetero-regulação através de autorregulação. De acordo com essa visão, diz o autor que, para Bechmann, o direito não pode funcionar como um instrumento de controle ou regulação para outros subsistemas sociais, eis que os sistemas apenas observam outros sistemas, nada mais, bem como cita Luhmann, que afirma que não existe ainda explicação teorética satisfatória acerca do modo como os sistemas autopoiéticos, essen-cialmente autorregulatórios, podem regular outros sistemas.

20 TEUBNER, Gunther. O Direito como Sistema Autopoiético. Tradução de José Engrá-cia Antunes. Lisboa: Calouste, 1993. p. 165.

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Teubner assevera que os detratores da teoria sistêmica têm na-turalmente lançado mão deste dilema para demonstrar a pretensa incapacidade da teoria dos sistemas para fornecer um real contribu-to aos problemas regulatórios do direito moderno: para aqueles, a teoria resume-se a uma concepção da sociedade como um grupo de nômades, incapazes de se influenciarem diretamente entre si, mas, quanto muito, capazes de meras adaptações.

Coloca que há, todavia, várias maneiras de tentar resolver esse problema, trabalhando, inicialmente, com a ideia de encarar o di-lema sob a perspectiva das relações intersistêmicas21. Trazendo o exemplo dos sistemas de negociação neocorporativa, onde há uma comunicação entre os mais importantes subsistemas funcionais, diz que o sistema jurídico e econômico constroem postos frontei-riços especializados capazes de intercomunicação, tornando-os as-sim mutuamente acessíveis. Refere que esta visão, porém, não está isenta de problemas: o sistema jurídico e o econômico não possuem, enquanto tais, capacidade de ação. Em sociedades altamente dife-renciadas, apenas um pequeno setor desses subsistemas se encon-tra formalmente organizado. Registra que mesmo que se aceitassem essas consequências, construindo-se comunicações intersistêmicas em termos de comunicação interorganizacional, o problema não se resolveria, mas se tornaria mais complexo22.

Em seguimento, analisa como possível solução, a exploração da diferença entre clausura operativa sistêmica e abertura cognitiva

21 Teubner ressalta no artigo “A Bukowina Global” que se forma um novo direito de re-gulamentação de conflitos, que deriva de conflitos “inter-sistêmicos”, em vez de con-flitos “inter-nacionais”. No curso da globalização, órgãos legislativos gerais perderão em importância. O direito mundial se forma antes em processos auto-organizados de “acoplamento estrutural” do direito a processos globalizados correntes de natu-reza altamente especializada e tecnicizada. para as formações estatais do passado, a unidade do direito era um dos bens políticos supremos, símbolo da identidade nacional e, simultaneamente, de justiça (quase) universal. Uma unidade do direito em escala mundial tenderia, porém, a ameaçar a cultura jurídica. O problema central da evolução do direito será assegurar, em um direito mundialmente unificado, uma variedade ainda suficiente de fontes do direito (TEUBNER, Gunther. A Bukowina Glo-bal: sobre a emergência de um pluralismo jurídico transnacional. Impulso: Revista de Ciências Sociais e Humanas, Piracicaba, UNIMEP, v. 14, n. 33, jan./abr. 2003).

22 TEUBNER, Gunther. O Direito como Sistema Autopoiético. Tradução de José Engrá-cia Antunes. Lisboa: Calouste, 1993. p. 167-168.

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ao meio envolvente. Questionando se não poderia essa abertura ser utilizada para estabelecer um contato direto com o meio envolvente, permitindo canalizar fatores exteriores para circuitos operacionais intrasistêmicos, o autor esclarece que tal acabaria por conduzir a contradições com os pressupostos essenciais da teoria da autopoiese, eis que, ao contrário dos organismos, que extraem matéria e energia do respectivo meio, os sistemas cognitivos não possuem qualquer contato direto com seu meio envolvente. Sistemas de comunicação interagem apenas com realidades por si mesmo criadas, sendo todas as operações sistêmicas geradas pelo e no próprio sistema.

Analisa, por fim, como terceira solução, a proposta de Luhmann de que, se a informação não pode ser obtida a partir do exterior do sistema, então o contato terá de ser estabelecido através do me-dium23 do sistema. Para ele, haveria uma certa continuidade entre os sistemas sociais e os respectivos meios envolventes. Os sistemas sociais postulariam certos pressupostos comuns, que assim consti-tuiriam o respectivo continuum material. Teubner, acerca do presen-te, consigna que os problemas começam quando se pretende aplicar a ideia à relação entre sociedade e seus subsistemas: Concebendo a sociedade como continuum material do direito, Luhmann acaba por ser levado a concluir que a comunicação social transporta a jurídi-ca, fornecendo mesmo a essa as respectivas estruturas e garantindo participação na construção social. No entanto, diz o autor, essa rela-ção entre sistema jurídico e infraestrutura social reveste um caráter peculiar, não podendo ser submetida na relação geral sistema/conti-nuum material, devendo antes ser objeto de conceituação própria24.

23 Em Unitas Multiplex o autor trabalha também com essa ideia ao abordar a concep-ção que enquanto no plano político é apropriado aceitar o poder legitimado como dominação política e avaliar a sua utilização para introduzir modificações sociais positivas, no plano da organização econômica o poder é quase sempre perspecti-vado de um modo assaz crítico. Uma perspectiva sociológica do poder, definindo-o como um “medium” de comunicação como o dinheiro e o direito, parece oferecer maiores garantias de assepticidade moralista na abordagem do fenômeno do po-der no plano econômico, sem que isso signifique necessariamente ignorar os seus perigos ou legitimá-lo como “funcional” (TEUBNER, Gunther. Unitas Multiplex: a organização do grupo de empresas como exemplo. Revista Direito GV, São Paulo, FGV, v. 1, n. 2, p. 77-110, jun./dez. 2005).

24 TEUBNER, Gunther. O Direito como Sistema Autopoiético. Tradução de José Engrá-cia Antunes. Lisboa: Calouste, 1993, p. 171-172.

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Questionando qual seria a saída, então, para esses circuitos fe-chados de (auto-)observação, enuncia que a chave estaria na interfe-rência de sistemas autopoiéticos resultantes do processo interno de diferenciação de um sistema mais abrangente. É essa interferência25 que possibilita o contato direto recíproco entre sistemas sociais, para além da mera observação, diz o autor, alertando, porém, que as vantagens do contato real são ganhas à custa das desvantagens decorrentes de problemas de informação e motivação.

O fato é que os sistemas de segundo grau têm sua origem num processo de diferenciação interna de um sistema de primeiro grau, ganhando a sua possibilidade de existência sempre que tal processo atinge um ponto tal que os componentes do sistema passam a pos-suir e desenvolver a sua própria autonomia num sentido de clausura autorreferencial. O aspecto interessante neste processo de diferen-ciação é o de que, muito embora os subsistemas assim gerados pro-duzam, por seu turno, os seus próprios elementos, estes elementos emergentes são feitos da mesma matéria-prima do sistema autopoi-ético de primeiro grau, lembra o autor.

Os sistemas sociais utilizam, assim, o fluxo de comunicação so-cial, dele extraindo comunicações especiais como novos elementos: utilizam as estruturas sociais (expectativas) para a construção de normas jurídicas e as construções da realidade para a construção da realidade jurídica. É justamente isso que pretende significar a ideia de hiperciclo jurídico, afirma Teubner, eis que, muito embora cons-tituídos de novo e articuladas entre si de forma circular, as unidades de comunicação permanecem comunicações sociais26.

Nessa linha, elementos constitutivos da sociedade e dos subsis-temas sociais coincidem nos atos individuais de comunicação, tornan-do possível a existência de uma relação de conexão virtual entre direi-to e sociedade. Argumenta o autor, com base no presente, que todo ato

25 O mecanismo da interferência funciona como uma espécie de ponte entre os subsis-temas, graças ao qual ultrapassam os horizontes da mera observação. Isso acontece em virtude de três razões, as quais o autor elenca: (i) todos utilizam uma idêntica matéria-prima (sentido); (ii) todos se desenvolvem na base do mesmo elemento crucial (comunicação); (iii) todas as formas de comunicação especializada consti-tuem formas de comunicação social geral (TEUBNER, Gunther. O Direito como Sis-tema Autopoiético. Trad. José Engrácia Antunes. Lisboa: Calouste, 1993. p. 173).

26 Idem, p. 175-176.

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especializado de comunicação jurídica é sempre, simultaneamente, um ato de comunicação social geral, embora com duas peculiarida-des: (i) a informação transmitida é relativa à distinção binária (legal/ilegal); (ii) o sistema jurídico constitui os seus componentes de acordo com critérios diferentes dos utilizados pela sociedade. Isto significa que um e mesmo ato de comunicação está ligado a dois circuitos co-municativos diferentes, um da sociedade e outro do direito.

De tal modo, Teubner conclui o tópico comentando que os sub-sistemas podem fazer algo mais do que observar-se mutuamente ou do que regular-se a si próprios, graças a esse processo de inter-ferência recíproca. Uma tal ligação intersistêmica é garantida pela circunstância da sua partilha num único evento comunicativo, sem que isso implique ou signifique, contudo, qualquer participação na autopoiese própria de cada um.

O preço da interferência entre o direito e o mundo-da-vida con-siste, assim, num efeito de crescente ausência de diferenciação. A co-municação jurídica apenas pode motivar, de forma segura e garantida, outras comunicações jurídicas, sendo, por isso, a sua forma de persua-são no contexto das comunicações sociais gerais, bastante limitada. Da mesma forma, quanto maiores são as filtragens intersistêmicas entre direito e área social regulada, maior é a perda de informação, alerta o autor, passando a estudar o maior grau de flexibilidade na aplicação do direito como saída para estes conflitos de informação e motivação.

Teubner, considerando essa proposta imprópria, eis que, a in-terferência se mostra incapaz de o fazer sem recorrer a meios de pressão extrasistêmicos, diz que uma solução bastante mais elegante pode-se tirar dos velhos institutos do contrato, que usam a interfe-rência sistêmica não para motivar a receptividade no meio envolven-te jurídico, mas justamente para evitar a motivação: A especificida-de do contrato não reside na tradicional autonomia privada, mas na articulação estrutural das autonomias próprias do sistema jurídico e econômico. Impondo restrições sobre si mesmo, o sistema econô-mico está expondo-se ao mesmo tempo a restrições exteriores27.

27 Teubner traz que encontramos um mecanismo similar no instituto dos direitos subjetivos, citando o exemplo da função social, da ideia de abuso de direito e das condições de exercício dos direitos subjetivos, dizendo que isso mostra a evidência

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O autor passa, então, a considerar como possível saída, o direi-to aumentar o seu potencial regulatório através do desenvolvimen-to de uma política de opções, a qual poderia ser corrigida através da observação externa do direito realizada pelos próprios subsiste-mas regulados. A utilização de uma opção seria facultativa, porém, uma vez escolhida, estar-se-ia sempre submetido às respectivas condições de exercício. É neste ponto, afirma, que o direito pode aproveitar e alimentar-se de auto-observações próprias do sistema econômico: Os juristas não deveriam hesitar em aceitar o que lhes é oferecido pelas análises econômicas do direito, utilizando-as para os seus próprios fins regulatórios28. Dessas análises podem os juris-tas retirar uma maior compreensão sobre o que verdadeiramente se passa quando a lógica das estruturas jurídicas choca com a lógica do sistema econômico.

Questionando quais as consequências de semelhante ideia, Teubner menciona que isso significaria uma política jurídica flexível e adaptável a uma variedade de situações. Por outro lado, o aban-dono da atual normatividade das condutas, poderia produzir graves consequências para o funcionamento das normas jurídicas, cuja va-lidade passaria assim a estar dependente do livre-arbítrio dos seus próprios destinatários.

Tal visão, embora recorrente na análise econômica do direito, põe em causa a autoridade da validade jurídica enquanto tal e, por conseguinte, destrói a função do direito enquanto meio de garantia das expectativas. Um tal direito opcional preencheria assim as suas

da instrumentalização do direito por poderosos interesses econômicos, mas, si-multaneamente, a existência de meios políticos e jurídicos de controle (TEUBNER, Gunther. O Direito como Sistema Autopoiético. Tradução de José Engrácia Antunes. Lisboa: Calouste, 1993. p. 186).

28 O autor diz, em “A Bukowina Global”, que a lex mercatoria representaria, nessa perspectiva, aquela parte do direito econômico global que opera na periferia do sistema jurídico em “acoplamento estrutural” direto com empresas e transações econômicas globais. Ela representa um ordenamento jurídico paralegal, criado à margem do direito, nas interfaces com os processos econômicos e sociais (TEUB-NER, Gunther. A Bukowina Global: sobre a emergência de um pluralismo jurídico transnacional. Impulso: Revista de Ciências Sociais e Humanas, Piracicaba, Unimep, v. 14, n. 33, jan./abr. 2003). Nesse sentido ver também ROCHA, Leonel Severo; LUZ, Cícero Krupp. Lex Mercatoria e Governança: a policontexturalidade entre direito e Estado. Revista de Direitos Culturais, v. 1, n. 2, 2007.

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funções de controle das condutas, perdendo, porém, a sua função de previsibilidade e a sua capacidade de regulação de conflitos – o que torna evidente que uma política de opções não pode aspirar a uma aplicação universal, mas antes colher apenas setores bem delimita-dos do direito, pondera o autor29.

Observa, contudo, que não devemos sobreestimar as vantagens de uma regulação opcional: Se o direito abandona a sua pretensão de regular e se limita a oferecer uma regulamentação opcional, então está, afinal, a apostar numa evolução cega do subsistema regulado. A crítica de que o direito nada mais faz, nesse caso, do que permitir a aquisição de mais poder àqueles que já são poderosos, poderia opor- -se, em certa medida, o fato de que uma tal regulação opcional pode-rá, por seu turno, ser condicionada ou ligada a outros mecanismos de intervenção. Ressalta que uma outra possibilidade consistiria em fazer associar condições atrativas a tais opções (concessão de certos privilégios) ou, ainda, em articular impulsos regulatórios pertencen-tes a diferentes lógicas sistêmicas (ligando incentivos econômicos às regulações jurídicas)30.

29 TEUBNER, Gunther. O Direito como Sistema Autopoiético. Tradução de José Engrá-cia Antunes. Lisboa: Calouste, 1993. p. 189.

30 O autor, em Direito, Sistema e Policontexturalidade, cita que num estudo a respei-to da regulação da bolsa de valores, Stenning, Shearer, Addario e Condon descre-vem como o comitê regulador da bolsa identifica pontos críticos de intervenção, com a ajuda de computer-scanning e a análise de transações, em que estabelece, então, irritações para estimular o mercado de ações a se direcionar a uma situa-ção de atrator, próxima do objetivo legislativo da liquidez do mercado acionário. Diz Teubner que os autores do modelo rinoceronte deixaram-se inspirar pelo clássico dos sistemas recursivos, isto é, por Hagenbeck: Suponha-se que se que-ria fazer com que um rinoceronte atravesse a plataforma que liga o navio ao píer. Não bastaria dizer “por favor, meu caro rinoceronte, poderia fazer a gentileza de caminhar sobre essa plataforma?” o rinoceronte não entende essa linguagem. Ainda que alguém invente amarrar uma corda em volta de seu pescoço e ten-tar puxá-lo sobre a pequena ponte, com alguém o cutucando por trás com um porrete, o animal provavelmente enfiaria, de maneira bastante rude, seu chifre no traseiro do homem com a corda. Mas há um ponto fraco no organismo dessa besta: o estômago. Com a sua ajuda podemos nos servir de uma linguagem inter-nacional e cosmopolita, que até animais compreendem. Se você colocar uma mão cheia de comida diante do seu focinho, pode dispensar qualquer outra gentileza (TEUBNER, Gunther. Direito, Sistema e Policontexturalidade. Piracicaba: Unimep, 2005. p. 39-40).

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Neste momento, Teubner recapitula sua construção: Dizendo ter partido da impossibilidade de intervenção jurídica direta em razão da dupla autopoiese, social e jurídica, afirma que analisou como primeira estratégia a observação mútua dos sistemas (que conduz, contudo, apenas a uma coevolução cega), que poderia ser reforçada, entretanto, através da influência (exercida sobre os me-canismos internos de variação do direito). Nessa esteira, argumen-ta ter trabalhado com a ideia de um ligame comunicativo através da interferência (que ocasiona, todavia, graves perdas de informação e motivação), cuja extensão seria uma política de opções. Agora, neste último tópico, propõe-se a investigar, como terceira estraté-gia, a comunicação pela organização.

Inicia a presente, então, lembrando que os subsistemas so-ciais não são, enquanto tais, dotados de capacidade de ação cole-tiva. A fim de assegurar capacidade comunicativa, esses subsiste-mas têm a necessidade de organizações operacionais capazes de agir. A ação dessas organizações não é, todavia, vinculativa para a totalidade do respectivo subsistema. Tais subsistemas compen-sam essa falha através de mecanismos de organização formal que lhes atribuem certos poderes sobre os seus membros. Essas orga-nizações formais, enquanto atores coletivos, podem assim comu-nicar através das fronteiras dos subsistemas funcionais, mas ape-nas sob condição de ser construído um sistema de comunicações intersistêmicas, o qual, por seu turno, se torna progressivamente independente31.

Sucede-se que as organizações formais utilizam igualmente comunicações como elementos do sistema, sob a forma de deci-sões organizacionais, podendo ser ligadas comunicativamente com o direito se estas coincidirem com comunicações jurídicas. Aí aparecem, evidentemente, fortes efeitos de filtragem e de perda de informação e motivação, devidos à diversidade dos contextos sistêmicos. O que torna este desvio comunicativo uma solução in-teressante, em comparação com as outras apresentadas, é o fato de ele abrir o acesso, ainda que midiatizado e indireto, aos mecanis-

31 TEUBNER, Gunther. O Direito como Sistema Autopoiético. Trad. José Engrácia Antu-nes. Lisboa: Calouste, 1993, p. 192.

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mos da autorregulação. Os sistemas de negociação neocorporati-vos32, como um mecanismo de ajustamento recíproco, acentuam o aspecto da limitação das potencialidades próprias de um sistema, graças à consideração das funções dos restantes sistemas. O objeti-vo desta política seria o de garantir a autonomia social no domínio do processo legislativo, através da concessão jurídica de posições de negociação.

Com efeito, o autor pontua que a nova fórmula mágica para o direito moderno seria encontrar um tipo de direito que deixe intacta a autonomia dos subsistemas sociais, mas que, ao mesmo tempo, os encoraje a tomarem reciprocamente em consideração os pressupostos básicos sobre os quais cada um deles está assente. Informação e interferência são assim os dois mecanismos que as-seguram a abertura de sistemas sociais autopoieticamente fecha-dos. Por um lado, o direito produz o seu modelo interno do mundo externo, de acordo com o qual orienta as respectivas operações, através da informação inteiramente selecionada e jamais impor-tada do exterior. Por outro lado, interferências externas entre o direito e a respectiva envolvente social são responsáveis pelo esta-belecimento de uma relação de articulação estrutural entre eles. É a combinação destes dois mecanismos que torna possível a regula-ção social através do direito, ainda que sob formas extremamente indiretas33.

32 Acerca do presente o autor assinala, em Unitas Multiplex, que entre os múltiplos esforços de penetração organizacional dos mercados, aqueles que indubitavel-mente maior atenção despertaram foram os chamados acordos neocorporativos. Esta nova simbiose “voluntária” de capital, trabalho e Estado parece oferecer cer-tas vantagens, seja em face de iniciativas corporativistas precedentes, seja em face de outras formas de socialização, coletivização econômica ou planificação estatal, designadamente ao mostrar-se susceptível de ser construída sobre as estruturas históricas existentes de associações patronais, sindicatos e administração públi-co-estadual, e de pôr estas ao serviço da formulação e implementação regulató-ria. A hipótese neocorporativa mostrou-se assim portadora de uma flexibilidade processual que a tornou mais compatível com as próprias estruturas do sistema econômico do que quaisquer outros sistemas de mediação política (TEUBNER, Gunther. Unitas Multiplex: a organização do grupo de empresas como exemplo. Revista Direito GV, São Paulo, FGV, v. 1, n. 2, p. 77-110, jun./dez. 2005).

33 TEUBNER, Gunther. O Direito como Sistema Autopoiético. Tradução de José Engrá-cia Antunes. Lisboa: Calouste, 1993. p. 195.

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Teubner aponta, em linhas gerais, para o fato de que deixa a relação direito-sociedade de ser concebida à luz de uma ideia de cau-salidade linear, de acordo com as quais as normas jurídicas produ-ziriam diretamente mudanças sociais, para o ser em termos de uma causalidade circular, que apenas deixa espaço para influências inter-sistêmicas modeladoras filtradas e extremamente indiretas.

Assim sendo, o sucesso da intervenção legislativa dependerá sempre da justiça que consiga trazer à dupla seletividade da auto-poiese social e jurídica, eis que, muito embora o fluxo dos eventos extrasistêmicos jamais possa funcionar como fonte de informação direta para o sistema de referência, ele estimula os respectivos pro-cessos evolutivos internos.

O sistema jurídico deveria aprender a transformar novos fatos sociais em fatos juridicamente relevantes, nos quais absorveria a va-riedade desestruturada de sistemas. Nesse ponto, ele retoma uma questão apontada rapidamente por Luhmann no final do livro Direi-to da Sociedade, que é a policontexturalidade. Esta se torna, em um mundo onde o Direito é fragmentado em um pluralismo em que o Estado é apenas mais uma de suas organizações, um referente deci-sivo para a configuração do sentido34.

A morte anunciada deveria, então, ser contada numa crônica dupla. De uma lado, como discurso sobre a honra, o amor e a mor-te, levando inexoravelmente à suspensão da diferença entre honra e violação da honra no ato mortal e, na sua trama normativa, não se deixando irritar pelo direito, mas, na querela de discursos, tor-nando o próprio direito a “vitima” do discurso da honra. De outro lado, na trama normativa do discurso jurídico, como um abalo na invocação enfática da norma promovido pela tragédia, que ocorre com as diversas manobras do delegado de esquivar-se da aplicação da lei, passando pela autoencenação posterior dos irmãos Vicário, pelas digressões líricas do juiz de instrução, pelas deturpações rabu-

34 ROCHA, Leonel Severo. A Produção Sistêmica do Sentido do Direito: da semiótica à autopoiese. In: STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de (Orgs.). Consti-tuição, Sistemas Sociais e Hermenêutica. São Leopoldo: Unisinos, 2010. p. 177-178.

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53O direito como sistema autopoiético

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lísticas na descrição de fato da defesa no processo, até chegar à der-rogação completa da proibição jurídica do homicídio na sentença. Uma verdadeira autorregulação do direito pela sociedade. O drama amor-honra-morte leva o discurso jurídico à racionalização: racio-nalizar obedecendo!35

REFERÊNCIAS

ROCHA, Leonel Severo. A Produção Sistêmica do Sentido do Direito: da semiótica à autopoiese. In: STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de (Orgs.). Constitui-ção, Sistemas Sociais e Hermenêutica. São Leopoldo: Unisinos, 2010.

ROCHA, Leonel Severo; LUZ, Cícero Krupp. Lex Mercatoria e Governança: a po-licontexturalidade entre direito e Estado. Revista de Direitos Culturais, v. 1, n. 2, 2007.

TEUBNER, Gunther. A Bukowina Global: sobre a emergência de um pluralismo jurí-dico transnacional. Impulso: Revista de Ciências Sociais e Humanas, Piracicaba, Uni-mep, v. 14, n. 33, 2003.

TEUBNER, Gunther. Direito, Sistema e Policontexturalidade. Piracicaba: Unimep, 2005.

TEUBNER, Gunther. O Direito como Sistema Autopoiético. Tradução de José Engrá-cia Antunes. Lisboa: Calouste, 1993.

TEUBNER, Gunther. Unitas Multiplex: a organização do grupo de empresas como exemplo. Revista Direito GV, São Paulo, FGV, v.1, n. 2, 2005.

35 TEUBNER, Gunther. Direito, Sistema e Policontexturalidade. Piracicaba: Unimep, 2005. p. 41-42.

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O DEVER DE INFORMAÇÃO NA RELAÇÃO MÉDICO-PACIENTE E A

RESPONSABILIDADE MÉDICA

Amanda Lúcia Araújo LaranjeiraMestranda em Direito dos Contratos e da Empresa pela Universidade do Minho (Bra-ga, Portugal); Advogada-Estagiária; Licenciada em Direito pela Universidade do Mi-nho (Braga, Portugal). E-mail: [email protected].

Fábio da Silva VeigaMestrando em Direito dos Contratos e da Empresa pela Universidade do Minho (Braga, Portugal); Iniciado em Formação à Docência Universitária pela Universidade de Vigo (Espanha); Colaborador Jurídico em Gabinete de Advogados na cidade do Porto (Portu-gal); Bacharel em Direito pela Faculdades Unificadas de Foz do Iguaçu – UNIFOZ; Es-tudante de Licenciatura em Sociologia, Universidade Federal de Santa Maria – UFSM. E-mail: [email protected].

RESUMO:O estudo do Direito Médico em sua generalidade, envolve muitas nuances, espe-cialmente porque neste ramo científico as considerações da casuística é de funda-mental importância para determinar a atuação dos atos médicos. Dessa forma, o presente estudo tem o intuito de buscar diretrizes que esclareçam o campo de irradiação dos atos médicos, notadamente no que se trata aos deveres de diligên-cia de sua atuação; pelo que se verá numa análise comparativa aos pressupos-tos da responsabilidade civil – contratual/extracontratual, subjetiva/objetiva –, dando especial relevo no que concerne ao dever de informação dos profissionais da saúde, baseando-se em fatores que norteiam suas condutas. Outrossim, com-preendendo-se o dever de atuação dos médicos conciliado a uma conduta baseada na devida diligência – mesmo quando da manipulação dos modernos aparelhos de diagnósticos, atentar-se-á que tal conduta deve estar atinada ao padrão da técnica exigida pela lex artix, e uma eventual “ignorância” deste critério, pos-sibilita a responsabilização do médico. Assim sendo, verificar-se-á que o termo “responsabilidade civil dos médicos” concilia-se com o instituto que cuida dos comportamentos humanos juridicamente relevantes, isto é, que têm consequên-cia na ordem jurídica, e que, na sua divisão mais fundamental, são suscetíveis de se traduzir na violação de direitos restritivos da personalidade do paciente. Estes, por seu turno, vinculados ao direito da autodeterminação do paciente, com reflexos no direito à integridade física, psíquica, e moral. Ademais, tem-se como paradigma do presente estudo considerações que partem da inspiração do ordenamento jurídico português, assim como a grafia adotada é o português de Portugal, conforme o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.Palavras-chave: Dever de informação. Responsabilidade civil médica. Autodetermi-nação.

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SUMÁRIO:1. Considerações Iniciais. 2. A Natureza da Obrigação Médica. 3. O Dever de Informação na Relação Médico-Paciente.

3.1 Um dever enquadrável na leges artis e a sua autonomização face ao con-sentimento.

3.2 O conteúdo e o modo de transmissão da informação. 3.3 Os critérios dogmáticos que podem ajudar na tarefa da interpretação ade-

quada da informação. 3.4 Dever de informação sobre o tratamento médico e os seus riscos.

4. O Consentimento Informado. 4.1 Como elemento das leges artis. 4.2 Caraterísticas. 4.3 Pressupostos normativos no Direito Português.

5. A Responsabilidade Civil Médica. 5.1 A responsabilidade subjetiva como critério geral. 5.2 A Lex Artis.5.3 Os requisitos da responsabilidade civil pela omissão da informação médica. 5.4 A violação do dever de informação: ilicitude.5.5 Uma questão além do prejuízo como fundamento da responsabilidade civil

médica. 6. Considerações Finais. • Referências.

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O estudo do Direito Médico, em sua generalidade, envolve mui-tas nuances, especialmente porque, neste ramo científico, as consi-derações da casuística são de fundamental importância para deter-minar a atuação dos atos médicos. Nisso, o presente estudo tem o intento de buscar diretrizes que tragam a lume o campo de radiação dos atos médicos, notadamente no que se trata aos deveres de dili-gência de sua atuação, e pelo que se verá numa análise pelos institu-tos do dever de informação dos profissionais da saúde, fatores que norteiam suas condutas.

Outrossim, uma vez compreendido o dever de atuação dos mé-dicos1, conciliado a uma conduta baseada na devida diligência – mes-mo quando da manipulação dos modernos aparelhos de diagnósti-cos, deve se atentar que esta conduta deve estar atinada ao respeito à lex artis, e uma eventual “ignorância” a este critério, possibilita a responsabilização do médico.

1 Adotaremos uma abordagem geral no que se trata aos médicos, sendo entendido, de igual modo, os profissionais da área da saúde.

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Assim sendo, verificar-se-á que o termo “responsabilidade civil dos médicos” concilia-se com o instituto que cuida dos comporta-mentos humanos juridicamente relevantes, isto é, que têm conse-quência na ordem jurídica, e que, na sua divisão mais fundamental, são suscetíveis de se traduzir na violação de direitos restritivos da personalidade do paciente. Estes, por seu turno, vinculados ao direi-to da autodeterminação do paciente, com reflexos no direito à inte-gridade física, psíquica e moral.

2 A NATUREZA DA OBRIGAÇÃO MÉDICA

Parte-se da consideração, em princípio, de que a obrigação do médico não está relacionada a uma obrigação de resultado (a saúde do paciente), mas sim, relaciona-se a uma prestação de serviço que mais se adeque a fim de obter o resultado desejado pelo paciente (sua saúde). Por assim dizer, o resultado sempre estará presente na obrigação, mas é na atividade que se encontra o objeto da obrigação, enquanto que no resultado seu objeto é o resultado mesmo. Isto, em decorrência, há de implicar duas consequências: a distribuição do ris-co e conceito de incumprimento, total ou parcial, no último caso, tam-bém denominado incumprimento defeituoso.

Assim sendo, no cumprimento da obrigação de atividade, este executa a prestação consistente em tal atitude (executar) e deve cumprir com sua execução de uma forma adequada e correta. Já na obrigação de resultado, o sujeito devedor de uma obrigação de re-sultado executa a prestação sob seu próprio risco, posto que tão só haverá cumprimentos se houver a produção de um resultado. Dessa forma, e no caso em apreço relacionado à atividade médica, para o cumprimento ser realizado, por se tratar de uma obrigação de ati-vidade, basta de partida, uma conduta diligente para que se consi-dere cumprido, ainda que não chegue ao resultado desejado. O que determina o cumprimento não é a existência do resultado, mas, so-bretudo, a execução adequada e correta, isto é, levada de uma forma diligente com a consecução de obter aquele resultado.

Por conseguinte, não se pode olvidar que na obrigação de re-sultado, a não obtenção deste, implica o incumprimento da obriga-ção, fazendo com que se presuma a culpa, por sua vez, na obrigação

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de atividade (meio), faz-se necessário a prova da falta de diligência, para apreciar o incumprimento. Ainda neste peculiar, tem-se que a falta de diligência no desenvolver da atividade pode produzir um dano, e sendo este desproporcional em relação à causa que o mo-tivou – atividade médica –, resultar-se-á em responsabilidade civil.

3 O DEVER DE INFORMAÇÃO NA RELAÇÃO MÉDICO-PACIENTE

3.1 Um dever enquadrável na leges artis e a sua autonomização face ao consentimento

O dever de informação constitui o cerne de toda a teoria do consentimento esclarecido, que se começou a desenvolver ao nível da relação médico-paciente, por decorrência do direito penal médi-co ou direito penal da medicina.

A finalidade do dever de informação2 consiste em “permitir que o paciente faça conscientemente a sua opção, com responsabilidade própria face à intervenção, conhecendo os custos e consequências bem como os seus riscos, assumindo-se assim o doente como senhor do seu próprio corpo”3. Neste sentido, “ao médico deve-se impedir não apenas realizar intervenções sem consentimento, mas também o de [não] pôr-em-perigo arbitrários bens jurídicos pessoais”, sendo que por isso, a par da exigência do consentimento, o dever de escla-recer4/informar veio para as “luzes da ribalta do direito”5, denotan-do a relevância de um consentimento informado6 ou esclarecido.

2 O termo “informação” e “esclarecimento” são utilizados como sinónimos ao longo deste relatório.

3 PEREIRA, André Gonçalo Dias. O Consentimento Informado na Relação Médico-Pa-ciente – Estudo de Direito Civil. Coimbra: Coimbra, 2004. p. 56.

4 Art. 38, n. 1 do Código Deontológico dos Médicos: “O médico deve procurar escla-recer o doente, a família ou quem legalmente o represente, acerca dos métodos de diagnóstico ou de terapêutica que pretende aplicar”.

5 PEREIRA, André Gonçalo Dias. O Consentimento Informado na Relação Médico-Pa-ciente – Estudo de Direito Civil. Coimbra: Coimbra, 2004. p. 61.

6 Souza salienta que consentimento informado ou esclarecido, pode ser definido como “aquela decisão voluntária, tomada após o processo informativo e delibe-rativo, visando à aceitação de uma determinada intervenção (tratamento ou ex-perimentação), sabendo a sua natureza, suas consequências e seus riscos”, cons-

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O dever informação constitu, por isso, uma exigência que de-riva da regra da arte médica, tratando-se de um dever enquadrável dentro da chamada lex (ou leges) artis7, que se caracteriza segundo Vinicius Souza8, como um “dever de cuidado que se impõe ao médico no exercício da sua profissão, e caso seja violado pode levar à sua responsabilização penal ou [civil] por culpa, comissiva ou omissiva (omissão imprópria), se for produzido um resultado no paciente”.

Anota Gonçalo Pereira9 que o dever de informar deve receber um significado autónomo face ao dever de obter consentimento e consequentemente ser assumido como uma obrigação jurídica, por-que se a “obrigação de informação for associada de forma excessi-va, à necessidade de consentimento, a primeira corre o risco de se tornar desprovida de sentido, quando é precisamente a informação sobre o seu estado, por mais pessimista que o prognóstico possa ser, que pode ser muito importante para o paciente”.

3.2 O conteúdo e o modo de transmissão da informação

A informação desempenha um papel indispensável e relevante no âmbito da atividade médica (diagnóstica, preventiva e terapêuti-ca), constituindo, no entender de Esperança Pina10, a base da estabi-

tituindo, por isso, a “legitimação e o fundamento do ato médico” (SOUZA, Paulo Vinicius Sporleder. O médico e o dever de informação: aspectos jurídico-penais. Stvdia Ivridica 100-Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Figueiredo Dias. Coim-bra: Coimbra, 2009. v. III, p. 642).

7 Vázquez Barros salienta que a jurisprudência espanhola considera que no campo de atuação médica, o mesmo deve-se reger pela denominada lex artis ad doc, ou seja, em consideração ao caso em concreto em que se produz a atuação e intervenção médica e as circunstâncias em que as mesmas se desenvolvem e tenham lugar, assim como as incidências inesperadas numa normal atuação médica (VÁZQUEZ BARROS, Sergio. Responsabilidad Civil de los Médicos. Valencia: Tirant lo Blanch, 2009. p. 28).

8 SOUZA, Paulo Vinicius Sporleder. O médico e o dever de informação: aspectos jurí-dico-penais. Stvdia Ivridica 100-Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Figueiredo Dias. Coimbra: Coimbra, 2009. v. III, p. 641.

9 PEREIRA, André Gonçalo Dias. O Consentimento Informado na Relação Médico-Pa-ciente – Estudo de Direito Civil. Coimbra: Coimbra, 2004. p. 353.

10 PINA, J. A. Esperança. A responsabilidade dos médicos. 3. ed. Lisboa: Edições Lidel, 2003. p. 82.

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lidade do consentimento, sem a qual o médico [enquanto devedor da informação11] não deve utilizar meios de diagnóstico e de terapêutica sofisticados, sem explicar os riscos e sem apresentar as alternativas, incluindo o que poderá surgir se o doente não se tratar.

Caracterizando-se a medicina como uma “atividade de risco”12, está subjacente a ela o primado da dignidade humana, que impon-do um princípio da autodeterminação e do respeito pela integridade física e moral do paciente, confere que só o consentimento devida-mente esclarecido permite transferir para o paciente os referidos riscos que de outro modo deverão ser suportados pelo médico. Des-te modo, a norma fundamental no ordenamento jurídico português relativa ao dever de esclarecimento/informação encontra-se no arti-go 157 do Código Penal (CP).

O principal objetivo do esclarecimento /informação, anota Frisch13 consiste em “assegurar ao paciente a possibilidade de tomar uma decisão (autorizando ou não uma determinada intervenção, sendo que para alcançar tal desiderato, ele tem de ser informado so-bre a natureza e as razões da intervenção, sua extensão/envergadura (por ex. a utilização de procedimentos invasivos, tempo de duração, se o método é simples ou complexo), as consequências (por ex. dores e desconfortos, duração do tempo de restabelecimento, limitações e perdas funcionais, efeitos secundários), bem como sobre os riscos (inerentes, associados/agregados) que a ela estão associados”.

A informação fornecida ao paciente não deve pretender “inun-dar o doente com numerosos dados14“ mas deverá oferecer-lhe os elementos fundamentais para uma opção sensata e compreensível,

11 PEREIRA, André Gonçalo Dias. O Consentimento Informado na Relação Médico-Pacien-te – Estudo de Direito Civil. Coimbra: Coimbra, 2004. p. 360. O médico é considerado, sob este prisma, o devedor da informação, pois é sobre o devedor que recai a obriga-ção de informação.

12 Idem, ibidem, p. 370.13 FRISH, W. O Consentimento e consentimento presumido nas intervenções médico-

-cirúrgicas. RPCC 14, 2004 p. 78-79, citado por SOUZA, Paulo Vinicius Sporleder. O médico e o dever de informação: aspectos jurídico-penais. Stvdia Ivridica 100-Es-tudos em Homenagem ao Prof. Doutor Figueiredo Dias. Coimbra: Coimbra, 2009. v. III, p. 643.

14 PINA, J. A. Esperança. A responsabilidade dos médicos. 3. ed. Lisboa: Edições Lidel, 2003. p. 82-83.

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impondo-se, ao médico que informe o doente “do mais importante da sua doença, como resposta lógica ao direito que este tem de saber a natureza dos sintomas, os meios do diagnóstico, os resultados fa-voráveis e indesejados que se deve esperar do tratamento”15. Preten-dendo-se, assim, não só informar o paciente, mas também fazer com que ele possa tomar uma decisão, importa considerar em matéria do dever de informação qual a intensidade quantitativa e qualitativa, com que ela deve ser revelada.

Posto isto, e antes de mais, entende-se que a informação for-necida ao paciente16, precisa de ser clara e acessivel. Ou seja, “deve ser transmitida em termos compreensíveis e adaptar-se ao nível intelectual e cultural do paciente, bem como às suas condições psi-cológicas, evitando-se na medida do possível o recurso à lingua-gem técnica”17. Além demais, tendo em conta que em alguns casos a transmissão da informação não pode ser reduzida a um único ato, denota Vinicius Souza18, que tal informação deve ser continuada, tendo em conta a duração, a complexidade e os níveis de riscos en-volvidos na intervenção. Não obstante, noutros casos, a informação poderá ser gradual, consoante a gravidade da doença e do prejuizo que a sua transmissão poderá desencadear na evolução do quadro clínico do paciente.

3.3 Os critérios dogmáticos que podem ajudar na tarefa da interpretação adequada da informação

Tendo por base as considerações supra expostas denota-se que em todo o caso é “recomendável que o médico procure ter um conhe-

15 PINA, J. A. Esperança. A responsabilidade dos médicos. 3. ed. Lisboa: Edições Lidel, 2003. p. 83.

16 Pereira salienta que relativamente ao “momento em que a informação deve ser prestada, esta deve ser efectuada com antecedência por forma a não colocar o paciente numa situação de pressão para decidir” (PEREIRA, André Gonçalo Dias. O Consentimento Informado na Relação Médico-Paciente – Estudo de Direito Civil. Coimbra: Coimbra, 2004. p. 457).

17 SOUZA, Paulo Vinicius Sporleder. O médico e o dever de informação: aspectos jurí-dico-penais. Stvdia Ivridica 100-Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Figueiredo Dias. Coimbra: Coimbra, 2009. v. III, p. 644.

18 Idem, ibidem, p. 645.

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cimento razoável do paciente”19 de forma a ilustrar a melhor manei-ra de o informar e do que efetivamente deve ser informado para que a comunicação tenha êxito e seja, dessa forma, bem compreendida.

Desta feita, a doutrina e a jurisprudência têm utilizado alguns critérios referentes ao tipo e qualidade da informação a transmitir. De entre os quais se podem salientar: o critério do médico razoá-vel, o critério da paciente razoável e o critério subjetivo do paciente concreto.

Quanto ao primeiro critério [médico razoável], deverá ser in-terpretado segundo Vinicius Souza20, no sentido de que “quantidade de informação que deve receber um determinado paciente deve ser a equivalente a que um “médico razoável”21 lhe revelaria nas mes-mas circunstâncias. No entanto, a prática jurisprudencial tem reve-lado que a adoção deste critério tem vindo a tornar-se por vezes in-suficiente no sentido de que “o padrão médico não toma em devida consideração a autonomia do paciente”22.

Posto isto, perante as insuficiências daquele critério, surgiu o critério do padrão doente médio ou paciente razoável –, traduz o que uma “hipotética ‘pessoa razoável’ desejaria conhecer nas mesmas circunstâncias em que se encontra o paciente”23. Este critério é aque-le que domina no âmbito da jurisprudência americana, no sentido de afirmar que “não é o médico que deve medir o quantum de informa-

19 SOUZA, Paulo Vinicius Sporleder. O médico e o dever de informação: aspectos jurí-dico-penais. Stvdia Ivridica 100-Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Figueiredo Dias. Coimbra: Coimbra, 2009. v. III, p. 645.

20 Idem, ibidem, p. 645. 21 O autor salienta que por “médico razoável” deve-se entender “o que atua em con-

sonância com a prática habitual da comunidade cientifica a que pertence” (Idem, ibidem, p. 645).

22 Indica Gonçalo Pereira que “[…] considerar as vantagens e os inconvenientes de toda a terapia, após a adequada informação, é um juízo de valor individual, re-servado unicamente ao interessado [ao paciente] a quem corresponde a decisão sobre os seus melhores interesses, de acordo com o seu projeto de vida”. (PEREI-RA, André Gonçalo Dias. O Consentimento Informado na Relação Médico-Paciente – Estudo de Direito Civil. Coimbra: Coimbra, 2004. p. 441)

23 SOUZA, Paulo Vinicius Sporleder. O médico e o dever de informação: aspectos jurí-dico-penais. Stvdia Ivridica 100-Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Figueiredo Dias. Coimbra: Coimbra, 2009. v. III, p. 645.

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ção, mas sim o paciente”24. Considera tal jurisprudência defensora da adoção deste critério que “o dever de conduta (standard of care) do médico não deve ser referido à opinião de corpo médico; mas que pelo contrário, compete ao tribunal decidir se o médico atuou licita-mente face ao paciente, de acordo com o juízo de um paciente razoá-vel colocado na situação daquele concreto paciente”25.

Por fim, existe um último critério sob o qual pode ser aferida a adequação da informação fornecida pelo médico. Estamos a re-ferir-nos agora, ao critério subjetivo do paciente concreto26. Aqui “exige-se que os médicos transmitam a informação que o paciente individualmente exija”27. No critério (ou modelo) subjetivo, a ade-quação da informação é julgada por referência às necessidades de informação específica da pessoa individual. Entende-se que “cada paciente tem necessidades distintas de informação em virtude das suas peculiaridades e idiossincrasias. Este critério tem por base o que o paciente concreto queria conhecer e não o que uma pessoa razoável quereria conhecer”28.

3.4 Dever de informação sobre o tratamento médico e os seus riscos

Tomando agora em linha de conta, os fins e os objetivos do tra-tamento, considera-se que o médico tem o dever de informar o doen-te acerca dos meios utilizados e dos fins do tratamento.

No que concerne aos meios de intervenção médica, indica-nos Gonçalo Pereira29 que deve tomar-se em consideração se a “terapia proposta envolve o recurso a intervenções cirúrgicas ou se é exclu-sivamente medicamentosa, se vai envolver uma ou várias interven-ções cirúrgicas, se pode ou não afetar a capacidade para o trabalho do paciente”.

24 PEREIRA, André Gonçalo Dias. O Consentimento Informado na Relação Médico-Pa-ciente – Estudo de Direito Civil. Coimbra: Coimbra, 2004. p. 442.

25 Idem, ibidem, p. 44326 Seguindo a expressão adotada por Gonçalo Pereira (ob. cit., p. 443).27 Idem, ibidem, p. 443.28 Idem, Ibidem, p. 443.29 Idem, Ibidem, p. 391.

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É dado adquirido de que um tratamento não apresenta apenas aspectos positivos, este não se revela isento do surgimento de riscos ou incertezas. Nesse sentido, a informação do médico deve abran-ger as vantagens e os inconvenientes do tratamento inculcado ao paciente.

A temática da informação sobre os riscos tem vindo a levantar incertezas na doutrina e na jurisprudência. A sua importância no âm-bito da responsabilidade civil médica tem vindo revelar-se inegável, uma vez que esta é o “instituto jurídico que comunga da tarefa primor-dial do Direito que consiste na ordenação e distribuição dos riscos e con-tingências que afetam a vida dos sujeitos e a sua coexistência social”30.

No âmbito do dever informar do médico relativo aos riscos do tratamento que se podem desencadear sobre o paciente, de acordo com as lições31 de Gonçalo Pereira, a realidade histórica espelha a par da doutrina tradicional o surgimento da designada “Teoria dos Riscos Significativos”.

Enquanto, que a doutrina tradicional defendia que «existe apenas a obrigação de comunicar ao paciente os riscos “normais e previsíveis” ou “a prever razoavelmente”, excluindo, desse modo o dever de informar dos riscos graves, particulares, hipotéticos ou anormais32, mais recentemente, alguma doutrina e jurisprudência tem vindo a sustentar a “obrigação de se comunicar os riscos “signi-ficativos”, isto é, aqueles que o médico sabe ou devia saber que são importantes e pertinentes, para uma pessoa normal colocada nas mesmas circunstâncias do paciente, chamado a consentir com o co-nhecimento de causa no tratamento proposto”33.

De acordo, com esta teoria o risco deverá ser considerado “sig-nificativo” partindo como base de análise determinados critérios: da

30 PEREIRA, André Gonçalo Dias. O Dever de Esclarecimento e Responsabilidade Mé-dica. In: Responsabilidade Civil dos Médicos. Coimbra: Coimbra, 2005. p. 442.

31 PEREIRA, André Gonçalo Dias. O Consentimento Informado na Relação Médico- -Paciente – Estudo de Direito Civil. Coimbra: Coimbra, 2004. p. 396-419; PEREIRA, André Gonçalo Dias. O Dever de Esclarecimento e Responsabilidade Médica. In: Responsabilidade Civil dos Médicos. Coimbra: Coimbra, 2005. p. 441-457.

32 PEREIRA, André Gonçalo Dias. O Consentimento Informado na Relação Médico-Pa-ciente – Estudo de Direito Civil. Coimbra: Coimbra, 2004. p. 396.

33 Idem, ibidem, p. 396.

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(i) necessidade terapêutica da intervenção, em razão da (ii) sua fre-quência (estatística), (iii) em razão da sua gravidade, e para finalizar, (iv) em razão do comportamento do paciente34.

Quanto ao primeiro critério, o risco será considerado signifi-cativo, i) em razão da necessidade terapêutica da intervenção causa. De acordo com este critério “quanto mais necessária é a intervenção, nomeadamente vital, menos importante é a informação a propósito dos riscos”35, ou seja, “quanto mais necessária for a intervenção, mais flexível pode ser a informação a propósito dos riscos”36. Para se verifi-car se essa intervenção é ou não necessária, tomando o caso concreto, esta teoria considera que devem ser analisados “certos fatores obje-tivos”, mormente, a sua “urgência”, a “necessidade”, a “perigosidade/novidade do tratamento”, e por fim, a “gravidade da doença”.

No parâmetro da “urgência do tratamento”, a doutrina afirma que “quanto mais urgente for o tratamento, menor precisão é exigí-vel na informação médica a ministrar ao paciente”37.

Segundo o parâmetro da “necessidade do tratamento”, “quanto menos necessário for o tratamento, mais rigorosa deve ser a infor-mação, devendo ser extrema nas intervenções estéticas e, em geral, na denominada cirurgia voluntária ou de satisfação (vasectomias, ligaduras de trompas, rinoplastias, mamoplastias, dermolipecto-mias), em contraposição com a cirurgia curativa ou assistencial, em que a informação pode ser menos rigorosa”38. A jurisprudência

34 PEREIRA, André Gonçalo Dias. O Consentimento Informado na Relação Médico-Pa-ciente – Estudo de Direito Civil. Coimbra: Coimbra, 2004. p. 397.

35 Idem, ibidem. p. 397.36 O autor considera que tal já não se verifica nas chamadas intervenções “d’agré-

ment”, como é o caso da “cirurgia estética”, a doação de órgãos para transplante ou a participação em ensaios clínicos, pois, nestes casos o dever de informação é mais rigoroso e mais intenso (PEREIRA, André Gonçalo Dias. O Dever de Esclarecimen-to e Responsabilidade Médica. In: Responsabilidade Civil dos Médicos. Coimbra: Coimbra, 2005. p. 444).

37 Gonçalo Pereira põe em relevo a decisão da Audiência Provincial de Ávila, de 03.04.1998, ao assinalar que, “em caso de conflito entre o dever de informação e a assistência ao doente, deve prevalecer sempre este último por assim o exigir o princípio da proporcionalidade” (PEREIRA, André Gonçalo Dias. O Consentimento Informado na Relação Médico-Paciente – Estudo de Direito Civil. Coimbra: Coimbra, 2004. p. 397).

38 Idem, ibidem. p. 398

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alemã, conforme informa Gonçalo Pereira39 destaca a importância deste critério no âmbito da “cirurgia estética” sustentando a este propósito que “em matéria de atos médicos e cirúrgicos de nature-za estética, a obrigação de informação deve abranger não apenas os riscos graves da intervenção, mas também todos os inconvenientes que daí possam resultar”.

O outro parâmetro que permite aferir se o risco será consi-derado significativo em razão da necessidade da intervenção em causa é o da “novidade e perigosidade do tratamento”. Conside-ra-se neste caso que “quanto mais recente seja um procedimento terapêutico ou diagnóstico”, maior rigor [deverá ser exigido] na in-formação a dar ao paciente40, e também que “quanto mais perigosa for a intervenção, mais ampla deve ser a informação que se facilita ao paciente”41.

Entende o supracitado autor42 que o que deve ser exigido é “transparência e abertura que é alcançada através da intensifica-ção, da maior exigência do dever de esclarecimento”, nomeada-mente que a “grande proteção do paciente” deverá resultar, mais do

39 O autor salienta um “caso eloquente decidido pelo Tribunal de Cassação Civil ita-liano na decisão de 8 junho de 1985, que condenou o médico que praticou uma cirurgia estética a uma bailarina e atriz profissional. Após a dita cirurgia, a pacien-te ficou com cicatrizes em ambos os seios, comprometendo, por isso, gravemente a sua atividade profissional, já que a sua atuação incluía normalmente números eróticos. Apesar de a técnica e a diligência do cirurgião ter sido a correcta, este não cumpriu a obrigação de informar a cliente dos riscos (estéticos) que tal operação acarretava e que eram decisivos para aquela concreta paciente” (PEREIRA, André Gonçalo Dias. O Dever de Esclarecimento e Responsabilidade Médica. In: Respon-sabilidade Civil dos Médicos. Coimbra: Coimbra, 2005. p. 447).

40 Pereira considera como expressão deste critério a decisão da “Secção 7ª. Da Au-diência Provincial de Valencia, de 24/02/2000, relativamente a um caso de implan-tação intra-ocular de um lente de Worst-Fechtner, para correcção de uma severa miopia, em resultado da qual se produziu uma grave redução da visão. O Tribunal declarou que, “no caso em análise, se reforça, ainda mais, a obrigação do médi-co informar a sua paciente de todos os riscos que a intervenção supunha, maxi-me quando se trata de uma técnica não avalizada pela maioria da ciência médica, existindo uma recomendação de ser especialmente cuidadoso na colocação do implante”. (PEREIRA, André Gonçalo Dias. O Consentimento Informado na Relação Médico-Paciente – Estudo de Direito Civil. Coimbra: Coimbra, 2004. p. 401).

41 Idem, ibidem, p.400.42 PEREIRA, André Gonçalo Dias. O Dever de Esclarecimento e Responsabilidade Mé-

dica. In: Responsabilidade Civil dos Médicos. Coimbra: Coimbra, 2005. p. 448.

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que da teoria do informed consent, devendo ser exigido nesta sede “uma informação exaustiva e cabal, constituindo uma condição im-prescindível para que o paciente seja respeitado e compreendido como um númeno e não como um fenómeno, elemento essencial da dignidade humana”43.

A doutrina afirma ainda em razão do critério da necessidade do tratamento, que deverá ser tomado ainda em conta, o parâmetro da gravidade da doença. Consoante anotação de Gonçalo Pereira44 “a gravidade da doença que afeta o paciente deve influir na quanti-dade de informação a prestar ao paciente, de tal forma que quanto mais grave for a doença45, maior deve ser a informação que se facul-ta ao doente”.

A teoria dos riscos significativos sustenta, em complemento ao critério anterior, que o risco significativo deverá ser analisado tendo em conta a ii) sua frequência (estatística). Este critério afirma que “quanto mais frequente for a realização do risco, mais se justifica a informação ao paciente dessa eventualidade”46. Relativamente a este critério, tem surgido uma controvérsia na doutrina relativamente aos riscos raros ou excepcionais; mas de grande gravidade. Neste as-pecto, não existe ainda consenso na doutrina internacional.

Mediante esta polêmica, existe “dificuldade em definir o que seja um risco frequente; e por outro lado, nem todos concordam que os riscos raros devem ser afastados do âmbito da informação exigida, quando estes sejam graves”47. No âmbito da definição da “frequên-cia do risco”, alguns autores apontam para “formulações genéricas” no sentido de que, “entendem que os riscos típicos se identificam com os mais frequentes e previsíveis48“. Outros, apelam a parâme-

43 PEREIRA, André Gonçalo Dias. O Consentimento Informado na Relação Médico-Pa-ciente – Estudo de Direito Civil. Coimbra: Coimbra, 2004. p. 401-402.

44 Idem, ibidem, p. 402.45 Como é o caso de certas doenças oncológicas e cardiovasculares. 46 PEREIRA, André Gonçalo Dias. O Dever de Esclarecimento e Responsabilidade Mé-

dica. In: Responsabilidade Civil dos Médicos. Coimbra: Coimbra, 2005. p. 430. 47 Idem, ibidem, p. 431. 48 Pereira salienta que alguma Jurisprudência tem seguido esse caminho. No-

meadamente, o Tribunal de Apelação de Liège (20-10-1994) entende que: “[…] embora os riscos inerentes a uma arteriografia sejam graves e não devem ser negligenciados, eles não são de uma percentagem excepcional que justifique e

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tros mais objetivos e buscam a adoção de um “índice estatístico que determine a linha de separação entre o que deve ser informado e o que não precisa de o ser”49.

Dessa forma, entende Gonçalo Pereira50 que a melhor doutri-na é a que aponta para a adoção de um critério objetivo – concreto. Defendendo que o médico deve informar o paciente de todos os riscos frequentes e típicos para aquele concreto paciente e para aquela concreta situação. Repulsa que

[...] um critério puramente estatístico ou percentual não é suficiente na hora de decidir a informação a facilitar ao pa-ciente, sendo preciso contemplar outra série importante de variáveis, tais como o estado do paciente, a competência do cirurgião, a qualidade do centro hospitalar e a especificida-de do ato em si – a que a doutrina chama de “riscos especia-lizados”.51

Assim, de acordo com o supracitado autor, “a informação de-vida não é propriamente a relativa a riscos médios, nem mesmo do normal para o grupo etário do paciente, mas, quando possível, deve procurar fornecer uma informação especial para aquele doen-te concreto”52. Dispõe que essa informação “deverá incluir entre outros aspectos, os riscos frequentes, os riscos pouco frequentes quando sejam de especial gravidade e estejam associado ao proce-dimento de acordo com o estado da ciência, e os riscos personaliza-dos de acordo com a situação clínica do paciente”53.

necessite de um consentimento especial”, finalizando que “se o paciente está su-ficientemente informado do caráter e da gravidade do exame, presume-se que deu validamente o seu consentimento”. (PEREIRA, André Gonçalo Dias. O Con-sentimento Informado na Relação Médico-Paciente – Estudo de Direito Civil. Coim-bra: Coimbra, 2004. p. 405).

49 Idem, ibidem, p. 40550 PEREIRA, André Gonçalo Dias. O Dever de Esclarecimento e Responsabilidade Mé-

dica. In: Responsabilidade Civil dos Médicos. Coimbra: Coimbra, 2005. p. 431.51 PEREIRA, André Gonçalo Dias. O Consentimento Informado na Relação Médico-Pa-

ciente – Estudo de Direito Civil. Coimbra: Coimbra, 2004. p. 406.52 Idem, ibidem, p. 406.53 PEREIRA, André Gonçalo Dias. O Dever de Esclarecimento e Responsabilidade Mé-

dica. In: Responsabilidade Civil dos Médicos. Coimbra: Coimbra, 2005. p. 431.

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Paralelamente ao critério do risco significativo em razão da frequência, a teoria dos riscos significativos, traz à ribalta que o sig-nificado do risco no tratamente em causa, deverá ainda ser analisado tendo em conta a sua gravidade. De acordo com este critério, a “gra-vidade de um risco, mesmo não frequente conduz à obrigação da sua comunicação”54. E, pelo contrário, os “riscos menos graves (riscos raros) podem, em certas circunstâncias, não ser informados”55, pois não justificaria “incomodar o paciente” com essa informação, que o poderia colocá-lo numa situação de angústia.

Porém, nos últimos anos, verificou-se uma inversão dessa teo-ria, no sentido de que a jurisprudência tem vindo a decidir que a “não informação de riscos graves, ainda que hipotéticos ou de frequência excepcionais, merece sanção de direito”56. Afirma por isso, a jurispru-dência defensora deste critério, que “quando o ato médico em causa, mesmo quando realizado de acordo com as leges artis, implique ris-cos conhecidos de falecimento ou de invalidez, o paciente deve estar informado em condições que permitam recolher o seu consentimen-to informado; contudo, essa informação não é requerida em caso de urgência, de impossibilidade e de recusa do paciente a ser informa-do a circunstância de os riscos só se realizarem excepcionalmente por si só, não dispensa nos médicos da sua obrigação de informar’57. Deno-ta-se que “a responsabilidade civil médica por violação do dever de informação, tornou-se, nos últimos anos, muito pesada, tendo vindo a começar a sentir-se uma forte carga indemnizatória, quer sobre a clinica privada, quer sobre a medicina de hospitais públicos”58.

54 PEREIRA, André Gonçalo Dias. O Consentimento Informado na Relação Médico-Pa-ciente – Estudo de Direito Civil. Coimbra: Coimbra, 2004. p. 408.

55 PEREIRA, André Gonçalo Dias. O Dever de Esclarecimento e Responsabilidade Médica. In: Responsabilidade Civil dos Médicos. Coimbra: Coimbra, 2005. p. 452.

56 Gonçalo Pereira refere ao caso da Cour de Cassation na decisão de 07/10/1998: afirma o tribunal francês que “fora os casos de urgência, de impossibilidade ou de recusa do paciente a ser informado, um médico deve-lhe transmitir informa-ção leal, clara e apropriada sobre os riscos graves relativos a intervenções e aos tratamentos propostos e ele não está dispensado pelo simples facto de estes riscos só se realizarem excepcionalmente”. (PEREIRA, André Gonçalo Dias. O Dever de Es-clarecimento e Responsabilidade Médica. In: Responsabilidade Civil dos Médicos. Coimbra: Coimbra, 2005. p. 452).

57 Idem, ibidem, p. 453.58 Idem, ibidem, p. 453.

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Para finalizar, resta salientar que o “risco significativo” também deve ser analisado “em razão do comportamento do paciente”59 nomea-damente, as características do paciente também podem influenciar a taxa de incidência do risco (como a obesidade, problemas cardiacos, antecedentes familiares), bem como as condições e hábitos de vida, privados e profissionais (tal como, o tabagismo, o facto de exercer uma profissão artística). Posto isto, salienta-se aqui, que “na avaliação do risco significativo, isto é, o risco que deverá ser informado em razão da sua frequência e/ou gravidade os factores pessoais do paciente de-vem merecer a maior atenção por parte do médico”60.

4 O CONSENTIMENTO INFORMADO

4.1 Como elemento das leges artis

O consentimento informado tem vindo a ser afirmado não ape-nas como um “direito fundamental do paciente”, mas também uma exigência legal e ética para o médico. Desta forma considera-se que “o direito do paciente a ser devidamente informado é manifestação, em certo sentido, do direito à vida ou à integridade, bem como do di-reito à liberdade (maxime liberdade de consciência)”61. Anota Gonça-lo Pereira62 que a “moderna dogmática da responsabilidade médica vê no consentimento informado um instrumento que permite, para além dos interesses e objetivos médico-terapêuticos o respeito dos aspetos individuais e volitivos do paciente”. Nesse sentido “quando as medidas propostas significam um risco importante para o doente, o médico proporcionará informação suficiente e ponderada, a fim de obter o consentimento imprescindível para as praticar”63.

A doutrina corrente, em Espanha, tem vindo a defender que o consentimento informado é um pressuposto e elemento integrante

59 PEREIRA, André Gonçalo Dias. O Consentimento Informado na Relação Médico-Pa-ciente – Estudo de Direito Civil. Coimbra: Coimbra, 2004. p. 415.

60 PEREIRA, André Gonçalo Dias. O Dever de Esclarecimento e Responsabilidade Mé-dica. In: Responsabilidade Civil dos Médicos. Coimbra: Coimbra, 2005. p. 457.

61 Idem, ibidem, p. 68.62 Idem, ibidem, p. 57.63 PINA, J. A. Esperança. A responsabilidade dos médicos. 3. ed. Lisboa: Edições Lidel,

2003. p. 83.

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da lex artis, para levar a efeito a atividade médico-cirúrgica curati-va. Defendendo por isso, que estamos perante um “ato clínico cujo incumprimento pode gerar responsabilidade e que deve ser apre-ciado oficiosamente pelos Tribunais”, considerando que o “dever de informação ao paciente se inclui na obrigação a que o médico está vinculado”64.

Porém, na doutrina portuguesa esta perspectiva não tem sido objeto de acolhimento. A este respeito, Vaz Rodrigues65 e Costa An-drade66 sustentam que a expressão leges artis “está reservada para aquelas regras específicas da medicina, como corpo científico que habilita a prática da arte de curar as pessoas, isto é, sem preencher o terreno que se segue imediatamente, privativo da autodetermi-nação”. Apenas se insere nas leges artis o chamado “esclarecimen-to terapêutico”67. Justificam esta posição, com base no direito penal português, nomeadamente, por remissão do artigo 150º e 156º do Código Penal. Assim, como nos indica Gonçalo Pereira68, resulta do direito positivo português e da deontologia médica que o “médico tem a obrigação de informar e de obter o consentimento”.

4.2 Caraterísticas

Salienta-se de plano, que o consentimento informado tem cor-relação com a tutela do direito à integridade física, psíquica e moral, bem como o direito à autodeterminação da pessoa. Sendo, portanto, dever do médico prestar todas as informações pertinentes ao estado de saúde do paciente, bem como obter seu consentimento.

O pesquisador do tema, Guilherme de Oliveira, afirma que

64 PINA, J. A. Esperança. A responsabilidade dos médicos. 3. ed. Lisboa: Edições Lidel, 2003. p. 69.

65 RODRIGUES, João Vaz. O Consentimento informado para o Acto Médico no Ordena-mento Jurídico Português – Elementos para o estudo da manifestação da vontade do paciente. Coimbra: Coimbra, 2001.

66 ANDRADE, Manuel Costa. Consentimento e Acordo em Direito Penal. Coimbra: Coimbra, citado por PEREIRA, André Gonçalo Dias. O Consentimento Informado na Relação Médico-Paciente – Estudo de Direito Civil. Coimbra: Coimbra, 2004. p. 69.

67 Idem, ibidem, p. 69-70.68 PEREIRA, André Gonçalo Dias. O Consentimento Informado na Relação Médico-Pa-

ciente – Estudo de Direito Civil. Coimbra: Coimbra, 2004. p. 71.

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[...] a necessidade de prestar esclarecimentos e de obter um con-sentimento informado ganhou sentido na prática médica, como um aspecto de boa prática clínica; isto é, tratar bem não é ape-nas atuar segunda as regras técnicas da profissão mas também considerar o doente como um centro de decisão respeitável.69

Assim, conforme entendimento do conceito de esclarecimen-to-para-a-autodeterminação (Selbstbesmungs-aufklärung), estamos perante a informação que o médico deve dar previamente a qual-quer intervenção médica, em ordem a uma livre decisão do pacien-te, por forma a dar cumprimento ao princípio da autonomia da pes-soa humana, enquanto expressão do axioma fundamental que é a dignidade humana70.

4.3 Pressupostos Normativos no Direito Português

No ordenamento jurídico português há prescrição de uma am-pla tutela ao direito a autodeterminação da pessoa humana, e cujo forte teor normativo está expresso no artigo 25º da Constituição da República Portuguesa no que tange à totalidade do direito à integri-dade pessoal. Acresce ainda, que com a revisão constitucional de 1997 consagrou-se no artigo 26º, n. 1, ademais de outros direitos pessoais, o direito fundamental ao desenvolvimento da personalidade. A inspi-ração constitucional, portanto, exala entre os direitos fundamentais, o direito à integridade moral e física e o livre desenvolvimento da personalidade como expressões concretizadas do valor (axioma) fundamental que é a Dignidade da Pessoa Humana (CRP, art. 1º).

Como concretização da aspiração constitucional, o ordenamento civil explana no artigo 70º do Código Civil, o Direito Geral de Persona-lidade. Nas palavras de Orlando Carvalho, citado por Gonçalo Pereira,

[...] o direito geral da personalidade consiste num direito à personalidade no seu todo, direito que abrange todas as mani-festações previsíveis e imprevisíveis da personalidade, pois é, a um tempo, direito à pessoa-ser e à pessoa-devir, ou melhor,

69 OLIVEIRA, Guilherme, O fim da “arte silenciosa”, in Temas... citado por PEREIRA, André Gonçalo Dias. O Consentimento Informado na Relação Médico-Paciente – Es-tudo de Direito Civil. Coimbra: Coimbra, 2004. p. 71.

70 Idem, ibidem, p. 73.

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à pessoa-ser em devir, entidade não estática mas dinâmica e com jus à sua “liberdade de desabrochar” (com direito ao “livre desenvolvimento da personalidade” e de que falam já certos textos jurídicos). Trata-se de um jus in se ipsum radical, em que a pessoa é o bem protegido, correspondendo à sua necessida-de intrínseca de autodeterminação […]. Só tal direito ilimitado e ilimitável permite uma tutela suficiente do homem ante os riscos de violação que lhe oferece a sociedade moderna.71

Dessa feita, temos por deduzir que, se no n. 1, do artigo 70º do CC se encontra essa fonte do direito: direito especial de personali-dade, que nada mais é do que o direito à integridade física, psíquica e moral, com a qual se relaciona o direito à liberdade de vontade e a autodeterminação, temos, portanto, o fundamento civilístico do con-sentimento informado.

Seguindo-se, portanto, a lógica jurídica da responsabilidade por evidência da transgressão de um direito subjetivo, a violação dos direitos de personalidade daria lugar não só a responsabilidade civil, mas de igual modo a providências (judiciais) adequadas às cir-cunstâncias do caso, com o fim de evitar a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa cometida, consoante interpretação dos artigos 70º, n. 2, CC e 1474º e ss. do CPC.

Como exarado supra, o consentimento informado se coadu-na perfeitamente ao ordenamento jurídico português, tanto a nível constitucional como no plano civil. Vê-se, portanto, que a necessida-de de obter o consentimento informado se fundamenta na proteção dos direitos à autodeterminação e à integridade física, psíquica e mo-ral da pessoa humana.

De outro lado, há também a expressão da doutrina anglo- -saxónica denominada informed consent, onde se entende que a in-formação é apenas um aspecto do consentimento informado. Esta denominação é criticada por certa doutrina anglo-saxónica que in-sere como proposta a utilização da expressão informed choice. Jus-tamente porque este conceito teria a intenção de abranger, entre

71 CARVALHO, Orlando. TGDC, p. 90, citado por PEREIRA, André Gonçalo Dias. O Con-sentimento Informado na Relação Médico-Paciente – Estudo de Direito Civil. Coim-bra: Coimbra, 2004. p. 98.

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outros aspectos, a informação sobre as consequências da recusa ou revogação do consentimento, as alternativas terapêuticas, a escolha de medicamentos, a escolha de estabelecimento de saúde, etc.

Classifica, Gonçalo Pereira, como pertencente ao informed choi-ce do Direito português, o direito à “informação sobre os riscos e serviços de saúde existentes e o direito à livre escolha do médico, e ainda o direito à segunda opinião”72, pelo qual, todos estes aspectos vão para além do simples consentimento livre e esclarecido. São ex-pressões avançadas do direito ao consentimento informado, na sua corrente mais contemporânea do informed choice: a autodetermina-ção nos cuidados de saúde implica, não só que o paciente consinta ou recuse determinada intervenção, mas que tenha todos os elementos de análise sobre as possibilidades de tratamento possíveis, no domí-nio médico, cirúrgico e farmacêutico73.

5 A RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA

5.1 A responsabilidade subjetiva como critério geral

Tem-se adotado no ordenamento jurídico português74, como na generalidade dos ordenamentos jurídicos, a consagração da res-ponsabilidade subjetiva como regra, sendo deste modo, a culpa do lesante como centro de quase todas as discussões que, eventualmen-te possam resultar sua responsabilidade.

No terreno da responsabilidade médica, chega-se sem muita dificuldade, à compreensão de que os profissionais da saúde, de re-gra, só respondem pelos danos provocados na esfera jurídica de outrem quando atuarem com culpa. Além do mais, frisa-se que o critério adotado pelo legislador português foi no sentido de dotar

72 PEREIRA, André Gonçalo Dias. O Consentimento Informado na Relação Médico-Pa-ciente – Estudo de Direito Civil. Coimbra: Coimbra, 2004. p. 74.

73 AMARILLA / ÁLAMO, citado por PEREIRA, André Gonçalo Dias. O Consentimento Informado na Relação Médico-Paciente – Estudo de Direito Civil. Coimbra: Coimbra, 2004. p. 74.

74 Art. 483º CC, n. 1 - “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.

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como referência da apreciação da culpa, a “diligência de um bom pai de família”. Como afirma Carla Gonçalves, “naturalmente, o bom pai de família não é um sujeito irrepreensível, que está acima do bem e do mal; pelo contrário, o grau de diligência exigido pela lei corresponde ao comportamento de um homem normal (ou de um bom cidadão), face às circunstâncias concretas”75.

Porém, ressalta-se de que o médico normal (na medida de sua especialidade), também está suscetível de cometer erros, inobstan-te, para o Direito da Responsabilidade Civil médica não é todo e qual-quer erro que tem relevância para o Direito. Aliás, o Direito só terá como parâmetro um ato médico lesivo ao paciente quando tal con-duta decorrer de um comportamento culposo. No estudo em evidên-cia, a culpa assenta-se na ausência do devido dever de informação pela inobservância da diligência atribuída à sua profissão.

Outrossim, um dos critérios de aferição de uma conduta alheia a devida diligência médica, concentra-se no respeito ao princípio da Lex artis. Mas não se encerra neste, pois a conduta (in)diligente deste pode ser considerada se o médico violar a liberdade de con-sentimento do paciente, ainda que a intervenção ocorra em conso-nância com o mais avançado estado de evolução da ciência e da téc-nica. Como se verá, a violação do dever de informar, por si só, pode resultar na condenação do médico, mesmo que o estado de saúde do paciente tenha melhorado após a intervenção.

5.2 A lex artis

Parte-se de plano, que na atividade de determinada profissão, é sempre exigível um certo domínio técnico ou científico sobre os atos cujo o profissional manipula. Isso é comum em todas as pro-fissões, desde tempos remotos onde a figura do mestre de ofício denotava um certo grau de competência sobre a arte que o mesmo desenvolvia76. Não muito diferente se encontra o domínio da lex

75 GONÇALVES, Carla. A responsabilidade Civil Médica: um problema para além da culpa. Coimbra: Coimbra, 2008. p. 22.

76 Os mestres de ofício são as figuras típicas dos artesãos pertencentes ao período das corporações de ofício, sistema de trabalho medieval que precedeu o sistema capitalista do período burguês.

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artis (ou legis artis), que é aquela norma de conduta que exige um bom comportamento profissional; circunstância esta que pode ser assimilada ao comportamento exigível a um bom profissional ou a um bom pai de família (por alusão ao critério de imputação da cul-pa, art. 487º, n. 2, do CC).

Dessa forma, na atuação médica a lex artis traz o sentido de que “deve ser regida tendo em consideração o caso concreto em que se produz a atuação e a intervenção médica e as circunstâncias a qual as mesmas se desenvolvem e tenha lugar, assim como as inci-dências inseparáveis numa normal atuação profissional”77.

Cabe afirmar que se entende por lex artis [ad hoc] como aquele critério valorativo da correção do concreto ato médico executado pelo profissional da medicina (ciência ou arte médica) que tem em conta as especiais características de seu autor, da profissão, da complexida-de e da transcendência vital do paciente e, em todo caso, da influência de outros fatores endógenos (estado de intervenção do doente, de seus familiares, ou da organização sanitária), para qualificar tal ato como conforme ou não a técnica normal requerida (derivando disso tanto o acervo de exigências ou requisitos de legitimidade ou atua-ção lícita, da correspondente eficácia dos serviços prestados e, em particular, da possível responsabilidade de seu autor (médico) pelo resultado de sua intervenção ou do ato médico executado78.

Temos, portanto, como regra norteadora, a de medição de uma conduta médica, cujo objetivo é valorar a correção ou não do re-sultado de tal conduta, isto é, que a conduta (atuação médica) seja adequada e trilhe os caminhos das condutas gerais dos profissionais médicos em casos análogos. Acresce ainda, no âmbito da técnica, que os princípios ou normas da profissão médica enquanto ciên-cia se projetam para o exterior através de uma técnica e segundo a arte pessoal de cada autor, neste caso, o autor afetado pela lex artis é o profissional da medicina. Por sua vez, ainda acrescenta-se que o objeto sobre qual se recai a lex artis se assenta numa das espécies de atos – tipo de intervenção, meios assistenciais, estado do doente, gravidade ou não da dificuldade de execução.

77 VÁZQUEZ BARROS, Sergio. Responsabilidad Civil de los Médicos. Valencia: Tirant lo Blanch, 2009. p. 24.

78 Idem, ibidem, p. 25.

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5.3 Os requisitos da responsabilidade civil pela omissão da informação médica

Em decorrência da falta de informação, haverá consequências no caso em concreto. Pois, entende-se que a informação clarificada e suficiente é um requisito que valida o consentimento do paciente, assim, se verificar que não foi prestada informação ou que esta se tornou insuficiente para sustentar um consentimento esclarecido, temos por consequência, que o consentimento obtido é anulado, e o ato médico passa a ser tratado como expressão de um ato não au-torizado, o que gera, no âmbito civil, a devida responsabilidade civil pelos danos incorridos aos pacientes.

Desse modo, se for concluído que a informação não foi sufi-ciente para que o paciente pudesse se autodeterminar com toda a informação pelo qual necessitava, o consentimento é inválido e a in-tervenção médica ferida de ilicitude, visto que a causa de justificação – consentimento – não foi eficaz, como resultado dos artigos 81º e 340º do Código Civil79.

Afirma, assim, Gonçalo Pereira80 que “por isso mesmo, a violação do dever de informação/esclarecimento do paciente é fundamento de responsabilidade médica independentemente de negligência no que respeita à intervenção médica em termos técnicos e independente-mente do seu resultado positivo ou negativo”. Acresce o referido autor, no sentido de que “o dever de esclarecer e de obter o consentimento do paciente têm em vista salvaguardar os bens jurídicos autodeter-minação e liberdade pessoal bem como a integridade física e psíquica. Assim sendo, o médico responde, em princípio, por todas as conse-quências da intervenção, devendo compensar os danos patrimoniais e não patrimoniais81 resultantes da intervenção arbitrária”.

79 Art. 340º CC: “1. O acto lesivo dos direitos de outrem é lícito, desde que este tenha consentido na lesão. 2. o consentimento do lesado não exclui, porém a licitude do acto, quando este for contrário a uma proibição legal ou aos bons costumes. 3. Tem- -se por consentida a lesão, quando esta se deu no interesse do lesado e de acordo com a sua vontade presumível.”

80 PEREIRA, André Gonçalo Dias. O Dever de Esclarecimento e Responsabilidade Mé-dica. In: Responsabilidade Civil dos Médicos. Coimbra: Coimbra, 2005. p. 459.

81 O professor Carneiro da Frada, precursor da teoria do “dano existencial” que tem sua génese na tutela da personalidade, e neste ponto cremos ser relevante para o

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É, portanto, de se especificar que no campo da responsabili-dade médica, não há fundamento que justifique a construção de um obstáculo que impeça a responsabilização dos médicos (por viola-ção do dever de informação), mas, entretanto, procurar definir to-dos os critérios para sua configuração é de suma importância para a proteção dos direitos intersubjetivos da relação médico-paciente se operacionalize.

Assim, partindo da constatação de que a medicina é uma ati-vidade que gera riscos, na tarefa de imputação objetiva dos danos, deve-se, com efeito, verificar quais os riscos que a ordem jurídica pretende que sejam suportados pelo doente e quais devem ser su-portados pelo médico. Refere, nesse sentido, Gonçalo Pereira, que os riscos devem ser comunicados ao paciente, para que este em li-berdade e em consciência decida sobre se autoriza a intervenção, autocolocando-se em perigo; sendo esclarecidos, o médico deverá compensar o paciente pelos danos causados82.

Entende ainda a doutrinadora alemã Daniela Engljähringer, citada por Gonçalo Pereira, e pelo qual compreendemos haver coe-rência, que, na medida em que o consentimento não é uma crise ato-mística de assunções de risco, é um todo complexo, que exige um balanço global: uma ponderação global de riscos benefícios (billan-zantscheindung). O que se denota, com isso, é que se o risco a priori ocultado pelo médico tiver conexão com o risco verificado pelo pa-ciente a posteriori, o médico deve responder pelos danos criados. No

estudo em análise; considera que o “dano existencial” exprime antes de mais, uma pretensão, não tanto de classificar e tipificar um prejuízo no confronto com outros, quanto de identificar um nível de protecção da pessoa. Uma protecção que, se tem na responsabilidade civil um dos seus instrumentos mais eficazes, está muito lon-ge de esgotar neles, como de resto o art. 70, n. 2 recorda. Assinala, por conseguinte, que “seria totalmente precipitado negar os ‘danos existenciais’ a pretexto de que a protecção cresceria demesuradamente e sem controlo, como lembra um conhe-cido argumento contra o desmesurado crescimento da responsabilidade civil. De facto, todo o sistema de ressarcimento de danos tem de equilibrar-se adequada-mente com o sistema de protecção da liberdade e autonomia. Porque a tutela de alguém faz-se sempre, em direito civil, à custa de outrem. Vide em FRADA, Manuel A. Carneiro. Nos 40 anos do Código Civil Português – Tutela da personalidade e dano existencial. Lisboa: Revista Themis, 2008. p. 51.

82 PEREIRA, André Gonçalo Dias. O Dever de Esclarecimento e Responsabilidade Mé-dica. In: Responsabilidade Civil dos Médicos. Coimbra: Coimbra, 2005. p. 478.

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mesmo caminhar, se o médico omitir informações que sejam de tal forma relevantes a ponto de o paciente recusar a intervenção caso tivesse tido o conhecimento delas, o médico responde por todos os danos como se não tivesse havido consentimento.

5.4 A violação do dever de informação: ilicitude

Como foi dito acima, a simples omissão do médico em revelar adequadamente as informações ao paciente, cujas quais entende- -se que deveriam ser prestadas, incorre na sua responsabilização, de regra, por todas as consequências negativas posteriores a sua intervenção no paciente, visto que o consentimento suprimido tornou a relação médico-paciente (que pode ser contratual ou ex-tracontratual83) ineficaz, caracterizando-se, portanto, como sendo esta intervenção ilícita. Decorre, dessa feita, que a ilicitude desta intervenção viola bens jurídicos tutelados, a saber: a liberdade [au-todeterminação] e a integridade física e psíquica.

No que diz respeito à violação do bem jurídico integridade físi-ca e psíquica – ou a vida em último caso –, o médico responde pelos danos patrimoniais que tiveram causa em razão da intervenção ilí-cita. Como já frisado, salienta-se que não são apenas os danos cau-sados pelo dever de informação (ou dever de esclarecer) merecem ser indenizados.

Desde logo importa ainda ressaltar, de que não se deve ter como resultado danoso (e consequentemente a condenação do médico), todo e qualquer dano que ocorra na sequência de uma intervenção em que se deu como violado o dever de informação. Pois, para não se cair no arbitrarismo, o juiz deverá discernir quais os riscos que o

83 Devemos ter por consideração que, a responsabilidade médica, que tanta trans-cendência tem na sociedade, é porventura expressão da mais ampla responsabi-lidade profissional, e tem especiais características, porém não singulares prer-rogativas. Nesse sentido, poderá haver responsabilidade contratual – quando há produção de um dano pelo incumprimento total ou parcial de um contrato, e para tal aperfeiçoar-se, é necessário que a realização de um ato danoso aconteça dentro da rigorosa órbita do pactuado entre as partes (relação médico-paciente); de ou-tro lado, há também a responsabilidade extracontratual, é o caso quando o dano não advém da execução do contrato, mas sim que se tenha produzido à margem da relação contratual.

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Direito pretendia que fosse recaído na sobre a esfera do paciente e quais os que deveriam recair sobre a esfera do médico (os quais ele apenas se exime se cumprir o dever de informar). Ou seja, segundo opinião de Gonçalo Pereira,

[...] mesmo que o médico não informe de um risco que deveria ter revelado e se verifique um risco que recai sobre a esfera de risco do paciente, o médico só responde se houver uma co-nexão material entre o risco não revelado e o risco ocorrido ou se a falta de informação impossibilitou o paciente de tomar uma decisão informada em termos de ponderação adequada de riscos e benefícios (bilanzantscheindung) e se conclua, as-sim, que se deve imputar ao médico a responsabilidade pelos danos verificados.84

5.5 Uma questão além do prejuízo como fundamento da responsabilidade civil médica

No campo da responsabilidade civil, o estabelecimento do pre-juízo é uma das condições necessárias para obter a reparação. Mas, na responsabilidade civil médica não é a condição suficiente.

Como fator primordial a ensejar a responsabilidade médica, faz-se imperioso a demonstração da existência de uma falta come-tida pelo médico. Alguma doutrina sustenta que esta falta caracte-riza-se pela força de cinco requisitos: a imperícia, a imprudência, a desatenção, a negligência e a inobservância de regulamentos85. Dessa forma, a falta será a ausência de um destes requisitos ou o conjunto de alguns deles.

No entanto, em se tratando de falta médica por decorrência do consentimento informado, em primeiro lugar tem que se ter por re-levo, de que se o paciente consentiu – e nisto, tenha sido previamente e devidamente informado – só haverá indemnização em caso de má prática médica, isto é, por violação negligente das regras da lex artis. Outro sim, o consentimento na sua totalidade considerado válido,

84 Vide opinião de PEREIRA, André Gonçalo Dias. O Dever de Esclarecimento e Responsa-bilidade Médica. In: Responsabilidade Civil dos Médicos. Coimbra: Coimbra, 2005. p. 496.

85 PINA, J. A. Esperança. A responsabilidade dos médicos. 3. ed. Lisboa: Edições Lidel, 2003. p. 117.

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transfere para a esfera jurídica do paciente os riscos da intervenção, mas desde que esta tenha sido realizada de forma diligente.

Por seu turno, se a intervenção médica for realizada de forma arbitrária, tanto porque não se obte ve o consentimento prévio ou porque este consentimento maculou-se de vício (ligeiramente por falta de informação adequada), deve-se distinguir duas situações específicas: uma intervenção médica sem consentimento (ou com consentimento viciado), mas que esta não produza quaisquer danos (corporal) ao paciente, isto é, sem qualquer agravamento no estado de saúde do paciente; e uma intervenção que considerada arbitrária, que provocou consequências desvantajosas ao paciente.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tendo-se em consideração o que atrás se expôs, percebe-se que a tendência atual da relação médico-paciente traduz uma preo-cupação na concretização dos princípios que consagram os direitos dos doentes, notadamente, o direito ao consentimento livre e escla-recido, este também designado por consentimento informado.

Especificando o paradigma dos direitos dos doentes, no âmbito da evolução da Medicina, cuja relação médico-paciente possuía um cariz tradicionalmente paternalista – pelo qual o doente sempre se sujeitava a vontade do médico, não possuindo autonomia de decisão –, agora com o advento dos novos conceitos como o direito à autode-terminação, ou seja, pela capacidade e a autonomia que os próprios doentes têm para decidir suas vidas, estabeleceu-se um novo mode-lo conceitual que precisamente é o fundamento da teoria do consen-timento informado.

Sendo assim, adotamos o raciocínio interpretativo que perfilha o entendimento de que, mesmo não havendo uma legislação especí-fica que trate sobre o consentimento informado, este deve ser enca-rado como um pré-requisito para a realização dos atos médicos no campo das intervenções cirúrgicas, de diagnóstico ou de tratamento, logo que a sua consecução é o único meio de assegurar os direitos subjetivos dos pacientes, devendo-se, portanto, ser guarida de tu-tela; visto que este esclarecimento permite ao doente participar de

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uma forma livre e responsável nas decisões implicadas no seu caso clínico, e pelo qual se deve considerar como um momento privilegia-do no estabelecimento da relação médico-paciente.

Entretanto, se o médico por uma conduta negligente, desidio-sa, alheia aos devidos cuidados que conferem ao paciente uma ade-quada informação sobre seu estado clínico presente e futuro, vier a causar um dano na esfera corporal ou psicológica do paciente, ou até mesmo levando-o à morte, sobre o mesmo pode recair uma respon-sabilidade civil (sem prejuízo da responsabilidade penal) pelo ato médico que resultou tal dano. Neste sentido, consagra-se não o di-reito à indemnização do paciente por decorrência de um dano na sua esfera corporal ou psíquica, mas antes, consagra-se a tutela do direi-to subjetivo de autodeterminação sobre o seu corpo; da integridade física, psíquica e moral, cujas maximes uma vez violadas faz suscitar os pressupostos da responsabilização.

REFERÊNCIAS

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Revista Jurídica da FADISMA, Santa Maria, v. 5, n. 1, p. 55-83, 2010

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VÁZQUEZ BARROS, Sergio. Responsabilidad Civil de los Médicos. Valencia: Tirant lo Blanch, 2009.

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PUBLICIDADE ILÍCITA: O TRATAMENTO LEGAL PÁTRIO

VOLTADO PARA A CRIANÇA

Aline Raquel CazzaroliBacharel em Direito pela FADISMA – Faculdade de Direito de Santa Maria (2010), em Santa Maria/RS. Possui formação em curso de Gestão da Comunicação pela FGV.

RESUMO:

A discussão acerca da publicidade ilícita destinada ao consumidor infantil no Brasil passou por um processo de transformações na pós-modernidade, deixando de ser um mero anúncio informativo para tornar-se uma ferramenta de persua-são, influenciando nos valores sociais, morais e culturais, inserindo desta forma as crianças na cultura de consumo. Os altos investimentos no setor publicitário e seus meios de persuasão fogem dos padrões estabelecidos pelas normas legais que protegem a criança nas relações de consumo. Ao analisar de forma sistemá-tica os diplomas legais específicos, verifica-se que este tipo de publicidade é proi-bido no ordenamento jurídico brasileiro. Nesse sentido, buscou-se demonstrar as inovações legais que o Brasil vem adotando em relação a determinado assunto, como o surgimento do Projeto de Lei n° 5.921/2001, que se encontra em trami-tação na Câmara dos Deputados. Palavras-chave: Publicidade ilícita. Obesidade. Consumidor infantil.

SUMÁRIO:

1. Considerações Iniciais. 2. A publicidade dirigida à criança. 3. O tratamento legal pátrio dado à publicidade voltada para a criança. 4. Considerações Finais. • Referências.

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1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A publicidade teve seu surgimento na Inglaterra, no século XV, através de anúncios religiosos da época. Desde então, com o cresci-mento da concentração monopolística, dos mecanismos do merca-do e de sua livre iniciativa, bem como o desenvolvimento dos meios de comunicação em massa, (inicialmente pelos jornais e periódicos, depois pelo rádio e em seguida pela difusão da televisão), a publici-dade obteve relevante crescimento. Nesse cenário, a criança aparece como um dos principais centros da publicidade, especialmente no século XXI, tornando-se uma questão essencial para a publicidade frente ao mercado de consumo. Assim, consumir torna-se um papel importante nas relações sociais infantis que cresce nesse meio ace-lerado de consumo.

Frente ao consumidor infantil, o Direito demonstra a preocu-pação de fazer menção a determinado assunto, em face de a criança ser considerada pessoa em desenvolvimento e vulnerável median-te as relações de consumo. A ideia central é analisar a publicidade que tem por objetivo envolver e induzir a criança, já considerada como importante consumidora, com ativa participação no merca-do de consumo. Essa problemática insere-se no Brasil dentro de um quadro jurídico de especial proteção da criança como consumi-dora, na qual suas consequências são de suma importância para o Direito.

Quando se referencia a criança como consumidora central, de-ve-se lembrar que ela somente consegue fazer uma avaliação mais crítica do conteúdo publicitário após desenvolver a habilidade de reconhecer o caráter persuasivo contido na mensagem publicitária. Considerando que a criança não identifica o caráter persuasivo da publicidade, entende-se que toda e qualquer publicidade deve ser regulamentada na forma da lei. Importante esclarecer a distinção entre propaganda e publicidade, a qual encontra-se expressa no Có-digo de Defesa do Consumidor. Para uma melhor compreensão do tema, Benjamin, Marques e Bessa1 elucidam:

1 BENJAMIN, Antônio Herman; MARQUES, Claudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de direito do consumidor 2. ed., rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 195.

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87Publicidade ilícita: o tratamento legal pátrio voltado para a criança

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Os termos publicidade e propaganda são utilizados indistin-tamente no Brasil. Não foi esse, contudo, o caminho adotado pelo Código de Defesa do Consumidor. Não se confunde publi-cidade e propaganda, embora no dia-dia do mercado, os dois termos sejam utilizados um pelo outro. A publicidade tem um objetivo comercial, enquanto a propaganda visa um fim ideo-lógico, religioso, filosófico, político, econômico ou social. Fora isso, a publicidade, além de paga, identifica seu patrocinador, o que nem sempre ocorre com a propaganda. O Código de Defe-sa do Consumidor não cuida de propaganda. Seu objetivo é só, e tão só, a publicidade.

Para tanto, num primeiro momento analisar-se-ão as relações de consumo, abordando a publicidade voltada para o público infan-til, suas noções e conceitos gerais. Num segundo momento, observar- -se-á a legislação vigente sobre o tema, destacando a doutrina pátria qualificada no que concerne à defesa dos direitos da criança frente à publicidade que lhe é dirigida, regulamentadas de forma impetuosa pelo Poder Judiciário, pelos órgãos não governamentais e instituições administrativas responsáveis pelo seu controle e suas inovações.

Mediante o exposto, é necessário ressaltar que não se pretende esgotar as vias de pesquisa do assunto ora proposto, mas sim, ana-lisar de forma substancial o conteúdo da publicidade em relação ao ordenamento jurídico brasileiro a qual necessita, pela sua importân-cia, de estudos e reflexões mais aprofundados.

2 A PUBLICIDADE DIRIGIDA À CRIANÇA

O desenvolvimento da publicidade deu-se como consequência da Revolução Industrial, integrando o conjunto das chamadas Re-voluções Burguesas2na passagem do capitalismo comercial para o industrial. Sob influência dos princípios iluministas, assinalaram a transição da Idade Moderna para Contemporânea.

2 As “Revoluções Burguesas” do século XVIII, responsáveis pela crise do Antigo Regi-me, na passagem do capitalismo comercial para o industrial. Os outros dois movi-mentos que a acompanham são a Independência dos Estados Unidos e a Revolução Francesa, que, sob a influência dos princípios iluministas, assinalam a transição da Idade Moderna para Contemporânea.

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Respectivamente, foi surgindo a publicidade de massa, dirigida a um número indeterminado de pessoas, alcançando seu auge no Sé-culo XX com o crescimento dos mercados produtor e consumidor em todo o mundo, sobretudo ao surgimento de uma população mundial havida pelo consumo de produtos e serviços. Para Baudrillard3, a ex-pansão desta cultura de consumo e sua manutenção são garantidas pela mídia, principalmente na publicidade, o mais notável meio de comunicação de massa de nossa época.

O acelerado crescimento do mercado de consumo foi gerado pelo aumento do mercado publicitário, que atualmente faz parte do cotidiano e influencia as pessoas não somente no tocante aos produtos e serviços que irão adquirir, mas também com relação a questões comportamentais da sociedade. A publicidade é, de fato, capaz de alterar hábitos antigos da sociedade, e por isso justifica os elevados investimentos que nela é feita pelos mais diferentes tipos de anunciantes.

Na década de 1950, foi transmitida a primeira propaganda com elenco infantil no Brasil. Até a década de 1980, essa participação era limitada a campanhas de produtos alimentícios. Nos dias de hoje, crianças vendem carros, plano de saúde e seguro a imóveis. Segundo Sampaio4, depoimentos de publicitários indicaram quatro principais razões para a presença da criança na mídia:

[...] 1) A criança ouve outra criança, ou seja, ela é particular-mente sensível à interpelação de outra criança; 2) A criança tem um forte apelo emocional ou, nas palavras do criativo, ela tem um “apelo mágico” que emociona adulto e o sensibiliza; 3) A criança pode contribuir para o rejuvenescimento da marca; 4) A criança tem empatia com os anunciantes, favorecendo a aprovação dos comerciais.

A publicidade direcionada ao público infantil sustenta esforços profissionais carregados de atrativos na sedução do consumidor in-fantil, um poder de persuasão e obtenção de reconhecimento junto

3 BAUDRILARD, Jean. A sociedade de consumo. Tradução de Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 2007. p. 42.

4 SAMPAIO, Inês Silvia Vitorino. Televisão, publicidade e infância. 2. ed. São Paulo: Annablume, 2004. p. 152.

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ao universo infantil, pela intermediação de brinquedos, dos perso-nagens infantis e da marca. Esses fatores despertaram nas empresas o interesse em produzir meios de consumo para o público infantil.

Dados revelam que as crianças possuem dentro de seu núcleo familiar 70% das decisões de compra, e representam para as em-presas fidelização de consumo para o futuro, tornando-as depen-dentes do produto. Houve a constatação de grande influência das crianças na compra de diversos produtos, especialmente alimentos 92%, brinquedos 86% e roupas 57%. No ano de 2000, 71% dos pais afirmavam sofrer a influência dos filhos na hora das compras. No ano de 2003, o índice subiu para 80% nesta pesquisa, com 38% in-fluenciando fortemente na decisão. Na escolha da marca, 63% deles influenciam nas compras, sendo que metade das crianças com idade entre 07 e 13 anos influencia de maneira exagerada5.

Quando tratamos de qualquer relação de consumo que envolva crianças como consumidoras, estas serão consideradas presumida-mente hipossuficientes, sem necessitar de um prévio julgamento da causa, providas de inúmeros direitos e proteções. Estes aspectos vão além, devido à criança ser considerada também mais vulnerável que um adulto ao poder de persuasão, em razão de sua condição de pes-soa em desenvolvimento intelectual. Nestes termos, sobre a hipossu-ficiência6 e vulnerabilidade7 da criança:

Não custa lembrar que são distintos os conceitos de Vulnerá-vel e hipossuficiente. Vulnerável é todo consumidor, ope legis. Hipossuficientes são certos consumidores ou certas categorias de consumidores, como idosos, as crianças, os índios, os do-entes, os rurícolas, os moradores da periferia. Percebe-se, por

5 É o que demonstra uma pesquisa realizada pelo Datafolha, encomendada pelo Ins-tituto Alana, feita com pais de crianças de 3 a 11 anos, nos dias 22 e 23 de janeiro de 2010. Os números mostram que 70% dos pais são influenciados na hora das compras. Disponível em: <http://www.alana.org.br/banco_arquivos/Arquivos/docs/biblioteca/pesquisas/consumismo_infantil_final.pdf>.

6 Para Rizzatto Nunes, a hipossuficiência tem sentido de desconhecimento técnico e informativo do produto/serviço, de suas propriedades, de seu funcionamento vi-tal e/ou intrínseco, dos modos especiais de controle, dos aspectos que ter gerado o acidente de consumo e o dano, das características do vício, etc.

7 Para Rizzatto Nunes, a vulnerabilidade é o conceito que afirma a fragilidade eco-nômica do consumidor e também técnica.

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conseguinte, que a hipossuficiência é um plus em relação à vul-nerabilidade. Esta é aferida objetivamente. Aquela, mediante um critério subjetivo, consumidor a consumidor, ou grupo de consumidores a grupo de consumidores.8

3 O TRATAMENTO LEGAL PÁTRIO DADO À PUBLICIDADE VOLTADA PARA A CRIANÇA

Quando a publicidade é conceituada como uma forma ou meio de comunicação, deve-se ressaltar que esta não abrange atividades que tenham intuito de levar informação, mas sim aquelas que te-nham por finalidade uma atividade econômica. Como se ponderou, com a massificação da produção, com a aproximação dos mercados de consumo e sociedade, a publicidade teve relevante crescimento. As normas até então existentes tinham como fundamento basica-mente os princípios da liberdade, igualdades dos direitos, obriga-ções dos cidadãos e da livre concorrência.

Em 1988, com o advento da Constituição Federal, constituiu- -se efetivamente um “novo” direito privado9, mais consciente de sua função social, incluindo a defesa dos direitos do consumidor consi-derados como fundamentais. E, em seu artigo 220 passou a discipli-nar a comunicação social, de forma a garantir o direito de liberda-de de expressão, previsto no artigo 5°, incisos IV, V, IX, X, XIII, e XIV. Esse artigo 220, em seu § 3°, inc. II, determina a matéria como de competência da lei federal, estabelecendo a proteção das pessoas de “programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto no artigo 221, bem como da propaganda de produtos, prá-ticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente”.

No entanto, foi com o Código de Defesa do Consumidor10 que a publicidade passou a ser especificadamente regulamentada por

8 GUIMARÃES, Paulo Jorge Scartezzini. A publicidade ilícita e a responsabilidade ci-vil das celebridades que dela participam. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 210.

9 Um novo direito civil reflete a ideia da (re)construção desse ramo do Direito à luz da Constituição Federal de 1988.

10 Lei 8.078/90. No Capítulo das Práticas Comerciais do Código de Defesa do Consu-midor, arts. 30 a 38 está regulamentada a publicidade.

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lei. Anteriormente ao surgimento do Código de Defesa do Consu-midor, a publicidade era cuidada tão somente pelo Conselho de Au-torregulamentação Publicitária – Conar11, que na sua qualidade de organização da sociedade civil, controla a publicidade com base nas normas estabelecidas pelo Código Brasileiro de Autorregulamenta-ção Publicitária. Anteriormente ao surgimento do Código de Defesa do Consumidor, que disciplina a publicidade de forma específica, somente o Código de Autorregulamentação Publicitária do Conar possuía alguma interferência nesse assunto. Eventuais lides a res-peito, no âmbito judicial, eram dirimidas com base na Constituição Federal de 1988 e no Código Civil de 1916 em seu genérico sistema de responsabilidade civil, bem como leis esparsas sobre questões referidas à publicidade. Os atos do Conar não têm efeito vinculativo; tratam-se apenas de recomendações, opiniões, conselhos ou pare-ceres, destituídos de força cogente.

A hipossuficiência pode ser físico-psíquica, econômica ou me-ramente circunstancial. O Código, no seu esforço enumerativo, men-cionou expressamente a proteção especial que merece a criança contra os abusos publicitários. O Código de Defesa do Consumidor menciona, expressamente, a questão da publicidade que envolva a criança como uma daquelas a merecer atenção especial. É em função do reconhecimento dessa vulnerabilidade exacerbada (hipossufici-ência, então) que alguns parâmetros especiais devem ser traçados.

Efetivamente no Brasil, a proteção do consumidor é um valor fundamental, princípio da ordem econômica da Constituição Fede-ral12, limitador da autonomia da vontade das partes em uma rela-ção de consumo. As crianças são consideradas sujeitos de direitos plenos, e possuem valioso instrumento de defesa de seus interesses, permitindo que sejam tratadas de forma diferenciada devido ao seu estado natural de desenvolvimento.

11 O Conar atende denúncias de eventuais irregularidades em peças publicitárias, que podem ser realizadas por seus associados, por autoridades diversas, por con-sumidores em geral, ou por sua própria diretoria.

12 O artigo 170 da Constituição Federal de 1988 regula o princípio da ordem eco-nômica com a seguinte redação: “A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre-iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: [...] inciso V – defesa do consumidor”.

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De acordo com o artigo 2° do Estatuto da Criança e do Ado-lescente, considera-se criança “a pessoa até doze anos incomple-tos”. Ademais, no tocante à publicidade voltada ao público infantil, o Estatuto da Criança e do Adolescente que disciplina o conteúdo da informação divulgada pelo mercado publicitário como um todo em capítulo especial. Logo no seu artigo 1°, prega a proteção integral da criança e do adolescente em concordância com a Convenção Inter-nacional dos Direitos da Criança, que estabelece o princípio da pro-teção integral, base do referido Estatuto, adotada pela Assembleia Geral da ONU, em 1989, ratificada pelo Brasil em 1990.

Em razão do disposto no artigo 227 da Constituição Federal de 1988, que vinculou a legislação ordinária à concepção do princí-pio da proteção integral, surgiu o primeiro anteprojeto do Estatuto da Criança e do Adolescente, chamado de “Normas Gerais de Prote-ção à Infância e à Juventude”, que mais tarde consolidou-se na Lei 8.069/90.

De acordo com o artigo 2° do Estatuto da Criança e do Adoles-cente, considera-se criança “a pessoa até doze anos incompletos”. Conforme expresso no Estatuto, é obrigatória a implementação do Princípio da Proteção Integral. Conforme doutrina Henriques13:

A proteção integral diz respeito ao conjunto de direitos pró-prios dos cidadãos em formação, que se diferenciam dos de-mais direitos fundamentais inerentes à pessoa humana. As-sim, por meio da proteção integral, expressamente instituída no art. 1° do Estatuto da Criança e do Adolescente, foram ga-rantidos os direitos especiais e específicos da criança e do ado-lescente, universalmente reconhecidos.

Consoante ao exposto, o princípio da dignidade humana nor-teia não somente a esfera legal, mas também ética e moral. Com o surgimento e desenvolvimento acelerado da publicidade, a qual atinge todos os meios de comunicação em massa, fica evidente o sur-gimento de inúmeros conceitos atuais sobre o significado do que é ilícito e prejudicial para a proteção e dignidade do ser humano.

13 HENRIQUES, Isabella Vieira Machado. Publicidade abusiva dirigida à criança. Curi-tiba: Juruá, 2008. p. 132.

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Concomitantemente, o Estatuto da Criança e do Adolescente buscou proteger a criança dos meios de publicidade ilícita, estabe-lecendo, em seu artigo 4°, a proteção de sua liberdade, e no artigo 17, a preservação da autonomia das crianças e adolescentes. Ciente das dificuldades reais relativamente ao que é apresentado às crian-ças através da mídia em geral, o legislador, no artigo 71 do Esta-tuto, estipula o direito da criança e do adolescente à informação, cultura, lazer, esportes, diversões, espetáculos, produtos e serviços que respeitem a sua condição peculiar de pessoas em desenvolvi-mento. Desta forma, tudo o que for oferecido às crianças, deve ser compatível com sua faixa etária.

Para a análise das limitações, bem como da necessidade de serem impostas formas de restrições no tocante à publicidade vol-tada ao público infantil, é necessário abordar o conflito originado entre a garantia à liberdade de expressão do pensamento e o direi-to da criança de proteção contra a publicidade que lhe é destina-da. O princípio da liberdade de expressão é considerado garantia fundamental e está previsto no artigo 5° da Constituição Federal, determinando a liberdade de expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação.

A liberdade de expressão do pensamento consagrou-se através Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada pela Assem-bleia Geral da Organização das Nações Unidas – ONU no ano de 1948. Mais tarde, em 1966, foi fundamentado no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos. Neste Pacto, em seu artigo 19, assegura o di-reito à liberdade de expressão, e ao mesmo tempo faz a observação de que tal direito poderá estar sujeito a certas restrições, ao passo de assegurar o respeito dos direitos e da reputação das demais pessoas a fins de proteger a segurança nacional, a ordem, a saúde e a moral. O Pacto de São José da Costa Rica, criado em 1969 também apresenta exceção ao direito à liberdade de expressão do pensamento, dizendo, expressamente, no § 4° do artigo 13, que “a lei pode submeter os espe-táculos públicos à censura prévia, com o objetivo exclusivo de regular o acesso a eles, para proteção moral da infância e da adolescência”.

No ano de 1989, surge a Convenção da ONU sobre Direitos da criança14, sendo incorporada ao direito brasileiro em 1990, vindo

14 Disponível em: <http://www.onu-brasil.org.br/doc_crianca.php>.

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a reforçar as disposições do texto constitucional e do Estatuto da Criança e do Adolescente, no que se refere aos direitos da criança. Como se pode notar, a Convenção também adotou a Teoria da Prote-ção Integral, afirmando o compromisso do Estado brasileiro, frente à comunidade internacional, em garantir os direitos da infância e da juventude. Portanto, tem força de Lei no Brasil, e traz em seu artigo 1° que criança é “todo ser humano menor de 18 anos de idade” e institui os direitos à vida, à dignidade, à liberdade, à integridade, etc. É interessante notar que o texto da Convenção refere-se explicita-mente aos conteúdos midiáticos que devam ser orientados para um desenvolvimento saudável da criança. Em seu artigo 13, a Convenção da ONU determina:

1. A criança terá o direito à liberdade de expressão, este direito incluirá a liberdade de buscar, receber e transmitir informa-ções e ideias de todos os tipos, independentemente de frontei-ras, de forma oral. Escrita ou impressa, por meio das artes ou por qualquer outro meio da escolha da criança. 2. O exercício desse direito poderá sujeitar-se a certas restri-ções que serão somente as previstas em lei e consideradas ne-cessárias:a) Ao respeito dos direitos e da reputação de outrem;b) À proteção da segurança nacional ou da ordem pública, ou da saúde e moral públicas.

Destarte, fica evidente que todo o tipo de atividade publicitá-ria, feita por meio de campanhas e anúncios deve respeitar as regras estabelecidas em lei. Conforme consta no Código de Defesa do Con-sumidor, este estabelece em seu artigo 1°, normas de ordem pública e interesse social, nos termos do artigo 5°, inc. XXXII e artigo 170, inc. V, ambos da Constituição Federal, e artigo 48 do Ato das Disposi-ções Constitucionais Transitórias, regras que devem ser reverencia-das e adotadas pelos cidadãos em seus meios determináveis (pro-dutores, vendedores, consumidores). Ao referenciar a criança como consumidora principal, deve-se lembrar que esta somente consegue apresentar uma avaliação mais crítica do conteúdo publicitário após desenvolver a habilidade de reconhecer o caráter persuasivo da pu-blicidade. Considerando que a criança não identifica o caráter per-

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suasivo da publicidade, entende-se que toda e qualquer publicidade deve ser reprimida e regulamentada na forma da lei. Importante es-clarecer a distinção entre propaganda e publicidade, a qual se en-contra expressa no Código de Defesa do Consumidor.

A limitação imposta a revistas e publicações destinadas ao pú-blico infantil, tem previsão no artigo 78 do Estatuto da Criança e do Adolescente, o qual assevera que os conteúdos impróprios ou inadequados deverão ser comercializados em “embalagem lacrada, com a advertência ao seu conteúdo”. Adiante, no artigo 79, o referi-do Estatuto prevê que as revistas e publicações destinadas ao públi-co infantil “não poderão conter ilustrações, fotografias. Legendas, crônicas ou anúncios de bebidas alcoólicas, tabacos, armas e muni-ções, e deverão ser respeitados os valores éticos e sociais da pessoa e da família”.

Ademais, as vias jurídicas não se esgotam, tendo determinado assunto, relevância para o Ministério Público. Sua atuação deu-se de forma inovadora com a consolidação da Lei 7.347 no ano de 1985 – Lei da Ação Civil Pública –, surgindo a ideia de legitimidade para atuar no âmbito judicial. Anteriormente à criação da Lei, o promotor responsável pelas causas relacionadas à defesa do consumidor pode-ria atuar somente nas causas em que tramitassem no âmbito admi-nistrativo. De forma complementar, em 1990, surge a Lei 8.078, que criou o Código de Defesa do Consumidor, originando-se um sistema público de controle da publicidade de consumo. Após o advento da Constituição Federal de 1988, o Ministério Público ganhou profundo reconhecimento nas garantias de direitos coletivos relacionados ao meio ambiente, ordem urbana, patrimônio público, portadores de deficiência, consumidores, criança e adolescente, aludindo a Consti-tuição Federal em seu artigo 127:

O Ministério público é instituição permanente, essencial à fun-ção jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e indi-viduais indisponíveis.

É, portanto, parte da atuação pública no que diz respeito ao controle da publicidade. Quando o conteúdo de alguma causa tra-

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tar-se de interesses coletivos relacionados à publicidade dirigida ao público infantil, o Ministério Público, no que dispõem o artigo 200 do Estatuto da Criança e do Adolescente, atuará nos termos da sua respectiva Lei Orgânica, observando a competência que lhe foi dada pelo artigo 201 do referido Estatuto, atentando, inclusive, para as publicidades de produtos nocivos à saúde e à segurança de crianças e adolescentes, da seguinte forma:

Art. 201. Compete ao Ministério Público:[...]V - promover o inquérito civil e a ação civil pública para a pro-teção dos interesses individuais, difusos ou coletivos relativos à infância e à adolescência, inclusive os definidos no art. 220, § 3º, inciso II, da Constituição Federal;[...]VIII - zelar pelo efetivo respeito aos direitos e garantias legais assegurados às crianças e adolescentes, promovendo as medi-das judiciais e extrajudiciais cabíveis;

Quando não for parte, o Ministério Público deverá obrigatoria-mente atuar na proteção e defesa dos direitos e interesses indivi-duais, coletivos ou difusos da criança e do adolescente como custus legis (fiscal da lei), conforme previsto no artigo 202 da referida lei.

Pode-se concluir, que as normas brasileiras acerca dos limites da publicidade ilícita se interpretadas conjuntamente, tutelam de maneira satisfatória os direitos fundamentais da criança, e ao mes-mo tempo protegem a liberdade de expressão em favor da publicida-de. Porém, no cotidiano ainda existem diversos tipos de publicidade ilícita dirigida às crianças, em todos os meios de comunicação em massa, publicidades estas que extrapolam no uso de personagens e celebridades infantis, com apelos consumistas considerados agres-sivos às crianças.

Consoante a esse entendimento, no Brasil existe o projeto de Lei n° 5.921/01, de autoria do Deputado Federal Luiz Carlos Hauly15, aprovada no ano de 2008 pela Comissão de Defesa do Consumidor

15 Projeto de Lei nº 5.921/01, autoria de Luiz Carlos Hauly. Texto disponível na ínte-gra no site <http://www.camara.gov.br/sileg/Prop_Detalhe.asp?id=43201>.

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da Câmara dos Deputados, que prevê a proibição e restrição de pu-blicidade dirigida ao público infantil em Lei específica. O referido projeto de Lei ainda está em trânsito e aguarda avaliação de outras Comissões antes de fazer parte do ordenamento jurídico.

Portanto, com toda proteção que o Ordenamento Legal Pátrio reverencia determinado assunto, e de contraste a forma com que a publicidade se expõe diante do público infantil, pressupõe que esta usa suas campanhas publicitárias com objetivo primordial de ven-der algum produto ou serviço, sem que exista outro tipo de preo-cupação de cunho social ou cultural. Essa proteção deve ser tratada com prioridade, respeitando as diversas fases do desenvolvimento físico e psíquico das crianças.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como visto a publicidade ilícita dirigida ao público infantil é tema amplo, que envolve princípios fundamentais e normatização em mais de um dispositivo legal. Embora muito confundida com propaganda, não são a mesma coisa, mas estão ligadas de forma concomitante.

Buscou-se esclarecer, que atualmente, a publicidade faz parte da vida das pessoas, estando presente nas emissoras de rádio, nas revis-tas, nos jornais, outdoors, na rede de televisão, entre outros, os chama-dos meios de comunicação em massa. São classificados como “meios de comunicação em massa” pelo fato de serem responsáveis pela ma-nifestação do pensamento e pela criação, expressão e informação.

O acelerado crescimento desse ramo de publicidade, fez com que os investidores, não satisfeitos em fazer publicidade de brinque-dos, guloseimas com alto teor de gorduras e outros atrativos infan-tis, dedicaram-se em implementar elementos do mundo infantil nos anúncios de produtos voltados exclusivamente para adultos.

Necessário se faz o exercício de um maior controle dessa ati-vidade publicitária, em relação ao contexto social, tornando-se ina-ceitável o crescimento da publicidade ilícita no que diz respeito à comercialização de produtos nocivos à saúde e desenvolvimento in-telectual infantil, de um consumo exagerado e precoce, bem como as consequências que este tipo de publicidade implica.

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DIREITO AMBIENTAL E O CIDADÃO ECOLÓGICO

Aline AndrighettoBacharel em Direito e pós-graduada em Direito Ambiental pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí). Mestranda em Direito e Mul-ticulturalismo pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI). Bolsista pela CAPES. Contato: [email protected]

RESUMO:

O presente artigo busca demonstrar algumas reflexões sobre os problemas de-correntes da degradação do meio ambiente, sendo necessárias novas atitudes do ser humano e uma fiel conscientização para a melhoria do Meio Ambiente. O ambiente necessita de cuidados e a partir desse pressuposto surge uma questão que diz respeito a um conjunto de atores sociais, potencializando o envolvimento de pessoas decididas a mudar o planeta e proporcionar à comunidade a oportu-nidade de obter novos conhecimentos a cerca do tema. A busca pela preservação ambiental deve ser acima de tudo uma busca pela transformação social, no in-tuito de transformar o cidadão em um ser ecológico capaz de melhorar o mundo e as relações entre homem e a natureza, tendo consciência de que os recursos naturais poderão se esgotar e o principal responsável pela sua degradação é o próprio ser humano.Palavras-chave: Meio Ambiente. Atitude. Preservação. Transformação.

SUMÁRIO:

1. Considerações Iniciais. 2. O Cidadão e a Sociedade Civil. 3. Meio Ambiente. 4. Competência em matéria ambiental. 5. Exercício da Cidadania no meio ambiente. 6. Considerações Finais. • Referências.

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1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O presente trabalho visa analisar a situação do meio ambiente e as atitudes do ser humano no sentido de contribuir para a sua pro-teção e manutenção. Menciona o direito do cidadão ao meio ecologi-camente equilibrado e seus deveres e ainda a necessidade de trans-formação do homem como fator relevante do processo de conscien-tização do ser humano.

A busca e os motivos pelos quais existem tantas preocupações com o meio ambiente e seus problemas devem-se à falta de conscienti-zação do cidadão sobre o Meio Ambiente e a Educação Ambiental, sen-do necessário trabalhar em prol da construção do cidadão ecológico.

O que se pode afirmar ainda é que as buscas pela conscientiza-ção do homem sobre a necessidade de proteção ao meio ambiente são sempre as mais intensas, pois o sistema capitalista, a economia e a política são os pontos que mais preocupam a sociedade. O cres-cimento das cidades, da capacitação científica e ainda tecnológica transtornam o ser humano, surgindo preocupações com o meio e provocando um grande problema para o futuro da Humanidade.

Nesta pesquisa utiliza-se o método de abordagem dedutiva e analisa-se a doutrina concernente ao tema, com o intuito de demons-trar que por meio da Educação Ambiental e da informação busca-se a construção de uma cidadania mais abrangente.

A busca pela ecocidadania que deve se intensificar os trabalhos de transformação do ser humano para que em um futuro próximo se possa alcançar o desenvolvimento sustentável com sadia qualidade de vida para todos.

Com este trabalho teórico-científico busca-se pontuar proble-mas e atitudes que o ser humano vem desenvolvendo na busca de uma nova cidadania, a qual preocupa-se com o meio em que vive e por meio da Educação Ambiental tenta desenvolver um novo méto-do de trabalho para com o mundo.

2 O CIDADÃO E A SOCIEDADE CIVIL

Algumas correntes entendem o contexto de cidadania como construção de um Estado Democrático de Direito, citando como

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exemplo, o liberalismo. Por outro lado, alguns pensadores entendem que o Direito está inserido na Moral, assim, torna-se elemento estru-turador da democracia. Ainda, pode-se dizer que existem doutrina-dores que relacionam a visão de Direito com os interesses econômi-cos de classes para enfatizar a noção de sociedade.

É a partir deste entendimento que surge a expressão “Direito Alternativo”, usada no Brasil para defender as classes mais pobres da sociedade. São direitos da classe trabalhadora e oprimida em ge-ral, os quais fazem parte de um grupo que vê no Direito a busca por melhores condições de vida e ampara as classes de baixa renda na busca por ressocialização. Assim, dá a esses um objetivo de vida e mostra um outro lado do Direito, como a busca por justiça, que pode oferecer não apenas o caráter punitivo, mas trazer de certa forma, algum tipo de benefício a este cidadão, mantendo sua dignidade e fazendo valer seus direitos fundamentais de sadia qualidade de vida.

O Estado Democrático de Direito pode considerar este problema como um conflito legítimo e não só trabalhar as questões de interes-se e necessidades particulares existentes na sociedade, instituindo-os como direitos universais reconhecidos formalmente. Os indivíduos pertencentes a um determinado Estado organizam-se em grupos, as-sociações, movimentos políticos, sindicatos, associações e partidos, constituindo um outro poder limitador dentro deste mesmo Estado. Assim, pode-se dizer que a cidadania se define pelos princípios de-mocráticos e constitui-se na criação de espaços sociais de luta e de instituições que significam conquistas sociais, políticas e econômicas.

Neste contexto deve-se entender cidadania como o modo pelo qual o cidadão, pessoa de direitos e deveres, é criador de seu pró-prio Direito, tendo participação importante e decisiva nos principais acontecimentos econômicos e sociais do país, Estado ou Município. No entanto, cabe ao Direito regular as relações entre indivíduos e Estado, problemas ou garantias de alimentação, moradia, educação e saúde, os deveres cívicos e os direitos e deveres da cidadania.

O cidadão pode, de maneira “democrática”, reivindicar seus direitos e moldá-los de maneira que possa deixar a sociedade mais justa e igualitária, devendo atribuir todos os espaços e problemas às classes sociais, contribuindo para a humanização da socieda-

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de, na real caracterização de um povo sem cultura e sem recursos. Também, pode fazer com que cada um entenda o poder de dirimir problemas, encontrando soluções para transformar o mundo em um lugar justo, solidário, onde as pessoas possam ter ideais de li-berdade e igualdade.

Cada um, como cidadão, tem o dever de contribuir para o de-senvolvimento e conservação de seu Estado. A cidadania não deve ser entendida como obrigação, mas como conservação de uma vida saudável, digna e responsável para com a sociedade.

3 MEIO AMBIENTE

O planeta Terra está repleto de problemas percebidos diaria-mente por todos os seus habitantes, e a maior parte está relaciona-da com a manutenção e a conservação do meio ambiente, sendo a poluição e o lixo apenas alguns deles. Vários outros existem e ame-açam o meio ambiente. O homem tem sido relapso com seu plane-ta, pois está provocando danos irrecuperáveis ao meio ambiente e, consequentemente, à vida humana. A partir daí o homem é levado a refletir sobre a necessidade de uma nova percepção sobre Ambien-te e ainda sobre a relação homem-natureza, isto porque a conser-vação do meio ambiente é responsabilidade de todos os seres que habitam o planeta.

Para Sirvinskas1,

Meio é aquilo que está no centro de alguma coisa. Ambiente indica o lugar ou a área onde habitam seres vivos. Assim, na palavra ‘Ambiente’ está também inserido o conceito de meio [...]. Em outras palavras, meio ambiente é o lugar onde habitam os seres vivos. É habitat dos seres vivos.

Se meio ambiente é o habitat dos seres vivos, cabe a estes cui-da-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. Há de se ver ainda que o homem, de certa maneira, tornou-se adversário de seu

1 SIRVINSKAS, Luís Paulo. Manual de direito ambiental. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 28.

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planeta, houve um rompimento de paradigmas, os quais levaram-no a deixar de lado suas obrigações com o meio ambiente.

A busca desenfreada por melhores condições de vida levou o ser humano a fazer com que se perdesse o valor pela natureza e suas formas de vida. O homem, neste sentido, deixa de agir median-te os preceitos conferidos pela Constituição sobre direitos funda-mentais e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, e passa a agir com descaso consigo e com seu planeta, não se esquecendo que o meio ambiente é como um bem precioso que necessita de cuidados.

Sirvinskas2 fala sobre “bem ambiental”:

[...] é aquele definido constitucionalmente como de uso co-mum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, ou seja, a atmosfera, as águas interiores, superficiais e subterrâneas, os estuários, o mar territorial, o solo, o subsolo, os elementos da biosfera, a fauna e a flora. É, em outras palavras, o meio am-biente ecologicamente equilibrado.

Se bem ambiental é tudo o que cerca o homem, o local onde mora, as ruas em que anda, as águas, por que não conservar para manter este “patrimônio”? O homem, como ser social, ainda precisa aprender muito e buscar caminhos para manter sua qualidade de vida. Mas para que possa ter consciência dos males que vem causan-do ao seu planeta, precisa conhecê-los e verificar o que está fazendo para contribuir neste sentido. O meio ambiente é essencial à sadia qualidade de vida e por isso deve se tonar prioridade para todo o qualquer ser que nele habita.

Neste sentido, observa Teixeira3:

A defesa do meio ambiente ecologicamente equilibrado passa a ser tarefa e finalidade do Estado e obrigação dos indivíduos para garantir o direito fundamental formalmente reconheci-do e preexistente ao próprio Estado. O direito fundamental à

2 SIRVINSKAS, Luís Paulo. Manual de direito ambiental. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 31.

3 TEIXEIRA, Orci Paulino Bretanha. O direito ao meio ambiente ecologicamente equi-librado como direito fundamental. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 87.

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proteção ambiental por estas características (direito e dever) constitui um direito complexo, abrangendo múltiplas funções: função defensiva e função prestacional.

O que se deveria reavaliar é que o homem, na condição de cida-dão, deveria tornar-se titular do direito ao ambiente ecologicamente equilibrado e também sujeito ativo do dever fundamental de protegê- -lo. Pode-se dizer que “O direito ao ambiente ecologicamente equili-brado compõe um sistema que visa à cooperação entre as gerações ao longo do tempo histórico”4. Deste modo, há de se verificar que se o ser humano em sua totalidade não mudar sua maneira de agir, em pouco tempo terá sérios problemas com o meio em que vive e sua sobrevivência estará ameaçada.

Resta buscar o que está levando o homem a agir de tal maneira, se é o descaso consigo mesmo, se é a falta de informação ou se está disposto mesmo a terminar com as possibilidades de sobrevivência no mundo, pois, da maneira como age e diante dos problemas am-bientais que o cercam, o que está se vendo são vários fatores que desencadeiam o caos ambiental, sendo basicamente ele próprio o responsável, assim como também o maior prejudicado.

Hoje o que se constata é que a informação assume um papel cada vez mais relevante – ciberespaço, multimídia, Internet –, a edu-cação representa uma possibilidade de motivar e sensibilizar as pes-soas para transformar o mundo, de forma a mobilizar a participação de todos pela defesa da qualidade de vida.

Cabe destacar ainda que a Educação Ambiental assume cada vez mais uma função transformadora, na qual a corresponsabiliza-ção dos indivíduos torna-se um objetivo essencial para promover um novo tipo de desenvolvimento: o desenvolvimento sustentável. Entende-se que a Educação Ambiental é condição necessária para modificar um quadro de crescente degradação socioambiental, mas ela ainda não é suficiente5 (JACOBI, 2003).

4 TEIXEIRA, Orci Paulino Bretanha. O direito ao meio ambiente ecologicamente equi-librado como direito fundamental. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 88.

5 JACOBI Pedro. Educação ambiental, cidadania e sustentabilidade. Cadernos de Pes-quisa, n. 118, p. 193, mar./2003. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/cp/n118/16834.pdf>. Acesso em: 28 abr. 2008.

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4 COMPETÊNCIA EM MATÉRIA AMBIENTAL

Como já visto, as buscas pela conscientização do homem sobre a necessidade de proteção ao meio ambiente são sempre as mais in-tensas, visto que o sistema capitalista faz com que economia e política sejam os pontos que mais preocupam a sociedade. O crescimento das cidades, a capacitação científica e tecnológica a cada dia deixam o ser humano mais transtornado, provocando preocupações com o meio em que vive, o que constitui um grande erro para o futuro da Humanidade.

A legislação brasileira, como anteriormente mencionado, ga-rante o direito ao cidadão de um meio equilibrado e sadio, pois este é bem público de uso comum. Como estabelece o artigo 225 da CF/88: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.”

Assegurado pela CF/88, o meio equilibrado é definido como bem público de uso comum do povo, não podendo ser contrário ao interesse público. A utilização dos bens ambientais pelo Estado ou pelas empresas privadas não pode impedir que a coletividade use e desfrute desses bens.

Na condição de impor ao Estado e à coletividade o dever de de-fender o meio ambiente, o legislador deixou expresso que, se aquele deixar de agir, este tem perfeitas condições de tomar a iniciativa e exigir que meios legais sejam utilizados para a sua proteção, visto que existem inúmeras maneiras de se dedicar ao meio ambiente.

No tocante à legislação existem alguns problemas que nem sempre são devidamente respeitados, pois as normas estão aí, mas nem sempre são observadas. Na legislação ambiental isso ocorre de maneira desenfreada, pois muitas vezes os entes estatais e o governo são os primeiros a não respeitá-las, invadindo espaços públicos para defender interesses econômicos privados. Em defesa dos direitos ambientais está se garantindo o espaço público do meio ambiente.

Segundo Vieira e Bredariol6,

6 VIEIRA, Liszt; BREDARIOL, Celso. Cidadania e política ambiental. Rio de Janeiro: Record, 1998. p. 38.

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O direito do cidadão é inseparável da luta pelos seus direitos. O cidadão é o indivíduo que luta pelo reconhecimento de seus direitos, para fazer valer esses direitos quando não são respei-tados. É necessário ter consciência do direito de cada um e de todos ao meio ambiente sadio. É preciso utilizar os instrumen-tos que a lei oferece ao cidadão e suas associações para fazer cumprir a lei e proteger o meio ambiente.

Neste sentido, o que se deve buscar sempre é fazer cumprir o papel que o legislador impõe, pois há de se avaliar que o meio am-biente como bem de uso comum do povo deve ser tratado como bem comum e não com desleixo. Pelo contrário, deve ser conservado e pre-servado sem que se atenha a problemas públicos e interesses econô-micos, nunca fazendo das reservas naturais e suas riquezas objeto de poder econômico, pois tudo o que nele hoje se faz aos poucos refletirá na vida de todos os seres vivos.

Para manter este ambiente que sustenta o ser humano, deve-se repensar as atitudes e fazer valer o direito conferido a todos. Compe-tência em si atribui à União, Estados, DF e Municípios, matérias ge-rais e específicas para que estes possam administrar e proporcionar bem-estar à população.

Em matéria ambiental, a CF/88 confere ao Poder Público a responsabilidade de efetivar o que refere o artigo 225. Conforme coloca Sirvinskas7:

[...] o meio ambiente ecologicamente equilibrado é direito de todos, portanto, a responsabilidade de preservá-lo e defendê- -lo deve ser também compartilhada com a comunidade. O Po-der Público abrange as entidades federais, estaduais e munici-pais. Foi com esse objetivo que a Constituição Federal atribuiu a cada uma das entidades públicas competência administrati-va e legislativa.

Pode-se afirmar que a repartição de competências na esfera ambiental seja a mesma adotada em regras gerais, portanto, é ne-cessário fazer-se referência sobre as competências constitucionais.

7 SIRVINSKAS, Luís Paulo. Manual de direito ambiental. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 86.

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A União atribui-se de forma expressa e com competência pri-vativa e concorrente, normas para legislar sobre matérias pre-vistas no artigo 22 e 24 da Constituição Federal. Para Estados e Distrito Federal foram atribuídos poderes residuais ou re-manescentes, podendo estes legislar sobre matérias que não forem de competência privativa ou exclusiva federal ou mu-nicipal. Aos municípios ficou a competência de legislar sobre assuntos de interesse local.8

As regras de competência ambiental podem ser classificadas como:

a) de competência exclusiva: aquelas consideradas admi-nistrativas ou materiais, que não conferem poderes para legislar sobre matérias por ela abrangidas, mas somente o poder de execução ou administração. Neste contexto, a União poderá elaborar e executar planos de ordenação do território e de desenvolvimento socioeconômico. Ainda compete a este desempenhar atividades de cunho político, administrativo, econômico ou social;

b) de competência legislativa exclusiva: a União possui competência privativa em algumas matérias e isto por questões estratégicas e por causa de sua importância ge-ral. A CF/88 prevê no parágrafo único do artigo 22, a pos-sibilidade desta competência ser transferida aos Estados por lei complementar, quer dizer, que a União delega de forma específica aos Estados a competência para legislar sobre Direito Ambiental;

c) de competência material comum: esta possibilita o de-sempenho de diversas tarefas e serviços na esfera política, administrativa, econômica e social. Em matéria ambiental, esta foi atribuída a todos os entes, como União, Estados, DF e aos Municípios, a responsabilidade de proteger, im-pedir a destruição de bens, combater a poluição, preservar, acompanhar e fiscalizar. Trata-se de cooperação adminis-trativa ou de implementação entre os entes da Federação

8 SIRVINSKAS, Luís Paulo. Manual de direito ambiental. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 89.

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para atuar em cooperação recíproca comum, não se tratan-do de legislar;

d) de competência legislativa concorrente: cabe aos entes federativos, na ausência de normas gerais, exercer a com-petência plena para atender a suas peculiaridades, excluin-do-se a competência legislativa exclusiva da União, a maior parte das matérias é de competência concorrente, impon-do-se à União a responsabilidade de disciplinar normas ge-rais e, aos Estados e Distrito Federal, a edição de normas específicas9 (SIRVINSKAS, 2006).

Pode-se dizer que em matéria ambiental, a competência é de todos, mas na realidade, o que se faz valer é o que diz a legislação competente. A lei menciona acerca de competência privativa, que cada ente federativo teria obrigação de manter os cuidados com o Meio Ambiente, o que não exclui a obrigação dos demais, pois todos são competentes, segundo a CF/88, “Poder Público e coletividade”.

O que ocorre, neste sentido, é que a lei acabou se contradizen-do em alguns aspectos. Um bom exemplo deste fato é o que ocorre no artigo 21 da CF/88, o qual menciona várias matérias serem priva-tivas à União, e coloca nos incisos XIX, XX, XXIII, XXIV e XXV matérias referentes à preservação ambiental. Neste caso, o artigo refere-se a práticas relacionadas ao meio ambiente natural, as quais não devem ser entendidas restritamente. O artigo 22 também faz menção acer-ca destas preocupações.

Observa-se que o artigo 25, § 1°, da CF/88 fala sobre a compe-tência dos Estados quanto à matéria ambiental, bem como o artigo 26 fala acerca da matéria urbana, mas, neste sentido, deixa o Esta-do livre para atuar nos interesses municipais, destacando sempre as preocupações com interesses ambientais.

Ao referir-se à questão municipal, o artigo 30 da CF/88 é bem específico, dispondo em seus incisos preocupações com o solo, pro-teção do patrimônio histórico e cultural. Neste sentido, Silveira10 res-

9 SIRVINSKAS, Luís Paulo. Manual de direito ambiental. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2006.

10 SILVEIRA, Patrícia Azevedo da. Competência ambiental. Curitiba: Juruá, 2003. p. 147.

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salta que: “o interesse local é, portanto, aquele que direta e imedia-tamente atinge a comunidade que vive o problema a solucionar pelo poder legislativo municipal”.

O interesse local também pode vir a ser informado por um fator novo, científico, que ainda não fora previsto em alguma legislação. É a partir daí que a coletividade passa a tomar atitudes com relação ao meio, mas sempre obedecendo aos preceitos que a lei concede. “Em matéria ambiental, o interesse local funcionará como um vetor dos poderes implícitos dos municípios”11.

O artigo 23 da CF/88 contém poderes implícitos no tocante à le-gislação. Trata-se de competência comum entre União, Estados, DF e Municípios. Dentre seus incisos estão as preocupações com paisagens naturais, sítios arqueológicos, proteção ao meio ambiente e combate à poluição, a preservação das florestas, da flora e da fauna e ainda sobre a possibilidade de pesquisa dos recursos hídricos e minerais.

Ressalta-se que além de uma legislação voltada ao meio am-biente e com a repartição de competências entre os entes da federa-ção, há necessidade de se ter órgãos com atribuições voltadas à pre-servação do ambiente. Lembra-se que o Sisnama é um órgão criado pela Lei n. 6.938/1981, com redação dada pela Lei n. 7.804/1989, que infelizmente não foi recepcionada pela CF/88, o que levou o Constituinte a preocupar-se em desenvolver um texto relacionando às preocupações ambientais.

Uma das questões que deixou de lado o Sisnama foi que esta não mantinha a preocupação em unir os poderes público e privado para resolver as questões sobre meio ambiente, e nem se propunha a fazer a representação da esfera civil nas discussões acerca do meio ambiente.

Segundo Silveira12,

A sociedade precisa participar, necessita de informação, formação em educação ambiental. A indústria, por sua vez, deve responder pelas externalidades provocadas. Sem es-ses dois elementos não haverá estrutura administrativa que seja capaz de resolver em nível ótimo inúmeras questões ambientais.

11 SILVEIRA, Patrícia Azevedo da. Competência ambiental. Curitiba: Juruá, 2003. p. 149.12 Idem, ibidem, p. 158.

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As atribuições ao Poder Público na esfera constitucional re-portam-se ao que coloca o artigo 225 da CF/88. Segundo Silveira, “o artigo 225 é uma norma-objetivo”, pois existe para que se dê início e incentivo à criação de políticas públicas por parte do Estado com a participação da coletividade para que juntos possam diminuir os problemas ambientais. Na realidade, este artigo surgiu para inovar as discussões a respeito da responsabilidade sobre o ambiente, tor-nou-se destaque, pois o que se deve ter em mente é que há dez anos não eram tão intensas as problemáticas sobre o meio ambiente e a necessidade de preservação e conservação eram necessárias, mas pouco se falava acerca.

É importante frisar que em ações ligadas ao meio ambiente o exercício da cidadania transparece e aparece com mais força. E, para se obter um meio ambiente saudável e equilibrado, a sociedade civil de forma organizada pode contribuir para que isso aconteça. E neste aspecto surgem Movimentos Sociais e as Organizações Não Governa-mentais (ONGs) que exercem um papel relevante.

Segundo Gohn13,

[...] os movimentos sociais ambientalistas são os que têm o maior potencial de crescimento junto da população, especial-mente entre os mais jovens, dado o imaginário de represen-tações que ele desperta, o sonho do verde, do contato com a natureza, um mundo sem poluição etc.

Estes movimentos se tornam de grande valia no tocante as prá-ticas ambientais, pois sensibilizam a sociedade de maneira humani-zada e assim, colocam em debate questões de fundamental relevân-cia que devem ser realizadas pela sociedade.

5 EXERCÍCIO DA CIDADANIA NO MEIO AMBIENTE

Meio Ambiente ecologicamente equilibrado é assegurado a to-dos pela Constituição Federal, isto por ser bem de uso comum do

13 GOHN, Maria da Glória. Movimentos sociais e redes de mobilizações civis no Brasil Contemporâneo. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2010. p. 84.

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povo, e não pode ser objeto de apropriação por entes privados e con-trários ao interesse público. Tem, ainda, como princípio, a sua utili-zação por parte de qualquer cidadão.

A CF/88, garantindo ao Poder Público e à coletividade o dever de defender e preservar o meio ambiente leva os cidadãos a buscar em outros entes, como: associações, ONGs e sindicatos meios para fazer valer este preceito.

Segundo Vieira e Bredariol14,

O cidadão é o indivíduo que luta pelo reconhecimento de seus direitos para fazer valer esses direitos quando eles não são respeitados. É necessário ter consciência do direito de cada um e de todos ao meio ambiente sadio. É preciso utilizar os instrumentos que a lei oferece ao cidadão e suas associações para fazer cumprir a lei e proteger o meio ambiente.

É importante que cada cidadão tenha noção de sua participa-ção nos trabalhos realizados para defesa do meio em que vive. O fato de o Estado ser responsável pela proteção de todas as pessoas e, con-sequentemente, do meio que os cerca, não desobriga aos cidadãos de agirem em defesa do meio em que vivem. Para isto, existem algumas entidades que fazem parte de uma maioria responsável e preocupa-da com o futuro de todos, as quais se unem para buscar o desenvol-vimento sustentável do Planeta.

A proteção é responsabilidade de todos já que diz respeito ao futuro comum da humanidade, e necessita que todos participem na busca pela defesa do meio ambiente, colocando em todas as ações e fazendo valer todas as noções de responsabilidade social.

Segundo Gomes15,

A responsabilidade social é uma nova consciência do contexto social e cultural no qual se inserem as empresas e os cidadãos.

14 VIEIRA, Liszt; BREDARIOL, Celso. Cidadania e política ambiental. Rio de Janeiro: Record, 1998. p. 38.

15 GOMES, Daniela Vasconcellos. A importância do exercício da cidadania na efetiva-ção do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. [2007]. p. 98. Disponível em: <http://www.ucs.br/ucs/tplPOSDireito/posgraduacao/strictosensu/ direito/dissertacoes/dissertacao?identificador=119>. Acesso em: 30 maio 2008.

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Ela pode ser entendida como a contribuição voluntária e dire-ta destes para o desenvolvimento social e a criação de uma so-ciedade mais justa e igualitária, por meio da condução correta de seus negócios ou de suas ações pessoais.

Pode-se pensar em responsabilidade social de inúmeras ma-neiras, mas para que se possa entender de maneira mais simplifi-cada, colocam-se como exemplo as relações de consumo, iniciando pelo trabalho desenvolvido em empresas.

Na atualidade, a responsabilidade social no que diz respeito ao aspecto empresarial está mais voltada a valores e atitudes éticas. Preocupações com o bem-estar de seus funcionários, colaboradores e o trato com o meio ambiente tornam as empresas cada vez mais elogiáveis e destaque em seu meio. Também porque as empresas tornaram-se grandes responsáveis pelo desenvolvimento social dos cidadãos e no que diz respeito ao trato com funcionários e demais. No âmbito interno, a responsabilização da empresa enfoca admi-nistração, investidores e todos os seus colaboradores, engajados no bom funcionamento, novos empreendimentos, geração de lucros e bem-estar de seus funcionários, pois desta maneira todos desen-volvem um trabalho melhor e de sucesso. Os trabalhos e negócios das empresas devem ter certa contribuição para com a comunidade, sendo que os trabalhos sociais são de suma importância, pois man-têm a política social de cada empresa.

Já no âmbito externo são consideradas as relações com forne-cedores, representantes, concorrentes, governo, comunidade, con-sumidores e meio ambiente. Com isso, pode-se dizer que as preo-cupações do meio empresarial também são de responsabilidade social. Há um comprometimento com a comunidade no sentido de colaborar no seu crescimento material e intelectual e também pro-porcionar a todos um ambiente sadio e com qualidade de vida. Mas não devem ser estas as únicas responsáveis pelas preocupações com o meio e nem mesmo especialmente vinculadas ao compromisso so-cial, pois todo ser humano é responsável pelo seu “habitat”.

O modelo empresarial é apenas um exemplo de trabalho que pode e deve ser realizado por todos para que possam contribuir no

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crescimento dos avanços referentes aos problemas ambientais. To-dos podem e devem realizar ações que contribuam com o meio.

O cidadão ecológico pode e deve se engajar em processos cole-tivos ou individuais para a realização de ações que contribuam para a preservação do meio ambiente. É claro que além de sua conduta, este deve exigir atitudes e ações de comprometimento de governan-tes, de empresas fortes e da sociedade em geral para que se façam valer as promessas e o que diz a legislação competente.

Conforme Gomes16 (2007, p. 100):

A responsabilidade no consumo pode ser considerada um des-dobramento da responsabilidade social, já que significa que o consumidor deve refletir sobre seus hábitos de consumo e fa-zer as melhores escolhas, além de exigir constantemente, uma postura ética e ambientalmente responsável das empresas, do governo e dos demais consumidores.

O cidadão, como consumidor, é bom exemplo a ser menciona-do, pois faz com que se entenda as relações entre Meio Ambiente e cidadão e, ainda, que este possa exigir além de produtos e serviços de qualidade, preço justo, fazendo com que os fornecedores tornem- -se responsáveis pela melhoria da qualidade de vida de toda a popu-lação, incluindo o que diz respeito à preservação do meio ambien-te, já que o consumo consciente é uma das principais manifestações de responsabilidade social do cidadão. Há um tipo de ligação nesta relação em que se pode ver o cidadão ecológico como consumidor, aquele que deve exigir seu bem-estar.

Para o cidadão o ato de consumo deve ser uma escolha, suas atitudes refletirão no mundo em que deseja viver. Por isso, cada um deve tomar atitudes e preferir na hora do consumo produtos que possam lhe satisfazer sem agredir a si e o meio que o cerca, contribuindo para o desenvolvimento de uma consciência crítica ecológica.

16 GOMES, Daniela Vasconcellos. A importância do exercício da cidadania na efetivação do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. [2007]. p. 100. Disponível em: <http://www.ucs.br/ucs/tplPOSDireito/posgraduacao/strictosensu/di-reito/dissertacoes/dissertacao?identificador=119>. Acesso em: 30 maio 2008.

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Pode-se dizer que o cidadão, na qualidade de consumidor, não possui grande poder, mas deve compreender que se faz necessária a busca por este na medida em que deseja a melhoria das condições de vida. E este poder só terá efetividade no momento em que o indi-víduo se conscientizar e colocar pensamentos em prática, tomando atitudes que façam valer a busca por este poder. Para isto, é impor-tantíssimo que todos os cidadãos tenham acesso à informação am-biental, sabendo agir e instruir para que a Educação se transforme em atitudes concretas e eficazes para com o meio.

No entendimento de Delani, citado por Gomes17,

[...] uma ampla informação e esclarecimento dos cidadãos bem, como um trabalho conjunto entre organizações ambientalis-ta, sindicatos, indústria, comércio, agricultura é fundamental para o desenvolvimento de políticas ambientais efetivas e para a otimização da concretização de normas voltadas a proteção do meio ambiente.

Neste sentido, pode-se dizer que informação e educação são es-senciais para se manter uma consciência ecológica e realizar atitudes concretas com relação ao meio ambiente. “A proteção do meio ambien-te está estreitamente relacionada a hábitos saudáveis de consumo, e o consumo sustentável a formação de uma nova consciência.”18

Ao mencionar o cidadão como consumidor, pode-se dizer que este não se abstém apenas do mundo capitalista, onde as preocupa-ções voltam-se somente ao querer e obter, mas ao realizar suas esco-lhas, estas pessoas demonstram sua visão de mundo, seus valores, e ainda preocupação com o mundo em que vivem, com o meio que os cerca e de que maneira pode haver mudanças. É neste sentido que o cidadão ecológico deveria ser o “consumidor ecológico”, escolhendo só os melhores produtos, os melhores serviços para manter o seu planeta saudável, com qualidade de vida para si e para os seus.

17 GOMES, Daniela Vasconcellos. A importância do exercício da cidadania na efetivação do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. [2007]. p. 101. Disponível em: <http://www.ucs.br/ucs/tplPOSDireito/posgraduacao/strictosensu/di-reito/dissertacoes/dissertacao?identificador=119>. Acesso em: 30 maio 2008.

18 Idem, ibidem, p. 101.

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Esta deveria ser a maneira mais fácil de conscientizar o cida-dão na busca por melhores condições de vida, colocar a manuten-ção e a preservação de seu planeta como meta para as próximas atitudes de consumo.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O cidadão, adepto às novas realidades globais, deixou de lado as preocupações com o meio ambiente. A busca desenfreada por melhores condições de vida, a luta pela sobrevivência, tudo isto di-ficultou ao homem olhar a seu redor e reparar que o Planeta está em perigo.

É evidente a necessidade da produção e da disseminação de informação ambiental, pois existem ainda fatores que extrapolam os limites da Ciência da Informação e necessitam de muito trabalho.

O Brasil, com precária política de informações ambientais, se revela na escassez de recursos voltados para a geração de conheci-mentos científicos sobre o tema da falta de participação da socie-dade em trabalhos em prol do meio ambiente. Em outros termos, o estudo das ciências ambientais é recente, e também a questão do tratamento da informação ambiental, conforme visto. Embora o meio ambiente seja um tema de ensino fundamental, há de se destacar que o mesmo ainda não foi incorporado à cultura nacio-nal, seja porque essa inclusão é recente, seja devido às dificuldades econômicas e sociais da população, que a dispersam para outras preocupações, tudo se soma ao fato da publicização de informa-ções sobre essa temática ter ficado restrita a momentos específi-cos, de sorte que a repercussão popular da questão ambiental é, ainda, bastante limitada.

Assim, resta ressaltar que a necessidade da transformação do cidadão é de suma importância para a preservação do planeta e é neste sentido que se devem estudar maneiras de trabalhar a Edu-cação para que num futuro próximo todos possam usufruir de um lugar sadio e com qualidade para se viver.

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ESTADO, JUSTIÇA E PARTICIPAÇÃO CIDADÃ: UMA ANÁLISE SOBRE A REIVENÇÃO DEMOCRÁTICA

BOLIVIANA

Pâmela Marconatto MarquesBacharel em Direito e em Ciências Sociais, ambos pela Universidade Federal de Santa Maria, onde também realizou seu mestrado em Integração Latino-americana. Atual-mente é professora vinculada à Faculdade de Direito de Santa Maria, onde leciona as disciplinas de Direito Internacional Público e Direito das Organizações Internacionais. Ainda, é assessora de coordenação do Projeto Brasil-Haiti, financiado pelo IDRC-Cana-dá e secretária do INKARRÍ-Instituto de Direito e Humanidades, em Santa Maria/RS.

Carlos Roberto Bueno FerreiraAdvogado, Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Santa Maria, atualmen-te cursando Pós-Graduação em Direito Público na Escola Superior de Magistratura Federal.

RESUMO:

O presente trabalho propõe-se a analisar o novo modelo de Estado e Democracia que se inauguram a partir da experiência vivida pela República Boliviana, sobre-tudo em 2008 e 2009. O estudo está organizado de modo que, depois de averi-guar a construção popular da demanda constituinte, acompanhe-se o modo como foi implementada e instrumentalizada no país. Finalizando o eixo de análise, propõe-se um entendimento sistematizado da Nova Constituição, integrado com a reflexão acerca das dificuldades a serem enfrentadas para sua consolidação. Por fim, a título de conclusão, retomam-se alguns apontamentos de Edgar Morin e, a partir deles, busca-se compreender o contexto de que é expoente a experi-ência “neoconstitucional” boliviana, em que o experimentalismo e a esperança parecem constituir a chave para o enfrentamento das incertezas do futuro.Palavras-chave: Neoconstitucionalismo. Democracia. Indigenismo.

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SUMÁRIO:

1. Considerações Iniciais. 2. A construção popular de uma demanda. 3. A condução do processo constituinte. 4. Os novos adjetivos do estado boliviano. 5. Considerações Finais: um elogio ao experimentalismo político na era das incertezas. • Referências.

“A aparência se torna ação tão logo o indivíduo se manifeste”. (Taminiaux)

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A década de noventa significou avanços importantes às deman-das indígenas. Se em boa parte do continente o assomo neoliberal que se impôs sepultou os sonhos de prosperidade ligados ao retor-no democrático, na Bolívia, o consenso em torno de sua ineficácia enquanto modelo de Estado e desenvolvimento serviu de estopim à mudança.

Em um contexto em que a reivindicação pelo reconhecimen-to das diferenças tornava-se imperativa e os ideais multiculturais eram incorporados aos discursos políticos, “fazer a revolução antes que o povo a faça” tornou-se a palavra de ordem da elite governista. Atentos à necessidade de contentar uma população que, a cada dia, tornava-se mais ciente de sua capacidade de mobilização, o conjun-to de reformas legais realizado pelos governos neoliberais aspirava consolidar a – improvável – aliança entre neoliberalismo e multicul-turalismo1. (DÍAZ-POLANCO, 2006)

Buscou-se combinar a imagem de modernidade cosmopolita com ícones do indigenismo multicultural, incluindo os indígenas como cidadãos. Discursivamente, pretendia-se apagar o racismo do passado, mas sem ameaçar nem a institucionalidade do Estado, nem os valores democráticos liberais. Tratava-se, assim, de incluir os gru-1 ŽIŽEK, Slavoj. Tarrying with the Negative. Durham, NC: Duke University Press, 1993.

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pos historicamente excluídos, porém, sem modificar as estruturas monoculturais do poder.

Essa reforma sem mudança substancial – embora pudesse ser facilmente imposta a qualquer outra sociedade – dificilmente passa-ria despercebida pela boliviana.

Nesse mesmo período, na contramão das práticas e concep-ções neoliberais, os povos indígenas bolivianos uniam-se em torno de um movimento designado por Boaventura2 (2008) como neo-territorialidade:

La Idea de que con la globalización todo se iba a desterritoria-lizar, todo iba a ser global, se ve empeñada por la repentina im-portancia que cobra el territorio y la tierra como aspectos cen-trales. Todos los técnicos occidentales habían dicho que la tierra y el territorio iban a perder influencia en el mundo del siglo XXI y que sería una cosa residual. Por el contrario, hoy hay una rei-vindicación y demanda de tierra y territorio muy fuertes en el continente latinoamericano [...].

É perceptível, nesse contexto, o descompasso entre a prática estatal neoliberal, camuflada por um discurso includente, e a prá-tica popular, caracterizada pelo renovado vigor dos movimentos sociais, que passavam por uma acumulação progressiva de apren-dizados e experiências alternativas, cujo foco estava na busca da harmonia e do “bem viver”. As lutas que não tardariam a ser trava-das nesse cenário conduziram à constatação de que, mais do que reformas pontuais, era necessário pensar um novo modelo de Es-tado para a Bolívia.

Tendo essa conjuntura como plano de fundo, o presente artigo propõe-se a evidenciar o caráter invariavelmente popular da agenda constituinte. Para tanto, partirá da moldura na qual se definiu a de-manda: no seio dos movimentos populares, passando à forma como foi implementada e conduzida pelo Estado, até chegar aos resulta-dos produzidos, em que se vislumbram novos adjetivos a redefinir a dramática democracia boliviana.

2 SANTOS, Boaventura de Sousa. La reinvención del Estado y el Estado plurinacional. Debates, OSAL, ano VIII, n. 22, 2008.

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2 A CONSTRUÇÃO POPULAR DE UMA DEMANDA

Os movimentos sociais bolivianos3 que se afirmaram na última década do século XX trouxeram consigo a memória de batalhas de seu povo e, nesse sentido, foram capazes de articular atores, vivên-cias e tempos diversos, que permitiram pensar em um novo hori-zonte comum a ser construído. Nesse momento de insurgência da ação coletiva foi que se forjaram as condições necessárias para pro-blematizar e estabelecer as bases de uma reforma política no país. Três atos podem ser considerados antecedentes determinantes para o amadurecimento dessa demanda, até que se alcançasse o consenso de que uma nova Constituição deveria ser escrita: I) A Marcha por Território e Dignidade; II) A Guerra da Água; e III) A Guerra do Gás.

A Marcha por Território e Dignidade, protagonizada por orga-nizações dos povos indígenas das terras baixas, em 1990, marca um rito importante na luta desses povos e em sua visibilização por par-te das autoridades estatais e da sociedade boliviana de modo geral. Reivindicava-se ao Estado, nessa ocasião, o reconhecimento de ter-ritórios indígenas e de suas organizações, assim como a titulação de terras comunitárias de origem. A resposta dada pelo governo pode ser considerada a materialização do entendimento marxiano de que “algumas vezes as coisas mudam para que permaneçam exatamente iguais”. A Constituição boliviana foi parcialmente reformada, intro-duzindo-se o reconhecimento do caráter multiétnico e pluricultural do Estado, sem que, no entanto, isto tenha resultado em uma prática estatal condizente.

A Guerra da Água deu-se dez anos depois de realizada a Mar-cha e despertou o interesse mundial por se tratar da primeira expe-riência de expulsão popular de uma transnacional, seguida pela rea-propriação e “gestão social” de uma empresa de água potável. Após décadas de um fornecimento insuficiente e irregular de água a Co-chabamba (apenas 50% da população era atendida), o governo boli-viano firmou consórcio com a multinacional americana Bechtel, re-passando-lhe 75% das ações da nova empresa, a “Águas Del Tunari”.

3 Os atores dos movimentos sociais na Bolívia são, em sua imensa maioria, comuni-dades e associações indígenas. Dessa forma, sempre que mencionados neste texto, devem ser compreendidos como uma referência à organização dessas comunidades.

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A concessão privada de água dobrou os custos das famílias, cuja insa-tisfação aumentou ao saber que a empresa abastecia apenas aquela cidade. A partir daí, durante quase um ano, deu-se um grande esfor-ço de deliberação e organização coletiva para subordinar a direção da empresa de água aos interesses e necessidades de milhares de cidadãos agrupados em múltiplos comitês, juntas vicinais, coorde-nadorias e outros tipos de agremiações. Essa experiência marca o início de um processo de ressignificação da política, marcado pela politização de espaços cotidianos, a partir da certeza vivida pela po-pulação mobilizada de que era possível fazer política em momentos de ampla deliberação coletiva4.

A pauta principal de deliberação da Assembleia de Vizinhos e Cidadãos era a discussão sobre o melhor modo de solucionar o pro-blema do abastecimento de água em zonas marginais da cidade. Não tardou para que as soluções encontradas começassem a chocar-se com a estrutura normativa municipal e a própria estrutura institu-cional do Estado. Ante este impasse, ganhou força o seguinte enten-dimento, expresso com clareza por Raquel Gutiérrez5:

Si las leyes y las instituciones obstruyen y dificultan el cumpli-miento de lo que es la decisión democrática de la población so-bre un problema tan importante como el agua… ¡hay que cam-biar las leyes y las instituciones!

Com essa constatação veio à convicção – que só emerge com tamanha força quando plenamente partilhada – de que era preciso refundar o Estado, o que somente seria possível por meio de uma As-sembleia Constituinte. Esse entendimento reforçou-se com a marcha dos povos de terras baixas pela Assembleia Constituinte, em que se reivindicava uma mudança estrutural no que dizia respeito à sobera-nia popular, ao território e aos recursos naturais.

4 Essa análise encontra respaldo no pensamento de Patrícia Chavez e Dunia Monkra-ni, expresso no artigo “Los Movimientos Sociales en la Assemblea Constituinte: Hacia La reconfiguración de la Política”.

5 GUTIÉRREZ, Raquel. Asamblea Constituyente en Bolivia: ¿reformar o refundar el Estado? Programa de las Américas. Disponível em: <http://www.ircamericas.org/ esp/3338>. Acesso em: 12 jul. 2009.

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A revolta em torno da apropriação estrangeira do fornecimento de água estendeu-se à concessão de outro recurso: o gás natural, pri-vatizado pelo então presidente Sanchez de Losada. A Guerra do Gás, como ficaria conhecido o forte embate entre as forças populares e o governo, girava em torno de três reivindicações dos primeiros: a) a criação de uma nova Lei de Hidrocarbonetos que devolvesse sua pro-priedade ao Estado; b) a renúncia de Sanchez de Losada; c) a convo-cação de uma Assembleia Constituinte. A consciência de estar diante da apropriação privada de um patrimônio que deveria ser utilizado para alicerçar o desenvolvimento do povo parece ter vindo simultane-amente à compreensão de que essa lógica de gestão continuaria impe-rando caso não houvesse uma alteração profunda. Daí a reivindicação de uma Assembleia Constituinte, juntamente com as demandas pela renúncia do presidente e de uma nova Lei de Hidrocarbonetos.

O rechaço da população ia muito além da figura de Losada. Es-tendia-se ao conjunto de partidos políticos tradicionais e a todo o histórico de ações clientelistas, patrimonialistas e predatórias que lhes caracterizava. Essa desilusão em relação a uma democracia que não era a esperada ganhou contornos que em nada lembram a apatia ou o desinteresse que se observou em outros Estados latino-ameri-canos6. Durante a Guerra do Gás, a sociedade civil propôs (não so-mente no campo discursivo, mas em suas ações) a alternativa política às formas de organização e representação liberais. Nas assembleias de bairro, nas reuniões entre vizinhos, na criação de coordenado-rias para determinar estratégias de abastecimento de alimentos, de água, de gás e até mesmo para defender a cidade da intervenção do exército, os movimentos sociais apresentaram-se a si mesmos como alternativa a uma democracia engessada em torno de partidos polí-ticos com aspirações e atitudes conservadoras.

Esta tomada de consciência está diretamente associada à acumu-lação de experiências e aprendizagens em torno dos três eventos apon-tados nesta seção, cujo fluxo pode ser observado no diagrama abaixo:

6 Sobre o modo como a sociedade civil dos Estados latino-americanos reagiu à demo-cracia inesperada, recomenda-se o artigo “Entre o Drama e a Apatia: o dilema das de-mocracias latino-americanas”, escrito em parceria com Cristine Zanella (ZANELLA, Cristine; MARQUES, Pâmela. Bolivia en el Péndulo de la Historia. Nueva Sociedad, n. 209, 2007).

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Marcha por Território e Dignidade• Politização da identidade étnica;• Unidade em torno desta identidade;• Consenso índigena em torno da

demandas pelo reconhecimento de seus territórios originários e da terra enquanto bem social e cultural.

Guerra da Água• Politização de espaços de vivência cotidiana;• Experiência de gestão coletiva de um recurso natural;• Questionamentos de uma prática democrática

monopolizada opr partidos políticos.

Guerra do Gás• Consenso em torno da titularidade popular

dos recursos naturais do Estado;• Enfrentamrnto de uma política neoliberal

centrada nas privatizações;• Consenso em torno da necessidade de

refundação do Estado Boliviano.Amadurecimento das reinvidicações

indígenas e fortalecimentos das organizações da sociedade civil

enquanto atores políticos na Bolívia

Figura 1 – Fluxo de experiências determinantes para o amadurecimento democrático boliviano

Com a renúncia de Sanchez de Losada, assume o poder seu vice, Carlos Mesa, que, tão logo ocupa o novo cargo, inicia as discus-sões sobre a convocação de uma Assembleia Constituinte. As ações de Mesa, entretanto, não foram além da inauguração de um escritó-rio estatal para cuidar do assunto, resultando em sua queda pouco tempo depois7.

7 Há, ainda, outras causas para a queda de Mesa. Em julho de 2004, nove meses depois de assumir o poder e já pressionado pelos setores populares, o então presidente convocou oficialmente o referendo vinculante acerca da gestão dos hidrocarbonetos. Dentre os resultados obtidos, constatou-se que 86% dos votantes apoiavam a derrogação da Lei de Hidrocarbonetos vigente e 92% mostraram-se favoráveis à recuperação da proprie-dade dos hidrocarbonetos pelo Estado. Não obstante, a Nova Lei de Hidrocarbonetos foi promulgada somente no ano seguinte e, ainda assim, graças à atuação do Congresso, já que, embora Mesa se recusasse a assinar a lei, também não a vetava, temendo exacer-bar ainda mais a comoção popular. A principal inovação trazida pela Lei de Hidrocar-bonetos 3058 foi a introdução de um imposto direto no valor de 32% sobre a receita líquida das empresas, a ser pago em favor do Estado boliviano. A nova lei, no entanto, não satisfez os setores de esquerda coordenados por Evo Morales, cujo objetivo decla-rado era a estatização total da indústria de gás. Constatando que, das medidas anuncia-das em sua posse – convocação de um referendo vinculante acerca da propriedade dos hidrocarbonetos, convocação de uma Assembleia Constituinte, criação de uma nova Lei de Hidrocarbonetos –, Mesa cumpriu somente com a primeira e de modo incompleto, uma nova onda de protestos iniciou-se mediante bloqueio de estradas e marchas até o Parlamento. Em nove de junho, o congresso aceitou o pedido de renúncia do então presidente.

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O cenário eleitoral boliviano desse contexto era composto por dois partidos principais: Poder Democrático Social (PODEMOS), re-presentado por Jorge Quiroga, e Movimento ao Socialismo (MAS), centrado na figura de Evo Morales. Em um momento em que eram necessárias novas ideias progressistas e uma proposta eleitoral sem recaídas ortodoxas, Quiroga oferecia uma alternativa política e eco-nômica conservadora e desgastada, centrada no ajuste estrutural e em políticas sociais de caráter assistencial. Enquanto isso, na via oposta, o MAS de Evo Morales representava a mudança, sintetizando na figura de Evo o explorado de todas as épocas: mestiço, cocalero e revolucionário. Os traços de seu rosto, associados a um discurso pro-fundamente entrelaçado às demandas populares – inclusive no que dizia respeito à necessidade de uma nova Constituição –, alçaram Evo Morales à presidência da República e o MAS à vanguarda partidária na luta pela convocação da Assembleia Nacional Constituinte (ANC).

Os resultados da eleição surpreenderam o país e o mundo pela larga vantagem obtida por Evo Morales em relação a seu principal oponente e, ainda, em relação a seus predecessores mais recentes, cujo apoio nas urnas não passava de 25% da população.

Essa vitória por maioria absoluta provou-se uma verdadeira revolução democrática, ancorada em votos da esquerda, de mem-bros de ONGs, intelectuais, classes médias empobrecidas, campesi-nos e outros setores que temiam uma nova deposição presidencial ou, ainda, simplesmente não encontravam razão para votar em Qui-roga8. A obtenção de 54% dos votos válidos faz com que, no inters-tício democrático boliviano, o apoio concedido a Morales somente encontre paralelo em 1952, no governo de Paz Estenssoro. Este úl-timo, no entanto, havia conduzido as massas na maior revolução já vista em solo sul-americano e dado cabo a reformas estruturais que transformaram a realidade boliviana.

Ao tomar posse de um cargo nunca antes ocupado por um indí-gena, em um país onde esta é a origem étnica da maioria da população, não se estranha o deslumbramento daqueles que em Evo Morales per-sonificaram suas próprias aspirações. Tendo tomado posse segundo os rituais aymaras, honraria somente concedida a Simon Bolívar, Mo-

8 ROCA, Carlos Toranzo. BOLÍVIA: Una revolución democrática. Nueva Sociedad, Edi-ción Especial, 2006.

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rales renova as promessas de autonomia e liberdade feitas pelo gran-de libertador e primeiro presidente boliviano há mais de dois séculos.

Já em seu primeiro ano na presidência, Morales toma uma sé-rie de providências importantes: promulga a Lei Especial de Convo-catória à Assembleia Constituinte em março; promove a nacionali-zação das jazidas de petróleo e gás natural do Estado boliviano, em 1º de maio; aprova a Lei de Recondução Comunitária da Reforma Agrária, em novembro. Todas essas medidas tinham como foco a redução das profundas assimetrias da sociedade boliviana, incre-mentadas em razão da secular má distribuição dos recursos fiscais9. Como exemplo disso, cita-se a disparidade entre o departamento de Santa Cruz e o de Potosí, respectivamente, o de maior e menor índi-ce de desenvolvimento humano (figura 2). Enquanto o IDH de Santa Cruz supera o IDH boliviano (de 0,64), equiparando-se a outros paí- ses da América Central, o de Potosí, departamento onde a grande maioria da população é indígena, assemelha-se aos índices obtidos pelos países africanos.

CochabambaOruro

La PazPotosí

Santa Cruz

Chuquisaca

PandoBeni

Tarija

IDH% DE POPULAÇÃO INDÍGENA

80%

70%

60%

50%

40%

30%

20%

10%

0,7

0,65

0,6

0,55

0,5

0,627

0,651

0,572

0,679

0,521

0,629 0,627 0,627

0,652

Figura 2 – IDH boliviano por departamentos.

Fonte: Elaboração própria a partir dos dados do Relatório Anual do PNUD de 2003/2004.

9 Essa constatação é feita por Verônica Paz Arauco, em documento de trabalho ela-borado no âmbito do PNUD, em 2008, disponível em: <http://www.pnud.org.br/pobreza_desigualdade/reportagens/index.php?id01=3155&lay=pde>.

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Essa disparidade, no entanto, não está centrada nesses dois departamentos, representando o padrão verificável nos territórios bolivianos. Conforme ilustra a figura 2, os departamentos de maior IDH da Bolívia são exatamente aqueles cuja população indígena é inferior a 25%.

É importante salientar que as medidas tomadas por Morales na redução dessas assimetrias e na criação de um marco legal capaz de impedir sua perpetuação foram invariavelmente populares. Esse caráter não provém somente do apoio massivo que receberam, mas, antes, das experiências que as inspiraram, os eventos citados no iní-cio desta seção e reforçados no esquema da figura 1. Assim, a convo-cação da Assembleia Constituinte boliviana foi resultado da luta po-pular, nomeadamente indígena, que, depois de eleger seu primeiro líder aymara, estava decidida a modificar as estruturas de poder e o próprio conceito de democracia que regia o Estado boliviano.

3 A CONDUÇÃO DO PROCESSO CONSTITUINTE

Quando, em fevereiro de 2006, o MAS deu início às negociações para a edição da “Ley Especial de Convocatória a la Asamblea Consti-tuyente”, a sociedade boliviana havia passado por uma alteração fun-damental. Se, de 2002 a 2004, cinco em cada dez bolivianos diziam- -se prontos a respaldar uma saída autoritária para o Estado, em 2006, seis em cada dez bolivianos afirmavam que a democracia era a melhor forma de governo. Essa recuperação de confiança na democracia pa-rece estar associada à chegada de Morales ao poder e às expectativas em torno da instauração de uma Assembleia Constituinte na qual se depositavam esperanças seculares10 (LATINOBARÔMETRO, 2006).

Em menos de seis semanas, a Lei no 3.364, de 6 de março de 2006, foi promulgada por Evo Morales, que cumpriu, assim, sua mais emblemática promessa de campanha11. A Lei Especial sediou a As-

10 LATINOBARÔMETRO. Santiago, Chile, 2006. Disponível em: <http://www.latinobaro metro.org/>. Acesso em: 10 jul. 2009.

11 Associada a essa lei, apresenta-se a questão das “autonomias departamentais”, cuja gênese foi descrita por Dunia Mokrani em artigo sobre o tema: Bolivia era un estado central y unitario, conformado por 9 departamentos cuya máxima autoridad políti-ca es un Prefecto que, hasta las elecciones de 2005, era designado directamente por

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sembleia em Sucre (capital constitucional do país), definiu 2 de ju-lho de 2006 como data da eleição dos constituintes e 6 de agosto de 2006 como data para o início dos trabalhos. Além desses aspectos formais, a lei fixou alguns pontos que merecem destaque e que, para ter sua compreensão facilitada, serão agrupados em três seções: I) Quanto aos componentes da ANC; II) Quanto ao seu modo de eleição; III) Quanto ao funcionamento da ANC.

I – Quanto aos componentes da ANC. A Lei especial estabeleceu que a candidatura à ANC poderia ser realizada a partir de três fren-tes: através de um Partido Político12, de um Agrupamento Cidadão13 ou de um Povo Indígena, admitindo, ainda, alianças entre eles. Essa

el presidente del país. Bajo esta forma organizativa se agigantan los problemas, ma-lestares y cuestionamientos que acarrea la “centralización” de las decisiones políticas principales, aún en estados federales. En el caso boliviano, la centralización ha sido denunciada como un mal estructural de la institucionalidad estatal, sobre todo por las élites terratenientes y agroindustriales de los departamentos del oriente y el norte del país: Santa Cruz, Tarija, Beni y Pando. A comienzos del año 2005 hubo en Santa Cruz una gran movilización auspiciada por el empresariado que, aprovechando como pretexto el alza en los precios internos del diesel que se utiliza para la agroindustria, denunciaba el “centralismo secante” y exigía “autonomía departamental”. Esto ocurría en medio de la gran división que por aquel entonces desgarraba al país entre quie-nes exigían la nacionalización de los hidrocarburos entregados a las transnacionales y quienes, más bien, defendían el status quo en virtud de sus importantes negocios de provisión de servicios a tales corporaciones extranjeras: una fracción del empresaria-do cruceño y tarijeño. En enero de 2005 la oligarquía del oriente del país organizó pues, su propia movilización financiando un “paro departamental” en el que obligó a sus empleados a acudir a un Cabildo. Fue entonces cuando se estableció la “autonomía departamental” como bandera política de las regiones del oriente. Tal demanda de autonomía, funciona a dos niveles. Por un lado, sirve de coartada para las élites que se dotan de un “enemigo” a combatir y a partir del cual movilizar el apoyo popular: el centralismo. Por otro, tal dispositivo discursivo efectivamente recoge cierta sensación de malestar, muy extendida en las tierras bajas bolivianas, sobre el carácter conflictivo de los habitantes andinos y permite que fluyan y se exacerben las discrepancias que atraviesan a los sectores populares de estas dos regiones, en tanto los “cambas” suelen quejarse de la ambición hegemónica y el desprecio de “los andinos”.

12 Quanto a estes, havia uma vedação: não poderiam ser candidatos os então parla-mentares no nível nacional e municipal, os conselheiros departamentais, o Presi-dente da República, seu vice, os ministros, diretores gerais, os ocupantes de altos cargos do executivo, os membros do judiciário e do Ministério Público os funcio-nários públicos civis e militares, a menos que renunciassem pelo menos 60 dias antes das eleições.

13 A expressão “agrupamento cidadão” refere-se a qualquer organização da socieda-de civil devidamente registrada.

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abertura significou uma importante conquista para uma sociedade na qual mais de 80% dos habitantes estão organizados em distintas associações, comunidades, sindicatos, grêmios, juntas vicinais, que atuam diretamente na solução de seus problemas coletivos e assun-tos políticos14/15. Ainda, verifica-se a consonância do dispositivo com os instrumentos internacionais aprovados no período, em que pre-valecia o enfoque ao empoderamento do indígena e sua inclusão no processo de tomada de decisões16.

II – Quanto ao seu modo de eleição. Determinou-se que a Assem-bleia teria 255 membros. Destes, 210 seriam eleitos em setenta cir-cunscrições territoriais definidas pela Corte Nacional Eleitoral, cada uma com três representantes. Os outros 45 seriam eleitos em nove circunscrições departamentais, cada uma com cinco representan-tes17. As circunscrições territoriais definidas pela Corte são uninomi-nais mistas. O candidato mais votado traz outro consigo18, enquanto o segundo mais votado garante apenas o seu posto. As circunscrições departamentais, por sua vez, são plurinominais. O partido/organiza-ção/povo do candidato mais votado garante dois lugares, o partido/

14 LINERA, Álvaro García. Os movimentos Indígenas na Bolívia. Diplomacia, Estratégia e Política, São Paulo, v. 1, n. 3, p.12-31, 2005.

15 Ainda assim, diversos especialistas (principalmente aqueles ligados ao Centro de Estudos Andinos e Mesoamericanos) criticaram esse dispositivo por considerá-lo demasiado restrito às estruturas formais de representação, não oferecendo possi-bilidade de voz aos líderes autônomos e tampouco às associações espontâneas que não dispõem de registro. Não se pode negar que os povos indígenas dificilmente cumpririam com as exigências da Ley Convocatoria, que, em seu artigo 17, solicitava:

Los partidos políticos, agrupaciones ciudadanas y pueblos indígenas que no tengan su personería jurídica vigente, para su registro deberán:

I. Presentar a al Corte Nacional Electoral o las Cortes Departamentales Electorales, según corresponda, las listas con el respaldo de firmas de un número igual o mayor a:

a. Dos por ciento (2%) de los votos válidos de todo el territorio de la ultima elección presidencial, para presentar candidatos a nivel nacional.

b. Dos por ciento (2%) de los votos válidos de un determinado departamento de la ultima elección presidencial, para presentar candidatos por ese departamento.

16 A evolução da legislação internacional em matéria indígena será objeto do subca-pítulo 2.2.

17 As circunscrições departamentais bolivianas correspondem aos estados em países federativos.

18 Definiu-se que, em nome da equidade de representação, um desses dois lugares seria sempre ocupado por uma mulher.

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organização/povo do segundo candidato mais votado garante ape-nas um posto, e assim o terceiro e quarto, respectivamente, desde que sua votação represente mais de 5% dos votos válidos. Apesar de não ser proporcional, o sistema apresentado inclui razoavelmente as forças políticas organizadas para representar as minorias ou que tenham apenas expressão regional.

III – Quanto ao funcionamento da ANC. A Lei Especial estipulou em um ano o prazo de funcionamento da ANC, a ser contado a partir de seis de agosto de 2006. Quanto à aprovação da nova Constituição, o artigo25 da lei determinou que deveria contar com 2/3 dos votos. Esse foi um dos pontos mais questionados pelos movimentos sociais, sob o argumento de que uma coalizão de 1/3 dos constituintes teria a legitimidade de vetar as intenções transformadoras da maioria. Ain-da, determinou-se que a Constituição aprovada pelo Congresso Na-cional teria de ser referendada pela população por maioria absoluta.

Tão logo se aprovou a Lei Convocatória, medidas importantes foram tomadas para garantir a conscientização da população sobre o processo que se iniciava. Havia uma preocupação estrita em garantir amplo acesso à informação e possibilidade de participação efetiva aos bolivianos. Nesse contexto, 75% da população dizia-se muito interes-sada pelos temas a serem debatidos na Constituinte e sete em cada dez demandavam receber “muita” informação sobre os temas e as propos-tas em debate (PNUD, 2008). No intuito de contemplar essas deman-das, destacava-se a atuação da Corte Nacional Eleitoral Boliviana e da Representação Presidencial à Assembleia Constituinte (REPAC).

A atuação da Corte Nacional Eleitoral Boliviana centralizou-se no período pré-constituinte, por meio do programa “Cambiemos la historia haciendo futuro”, cujo principal objetivo estava em

[...] contribuir a la difusión de las diferentes propuestas parti-darias hacia la Constituyente, alcanzando a la mayor cantidad posible de electores en todas las circunscripciones electorales a través de separatas y otras acciones en el campo de la comuni-cación masiva.19

19 Publicación de información, análisis y debate, n. 1, 1ª edición, Junio de 2006. Corte Nacional Electoral Boliviana. Cambiemos la Historia haciendo futuro. Qué tipo de Estado queremos?

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No marco do Programa, produziram-se cinco publicações, sobre os temas “de mayor interés ciudadano”, relacionando, em cada um, as propostas dos diferentes partidos/agrupações/povos. Seus títulos, em ordem cronológica, são: “Qué tipo de Estado queremos”; “Qué forma de Gobierno proponemos”; “Qué tan diferente puede ser el Congresso”; “Tierra e Territorio”; “Uso e destino de nuestros recursos naturales”20.

A REPAC, por sua vez, foi criada pelo Decreto Supremo 28.627, concomitantemente à Lei Convocatória, com a finalidade de coorde-nar os trabalhos antes e durante o estabelecimento da Constituinte. Em sua primeira etapa, suas atribuições abarcavam desde a difusão de informações e a conscientização para a participação da popu-lação no processo até a formação de comitês para o recolhimento das propostas dos movimentos sociais, agremiações e organizações indígenas21. Para o cumprimento da primeira dessas tarefas, foi de-senvolvido um conjunto de materiais para difusão via rádio, tele-visão, internet e pela via impressa22. Na promoção da deliberação pública acerca dos principais temas da nova Constituição, foram organizados eventos de informação, socialização e discussão em todos os departamentos bolivianos, em conjunto com instituições cívicas, sindicatos e organizações indígenas originárias campesinas. Em informe à imprensa23, indica-se que foram realizados aproxima-damente 2.050 eventos em todo o país, dos quais participaram cer-ca de 280.000 pessoas24.

20 Todas as publicações estão disponíveis no website da Corte Eleitoral Boliviana, através do link: <http://www.cne.org.bo/centro_doc/campana_ac2006.aspx>, com acesso em 31 jul. 2009.

21 A estrutura funcional da REPAC contava com três coordenadorias e inúmeros con-selhos. Como exemplo das primeiras, cita-se a Coordinación Nacional de Progra-mas y Proyectos, cuja função principal era sistematizar experiências constitucio-nais internacionais.

22 De acordo com o último senso realizado na Bolívia, mais de 75% dos lares contam com um aparelho de rádio e mais de 55%, com um televisor.

23 O informe foi disponibilizado no website da REPAC e pode ser acessado através do link: <http://www.repac.org.bo>.

24 Boaventura de Sousa Santos foi convidado a falar à população em um desses even-tos. Em relato posterior, no website do Centro de Estudos Sociais, referir-se-ia à experiência: “Senti-me a testemunhar um acontecimento histórico. Há muito não assistia a um ato tão intensamente vivido como festa democrática, tão bem prepara-do do ponto de vista logístico e de capacitação eleitoral”.

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Concomitantemente a essas iniciativas governamentais, a so-ciedade civil organizada reuniu-se espontaneamente com a fina-lidade de elaborar propostas de reforma constitucional que auxi-liassem o trabalho dos constituintes e garantissem a atenção a suas aspirações. Nesse intuito, promoveu-se um forte intercâmbio entre organizações indígenas, campesinas, vicinais e outras formas de associação civil interessadas em fazer-se ouvir. Apesar de reconhe-cer-se progressivamente enquanto sociedade plural e heterogênea, a necessidade de conferir força e representatividade às suas reivin-dicações conduziu inúmeras associações ao diálogo e à convergên-cia. A sociedade boliviana, profundamente envolvida no processo de mudança – que começou com a vitória de Morales e ganhou for-ça com a Convocatória da Assembleia Constituinte – provou que se lhes for dada uma alternativa democrática credível, os latino-ame-ricanos abraçam-na com entusiasmo na expectativa de que possa gerar justiça social.

Nesse momento emblemático para a Bolívia e para a América Latina de maneira geral, 82% dos bolivianos apoiavam a instaura-ção da ANC. Segundo informe do PNUD (PNUD, 2008), tal apoio e expectativa refletiam a elevada valoração das leis como “algo que se deve obedecer” pelos bolivianos. Tanto é assim que dos 60% que se diziam insatisfeitos com a atual democracia, a maioria justificou-o pelas leis injustas ou, quando justas, desrespeitadas. Desse quadro, desponta a interessante – e alentadora – conclusão de que, na Bolí-via, a lei é vista como instrumento de mudança social.

Entretanto, é importante assinalar que, se existe essa crença, ela é sustentada por um determinado imaginário acerca da Assem-bleia Constituinte, enquanto espaço de concepção da nova Constitui-ção. Esse imaginário faz com que os bolivianos escrevam Assembleia Constituinte com “A” maiúsculo e “c” minúsculo, ou seja: compreen-dam-na muito mais enquanto assembleia que se abre à participa-ção de todos do que enquanto congresso constituinte no qual alguns eleitos – conhecedores dos trâmites legais – discutem a mudança por meio de debates técnicos e formais25 (PNUD, 2008). Para os bo-

25 PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO-PNUD. Informe sobre desarrollo humano de Bolivia. 2008. Disponível em: <http://www.pnud.bo>. Acesso em: 1º ago. 2009.

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livianos, a Constituinte assume a conotação de um lugar simbólico de construção de novos direitos e espaços, onde se materializam as aspirações por melhores condições de vida e uma sociedade mais justa. Assim, percebe-se que o processo de reforma constitucional é, antes de tudo, um exercício democrático que aspira à renovação – ou seria reinvenção? – da própria democracia.

A “nova” democracia a que se aspirava a partir da Constituinte deveria ir além de um conjunto de regras e procedimentos, servindo à construção de um regime político participativo preocupado com qualidade, desempenho e resultados. Provavelmente, as raízes des-se entendimento estão ligadas à noção de que, apesar de 25 anos de “democracia” na Bolívia, segue-se convivendo com elevados ní-veis de desigualdade e pobreza. Nota-se que há um distanciamento da ideia de democracia enquanto método, destituída de valor em si, como a concebia Schumpeter26 e a aproximação da noção de “demo-cratização” de Robert Dahl27 (1997), que distinguia a democracia ideal por seus espaços para a contestação pública e a inclusividade. As expressões relacionadas a essa nova democracia, que os bolivia-nos aspiravam institucionalizada pela Assembleia Constituinte, es-tão representadas no esquema da figura 3 adiante.

Uma das mais importantes noções associadas à nova democra-cia refere-se ao que os bolivianos entendem por “autorrepresenta-ção”, que encontra tradução na ampliação dos espaços de participa-ção do cidadão nas decisões do Estado. Esse termo, entretanto, não indica o desejo de substituição da democracia representativa pela direta, mas a aspiração de reconhecimento estatal dos diversos âm-bitos, atores e regras que conduzem as práticas democráticas. Nesse âmbito, situa-se a demanda pelo reconhecimento dos interlocutores dos distintos grupos sociais como representantes ainda mais legíti-mos do que os partidários. Assim, reconhecer o papel político das pequenas associações, onde as coletividades têm voz e vez, passa a significar garantia de maior participação cidadã.

26 SCHUMPETER, Joseph. Capitalismo, Socialismo e Democracia. Rio de Janeiro: Zahar, 1984.

27 DAHL, Robert. Poliarquia: Participação e Oposição. São Paulo: Editora da Universi-dade de São Paulo, 1997.

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Auto- represen-

tação

Justiça Social

ControleSocial do

Estado

DEMOCRACIA

Figura 3 – Representações da Nova Democracia Boliviana.

Fonte: Criação do autor, com base no Informe sobre Desenvolvimento Humano na Bolívia, (PNUD, 2008)

Por sua vez, a noção de “controle social” está associada ao di-reito das organizações e instituições da sociedade civil de conhecer, supervisionar e avaliar os resultados das políticas públicas e os pro-cedimentos participativos para a tomada de decisões. Assenta-se so-bre o desejo de horizontalidade das relações entre o Estado e a socie-dade civil, que deseja participar ativamente da tomada de decisões do Estado, auxiliando-o via referendo. A reivindicação existente é de que a sociedade civil institua-se enquanto “quarto poder”, trazendo para si a responsabilidade de fiscalizar a atuação dos três poderes. De acordo com enquete realizada pelo PNUD/200828, as universida-des são tidas como os polos mais legítimos para coordenar essa ati-vidade em conjunto com a sociedade civil organizada. É interessante notar como essa concepção aproxima-se do conceito de “cidadania total”, concebida por Rousseau29 como a mais apta a construir a de-mocracia ideal, em que a noção do público, do coletivo mobiliza o indivíduo. Na Bolívia, às vésperas de uma Assembleia Constituinte,

28 PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO-PNUD. In-forme sobre desarrollo humano de Bolivia. 2008. Disponível em: <http://www.pnud.bo>. Acesso em: 1º ago. 2009.

29 ROUSSEAU, Jean Jacques – Discurso sobre a origem e os fundamentos das desigualda-des entre os homens / Jean Jacques Rousseau; [introdução de João Carlos Brum Torres]; tradução de Paulo Neves. – Porto Alegre, RS : L&PM, 2008..

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ao contrário do que sucede em inúmeros países vizinhos, o cidadão politiza sua vida cotidiana e prontifica-se a dividir com o Estado o encargo de pensar e gerir a coisa pública.

A terceira noção associada à democracia é a de justiça social. Esse atributo não encontra relação com as teorias que defendem a democracia enquanto método, restringindo-se a seus padrões for-mais. Ao demandar justiça social, o boliviano reconhece as profun-das assimetrias que dividem seu país e reivindica, claramente, polí-ticas voltadas “à melhoria da situação dos mais pobres”. Por popu-lação mais pobre, a grande maioria dos bolivianos compreende “as comunidades indígenas”30.

Realizadas as eleições, dois resultados sobressaíram-se: I) A predominância dos Partidos Políticos em relação às outras formas de representação permitidas; e II) A sobressalência do partido gover-nista (MAS) sobre seu principal oponente (PODEMOS). A conclusão precipitada de que os partidos ter-se-iam confirmado enquanto re-presentantes mais legítimos não é verdadeira. A polarização dos vo-tos em torno dos partidos políticos provavelmente se deu em razão da dificuldade enfrentada pelas agremiações e povos indígenas em adequar-se às exigências feitas pela Lei Especial. A maioria absoluta dos bolivianos, quanto questionados sobre quem era mais sensível às demandas populares, responderam a favor dos dirigentes sociais, enquanto apenas uma minoria apontou os dirigentes partidários31.

Ainda, quando questionados sobre que organizações deveriam cumprir o papel de representantes da vontade popular, os comitês cívicos receberam a maioria dos votos na região de Terras Baixas, enquanto os movimentos sociais sobressaíram-se nas Terras Altas. Apesar do resultado obtido na Assembleia Constituinte, a crise de representatividade vivida pelos partidos políticos tradicionais não pode ser desconsiderada. Ela compõe inquestionavelmente o rol de “estruturas a serem modificadas” na nova Constituição.

Quanto à representação partidária, a vitória dos partidos de esquerda ou indigenistas refletiu-se na aquisição de 61% das ca-

30 PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO-PNUD. In-forme sobre desarrollo humano de Bolivia. 2008. Disponível em: <http://www.pnud.bo>. Acesso em: 1º ago. 2009.

31 Idem, ibidem.

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deiras na Assembleia Constituinte32, enquanto à direita restaram as outras 39%. Embora esse percentual não garantisse a aprovação de um artigo, para o qual a Lei Convocatória exigia 2/3 dos votos, era suficiente para vetar as transformações propostas.

Essa configuração de forças foi responsável pelo engessamen-to das discussões que, programadas inicialmente para durarem doze meses, tomaram oito apenas para discutir as regras de seu próprio funcionamento. Esse atraso deu-se, principalmente, em ra-zão do entendimento dos partidos de esquerda – sobretudo do MAS – de que os artigos deveriam ser aprovados por maioria absoluta e não por 2/3. Defendiam que a estipulação da Ley Convocatoria referia-se ao inteiro teor da nova Constituição e não a cada artigo, individualmente. Quando esse entendimento foi, enfim, aprovado, os representantes dos partidos tradicionais protagonizaram desde greves de fome até atos de violência, que estenderam-se até o final dos debates, quando a oposição simplesmente deixou de compare-cer às reuniões.

A segunda fase do trabalho dos constituintes deu-se fora da Assembleia. A partir do oitavo mês de reuniões, os 255 eleitos, di-vididos em 21 comissões, cada uma delas encarregada de elaborar propostas sobre um dado tema, dirigiram-se às mais diversas loca-lidades do país, angariando propostas de associações civis33. Diante desse empreendimento, os 12 meses (completos em agosto) tiverem de ser prorrogados até dezembro de 2008.

De volta à Assembleia, iniciou-se a fase final de discussões. Apesar do cenário sempre tenso e do embate permanente entre as forças centrais, a população compareceu de forma maciça à As-sembleia, apresentou suas propostas, assistiu aos debates e apoiou veementemente o texto que se estava construindo. Essa ascendên-

32 Os constituintes eleitos pelo MAS pertenciam a diversos setores sociais. Entre esses eleitos, pode-se distinguir advogados, líderes de ONGs, intelectuais de reconhecida trajetória política, ex-presidentes de sindicatos, lideranças originárias (como identi-ficam-se os representantes de ayllus ou outras organizações indígenas), etc.

33 Nesse momento, o apoio popular à constituinte sofreu queda considerável. De acordo com a análise de inúmeras agências, esse impacto foi potencializado pelos meios de comunicação do país que, nesse momento, anunciavam prematuramente o fracasso da Assembleia Constituinte (PNUD, 2008).

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cia indígena consolidou-se como o diferencial político no proces-so constituinte. O discurso por ela difundido centrava-se na crítica profunda à democracia liberal representativa, considerada como um regime que reproduzia uma sociedade fraturada e intolerante, assentada em uma homogeneização forçada, cópia do modelo civi-lizatório ocidental.

Defendiam-se, em contrapartida, todas as medidas aptas a moldar um sistema original, capaz de dar bases a um Estado pluri-étnico e pós-colonial. Tratava-se, nesse momento, de refundar o Es-tado sem olvidar a história, como sugeria a lição de Boaventura. A história, nesse caso, refere-se a mais de cinco séculos de dominação, espoliação e marginalização dos indígenas do país. Evidencia a su-pressão dos saberes nativos em nome da supremacia civilizacional ocidental, que via o distinto como fruto da ignorância e do atraso e firmava-se institucionalmente através de um Estado monocultural. A memória desse processo secular, representada pelos indígenas pre-sentes à Assembleia Constituinte, consagrou-se como o leitmotiv da refundação do Estado boliviano.

Foi assim que, em 9 de dezembro de 2008, na presença de 165 dos 255 eleitos, a Assembleia Constituinte aprovou uma nova Consti-tuição para a Bolívia34. Em 25 de janeiro de 2009, mais de cinco sécu-los depois da chegada de Francisco Pizarro às Américas e do início da marginalização do indígena, o povo boliviano referendou a nova Cons-tituição, destinada à refundação de seu Estado e à reinvenção de sua democracia sob o signo da tolerância, inclusão e respeito à diversidade.

A consulta consistia em duas perguntas, sendo que, na primei-ra delas, o cidadão deveria responder se aprovava ou não a nova Constituição35. Mais de 80% dos eleitores bolivianos participaram dessa consulta, concedendo ao “sim” 61% dos votos válidos. Quando

34 Foram aprovados por dois terços dos deputados presentes 410 dos 411 artigos. O único que não obteve consenso foi levado à população, para que decidisse median-te referendo.

35 Na segunda pergunta, o cidadão deveria opinar sobre o tamanho máximo da pro-priedade da terra: 5 ou 10 mil hectares. Esse artigo dizia respeito ao tamanho das propriedades rurais que seriam consideradas latifúndio e, portanto, proibidas pela nova Constituição. A opção 5.000 venceu em todos os departamentos, inclusi-ve nos da “meia lua”, com porcentagem de 78% no país, em geral, contra 22% para a opção 10.000 hectares.

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se decompõe a votação por departamentos, verifica-se que, no Oci-dente (La Paz, Cochabamba, Oruro e Potosy), a aprovação da Nova Constituição chegou a 70%. Enquanto isso, o “não” prevaleceu nos departamentos da meia lua (Santa Cruz, Beni, Tarija e Pando), com 62% dos votos.

O referendo foi acompanhado por mais de 300 observadores internacionais, entre eles, comissões representativas do Parlamento do Mercosul, da Unasul e da OEA. Entre as manifestações dos obser-vadores, prevaleceu a compreensão do processo como “um dos mais consistentes exercícios de democracia de alta intensidade do nos-so tempo”36. Completada a análise da Nova Constituição Boliviana em seu processo, a seção final deste subcapítulo dedicar-se-á à sua abordagem material.

4 OS NOVOS ADJETIVOS DO ESTADO BOLIVIANO

A Nova Constituição Boliviana talvez possa ser considerada o mais recente pachacuti presenciado na Bolívia. Seu ineditismo está na força da participação popular que alcança todas as suas fases. Ela foi gestada pelos movimentos sociais, reivindicada por eles, escrita a partir de suas propostas, diante de sua fiscalização e, finalmente, re-ferendada de acordo com sua vontade. Entretanto, isso não faz dela uma Constituição unânime e de fácil consenso. Como bem explicam os constitucionalistas espanhóis Wilhelmi e Pisarello37:

A nova Constituição boliviana não é uma Constituição “de professores”, aprovada em tempos relativamente pacificados, como foi a Constituição republicana espanhola de 1931, nem é tampouco a Constituição de uma revolução que, apesar das suas divergências internas, derrotou seus antigos adversários, como foi a Constituição mexicana de 1917. É um texto marca-do pelo acosso de uma direita classista e racista que tem de-

36 A observação foi feita por Boaventura, que participou como observador interna-cional do referendo constitucional boliviano, em artigo publicado em 26.01.2009, na Folha de S. Paulo.

37 WHILHELMI, Marco Aparício; PISARELLO, Geraldo. A Bolívia no espelho. Carta Maior, 18 dez. 2007. Disponível em: <http://www.cartamaior.com.br>. Acesso em: 19 jul. 2009.

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monstrado estar disposta a qualquer coisa com tanto de im-pedir que os “filhos” de Tupac Katari e Bartolina Sisa possam chegar a exercer o poder político na Bolívia.

É compreensível, entretanto, a apreensão que a NCB suscita entre aqueles que não desejam a mudança. Segundo Boaventura (2007, pg.35), ela insere-se em novo constitucionalismo, cuja forma toma emprestados alguns aspectos do constitucionalismo de Hesse e Lassale38, os mescla e redefine em uma geometria variável, experi-mental, destinada a reconhecer diferenças ocultadas, valorizá-las e a partir delas redesenhar instituições que marquem o sepultamento do colonialismo.

Esse novo constitucionalismo assenta-se em três aspectos es-senciais: o reconhecimento recíproco, alcançado mediante o espelha-mento das diferentes nações e/ou culturas que compõem o Estado e a capacidade mútua de compreenderem-se enquanto distintas; a continuidade, que diz respeito à ligação do novo texto constitucional com o passado histórico de seu Estado, materializado na memória das injustiças que cometeu e a necessidade de repará-las; e, por fim, o consentimento, que exalta a necessidade de diálogo em dois níveis: entre as distintas culturas e/ou nações que compõem um Estado e entre as instituições estatais e a sociedade civil.

Como atestam seus 411 artigos, a analítica Constituição boli-viana não apenas lança as estruturas de uma nova ordem, mas pro-põe-se a redefinir instituições e seus papéis, instituir novos direitos e materializar uma nova ordem estatal, assentada sobre uma nova dinâmica democrática. Essa atitude, adotada em um contexto políti-co tenso e complexo e associada ao temor de deixar brechas, explica que o texto finalmente aprovado padeça de uma considerável falta de sistematicidade e, inclusive, de incongruências e reiterações des-necessárias. Entretanto, é também na linguagem utilizada que estão suas maiores riquezas. O texto constitucional boliviano incorpora sentimentos, valores e expressões culturais, estranhos à linguagem dura e fria do Direito.

38 Enquanto Lassale defendia a Constituição como espelho das relações efetivamente vi-vidas em uma sociedade, ou seja, a reprodução do real, Hesse acreditava na força nor-mativa da Constituição, ou seja, o poder das leis de modificar as relações sociais.

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Nas próximas páginas, este texto será analisado em seu pre-âmbulo e em seu componente dispositivo. Este último item, o com-ponente dispositivo, para efeitos didáticos, será sistematizado nos seguintes eixos: I) Modelo de Estado; II) Pluralismo Cultural; III) Plu-ralismo Jurídico; IV) Pluralismo Político; e V) Pluralismo Econômico.

O componente preambular da NCB merece destaque por apre-sentar o “espírito da lei” que virá a seguir, sintetizando suas prin-cipais inspirações. Em sua abertura, refere-se a um dos elementos mais fortemente associados à “bolivianidade”, responsável pelo or-gulho de ser boliviano: os recursos naturais do país39. A referência à mãe terra como origem de todas as coisas, precede a referência à pluralidade de raças que compôs, desde as origens, os povos situa-dos no atual território boliviano:

Poblamos esta sagrada Madre Tierra con rostros diferentes, y comprendimos desde entonces La pluralidad vigente de todas las cosas y nuestra diversidad como seres y culturas. Así con-formamos nuestros pueblos, y jamás comprendimos el racismo hasta que lo sufrimos desde los funestos tiempos de la colonia.

Nesse segmento, sobressai-se a referência à pluralidade en-quanto riqueza, contrastada pelo entendimento etnocêntrico, que compreendia a diferença como sinal do atraso de um dos povos. A pluralidade a que se faz referência associa-se a uma ideia generosa da diferença, compreendida como contraste e possibilidade de esco-lha, como alternativa, chance, abertura e experimento no conjunto que a humanidade possui de escolhas de existência.

A memória de um passado harmonioso, rompido pela chega-da dos colonizadores inspira o parágrafo seguinte, no qual se nota que o novo Estado boliviano forma-se como resultado do acúmulo de experiências por que passaram as comunidades originárias em sua luta por voz e vez no cenário nacional. No parágrafo, são citados os eventos elencados, nesta dissertação, como pachacutis, cujos efei-tos foram o “rompimento” de ciclos de dominação e a condução ao amadurecimento político dos atores sociais:

39 Dados referentes à enquete do PNUD, realizada em 2006, às vésperas da inaugura-ção dos trabalhos da Assembleia Constituinte.

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El pueblo boliviano, de composición plural, desde La profundi-dad de La historia, inspirado en las luchas Del pasado, en la su-blevación indígena anticolonial, en la independencia, en las lu-chas populares de liberación, en las marchas indígenas, sociales y sindicales, en las guerras del agua y de octubre, en las luchas de nuestros mártires, construimos un nuevo Estado.

Por fim, merece relevo a caracterização do novo Estado boli-viano, fundado por meio da nova Constituição, a partir do contraste com aquele que o precedeu, identificado como um Estado colonial, republicano e neoliberal, cuja superação indica uma “nova história” para a Bolívia.

I) Modelo de Estado. O novo Estado boliviano é apresentado no artigo inicial da NCB como um Estado Unitário Social de Direito Plu-rinacional Comunitário, fundado sobre a pluralidade e o pluralismo político, econômico, jurídico, cultural e linguístico. O emprego do termo plurinacional reforça o rechaço ao projeto de mestiçagem leva-do a cabo na década de 1950, afirmando que “ser boliviano” já não im-plica fazer parte de um todo homogêneo e uniforme. Segundo o artigo 3º, compõem essa nação heterogênea todos os bolivianos e bolivianas, as nações e povos indígenas originários campesinos e as comunidades interculturais e afro-bolivianas. As expressões utilizadas para designar as características essenciais do Estado remetem a uma unidade com diversidade, ou seja, o reconhecimento de que ser boliviano significa compartilhar distintas culturas, crenças e cosmovisões. Felizmente, essa definição é um consenso na sociedade boliviana. Em enquete re-alizada pelo PNUD em 2007, a grande maioria da população associou a ideia de nação boliviana à pluralidade de raças e etnias. Longe de expressar desagrado em relação a esse dado, sete em cada dez entre-vistados viam na diversidade um fator positivo à democracia.

A inspiração principiológica desse novo Estado também foge ao modelo monocultural até então vigente. O artigo 8º da NCB apresenta expressões retiradas da sabedoria indígena para nortear a atuação do Estado, como as orientações ama qhuilla (não sucumba ao ócio), ama llulla (não minta) ama suwa (não roube), e as referências suma qamaña (viver bem), ñandereko (vida harmoniosa), teko kavi (vida boa), ivi ma-raei (terra sem mal) e qhapaj ñan (caminho ou vida nobre). Além dos princípios inspiradores, também os valores sobre os quais repousa o

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novo Estado são listados e merecem destaque por seu vanguardismo. Além dos tradicionais liberdade, igualdade e solidariedade, estão pre-sentes a inclusão, a harmonia, a equidade social e de gênero, a respon-sabilidade e a justiça social, todos orientados para o “viver bem”.

Ao instrumentalizar esses valores, além dos direitos civis e po-líticos e dos direitos econômicos sociais e culturais, a Constituição boliviana inaugura uma seção de Direitos Fundamentais. Entre eles, destacam-se o direito à integridade física, psicológica e sexual, sen-do vedada toda e qualquer violência de gênero e de geração, assim como toda a ação ou omissão que tenha por objeto a degradação da condição humana. Também são citados o direito à segurança alimen-tar40 e o direito de acesso equitativo aos recursos naturais (água po-tável, saneamento, eletricidade, gás domiciliar).

Merece relevo, ainda, o rol de direitos coletivos garantidos pela NCB e sua equiparação aos direitos individuais. Nesse ponto, a NCB diferencia-se substancialmente da Constituição anterior, que somente incorporava em seu catálogo de direitos os civis e políticos, desenvol-vendo apenas parcialmente os direitos coletivos em regimes especiais. Se considerarmos o fato de que os direitos reclamados pelas comu-nidades indígenas são essencialmente coletivos – como é o caso, por exemplo, do direito a um meio ambiente sadio ou do direito aos recur-sos naturais e reconhecimento de terras –, veremos que sua garantia também atua na inclusão dessas populações. A atenção prioritária às comunidades indígenas nessas e em inúmeras outras passagens da NCB encontram respaldo no entendimento da maioria dos bolivianos que, opinando a respeito, indicam acreditar que os indígenas sofrem discriminação no exercício de seus direitos41.

I – Pluralismo Cultural: A instrumentalização do pluralismo cul-tural centra-se na garantia de uma “educação descolonizadora” na adoção do plurilinguismo e na modificação dos símbolos nacionais. Por educação descolonizadora entende-se a educação intracultural, intercultural e plurilíngue, fundada sobre alicerces humanistas, pri-

40 Desde agosto de 2009, por iniciativa do governo federal, iniciou-se, no Brasil, uma campanha para a inclusão do direito à alimentação adequada como direito funda-mental na Constituição federal do país.

41 PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO-PNUD. In-forme sobre desarrollo humano de Bolivia. 2008. Disponível em: <http://www.pnud.bo>. Acesso em: 1º ago. 2009.

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mando pelo aprendizado crítico e pela formação solidária. A NCB ousa instaurar a laicidade do Estado, que, aplicada à educação, traduz-se no fomento ao respeito à liberdade de credo. O plurilinguismo, por sua vez, manifesta-se através da adoção, como idiomas oficiais do Estado, além do castelhano, todos os idiomas das nações e povos indígenas originários campesinos. Recomenda-se a utilização institucional de ao menos um idioma além do espanhol, a ser decidido conforme seu uso nos diversos departamentos. Assim, a partir da nova Constituição, os serviços de justiça, de saúde, educação, os atos públicos, documentos oficiais, letreiros e sinalizações públicas deverão apresentar-se em es-panhol e em, ao menos, mais uma língua indígena. Por fim, a plurali-dade cultural manifesta-se mediante a incorporação da whipala42 aos símbolos nacionais.

II – Pluralismo Jurídico. O tratamento dispensado pela NCB à organização e ao funcionamento de seu sistema judiciário distin-gue-se ao conferir a cada cidadão a possibilidade de ser julgado segundo seu sistema de crenças e valores. Tal disposição à plura-lidade é considerada por grandes antropólogos, como o alemão Fridrik Barth, como a mais profunda manifestação de justiça es-tatal. Entretanto, assim como seus propósitos, os desafios que se impõem ao funcionamento desse novo sistema também são eleva-dos. A partir da nova Constituição, a justiça boliviana incorpora à jurisdição ordinária uma jurisdição indígena originária campesina e uma jurisdição agroambiental.

A jurisdição ordinária não sofreu alteração em sua conforma-ção – composta, respectivamente, pelos tribunais municipais, depar-tamentais e pelo Tribunal Supremo de Justiça –, mas sim no modo de eleição dos magistrados deste último. Na Constituição anterior, os juízes eram eleitos pelo Congresso Nacional, por 2/3 dos votos. As maiores críticas tecidas a este sistema reportavam-se a uma possível partidarização dos juízes e aos altos níveis de corrupção incentiva-

42 A Wiphala é propriedade das nações originárias bolivianas, símbolo histórico das classes exploradas, oprimidas, e marginalizadas, e a representação das maiorias nacionais. Tem as cores do arco-íris e, para os aymaras, é a expressão do pensa-mento filosófico andino, e seu conteúdo manifesta o desenvolvimento das ciências, da tecnologia e das artes. Também representa a imagem de organização, de har-monia e reciprocidade nos Andes.

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dos pela ausência de um controle social de sua atividade, já que a população raramente conhecia ou tinha acesso àqueles. Procurando dirimir esses problemas, a NCB retirou a competência de eleição dos magistrados do congresso e repassou-a ao povo, que elegerá os juí-zes a partir de uma lista de candidatos pré-selecionados. Além disso, prevê-se a possibilidade de controle social da justiça através do Con-selho da Magistratura – do qual se falará mais à frente –, admitindo- -se, inclusive, a revogação do mandato do magistrado, inicialmente previsto para seis anos.

A jurisdição indígena originária campesina estende-se a to-dos os membros dessas nações ou povos, seja no papel de autores ou demandados, e está regulamentada pelos artigos 190 a 192 da NCB. Nesses artigos, ela é compreendida como a faculdade dos po-vos e nações indígenas de dirimirem seus conflitos através de suas autoridades e segundo seus princípios, valores culturais, normas e procedimentos. Fez-se apenas uma exigência quanto ao seu exercí-cio: que respeite o direito à vida, à defesa e aos demais direitos e garantias previstos pela Constituição. Esta restrição vai ao encontro do interesse popular, que em enquete sobre o assunto manifestou- -se plenamente favorável à ideia de repassar aos povos indígenas a administração da justiça em suas comunidades, contanto que seus costumes estejam de acordo com a Constituição boliviana (PNUD, 2006). É interessante ressaltar que a restrição feita é insignificante ante a conquista que essa jurisdição significa. Reconhecê-la impli-ca não somente acolher um conjunto de valores e representações distinto do oficial, mas aceitar a convivência entre as fontes escritas (justiça ordinária) e consuetudinárias de direito. Quanto às decisões tomadas pelas autoridades indígenas, seus efeitos restringem-se aos limites do território originário e delas não cabe recurso ao Tribunal Supremo, podendo ser revisadas apenas pelo Tribunal Constitucio-nal Plurinacional, do qual se falará em seguida.

A jurisdição agroambiental, por sua vez, será exercida pelos ju-ízes e pelo Tribunal Agroambiental, sua instância máxima. De acordo com o artigo 189 da NCB, são atribuições do tribunal:

1. Resolver los recursos de casación y nulidad en las acciones re-ales agrarias, forestales, ambientales, de aguas, derechos de uso

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y aprovechamiento de los recursos naturales renovables, hídri-cos, forestales y de la biodiversidad; demandas sobre actos que atenten contra la fauna, la flora, el agua y el medio ambiente; y demandas sobre prácticas que pongan en peligro el sistema ecológico y la conservación de especies o animales.2. Conocer y resolver en única instancia las demandas de nuli-dad y anulabilidad de títulos ejecutoriales.3. Conocer y resolver en única instancia los procesos contencio-so administrativos que resulten de los contratos, negociaciones, autorizaciones, otorgación, distribución y redistribución de derechos de aprovechamiento de los recursos naturales reno-vables, y de los demás actos y resoluciones administrativas.4. Organizar los juzgados agroambientales.

A exemplo da eleição dos membros do Tribunal Supremo de Justiça, os juízes do Tribunal Agroambiental serão eleitos por sufrá-gio universal. Poderão concorrer ao posto os juristas especializados na matéria, com experiência de oito anos no exercício da advocacia ou cátedra agroambiental.

Acima dessas jurisdições, situam-se o Conselho da Magistratu-ra e o Tribunal Constitucional Plurinacional. O Conselho da Magis-tratura é a instância responsável pelo regime disciplinar, controle, fiscalização e formulação de políticas públicas na gestão das jurisdi-ções. Sua criação vai ao encontro das reivindicações populares pela ampliação do controle social e da participação cidadã em todos os âmbitos do Estado. Seus membros serão eleitos por sufrágio univer-sal entre os candidatos com mais de trinta anos, com conhecimento na área de suas atribuições e conduta ética e honesta. Entre as im-portantes atribuições do Conselho estão a promoção da revogação de mandato dos magistrados que cometam faltas gravíssimas (a se-rem determinadas por lei) no exercício de suas funções e a fiscaliza-ção da administração financeira do judiciário.

Quanto ao Tribunal Constitucional Plurinacional, ele represen-ta o topo do sistema judiciário boliviano. A ele cabe zelar pela supre-macia da Constituição, exercendo controle de constitucionalidade e monitorando o respeito e a vigência dos direitos e garantias consti-tucionais em todas as jurisdições. Seus juízes também serão eleitos

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mediante sufrágio universal entre aqueles que, com mais de trinta e cinco anos, especialização ou experiência de no mínimo oito anos nas disciplinas de Direito Constitucional, Administrativo ou Direitos Humanos, tiverem sua candidatura proposta por organizações da sociedade civil, nações ou povos indígenas originários. A composi-ção do tribunal respeitará a plurinacionalidade, contando com re-presentação das jurisdições ordinária e indígena43.

Essa breve apresentação da justiça plurinacional boliviana, em sua organização e hierarquia, pode ser mais facilmente assimilada a partir do seguinte esquema:

Tribunal Supremo de Justiça

Jurisdição Agroambiental

Jurisdição Ordinária

Tribunais Departamentais

Juizados Municipais

Autoridades Originárias

Tribunal Agroambiental

Juizados Agroambientais

Jurisdição Indígena Campesina Originária

Conselho de Magistratura

Tribunal Constitucional Plurinacional

Figura 4 – Organograma do sistema judicial boliviano. Fonte: Criação própria, com base na NCB.

III - Pluralismo Político. Esse eixo concentra as mais fortes rei-vindicações da sociedade boliviana e traz inúmeras mudanças que visam a atender às aspirações da nova democracia, apresentada alhures. Em resposta ao desejo de autorrepresentação e reconhe-cimento dos diversos atores, âmbitos e práticas democráticas em

43 A esses representantes da jurisdição indígena originária campesina é que caberá a revisão das decisões proferidas pelas autoridades indígenas.

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plena vigência na sociedade boliviana, a nova Constituição, em seu artigo 11, reconhece três formas de exercer a democracia: a forma direta e participativa, mediante referendo, iniciativa legislativa cida-dã, possibilidade de revogação de mandato, assembleias populares e consultas prévias; a forma representativa, que se exerce mediante a eleição direta de seus representantes no executivo e legislativo em nível federal, departamental, municipal e judicial; a forma comunitá-ria, por meio da eleição, designação ou nomeação de autoridades e representantes das nações e povos indígenas originários campesi-nos. Ainda, com o espírito de alargar e aprofundar os canais de co-municação entre Estado e sociedade civil, a NCB regulamenta, em seus artigos 241 e 242 as formas de participação e controle social. Esses dispositivos garantem a participação da sociedade civil orga-nizada – e a ela conferem a responsabilidade de organizar e definir o modo como se dará sua atuação – na formulação de políticas públi-cas e no controle e fiscalização dos serviços de gestão pública.

Essa previsão é emblemática porque reconhece a existência da demodiversidade, ou seja, das diferentes formas de se exercer a democracia, pondo fim à hegemonia da democracia representa-tiva, não porque a acredite ruim, mas por estar convicta de que é insuficiente.

Em relação ao modo de eleger o presidente da república, a Constituição revogada dispunha que, em caso de nenhum dos candi-datos alcançar o índice de 50% + 1 ou 45% dos votos válidos e uma diferença de 10 pontos percentuais em relação ao segundo colocado, a determinação de quem seria o novo presidente passaria ao Con-gresso Nacional. A NCB modifica esse criticado dispositivo, determi-nando que, nas condições recém-mencionadas, realize-se, no prazo de sessenta dias, um segundo turno entre os dois mais votados. Será, então, proclamado presidente da república o candidato que obtiver maioria nesse segundo turno. A NCB mantém a previsão de cinco anos para o mandato presidencial. A novidade está na possibilidade de uma reeleição e da revogação do mandato, mediante referendo, ao término da primeira metade da gestão.

Outra importante – e complexa – inovação diz respeito à apro-vação do sistema de autonomias. Até o advento da nova Constitui-

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ção, a Bolívia era um Estado unitário com descentralização admi-nistrativa que, apenas em 2005, adotou o sufrágio universal como forma de eleger seus representantes departamentais e municipais. Embora a administração dos territórios estivesse nas mãos de suas autoridades constituídas, a decisão sobre o destino dos recursos econômicos gerados em cada departamento era centralizada. Como a contribuição de cada departamento para a composição do PIB é extremamente assimétrica, os estados produtores de riqueza – a meia lua boliviana – passaram a reivindicar a gestão autônoma de seus recursos. Assim, a demanda pelas autonomias nasce e popu-lariza-se como uma demanda associada às elites bolivianas e a seu desejo de concentração de riqueza. Não por acaso a proposta de convocação da Assembleia Constituinte – essencialmente indíge-na e, portanto, identificada com o ocidente boliviano – somente foi aprovada pelos partidos tradicionais com a condição de que pos-sibilitasse aos departamentos que assim decidissem a adoção de um estatuto autonômico. Por esses motivos é que o debate sobre as “autonomias” tornou-se, invariavelmente, aquele que mais dividiu opiniões na agenda constituinte.

Em enquetes realizadas pelo PNUD durante os debates da As-sembleia Constituinte44 (PNUD, 2007), percebiam-se imaginários claramente polarizados acerca do tema (figura 5). Aqueles que con-feriam conotação positiva às autonomias – habitantes do oriente desenvolvido – associavam-nas com a possibilidade de gestão dos recursos por cada departamento, e, consequentemente, com um me-lhor direcionamento das verbas. Assim, autonomia – em seu polo po-sitivo – relacionava-se à ideia de “sermos donos do que produzimos” e de um respectivo crescimento das regiões. Em contrapartida, aque-les que compreendiam como negativa a proposta de autonomias – habitantes do ocidente – associavam a gestão descentralizada de re-cursos com um modo de beneficiar os departamentos mais ricos em detrimento dos mais pobres, gerando, assim, desunião, separatismo e uma fonte permanente de conflitos.

44 PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO-PNUD. (2007) Informe sobre desarrollo humano de Bolivia. Disponível em: <http://www.pnud.bo>. Acesso em: 1º ago. 2009.

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• Possibilidade de gestão de próprias riquezas;• Melhor direcionamento de recursos;• Crescimento dos departamentos;• Possibilidade de eleger seus representantes.

• Benefício aos departamentos “ricos” aos mais pobres;

• Desunião;• Separatismo• Fonte constante de separetismo.

Autonomias

OCIDENTE

MEIA LUA

Figura 5 – Representações sobre o regime de “autonomias” na Bolívia.Fonte: criação própria.

Esta, que parece uma profunda polarização, no entanto, per-de sua força quando a ela associamos outros dados. Em enquete realizada anteriormente pelo PNUD – antes do início dos trabalhos da Assembleia – quando perguntados sobre de quem era a proprie-dade dos recursos naturais encontrados no país, 86% dos bolivia-nos – inclusive os habitantes da meia lua – responderam que era de todos os bolivianos, indistintamente. Apenas 8% responderam que pertenciam preferencialmente e 4%, exclusivamente aos bolivia-nos que habitam os departamentos onde os recursos naturais são encontrados.

Considerando que a maioria dos bolivianos do ocidente asso-ciava as autonomias com a possibilidade de gestão descentraliza-da dos recursos naturais, a manifestação de unidade de interesses ameniza a percepção de que elas conduziriam, invariavelmente, ao recrudescimento das assimetrias entre ricos e pobres. Não apenas as percepções populares mostravam essa tendência, mas a própria Constituinte conduziu-se, desde o início, no sentido de aprovar a gestão estatal e equitativa dos recursos naturais. Ainda que não o fosse, a solidariedade nacional restou demonstrada em enquete an-terior, realizada em março de 2006. Na oportunidade, 85% dos en-trevistados responderam que, considerando a enorme desigualdade existente entre os bolivianos, estavam dispostos a ceder “algo” ou “muito” de sua qualidade de vida para melhorar a dos mais necessi-

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tados. Assim, parece-nos que a fonte dessa polarização – que ainda não foi desfeita – resulta mais de um “mal entendido” alimentado pela rivalidade histórica entre os territórios do que de um argumen-to mais concreto. Deve-se, ainda, considerar que uma grande parte dos bolivianos admitiu desconhecer o tema, o que pode explicar tan-to as expectativas quanto os temores excessivos. De fato, o que os regimes autonômicos garantem é a possibilidade de eleição direta dos representantes, administração localizada dos recursos econômi-cos, exercício das faculdades legislativa, fiscalizadora e executiva por seus órgãos autônomos no âmbito de suas jurisdições, competências e atribuições.

Segundo a NCB, quatro tipos de autonomias são permitidos no Estado: as autonomias departamentais, as regionais, as munici-pais e as indígenas campesinas originárias. Todas elas fundam-se sobre a voluntariedade, ou seja, apenas adotarão o regime auto-nômico se isso corresponder à vontade da maioria, expressa me-diante referendo. Dos departamentos bolivianos, quatro votaram majoritariamente pela adoção do regime: Santa Cruz, Pando, Beni e Tarija. Quanto às autonomias regionais, poderão ser conforma-das por vários municípios com continuidade geográfica, dentro dos departamentos, que, por sua unidade cultural, desejem planificar sua administração. A autonomia indígena campesina originária, por seu turno, consiste no “ejercicio de la libre determinación de las naciones y los pueblos indígenas, cuya población comparte ter-ritorio, cultura, […] y organización propios”. A autonomia indígena vigorará na moldura dos territórios ancestrais atualmente habita-dos por essas nações, desde que este seja seu desejo. Em seu âm-bito, localizam-se os maiores focos potenciais de conflito, como as situações em que o território indígena encontra-se circunscrito na área de um município e novos limites territoriais houverem de ser traçados.

A potencialidade de conflitos também é ampla se considerar-mos que municípios com grande população indígena poderão con-verter-se em autonomias indígenas campesinas originárias median-te referendo. Uma última dificuldade a ser apontada é a necessidade, determinada em lei, de codificação das regras de gestão das auto-

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nomias indígenas, uma vez que se estruturam sobre normas costu-meiras de conduta. Parece incongruente permitir o funcionamento de um sistema indígena de solução de conflitos a partir do direito consuetudinário e adotar um padrão diverso no que concerne à ad-ministração territorial. Resta-nos acompanhar o modo como tal me-dida será implementada.

IV – Pluralismo Econômico: Paradoxalmente, o primeiro dis-positivo a regular a seção reservada à estrutura e organização eco-nômica desse novo Estado plural destina-se à fixação de um ele-mento comum. Antes de listar as diferentes formas de organização econômica que compõem a economia plural boliviana, assevera-se o elemento de interseção entre elas: a orientação para a melhora da qualidade de vida e para o “viver bem” de todos os bolivianos e bolivianas. A seguir, reconhecem-se três formas variadas e comple-mentares de organização econômica no Estado boliviano: pública, privada e comunitária. Todas elas deverão reger-se pelos princí-pios da solidariedade, redistribuição, sustentabilidade, justiça e transparência.

O setor público orienta-se ao controle dos recursos estraté-gicos da economia (recursos naturais, serviços públicos, energia, transporte). Levando em consideração o inciso V do artigo 206, se-gundo o qual “El Estado tiene como máximo valor al ser humano”, os excedentes econômicos que resultarem de sua gestão serão re-distribuídos equitativamente mediante políticas sociais, de saúde, educação e cultura. À iniciativa privada outorga-se segurança jurí-dica para seus investimentos, na perspectiva de que contribuam ao desenvolvimento econômico social, respondam ao interesse coletivo e enquadrem-se nas políticas, leis e disposições do país45.

O reconhecimento da economia comunitária como um dos mo-delos econômicos vigentes visa a abarcar um importante segmento da realidade social do país: as comunidades rurais e seu conjunto de práticas coletivistas e associativas, orientadas ao “viver bem”. Além de trazer à esfera jurídica uma prática efetiva, constitucionalizar

45 REPRESENTACIÓN PRESIDENCIAL PARA LA ASAMBLEA CONSTITUYENTE – REPAC. (2008) La Paz. Disponível em: <http://www.repac.org.bo>. Acesso em> 23 mar. 2009.

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esse conjunto de “fazeres nativos” significa dar relevo a um dos seto-res mais promissores, harmônicos e criativos do país.

Em um belíssimo informativo denominado “A outra frontei-ra”46, o PNUD apresenta os resultados de intensas pesquisas realiza-das nas diversas regiões bolivianas, com a intenção de conhecer as diferentes práticas econômicas em vigência. Nessa incursão, conhe-cem grupos de empreendedores, majoritariamente indígenas, que estão mudando a concepção – e as práticas – de desenvolvimento no país de “maneira silenciosa, perseverante e em muitos casos exitosa”. Suas experiências – de manejo florestal sustentável, aplicação de tec-nologias de desenvolvimento limpo, biocomércio, comercio orgânico e ecoturismo – são taxadas de “verdes e justas” por não se basearem em mão de obra barata e tampouco em recursos naturais primários. Eles são a “outra fronteira de um desenvolvimento empobrecedor que há séculos tornou-se o padrão boliviano e sobrevive por estar associado ao crescimento do país”.

A disposição do Estado em seguir as lições desse padrão al-ternativo de desenvolvimento é constatada a partir de sua presença marcante na regulação das atividades econômicas, principalmente aquelas que dizem respeito ao manejo dos recursos naturais (entre eles os minerais, os hidrocarbonetos, a água, o ar, o solo, o subsolo, os bosques e a biodiversidade). Exemplo marcante é a proibição do latifúndio, compreendido como terra que não cumpre sua função so-cial, exploração de terra que aplica um sistema de servidão, semies-cravidão ou escravidão na relação laboral ou propriedade que ultra-passe a superfície máxima de 5 mil hectares (previsão sem efeitos retroativos, decidida mediante referendo).

Dessas alterações substanciais depreende-se que, somada ao desejo intenso de participação cidadã, a Nova Constituição Boliviana evidencia uma inegável “sede de Estado” por parte de sua população. Seja por essa disposição ao debate público, por sua capacidade de articulação social, ou, ainda, pela incrível capacidade de superar 500 anos de marginalização, a história boliviana deve seu novo rumo aos seus povos indígenas.

46 PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO-PNUD. (2009) Informe sobre desarrollo humano de Bolivia. Disponível em: <http://www.pnud.bo>. Acesso em: 1º ago. 2009.

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS: UM ELOGIO AO EXPERIMENTALISMO POLÍTICO NA ERA DAS INCERTEZAS

“O homem é um ser frágil e inseguro, que realiza uma obra insegura,

em um mundo inseguro” (D. Cosic)

Tendo superado o desafio de propor uma compreensão siste-mática do recente e complexo processo constitucional boliviano, tor-na-se necessário fixar alguns padrões para uma compreensão mais abrangente do fenômeno estudado.

Seu ineditismo comprova-se em vários aspectos: a) o caráter absolutamente popular da demanda constitucional, das discussões e da matéria aprovada na NCB; b) a fixação de novos padrões e práticas democráticas, em que a sociedade civil pública tem papel essencial; c) a experimentação de um sistema judiciário misto, estruturado so-bre uma justiça indígena, uma justiça ordinária e um tribunal agro-ambiental; d) a fixação de formas de controle popular a serem execu-tadas mediante estruturas experimentais. A partir deles, constata-se que a Constituição boliviana e a experiência democrática ousada e inovadora que acaba de institucionalizar-se no país, não observam padrões ou receitas consolidadas e, portanto, são absolutamente ex-perimentais. Pode-se mesmo dizer que o novo Estado boliviano que emerge da NCB é, ele próprio, um Estado experimental.

Nas incertezas que pairam sobre a possibilidade real de efe-tivação do modelo construído pelo texto constitucional boliviano, reside a maior parte das críticas feitas à NCB. Assim, elas não dizem respeito ao conteúdo de direitos e tampouco à previsão de instru-mentalização dos canais democráticos, mas à possibilidade de que não funcionem. Entretanto, lidar com as incertezas de um período em que teorias e práticas renovam-se e não resta mais receita a ser seguida, parece-nos o grande desafio do século que se inicia.

Edgar Morin, em sua obra “A cabeça bem feita”, compreende, igualmente, que “a maior contribuição do final do século XX foi o conhecimento dos limites do conhecimento” e “a maior certeza que nos foi dada é a da indestrutibilidade das incertezas”. Ante esse le-

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gado intimidador, se nos impõe a tarefa de “preparar-nos para esse mundo incerto”, sem entregar-nos “ao ceticismo generalizado que conduz à resignação”.

Na concepção de Morin, lidar com as incertezas é uma tarefa que se empreende a partir de três vias: a ação, a estratégia e o de-safio. Sobre a primeira via, Morin47 adverte que “toda ação, uma vez iniciada, entra num jogo de interações e retroações no meio em que é efetuada, que podem desviá-la de seus fins e até levar a um resultado contrário ao esperado”. Quando aplicado ao caso boliviano, emerge a preocupação de que as medidas de inclusão cidadã das comunidades indígenas tornem-se mecanismos que sirvam a um acirramento das disputas étnicas no país. Ou, ainda, o temor de que a admissão de uma justiça plural possa resultar em supressão de direitos, ao invés de garanti-los a todas as comunidades. Para enfrentar esses riscos, a ação necessita de estratégia:

A estratégia opõe-se ao programa, ainda que possa compor-tar elementos programados. O programa é a determinação a priori de uma sequência de ações tendo em vista um objetivo. O programa é eficaz, em condições externas estáveis, que pos-sam ser determinadas com segurança. Mas as menores pertur-bações nessas condições desregulam a execução do programa e o obrigam a parar. A estratégia, como o programa, é estabe-lecida tendo em vista um objetivo; vai determinar os desen-volvimentos da ação e escolher um deles em função do que ela conhece sobre um ambiente incerto. A estratégia procura incessantemente reunir as informações colhidas e os acasos encontrados durante o percurso.48

A estratégia adotada pela Bolívia foi envolver diretamente a so-ciedade civil na regulamentação dos marcos constitucionais. Assim, a responsabilidade pelo êxito ou fracasso dos experimentos é com-partida entre o Estado e as organizações populares. Considerando o fato de que optar por uma estratégia implica sempre lançar-se à sorte, e essa escolha envolverá, invariavelmente, um desafio e uma aposta, a terceira via apontada por Morin.

47 MORIN, Edgar. A cabeça bem feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Tradu-ção de Eloá.Jacobina. 3. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.

48 Idem, ibidem.

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Boaventura de Sousa Santos também compreende a Constitui-ção boliviana como um experimentalismo político, por motivos se-melhantes aos apontados por Morin para desenvolver sua “teoria de ação diante da incerteza”: “si estamos en un proceso de refundación, nadie tiene las recetas, todas las soluciones pueden ser perversas y, en esas circunstancias, lo mejor es experimentar”49. O sociólogo defende o experimentalismo político por acreditar que, em nosso tempo, não há soluções prontas ou exatas. Sobre isso, exemplifica: “muchos cons-tituyentes, en muchos países, dicen con angustia: mira, si propongo esto, ¿cuáles van a ser los efectos, cuáles van a ser las consecuencias? Muchas veces no se puede anticipar todo. El experimentalismo permi-te, así, desdramatizar los conflictos”50. Essa “desdramatização” enten-de-se, realiza-se no exato momento em que se adota um marco e se fixa um período e/ou um modo de revisá-lo, superando a estagnação que compõe o drama e substituindo-a por uma “ação-observadora”.

Nesse ponto, é necessário observar que a bela e melancólica constatação de Cosic não inaugura por acaso a fase final do presente estudo. O homem não pode deixar de “mostrar-se” na própria obra e tampouco de ser influenciado pelos dilemas de seu tempo. Entre-tanto, ao indígena boliviano, assim como a outros indígenas latino- -americanos, a certeza da exclusão atemoriza ainda mais do que a aposta em um futuro no qual a inclusão, apesar de incerta, aparece como possibilidade. Enquanto a primeira lhe fez renegar seu nome, sua história e seu futuro, a segunda será sempre, e tão somente, uma aposta e um desafio. E para enfrentá-los – nos ensina Morin – não se pode prescindir de coragem e esperança.

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49 SANTOS, Boaventura de Sousa. La reinvención del Estado y el Estado plurinacional. Debates, OSAL, ano VIII, n. 22, p. 53, 2007.

50 Idem, ibidem, p. 58.

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DEMOCRACIA, CONSTITUCIONALISMO E PARTICIPAÇÃO CIDADÃ: a atividade jurisdicional na concretização dos

direitos fundamentais

Francielli Silveira FortesMestre em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC.

RESUMO:

O presente artigo tem intuito de abordar sobre os aspectos da democracia, do constitucionalismo e da participação cidadã a partir da atividade jurisdicional na concretização dos direitos fundamentais expressos na Constituição da Repú-blica Federativa do Brasil. Revelando ainda, que a ideia de Estado Democrático de Direito é o resultado da aproximação conceitual entre constitucionalismo e soberania popular. A abordagem aqui trazida enseja uma aproximação entre a participação cidadã e a atividade jurisdicional na concretização dos direitos fundamentais. Assim, diante dessa prerrogativa e da condição de fundamento constitucional, surge à necessidade da via do poder judiciário concretizar e dar efetividade as garantias expressas no texto constitucional. A questão a ser en-frentada então, é de qual a função da atividade jurisdicional, na concretização e garantia dos direitos fundamentais? E ainda, como enfrentar a superação da legitimidade democrática da atividade jurisdicional? Aspectos estes, que serão abordados no texto que segue. Palavras-chave: Constitucionalismo. Atividade Jurisdicional. Direitos Funda-mentais.

SUMÁRIO:

1. Considerações Iniciais. 2. A função da atividade jurisdicional na concretização dos direitos fundamentais:

elementos justificadores para uma legitimidade democrática. 3. Legitimidade e positividade do direito. 4. A participação democrática cidadã. 5. Considerações Finais. • Referências.

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1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O constitucionalismo e a democracia são fenômenos que se complementam e se apoiam no Estado contemporâneo. Na configu-ração moderna do Estado e da sociedade, a ideia de democracia já não se reduz à prerrogativa popular de eleger representantes, nem tampouco às manifestações das instâncias formais do processo ma-joritário. Na democracia deliberativa, o debate público amplo, rea-lizado em contexto de livre circulação de ideias e de informações, e observado o respeito aos direitos fundamentais, desempenha uma função racionalizadora e legitimadora das decisões políticas1. Assim, a democracia, os direitos fundamentais, o desenvolvimento econômico, a justiça social e a boa administração, são algumas das principais promessas da modernidade. Estes são os fins maiores do constitucionalismo democrático, inspirado pela dignidade da pessoa humana, pela oferta de iguais oportunidades às pessoas, pelo respei-to à diversidade e ao pluralismo2, e pelo projeto civilizatório de fazer de cada um o melhor que possa ser.

A ideia de Estado democrático de direito é a resultado da apro-ximação conceitual entre constitucionalismo (limitação do poder e supremacia da lei: rule of law) e democracia (soberania popular e governo da maioria). Entre constitucionalismo e democracia po-dem surgir, eventualmente, pontos de tensão: a vontade da maioria pode ter de estancar diante de determinados conteúdos materiais,

1 De fato, na CF/88, determinadas decisões políticas fundamentais do constituinte ori-ginário são intangíveis (art. 60, § 4º) e nela se estabeleceu um procedimento legisla-tivo especial para a aprovação de emendas constitucionais (art. 60). De outra parte, o texto faz expressa opção pelo princípio democrático e majoritário (art. 1º, caput, e § 1º, V) e distribui competências pelos órgãos dos diferentes Poderes e estruturas constitucionais (Título IV, arts. 44 e s.). Há um claro equilíbrio entre constitucionalis-mo e democracia, que não pode nem deve ser rompido pelo intérprete constitucional (BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os concei-tos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 90).

2 Para o autor, diversidade e pluralismo são conceitos próximos, mas não são sinôni-mos. Na acepção aqui empregada, respeito à diversidade significa a aceitação do outro, o respeito à diferença, seja ela étnica, religiosa ou cultural. Respeito ao plura-lismo significa reconhecer que existem diferentes concepções de mundo e de pro-jetos de vida digna, que devem conviver e não devem ter pretensão de hegemonia. (BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os concei-tos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 91)

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orgânicos ou processuais da Constituição. Em princípio, cabe à ju-risdição constitucional efetuar esse controle e garantir que a deli-beração majoritária observe o procedimento prescrito e não vulne-re os consensos mínimos estabelecidos na Constituição3. Com isso, o constitucionalismo e a democracia destinam-se a prover justiça, segurança jurídica e bem-estar social. Por meio de equilíbrio entre Constituição e deliberação majoritária, as sociedades podem obter, ao mesmo tempo, estabilidade quanto às garantias e valores essen-ciais, que ficam preservados no texto constitucional, e agilidade para a solução das demandas do dia a dia, a cargo dos poderes políticos eleitos pelo povo4.

Completando o Estado Constitucional, tão decisivo para a se-gurança jurídica no seio das relações políticas, a institucionalização dos direitos do homem foi e continua sendo uma etapa decisiva da interiorização dessas relações: o reconhecimento dos indivíduos, ou seja, existe algo mais íntimo ao próprio homem do que nas disposi-ções constitucionais referentes à organização dos poderes, sua sub-missão ao direito e o estabelecimento de contrapesos e equilíbrios. No entanto, os direitos do homem tendem a degradar, tornando-se, entre outras coisas, liberdades públicas minuciosamente especifi-cadas; precisando-se, dessa forma, voltar outra vez ao polo de re-conhecimento concreto procurado desses direitos5. A perspectiva aqui abordada de direitos humanos, parte da compreensão e do en-tendimento de que, os direitos humanos são direitos fundamentais

3 A Constituição de Estado democrático tem duas funções principais: 1) compete a ela veicular consensos mínimos, essenciais para a dignidade das pessoas e para o funcionamento do regime democrático, e que não devem poder ser afetados por maiorias políticas ocasionais, envolvem a garantia de direitos fundamentais, a separação e a organização dos Poderes constituídos e a fixação de determinados fins de natureza política ou valorativa; 2) garantir o espaço próprio do pluralis-mo político, assegurando o funcionamento adequado dos mecanismos democráti-cos. A participação popular, os meios de comunicação social, a opinião pública, as demandas de uma dinâmica própria e exigem representatividade e legitimidade corrente do poder (BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Con-temporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 87-89).

4 BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os concei-tos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 90.

5 CALVEZ, Jean-Yves. Política: Uma Introdução. Tradução de Sonia Goldfeder. São Paulo: Ática, 2002. p. 77.

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inerentes ao próprio indivíduo, vez que são reconhecidos como fun-damentais por estarem expressos no texto constitucional do Estado.

2 A FUNÇÃO DA ATIVIDADE JURISDICIONAL NA CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS: ELEMENTOS JUSTIFICADORES PARA UMA LEGITIMIDADE DEMOCRÁTICA

A partir da ordem democrática de 1988, especialmente nos últimos anos, o Supremo Tribunal Federal tem desempenhado um papel bastante atuante no curso institucional da via judiciária bra-sileiro, influindo na tomada de decisões do País, revelando, para sua atuação, críticas e elogios, aos quais é pertinente que se proceda a uma reflexão em torno de aspectos jurídicos e políticos acerca dessa expansão do Judiciário em sede de Corte Constitucional.

Esse avanço da Justiça Constitucional é tendência crescente em várias partes dos países ocidentais em que as Cortes Constitucio-nais são protagonistas de decisões relevantes sob temas e aspectos controvertidos na sociedade, nas quais os demais poderes não con-seguem a satisfação normativa efetiva nessas demandas, exigindo então, que o tribunal responda a tais demandas. Assim, o fenômeno da judicialização, é uma consequência desta atuação, compreendida como um fenômeno caracterizado pela transferência de decisão das esferas políticas (representativas) do Legislativo e do Executivo para apreciação dos juízes e dos Tribunais, expandindo, assim, a seara do Judiciário como um todo6.

Esse fenômeno está relacionado, diretamente ao modelo cons-titucional brasileiro adotado a partir da redemocratização, além da sistematização de outros fatores como: a redemocratização do país com a promulgação da Constituição Federal de 1988 e a constitucio-nalização abrangente, através do sistema de controle de constitucio-nalidade misto adotado de herança americana e europeia7.

6 BARROSO, Luís Roberto. Retrospectiva 2008 – judicialização, ativismo e legitimi-dade democrática. Revista Eletrônica do Estado (REDE), Salvador, Instituto Brasi-leiro de Direito Público, n. 18, abr/maio/jun. 2009. p. 3. Disponível em: <http:/www.direitodo estado.com.br/rede.asp>. Acesso em: jun. 2010.

7 Idem, ibidem, p. 3.

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Neste sentido, a partir do contexto da expressão da redemo-cratização, houve a expansão institucional do Ministério Público e da Defensoria Pública, bem como o Judiciário brasileiro recuperou as garantias da magistratura e cedeu sua especificidade técnica, adqui-rindo poder com feições políticas as quais confrontam com os outros poderes, suscitando grandes objeções críticas acerca do princípio constitucional da separação dos poderes do artigo 2º da Constitui-ção Federal de 1988.

Assim, toda a constitucionalização, é resultado da Constituição, a qual trouxe para dentro dela outros direitos em que disciplinou novo status a essas normas, que passaram, então, a adquirir uma pretensão normativa superior, conferida de direitos fundamentais. De fato, a interferência do Supremo Tribunal Federal, diante dessa cadeia de elementos que contemplam a judicialização, ocorre dentro dos limites formatados pela própria Constituição, e dentro da inten-ção do constituinte originário democraticamente legítimo8.

Esta postura ativista se manifesta por meio de diferentes con-dutas que na classificação de Barroso incluem:

[...] 1. A aplicação direta da Constituição a situações não ex-pressamente contempladas em seu texto e independentemen-te de manifestação do legislador ordinário; 2. A declaração de inconstitucionalidade de atos normativos emanados do legislador, com base em critérios menos rígidos que os de patente e ostensiva violação da Constituição;3. A imposição de condutas ou abstenções ao poder público, notadamente em matéria de políticas públicas.9

Os fatores do ativismo são considerados como fatores histó-ricos, pois remontam à jurisprudência americana10; são fatores cir-

8 BARROSO, Luís Roberto. Retrospectiva 2008 – judicialização, ativismo e legitimi-dade democrática. Revista Eletrônica do Estado (REDE), Salvador, Instituto Brasi-leiro de Direito Público, n. 18, abr/maio/jun. 2009. p. 3. Disponível em: <http:/www.direitodo estado.com.br/rede.asp>. Acesso em: jun. 2010. (loc. cit.)

9 Idem, ibidem, p. 5. 10 O ativismo judicial remonta à jurisprudência americana, a atuação da Suprema

Corte que os setores mais reacionários encontram amparo para a segregação racial (Dred Scott vs Sanford, 1857); no caso para a invalidação das leis sociais em geral

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cunstanciais, já que se sobressaem diante de concretização dos di-reitos fundamentais; e são fatores teóricos, porque permitem uma nova hermenêutica, valorizando a interpretação e favorecendo uma noção de Constituição aberta.

A característica oposta a essa postura ativa do Judiciário é a au-tocontenção judicial, na qual o Judiciário reduz sua interferência nas ações dos outros poderes, ou seja, há uma restrição do espaço de in-cidência da Constituição frente aos outros poderes que são políticos. Conforme Barroso, esta posição era a linha de atuação do judiciário no país até o advento da ordem democrática de 1988; atualmente o Supremo Tribunal Federal vem adotando uma posição visivelmente ativista em suas decisões impondo condutas ativas, diante das não ações dos outros poderes, o que se pode chamar de decisões ou ma-térias de políticas públicas11.

Neste ponto, contudo, é preciso considerar que o Estado cons-titucional democrático como fruto de um Estado de direito, que tem seu poder limitado e vinculado aos direitos fundamentais exarados na Carta Constitucional, é nela que vai se fundar, igualmente, o seu poder, com fulcro na soberania popular exercida pelo constituinte originário. Logo, não encontra respaldo à objeção de falta de legiti-midade democrática ao Judiciário, pois é a Constituição que lhe atri-bui poderes, especialmente ao Supremo Tribunal Federal, de modo que sua legitimação se faz de forma indireta12.

A questão que surge é quanto à proteção desses direitos, que, diante deste contexto, está amplamente condicionada à adoção e im-

(Era Lochner, 1905-1937), culminando no confronto entre o presidente Roosvelt e a Corte, com a mudança da orientação jurisprudencial contrária ao intervencio-nismo estatal (West Coast vs. Parrish, 1937). Na década de 1950 (a Suprema Corte sob a presidência de Warren 1953-1969, e nos primeiros anos da Corte Burger, até 1973) produziu jurisprudência progressista em matéria de direitos fundamentais, sobretudo envolvendo negros (Brown vs. Board of Education, 1954), acusados em processo criminal (Miranda vs. Arizona, 1966) e mulheres (Richardson vs. Frontie-ro, 1973), assim como no tocante ao direito de privacidade (Griswold vs. Connecti-cut, 1965) e de interrupção da gestão (Roe vs. Wade, 1973). Idem, ibidem, loc. cit.

11 BARROSO, Luís Roberto. Retrospectiva 2008 – judicialização, ativismo e legitimi-dade democrática. Revista Eletrônica do Estado (REDE), Salvador, Instituto Brasi-leiro de Direito Público, n. 18, abr/maio/jun. 2009. p. 7. Disponível em: <http:/www.direitodo estado.com.br/rede.asp>. Acesso em: jun. 2010.

12 Idem, ibidem, p. 8.

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plemento de políticas públicas pelos poderes Executivo e/ou Legis-lativo, de tal sorte que, em face de seu inadimplemento, acabam por conduzir à conclusão de que a função jurisdicional e as respostas às demandas sociais emergentes que se estabelecem na seara judici-ária parecem, de fato, estar a exigir deste Poder o desempenho de uma função com viés político.

3 LEGITIMIDADE E POSITIVIDADE DO DIREITO

Ao procurar desvendar a decisão judicial e confrontá-la com o problema da legitimidade, percebe-se que tal decisão não é fruto da vontade isolada do juiz, mas, sim, resposta de uma construção de um discurso que efetiva o princípio democrático. Assim, cada Po-der atua em seu espaço, e o Judiciário, em especial, deve assegurar a efetivação dos direitos fundamentais utilizando-se de argumentos de princípios e não de argumentos políticos, que são próprios dos demais poderes13.

Aqui, importante considerar o pensamento de Jürgen Haber-mas, que entende que, o problema da decisão judicial é de como se manifesta a tensão entre legitimidade e positividade do direito no âmbito da jurisdição, em que a retomada da teoria racional do dis-curso jurídico, confere ao Poder Judiciário um novo e importante pa-pel de instrumento de legitimação da ordem jurídica. Entende que “os processos judiciais são instrumentos de legitimação do sistema, mediante a inserção de todos os cidadãos na comunidade de comu-nicação, por meio de um discurso jurídico racionalmente regulado”14.

Sustenta, ainda, que “as decisões judiciais tem que satisfazer, aos requisitos de aceitabilidade racional e de decisão consistente, para que, assim, possam desempenhar a função integradora e ga-rantir a legitimidade do direito”15. Significa que a jurisdição tem

13 BARROSO, Luís Roberto. Retrospectiva 2008 – judicialização, ativismo e legitimi-dade democrática. Revista Eletrônica do Estado (REDE), Salvador, Instituto Brasi-leiro de Direito Público, n. 18, abr/maio/jun. 2009. p. 9. Disponível em: <http:/www.direitodo estado.com.br/rede.asp>. Acesso em: jun. 2010.

14 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. v. I, p. 292.

15 Idem, ibidem, p. 246.

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vital importância na construção da ordem jurídica, principalmente quando confere sentido aos princípios constitucionais na concreti-zação dos direitos fundamentais, regrada então, pelo discurso de-mocrático.

O que Habermas propõe é a substituição do juiz Hércules de Dworkin16 pelo mecanismo de reflexão do agir comunicativo, que exige de todo participante a assunção das perspectivas de todos os outros17. O juiz singular tem que conceber sua interpretação cons-trutiva como um empreendimento comum, sustentado pela comuni-cação pública dos cidadãos18.

Assim, conforme Habermas, a tensão entre a legitimidade e a positividade do direito manifesta-se na jurisdição como problema da decisão correta e consistente. Sendo a partir dessa questão, por sua vez, é que Robert Alexy, tenta responder se é possível uma deci-são judicial racionalmente correta, em sua Teoria da argumentação jurídica19; onde conclui que a decisão judicial fundada em argumen-tos jurídicos racionais é condição necessária para a legitimação do próprio sistema jurisdicional.

Segundo Alexy, a teoria da argumentação jurídica deriva do discurso prático geral, mas sua liberdade é limitada, pela lei, o prece-

16 A figura do juiz Hércules seria alguém capaz de ordenar coerentemente todas as normas, regras e princípios, mesmo em um nível abstrato, de modo a assegurar que cada caso haja somente uma decisão correta (DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução de Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 182-183).

17 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. v. I, p. 277.

18 Idem, ibidem, p. 278.19 Robert Alexy desenvolveu a teoria da argumentação jurídica na obra “Teoria da

argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica”. Inicialmente analisa algumas teorias acerca do discurso prático, desde a Ética Analítica até a Teoria Consensual da Verdade de Habermas e a Teoria da Argumentação de Chaim Perelman, passando pelas teorias de Hare, Toulmin e Baier. Em seguida, Alexy lança o esboço de uma Teoria do Discurso Prático Ra-cional Geral e finalmente lança a sua Teoria da Argumentação Jurídica (ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da fundamentação jurídica. Tradução de Zilda Hutchinson Schild Silva; revisão da tradução e introdução à edição brasileira: Cláudia Toledo. 2. ed. São Paulo: Landy, 2005. p. 21).

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dente e a dogmática e, no caso do processo pelas leis processuais20. Assim, se produz o que ele chama “de transição do discurso prático para o discurso jurídico”21, em que as decisões jurídicas fundamen-tam-se em motivos que são desenvolvidos argumentativamente, isto é, por meio da argumentação jurídica.

Importa dizer, que a Teoria da argumentação jurídica não as-segura a correção das decisões judiciais, nem garante uma única de-cisão correta para os casos discutidos, mas estabelece parâmetros ou critérios (detalhados na obra de Alexy) que podem ser seguidos para garantir a racionalidade da decisão judicial. Além do mais, a im-portância dessa teoria traz algumas consequências, sendo que uma delas é a possibilidade do controle de legitimidade das decisões ju-diciais, e a outra, que, em razão desse controle, legitima o Poder Ju-diciário a atuar, acionando as forças sociais, no controle das políticas públicas e na efetivação dos direitos fundamentais sociais22.

4 A PARTICIPAÇÃO DEMOCRÁTICA CIDADÃ

É com Peter Häberle que se destaca a ideia de que a decisão judicial não é um ato de vontade do julgador sem influências exter-nas, mas resultado de todos esses atores da sociedade pluralista. Chamando a atenção para o fato de que a interpretação constitucio-nal não é evento exclusivamente estatal, mas um processo ao qual têm acesso todas as forças às comunidades políticas, o autor propõe uma nova hermenêutica constitucional, fundada em métodos que possam incluir, como legítimos intérpretes, todos os participantes da sociedade23.

20 ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da fundamentação jurídica. Tradução de Zilda Hutchinson Schild Sil-va; revisão da tradução e introdução à edição brasileira: Cláudia Toledo. 2. ed. São Paulo: Landy, 2005. p. 48.

21 Idem, ibidem, p. 208.22 JORGE NETO, Nagibe de Melo. O controle jurisdicional das políticas públicas: con-

cretizando a democracia e os direitos fundamentais. Salvador: Jus Podivm, 2009. p. 135.23 HÄBERLE, Peter. A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição

para a interpretação pluralista e ‘procedimental’ da constituição. Tradução de Gil-mar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002. p. 20-23.

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Para Häberle, a independência pessoal dos juízes não pode es-camotear o fato de que a interpretação judicial está envolvida com os fatos da realidade social. Segundo ele,

[...] seria errôneo reconhecer as influências, as expectativas, as obrigações sociais a que estão submetidos os juízes apenas sob o aspecto de uma ameaça a sua independência. Essas in-fluências contêm também uma parte de legitimação e evitam o livre arbítrio da interpretação judicial.24

É diante dessa nova hermenêutica constitucional, teorizada por Häberle, que se percebe a decisão judicial como “abertura”, en-quanto proposta para uma participação democrática dos cidadãos no preenchimento de sentido dos princípios constitucionais, en-quanto “discurso” pautado por uma argumentação racional que tem compromisso com a integração social, com o consenso e a com a pa-cificação social.

O acolhimento de uma nova hermenêutica constitucional nas decisões judiciais se sustenta a partir da compreensão de que o Esta-do Constitucional deixou a cargo do Poder Judiciário o preenchimen-to do conteúdo valorativo dos princípios constitucionais, tutelada por essa força normativa. Assim, cria-se a necessidade de uma noção de abertura, a qual se legitima pela via da participação democrática, especialmente quando na interpretação dos direitos fundamentais se impõe uma larga compreensão dos seus sentidos axiológicos.

O Estado e a sociedade devem reconhecer a carga axiológica dos direitos fundamentais, que tendem a criar e manter na pessoa humana os pressupostos essenciais da dignidade, aspecto ou ele-mento norteador que caracterizou vital importância nas Constitui-ções contemporâneas. Neste sentido, Daniel Sarmento salienta

[...] a eficácia irradiante enseja a humanização da ordem jurídi-ca, ao exigir que todas as suas normas sejam, no momento de aplicação, reexaminadas pelo aplicador do direito com novas

24 HÄBERLE, Peter. A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribui-ção para a interpretação pluralista e ‘procedimental’ da constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002. p. 31-32.

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lentes, que terão as cores da dignidade humana, da igualdade substantiva e da justiça social, impressas no tecido social.25

Este aspecto da dignidade humana é assumido como metava-lor; e os direitos fundamentais assumem uma dimensão objetiva e subjetiva. Essa dupla dimensão nasceu na década de 1950, com o Tribunal Constitucional alemão26, com o caso Lüth27, em que se atri-bui um novo papel aos direitos fundamentais, reconhecendo-lhes, além da dimensão subjetiva que a eles tradicionalmente estava as-sociada, uma dimensão também objetiva, que os compreende como conformadores e reveladores de uma base valorativa de princípios e valores informativos da ordem jurídica e que pautam a vida em so-ciedade, impondo diretrizes de ação/atuação para todos os âmbitos do poder.

Desenvolve-se, então, a ideia de que todos os âmbitos passam estar vinculados aos direitos fundamentais, de modo que a ordem jurídica deve estar em consonância com essa nova mudança de pers-pectiva do direito público e privado, irradiação essa que enseja o condicionamento de que todo o direito deve ser lido a partir da pró-pria Constituição.

Esta harmonização também pode implicar uma restrição ou limitação de alguns desses mesmos direitos, devido à característica de que os direitos fundamentais não são absolutos e podem colidir entre si. Estas restrições, contudo, são limitadas pelos direitos fun-damentais (trata-se da Teoria dos Limites dos Limites dos direitos fundamentais, é a ideia de um núcleo essencial intangível). Diante de tal indeterminação, alguém, em algum momento precisa decidir, cor-rendo-se para a jurisdição constitucional assumir esta função. Aqui,

25 SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. 2. ed. Rio de Janei-ro: Lumen Juris, 2008. p. 124.

26 Paralelo da década de 1950 nos EUA surge a preocupação do direito dos negros à educação, uma preocupação com os custos dos direitos, o caso Dred Scott.

27 O caso Lüth trouxe nova construção a partir de diretivas incorporadas, eis que seus efeitos foram: a) dimensão objetiva dos direitos fundamentais; b) a vinculação de todos os poderes aos direitos fundamentais; c) a vinculação da ordem jurídica como um todo aos direitos fundamentais (inclusive privada); d) a mudança de efeito na relação entre Constituição e legislação; e) a verticalização dos direitos fundamentais através da eficácia de irradiação; f) a eficácia entre terceiros na esfera privada.

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a Teoria dos Limites dos Limites (Schranken Schranken Theorie) sus-tenta que o núcleo fixo dos direitos fundamentais é determinado, e o núcleo relativo é considerado caso a caso.

Isto porque, a relação entre o caráter vinculante e a necessi-dade de concretização dos direitos fundamentais está vinculada a ideia de interpretação e concretização. Esta necessidade de adequa-ção entre fins e meios vai ampliar a esfera de atuação da jurisdição, sobretudo da jurisdição constitucional, diretamente vinculada à guarda da Constituição e à proteção dos direitos fundamentais. Para Böckenförde, a interpretação não pode ser novidade, deve ser feita com aquilo que é pré-dado no texto normativo; os direitos funda-mentais pressupõem concretização porque não estão definidos, não basta apenas interpretá-los, ele precisa ser detalhado, construídos com elementos a ser feitos pelos tribunais, o que vai importar em concretização pelo Judiciário28.

Logo, a qualificação material dos direitos fundamentais, enquan-to normas objetivas é a razão pela qual a Constituição se transforma em ordem jurídica fundamental, de base principiológica, de natureza aberta, carente de concretização em face da realidade, o que demanda, por sua vez, uma atividade criativa por parte dos Tribunais.29

Assim, diante dessa necessidade de concretização dos direitos fundamentais, o Poder Judiciário, especialmente na figura do Su-premo Tribunal Federal, exerce um papel importante nesse cenário, constituindo-se em mais do que simplesmente um locus onde o di-reito se concretiza; em verdade, a sua atuação serve de instrumento para a concreção das normas constitucionais, sendo que, neste senti-do, imperiosa se faz a “abertura” – em aspectos dogmático-jurídicos – do Poder Judiciário, para se visualizar a decisão judicial como uma resposta da democracia e a função jurisdicional como função estatal que assegura a realização dos direitos fundamentais – não a partir de representantes eleitos – mas por iniciativa e organização dos pró-prios cidadãos da sociedade.

28 LEAL, Mônia Clarissa Hennig. Jurisdição Constitucional Aberta: Reflexões sobre a Legitimidade e os Limites da Jurisdição Constitucional na Ordem Democrática – uma Abordagem a partir das Teorias Constitucionais Alemã e Norte-americana. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 53.

29 Idem, loc. cit.

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O constitucionalismo e a democracia são fenômenos que se complementam e se apoiam no Estado contemporâneo, e com isso destinam-se a prover justiça, segurança jurídica e bem-estar social da sociedade. Estes institutos são considerados como promessas da modernidade em termos de garantias e valores essenciais, que ficam preservados no texto constitucional, e agilidade para a solução das demandas do dia a dia.

Considerando que é a partir da tendência do Poder Judiciário ser provocado à lide, é que o faz respaldado diante do preenchimen-to dos requisitos constitucionais que se impõem, a decidir a matéria em termos de concretização de direitos fundamentais. Cabendo en-tão, a verificação da possibilidade de a norma ser deduzida de uma pretensão subjetiva ou de uma objetiva nessa análise. Assim, diante dessa interpretação, pode-se verificar uma conduta mais ativa no in-terpretar na qual traça uma maior expansão e sentido a ela, e com, isso o Poder Judiciário, participa, de forma ampla e ativa, na concre-ção dos valores constitucionais.

O acolhimento de uma nova hermenêutica constitucional nas decisões judiciais se sustenta a partir da compreensão de que o Esta-do Constitucional deixou a cargo do Poder Judiciário o preenchimento do conteúdo valorativo dos princípios constitucionais, tutelada por essa força normativa. No entanto, cria-se a necessidade de uma noção de abertura, a qual se legitima pela via da participação democrática, especialmente quando na interpretação dos direitos fundamentais se impõe uma larga compreensão dos seus sentidos axiológicos.

REFERÊNCIAS

ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da fundamentação jurídica. Tradução de Zilda Hutchinson Schild Sil-va; revisão da tradução e introdução à edição brasileira de Cláudia Toledo. 2. ed. São Paulo: Landy, 2005.

BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os concei-tos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009.

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BARROSO, Luís Roberto. Retrospectiva 2008 – judicialização, ativismo e legitimi-dade democrática. Revista Eletrônica do Estado (REDE), Salvador, Instituto Brasi-leiro de Direito Público, n. 18, abr./maio/jun. 2009. Disponível em: <http:/www.direitodoestado.com.br/rede.asp>. Acesso em: jun. 2010.

CALVEZ, Jean-Yves. Política: Uma Introdução. Tradução de Sonia Goldfeder. São Paulo: Ática, 2002.

DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução de Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. v. I.

HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.

HÄBERLE, Peter. A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e ‘procedimental’ da constituição. Tradução de Gil-mar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002.

JORGE NETO, Nagibe de Melo. O controle jurisdicional das políticas públicas: con-cretizando a democracia e os direitos fundamentais. Salvador: Jus Podivm, 2009.

LEAL, Mônia Clarissa Hennig. Jurisdição Constitucional Aberta: Reflexões sobre a Legitimidade e os Limites da Jurisdição Constitucional na Ordem Democrática – uma Abordagem a partir das Teorias Constitucionais Alemã e Norte-americana. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.

SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. 2. ed. Rio de Janei-ro: Lumen Juris, 2008.

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DIREITOS HUMANOS E COSMOPOLITISMO: a questão dos

apátridas e refugiados a partir da ética da alteridade

Gustavo Oliveira de Lima PereiraDoutorando em Filosofia pela PUC/RS (conceito CAPES 6), Mestre em Direito pela UNISINOS, Especialista em Ciências Penais pela PUCRS, bolsista CNPq. Professor de Direito Internacional e Teoria do Direito da PUC/RS. Professor de Direitos Huma-nos convidado da Faculdade de Filosofia IDC/ Porto Alegre e da Faculdade de Relações Internacionais da ESPM. Contato: [email protected]

RESUMO:

O problema dos apátridas revela a crise de sentido na qual atravessam as re-lações humanas na modernidade. Constata-se a insuficiência do argumento da dignidade da pessoa humana, que em sua dimensão abstrata e nos moldes das declarações de direitos, já não comporta mais a complexidade revelada pelos abalos estruturais do mundo moderno. A questão dos apátridas, desde a leitura de Hannah Arendt, bem ilustra esse aspecto. Assim, constata-se a insuficiência da concepção abstrata de “dignidade”, pronunciada pela concepção tradicional de direitos humanos. O presente artigo procura estabelecer um novo ponto de partida para enfrentar esta questão: – a alteridade, a partir do reconhecimento da diferença. Palavras-chave: Alteridade. Apátridas. Direitos Humanos.

SUMÁRIO:

1. Considerações Iniciais.2. Apátridas e refugiados: o ponto de partida.3. Digressão: o argumento da dignidade da pessoa humana. 4. Alteridade e hospitalidade como superação do limite da tolerância. 5. Considerações Finais. • Referências.

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1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A crise da efetividade dos direitos humanos, refletida pela di-mensão apropriativa do olhar objetificante que se tem em relação ao outro, deságua na intolerância humana para com as diferenças. A grande inquietação aqui descrita está no impasse que constantemen-te se revela: os juristas, de uma maneira geral, parecem ter desistido de discutir o fundamento dos direitos humanos. Compreendem que aquilo que está formalizado, pelos ordenamentos regulatórios a par-tir de Constituições e tratados internacionais, está resolvido.

O recorte ao qual este texto se propõe está na questão dos apá-tridas e o encobrimento de seus direitos humanos, tão bem explo-rada pela profundidade de Hannah Arendt, na obra Origens do tota-litarismo, escrita em 1951, nos meandros do problema. Tal entrave, definitivamente, não faz parte do passado, e por isso uma reflexão nessa direção se revela pertinente. Apesar de os discursos humani-tários, aparentemente, seduzirem apenas alguns poucos homens de boa vontade, ainda se acredita em uma ruptura da racionalidade to-talizante e do mero discurso da eficácia dos direitos fundamentais30.

2 APÁTRIDAS E REFUGIADOS: O PONTO DE PARTIDA

O refugiado deve ser considerado por aquilo que é, ou seja, nada menos que um conceito limite que põe em crise radical as categorias fundamentais do Estado-nação, do nexo nascimen-to-nação àquele homem-cidadão, e permite assim, desobstruir o campo para uma renovação categorial atualmente inadiável, em vista de uma politica em que a vida nua não seja mais se-parada e excepcionada no ordenamento estatal, nem mesmo através da figura dos direitos humanos. (Giorgio Agamben)31

30 Não se desmerece aqui as discussões que envolvem a eficácia dos direitos fun-damentais, mas critica-se a reivindicação de que a validade das investigações em torno dos direitos humanos fundamentais se deva tão somente a uma dimensão pragmática, em que pese advertimos que a questão da ineficácia dos direitos, como abordaremos, se deva em muito a uma ausência de discussão sobre a sua fundamentação.

31 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. O poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004. p. 141.

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Como ponto de partida, analisaremos o consagrado texto de Hannah Arendt problematizando a questão do declínio do Estado- -nação e o fim dos direitos do homem, presente na obra “As origens do Totalitarismo”. A autora relata o surgimento da condição munda-na de inúmeros grupos de pessoas que passaram a ser caracteriza-das como “minorias”, perante o resultado de entraves etno-políticos das guerras mundiais do século XX. O contínuo estado de instabi-lidade que demarcava o âmbito de uma Europa sempre a beira da destruição em massa resultou na migração de diversos grupos hu-manos, que, na esperança de consolidar suas liberdades de expres-são ou simplesmente a permanência de suas vidas, abandonavam seus países de origem. Isso determinou um destino insólito: além de não terem mais lares, agora já não tinham mais direitos humanos, ou qualquer outro direito32.

As tentativas de estabelecer a homogeneidade de uma popula-ção perante determinado território difundiram a criação da ideia de Estados-nações e tratados das minorias. Mas, para Hannah Arendt, a possibilidade de criação de Estados-nações pelos métodos dos tra-tados de paz era uma pretensão absurda devido à diversidade popu-lacional dos países europeus. Consequentemente, os povos que não receberam o status de Estado se tornaram minorias nacionais insti-tuídas e consideravam tais tratados como um jogo arbitrário com a finalidade de estabelecer a relação entre senhores e servos33. Segun-do Arendt “os representantes das grandes nações sabiam demasia-do bem que as minorias existentes num Estado-nação deviam, mais cedo ou mais tarde, ser assimiladas ou liquidadas”34.

Entretanto, a instituição dos tratados simbolizou claramente a diferença entre cidadãos nacionais e minorias. Estas eram pessoas que necessitavam de uma lei de exceção por destoarem da identida-de dominante, enquanto aqueles eram de fato cidadãos que conta-vam com a proteção completa das instituições legais35.

32 ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 300.

33 Idem, ibidem, p. 304.34 Idem, ibidem, p. 300.35 Eis como Arendt detecta esta discrepância: “Os discursos interpretativos sobre os

tratados das ligas das nações [...] aceitavam como natural que a lei de um país não

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A diversidade entre culturas tornou-se algo tão comum neste período europeu que muitas vezes não era possível identificar a ori-gem de determinada pessoa. Cunhou-se, assim, a rotulação de dis-placed persons (pessoas deslocadas) àqueles que estavam à margem da lei ordinária. Segundo Arendt, a expressão “foi inventada durante a guerra com a finalidade única de liquidar o problema dos apátridas de uma vez por todas, por meio do simplório expediente de ignorar a sua existência”36. Mas essa perspectiva reconhecia ao menos o fato de que essas pessoas haviam perdido a proteção de seus governos e requeriam acordos internacionais para salvaguardar sua condição de cidadãos.

O não reconhecimento da condição de apátrida abriu caminho para a repatriação forçada, ou seja: a deportação do refugiado polí-tico para seu país de origem. Em muitos casos esse país se negava a reconhecê-lo como cidadão, ou utilizava essa reintegração involun-tária para castigar o refugiado37. Nem por um instante se pode no-tar o direito à hospitalidade perante estrangeiros, tão sonhado por Kant38 no seu projeto de paz perpétua.

Todos esses problemas determinaram as falhas das tentativas de repatriação e naturalização. Assim sendo, mesmo reconhecida a impossibilidade de deportação de uma pessoa, por meio de Trata-dos, na prática isso não impedia um Estado de expulsá-la de suas fronteiras limítrofes. Esse “homem sem Estado” – um legítimo “fora da lei” – era agora tido como uma anomalia que não adentrava na estrutura legislativa normal de nenhum país. Ele agora estava sujeito ao arbítrio da polícia, que não hesitava em cometer atos ilegais para diluir o número de indesejáveis no país.

pudesse ser responsável por pessoas que insistiam numa nacionalização diferente. Confessavam assim – e logo tiveram oportunidade de demonstrá-lo na prática, com o surgimento dos povos sem Estado – que havia sido consumada a transformação do Estado de instrumento da lei em instrumento da nação; a nação havia conquistado o Estado. E o interesse nacional chegou a ter prioridade sobre a lei muito antes da afir-mação de Hitler de que “o direito é àquilo que é bom para o povo alemão’”. (ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 300)

36 Idem, ibidem, p. 313.37 ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras,

1990. p. 313.38 KANT, Immanuel. A paz perpétua. São Paulo: L&PM, 1989. p. 43.

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Conforme Arendt39, “o Estado, insistindo em seu soberano di-reito de expulsão, era forçado, pela natureza ilegal da condição de apátrida, a cometer atos confessadamente ilegais”. O apátrida, sem direito a residência e ao trabalho, naturalmente, acabava tendo que subverter a lei para poder sobreviver. Os Estados, incapazes de pro-mover uma lei eficaz para aqueles que haviam perdido a proteção do governo nacional originário, transferiram o problema para a polícia, que passava, pela primeira vez na Europa, a ter autoridade para agir por conta própria, dando vazão ao novo conceito de história estrutu-rado por Benjamin40, e fortalecido por aquilo que chamou de estado de exceção permanente41.

A atualidade do tema se reflete nas atuais percepções estadu-nidenses que, usando o lema do combate ao terrorismo após o “11 de setembro”, instituíram um regime no qual os direitos dos cida-dãos se encontram em permanente ameaça em nome da segurança nacional. Torna-se, assim, lícita uma construção argumentativa que fundamenta fora da lei algo para que se garanta a lei, ou seja, cons-trói-se a ficção jurídica do grau zero da lei.

A aporia claramente se manifesta. Nas palavras de Agamben42, “mais do que tornar lícito o ilícito, a necessidade age aqui como jus-tificativa para uma transgressão em um caso específico por meio de uma exceção”.

Na questão dos apátridas do período das guerras mundiais, a criminalização da tentativa de sobrevivência de tais grupos acabou sendo a primordial manifestação da indiferença para com a humani-dade. O apátrida:

39 ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 317.

40 BENJAMIM, Walter. Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1996. p. 226.

41 Hannah Arendt afirma que “quanto mais clara é a demonstração da sua incapaci-dade de tratar os apátridas como ‘pessoas legais’, e quanto mais extenso é o domí-nio arbitrário do decreto policial, mais difícil é para os Estados resistir à tentação de privar todos os cidadãos da condição legal e dominá-los com uma polícia oni-potente” (ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 324).

42 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. O poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: UFMG, 2004. p. 40-41.

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[...] estava sujeito a ir para a cadeia sem jamais cometer um crime. Mais que isso, toda a hierarquia de valores existentes nos países civilizados era invertida nesse caso. Uma vez que ele constituía a anomalia não-prevista na lei geral, era melhor que se convertesse na anomalia que ela previa: o criminoso.43

Aqui se observa a grande crise de sentido na qual submergiam os Direitos Humanos já naquele período. A forma mais indicada de melhorar a condição mundana de diversas pessoas era o cometi-mento de crimes. Quando pequenos furtos favorecem a posição legal de alguém, não precisamos temer em afirmar que esta pessoa está plenamente destituída de direitos humanos.

O crime estabelece, simbolicamente, um patamar de igualdade humana. Na qualidade de criminosa a pessoa não poderia ser tratada pior do que qualquer outra na mesma situação. Tal proposição nos direciona inevitavelmente a uma reflexão paradoxal: a única forma de ser reconhecido pela lei é se tornando um transgressor dela. Era reconhecido algum aspecto de cidadania a quem atentasse contra as leis da cidade. Durante o período de julgamento, o infrator apátrida estava protegido dos domínios arbitrários da polícia44.

A Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão do século XVIII trouxe à boa parte da humanidade a ingênua percepção de que todas as leis se baseariam nas suas diretrizes, e que nenhuma lei especial seria necessária para proteger pessoas ameaçadas por arbitrariedades estatais. Mas, a aporia já se instaura no limiar, pois no próprio título da declaração já está, implicitamente, instituída uma diferenciação, dando margem a uma interpretação que sugere a

43 ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 319.

44 Diz Arendt que o “mesmo homem que ontem estava na prisão devido à sua mera presença no mundo, que não tinha quaisquer direitos e vivia sob ameaça de de-portação, ou era enviado sem sentença e sem julgamento para algum tipo de in-ternação por haver tentado trabalhar e ganhar a vida, pode tornar-se um cidadão completo graças a um pequeno roubo. Mesmo que não tenha vintém, pode agora conseguir advogado, queixar-se contra os carcereiros e ser ouvido com respeito. Já não é o refugo da terra: é suficientemente importante para ser informado de todos os detalhes da lei sob a qual será julgado. Ele torna-se pessoa respeitável” (Idem, ibidem, p. 320).

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concepção de homem e a concepção de cidadão como sendo dissocia-das. Não está claro se o intento da declaração seria o de estabelecer um sistema unitário, onde um termo está contido no outro, ou qual tipo de relação existe entre nascimento e nacionalidade45.

A humanidade, tendo muitas vezes sua imagem concebida como uma família de nações, finalmente agora se deparava com esta realidade, mas de forma avessa a qualquer ideal humanitário. Conforme Arendt46, uma pessoa expulsa de uma comunidade en-contrava-se expulsa de toda a família de nações. Ser expulso de um país era ser expulso do mundo. O ser-que-está-no-mundo passa a ser o ser-que-tangencia-o-mundo em suas arestas; o vazio de ser que preenche a crise de sentido da humanidade. É a redução do ou-tro ao nada; o legítimo não-ser ontológico, tão oprimido por toda a história da filosofia ocidental, desde seu limiar, e que agora, de fato, pode ser concebido com tamanha substancialidade. O outro como nada, ganhando dimensões biopolíticas, é retratado por aquilo que Agamben47 chamou de “vida matável”; “vida nua”, ou seja: a vida do

45 Para Agamben, a relação política originária é demarcada pelo estado de exceção, no qual predomina, sem intermediações, o poder do soberano sobre a vida nua, despida de qualificativos jurídicos e institucionais. Quem está nesta zona está fora da lei, foi abandonado pela lei, não encontra identificação possível dentro das es-truturas tradicionais do Estado-nação. Simbolicamente, a soberania da nação está demarcada pelas modernas declarações de direitos. Estas delimitam inicialmente o simples fato do nascimento como a fonte de todo o direito, logo em seguida de-marcam a inscrição desta vida nua na pele do cidadão e, finalmente, atribuem a soberania à nação. A consequência dessa nova inscrição da soberania é que a vida nua só pode aparecer se ela estiver dissipada na figura do cidadão, caso contrário ela fica fora da nação, sem qualquer qualificação a não ser o seu próprio caráter biológico. O mero nascimento não é suficiente para que o homem seja titular efe-tivo dos direitos humanos, ele tem que ser cidadão. Eis a fissura entre nascimento e cidadania e as alternativas diante dela: enfrentá-la para incluir o simplesmen-te humano ou ocultá-la da visão através da eliminação de quem apenas nasce, mas não chega a ser cidadão. Frise-se, por fim, que não é apenas o apátrida que, contemporaneamente, está sujeito à zona de indistinção ou de mero nascimento, mas também os habitantes das periferias e favelas dos países subdesenvolvidos. (AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. O poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: UFMG, 2004. p. 133).

46 ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 327.

47 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. O poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: UFMG, 2004. p. 16.

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Homo sacer48. Esses fatos históricos nada mais são do que a própria lógica instituída pelo ocidente, sem nenhuma contradição. Nunca se verificou com tamanha clareza que o ser é o puro, o igual, o total; e que o não-ser é o híbrido, o diferente, o nada. Nas palavras do filóso-fo Souza49: “O que é o nazismo: a menos hipócrita das doutrinas [...] no holocausto, como na bomba atômica, o ser foi e o não ser não foi”.

A calamidade não está nos velhos problemas dos direitos hu-manos, ou seja, direito à vida, à liberdade de expressão, igualdade perante a lei ou qualquer espécie de direito específico; mas no fato de essas pessoas já não pertencerem a nenhuma comunidade. “Sua situação angustiante não resulta do fato de não serem iguais peran-te a lei, mas sim de não existirem mais leis para eles; não de serem oprimidos, mas de não haver ninguém mais que se interesse por eles, nem que seja para oprimi-los”50.

Essa percepção revela o fracasso das concepções, sejam elas naturalistas ou racionalistas, que reverenciam os direitos humanos como sinal de uma suposta existência de um ser humano em si, do-mado pela sua essência, pois este homem puro, como vimos, perdeu todas as suas qualidades especificas e relacionais ao se tornar um meramente humano. “O conceito de direitos humanos [...] desmoro-nou no mesmo instante em que aqueles que diziam acreditar nele se confrontaram pela primeira vez com seres que haviam realmen-te perdido todas as outras qualidades e relações específicas – exce-to que ainda eram humanos. O mundo não viu nada de sagrado na abstrata nudez de ser unicamente humano”51. Esta afirmação con-firma a insuficiência na qual, muitas vezes, a noção de dignidade da pessoa humana, tida em uma dimensão teórico-abstrata, naufraga. Ter a dignidade abstratamente reconhecida, sem que isso implique alguma inserção prática no universo das relações, acaba soando

48 Agamben esclarece que a expressão (“homem sacro”) indica “uma obscura figu-ra do direito romano arcaico, na qual a vida humana é incluída no ordenamento unicamente sob a forma de sua exclusão (ou seja, de sua absoluta matabilidade)” (Idem, ibidem, p. 16).

49 SOUZA, Ricardo Timm de. Totalidade e desagregação. Sobre as fronteiras do pensa-mento e suas alternativas. Porto Alegre: Edipucrs, 1996. p. 16.

50 ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 329.

51 Idem, ibidem, p. 333.

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como um mero adorno retórico e uma saída tangencial para a pro-fundidade do problema.

Neste sentido, a digressão a seguir se propõe a discutir e des-construir o argumento da dignidade da pessoa humana, tida em abs-trato, como fundamentação dos direitos humanos.

3 DIGRESSÃO: O ARGUMENTO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

Neste momento adentraremos a uma digressão, no corpo des-te artigo, que se orienta a levar as últimas consequências o ímpeto por uma fundamentação renovada dos direitos humanos. O ponto da questão: falar em “dignidade humana” acabou se tornando um belo discurso na filosofia moral e política, tão celebrado que virou lugar comum nos tratados internacionais e constituições. O que aqui pre-tendemos denunciar é o seu uso descompromissado, que nos remete a transcender e ir mais a fundo na reflexão.

Neste tópico procuraremos esclarecer porque a compreensão tradicional dos direitos humanos não é suficientemente consistente para dar conta do seu ponto cego, percebido por Hannah Arendt. A au-tora demonstrou como esta concepção de direitos humanos, abalizada pela ideia de “nacionalidade” e ancorada pela abstração da “dignidade da pessoa humana”, não consegue abarcar a dimensão categorial do apátrida. Em outras palavras: a situação da apatridia torna impossível qualquer fundamentação que se baseie na ideia de “dignidade”.

Neste sentido, são apropriadas as palavras de Agamben52 na sua já clássica afirmação que descreve bem a dimensão do problema a se enfrentar: “Auschwitz marca o fim e a ruína de qualquer ética da dignidade e da adequação a uma norma. A vida nua a que o homem foi reduzido não exige nem se adapta a nada: ela é a única norma, é absolutamente imanente. E o “sentimento último de pertencimento à espécie” não pode ser, em nenhum caso, uma dignidade”.

Tentaremos esmiuçar a insuficiência do argumento da “digni-dade da pessoa humana” como fundamento primordial dos direitos humanos, tendo como ponto de partida a dimensão prática do pro-

52 AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz? São Paulo: Boitempo, 2008. p. 76.

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blema, como demonstramos anteriormente pela percepção aguda de Hannah Arendt, bem como pelos próprios constructos filosóficos já consagrados sobre o tema da dignidade. Assim, a rediscussão do fundamento dos direitos humanos representa “pôr em xeque” tanto a fundamentação personalista quanto a fundamentação moderna de “dignidade humana”, bem como a sua mera tentativa jurídica de con-cretização por meio de Tratados e Convenções Internacionais.

Obviamente, não temos a pretensão de desmerecer a impor-tância de toda tradição clássico-personalista e do cristianismo53 para a formação do direito ocidental e até mesmo para a compreensão do mundo atual, uma vez que negá-las seria incorrer em ingenuidade, já que somos todos, de algum modo, gregos e cristãos. Também, por óbvio, não desconsideraremos as imensas contribuições remetidas pela modernidade, principalmente a partir da contribuição kantia-na, que contempla a dignidade humana como um valor em si mesma. Nosso objetivo é averiguar porque tanto a construção clássica quan-to a construção moderna, que atribuem ao homem uma “dignidade humana” não foram suficientes para evitar Auschwitz. No que toca aos apátridas e refugiados, as democracias modernas, em geral im-pulsionadas pelo “princípio da dignidade da pessoa humana”, muitas vezes também recaem em terreno infértil, apesar de toda boa vonta-de da normativa internacional.

O problema é recorrente, pois o modelo político de democra-cia moderna que implementa os Tratados e Convenções Interna-cionais não soluciona a aporia da vida nua, trazida por Benjamin e reproblematizada por Agamben, como também não oferece uma alternativa satisfatória para lidar com o gene da totalidade que pa-riu a racionalidade ocidental. Em virtude disso, apontamos a ne-cessidade de uma fundamentação de direitos humanos revigorada, para podermos pensá-los em uma perspectiva ética diferenciada, ancorada por uma outra ideia de justiça, pois apenas apontar o pa-radoxo da soberania não é suficiente. Apenas reforça a estrutura ontológica do ocidente54.

53 Segundo Agamben, “a construção de uma verdadeira teoria da dignidade deve-se aos juristas e aos canonistas medievais” (AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Aus-chwitz? São Paulo: Boitempo, 2008. p. 73).

54 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 66.

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Evidentemente, compreendemos que a construção de uma nova percepção de justiça, capaz de dar conta do problema eviden-ciado pelos apátridas e refugiados, reivindica levar a sério a questão do fundamento dos direitos humanos. Quando Norberto Bobbio55 afirmou que o problema da fundamentação dos direitos humanos era um problema secundário, já que estavam positivados como Uni-versais, e que todo arsenal reflexivo deveria se debruçar para a sua concretização, a comunidade jurídica internacional, de uma maneira geral, abriu mão de discutir o fundamento dos direitos humanos e destinou seu foco integral de atenção para a análise das regras es-tabelecidas pelas Convenções e Tratados Internacionais e as possi-bilidades de sua concretização. Já demonstramos a abrangência e a importância dos Tratados e das Convenções sobre o tema, no início deste ensaio. No entanto, apesar de todo este “já dito”, “já ratificado” e já “assinado”, ainda há muito que se dizer.

Inúmeros autores sustentam a legitimidade dos direitos huma-nos a partir da universalidade das Declarações, dos Tratados e Prin-cípios Internacionais e das Constituições modernas, simplificando, ou melhor, “simplorizando” a questão do fundamento do direito. Não há que se discutir a importância de tudo disso. Mas tudo isso é tudo? A validade procedimental das normas e princípios do Direito repre-senta por si só a desnecessidade de se discutir o seu fundamento? Acreditar que o que fundamenta o Direito são os direitos humanos, argumento utilizado por um vasto número de renomados juristas, significa incorrer em uma circularidade espantosa, sendo mais es-pantoso apenas o número de juristas que não a percebem.

Tal constatação lógica soa trivial em virtude de sua tamanha obviedade. Entretanto, no imaginário jurídico geral, atentando con-tra as generalizações, a assinatura de Tratados e a promulgação de leis, por si só, representa, uma reformulação instantânea da subjeti-vidade de uma sociedade e o efetivo ponto de referência para enfren-tar seus reais problemas.

Se é possível afirmar que as regras expressas pelo direito, em vasta medida, representam o reflexo dos anseios, tradições, costu-mes e pré-compreensões de determinada sociedade, como é possí-

55 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 24.

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vel acreditar que a mudança nesse jogo de regras constroem uma efetiva e decisiva mudança social? Se faz sentido dizer que o Direito é um fenômeno social antes de ser um fenômeno normativo, não seria, de algum modo ou de todo modo, mais natural ao jurista compre-ender que só há significativa mudança no direito a partir de uma significativa mudança na percepção de racionalidade das pessoas?

Apesar do truísmo evidenciado, isto está bem longe de se tor-nar a pré-compreensão da maior parte dos juristas quando lhes é perguntado “o que é o Direito?”. É por isso que, ainda, despende-se rios de tinta para escrever manuais que afirmam que um pai deve pagar alimentos e cuidar de seu filho em virtude do princípio da função social da família; que a publicização da propriedade privada ocorre por causa do princípio da função social da propriedade e que devemos cumprir os contratos por consequência da função social do contrato. Poderíamos destinar, sem hesitar, um considerável número de páginas para problematizar tantos outros anedóticos exemplos que revelam essa situação.

É como se eu, na tranquilidade de meu existir, imerso em meu mundo, dirigindo meu carro pela estrada em direção à minha casa, após um leve fim de semana no litoral, ao perceber uma motocicleta no meio da pista e uma pessoa imóvel, caída nas suas proximidades, parasse o carro e prestasse socorro a ela por força do “princípio da dignidade da pessoa humana”, fazendo valer os preceitos do ordena-mento jurídico ou para escapar de uma possível acusação criminal, envolvendo omissão de socorro.

É como se nesse instante de decisão, minha atitude se deva a uma ordem normativa formalizada por um princípio norteador ou ao medo das consequências legais e não em virtude de se assumir uma loucura em nome da justiça, expressada por quem não sou, mas que nesse momento precisa de mim. Por quem toma-me a liberdade. Voltaremos a esse ponto em outro momento.

O horizonte jurídico médio sugere que as principais situações envolvendo dimensões éticas, em seu instante de decisão, se dão pelo cumprimento ou descumprimento dos princípios pré-determinados pelas normas jurídicas. O principiologismo, em toda sua capacidade esquematizante, representa talvez a principal bengala que sustenta as teorias constitucionais e boa parte das teorias do direito da atua-

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lidade. O sistema tradicional, orientado pelos contratualismos, uni-versalismos, principiologismos e mais um bom punhado de “ismos”, seleciona qual vida é digna de ser vivida e qual não é. Faz parte da confecção do seu sistema de racionalidade, desde a sua origem.

Assim, todos os organismos de proteção internacional referen-tes aos refugiados e principalmente aos apátridas, apesar de todas as leis, regras e órgãos (que, repitamos, detêm eloquente importância), em seu momento decisivo de atuação, sempre irão se chocar com o fato de que aqueles que mais exigem a sua concretização efetiva são aqueles que, em verdade, estão absolutamente fora de qualquer estado de direito, sendo capturados pela suspensão da norma que os inclui, excluindo-os. São o resíduo do estado de direito. Seu resto. Seu abandono. Não aqueles que chegarão na corrida pelo direito em último lugar, mas os que nunca chegarão, enquanto o modelo políti-co ocidental for o mesmo. São aqueles que restaram após a “afirma-ção histórica” dos direitos humanos e sua “conquista”. Estão no mo-mento de suspensão do estado de direito, que no seu caso é a regra.

Uma leitura apressada pode sugerir que tudo se trata de uma questão de inclusão da vida nua no estado de direito, tendo como sa-ída a busca incessante pela eficácia dos direitos humanos no âmbito da efetivação das garantias fundamentais.

No entanto, a constatação do paradoxo da soberania não repre-senta uma falha de alcance ou de efetivação dos direitos humanos, mas sim a própria manifestação de sua construção formal56, vincula-da aos preceitos ontoteológicos da tradição e aos ideais contratual- -iluministas da modernidade. Muito avessa à recepção da alterida-de e da lei da hospitalidade incondicional, desenvolvidas aqui como propostas de reconstrução do sentido de realidade relacional.

Nossa pretensão nas linhas que seguem é averiguar como a ca-tegoria da “dignidade” se tornou o amuleto filosófico e um dos maio-res sustentáculos dos belos discursos da filosofia moral e política,

56 No mesmo sentido, destacamos a reflexão de Moysés Pinto Neto: “Ao contrário do que se possa pensar, o surgimento de restos que ficam de fora do estado de direi-to – os “restos da história” de Walter Benjamin – não é um problema corrigível do estado de direito, mas um efeito perverso que a formalização gera”. (PINTO NETO, Moysés. O que há de obsceno no Direito? Observações sobre violência, Direito e Poder. Revista Jurídica Doutrina Penal, n. 397, 2010, p. 127).

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tão celebrado que virou lugar comum nos Tratados Internacionais e Constituições. O que aqui pretendemos denunciar é o seu uso des-compromissado, que nos remete a transcender e angariar patama-res mais profundos de reflexão.

A genealogia da ideia de “dignidade humana” remete a filosofia clássica, ancorada pela tradição personalista, greco-romano-cristã, que traduz no conceito de “pessoa” o fundamento central do orde-namento jurídico e dos direitos humanos. A repercussão filosófica da tradição no direito atual expressa a fundamentação dos direitos humanos a partir do igualitarismo e do universalismo, fortemente construída a partir da filosofia aristotélico-tomista.

Pela tradição jusnaturalista, a concepção de “dignidade hu-mana” se vincula ao caráter divino atribuído ao ser humano, por ter sido criado a imagem e semelhança de Deus. O ser humano é um ser especial entre os demais, por deter o valor do status dignitatis.

Para Barzotto57, um dos principais expoentes do pensamento jurídico jusnaturalista da América Latina, a concepção de dignidade humana presente na Constituição Federal brasileira tem suas raízes na Doutrina Social da Igreja. Nesta vertente advém a referência ex-pressa, segundo o autor, da concepção de “dignidade humana” como a contribuição emblemática do legado cristão proporcionado ao oci-dente. Para Barzotto58, o reconhecimento do outro como “pessoa hu-mana”, significa reconhecê-lo como “igual” e em uma dimensão so-cial ancorada pela reciprocidade59. (mesmo em consideração zelosa ao argumento sugerido, propomos neste uma visão diametralmente oposta a este postulado: o ponto de partida fundamentado no reco-nhecimento do outro como “diferente” e a partir de uma ética avessa ao predicado da reciprocidade).

Em Agostinho60, na Trindade, o homem incorpora o criador na figura das três pessoas divinas: pai, filho e espírito santo. Tomás de

57 BARZOTTO, Luis Fernando. A democracia na Constituição. São Leopoldo: Unisinos. 2003. p. 89.

58 Idem, ibidem, p. 33.59 “Nas relações do indivíduo com a comunidade, o dever de justiça com todos os

demais considerados como membros da comunidade fundamenta-se na reciproci-dade”. (Idem, ibidem, p. 95-96).

60 AGOSTINHO, Santo, Bispo de Hipona. A trindade. São Paulo: Paulus, 1994.

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Aquino, um dos maiores expoentes do personalismo medieval, con-verge seu pensamento para unir as grandes teses da antropologia clássica a da antropologia bíblico-cristã, contemplando seu ponto de equilíbrio. Tomás de Aquino define o homem como um animal racional que somente pode ser denominado de homem quando com-preendido em sua totalidade, ou seja, quando é constituído por uma alma e por um corpo. Espírito e matéria fazem a sua essência.

Tomás de Aquino61 fora influenciado por Boécio na sua acepção que define “pessoa” como substância individual de natureza racio-nal, e, obviamente, pela filosofia Aristotélica, que sustenta boa parte de suas teses. Em Tomás de Aquino62, a pessoa humana tem sua dig-nidade fundada pela racionalidade e é o que há de mais perfeito na natureza, algo que o faz ser superior aos demais animais.

Na modernidade, Kant, um dos mais conhecidos expoentes do pensamento iluminista, é quem reproblematiza de forma inovadora o tema da dignidade humana como um valor-fim e é, para diversos autores contemporâneos, aquele que traz o cabedal filosófico que fundamenta a concepção de dignidade presente nas Declarações Universais dos Direitos Humanos e na maior parte das constituições ocidentais atuais.

Em Kant, a dignidade resvala ao caráter divino atribuído pelo direito natural e encontra-se com o humano a partir de sua capaci-dade racional, tornando-se um bem em si mesma. A liberdade, con-ceito guia de toda filosofia kantiana63, fundamenta a lei moral repre-sentada pela própria vontade – pela autolegislação, a qual desvela o reto cumprimento do dever moral, levando em conta o imperativo da dignidade humana como um valor absoluto. Na segunda parte deste livro daremos uma atenção especial para a concepção de liberdade em Immanuel Kant, em virtude de sua grande importância para a formação do pensamento ocidental.

Em que pese a imensa contribuição dos autores destacados, devemos apontar também onde esta se esgota. Sustentaremos na

61 AQUINO, Tomás de. Suma teológica. Porto Alegre: Escola Superior de Teologia. Edi-ção bilíngue, segunda parte, v. V, 1980, I, 29, a.1, p. 320.

62 Idem, ibidem, p. 326.63 HÖFFE, Otfried. Immanuel Kant. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 226.

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segunda parte deste ensaio que tanto a filosofia moral da tradição quanto a da modernidade, aqui bem representadas, repousam seu enfoque ético na figura do cálculo, quando ao certo o pensamento da justiça sempre entra em erupção quando tratado no plano da calculabilidade.

Mas antes disso, um argumento nos parece suficiente para romper de uma vez por todas com as propostas de paz, essencialis-tas e abstratas, apresentadas pelos consagrados autores. Para nós, toda e qualquer fundamentação filosófica de direitos humanos que admita em seu constructo o advento da pena capital, como resposta estatal a alguma demanda jurídica, está imediatamente descartada. É simplesmente abandonada. Radicalmente rompida. Sem conces-sões. Sem propostas de conciliação. Pomo-nos a ouvir o que os refe-ridos autores têm a nos dizer.

Em Tomás de Aquino64, a pena de morte é expressamente ad-mitida na questão 100, artigo 8° da sua “Suma Teológica”: “A lei hu-mana não pode conceder que licitamente o homem seja indevida-mente morto. Mas matar os malfeitores ou os inimigos da república, isso não é indevido”.

Na questão 64 da segunda parte da Suma Teológica65, ao tra-tar o tema do “homicídio”, solucionando a pergunta: “é lícito ma-tar os pecadores?”, Aquino é ainda mais enfático, merecendo literal destaque:

Toda parte se ordena para o todo e todo imperfeito para o perfeito. Por onde, toda parte é naturalmente para o todo. E por isso, vemos que é louvável e salutar a amputação de um membro gangrenando, causa da corrupção dos outros mem-bros. Ora, cada indivíduo está para toda a comunidade como parte, para o todo. Portanto, é louvável e salutar, para a con-servação do bem comum, pôr à morte aquele que se tornar perigoso para a comunidade e causa de perdição para ela; pois como diz o apóstolo, um pouco de fermento corrompe toda a massa.

64 AQUINO, Tomás de. Suma teológica. Porto Alegre: Escola Superior de Teologia. Edição bilingue, segunda parte, Volume V, 1980, II, 100, a.8, p. 660.

65 Idem, ibidem, p. 2.440.

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Immanuel Kant também adere à ideia. Senão, vejamos:

Todo aquele que furta torna a propriedade de todos os de-mais insegura e, portanto, priva a si mesmo (pelo princípio da retaliação) de segurança em qualquer propriedade possí-vel [...]. Se, porém, ele cometeu assassinato, terá que morrer. Aqui não há substituto que satisfará a justiça. [...] Quando se pronuncia uma sentença para um grande número de crimi-nosos unidos numa conspiração, o melhor elemento equali-zador ante a justiça pública é a morte. [...] Todo aquele que cometer assassinato, ordená-lo ou ser cúmplice deste – deve-rá ser executado.66

Nota-se que o “valor em si” da vida digna em Kant, em um rá-pido transpassar, torna-se “vida matável”. O argumento que assume a matabilidade da vida sustenta aqui o argumento para seu total abandono.

Retomemos a discussão: o esfacelamento do conceito de “dig-nidade humana”, bem como suas retaliações e enxertos; está fragi-lizado pelo seu uso trivializado, envolto em universalismos e igua-litarismos que já não dão conta dos antagonismos da modernidade recente. Seu essencialismo67, muitas vezes submerso em neo-hu-manismos saudosistas, na maior parte dos casos, ainda reproduz os discursos opressores de outrora.

Neste ponto, são elucidativas as percepções de Heidegger68, quando afirma que o humanismo se funda em uma metafísica ou se transforma em um fundamento metafísico. Sua percepção nos traz algo importante ao pensar. Pensa-se o humano metafisicamente pela sentença universal que o considera um animal racional. Por mais

66 KANT, Immanuel. Metafísica dos costumes. A doutrina do Direito. São Paulo: Edi-pro, 2003. p. 176-177.

67 “É à luz da ansiedade por justiça que a dignidade humana deve ser pensada e concebida, hoje. É essa dimensão ansiosa, incompleta, que descola a questão da dignidade humana do essencialismo em que irremediavelmente recai, quando abandonada a um seu conceito fora do mundo de sentido humano que a constitui.” (SOUZA, Ricardo Timm de. Justiça em seus termos. Dignidade humana, dignidade do mundo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 150-151)

68 HEIDEGGER, Martin. Carta sobre o Humanismo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967. p. 37.

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que esta determinação não seja falsa, o digno de ser pensado está em sua própria condição anterior ao pensar, calcada na existência69. Esta negação do humanismo não reverencia um suposto elogio a desuma-nidade ou a defesa de uma degradação da dignidade humana; mui-to pelo contrário. É necessário não se render a esta lógica. Segundo Heidegger: “pensa-se contra o humanismo porque o humanismo não coloca bastante alto a humanidade do homem”70.

Não se está aqui querendo neutralizar ou desconstruir as fun-damentações que se baseiam na ideia de dignidade nem questionar a sua imensa contribuição na construção da cultura ocidental, mas sim demonstrar a sua infertilidade e até a sua indecência no pano-rama de rediscussão da fundamentação dos direitos humanos que entendemos necessária. Pois, na maioria dos casos, é indecente fa-lar em “dignidade” e “decência” aos protagonistas que formam os “restos da história”71.

Deve-se reestruturar este fundamento para que se possa vol-tar a falar em dignidade de forma consistente, ou seja, uma dignida-de humana, ou uma visão humanista ancorada na ideia de paz, que adentre de fato na crise de sentido que a humanidade atravessa. Uma dignidade que comporte o não-ser, o nada, o impuro, o sem pátria... o diferente – e um humanismo que tenha como ponto de partida a alteridade; antes mesmo da dignidade.

“O ser humano é, ele mesmo, um mundo humano, e ferir a dig-nidade de alguém significa ferir o mundo inteiro”72. Esta pretensa ponderação ética torna necessário o desenvolvimento de um senti-mento de solidariedade, sem considerá-la um mero artifício retórico, mas sim uma realidade tão real que se torna difícil de ser percebida, onde se pode não mais apenas conviver com as diferenças ou tole-rá-las, e sim saudá-las como alicerce fundamental da humanidade, pois, a renúncia ao “apoderar-se do outro” significa um deixar-ser – significa o ato fundamental da liberdade.69 HEIDEGGER, Martin. Carta sobre o Humanismo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,

1967, p. 37.70 Idem, ibidem, p. 50.71 AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz? São Paulo: Boitempo, 2008. p. 67.72 SOUZA, Ricardo Timm de. Sentido e alteridade. Dez ensaios sobre o pensamento de

Emmanuel Levinas. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2005. Coleção Filosofia, n. 120, p. 11.

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A dignidade humana não é uma categoria fixa. Ela se intersec-ciona e se reconstrói a todo instante em contato com a realidade; em contato com a diferença. Só há decência em se falar em dignidade se esta está reconhecida na diferença – no direito de sermos diferentes, já que somos humanos e isso não negamos, mas não nos contenta-mos em sermos meramente humanos. Nossa idiossincrasia nasce na diferença. No assumir uma loucura dentro da própria diferença, mesmo a diferença que traz choque aos delírios da totalidade. Assu-mir a loucura para não pedir licença para ser quem se é, e libertar o outro para que seja aquilo que sempre foi, ou seja: Outro. “Não há diferença sem alteridade, não há alteridade sem singularidade, não há singularidade sem aqui-e-agora”73.

A era da “igualdade” já deu seus frutos, alguns não peque-nos – mas permanece em seu cerne a suspeita infinitamen-te recorrente de interesse com aspecto “desinteressado” e pretensamente “neutro” [...] Que a era da diferença real, não mais escamoteada em diferença lógica – e muito menos em desigualdade social de qualquer tipo –, aponte para a “fresta estreita que o futuro ainda nos reserva”.74

A dignidade do igual já não serve mais. A dignidade do igual é mantenedora da lógica da totalidade e do olhar do mesmo perante o outro. Há mais de duzentos anos vivemos hipertrofia da igualdade, onde se percebe a própria hipocrisia de alguns discursos que a de-fendem. Nunca se falou tanto em igualdade, apesar da experimenta-ção crua de que é pela diferença que nos constituímos como sujeitos. O pensamento que reivindica por um novo sentido da ideia de justi-ça, para além de Constituições e Tratados, deve abarcar a diferença real, substituta da era da mera “igualdade”, mas que abarque uma igualdade concreta, tendo o reconhecimento da alteridade como pe-dra angular, no anseio por igualdade de condições de existência e direitos básicos. “A era em que o diferente é a condição filosófica do próprio igual, e o igual para nada serve, se não servir para acolher

73 DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx. O Estado da dívida, o trabalho do luto e a nova Internacional. Rio de Janeiro: Relume, 1994. p. 51.

74 SOUZA, Ricardo Timm de. Em torno à diferença. Aventuras da alteridade na com-plexidade da cultura contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 18-19.

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eticamente o diferente – pois é aí que habita o mais propriamente humano da humanidade de todas as épocas.”75

A procura pelo reconhecimento da igualdade, no plano polí-tico, representa uma vitória na construção do ideal de democracia. Mas lembremos que não é a igualdade que nos confere a responsabi-lidade do agir na relação interpessoal e idiossincrática com alguém. É propriamente o originário de todo e qualquer pensar – o originário da diferença – que investe a minha ação perante o outro. Não sou responsável por outrem em virtude de sermos iguais, como vislum-bra muitos aprumos de essencialidade ontológica das teorias ético- -políticas ainda e sempre presentes. Minha ação se deve à diferença. Pensar ao contrário disso seria “como se eu devesse agir bem para com um bebê indefeso porque ele é, de certo modo, “igual” a mim, entidade poderosa e determinante, e não, exatamente, porque ele é tão diferente de mim que é irredutível a qualquer conceito correlato de equilíbrio”76. A força do bebê está exatamente na sua ausência de força; tão forte que me questiona quanto ao meu egoísmo irrenunci-ável. Clama direito por esse meu egoísmo77.

Liberdade e igualdade não são binários opostos no ideário da ética da alteridade. A premissa lugar comum que evoca que “a liber-dade de um termina quando começa a do outro”78, nada mais é do que a expressa representação moderna de mônadas solitárias. Expressa a ideia de liberdade solitária, cunhada pelo legado iluminista. De uma liberdade que nos permite pensar que tudo é possível, conforme se traduz a liberdade na modernidade recente. Mas a liberdade não pode

75 SOUZA, Ricardo Timm de. Em torno à diferença. Aventuras da alteridade na com-plexidade da cultura contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 53.

76 SOUZA, Ricardo Timm de. Justiça em seus termos. Dignidade humana, dignidade do mundo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 127.

77 LÉVINAS, Emmanuel. Totalidad y infinito. Ensayo sobre la exterioridad. Salamanca: Sígueme, 1999. p. 64.

78 Para Levinas, “La libertad del otro jamás podría comenzar en la mía [...] La responsa- bilidad para con el otro no puede haber comenzado en mi compromiso, en mi de-cisión. La responsabilidad ilimitada en que me hallo viene de fuera de mi libertad, de algo “anterior-a-todo-recuerdo”, de algo “ulterior-a-todo-cumplimiento”, de algo no-presente; viene de lo no-original por excelência, de lo an-arquico, de algo que está más acá o más allá de la esencia. La responsabilidad para con el otro es el lugar en que se coloca el no-lugar de la subjetividad, allí donde se pierde el privilegio de la pregunta dónde”. (Idem, ibidem, p. 54).

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ter a última palavra porque não estamos sozinhos no mundo79. Na maioria das vezes esta premissa é tida como uma verdade inquestio-nável porque já impregna a corrente sanguínea do imaginário social comum, que atua incessantemente nesta lógica contratológica.

Presenciamos “contratos de mais e contatos de menos”. A sub-versão da lógica contratológica desconstrói sua dimensão desde a raiz, pois a ética inverte os termos dessa proposição: só há liberdade de um quando há liberdade do outro. Só sou livre se livre o outro é. “Pois a minha liberdade depende, essencialmente, da capacidade de responder ao imperativo da sadia socialidade humana, e não do iso-lamento livre-subjetivo do indivíduo moderno.”80 As liberdades não podem se opor; Não entram em choque. Neste sentido expressa o pensamento de Enrique Dussel quando confere o título de pensador renovado àquele que se compromete com a libertação da diferença. Nas palavras de Dussel, “caminhando na libertação do outro, alcan-ça-se a própria libertação”81. Um libertar apesar dos medos que per-meiam a razão solitária.

Os argumentos expostos tornam explicita a necessidade de uma rediscussão sobre o fundamento do Direito para bem além das filosofias do sujeito e dos contratualismos. O que aqui se procura argumentar é a necessidade vital de uma fundamentação filosófi-ca densa, para as questões que circunscrevem o tema do refúgio e da apátrida. O tema, em verdade, é um só: a possibilidade da justiça para as dimensões relacionais do mundo atual. Para tanto, é urgente a construção de uma fundamentação avessa as simplificações e in-consistências que a concepção tradicional de direitos humanos dá vazão, verificadas tanto em âmbito teórico quanto em âmbito em-pírico, pois a carência de fundamentação representa, a posteriori, a falência de sentido ético nas situações concretas.

A vida nua demonstra que o problema é muito mais profundo do que se possa imaginar a primeira vista. O problema está onde

79 LÉVINAS, Emmanuel. Totalidad y infinito. Ensayo sobre la exterioridad. Salamanca: Sígueme, 1999. p. 123.

80 SOUZA, Ricardo Timm de. Justiça em seus termos. Dignidade humana, dignidade do mundo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 102.

81 DUSSEL, Enrique D. Método para uma filosofia da libertação – superação da dialéti-ca hegeliana. São Paulo: Loyola. 1986, p. 120.

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sempre esteve: a racionalidade ocidental em seu modo de interagir com mundo. A questão reivindica uma reconstrução do sentido de realidade que damos as relações; de nossa capacidade de reinventar a consagrada ideia de “cidadania”, violentamente vinculada à condi-ção da “nacionalidade” e, principalmente, desconstruir o ideário da liberdade iluminista, em sua solidão contratual.

4 ALTERIDADE E HOSPITALIDADE COMO SUPERAÇÃO DO LIMITE DA TOLERÂNCIA

Depois de colocada em pauta a questão dos apátridas e esta-belecidas as conexões entre a ineficiência da tradicional percepção dos direitos humanos, desvelando a fragilidade do argumento da dignidade da pessoa humana, chega o momento de estabelecer rotas alternativas, linhas de fuga para o enfrentamento do problema de forma convexa e comprometida com o patamar de indeterminação e complexidade que a modernidade recente deflagra.

A pretensão etnocêntrica não se desmaterializa com cartilhas universalistas de direitos humanos, mas com o interculturalismo de percepções sem a hegemonia de qualquer cultura. Desterritorializar a vontade de “compreensão apropriativa”82 do outro traz consigo a possibilidade de tornar assimilável o rosto de outrem, que não se contenta com meras boas intenções83, invertendo o campo de visão do observador perante o observado.

Se a relação é fundada não mais a partir da semelhança, mas da diferença, considerada a partir da noção de alteridade, torna-se possível, pelo contraste, reconhecer a condição que situa cada um em sua própria diferença. Essa distância se torna o elemento funda-mental da igualdade entre os homens.

Quanto maior o respeito da exceção e da diferença, mais igua-litária a sociedade será, por mais paradoxal que essa frase possa parecer. Pois quando percebo a diferença de outro, possibilito-me

82 SOUZA, Ricardo Timm de. Sentido e alteridade. Dez ensaios sobre o pensamento de Emmanuel Levinas. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2005. Coleção Filosofia, n. 120, p. 192.

83 LÉVINAS, Emmanuel. Totalidade e infinito. Lisboa: Edições 70, 1980. p. 204.

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perceber a mim mesmo como diferente, pelo contraste84. No entanto, a mercantilização que o mundo globalizado impõe às relações pes-soais, faz com que os seres humanos tratem uns aos outros como coisas ou mercadorias.

Para Arendt85, a “pluralidade é a condição da ação humana pelo fato de sermos todos os mesmos, isto é, humanos, sem que ninguém seja exatamente igual a qualquer pessoa que tenha existido, exista ou venha a existir”. A igualdade, tanto em direitos como em dignidade, é condição básica de uma sociedade plural, mas, além disso, somente com a “não indiferença ao que me é absolutamente diferente”86, sem o rótulo de “anormal” ou “fora dos padrões”, nas próprias acepções pejorativas dos termos, ou seja, sendo outrem naturalmente com-preendido como um “não-igual-a-mim”, é que os Direitos Humanos, finalmente, alcançarão o seu sentido almejado.

Antes de se esperar milagres de qualquer espécie de prag-matismo, do ponto de vista do direito internacional e das relações internacionais, é preciso também questionar o seu fundamento. É para isto que o presente artigo se propõe. Discutir o fundamento dos Direitos Humanos (que dão alicerce a qualquer pragmatismo), pois sem discutir o seu fundamento, qualquer alternativa prática soará pueril. Está é a tese que desenvolveremos, de forma breve, como nova alternativa para se pensar os Direitos Humanos: não há como se pensar os Direitos Humanos se não for a partir do recebi-mento da alteridade.

A alteridade não é um conceito, não é uma teoria, não é fórmula ou um novo imperativo. Alteridade é meramente uma reconstrução de um olhar avesso ao poder sedutor das representações. É o espaço da sensibilidade e a rendição a uma responsabilidade perante um

84 Literalmente, Roberto Damatta afirma que, “apesar das diferenças e por causa de-las, nós sempre nos reconhecemos nos outros e eu estou inclinado a acreditar que a distância é o elemento fundamental na percepção da igualdade entre os homens. Deste modo, quando vejo um costume diferente é que acabo reconhecendo, pelo contraste, meu próprio costume.” (DAMATTA, Roberto. Relativizando: uma intro-dução à antropologia social. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. p. 24).

85 ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004. p. 16.

86 LÉVINAS, Emmanuel. Entre nós. Ensaios sobre a alteridade. Petrópolis: Vozes, 1997. p. 176.

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rosto que interpela; é presenciar o trauma da diferença e quebrar o espelho da própria autorreflexão. “Alteridade” vem do latim “alter”: “outro”, ou seja, condição do outro em relação a mim. Não existe pos-sibilidade de se determinar o que o outro é como tal, ou seja, não posso explicá-lo, e sim apenas interagir com ele.

O foco de compreensão aqui é outro: é o Outro; assumindo com toda radicalidade o que isto pode e deve significar. O pressu-posto é a diferença. O reconhecimento da diferença é a condição fundamental para o rompimento do caráter apropriativo da ra-cionalidade que tende a reduzir o outro ao mesmo, padronizando, igualizando. Toda essa combustão de opostos traz a complexidade da violência ao mundo moderno. Existe uma relação simétrica en-tre a violência e o encobrimento da alteridade. As contingências mundanas estão no plano relacional e a verdadeira problematiza-ção/superação das estruturas fundantes do paradigma da totalida-de está em (re)discutir a alteridade, o trauma do outro como trau-ma da diferença.

A atuação política, nos casos dos apátridas e refugiados, mui-tas vezes adentra a uma esfera de representação midiática87 e dei-xa, exatamente neste ponto, esvair seu poder de atuação nos esca-nos da legitimação burocrata, pois tem como escopo, justamente na tentativa de tornar público, em sentido propagandístico, aquilo que só admite sentido na esfera privada, como bem observou Han-nah Arendt88.

Para Souza89, tentar refundar a ética a partir de ideias políti-cas momentâneas, apesar de bem estruturadas e bem organizadas filosoficamente, não passa de postergar a própria questão da justiça, que está no ponto da relação entre humanos, ultrapassando a dimen-são dos dilemas sócio-políticos, porque se dá anterior a eles. Está no

87 DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx. O Estado da dívida, o trabalho do luto e a nova Internacional. Rio de Janeiro: Relume, 1994. p. 110.

88 “A bondade que sai do seu esconderijo e assume papel público deixa de ser boa: torna-se corrupta em seus próprios termos e levará esta corrupção para onde quer que vá”. (ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Uni-versitária, 2004. p. 88)

89 SOUZA, Ricardo Timm de. Em torno à diferença. Aventuras da alteridade na com-plexidade da cultura contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 53.

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originário da subjetividade e deságua no campo político. Pois “políti-ca é a capacidade de conceber uma estrutura ética de convivência que permita a cada ser relacionar-se o mais saudavelmente possível com cada outro ser” (grifo no original).

Neste sentido, é necessário que voltemos a discutir o funda-mento dos direitos humanos, na dimensão de radicalidade que a questão enseja.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Há possibilidades de se superar o modelo ético liberal, caso se atente para a verdade que não está no todo. Que justamente está no não-ser e na autoincompreensão do próprio pensar. A abstração do pensamento por vir admite a sua finitude e admite a infinita respon-sabilidade pelo infinitamente90 outro, responsabilidade por libertar o outro da padronização do universalismo e da totalidade do mesmo.

A superação da moral de subjetividade solipsista está, de acor-do com Souza, na “crença na utopia apesar das utopias de não ter mais utopias”91. O espaço da verdade é agora “a inadequação radical da razão com o que acontece, o desafio ético do olhar sem contexto, dependurado no abismo não-explicável”, pois “eu sou absolutamente livre para não permanecer encerrado em minha totalidade”92.

“O ser humano é, ele mesmo, um mundo humano e ferir a dig-nidade de alguém significa ferir o mundo inteiro.”93 Torna-se neces-sário o desenvolvimento de um sentimento de solidariedade que não descambe para um mero artifício retórico, e sim que construa uma realidade na qual não somente se conviva com as diferenças ou

90 Levinas afirma que: “a idéia de infinito em mim, que implica um conteúdo que transborda o continente, rompe com o preconceito da maiêutica sem romper com o racionalismo, dado que a idéia de infinito, longe de violar o espírito, condiciona a própria não violência, ou seja, implanta a ética” (LÉVINAS, Emmanuel. Totalidade e infinito. Lisboa: Edições 70, 1980. p. 182).

91 SOUZA, Ricardo Timm de. Totalidade e desagregação. Sobre as fronteiras do pensa-mento e suas alternativas. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996. p. 192.

92 Idem, ibidem, p. 192.93 SOUZA, Ricardo Timm de. Sentido e alteridade. Dez ensaios sobre o pensamento de

Emmanuel Levinas. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2005. Coleção Filosofia, n. 120, p. 11.

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se as tolere, mas se possa saudá-las como alicerce fundamental da humanidade, pois, a renúncia a “apoderar-se do outro” significa um deixar-ser, significa o ato fundamental da liberdade.

O que aqui se indica é uma ética sem cartilhas advindas de fler-tes catequizantes ou das filosofias de estruturas faraônicas. A ética como aquilo que fundamenta o mundo, longe das proposituras uni-versalistas dos pensamentos categóricos. Vinculada ao pensamento da finitude, da humildade, da hospitalidade, da (des)hierarquia, da era onde se privilegia a diferença pela alteridade, da liberdade para ser quem se é, da liberdade para ser aquilo que todos somos, ou seja: impuros, híbridos, sem essências aprisionáveis pelos conceitos de “bom” e “mau”, de certa forma esquisitos e loucos.

A história da humanidade é o elogio exacerbado de uma ra-cionalidade canhestra e o esquecimento de que a única certeza que podemos ter sobre todos os seres humanos que já existiram e que virão a existir é a de que: todos são iguais, enquanto espécie, e que todos são diferentes, enquanto subjetividade.

No lugar da inércia do mero reconhecimento da igualdade abs-trata, o agir do reconhecimento da diferença. No lugar do universa-lismo da concepção tradicional dos direitos humanos, da lógica do mercado, da potência totalitária dos nacionalismos, e do apanágio da tolerância; a ética da alteridade.

A contextualizada percepção se inclina a buscar um senti-do imune a percepções totais. Talvez a proposta seja pensar, apro-priando-se de um linguajar foucaultiano, na ideia de uma interna e introspectiva microrevolução, já que não há mais como se falar em macrorevoluções, desde a queda do muro de Berlin. Cada indivíduo poderia, idiossincraticamente, presenciar a diferença do outro para bem além de meras representações, desconstituindo-a de sua atual condição ameaçadora.

Tal condição significaria quebrar os espelhos de nossa autoilu-minação, de nosso narcisismo. Ser também instituinte em um mun-do de instituídos. Isso fica mais fácil de perceber quando compreen-demos que a Alteridade não é um capricho da natureza ou algo que podemos optar por receber ou não, mas é, antes, o que nos constitui – exatamente – como sujeitos, para além da mera identidade psíquica.

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201Direitos humanos e cosmopolitismo

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O que se espera é, de algum modo, o desenvolvimento de uma racionalidade apátrida. Desprovida de territorialidade. Na lacuna da razão intransigente, brota uma razão transitante; transvalorativa. Que reluz o amparo da racionalidade nômade, híbrida, que se realo-ja a cada tentativa de totalidade. Que escapa no vão da percepção englobadora. Que se alimenta da diferença. Do estranhamento. Que busca amparo no refúgio. No “não-óbvio”. Que mantém sóbrio o ho-rizonte de um mundo ainda possível.

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É POSSÍVEL O DIREITO SER INSTRUMENTO PARA A EFETIVAÇÃO

DA DEMOCRACIA?

Candisse SchirmerProfessora de Direito Processual Constitucional e Administrativo da Faculdade Anhan-guera Educacional de Passo Fundo. Mestre em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC, área de concentração em Demandas Sociais e Políticas Públi-cas. Linha de pesquisa: Políticas Públicas de Inclusão Social. Especialista em Direito Tributário. Especializanda em Direito do Estado. Integrante do Grupo de Pesquisa “Direito, Cidadania e Políticas Públicas”, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Direito, Mestrado e Doutorado – UNISC.Contato: [email protected]

Marcio Luiz Simon HecklerAcadêmico do curso de Direito da Anhanguera Educacional – FAPLAN, cursando o 10º semestre. Estagiário jurídico em Escritório de Advocacia. Contato: [email protected]

HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1979. p. 113-168 (Cap. III).

RESENHA

Jürgen Habermas é um dos mais importantes filósofos ale-mães do século XX. No livro Direito e Democracia, o terceiro

capítulo será objeto de estudo, onde o autor dedica-se ao sistema dos direitos, com o auxílio do princípio do discurso, buscando escla-recer o entrelaçamento entre autonomia privada e pública, os direi-tos e a soberania do povo.

Dispõe no primeiro tópico que a filosofia do direito idealista in-fluenciou a doutrina do direito subjetivo. Nesse contexto, destacam- -se Savigny e Puchta, este elucida que “O direito é o reconhecimento

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da liberdade que advém em igual medida aos homens como sujeitos que detém o poder da vontade” (p. 116). Com isso se constata que os direitos subjetivos são direitos negativos que visam resguardar a ação individual, servindo de fundamento para as reivindicações, no plano judicial, em face das intenções ilícitas na liberdade, na vida e na propriedade. A partir dessa concepção, a autonomia privada é avalizada sob o escudo da proteção do direito.

O século XIX indicou a perda da fundamentação idealista do direito em geral, assim como o “poder de dominação individual” per-deu o núcleo normativo de uma legítima liberdade da vontade (p. 117). Rompido esse laço, passa o direito a assegurar-se conforme a interpretação positivista. Para a interpretação utilitarista de Ihering, a substância do direito é constituída pelo proveito e não pela vonta-de. Hans Kelsen elucida: que o “dever-ser” é compreendido de modo empírico; ainda, do ponto de vista moral, a autonomia merece ser protegida, e sempre que se estabeleça uma relação entre a pessoa natural e a pessoa moral poderá haver uma interpretação puramen-te funcionalista dos direitos subjetivos. Em contrapartida, L. Raiser acomete-se do auxílio de uma sociologia do direito para corrigir o princípio individualista, reinserindo seu conteúdo moral no direito privado. Ademais, existe a colaboração dos sujeitos, em que se reco-nhecem membros livres e iguais do direito. Desse reconhecimento retiram-se direitos subjetivos reclamáveis judicialmente.

A legitimidade adquirida pelo direito positivo não tem como ser esclarecida, mas sabe-se que vem do processo democrático da legiferação, esta que apela para o princípio da soberania do povo. Contudo, a forma como o positivismo jurídico insere esse princípio não protege o teor moral independente dos direitos subjetivos, qual seja a proteção da liberdade individual. Para Savigny, tem-se o con-ceito de liberdade idealista podendo supor a legitimação do direito privado, a partir de argumentos da razão, na forma de um “sistema de direitos negativos e procedimentais que asseguram a liberdade”, a partir de si próprio (p. 122). Já Kant, não havia respondido de for-ma clara à demanda da legitimação de leis gerais, pois sua doutrina dos direitos não elucida bem a relação entre princípio da moral, do direito e da democracia. Com esses princípios temos a ideia de auto-legislação. Através disso, o referido autor reagiu à tentativa inexitosa

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205É possível o direito ser instrumento para a efetivação da democracia?

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de Hobbes, que justificava não precisar existir o auxílio de argumen-tos morais para a instauração de um sistema de direitos burgueses. Surge então a ideia de uma figura positiva através da autonomia po-lítica dos cidadãos que tem nos direitos do homem, fundamentos na autonomia moral dos indivíduos. Esse conceito de autonomia foi in-troduzido por Kant, apoiado no modelo de Rousseau.

Faz-se necessário a partir desse contexto, inserir um excurso que se destina a ilustrar a importância da abordagem histórico-teó- rica para uma reflexão em relação à autonomia privada e pública em geral. Torna-se a história um elemento da autoconscientização de culturas e povos. Com isso, os direitos humanos e a soberania do povo aparecem como elementos concorrentes, e não complementa-res, pois eles não se deixam subordinar pela autodeterminação e da autorrealização. O nexo visado entre os direitos humanos e a sobera-nia do povo é assegurado através da formação discursiva da opinião e da vontade.

O segundo tópico faz uma abordagem entre as normas mo-rais e jurídicas, que passam a se completar. Deste modo, a concep-ção de autonomia necessita ser delineada abstratamente para que possa adquirir a figura do princípio da democracia e não somente a do princípio moral. Pensa-se em criar a linguagem e não somen-te o sistema dos direitos, que permita à comunidade manifestar-se como associação voluntária de membros do direito iguais e livres. Destarte, o direito satisfaz-se em focalizar o agir sobre a questão de sua conformidade à regra, mas sabemos que a transferência de saber para o agir é incerta. Apenas será possível analisar a transmissão dos conteúdos morais pelos canais das regulamentações jurídicas, quan-do enfrentarmos o sistema do direito como um todo.

Enfim, o terceiro e último tópico, discorre acerca de um siste-ma dos direitos que “deve contemplar os direitos fundamentais que os cidadãos são obrigados a se atribuir mutuamente, caso queiram regular sua convivência com os meios legítimos do direito positivo” (p. 154). Ao tratar de um código jurídico na figura de direitos subjeti-vos, em que os sujeitos jurídicos são imunizados contra a imputação da liberdade comunicativa, estamos nos referindo ao princípio kan-tiano. A compreensão correta da ordem jurídica em geral dá-se pela normatização politicamente autônoma, pois para existir obediência

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ao direito, este deve estar amparado por motivos racionais. É esta-belecido, portanto, um código jurídico através do “direito a iguais liberdades subjetivas de ação, bem como os correlatos dos direitos à associação e das garantias do caminho do direito” (p. 162). Esse código jurídico é dado como única linguagem na qual os sujeitos po-dem exprimir a sua autonomia. Finaliza pondo em xeque a questão relacionada ao surgimento da legitimidade, que se deve a partir da legalidade, sendo esta não paradoxal, a não ser para aqueles que ini-ciam pela premissa de que o sistema do direito tem que ser repre-sentado como um processo circular, legitimando-se a si próprio.

A título de diálogo com o autor, torna-se condescendente des-tacar alguns aspectos que a leitura de seu livro, mais precisamente o terceiro capítulo, gerou. A construção fraseal transmitiu ao leitor uma linguagem clara, fazendo da obra, algo deleitoso de se ler. Quan-to ao conteúdo, sem dúvida, o objetivo do autor foi alcançado, pois trouxe uma abordagem bastante valorativa, ao descrever sobre os mais renomados pensadores jurídicos da história.

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Este livro foi composto nas tipologias: Bell Gothic BT corpo 9 e 12; Book Antiqua corpo 11;

Cambria corpo 9,5, 11, 12 e 19; Gill Sans MT corpo 9 e 11, LibertyD corpo 9, 10 e 23.

Impresso, em papel offset paperfect 75 gr. e cartão alta alvura 250 gr., na Nova Letra Gráfica e Editora Ltda.

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