vitullo - as outras teorias da democracia

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As outras teorias da democracia participacionismo, deliberacionismo e republicanismo cívico

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As outras teorias da democraciaparticipacionismo, deliberacionismo

e republicanismo cívico

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REITORA Ângela Maria Paiva Cruz

VICE-REITORA Maria de Fátima Freire de Melo Ximenes

DIRETORA DA EDUFRN Margarida Maria Dias de Oliveira

CONSELHO EDITORIAL Cipriano Maia de Vasconcelos (presidente)

Ana Luiza Medeiros Humberto Hermenegildo de Araújo

John Andrew Fossa Herculano Ricardo Campos

Mônica Maria Fernandes Oliveira Tânia Cristina Meira Garcia

Técia Maria de Oliveira Maranhão Virgínia Maria Dantas de Araújo Willian Eufrásio Nunes Pereira

EDITOR Helton Rubiano de Macedo

REVISORA Sílvia Barbalho

CAPA Helton Rubiano de Macedo

EDITORAÇÃO ELETRÔNICA Wilson Fernandes de Araújo Filho

PRÉ-IMPRESSÃO Jimmy Free

SUPERVISÃO EDITORIAL Alva Medeiros da Costa

SUPERVISÃO GRÁFICA Francisco Guilherme de Santana

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Gabriel Eduardo Vitullo

Natal, 2012

As outras teorias da democraciaparticipacionismo, deliberacionismo

e republicanismo cívico

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Divisão de Serviços TécnicosCatalogação da publicação na Fonte. UFRN/Biblioteca Central Zila Mamede

Vitullo, Gabriel E.

As outras teorias da democracia : participacionismo, deliberacionismo e republicanismo cívico / Gabriel E. Vitullo. – Natal, RN : EDUFRN, 2012.

144 p.

ISBN 978-85-7273-918-4

1. Democracia. 2. Democracia participativa. 3. Democracia deliberativa. 4. Democracia cívico-republicana. I. Título.

RN/UF/BCZM 2012/19 CDD 321.8CDU 321.7

Todos os direitos desta edição reservados à EDUFRN – Editora da UFRNAv. Senador Salgado Filho, 3000 | Campus Universitário

Lagoa Nova | 59.078-970 | Natal/RN | Brasile-mail: [email protected] | www.editora.ufrn.br

Telefone: 84 3215-3236 | Fax: 84 3215-3206

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Sumário

Introdução ........................................................................................................ 7

1 Democracia participativa ..............................................................................11

2 Democracia deliberativa ................................................................................51

3 Democracia cívico-republicana .................................................................... 87

Conclusões .................................................................................................... 129

Referências .....................................................................................................135

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introdução

A democracia dá lugar a importantes debates em torno de sua definição. Ensaiam-se múltiplas tentativas, diversas conceitualizações são propos-tas, pois a democracia traz atrelada a ausência de um consenso quanto a sua caracterização. Nas últimas décadas, vem ganhando espaço predo-minante uma forte corrente de pensamento que enfatiza seu aspecto pro-cedimental. Esta corrente, denominada por alguns de corrente pluralista, por outros de escola elitista-competitiva, é fonte de inspiração de inúmeras pesquisas e estudos acadêmicos. Entretanto, há outras formas de pensar a democracia que, mesmo sendo menos difundidas, constituem enfoques essenciais quando se procura estudar as possíveis maneiras de enriquecer seu significado. Neste livro busca-se realizar uma análise de tais corren-tes alternativas, com o propósito de alcançar um maior entendimento de como vem sendo tratada a questão democrática dentro da teoria política contemporânea.

Nos estudos existentes sobre as correntes alternativas, em geral, estas são analisadas em contraposição às teorias pluralistas ou elitistas-competitivas da democracia, destacando os contrastes e enfrentamentos entre ambos os campos. Mas poucos são os que consideram e analisam as divergências dentro do próprio campo das concepções democráticas alternativas.

Neste livro, portanto, pretende-se abordar essas teorizações da democracia sob uma perspectiva comparada e crítica que permita resgatar os pontos mais relevantes. O material bibliográfico e o objeto de estudo estão com-postos maioritariamente por textos e obras de importantes autores euro-peus e estadunidenses – muitos deles pouco conhecidos para o público brasileiro –, dedicados à elaboração e à análise de formas alternativas de conceber a democracia e que vêm contribuindo para redesenhar os termos de referência a partir dos quais se pensa a teoria democrática.

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As outras teorias da democracia

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A obra – fruto da Dissertação de Mestrado do autor, defendida há alguns anos no Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (VITULLO, 1999a) e nunca publicada de forma completa1 – está dividida em três capítulos: no primeiro é analisada a corrente da democracia participativa, no segundo a corrente deliberativa e no terceiro a democracia cívico-republicana, seguidos das conclusões gerais que se derivam da análise e comparação do exposto ao longo do texto. A ordem em que são apresentadas as três correntes não indica uma crono-logia, observando que estas avançaram, em muitos casos, de forma para-lela ou simultânea ao longo das últimas décadas. Tais correntes, apesar de coincidirem na sua firme oposição ao paradigma predominante, contam com um bom número de elementos que as tornam bastante diferentes umas das outras: seja pelo ponto de vista do qual partem, seja pela ênfase que colocam sobre determinadas questões ou pela direta divergência em relação a certos temas específicos. Ao longo dos capítulos que seguem, trata-se, então, de explorar e mostrar os aspectos mais importantes de cada uma destas três vertentes do pensamento democrático, as bases desde as quais podemos avaliar possíveis coincidências, superposições e desacordos entre os distintos textos e autores, aqueles pontos que expliquem o porquê de havê-los incluído em grupos ou correntes diferentes.

As diferenças existentes entre os exponentes destas correntes alternativas da democracia mostram como, mesmo coincidindo em sua crítica ao para-digma predominante, nem sempre concordam em quais seriam os pila-res sobre os quais construiríamos uma concepção distinta ou um novo modelo democrático emergente. Há uma variedade de linhas divisórias, áreas de conflito e enfoques diferentes entre os pensadores que argumen-tam em favor de outro tipo de democracia. E é, precisamente, a partir da constatação da heterogeneidade existente no campo das argumentações alternativas, que se pode traçar um mapa dos diferentes grupos e verten-tes. Esta classificação parte daqueles elementos que permitam agrupar os textos dos autores mais renomados em função de certas semelhanças, cer-tos pontos de contato, compromissos e coincidências, para poder, desta forma, realizar uma análise mais ordenada dos argumentos que pretendem apresentar-se como alternativa à maneira de entender e definir a demo-cracia que ainda hoje predomina nos círculos acadêmicos. Não é a única

1 Uma versão muito resumida da Dissertação apareceu nos Cadernos de Ciência Política da UFRGS (VITULLO, 1999b). O capítulo 2 foi publicado de forma con-densada na revista Sociologias (VITULLO, 2000).

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introdução

classificação possível, nem todos os autores mencionados neste estudo con-cordariam em se identificar com algum dos três rótulos ou denominações escolhidas. Busca-se, apenas, confrontar melhor os distintos argumentos oferecidos e agrupá-los a partir de enfoques e pontos de vista semelhantes e de preocupações e temáticas comuns. O que, por sua vez, pode contribuir para o exame crítico das diferentes correntes e a análise das insuficiências que cada uma delas apresenta na hora de se constituir como uma pro-posta autenticamente contra-hegemônica ao modelo elitista-competitivo dominante.

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1 democrAciA pArticipAtivA

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Pretende-se, neste primeiro capítulo, fazer uma revisão daquelas obras que estabeleceram as bases para a constituição da teoria da democracia parti-cipativa. Considera-se primordial analisar, partindo de uma visão crítica, quais são os alicerces que dão sustento a esta proposta teórica, avaliar quais são suas fortalezas e quais suas maiores fragilidades. Isto permitirá obser-var também os novos caminhos que vêm sendo abertos e quais as possibi-lidades de seguir progredindo no seu desenvolvimento.

A análise está centrada na obra de pensadores que já podem ser tidos como clássicos no estudo destes temas, como é o caso do estadunidense Peter Bachrach, a britânica Carole Pateman e o professor canadense Crawford B. Macpherson. São examinados, igualmente, textos de outros autores que também abordaram e desenvolveram estas questões ao longo das últimas décadas, como Norberto Bobbio, David Held, Robert Dahl, Carol Gould, Herbert Gintis e Samuel Bowles.

As ideias que configuram a proposta democrática participativa começa-ram a ser esboçadas nos anos 1960, como expressão do clima de época que se vivia nos campi universitários, nas escolas, nas fábricas, nos lares e nas ruas das grandes urbes. Os participacionistas buscavam oferecer sus-tento e consistência teórica às propostas alternativas dos novos atores que apareciam em cena, e dar algum grau de sistematicidade a suas demandas e reivindicações. Procuravam construir um modelo de democracia que, resgatando a participação como um valor fundamental, pudesse se opor

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ao modelo centrado na teoria das elites, já então predominante. Anne Phillips, ao recuperar as raízes deste movimento, assinala:

[…] entre os radicais europeus e estadunidenses, o principal brote de entusiasmo por uma democracia mais ampla acon-teceu nos anos sessenta, quando o fascismo tinha se retirado e a democracia liberal aparentava estar no seu lugar com toda força. As complacências desta última foram descartadas e, reivindicando a tradição da democracia direta que teve como seu principal expoente Rousseau, o movimento estudiantil e a Nova Esquerda, colocaram mais uma vez a participação no centro do debate (PHILLIPS, 1996, p. 22)2.

Para os participacionistas, a democracia não se restringe a um regime político. Envolve também outras dimensões. A democracia é apreciada enquanto forma de sociedade, projeto de sociedade futura e ideal de eman-cipação. É considerada estilo de vida. Algo que deveria permear todas as relações sociais das quais participa qualquer ser humano ao longo de sua vida. Sendo assim, a participação torna-se componente chave ou essen-cial: implica o traspasse do poder político à comunidade. Os indivíduos devem poder participar plenamente, em pé de igualdade, na adoção daquelas decisões coletivas que os comprometem ou os afetam de forma direta (DAHL, 1993). Sem participação, para os autores que se inscrevem nesta corrente, não seria possível pensar em uma sociedade mais humana e equitativa. Os impulsores das teorias participacionistas buscam redefinir a política e alcançar o controle popular da vida quotidiana (PHILLIPS, 1996). Tentam repensar a teoria da democracia e estender os processos de tomada de decisões às esferas econômica, social e cultural. Procuram desenvolver e aprofundar as formas tradicionais de democracia política e levá-las a novos contextos (GOULD, 1988). Referindo-se aos movimentos radicais dos anos 1960, Jane Mansbridge aponta:

[…] os objetivos dos movimentos radicais emergentes exigem que façamos a política mais “participativa”, submetendo tanto as burocracias públicas quanto as privadas ao controle público, tornado os representantes mais responsáveis, e oferecendo ao povo maior voz nas decisões que afetam suas vidas. Estas medidas, supunha-se, reduziriam a apatia e melhorariam não

2 A tradução das citações extraídas de textos publicados em outras línguas foi reali-zada pelo autor deste livro.

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1 democracia participativa

apenas os resultados das decisões mas também a qualidade da vida dos cidadãos (MANSBRIDGE, 1983, p. 299).

A participação é apresentada como um fim em si mesmo. Deixa de ser considerada como um mero instrumento sem qualquer valor intrínseco. A participação não seria um custo a pagar que o cidadão procuraria evitar por considerá-lo maior do que os benefícios que dela obteria – como insis-tentemente argumentam os defensores da democracia elitista-competitiva. Os autores analisados neste primeiro capítulo coincidem em afirmar que a participação é fundamental para contribuir ao autodesenvolvimento indi-vidual, ao autoaprendizado, à autoexploração e à construção de um cidadão livre e ativo que lute por partilhar o poder com os demais, possibilitando assim o surgimento de melhores homens e mulheres, de melhores cidadãos e cidadãs. A participação, argumentam, transformaria profundamente a psicologia dos participantes, suas crenças, valores, atitudes e sensibilida-des. Nas palavras de Peter Bachrach (1973, p. 23-24), “[…] a participação é um meio essencial para o desenvolvimento pleno das aptidões humanas”, vendo este autodesenvolvimento como o caminho rumo a um bom viver, tal como o imaginavam os filósofos clássicos. Seguindo Bowles e Gintis (1986), dois autores que se dedicaram ao estudo das possibilidades de uma democratização da esfera econômica, a meta principal da democracia par-ticipativa deveria ser a de tornar os indivíduos fazedores das suas histórias pessoais e coletivas, projeto que apontaria para a conformação de uma nova ordem social e uma nova forma de vida que hoje apenas se aparece prefigurada nos interstícios da democracia capitalista liberal.

Para os autores que se enquadram nesta corrente, a participação é enten-dida como uma maneira que os indivíduos encontram de moldar melhor seus interesses e de tomar consciência mais clara de suas necessidades, assim como de se aproximar das preocupações e dos problemas que afli-gem aos seus semelhantes. O procedimento democrático não é tido como uma instância exclusivamente formal, mas implica, também, uma forma de justiça ou equidade na distribuição dos recursos de poder. Nas palavras de Robert Dahl – que nos seus últimos escritos vem aderir com maior força a esta linha de pensamento –,

[…] o direito ao autogoverno não é meramente um processo, porque é também uma classe importante de procedimento de justiça distributiva, já que contribui para determinar a dis-tribuição de recursos – decisivos – de poder e de autoridade,

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influenciando assim na distribuição de todos os outros recur-sos (DAHL, 1993, p. 211-212).

Os participacionistas não se contentam com que a democracia se resuma ao comparecimento às urnas a cada dois, três ou quatro anos. Ambicionam atividades mais comprometidas, aspiram a estabelecer a democracia direta em diversas esferas e atividades. Procuram maximizar as oportunidades de todos os cidadãos em intervir, por eles mesmos, na adoção das decisões que afetam suas vidas, e em todas as discussões e deliberações que levem à formulação e à implementação de tais decisões. Enfatizam a necessidade de que as mulheres e homens que vivem em uma democracia participativa possam alcançar um forte sentido de comprometimento, que adquiram a noção de fazer parte de um projeto comum, que sintam que contribuíram à sua elaboração, que compartilhem objetivos e metas, que alcancem um espírito de identificação com seus pares, que sejam mais abertos aos dese-jos de seus semelhantes. Nas palavras de um comentarista:

[…] aqueles que tratam da “democracia participativa” buscam maximizar as oportunidades para que todos os cidadãos pos-sam fazer parte do processo de tomada de decisões que afetam suas vidas, e obviamente em todas as deliberações e atividades coletivas que levam a essas decisões […] “participação signifi-cativa” pode ser definida como aquela que acontece quando a pessoa tem a sensação de que seus esforços se enquadram den-tro de um plano mais geral, quando se identifica com a con-quista dos objetivos, e quando tem um interesse nos resultados gerais de um empreendimento (PENNOCK, 1979, p. 440).

O fato de tomar parte, de forma pessoal, do processo de decisões que têm relação direta com suas vidas faria com que as pessoas se vissem estimula-das a estar mais atentas aos assuntos públicos, mais e melhor informadas, motivadas a alcançar um maior grau de responsabilidade por suas ações políticas e pelas consequências que derivem destas,

[…] se as pessoas se envolverem ativamente nos processos governamentais, se sentirão motivadas a obter maior quan-tidade de informação, melhor e mais coerente a respeito dos assuntos públicos. Além disto, ao se sentirem mais responsá-veis pelas suas ações políticas e as consequências destas, seus desejos egoístas tenderão a ser crescentemente moderados por uma preocupação moral pelo bem-estar dos outros, isto fora

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1 democracia participativa

uma consciência mais aguda dos seus próprios e verdadeiros interesses (PENNOCK, 1979, p. 442).

Citando a Mark Warren, outro autor que se dedicou a comentar, a partir de um apoio crítico, este tipo de projetos:

[…] outorgando poderes mais amplos aos indivíduos, espe-cialmente nas instituições que afetam sua vida quotidiana de modo mais direto, suas experiências teriam efeitos transforma-dores. Os indivíduos tornar-se-iam mais cívicos, mais toleran-tes, mais conhecedores, mais preocupados pelos interesses dos outros e mais sagazes com relação a seus próprios interesses [...] instituições e processos de tomada de decisões radicalmente democráticos tenderiam a gerar novas formas de solidariedade, cooperação e laços cívicos (WARREN, 1996, p. 241).

A democracia, em um formato participativo, teria um efeito transforma-dor do próprio ser, do indivíduo comprometido nos assuntos comuns.

Em geral, todos os pensadores que se identificam com esta corrente de ideias ressaltam os efeitos benéficos da participação sobre o participante, que contribuiria para o desenvolvimento moral e intelectual individual, como já dissera John Stuart Mill – tomado por muitos, curiosamente, como uma referência iniludível quando se discute sobre temas relaciona-dos com a democracia participativa. O cidadão sentiria que sua opinião conta, que sua participação vale, e conseguiria apreciá-la e vê-la traduzida em frutos concretos. O cidadão, ao participar, incrementaria o próprio sentido de dignidade e de valor moral que tem por si mesmo. A partici-pação popular nas decisões coletivas permitiria um maior controle sobre as circunstâncias da própria vida e as decisões que afetam ao conjunto da coletividade. Um indivíduo que não participa do poder, que não toma parte no processo de elaboração das decisões que terão consequências sobre sua vida, em contrapartida, se tornaria um ser apático, insensível às necessidades de seus congêneres, se fecharia sobre si mesmo e incorreria em atitudes de índole individualista ou egoísta. Como diz Warren (1996), a democracia é precária demais quando depende apenas das apreciações e decisões tomadas por indivíduos isolados, como de fato acontece nas democracias liberais contemporâneas.

David Held, citando o próprio Mill, resume do seguinte modo os aspectos básicos da proposta participacionista:

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[…] sem uma oportunidade de participar na regulamentação dos assuntos nos quais se tem interesse, é difícil descobrir as próprias necessidades e desejos, chegar a julgamentos com-provados e testados e desenvolver a excelência mental do tipo intelectual, prático e moral. O envolvimento ativo na deter-minação das condições da existência pessoal é o mecanismo básico para o cultivo da razão humana e do desenvolvimento moral. A justiça social seria violada porque cada pessoa pode defender seus próprios direitos e interesses melhor do que qualquer “representante” não selecionado pode e tem a pro-babilidade de poder. A melhor proteção contra o desrespeito aos direitos de um individuo é que participe rotineiramente da articulação dos mesmos. Finalmente, quando as pessoas estão engajadas na resolução de problemas que os afetam ou à coleti-vidade como um todo, são liberadas energias que aumentam a probabilidade da criação de soluções imaginativas e estratégias de sucesso. Resumindo, a participação na vida social e pública corrói a passividade e aumenta a prosperidade geral “em pro-porção à quantidade e variedade de energias pessoais envolvi-das em promovê-la” (HELD, 1994, p. 80-81).

Nesta mesma linha, Held também sustenta que

[…] a participação na vida política é necessária não apenas para a proteção dos interesses dos indivíduos, mas também para a criação de um corpo de cidadãos informado, comprometido e em desenvolvimento. O envolvimento político é essencial para a “mais elevada e harmoniosa” expansão das capacidades indi-viduais (HELD, 1994, p. 93).

Os participacionistas estimam que a definição do que se entende por polí-tica deveria alongar-se, superando as fronteiras convencionais e gerando, desta maneira, legitimidade para a luta por relações mais justas, humanas e igualitárias em outras esferas tradicionalmente tidas como não políticas, tais como a família, o escritório, a fábrica, a escola, a administração, as forças armadas ou a vizinhança. A própria definição do que é político deveria ser submetida a debate, tornar-se objeto central da discussão polí-tica. E assim estes autores chegam, em alguns casos, até limites outrora infranqueáveis, ao assumirem como própria à postura sustentada pelos movimentos de mulheres, os quais, na sua tentativa de sacudir os padrões sexistas existentes em nossas sociedades, levantam a bandeira de “o pessoal é político”, buscando estender a democracia a âmbitos até então vistos

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1 democracia participativa

como “privados”. Ao redesenhar o que se considera político, como assinala Anne Phillips (1993), dão um novo tratamento às esferas econômica e social, levam a democracia a novas arenas de poder. Incluem, na busca do controle sobre cada aspecto da vida quotidiana, a eliminação da desigual-dade doméstica, questões de identidade, o controle sobre a sexualidade por parte das mulheres, mudanças na representação cultural, o controle comunitário sobre as instituições do Estado de Bem-estar Social e uma maior equidade no acesso aos recursos públicos.

A ênfase dada à necessidade de outorgar oportunidades aos indivíduos de decidir sobre questões nas quais realmente estejam interessados, sobre assuntos concretos que os afetem de maneira direta em sua vida quoti-diana, fica claramente manifestada nas palavras de Carole Pateman, quando sustenta:

[…] a indústria e outras esferas fornecem áreas alternativas, onde o indivíduo pode participar na tomada de decisões sobre assuntos dos quais ele tem experiência direta, quotidiana, de modo que quando nos referimos a uma “democracia participa-tiva” estamos indicando algo muito mais amplo do que uma série de “arranjos institucionais” a nível nacional (PATEMAN, 1992, p. 52).

Para a professora britânica, a indústria é a mais política de todas as áreas nas quais os indivíduos se inter-relacionam, e pode permitir, por suas dimensões, a participação direta dos interessados. A participação tanto mais intensa seria quanto mais relacionada estivesse com os assuntos que afetam diretamente a vida das pessoas.

Os autores citados consideram que a participação nos espaços onde os indivíduos passam a maior parte do seu tempo lhes permitiria adquirir um novo sentido de eficácia política e de potencial das suas capacidades. Estimularia a capacidade de pensar, de sentir e de atuar dos indivíduos e aguçaria o sentido de dignidade, independência e respeito pelos outros. Ao tomar consciência dos efeitos transformadores que derivam da sua parti-cipação, as pessoas passariam por um processo educativo e de socialização que as prepararia para se envolver e comprometer, posteriormente, tam-bém em outros espaços.

O desejo de participação, baseado na própria experiência dela, pode muito bem transferir-se do local de trabalho para áreas políticas mais amplas. Os que demonstraram sua competência

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num dos tipos de participação, e obtiveram confiança de que podem ser eficazes, serão menos deslocados pelas forças que os têm mantido apáticos, mais capazes de raciocinar a maior dis-tância política dos resultados, e mais aptos a perceber a impor-tância das decisões a distâncias maiores de seus interesses mais imediatos (MACPHERSON, 1978, p. 107).

Em suma, as pessoas se capacitariam para julgar melhor, por exemplo, a conduta de seus representantes nos órgãos legislativos, e se tornariam mais preparadas para exigir-lhes uma atuação e rendição de contas mais responsáveis.

Iris Marion Young – cuja obra será objeto de análise no próximo capítulo – considera, referindo-se à realidade que vivenciam as sociedades contem-porâneas, que “[…] a maioria das pessoas nestas sociedades não participa regularmente na tomada de decisões que afetam suas condições de vida e suas ações, e neste sentido a maioria das pessoas não conta com um poder significativo” (YOUNG, 1990, p. 56). A impotência política, falta de autoridade e de status se traduziriam em uma perda de autoestima e na inibição do desenvolvimento das próprias capacidades. O que explica que, para ela, a democracia no local de trabalho seja um requisito iniludí-vel para conseguir avançar na democratização de outras esferas, incluída a governamental: governos democráticos e locais de trabalho democráti-cos se reforçariam mutuamente. “A participação na tomada de decisões no local de trabalho contribui para o desenvolvimento do interesse e a capacidade para a tomada de decisões na cidade e no país” (YOUNG, 1990, p. 223). Peter Bachrach, continuando nesta mesma linha argumen-tativa, pergunta se o desinteresse e a indiferença pelos assuntos políticos não diminuiria sensivelmente “[…] caso os setores políticos que ganha-rem reconhecimento como tais fossem a fábrica, o escritório e a empresa” (BACHRACH, 1973, p. 160), destacando que “[…] é ali onde se revela plenamente [...] em todo seu horror, a dominação do homem pelo homem, e é ali, consequentemente, onde deve se estabelecer e colocar em prática a democracia” (BACHRACH, 1973, p. 160). Agregando, igualmente, que

[…] a educação política torna-se mais eficaz no plano em que desafia o indivíduo a cooperar na solução dos problemas concretos que afetam a ele e sua comunidade. No passado, a assembleia popular da Nova Inglaterra desempenhou, ideal-mente, esta tarefa; nos Estados Unidos do século XX pode

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1 democracia participativa

cumpri-la eficazmente a comunidade fabril (BACHRACH, 1973, p. 160-161).

A meta principal dos defensores da democracia participativa é encontrar um conceito novo e mais amplo de cidadania; um conceito que permita impulsionar a desconcentração do poder político e que faça ingressar o homem comum no processo de tomada de decisões, na medida em que este tipo de democracia pressupõe, como assinalam Cook e Morgan (1971), a descentralização do poder que leve ao envolvimento direto das pessoas comuns no processo de tomada de decisões. Os participacionistas querem romper com o exclusivo monopólio dos representantes e dos espe-cialistas designados por estes últimos, descentralizando ou dispersando o locus de tomada de decisões relevantes para a vida dos indivíduos em uma variedade de novos espaços e esferas. Aspiram levar a autoridade a um plano mais próximo dos diretamente afetados, a âmbitos onde os indivíduos possam participar de forma direta, e com pleno conhecimento de causa, sobre os assuntos que nutrem imediata relação com suas vidas quotidianas. Procuram generalizar o direito da sociedade de decidir sobre seu próprio destino, por meio de seu efetivo autogoverno. O objetivo dos participacionistas consiste em multiplicar as práticas democráticas, insti-tucionalizando-as dentro de uma maior diversidade de relações sociais, dentro de novos âmbitos e contextos: instituições educativas, instituições culturais, serviços de saúde, agências de bem-estar e serviços sociais, cen-tros de pesquisa científica, meios de comunicação, entidades esportivas, organizações religiosas, instituições de caridade etc. Também aludem à necessidade de democratizar a família, o cuidado e educação dos filhos e as regras de convivência no lar, para criar, deste modo, as condições para um pleno autodesenvolvimento individual.

A democracia participativa motivaria os participantes a adquirir informa-ção mais abundante, completa e coerente sobre os assuntos públicos. Os participantes se inteirariam, desta forma, da existência de novas soluções, de possíveis respostas alternativas para os problemas que os afligem, esta-riam melhor equipados para fazer eleições mais racionais no momento de ter que optar entre um ou outro projeto de política pública. A mudança benéfica na psique dos indivíduos poderia ajudar, também, para desterrar definitivamente os males políticos próprios de nossas sociedades,

[…] além da melhora do participante, em matéria de conhe-cimento referente à participação direta, também pode produ-zir mudanças benéficas em atitudes e valores. Na medida em

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que supera a síndrome do desamparo e da ignorância, também pode levar a superar o mal-estar político do homem moderno: o seu cinismo político, sua alienação e anomia (COOK; MORGAN, 1971, p. 9).

Robert Dahl (1993), em Democracy and its critics, afirma que a participa-ção poderia facilitar o desenvolvimento individual e social dos cidadãos e permitir-lhes proteger e promover melhor seus principais direitos, interes-ses e inquietudes.

E além destas mudanças e transformações nos indivíduos, na forma de pensar destas mulheres e homens comuns que passam a tomar em suas próprias mãos as decisões que construirão seus destinos, a participação direta das pessoas, para muitos destes teóricos, poderia contribuir também para gerar melhores decisões. As políticas adotadas através da participa-ção de todos os interessados seriam intrinsecamente mais valiosas, pois se haveria contemplado maior quantidade de interesses em jogo – operando com mais e melhores controles –, surgiriam depois de ter-se escutado mais vozes e opiniões e maior quantidade de posições, e assim seriam resultado de um debate social mais amplo, rico e profundo – ponto fundamental para os defensores da democracia deliberativa, que são objeto de análise do próximo capítulo.

Nos anos sessenta do século passado predominava um sólido convenci-mento de que existiria um círculo virtuoso que levaria a que a própria participação, uma vez posta em ação, geraria ainda maiores graus de inte-resse e comprometimento pelos assuntos comuns, negando explicitamente argumentações como as apresentadas por Schumpeter (1961) ou Sartori (1994), os quais sustentam a tese do caráter irremediável e inevitável da apatia cidadã nas sociedades contemporâneas. A um maior interesse da cidadania pelos temas compartilhados, sucederia uma participação mais intensa, contínua e comprometida, e a esta seguiria um novo aumento na informação e conhecimento, um renovado interesse e uma melhor pre-disposição e um mais profundo sentimento de solidariedade para se fazer cargo da adoção de decisões que possam afetar as pessoas em sua vida coletiva.

Crawford Macpherson, referindo-se às democracias liberais ocidentais, depois de esgotada a euforia inicial e rondando os finais da década de 1970, continuava ostentando esta postura otimista. Via com boas perspec-tivas o processo de profundização da consciência de classe entre os setores

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1 democracia participativa

trabalhadores e o fortalecimento dos novos e velhos movimentos sociais, fatores que redundariam em um considerável aumento e melhoria na qua-lidade da participação. Ao conquistar esse salto, tanto quantitativo como na substância do conteúdo da participação cidadã, entrar-se-ia, segundo Macpherson, nesse círculo virtuoso autoreprodutivo tão esperado. Haveria uma

[…] consciência cada vez maior dos ônus do crescimento eco-nômico; dúvidas crescentes quanto à capacidade do capita-lismo financeiro de satisfazer as expectativas do consumidor enquanto reproduzindo a desigualdade; crescente consciência dos custos da apatia política [...] cada um desses pontos está contribuindo para possivelmente atingir as condições indis-pensáveis para a democracia de participação: juntos, eles con-duzem a um declínio da consciência de consumidor, a uma diminuição da desigualdade de classes, e ao aumento na par-ticipação política atual. As perspectivas para uma sociedade mais democrática não são, portanto, inteiramente infundadas. O movimento nesse sentido exigirá e estimulará um grau cres-cente de participação. E isso agora parece pertencer ao reino do possível (MACPHERSON, 1978, p. 109).

Os pensadores participacionistas, baseando-se nessa sólida confiança no futuro, procuram reverter a tese produzida pelos defensores do elitismo--democrático, para os quais, segundo Peter Bachrach, “[…] são as massas, não as elites, as que se tornaram potenciais ameaças para o sistema, e as eli-tes, não as massas, as que passaram a ser suas defensoras” (BACHRACH, 1973, p. 29). Os promotores da democracia participativa buscam adver-tir que as maiores ameaças contra o sistema derivariam de sua elitização, como já assinalaram os teóricos clássicos da democracia: é a concentração de poder, e não sua redistribuição a estratos mais amplos e de forma mais igualitária, o que poderá levar ao esvaziamento ou extinção da democracia.

Há poucos motivos para supor que as elites estariam mais dis-postas a defender direitos de procedimento a risco de colocar em perigo seu próprio status, prestígio e poder pessoal [...] pen-sar que existe harmonia entre os interesses criados das elites e o bom funcionamento da democracia é privar a esta última da audácia e da capacidade imaginativa que a caracterizou no passado [...] significaria limitar a expansão da democracia a um âmbito que não constitua uma ameaça para os interesses

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fundamentais das elites dominantes (BACHRACH, 1973, p. 164-165).

A fim de ilustrar o que foi dito até aqui, valem a pena uma remissão a algumas passagens do livro Rethinking Democracy, de Carol Gould (1988). Gould, em sua tentativa de assentar as bases normativas e oferecer os argu-mentos filosóficos para uma nova concepção da democracia, analisa as propostas alternativas que serviram de inspiração para o desenvolvimento de suas próprias teses e ideias, reconhecendo assim a influência, entre outras, da obra de Macpherson em seus textos. O professor canadense propõe, segundo Gould, o poder de desenvolvimento ou habilidade para exercer e expandir as capacidades individuais como objetivo central de uma sociedade democrática, o qual implicaria o direito igual e efetivo para todos os indivíduos de viver tão plenamente e humanamente como eles desejassem. Critério que seria semelhante à concepção de autodesenvolvi-mento que ela defende: a liberdade individual plena em sentido positivo. De acordo com sua própria definição:

O autodesenvolvimento implica o processo de tornar-se concretamente a pessoa que cada um escolhe ser através da realização daquelas ações que expressam os próprios fins e necessidades. Isso não quer dizer, no entanto, que as pessoas nessa atividade realizam qualquer natureza ou potencialidades fixas, inatas ou predeterminadas, mas que elas criam ou desen-volvem suas próprias personalidades através dessa atividade [...] Este processo de autodesenvolvimento consiste, portanto, na formação de novas capacidades e na elaboração ou enrique-cimento das capacidades existentes [...] Neste desenvolvimento de capacidades, o indivíduo pode alcançar uma maior liber-dade de ação, tendo um leque mais amplo de escolhas que se abrem para a sua ação e para o seu poder de realizar os seus fins, o que por sua vez o leva a aumentar suas competências (GOULD, 1988, p. 47).

Para Gould, o pleno desenvolvimento da pessoa inclui a possibilidade de compartilhar atividades e ações com os outros, já que os projetos de cada um não poderiam conceber-se em termos estritamente individuais. Tais projetos, em geral, terão também sua dimensão social, podem implicar não apenas mudanças internas no indivíduo, mas também no seu entorno social, no ambiente externo. Assim se atingiria o desenvolvimento da pes-soa como um todo, integrando uma variedade de intenções e de ações, e

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a formação de seu caráter e personalidade. Ela resume seu postulado no seguinte princípio democrático:

Cada pessoa que se engaja em uma atividade comum com os outros tem o mesmo direito de participar na tomada de deci-sões relativas a essa atividade. Este direito de participação não se aplica apenas ao domínio da política, mas a atividades sociais e econômicas também. O alcance desse processo de tomada de decisões inclui tanto a determinação dos fins da ati-vidade comum quanto as formas em que estes serão realizados [...] Pois se um indivíduo tivesse que fazer parte de uma ativi-dade comum sem ter qualquer papel no processo de tomada de decisões sobre o assunto e sob a direção de outro, então isso não seria uma atividade de autodesenvolvimento, uma vez que esse autodesenvolvimento requer determinar o curso da própria atividade (GOULD, 1988, p. 84-85).

Postulado semelhante ao que David Held denomina como princípio de autonomia democrática, segundo o qual,

[…] os indivíduos deveriam ser livres e iguais na determinação das condições de suas próprias vidas; ou seja, eles deveriam gozar de direitos iguais (e, consequentemente, de obrigações iguais) para especificar a estrutura que gera e limita as opor-tunidades disponíveis para eles, desde que não definam esta estrutura de forma a negar os direitos de outros (HELD, 1994, p. 261).

Indubitavelmente, para pôr em funcionamento uma democracia substan-cialmente participativa, novas instituições deveriam ser criadas. Os auto-res ensaiam algumas propostas, com distinto grau de detalhe e elaboração. Muitos deles põem praticamente toda a ênfase na proposta de novas formas de relacionamento laboral, no desenho de novos espaços para os trabalha-dores tomarem decisões sobre suas condições de trabalho. Mencionam ferramentas tais como a codeterminação, onde os leigos passariam a com-partilhar o poder no processo de tomada de decisões com os especialistas, para o qual novos espaços e mecanismos institucionais deveriam ser pen-sados. Também propõem vias que levem à autodeterminação para certas questões, deixando ao homem e mulher comum maior liberdade e espaço para tomar decisões por si próprios, e de forma exclusiva, em assuntos que lhes digam respeito de maneira direta ou que os afetem em suas vidas quo-tidianas. Mecanismos semelhantes são sugeridos para serem aplicados nas

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escolas e universidades por alunos e professores, para que, por meio destes, possam tomar parte na adoção de decisões sobre os métodos de ensino, conteúdos, programas e outros aspectos da vida acadêmica. Assim mesmo formulam-se opções deste tipo para os grupos étnicos discriminados, para as mulheres e, em geral, para todas as minorias oprimidas.

Entretanto, são poucos os teóricos que se arriscam a esboçar uma pro-posta de reelaboração geral das instituições políticas estatais. Um deles é Macpherson, quem imagina um sistema de conselhos piramidal, com instâncias de democracia direta na base, e processos e mecanismos de dele-gação para os níveis superiores. Tal sistema haveria de contar com métodos fortes de responsabilização e de revogabilidade dos mandatos. O critério que propõe o professor canadense para uma estruturação governamental destas características seria territorial, começando pelas unidades vizinhais e ascendendo gradativamente até chegar a um grande órgão nacional. Segundo Chantal Mouffe (1993), as opiniões de Macpherson sobre esta matéria seriam bastante ambíguas, pois o modelo institucional que ima-gina pressuporia uma noção altamente perigosa de democracia partici-pativa, ao não tomar em conta a crucial importância para a moderna democracia das instituições políticas liberais. Mouffe diz que Norberto Bobbio estabeleceria os corretivos necessários à proposta de Macpherson, ao advertir que não se pode esperar a emergência de uma forma completa-mente nova de democracia, e que as instituições liberais deverão, inevita-velmente, fazer parte de qualquer modelo alternativo.

David Held também sugere algumas linhas a partir das quais se pensa as possibilidades institucionais para um novo modelo de democracia. Assim ele promove:

[…] participação direta dos cidadãos na regulamentação de instituições-chave da sociedade, inclusive o local de trabalho e a comunidade local; reorganização do sistema partidário tor-nando os líderes dos partidos diretamente responsáveis perante seus membros; operação de “partidos participativos” em uma estrutura parlamentar ou congressista; manutenção de um sistema institucional aberto para assegurar a possibilidade de experimentação com formas políticas (HELD, 1994, p. 236).

Entretanto, Held reconhece que falta desenvolver mais e melhor as ideias, admite que seria necessária uma concepção mais detalhada dos arranjos

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institucionais orientados a garantir um novo modelo de democracia e que esta não foi ainda alcançada, e agrega também que:

[…] a participação e o controle diretos sobre elementos locais imediatos, complementados por competição entre partidos e grupos de interesse nos assuntos governamentais, podem pro-mover, de forma mais realista, os princípios da democracia participativa (HELD, 1984, p. 234-235).

Como aponta um comentarista da obra do professor Macpherson: “[…] falta uma atenção mais detalhada para os aspectos práticos [...] Macpherson também não consegue explicar o processo de mudança de uma socie-dade liberal capitalista para um outro tipo de sociedade mais satisfatória” (MORRICE, 1994, p. 660), crítica que bem pode ser estendida, de um modo geral, também ao restante dos autores participacionistas.

Carol Gould também enumera os caminhos que deveriam abrir-se em prol de uma participação política mais ampla: organizações locais não partidá-rias no âmbito da vizinhança ou da comunidade que tomem decisões por si mesmas sobre um amplo leque de assuntos, democratização da eleição de candidatos, democratização dos partidos políticos etc. Assim mesmo, Gould (1988) apela para o uso da tecnologia eletrônica, a fim de tornar possíveis mecanismos de consulta permanente à cidadania e uma melhor e maior difusão da informação. A autora põe muita ênfase na necessidade de que os representantes sejam responsáveis perante seu eleitorado, através de eleições frequentes, de procedimentos de revogatória, de consultas popu-lares e referendos sobre as decisões mais importantes.

Para Ian Budge (1993; 1996), o nível de educação, a sofisticação e a civi-lidade dos indivíduos aumentou bastante, o que permitiria pensar na necessária renovação e reforma das instituições políticas, adaptando-as às condições modernas e deixando para trás as premissas do século XIX sobre as que ainda repousam. Segundo Budge, as instituições centrais da democracia já não seriam mais os parlamentos, mas os partidos políticos, os quais teriam uma atuação que iria além do seu papel de intermediários entre a população e o governo. Para ele, a partir de um enfoque mais pragmático da democracia direta, os partidos continuariam a funcionar como iniciadores de políticas e corpos que clarificam. A mudança fun-damental estaria dada no fato de que os partidos viriam a guiar e orga-nizar diretamente o voto popular, e não mais o voto dos representantes no parlamento. O governo de partidos submeteria os atos legislativos e

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outras decisões sobre assuntos políticos ao voto popular, tal como se faz nas democracias contemporâneas com o voto das câmaras legislativas.

Outros autores também outorgam grande importância ao fortalecimento dos partidos políticos no contexto de um modelo democrático alternativo. Chantal Mouffe considera que os partidos poderiam desempenhar um papel relevante, dando expressão à divisão social e ao conflito de interes-ses (MOUFFE, 1993, p. 5). Por sua vez Held, resenhando a proposta de Macpherson, escreve:

Macpherson argumenta a favor da transformação baseada num sistema que combine partidos competitivos e organizações de democracia direta [...] O próprio sistema deveria, contudo, ser reorganizado com base em princípios menos hierárquicos, tor-nando os administradores e gerentes políticos mais responsá-veis perante os membros das organizações que representam. Uma base substancial seria criada para a democracia partici-pativa se os partidos fossem democratizados de acordo com os princípios e procedimentos de democracia direta e se estes “partidos genuinamente participativos” operassem dentro de uma estrutura parlamentar ou congressista complementada e limitada por organizações plenamente autoadministradas no local de trabalho e nas comunidades locais (HELD, 1994, p. 232).

Assunto fundamental, assim mesmo, é o das instituições que ajudariam no processo de educação dos futuros cidadãos. Em favor da construção de um modelo democrático participativo, os autores sob análise defendem um tipo de educação que estimule nos indivíduos, já desde seus primeiros anos de vida, o desejo de participar nos assuntos públicos, assim como fizesse nascer neles o respeito pelas preferências e necessidades de seus pares e um forte sentido de tolerância face às diferenças. Para Amy Gutmann, “[…] a educação cívica deve servir para educar todas as crianças a apreciar o valor da tolerância pública” (GUTMANN, 1995, p. 559), já que, em sentido contrário, “[…] os cidadãos que são educados para assumir que a sua posi-ção política é a única razoável acabam desgastando a base de legitimidade para um governo democrático liberal” (GUTMANN, 1995, p. 579).

Ensinar a importância da tolerância, do respeito mútuo e da deliberação não homogeneíza os filhos nem leva a negar o valor das genuínas diferenças que estão associadas a diversas formas de vida individual e comunitária. Ao contrário, o ensino destas

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virtudes cívicas possibilita e estimula a mais ampla diversidade social que é coerente com a permanente busca da justiça demo-crático-liberal (GUTMANN, 1995, p. 579).

Nesta perspectiva, o processo educativo seria fundamental dado que, como afirma Carol Gould (1988), determinados tipos de caráter ou perso-nalidade levariam a uma maior participação dos indivíduos e a uma maior assunção de responsabilidades na adoção das decisões coletivas. Para esta autora (GOULD, 1988), haveria certas características relevantes que defi-niriam uma personalidade democrática, como por exemplo: a autoativi-dade, o fato de ter a capacidade racional de iniciativa, o fato de contar com uma forte disposição à reciprocidade (disposição a entender o outro, a respeitá-lo e esperar que o outro atue de forma equivalente), sentido de reconhecimento, espírito de tolerância, de flexibilidade e de mente aberta, compromisso e responsabilidade, comunicatividade, sentimento comuni-tário, possibilidade de levar uma vida compartilhada, e disposição a ofe-recer assistência e cooperação. Todos estes aspectos e atitudes, ao serem estimulados na vida dos indivíduos desde cedo, facilitariam em alto grau o desenvolvimento de uma sólida democracia participativa e dariam con-teúdo a suas instituições, as quais, por sua vez, garantiriam a continuação e o crescimento de tais sentimentos nos participantes.

ii

Ao submeter a exame estas propostas, muitos são os pontos frágeis, as dúvidas que surgem e os possíveis questionamentos. Oferece-se, a seguir, uma rápida nomina dos assuntos mais destacados na literatura para, depois, poder analisar com maior vagar alguns deles.

Certos críticos têm mostrado como uma participação mais ampla pode-ria ajudar a legitimar o sistema político atual, fechando a possibilidade para mudanças mais profundas, ou, no mínimo, complicando a realização de mudanças estruturais no plano político e social. Ditos comentaristas ressaltam ademais que, desta maneira, pode-se incorrer em uma forte contradição com as motivações radicais que inspiram as vertentes parti-cipacionistas da democracia, com as aspirações de transformações sociais revolucionárias e os resultados que se costumam postular e se esperam

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alcançar. Nesse sentido, Ronald Pennock (1979), por exemplo, destaca que o produto ou resultados governamentais se tornariam mais aceitáveis e legitimados, sendo que é algo que os participacionistas, em geral, não destacam o suficiente. Cook e Morgan (1971) também assinalam que para muitos que pretendem seguir a linha de pensamento de John Stuart Mill, a participação ajudaria a formar atitudes individuais mais orientadas à sociedade, contribuindo para aumentar a legitimidade do sistema político. Entretanto, estes autores observam que, para outros que se opõem a este tipo de raciocínio, a participação deveria servir como saudável escola de subversão da ordem existente, como ferramenta para modificar a forma de pensar das pessoas ou como instrumento que ajudasse a superar o sistema vigente e não a legitimá-lo. Poucos são os participacionistas que tornam explícito o risco de que suas teorizações possam dar lugar a derivações ambíguas, ou até diretamente antagônicas com as intenções originais.

Outro problema que é mencionado com bastante frequência pelos que se dedicam ao estudo destes temas é o perigo de cair em uma trivialização dos assuntos tratados, em uma prejudicial paroquialização das questões. Pennock (1979) argumenta que se for reduzida exageradamente a escala, os assuntos poderiam tornar-se tão banais que a maioria perderia o interesse. Cook e Morgan, na mesma linha, alegam que a democracia participativa poderia fazer proliferar unidades de tomada de decisões com interesses for-temente paroquiais, absorvendo toda a atenção no trivial à custa daquilo que realmente importa. Correr-se-ia o risco, insistem estes comentaristas, de ter unidades democrático-participativas que transformassem em épico o trivial, ou que estivessem preocupadas com assuntos de menores con-sequências, em detrimento de uma atenção inadequada para os grandes temas. Como sustentam alguns críticos da política fomentada por certos círculos feministas, este tipo de atitudes em relação à escala dos temas a considerar pode servir para legitimar a retirada das instâncias de discus-são dos grandes assuntos políticos (PHILLIPS, 1996). Inadequadamente formuladas, estas propostas podem chegar a fortalecer a tese do encerra-mento no pequeno mundo e a gerar um considerável desinteresse pelo que se passa além da porta do lar, da fábrica ou dos limites do município.

Aponta-se, também, o perigo de cair, ainda que indiretamente, em um processo não desejado de elitização dentro das novas esferas de decisão a serem criadas. Por uma questão aritmética elementar, poderiam aca-bar autoselecionando-se poucos. A trivialização dos temas poderia levar a que a maioria perdesse interesse e as minorias manejassem tudo em

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nome dos demais, arrogando-se uma representação que na verdade não têm (PENNOCK, 1979). A forma em que as decisões seriam tomadas nas novas instâncias não foi muito estudada, nem mereceu suficiente aten-ção por parte dos promotores de uma democracia com direta participação popular. Conforme advertem Cook e Morgan (1971) e Jane Mansbridge (1983), sob certas circunstâncias, os espaços onde operaria a democracia participativa poderiam chegar a resultar extremamente antidemocráticos, além de ineficientes, demorados e incompetentes.

Existiria o risco de incorrer em uma tirania em pequena escala. Os teó-ricos participacionistas, com frequência, menosprezaram e menosprezam o valor dos procedimentos formais de tomada de decisões, dando uma ênfase exagerada à espontaneidade e ao caráter não estruturado do pro-cesso de formulação das políticas públicas, ressaltando a importância da vontade aberta, livre e amorfa dos participantes. Como bem destacam Cook e Morgan (1971), não são usuais as regras explícitas de ingresso, as regras eleitorais e os procedimentos do tipo parlamentário nesta classe de argumentações. Em geral prevalece a ideia de que as discussões não estruturadas, as resoluções e as votações gerarão a verdadeira expressão da vontade das pessoas. James Bohman (1996) – autor cuja obra é exa-minada no próximo capítulo – sugere que muitas teorias participacionis-tas deveriam revisar seu anti-institucionalismo e sua crença excessiva no hiper-racionalismo da tomada de decisões políticas, para não acabar outor-gando legitimidade, pela via da participação, a uma realidade profunda-mente antidemocrática.

Problemas como este último, podem acabar fortalecendo as críticas que os defensores do modelo democrático elitista-competitivo fazem às perspec-tivas alternativas. Giovanni Sartori, por exemplo, apoiando-se em conclu-sões como as analisadas, afirma que:

[…] o teste democrático é o teste eleitoral, pois só as eleições manifestam um “consenso geral”, isto é, as opiniões de todo o povo, de todas as pessoas (que se dão ao trabalho de manifestar opiniões). Inversamente, as vozes que se fazem ouvir acima e além das eleições são as vozes da elite ou das minorias; são vozes de uma parcela do povo, em geral uma parcela muito pequena. E nem milhões de participantes de manifestações são o povo (pois muitos outros milhões de cidadãos ficam sem voz) […] Se a democracia garante – como realmente o faz – o direito de decidir o destino de todo o povo, então as opiniões

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que indicam um consenso geral ou, inversamente, uma dis-cordância generalizada em relação ao governo, são opiniões expressas pelos eleitores em geral nas eleições, e somente atra-vés de eleições (SARTORI, 1994, p. 126-127).

A democracia, segundo este autor, entendida sob uma forma mais radi-cal, poderia negar sua voz à maioria, degeneraria em um elitismo ainda mais acentuado daquele que se procura neutralizar, por meio da substi-tuição das elites existentes por contraelites. O participacionista acabaria convertendo-se, ele também, em elitista, dado que a participação intensa apenas seria possível em grupos pequenos. Para Sartori (1997), a democra-cia representativa, pelo contrário, garantiria que os moderados e passivos tivessem, ao menos, a oportunidade de opinar.

Outras questões que são objeto de insistentes comentários: como estabe-lecer qual seria a unidade adequada ou o contexto para cada tipo de deci-sões? Como determinar em que âmbitos a democracia participativa seria desejável ou relevante? Seria operativo um critério exclusivamente territo-rial para a criação de novas esferas de participação e adoção de decisões? Cook e Morgan (1971) sustentam que uma definição territorial poderia ter sentido para aqueles que vivem e trabalham em pequenas localidades ou em áreas rurais, mas pode não tê-lo para a grande maioria dos cidadãos de qualquer país industrializado: enormes contingentes cruzam diariamente os limites de seu espaço de residência para trabalhar, para fazer suas com-pras, para ocupar seu tempo de ócio e vários milhões de pessoas mudam de domicílio a cada ano.

Este tema da relação entre o tamanho da unidade de tomada de deci-sões, as oportunidades para que as pessoas realmente participem de forma direta e as possibilidades de adoção e implementação de políticas coerentes e compatíveis em espaços maiores seria fundamental para se pensar na via-bilidade dos modelos de democracia participativa que se propõem. Como apontam Cook e Morgan (1971) e Robert Dahl (1993), as pressões para manejar os assuntos sociais e políticos mais relevantes em unidades maio-res estão em crescimento. Em geral os grandes problemas que enfrenta a humanidade levam a subir a escala das unidades governamentais, mais do que a diminuí-la. Economia, meio ambiente, segurança nacional e sobrevivência dependeriam, em grau crescente, de forças e atores externos, situados além das fronteiras dos estados nacionais. A transnacionalização

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dos assuntos limitaria severamente a capacidade de ação dos cidadãos e de seus governos.

Nas páginas que se seguem examinam-se alguns pontos que deveriam considerar-se de primordial importância para o desenvolvimento de uma teoria ou modelo mais acabado que pugne por uma democracia genuina-mente participativa. Estes pontos podem ser agrupados ao redor de qua-tro questões: a) a análise das classes sociais, do conflito de classes e da propriedade dos meios de produção; b) a objetável relação que os teóricos participacionistas estabelecem entre a política local e a política nacional; c) a forma em que é analisada a questão da “complexidade” dos assuntos de governo; e, por último, um tema fundamental: d) a maneira em que os autores participacionistas encaram o fenômeno da apatia cidadã.

a) Classes sociais, luta de classes e propriedade dos meios de produção

No que se refere às classes sociais, o conflito de classes e a propriedade dos meios de produção, nem todos os participacionistas analisam estes temas com a profundidade suficiente. Assim, por exemplo, Carole Pateman (1992, p. 143, n. 1) afirma que “[…] pouco se disse a respeito da proprie-dade da indústria em um sistema participativo, uma vez que isso nos afas-taria muito de nosso tema principal”. Como pensar em uma democracia qualitativamente distinta e não tratar a questão central de quem será o detentor dos meios de produção? Não haverá, talvez, veladamente, uma definitiva resignação à manutenção do sistema capitalista? Seguindo Ellen Wood (2003) e Atilio Boron (1996), na sua crítica a posturas como as de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe – identificados com a corrente partici-pacionista –, é importante reafirmar que uma democracia radical não nos deveria levar a renunciar à superação do capitalismo. Caberia coincidir, também, com Barbara Epstein (1996) quando diz que o fato de pugnar pela dispersão da democracia em mais campos, esferas e espaços não deve implicar o abandono da luta pela democratização da grande política, nem o fim da luta pela construção do socialismo, como de fato vem aconte-cendo com muitos ex-revolucionários que não mais invocam o socialismo, optando por traçar como novo e supremo objetivo a conquista da demo-cracia radical. Como diz David Trend (1996b): a busca de uma democra-cia radical e plural não deve levar a minimizar a importância dos assuntos econômicos, a não se ocupar da redistribuição e da estrutura econômica e a dedicar-se tão somente ao sujeito e suas definições.

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Assim como a discussão da propriedade nem sempre aparece, as classes sociais e o conflito de classes tampouco estão suficientemente destacados pelos autores participacionistas. Supõem que por meio de simples arran-jos institucionais, e sem levar em conta a densidade das forças sociais em pugna, poderão transformar a democracia? O professor Macpherson reco-nhece que

[…] os expoentes da democracia desenvolvimentista no século XX foram ainda menos realistas que Mill quanto a isso: de modo geral, eles escreveram como se os problemas de clas-ses se houvessem dissipado, ou estivessem desaparecendo, cedendo lugar a diferenças pluralistas que eram não apenas mais controláveis como também positivamente benéficas (MACPHERSON, 1978, p. 54).

E ele aponta como pré-requisitos de uma democracia participativa “[…] a mudança da consciência do povo (ou da sua inconsciência) [e] uma grande diminuição da atual desigualdade social e econômica” (MACPHERSON, 1978, p. 102-103). Mas, apesar de sua correta percepção de que a demo-cracia requer mudanças econômicas profundas, como indica um comen-tarista da sua obra, “Macpherson raramente se refere à questão das classes sociais, se preocupando principalmente com o problema da garantia do máximo desenvolvimento individual” (MORRICE, 1994, p. 659). Ainda quando faz numerosas alusões sobre o tema em outras de suas obras (ver, por exemplo, The real world of democracy, 1968), C. B. Macpherson não alcança em sua análise um grau de desenvolvimento mais extenso e pro-fundo sobre este ponto.

Peter Bachrach, em contrapartida, dá uma importância maior ao tema, ainda que em um livro bastante posterior ao seu, já conhecido, The theory of democratic elitism: a critique (1973), onde sequer considerou a ques-tão. É apenas então no Power and Empowerment: A Radical Theory of Participatory Democracy (1992), escrito junto com Aryeh Botwinick, que Bachrach postula como essencial entender que a luta de classes é positiva para a democracia. Nas suas palavras:

A luta da classe trabalhadora, portanto, deve ser incentivada como uma forma de revitalizar a defeituosa política democrá-tica, promovendo o realinhamento dos partidos políticos em função das clivagens de classe, ampliando a participação cidadã e estimulando a sensibilização do público em torno de questões

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de interesse nacional (BACHRACH e BOTWINICK, 1992, p. X).

Destacando também, neste novo livro, que é fundamental limitar o poder das grandes corporações e politizar os trabalhadores, como formas de revitalizar e expandir a democracia política. Para os autores citados é imperioso, igualmente, propiciar coalizões entre estes últimos e outros grupos mobilizados, tais como as feministas, os ecologistas, os vizinhos e os lutadores pelos direitos civis. Em resposta às críticas sofridas por aqueles que se limitavam a estudos que não transcendiam as portas das fábricas, Bachrach e Botwinick alegam que seus objetivos são muito mais amplos do que a simples democratização da indústria. Seus objetivos implicam uma redistribuição do poder na sociedade em termos de classe, a substitui-ção de regras oligárquicas por regras democráticas em todas as esferas e a mudança das normas sociais que encerram um viés classista e favorecem a certos grupos privilegiados. Estes autores reafirmam, ademais, em nume-rosas oportunidades ao longo desta obra, que a luta de classes é uma forma democrática de mudança social. Como já fora assinalado em outros textos da nossa autoria (VITULLO, 2007a; 2007b), é importante entender que a luta de classes pode vir a facilitar a expansão e o fortalecimento da demo-cracia, ao contrário do que, em geral, argumentam aqueles que aderem à versão competitiva-elitista, para os quais qualquer conflito entre as classes colocaria em sério risco a sobrevivência do sistema democrático.

Evidentemente, para no mínimo pensar em uma democracia mais viva, mais forte, mais audaz, radical, profunda e participativa, deve-se consi-derar o conflito de classes, pois a democracia sob um sistema capitalista encontra sérias limitações que impedem sua expansão. Daria a impres-são de que certos autores insinuam uma democracia harmoniosa demais, como se os conflitos não fossem subsistir, ainda incluso em uma hipoté-tica, e por eles nem sempre imaginada, sociedade sem classes. Imaginar uma sociedade sem conflitos implicaria a eliminação de toda diferença. Como diz o pensador mexicano Carlos Pereyra (1988, p. 101): “[…] uma teoria da democracia que aposta a situações de harmonia universal se movimenta no vazio”. A democracia nunca poderá supor a ausência de disputas, de projetos ou visões discordantes; ao que pode e deverá aspirar é a encontrar formas e mecanismos pacíficos, justos e igualitários de resolver tais conflitos. O antagonismo apresenta um caráter irredutível. Na vida política sempre o interesse público é assunto de debate e um acordo final nunca poderá ser alcançado.

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Autores que dão lugar mais destacado a estes temas são Carol Gould, Samuel Bowles e Herbert Gintis. Gould (1988) propõe um modelo em que a democratização da esfera econômica é um dos elementos fundamen-tais. Tal modelo seria baseado na autogestão dos trabalhadores, na combi-nação de mecanismos de mercado, de funções de planificação e regulação, e em formas de redistribuição do ingresso. Para esta autora, a autogestão implicaria a propriedade do capital, o controle e a gestão de cada firma por aqueles que trabalham nela. Para Gould, deveria se dar maior ênfase ao estudo da esfera produtiva, e não apenas ao espaço da distribuição. A justiça na organização da produção seria consequência da autogestão dos trabalhadores na tomada direta de decisões econômicas no processo pro-dutivo, assunto que nem todos os participacionistas abordam desta forma.

Os trabalhadores, na autogestão da empresa, se ocupariam de questões de planificação e organização da produção ou da provisão de serviços, taxas de produtividade, distribuição de tarefas, horas de trabalho, disciplina, política de distribuição de ingressos e dividendos. Sem que isto implique, necessariamente, que todos os trabalhadores devam tomar parte em todas e cada uma das decisões que têm relação com a produção e venda dos produtos, pois certas tarefas e funções poderiam ser delegadas a diretores e gerentes que os próprios trabalhadores escolheriam:

É claro, então, que a autogestão do trabalhador como é aqui descrita envolve mais do que a participação dos trabalhadores nas decisões de gestão das corporações privadas. É entendido como o controle operário, isto é, envolvendo os direitos de pro-priedade, bem como os direitos de gestão. De tal forma, esta visão implica uma concepção de propriedade social ou coo-perativa dos meios de produção pelos trabalhadores, partici-pando de uma empresa (GOULD, 1988, p. 145).

Cabem alguns esclarecimentos: frente a eventuais críticas, é de desta-car que no modelo de Carol Gould não há espaço para a existência de um mercado de trabalho, o trabalho como mercadoria fica suprimido. Também cabe ressaltar a previsão que a autora realiza em relação às ques-tões sociais e econômicas mais amplas, que transcendem os limites da empresa, para as quais mecanismos de planejamento local, regional ou nacional – investimentos, tributação e Estado de Bem-estar, por exemplo – deveriam ser criados; mecanismos estes que envolveriam todos os inte-ressados, e não tão somente os trabalhadores. Tais assuntos fariam parte, deste modo, do processo político de tomada de decisões em um governo

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democrático. Através da regulação dos mercados e da criação de comissões de planejamento e de investimento – democraticamente representativas –, poderiam se assegurar os interesses sociais mais gerais, prevenir abusos no sistema mercantil, e atender certas necessidades sociais e políticas de pesquisa científica e inovação tecnológica.

No que se refere especificamente à atuação dos trabalhadores dentro das empresas, Gould distingue os seguintes pares de opções contrastantes:

Os trabalhadores apenas se têm direito a dar a sua opinião no processo de tomada de decisões que, em última análise, são formuladas por outros (isto é, o que foi chamado de “partici-pação dos trabalhadores”), ou têm um direito mais amplo para participar ativamente e de modo direto na tomada de deci-sões por si próprios ou através do direito de nomear e revogar os gestores (o que tem sido chamado de “controle operário”)? Qual é o locus desse processo de tomada de decisões? É no nível do mais imediato ou da menor unidade de trabalho ou comis-são de fábrica, ou é a nível da empresa? Ou ainda, tal processo de tomada de decisões está situado no plano da representação operária na indústria ou num processo geral de planejamento e tomada de decisões para o conjunto da economia nacional? (GOULD, 1988, p. 2-3).

A autora, evidentemente, defende uma visão ampla da participação ope-rária nas indústrias, com quotas importantes de poder de decisão tanto nas empresas, quanto em relação à capacidade real de opinião e resolução sobre os grandes assuntos econômicos nacionais. Porém não chega a defen-der de forma conclusiva a necessidade de terminar com o capitalismo nem a declarar a incompatibilidade essencial deste com a democracia radical.

Iris Young, em Justice and the Politics of Difference (1990) aponta em igual sentido:

As decisões básicas sobre a empresa devem ser tomadas por uma legislatura democraticamente eleita e responsável perante aqueles que a elegeram. Tais decisões básicas podem incluir o que vai ser produzido, ou que serviços serão prestados; o plano básico e a organização da produção dos processos de prestação de serviços, incluindo a estrutura básica da divisão do traba-lho; a estrutura salarial e de participação nos lucros, a estraté-gia de investimento de capital; o estabelecimento de estatuto de direitos sociais e de direitos básicos dos trabalhadores dentro

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da empresa, bem como os procedimentos para proteger tais direitos e a administração das disputas; e as regras básicas para a contratação e promoção, bem como os procedimentos para a escolha de representantes (YOUNG, 1990, p. 223).

E deixa claro que os trabalhadores precisam participar nas questões rela-cionadas com seu trabalho imediato e no meio em que o realizam, tor-nando suas vidas mais interessantes e brindando oportunidades para um melhor desenvolvimento de suas habilidades e capacidades. Young (1990) destaca, também, que a comunidade deveria ter seus representantes em todos aqueles assuntos que afetassem a vida social fora da empresa.

Voltando à objeção central feita a alguns dos autores participacionistas, cabe ressaltar, como o faz David Held (1994), que a transformação das relações capitalistas de produção e a eliminação da rígida divisão social do trabalho seriam requisitos fundamentais para o florescimento da demo-cracia, de modo tal que as pessoas pudessem participar plenamente na regulação da vida política, econômica e social. Bowles e Gintis, em igual sentido, procuram a progressiva extensão da capacidade das pessoas de governar suas vidas pessoais e histórias sociais, para o qual as instituições da economia capitalista teriam que ser superadas. “A assunção desse com-promisso requer o estabelecimento de uma ordem social democrática e a eliminação das instituições centrais da economia capitalista” (BOWLES e GINTIS, 1986, p. 3). Sem uma substancial redistribuição de poder eco-nômico, dificilmente pode prosperar qualquer projeto democrático parti-cipativo e radical.

b) Os participacionistas, a política local e a política nacional

O segundo tópico mencionado é o que se refere a como os participacionis-tas apresentam a relação entre os planos local e nacional, a relação entre o “próximo” e o “distante” da vida quotidiana das pessoas. Além das críticas à participação em pequena escala, esgrimidas por aqueles que integrariam a corrente do republicanismo cívico, como Hannah Arendt, Sheldon Wolin ou Benjamin Barber, para os quais “[…] a solução não é disseminar a democracia em mais e mais espaços da nossa vida quotidiana, mas resta-belecer o político como aquilo que nos faz humanos e livres” (PHILLIPS, 1996, p. 27) – tema abordado com maior detalhe no terceiro capítulo desta obra –, seria interessante questionar o porquê de ter que se resig-nar apenas à participação nos pequenos espaços. Por que ter que aceitar

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a posição de Carole Pateman, autora que, em relação à política nacional, sustenta que as pessoas nunca vão chegar a interessar-se na mesma medida pelos assuntos nacionais do que pelas questões locais, agregando também que,

[...] em um eleitorado de, digamos, 35 milhões, o papel do indivíduo só pode se restringir, quase que inteiramente, à escolha de representantes; mesmo podendo depositar seu voto em um referendo, sua influência sobre o resultado será infi-nitamente pequena. A menos que a dimensão das unidades políticas nacionais fosse drasticamente reduzida, essa parcela da realidade não está aberta a mudanças (PATEMAN, 1992, p. 145).

Ou em igual direção, nas palavras de Peter Bachrach (1973, p. 138) “[...] é obvio que, nas grandes sociedades, as ‘decisões primordiais de governo’ devem ser tomadas por poucos”.

Claro que seria mais do que salutar, e se diria fundamental, levar a demo-cracia a outros âmbitos, mas isto não deveria se fazer como compensação face à suposta impossibilidade de introduzir mudanças na grande política. O risco que se correria ao limitar-se apenas ao âmbito local, ou ao âmbito mais “próximo” da vida do indivíduo, seria o de cair em um corporati-vismo geográfico ou local (GENRO, 1995). Poder-se-iam fazer prevalecer interesses particulares, corporativos, setoriais, sem levar em conta a polí-tica global. Poder-se-ia tornar mais difícil, como foi visto anteriormente, a consideração de questões e problemas que transcendam os estreitos limites da unidade territorial escolhida. “O cidadão, ai pode se diluir no ‘consu-midor’, no ‘usuário’, no ‘administrado’, no ‘contribuinte’” (BENEVIDES, 1996, p. 18).

Uma descentralização exagerada, além de prejudicial, seria praticamente inviável, dado que, como diz Young (1990), deveria desmantelar o cará-ter urbano da sociedade moderna. As teorias que depositam toda a sua confiança na descentralização em geral não consideram como as unida-des se relacionariam umas com as outras. Seria absolutamente irrealista pensar que não precisariam manter extensas relações de intercâmbio de recursos, bens, cultura etc. Seriam apelações nostálgicas que querem vol-tar ao mundo perdido, apelações românticas à polis grega ou aos cantões suíços medievais, que deploram o comércio e o caráter de massa da cidade

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moderna. Com a autonomia local acentuada demais, se poderia cair em uma perigosa atomização:

A autonomia é um conceito fechado, que enfatiza princi-palmente a exclusão, o direito de manter os outros fora, impedindo-os de interferir nas decisões e ações. Autonomia refere-se à vida privada, no sentido que as empresas são pri-vadas em nosso atual sistema jurídico. Deve distinguir-se de empoderamento, que eu defino como a participação de um agente no processo de tomada de decisões através do exercício efetivo de voz e voto. Empoderamento é um conceito aberto, um conceito que pressupõe a publicidade e não o privatismo (YOUNG, 1990, p. 251).

Mecanismos de planejamento democrático poderiam conseguir decisões mais justas e racionais, evitando cair em uma luta entre centenas de uni-dades públicas e privadas autônomas pela maximização do que percebem como seus interesses.

Impõe-se democratizar tanto a “grande política” como as esferas mais pró-ximas da vida das pessoas, sem submeter-se a uma mágica descentraliza-ção. Como afirma Cornelius Castoriadis,

[…] uma “participação” no poder político geral que deixe as pessoas sem poder sobre a gestão de suas atividades concretas é evidentemente uma mistificação. E isso vale igualmente para uma “participação” ou uma “autogestão” que se confina, por exemplo, à empresa, e que entrega o “poder político geral” a uma categoria em separado (CASTORIADIS, 1983, p. 277).

Anne Phillips, nesta mesma linha, afirma:

[…] estender a democracia não consiste unicamente em demo-cratizar todas nossas práticas em cada um dos aspectos de nossa vida. Persiste uma distinção entre o que é geral e o que é particular e é importante não apagar esta linha divisória [...] esta insistência positiva na democratização da vida quotidiana não deveria se converter num substitutivo de uma vida polí-tica mais viva e vital […] A democracia não é mera questão de blocos de construção na qual cada tijolo é igualmente signifi-cante sendo que o único que importaria seria quantos pode-mos agregar. Quer dizer, mesmo que a tomada de decisões deva se abrir, igualando o lar, as escolas, local de trabalho e o

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estado da moradia, não deveríamos considerar esta democra-tização como uma alternativa a uma vida pública revitalizada (PHILLIPS, 1996, p. 157).

Também não se deve acreditar que, a partir de uma democratização e participação mais intensas nas pequenas esferas, se conseguirá quase que automaticamente reproduzir o mesmo efeito nas instâncias e âmbitos que operam em uma escala maior. Nem sempre se poderia estabelecer um con-tinuum entre a participação política na gestão da oficina, da fábrica ou da universidade e a participação nos espaços onde são tomadas as decisões sobre os grandes assuntos nacionais.

E pode-se agregar também que incluso, contraditoriamente e apesar de suas intenções, esta concepção “quotidianista” acaba não captando, real-mente, a pluralidade ou diversidade social. Embora seja verdade que os participacionistas querem levar a democracia não apenas à fábrica, mas também à escola, ao lar, à administração, prevalecem na literatura sobre o tema as propostas e desejos de basear a democracia participativa na pri-meira esfera mencionada. Como afirma Robert Dahl, “[…] mesmo nos lugares onde as organizações econômicas são muito amplas, ordinaria-mente não representam os interesses não econômicos – e a maior parte dos cidadãos têm outros interesses para além dos econômicos” (DAHL, 1993, p. 357). Em relação a este ponto Bobbio assinala:

[…] o erro no qual caíram sempre os teóricos da democracia industrial foi o de acreditarem na possibilidade de solucionar a democracia política na democracia econômica, o autogoverno dos cidadãos no autogoverno dos produtores. O erro deriva da crença de que não existem problemas do cidadão distintos daqueles do trabalhador (ou do produtor) (BOBBIO, 1983, p. 73).

Erro que, além disto, traria atreladas fortes conotações masculinistas, pois, como destaca Anne Phillips (1996), a relação que as mulheres estabele-cem com o mundo do trabalho é bastante diferente da que estabelecem os homens, e em muitas ocasiões, a subordinação mais forte é a que sofrem em seu próprio lar, e não no espaço de trabalho.

Este defeito se poderia perceber, também, na arquitetura piramidal macphersoniana de conselhos já analisada. Colocando o acento somente na esfera da produção – embora, paradoxalmente, nem todos os pensa-dores que aderem a esta corrente destaquem a questão das classes sociais

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com a ênfase suficiente – não percebem que desta maneira não se consegue apreender a diversidade social em sua plenitude. E é importante esclarecer aqui que não se está negando a centralidade da esfera produtiva – é ali que nasce a exploração econômica, e é também nesta esfera que reside a causa fundamental da dominação política e social. Busca-se simplesmente res-saltar que, por meio dos conselhos fabris, não se poderiam resolver todos os problemas sociais. A questão é muito mais complexa do que em geral se acreditava. A implementação de tais unidades poderia levar ao erro de se pretender pautar todos os assuntos a partir de uma única e exclusiva dimensão.

As experiências dos conselhos operários foram largamente debatidas pelos teóricos da esquerda. Vale apenas como mostra, e em apoio ao que vinha sendo analisado, uma crítica de Umberto Cerroni ao conselhismo de Karl Korsch, que bem poderia ser aplicado, por exemplo, à proposta que apre-senta Carole Pateman:

[…] o limite grave de Korsch consiste em esquecer por com-pleto o problema da gestão política da sociedade, o problema das instituições políticas, já que os conselhos são essencial-mente órgãos de gestão e de controle da economia e especial-mente da economia industrial (CERRONI, 1984, p. 72).

E agrega Cerroni que Korsch não levaria em conta a socialização do poder político – a questão das instituições políticas do socialismo –, correndo o risco de integrar os conselhos em uma democracia industrial que man-tivesse as relações capitalistas, ou de cair em um novo Estado econô-mico-administrativo utópico que seria substituído por um governo não escolhido e provavelmente autoritário. É o primeiro perigo que o pensador italiano assinala, o que sem dúvidas aponta justamente na mesma direção do que vinha sendo discutido em relação às ideias de Pateman. Como diz Carol Gould (1988), a professora britânica não valoraria o suficiente as ins-tituições sociais ou as condições sob as quais a sociabilidade se desenvolve. Pateman teria uma concepção da democracia participativa caracterizada por um excesso de voluntarismo e de obrigações autoassumidas. Haveria na obra desta autora, segundo Gould, um forte viés antirrepresentativo e um elogio exagerado das virtudes do pequeno e da associação espontânea, incompatíveis com as sociedades de massa.

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c) Complexidade e democracia

Passa-se agora ao terceiro ponto acima destacado: o tema da “complexi-dade”. Esta questão foi sempre levantada pelo campo conservador no ter-reno político e apontada pelos cientistas sociais que aderem ao modelo elitista-competitivo da democracia como uma das razões para justificar a impossibilidade da participação do homem comum nos assuntos públicos. Curiosamente, alça-se, também, como um obstáculo que muitos partici-pacionistas não conseguem superar. Vários destes aceitam acriticamente o argumento que indica que as decisões importantes seriam assuntos que cabem apenas aos “especialistas”. Macpherson, por exemplo, sustenta que os que propõem a participação popular nas grandes decisões não leva-riam em consideração a complexidade das questões, “[…] as questões teriam de ser arquitetadas de um modo que exigiria de cada votante um grau de requinte impossível de prever” (MACPHERSON, 1978, p. 100). Referindo-se ao mecanismo de iniciativa popular, diz que “esta poderia certamente formular claras questões sobre certos assuntos sim-ples [...] mas não poderia formular adequadas questões sobre os grandes problemas inter-relacionados de política social ou econômica em geral” (MACPHERSON, 1978, p. 101). Também Norberto Bobbio (2006) se faz eco desta classe de análises, quando aceita a ideia de que a sociedade é complexa demais e considera que a solução de boa parte dos proble-mas econômicos e sociais requer conhecimentos técnicos. E nesta linha, Bobbio também se pergunta:

[…] na medida em que as decisões se tornam sempre mais téc-nicas e menos políticas, não fica mais restringida a área de competência do cidadão e, consequentemente sua soberania? [...] constatar fatos, sem ideias preconcebidas e sem muitas ilusões, é o único modo de nos colocarmos em condições de encontrar soluções viáveis, não fantasiosas (BOBBIO, 1983, p. 61-62).

Tais autores não conseguem estabelecer uma clara distinção quanto à natu-reza dos assuntos que correspondem à esfera do político e aqueles relativos à esfera do técnico. Seria importante destacar que a tomada de decisões sempre deve pertencer ao campo da política, e o técnico só se relacio-naria com a fase de implementação das decisões politicamente adotadas. Segundo Robert Dahl (1993), pode-se afirmar que não existem soluções técnicas únicas, verdadeiras, objetivas. Pode haver várias respostas em dis-puta para um mesmo problema. Muitas decisões que se apresentam como

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meramente instrumentais têm muito a ver com questões morais muito controvertidas. Os tecnocratas não estariam mais capacitados do que o homem comum para fazer avaliações morais e, inclusive, talvez o estejam menos, dado que são especialistas apenas em uma matéria e, com frequên-cia, não sabem nada do restante. Para Dahl, optar entre políticas públicas sempre implica um risco, porque suas consequências sempre serão prová-veis, nunca seguras. Tal risco, então, deveria ser assumido pelos próprios afetados. Como chama a atenção Castoriadis, deve-se abandonar a falsa técnica oculta, o mundo dos “especialistas”, tudo isto seria mentira e mis-tificação. Caso os argumentos fossem verdadeiros, a direção da sociedade seria impossível, pois “[…] o político deveria ser a encarnação do Saber absoluto e total” (CASTORIADIS, 1983, p. 142-143).

Caberia com razão se perguntar, junto a Ian Budge (1996, p. 2-3) – firme defensor de mecanismos de democracia direta nas sociedades contemporâ-neas –, se as pessoas comuns realmente estão tão mal informadas e são tão instáveis ou volúveis a tal ponto de não poder confiar-lhes a adoção direta de decisões importantes, então por que se deveria considerá-las capazes para escolher representantes que tomem decisões por elas? Esta contra-dição já encontra sua origem na própria matriz webero-schumpeteriana. Haveria certa inconsistência lógica, como sustenta David Held,

[…] a problemática análise de Schumpeter sobre a natureza da atuação voluntária e sua estimativa extremamente baixa das capacidades do povo criou várias outras dificuldades similares àquelas encontradas no pensamento de Weber. Se o eleitorado é considerado como incapaz de formar julgamentos razoáveis sobre questões políticas importantes, porque ele deveria ser considerado capaz de discriminar entre grupos alternativos de líderes? Com que base poder-se-ia julgar adequado o vere-dicto do eleitorado? Se o eleitorado é capaz de avaliar líderes competentes, ele não é certamente capaz de compreender ques-tões-chave e discriminar entre plataformas rivais? Ademais, Schumpeter pressupôs a existência de um grupo de líderes políticos que seriam competentes para tomar decisões políti-cas. Mas ele ofereceu muito pouco para justificar esta noção, a não ser as afirmativas (para as quais não foram apresenta-das justificativas) de que existem algumas pessoas talentosas e combativas engajadas na política, de que elas possuem um alto grau de racionalidade e de que são suficientemente afetadas

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pelos problemas “reais” da vida pública para serem capazes de fazer julgamentos políticos corretos (HELD, 1994, p. 164).

E no mesmo sentido, o cientista político italiano Danilo Zolo assinala:

[…] os teóricos do pluralismo democrático não podem, em que pese o profundo ceticismo que expressam acerca do suposto clássico da autonomia, racionalidade e responsabilidade moral do cidadão, se liberarem inteiramente desta premissa sem comprometer irremediavelmente seu desejo de se apre-sentarem como teóricos “democráticos”. Se não fosse assim, a democracia, à qual pensam como um simples efeito colateral de um modus operandi que implica liberdade de informação, palavra e imprensa, correria o perigo de aparecer como um produto completamente casual e irracional da liberdade. Sem alguma espécie de autonomia ou racionalidade da opinião pública, mesmo até as exigências “processuais” do pluralismo e a competência eleitoral estariam vazias de qualquer conteúdo (ZOLO, 1994, p. 190).

Nesta inconsistência argumentativa dos defensores do paradigma demo-crático elitista-competitivo, que nunca foi plenamente resolvida, também incorrem muitos dos promotores de um modelo democrático alternativo. Toda decisão sobre um assunto de política nacional encontrará sempre sua tradução em termos de alternativas e projetos políticos diferentes, por mais escondidas que estes se encontrem sob um emaranhado de disposi-ções técnicas complexas e sofisticadas. Na vida política, e principalmente em tempos de hegemonia neoliberal, com frequência se utiliza uma lin-guagem intencionalmente complicada como forma de justificar a atuação dos “especialistas” e de desestimular a participação cidadã. Cabe insistir: não há adoção de decisão que, por mais aparência técnica que revista, não remeta no fundo a um determinado projeto político ou a um determinado conjunto de valores que não possa ser assumido pelas pessoas comuns. Concordando com o filósofo argentino Carlos Nino:

[…] podemos distinguir os aspectos técnicos de uma política de seus aspectos normativos. Enquanto os especialistas deve-riam fornecer conselhos técnicos àquele que deverá tomar a decisão – seja este uma legislatura, o povo de modo geral ou uma pessoa individual –, todo indivíduo normal e maduro é capaz de julgar o aspecto normativo de uma política (NINO, 1997, p. 208).

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Voltando a Dahl, ele afirma que

[…] não é intelectualmente defensável a postura segundo a qual as elites da política pública (reais ou presumidas) pos-suem um saber moral superior ou melhores conhecimentos específicos do que constitui o bem comum. De fato, temos motivos para supor que a especialização, que está na base da influência de tais elites, pode por si só prejudicar sua capaci-dade para a formulação de julgamentos morais [...] não deve-mos superestimar a virtude dessas elites. Em todos os países do mundo são célebres pela velocidade com que promovem seus próprios e estreitos interesses burocráticos ou institucionais, os da organização ou grupo ao qual pertencem, em nome do bem comum. Pareceria que quanto mais livres estão da fisca-lização e do julgamento da população, mais provável será que se vejam corrompidas (embora não necessariamente no sentido do suborno) pelas conhecidas tentações do poder (DAHL, 1993, p. 404-405).

Como assinala Budge (1993), a tentativa de utilizar a teoria da eleição social como arma contra a democracia direta poderia chegar a derivar em uma argumentação contra a própria democracia, mais do que contra alguma das formas particulares que esta possa assumir. De acordo com James Bohman (1996), as exposições acerca da inevitabilidade da com-plexidade começam passo a passo: primeiro eliminando a possibilidade de participação, depois da deliberação, depois da representação e finalmente eliminam a própria democracia. Para Bohman, a democracia é mais con-sistente com a complexidade do que as alternativas não democráticas, as quais reduzem mais do que preservam a complexidade. Para ele, não have-ria uma antinomia funcional entre incrementar a democracia e manter a complexidade. Ao contrário, muitos dos mesmos mecanismos políticos que reduzem a complexidade também reduziriam a própria democracia. Para este autor, a complexidade facilitaria a deliberação pública, livre e aberta, preservaria a autonomia e asseguraria a possibilidade de decisões livres e contingentes. Bohman considera que se deveria avançar na elabo-ração de instituições que preservem, de forma simultânea, a democracia, a complexidade, a liberdade e um genuíno pluralismo.

Danilo Zolo (1994) não comparte esta opinião. Na sua alegação em favor de uma teoria pós-representativa do sistema político, considera que seria fundamental enfrentar a complexidade alcançada pelas sociedades

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industriais. Segundo ele, a função primordial do sistema político seria a de diminuir o medo, mediante uma regulação seletiva dos riscos sociais. Quanto maior o número de variáveis, quanto maior a interdependência entre elas, maior complexidade e instabilidade do meio ambiente. Haveria, conforme a descrição de Zolo, uma tendência das variáveis a modificar--se de forma imprevisível, uma diferenciação funcional crescente, um aumento exponencial na especialização autônoma dos subsistemas, o que geraria uma maior complexidade. Para este autor, as dificuldades de com-preender e predizer estariam em crescimento, se estaria assistindo a uma mudança social acelerada, em um mundo extremamente flexível e contin-gente, dando lugar a maior insegurança e instabilidade do meio social. O desenvolvimento científico e o aumento do conhecimento não reduziriam a complexidade, pelo contrário, iriam aumentá-la, pois abririam-se novos horizontes, novos interrogantes, maior incerteza.

Tal incerteza leva Zolo a utilizar a expressão “sociedades de risco” para se referir ao tipo de sociedades que predominam na atualidade. Os ris-cos permanentes aos que estariam expostos os indivíduos, assim como a incapacidade de compreender e dar conta da enorme massa de estímulos que lhes chegam do mundo exterior, fariam com que as pessoas procuras-sem quem garanta a ordem. Segundo Zolo, o aumento da complexidade social moderna seria responsável pelas exigências de democracia, mas este mesmo aumento faria com que essas exigências não pudessem ter sucesso. Ele sustenta que haveria uma antinomia central entre complexidade e democracia, dado que diante de uma maior complexidade, maior seria a busca por mecanismos rápidos e eficientes que possam reduzi-la, mediante processos de concentração do poder.

Esta análise, em chave neohobbesiana, levaria a legitimar as restrições ao sistema democrático. Embora possa haver alguma razão nas reflexões de Zolo quanto à demanda social de ordem e autoridade, não caberia concluir o mesmo em relação à exigência de redução da complexidade. E ainda quando isto último assim fosse, quais seriam as possibilidades concretas por parte de um poder centralizado de conseguir lidar efeti-vamente com a crescente complexidade? Zolo não estaria incorrendo no vício hiper-racionalista que ele, em alguma passagem de sua obra, critica? Não haveria mais espaço para pensar, na linha esboçada por Bohman, que a complexidade é irredutível e que a democracia seria o único regime que poderia conviver com esta, e ao mesmo tempo, preservar a liberdade e a autonomia? Uma democracia aprofundada, através da dispersão de poder

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em múltiplas esferas e espaços, permitiria dar oportunidades para que as diferentes partes afetadas pudessem participar e se fazerem ouvir e, sem pretender reduzir a complexidade, pudessem lidar com ela e chegar a deci-sões coletivas informadas e coerentes.

d) A questão da apatia cidadã

Por último, o quarto elemento acima elencado: a apatia cidadã. Crawford Macpherson diz que a própria desigualdade social gera apatia política, motivo pelo qual esta última não seria uma variável independente, “[…] a baixa participação e a iniquidade social estão de tal modo interligadas que uma sociedade mais equânime e mais humana exige um sistema de mais participação política” (MACPHERSON, 1978, p. 98). A apatia não é algo dado, não é um “fato da natureza”, é produto do próprio sistema social. Os participacionistas discordam dos defensores da democracia eli-tista-competitiva quando alegam que a baixa participação seria um fenô-meno inevitável, e até incluso desejável, para garantir a estabilidade do sistema político e econômico; um fenômeno que denotaria expressão de confiança nos governantes. Como assinala Dryzek, em relação à concep-ção elitista-competitiva,

[…] os teóricos “contemporâneos” da democracia erigiram no seu lugar uma versão da democracia que permite limitar o acesso do cidadão ao poder político e bate palmas para a apatia política generalizada pela sua contribuição funcional para a estabilidade democrática (DRYZEK, 1990, p. 169).

Almond e Verba (1965), por exemplo, em sua conhecida obra The Civic Culture, demonstram uma clara preocupação pelo perigo que acarreta-ria para o sistema uma participação mais elevada. Estes expoentes do paradigma elitista-competitivo postulam, insistentemente, a necessidade de equilíbrio e moderação. Em reiteradas oportunidades mencionam o enorme risco que implicaria para a estabilidade do sistema político uma participação “excessiva” ou muito intensa. Sustentam que é positivo que os cidadãos se envolvam nos assuntos políticos e se mantenham informados, mas não em um grau elevado demais, deixando espaço para que as elites possam governar. Essa participação limitada, dizem, permitiria chegar ao ótimo equilíbrio entre responsabilidade e governabilidade, ou entre legiti-midade e eficácia. E, para fortalecer sua argumentação, afirmam que tal equilíbrio entre ativa participação e passividade seria muito bem alcançado

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mediante a divisão de atitudes entre o conjunto dos cidadãos, onde aos mais educados e melhor situados na escala econômico-social caberia maior comprometimento e interesse pelos assuntos políticos, e aos pior situados socialmente, uma maior quota de apatia e desinformação. Difícil encon-trar na literatura um exemplo mais explícito e escandaloso do nexo que os defensores do modelo elitista-competitivo estabelecem entre a apatia política e a desigualdade econômico-social.

Apesar de tudo isto, o panorama não é tão claro no campo dos teóri-cos participacionistas. Assim, um pensador da importância de Norberto Bobbio sustenta que

[…] o excesso de participação, produto do fenômeno que Dahrendorf chamou depreciativamente de cidadão total, pode ter como efeito a saciedade de política e o aumento da apatia eleitoral. O preço que se deve pagar pelo empenho de poucos é frequentemente a indiferença de muitos. Nada ameaça mais matar a democracia que o excesso de democracia (BOBBIO, 2006, p. 39).

A abstenção do voto aumentou, mas até agora de maneira não preocupante; de resto a apatia política não é de forma alguma um sintoma de crise de um sistema democrático, mas, como habitualmente se observa, um sinal da sua perfeita saúde: basta interpretar a apatia política não como recusa ao sistema mas como benévola indiferença (BOBBIO, 2006, p. 82).

Por que esta resignação a pagar tão alto preço? Em que fundaria Bobbio a benevolência da indiferença ou apatia daqueles indivíduos situados nas margens do sistema social, daqueles indivíduos que não contam com os mínimos recursos materiais para satisfazer suas necessidades mais elemen-tares? Depois de frases como a citada, faz sentido continuar considerando ao pensador turinense como um expoente do paradigma participacionista?

Cabe insistir, desta vez junto a Carole Pateman (1980) – quem em um tra-balho posterior ao já citado, Participation and democratic theory, introduz uma análise desta questão –, que a apatia não é um problema individual ou um fenômeno devido a fatores psicológicos, mas que encontra seus fun-damentos na própria estrutura da sociedade. A apatia não é uma eleição do indivíduo, mas uma clara manifestação de sua impotência, gerada pela própria sociedade. Como bem demonstra Lijphart (1997), a desigualdade de representação e de influência não está aleatoriamente distribuída, mas

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se vê sistematicamente orientada em favor dos privilegiados, em termos de riqueza, ingressos e educação; viés que opera ainda mais fortemente nos casos de participação mais intensa ou que requerem maior consumo de tempo. Em que se baseariam afirmações como as de Lester Milbrath (1965), por exemplo, incluídas no seu estudo clássico sobre a participação política, segundo as quais seria um fato que não se requer alta participação para uma democracia bem-sucedida? Bem-sucedida para quem?

E relacionando a questão da apatia com o aval à estrutura elitista de ado-ção de decisões nos grandes âmbitos sociais, pode-se perceber como, em geral, muitos dos autores selecionados fazem seus os argumentos da ver-tente elitista-competitiva da teoria democrática. Peter Bachrach, embora realize uma valiosíssima alegação em favor de uma democracia substantiva e se proponha refutar aos que encabeçam tal vertente, acaba concordando com eles, ao concluir de forma semelhante ao apontado anteriormente que, “é claro que as “decisões primordiais de governo” devem ser adotadas por poucos” (BACHRACH, 1973, p. 145) ou numa outra passagem “[…] nas democracias modernas, onde necessariamente as “decisões políticas fundamentais” devem ser tomadas por uma pequena minoria [...] em sua essência, o argumento elitista é irrefutável” (BACHRACH, 1973, p. 149). “[...] A estrutura da elite e massa da sociedade atual em grande parte é ver-dadeira, mas essa estrutura é somente inalterável se a tomada de decisões políticas for estreitamente considerada como tomada de decisões gover-namentais” (BACHRACH, 1973, p. 158). Esta insistência encontra-se no próprio livro de Bachrach, autor que acaba cedendo ante as argumentações da escola elitista, sem ver que, desta forma, não consegue avançar muito além em prol de uma democracia genuinamente participativa e radical. Por que haveria de se aceitar como algo inevitável a divisão do traba-lho político entre elites e massas que propõem os defensores do modelo elitista-competitivo?

No seu livro posterior, já mencionado, Bachrach altera em alguma medida a argumentação, passando a colocar o foco de atenção na questão da lide-rança. Ele considera que este é um tema ausente nos trabalhos dos partici-pacionistas, e que necessariamente deve ser abordado e incluído na teoria democrática. O funcionamento do sistema democrático, para Bachrach e Botwinick, exigiria líderes, mas que tenham outro tipo de relação com a cidadania, uma relação mais estreita, que pressuponha um diálogo regu-lar e uma interação contínua, baseada na reciprocidade e na equidade. É indubitável que a questão da liderança deverá ser melhor desenvolvida

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pelas teorias alternativas da democracia, sem que estas se vejam forçadas, por isto, a aderir à tentativa schumpeteriana de inserir a teoria das elites na trama conceitual da teoria democrática. Caso o objetivo seja construir uma democracia com maior densidade, não resultaria muito convincente aceitar o casamento da teoria das elites com a própria teoria da democracia.

Como conclusão deste capítulo, pode-se afirmar que a democracia no seu formato participativo teve importantes desenvolvimentos e avanços ao longo destas últimas décadas. Porém, deveriam ser superados aqueles projetos que se limitam apenas à participação nas pequenas esferas, dei-xando intocado o sistema político mais geral. Dever-se-ia propiciar, ao contrário, a politização da sociedade. Não se poderia pensar em politizar outras áreas e despolitizar os grandes temas. Nem chegar a acreditar que primeiro se deve participar nas pequenas esferas e só em uma segunda etapa tentar aumentar a intervenção dos indivíduos nas grandes questões nacionais. Assim mesmo, é de destacar que uma transformação radical exige muito mais do que meras modificações ou reformas superficiais nas relações sociais capitalistas. Os indivíduos deverão alcançar o controle sobre todas as atividades que realizam, sobre todas as tarefas que desem-penham, conquistando uma completa autogestão de suas próprias vidas, e um autodesenvolvimento pleno e harmônico. E isto só poderá se tornar uma realidade, vale insistir, terminando com o sistema capitalista.

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Neste segundo capítulo tentar-se-á delinear, a partir da leitura de textos de alguns renomados autores que se dedicaram ao estudo da teoria demo-crática, os aspectos fundamentais que caracterizam a corrente da democra-cia deliberativa. Embora os primeiros antecedentes de tal vertente possam encontrar-se, da mesma maneira que no caso da democracia participativa, em escritos e obras que datam de finais dos anos sessenta e início dos setenta, é apenas na década de 1980 que o conceito de democracia delibe-rativa começou a tomar uma forma mais acabada. Estas propostas surgem, mais uma vez, como alternativas ou respostas renovadas à perspectiva plu-ralista ou elitista da democracia.

Diversas definições foram ensaiadas em relação a esta nova concepção da teoria democrática. Assim, em seu livro Public Deliberation: Pluralism, Complexity, and Democracy, James Bohman (1996) considera que a demo-cracia encontra na deliberação e no consenso os seus aspectos definidores. A deliberação dos cidadãos torna-se fundamental caso se pretenda que as decisões não lhes sejam meramente impostas. A meta da deliberação consiste em expressar valores publicamente e orientar a busca de cami-nhos para conseguir que as razões de cada grupo resultem convincentes para os demais cidadãos, apontando para decisões legítimas e compro-missos claros em torno do que é melhor para cada um e para o conjunto da coletividade. Segundo Bohman, a deliberação pública consiste em um intercâmbio permanente de razões, um processo dialógico através do qual se busca resolver situações problemáticas que não podem ser enfrentadas sem coordenação interpessoal e cooperação. Assim sendo, a democracia

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deliberativa deve propender ao desenho de instituições que tornem pos-sível o uso público da razão prática comum. O processo democrático é entendido, sob esta perspectiva, como um diálogo livre e aberto para testar e trocar razões, motivações e perspectivas, no qual os interesses são forma-dos e transformados publicamente, e não vêm formulados a priori como postulam aqueles que defendem a visão pluralista da democracia.

Segundo Joshua Cohen (1997), os cidadãos deveriam reunir-se para deli-berar e discutir sobre os assuntos comuns. A democracia deliberativa é aquela associação política cujos assuntos estão governados pela deliberação pública de seus membros, pela permanente troca de razões e argumentos publicamente expostos. A democracia deliberativa, para este autor, conta-ria com uma série de aspectos característicos:

[…] uma democracia deliberativa é uma associação indepen-dente e permanente, cujos membros esperam que continue num futuro indefinido; os membros da associação compar-tilham a opinião de que os termos apropriados da associação fornecem um quadro para a sua deliberação ou que este é resul-tado da sua própria deliberação; deliberação livre entre iguais é a base da legitimidade; uma democracia deliberativa é uma associação pluralista, os membros têm diversas preferências, convicções e ideias referentes a como lidar com suas próprias vidas; os membros reconhecem uns aos outros como tendo capacidades de deliberação, ou seja, as capacidades necessárias para participar de um intercâmbio público de razões e para atuar baseados nos resultados desse intercâmbio público de argumentos (COHEN, 1997, p. 72-73).

Desta maneira, deliberação consiste em oferecer argumentos e razões para tratar de convencer aos outros. Como assinalam Dryzek (1990) e Cass Sunstein (1993), ganha a força do melhor argumento. “Nenhum indiví-duo pode pretender ter razão com base em outra coisa que não seja um bom argumento” (DRYZEK, 1990, p. 41). Nas palavras de Iris Young (1990, p. 73), “[…] um público politizado resolve seus desacordos e toma decisões ouvindo as reivindicações e razões do outro e apresentando per-guntas e objeções, assim como oferecendo novas formulações e propostas, até que uma decisão possa ser alcançada”.

A deliberação significa o intercâmbio permanente de argumentos através de mecanismos dialógicos. Toda proposta deve ser defendida ou criticada apoiando-se em razões, tratando assim de persuadir os outros participantes

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do debate. As diversas preferências terão de ser expostas, objetadas e apoia-das de maneira contínua, induzindo à reflexão e à consideração dos seus fundamentos. O diálogo seria apropriado para construir laços de solidarie-dade e reconhecimento mútuo entre os participantes.

Por trás destas definições encontra-se a volumosa obra de Jürgen Habermas (2003), quem com sua The Structural Transformation of the Public Sphere levantou os pilares do que nos anos seguintes viria constituir o modelo deliberativo. Na perspectiva habermasiana, a deliberação pública, realizada fora do âmbito estatal, seria base fundamental no processo de legitimação da ação política. Deliberação, esta, que permitiria aos potencialmente afe-tados por uma decisão emitir sua opinião e interagir comunicativamente com os diferentes atores envolvidos. A expansão da esfera pública, pautada pelo discurso racional e crítico, pelo diálogo, possibilitaria o controle do poder, o enriquecimento da cidadania e o aprofundamento do processo democrático.

No livro de James Bohman (1996) já citado, se considera crucial que os cidadãos – e seus representantes – ponham à prova seus interesses e razões em um fórum público antes de tomar uma decisão. O processo delibera-tivo forçaria os cidadãos a ter de justificar suas decisões e opiniões ape-lando, de alguma forma, para interesses comuns e argumentando com razões que todos possam aceitar no debate público. A mera apresentação da própria preferência ou crença não pode, por si mesma, levar os outros a compartilhar da mesma opinião. Uma decisão coletiva sobreviria tão somente a partir de sua justificação por meio de razões públicas. Certas propostas podem ser rejeitadas por não terem sido defendidas com razões aceitáveis, inclusive propostas que, se defendidas com melhores argumen-tos, teriam sido aprovadas. Os membros de toda associação democrática têm como grande objetivo resolver suas diferenças através da deliberação, e para isso precisam prover razões que, sinceramente, esperam sejam per-suasivas para os demais.

[...] a deliberação num contexto pluralista exige que eu encon-tre razões que tornem a proposta aceitável para outros que provavelmente não aceitariam minhas preferências como argu-mento suficiente para concordar (COHEN, 1997, p. 76).

Sunstein considera que em um processo deliberativo as pessoas devem estar abertas à força dos argumentos, e devem estar preparadas para deixar de lado seus pontos de vista iniciais quando percebem o benefício que

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outro ponto de vista traz para a comunidade em seu conjunto. Um sistema de discussão pública exige que as pessoas utilizem discursos que levem em conta o público. As políticas devem ser sempre justificadas com base em razões, ou a partir da premissa de que promoveriam o bem público. Em uma política deliberativa mesmo os participantes mais venais ou autointe-ressados deveriam invocar justificações públicas coerentes (SUNSTEIN, 1993). Como afirma Carol Gould, a deliberação pública exige respeito e consideração pelas opiniões dos outros.

O processo deliberativo de tomada de decisão democrática exige que cada participante não só permita aos outros expressa-rem as suas opiniões e oferecer os seus julgamentos, mas exige também considerar seriamente os pontos de vista dos outros até chegar ao seu próprio julgamento. Claramente, este não exige concordância com as opiniões dos outros, mas sim uma atenção séria, e respeito pelas mesmas. Tal respeito recíproco pressupõe também que as divergências sejam toleradas e não reprimidas (GOULD, 1988, p. 88).

De acordo com David Miller (1993), a necessidade de alcançar um com-promisso força cada participante a elevar propostas sob a rubrica de prin-cípios gerais ou considerações políticas que os outros possam aceitar. O participante deverá dar razões para sua demanda, como por exemplo, que o grupo em questão tem necessidades especiais ou que é de interesse de todos melhorar os padrões de vida desse grupo. Segundo este autor, as pessoas estariam forçadas a adotar uma visão mais ampla e a defender a demanda uma vez formulada, tanto para ser aplicada ao seu próprio grupo como quando corresponda aplicá-la a um grupo alheio. A demo-cracia deliberativa presumiria, em alguma medida, poder deixar de lado os interesses e opiniões individuais para dar lugar ao interesse comum da coletividade: suporia que as pessoas compartilhassem algum grau de orientação comunitária.

Para os deliberacionistas, o processo político implica mais do que uma mera competência entre autointeresses, governado por mecanismos de barganha e agregação (BOHMAN e REHG, 1997). A visão deliberativa repousa em uma forma de entender a natureza humana diferente da con-cepção clássica liberal. A democracia deliberativa tem aspirações que vão além de um simples processo de somatória limpa e eficiente de preferências individuais em uma eleição coletiva (MILLER, 1993). Como diz Cohen (1997), a concepção deliberativa constrói políticas que apontam para a

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formação de preferências e convicções, não apenas para a sua articulação e agregação. De maneira semelhante ao que fora analisado no caso dos par-ticipacionistas, os autores que aderem à perspectiva deliberacionista consi-deram que os interesses não vêm já determinados, não chegam ao âmbito do debate totalmente configurados: os interesses individuais formam-se, completam e mudam no próprio processo de deliberação. E é assim, nesta instância, que as preferências adotam novos rumos, rumos que não visam, pura e exclusivamente, a satisfação dos autointeresses individuais, mas que adquirem um enfoque mais amplo.

Em geral todos os autores que podem ser classificados como deliberacio-nistas compartilham uma série de motivos que os impulsionam a aderir a tal perspectiva ou corrente. Entre os mais importantes, vale enumerar os seguintes: a discussão pública leva a moralizar as preferências, novas soluções e propostas surgem no curso do debate, os indivíduos descobrem informações que previamente não tinham, tornam-se mais informados, adquirem maior confiança e segurança em si mesmos, formam melhor suas opiniões e preferências, consolidam ou mudam suas opções de acordo com os argumentos que oferecem os outros participantes do debate, moderam suas posições para adequar-se aos desejos dos demais, todos os potencialmente afetados são escutados antes de ser tomada uma decisão, as preferências que não podem ser defendidas em forma pública tendem a ser excluídas e aumentam as possibilidades de descobrir e corrigir erros de raciocínio, e erros fáticos no curso da discussão. Nas páginas que seguem serão abordados alguns destes tópicos com maior detalhamento, a par-tir da leitura de textos dos autores e pensadores mais importantes desta corrente.

Segundo Bernard Manin (1987), no processo de intercâmbio de evidên-cias relativas às diversas soluções que são propostas, os indivíduos desco-brem informações que não tinham previamente. A deliberação torna os participantes melhor preparados e informados. Os indivíduos que partici-pam de um processo deliberativo melhorariam sua percepção sobre o que realmente querem, sobre quais são os seus desejos e objetivos, perceberiam com maior nitidez suas preferências antes de chegar à instância de ter de tomar uma decisão ou de adotar uma política concreta. Como sustenta o estudioso francês, ninguém tem total clareza acerca de todos os aspec-tos envolvidos em uma decisão, e nem conta com informação ou opinião formada sobre todos os assuntos a tratar. Os indivíduos não têm a priori

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um conjunto de preferências elaboradas sobre todos os problemas a serem abordados no debate.

As opções podem mudar no curso da discussão, podem modificar-se em função do que cada indivíduo escuta e aprende em relação às preferên-cias dos demais – adaptando os pontos de vista de cada um às formas de entender o problema que os outros têm. No curso da deliberação os indi-víduos podem tomar consciência dos conflitos inerentes a seus próprios desejos, levando-os a modificar os objetivos que tinham previamente ou até a desistir de alguns deles. Emergem novas perspectivas. O compro-misso e o acordo ganham destaque no processo de intercâmbio entre os participantes do debate.

Portanto, em função do melhor esclarecimento das próprias ideias e dese-jos, as opções podem reafirmar-se ou, segundo o caso, podem chegar a reformular-se ou mudar,

Nós não precisamos arguir que os indivíduos, quando come-çam a deliberar sobre assuntos políticos, não sabem nada do que eles querem. Eles sabem o que querem em parte: eles têm certas preferências e certas informações, mas estas são incom-pletas, muitas vezes confusas e até opostas umas às outras. O processo de deliberação, o confronto de diferentes pontos de vista, ajuda a esclarecer informações e a definir melhor suas próprias preferências. Eles podem até alterar os seus objetivos iniciais, se tal se revelar necessário (MANIN, 1987, p. 351).

Os desejos e interesses não ficam congelados, modificam-se ao longo do processo político, e isto a partir do necessário intercâmbio entre um amplo leque de pontos de vista diferentes, que dão como resultado novas infor-mações e perspectivas.

A deliberação estimularia as pessoas não apenas a expressar suas opiniões políticas, mas também a formar essas opiniões através do debate público. Como afirma Ian Budge (1993), o conhecimento não é estático, mas está sujeito à expansão e alteração a partir da própria discussão. Seyla Benhabib (1996b), que também dedica atenção ao estudo destas questões, alega que seria incoerente pensar que os indivíduos chegam ao debate com as opi-niões já prontas, com suas opções e preferências totalmente definidas, pois a formação de preferências coerentes não precede a deliberação, mas é resultado desta. Concordando também com Bohman (1996), deve-se levar em consideração que, a partir da dinâmica do processo, as posições

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e coincidências mudam, revisam-se, a renegociação e a reespecificação tornam-se uma constante. As razões, ao serem testadas pela audiência, podem ser reformuladas. No diálogo, os participantes têm a oportunidade de realizar a autocrítica, podem mudar de posição à luz das argumenta-ções e motivos oferecidos pelos outros. No mesmo sentido, Anne Phillips (1996) insiste em que, por meio do debate, outras opções podem ser con-cebidas, e as ideias podem modificar-se de tal modo que coisas que se acreditavam inevitáveis apareçam logo abertas a reformas.

John Keane (1993) afirma que os procedimentos democráticos são supe-riores a todos os outros tipos de processos de tomada de decisões não por-que garantam, necessariamente, o consenso e a obtenção de boas decisões, mas porque fornecem aos cidadãos afetados por determinadas políticas a possibilidade de reconsiderar seus julgamentos, corrigindo sua ignorância e cobrindo suas lacunas de conhecimento. A deliberação pública permiti-ria, ademais, que as minorias tentassem que as maiorias modificassem a forma de ver as coisas, a maneira em que enfocam os problemas. Os pro-cedimentos da democracia deliberativa permitiriam aos cidadãos pensar duas vezes e atrever-se a dizer não. Assim, procedimentos deste tipo incre-mentariam o nível de flexibilidade e reversibilidade ou biodegradabilidade da tomada de decisões. Por outra parte, graças a estes, poderia-se gerar inconformidade com as condições existentes, incentivando aos cidadãos a reagirem, a tornarem-se mais ativos. Tais procedimentos estimulariam, também, o aprendizado progressivo e a modificação por acerto e erro. As decisões encontrariam seu fundamento em preferências revogáveis, as quais, por sua vez, seriam o resultado da deliberação e da confrontação entre muitos pontos de vista concorrentes.

Entre outras vantagens e benefícios que resultariam de um aberto processo deliberativo, o filósofo argentino Carlos Nino (1997, p. 164) sustenta que este “incrementa o conhecimento e a detecção de erros de raciocínio graças ao intercâmbio de ideias”, na medida em que a discussão intersubjetiva permite descobrir erros fáticos e lógicos, assim como suprir faltas de infor-mação. Para este autor, a não consideração dos interesses alheios deve-se muitas vezes não a inclinações egoístas dos atores, mas a mera ignorância ou desconhecimento, a carência de informação. No mesmo sentido, Cass Sunstein (1993) aponta que a deliberação pública pode revelar a verdade ou falsidade de juízos de fato sobre o estado do mundo ou sobre os efeitos benéficos das políticas propostas. Por meio do confronto de argumen-tos entre pessoas que não concordam, erros de fato podem vir à tona.

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E, inclusive, a presença de diversas perspectivas poderia esclarecer não só questões relativas à veracidade de certos juízos de fato, mas também pode-ria contribuir para determinar que valor deve-se outorgar realmente den-tro do conjunto de elementos a considerar quando se resolve adotar uma determinada decisão.

Carlos Nino também ressalta que a exposição de motivos e justificati-vas que seja formulada no momento de postular ou apoiar determinada política deve sempre ter um caráter público, “[…] se requer que todo par-ticipante [...] justifique suas propostas frente aos outros. Se seus interes-ses são postos sobre a mesa, eles devem demonstrar que são legítimos” (NINO, 1997, p. 171). Este caráter público levaria tanto a moderar as demandas, já que quem as formula deverá aceitá-las no futuro, em caso de que outrem as levante em circunstâncias distintas, como a moralizar as preferências (MILLER, 1993). Tal caráter tenderia a excluir aqueles interesses não defensáveis frente a terceiros. As pessoas por si mesmas se contêm em maior grau, se autorrestringem, evitam postular posições que apontem para interesses que os demais não aprovariam como genuínos. Assim, argumentos que invocassem meramente uma expressão de desejos ou uma descrição de interesses sem fundamento – “quero porque sim”, “isso é o que quero porque me convém” – não teriam espaço; também não seria bem recebida a invocação do hábito ou do costume, da autoridade ou da tradição, sem qualquer outro subsídio; não seria aceitável a expres-são de proposições normativas que não fossem passíveis de certo grau de generalização – querer que a decisão se aplique a um caso particular em forma exclusiva e não se aplique a casos semelhantes ou equivalentes –; nem seriam considerados aqueles argumentos que dessem lugar a inconsis-tências pragmáticas – posturas incompatíveis com argumentações formu-ladas pelo mesmo indivíduo em um conflito anterior. Nem teriam lugar no debate, por último, as propostas que não levassem em consideração os interesses dos indivíduos concretos (NINO, 1997).

David Miller (1993) também oferece exemplos de argumentos que tende-riam a ser excluídos do debate público: as preferências irracionais baseadas em crenças empíricas falsas são as primeiras a serem descartadas. Fora do jogo ficam, também, as preferências repugnantes às crenças morais da sociedade na qual são expostas – na maioria dos países, as posições racis-tas, por exemplo, não poderiam ser colocadas em um contexto público. Não seriam aceitáveis facilmente, tampouco, desejos imorais ou egoís-tas: os indivíduos, para poder se envolver no debate político, deveriam

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argumentar em termos que qualquer outro participante possa potencial-mente aceitar – como dizia Nino (1997), “isto é bom para mim” não é, então, um argumento válido. E haveria de se desconsiderar a priori, do mesmo modo, a possibilidade de que haja pessoas que viessem expressar um conjunto de preferências no curso do debate e que depois acabassem votando em sentido distinto no momento de tomar a decisão, pois se o voto for público, isto não poderia ocorrer, sob pena de uma imediata perda de credibilidade futura. Segundo Iris Young (1990, p. 107), citando Pitkin, “[…] somos forçados [...] a transformar ‘eu quero’ em ‘eu tenho direito’, uma reivindicação que se torne negociável a partir de critérios públicos”. A exposição pública de razões, portanto, contribui de forma substancial para “lavar” as preferências e para filtrar as questões não pertinentes. Através do teste público é mais difícil que possam passar razões centradas em algum dos elementos mencionados, ou preferências que pretendam apoiar-se de forma exclusiva em retórica vazia (SUNSTEIN, 1993; BOHMAN, 1996).

Desta forma, através do processo de lavagem e filtragem de preferências que resulta do debate público, o número de opções viáveis se reduz, porém sem empobrecê-lo: a discussão aberta simultaneamente tende a enrique-cer o leque e o conteúdo das opções e, por sua vez, limitá-las àquelas que se tornam aceitáveis para o conjunto dos participantes. Como pos-tula Manin (1987), a deliberação requer reduzir o número de soluções propostas, pois não é imaginável que se possa deliberar sobre todas as alternativas que são geradas por uma situação. Em sistemas altamente complexos, como as sociedades contemporâneas, o custo de explorar todas as possibilidades seria enorme, o número de soluções necessariamente deve limitar-se. Alguns conjuntos de preferências iniciais podem ser espontane-amente transformados através do processo de deliberação, de modo que o conjunto final de opções seja bastante menor que o conjunto original. O efeito do debate seria cristalizar as opções dentro de um número menor e coerente de padrões. De acordo com Bohman (1996), razões cognitivas exigem que haja mecanismos, no seio do próprio processo deliberativo, que filtrem algumas alternativas para facilitar a deliberação, excluindo, já desde o início, as propostas irrelevantes ou inaceitáveis.

Outro elemento que demonstraria a importância da deliberação pública: o seu valor epistêmico. A deliberação, segundo Bohman (1996), melhora a qualidade das justificações públicas e da tomada de decisões, ao sujeitar estas a uma série razoavelmente ampla de opiniões alternativas. Como ele reconhece, seguramente poderá objetar-se que nem todas as decisões

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públicas serão necessariamente melhores que as decisões adotadas de forma não pública, especialmente quando há erros e preconceitos amplamente estendidos na comunidade. Poderá argumentar-se, também, que tais decisões nem sempre serão mais eficientes e nem sempre promoverão as melhores consequências ou resultados. Mesmo nesses casos, contra-argu-menta Bohman, a deliberação pública seria importante, pois na medida em que é constitutiva da autonomia dos cidadãos, tem maiores probabi-lidades de melhorar a qualidade epistêmica das justificações das decisões políticas. A qualidade das razões provavelmente será melhor, há maiores probabilidades de contemplar todas as perspectivas relevantes, interesses e informação, e menores de excluir interesses legítimos, dados importantes ou opiniões contrárias que forem razoáveis. Como aponta Nino (1997), pode haver, obviamente, decisões pouco afortunadas, decisões que indiví-duos isolados tomariam melhor do que um conjunto de pessoas reunidas, todavia o processo deliberativo seria mais confiável epistemicamente que o processo de reflexão isolada de qualquer indivíduo.

Neste sentido, Cass Sunstein (1993) alega que da deliberação podem surgir melhores resultados, simplesmente através do processo de detecção e cor-reção de erros involuntários. A deliberação pode ter, por outra parte, um efeito transformador das crenças e opiniões dos participantes, e assim tam-bém, por meio deste processo de discussão, podem produzir-se melhores decisões públicas. Em um sistema de livre expressão, a exposição de múl-tiplas perspectivas ofereceria um quadro mais completo das consequências dos atos sociais, ajudaria a elaborar melhores normas, melhores leis. Um processo deliberativo que funcione bem incrementa as probabilidades de que os resultados políticos respondam aos desejos e aspirações populares e, ao mesmo tempo, ajuda a que tais resultados sejam melhores. Também pode se esperar que venha estimular um maior grau de virtude pública, produzindo níveis mais elevados de participação e de genuína deliberação. A realização destas metas reforça a conexão entre a democracia delibera-tiva e melhores produtos ou resultados políticos. Iris Young, por sua parte, considera que a deliberação pode levar a resultados mais justos. Ela diz:

Com a participação, as pessoas terão maiores possibilidades de introduzir informação relevante. O processo democrático de tomada de decisões tende a gerar resultados justos, ao ser mais receptivo à incorporação de padrões de justiça no pro-cesso decisório e ao maximizar o conhecimento social e as

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perspectivas que contribuem para discutir sobre as políticas públicas (YOUNG, 1990, p. 93).

A deliberação pública dos assuntos permitiria, por outro lado, que todos os potencialmente afetados por uma decisão pudessem ser escutados, antes que tal decisão fosse adotada, de forma a poder antecipar o amplo leque de necessidades, interesses e preocupações que surgiriam em relação à ques-tão tratada. Sendo a definição dos interesses de cada um uma questão de eleições mais do que de conhecimento, deve deduzir-se que corresponde deixar tal processo nas mãos dos próprios cidadãos (NINO, 1997). No mesmo sentido, Robert Dahl (1993) aponta que, para captar os interesses próprios, os demais estariam em desvantagem, pois cada um conta com o seu sistema de valores particular. Os demais estão em situação desvan-tajosa quando se trata de compreender o que é bom para o outro e, além do mais, contariam com menos incentivos para fazer tal coisa. Segundo os defensores deste modelo, uma lei só será considerada legítima na medida em que seja resultado de um processo participativo imparcial e aberto a todos os cidadãos, e na medida em que inclua todas as razões publica-mente acessíveis. Para Nino (1997), uma das condições básicas que exige a deliberação pública consiste, precisamente, em que todos os interessados participem da discussão e da formulação das decisões. Na mesma ordem de ideias, Iris Young (1990) considera que, alterando o foco da noção de justiça e transladando-a de sua definição habitual – ligada a padrões distributivos – para o âmbito procedimental da participação na delibe-ração e na tomada de decisões, uma norma será justa, exclusivamente, quando cada um dos que devem sujeitar-se ao seu cumprimento tenha tido uma genuína possibilidade de fazer ouvir sua voz de maneira efetiva no momento da consideração e debate da norma em questão, e possa ser capaz de concordar com esta sem coerção.

Como os participacionistas, muitos defensores da democracia deliberativa sustentam que o processo de discussão pública pode ter, assim mesmo, efeitos sumamente gratificantes na psicologia e na personalidade dos indi-víduos envolvidos. Levaria a transformar a maneira em que se relacionam com os seus semelhantes e, em geral, com o mundo exterior. Modificaria a forma como veem os assuntos políticos, mudando a consideração que as pessoas têm de si mesmas. Sunstein (1993) alega que a deliberação não apenas implica a promoção de melhores resultados, mas também teria efeitos saudáveis sobre o caráter individual. A discussão pública tenderia a diminuir os sentimentos de debilidade social e política e incrementaria

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o grau de compromisso político dos cidadãos. Criaria pessoas com mais coragem e maior autoconfiança. No mesmo sentido, Joshua Cohen (1997) argumenta que a deliberação pode produzir maior autorrespeito e esti-mularia o sentido de competência política, contribuindo também para a formação do sentido de justiça. Robert Dahl (1993), outro defensor destas teses, assinala que os indivíduos adquiririam um maior sentido de respon-sabilidade, se tornariam mais maduros para as próprias ações, adquiririam uma maior consciência de como estas afetam os demais, alcançariam uma maior disposição para levar em conta as consequências dos próprios atos nos outros. Manin (1987), por sua parte, sustenta que a deliberação repe-tida tem seu efeito educativo e vai melhorando progressivamente, ao longo do tempo.

Outro elemento ao qual os deliberacionistas também outorgam um grande valor é ao fato de que no espaço social existam diversas perspectivas e for-mas de ver a realidade. Tal pluralismo de ideias não pode mais do que fortalecer e dar sentido ao debate. Como defende Sunstein (1993), a diver-sidade de opiniões pode ser uma força criativa e produtiva. A democracia deliberativa mostra-se receptiva ao desacordo e à heterogeneidade porque se todas as pessoas estivessem de acordo em tudo, de que falariam? Sobre que assuntos discutiriam? Caso todos pensassem igual, caso todos tives-sem as mesmas preferências, a comunicação deixaria de ter sentido, pois os falantes não fariam mais do que ver refletidas as suas opiniões iguais uns nos outros e, assim sendo, não teriam necessidade de revisá-las. Para Bohman e Rehg (1997), a diferença é vista como um recurso, como um elemento positivo para a deliberação. Como bem aponta Bernard Manin (1987), para permitir que os participantes descubram e ampliem suas pre-ferências, a deliberação requer uma multiplicidade de pontos de vista e argumentos. Cada um, ao ouvir os outros, expande o seu próprio ponto de vista e percebe coisas que antes não enxergava. A discussão pública necessita não apenas de pontos de vista múltiplos, mas de enfoques ou perspectivas enfrentadas ou em conflito, pois não poderia haver intercâm-bio de argumentos entre indivíduos que tivessem o mesmo ponto de vista. Através do processo deliberativo entre posições diferentes, nova informa-ção sairia à superfície. O que é evidente, simples e luminoso não necessita submeter-se à deliberação; a deliberação é necessária para as coisas incer-tas, quando pode haver razões para decidir em um sentido e razões para decidir em outro sentido distinto.

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Como afirma Bohman (1996), a deliberação pública é uma das muitas atividades cooperativas que demanda uma pluralidade: sua meta é resolver problemas junto com outros que têm perspectivas, preferências e interes-ses distintos. A constante interação dialética entre culturas e subpúblicos diferentes em uma grande esfera comum de cidadania enriquece a todos, a razão pública dos subgrupos vê-se fortalecida e torna-se mais ampla. A experiência e a percepção de diferentes posições abrem os olhos do agente e o capacita para ver sua situação sob uma ótica distinta. A democra-cia introduz, desta forma, a possibilidade de inovação através de novos entendimentos e compreensões. Como argumenta Iris Young (1996), preservando a pluralidade maior será a compreensão mútua. As próprias experiências podem transformar-se e mais fácil será entender o outro, sem por isso se ver obrigado a uma identificação com ele: as perspectivas par-ciais deveriam ser resguardadas dentro desse processo de interação mais amplo. Em suma, há de se ressaltar que uma democracia deliberativa ou radical demanda que se reconheça a diferença, o particular, o múltiplo, o heterogêneo, tudo o que fora tradicionalmente excluído pelo conceito de homem em abstrato. Um projeto de democracia radical e plural exige a existência de multiplicidade, de pluralidade e de conflito, vendo-os como a própria razão de ser da política (MOUFFE, 1993; VITULLO, 2007a).

Ao chegar a este ponto, torna-se oportuno examinar uma série de divergên-cias que aparecem entre os autores quando expõem todas estas questões. Assim, por exemplo, voltando à leitura de La constitución de la democracia deliberativa, de Carlos Nino, percebe-se que ele aponta, insistentemente, para um elemento a respeito do qual nem todos os deliberacionistas coin-cidem: o requisito de imparcialidade. Segundo Nino (1997, p. 102), a discussão pública exige que os argumentos revistam-se de aparência de imparcialidade, “[…] a virtude da democracia reside precisamente na incorporação de mecanismos que transformem as preferências autointeres-sadas originárias das pessoas em outras mais altruistas e imparciais”. No processo de deliberação ficariam excluídas as posições que não pudessem ser defendidas de um ponto de vista imparcial. E seria justamente o pró-prio diálogo que deveria converter, segundo Nino, as preferências autointe-ressadas em preferências imparciais. Roberto Gargarella (1998), discípulo de Nino, também argumenta em favor desta postura. Já Bohman (1996), considera que o modelo dialógico de deliberação pública não exige, neces-sariamente, a exclusão da apelação a autointeresses. Bohman afirma que nem todos os interesses necessitam ser generalizáveis para poderem ser

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colocados na deliberação pública. A imparcialidade, para ele, não deve ser entendida como sinônimo de publicidade: uma comunicação pode ser publicamente convincente sem ser imparcial em sentido estrito. Minhas necessidades continuam minhas, ainda que elas possam ser publicamente compreensíveis. Por que haveria que se identificar sempre parcialidade com egoísmo?

Às vezes, certas razões podem ser convincentes para partes defrontadas entre si devido ao grau de abstração e caráter vago, e não pelas suas qua-lidades imparciais. Outras razões podem ser convincentes tão somente quando são reflexo de experiências compartilhadas pelas partes envolvidas na deliberação. A imparcialidade seria, para Bohman (1996), apenas um dos muitos tipos de razões que podem ser convincentes sob condições de publicidade. Ainda se os indivíduos ou grupos constroem, cada um, seu próprio ponto de partida público como apropriadamente abstraído de seus assuntos ou interesses, uma variedade de padrões de imparcialidade ou assuntos imparciais individualizados são inevitáveis em sociedades plura-listas. A razão pública seria plural, então, precisamente porque não pressu-poria um ponto de vista único e imparcial.

Muitas críticas feministas, ao questionarem noções como a de imparcia-lidade e as formas unitárias de universalidade que estas geram, sustentam que se deve rejeitar, por ilusório, todo e qualquer projeto de construir um sistema normativo universal isolado das sociedades concretas. Assim Iris Marion Young (1990) considera que uma teoria da justiça que fosse real-mente universal e independente, que não pressupusesse nenhuma situação social, nem instituição nem prática particular, seria tão abstrata que não teria nenhuma utilidade para avaliar instituições e práticas reais. Seria um ideal impossível, porque as particularidades de contexto e afiliação não podem ser removidas da argumentação moral. Para esta autora, além de não ser possível, tal ideal tampouco seria desejável. Como expressa reite-radamente ao longo de sua obra, quando se invoca a imparcialidade se busca fazer aparecer o ponto de vista particular dos grupos dominantes como perspectiva universal. A ideia de imparcialidade cumpriria as fun-ções ideológicas de ocultar as formas em que as perspectivas particulares dos grupos dominantes se erigem como universais e de justificar as estru-turas hierárquicas de tomada de decisões. Anne Phillips (1996), glosando e aderindo às manifestações de Young, sustenta que atrás de uma aparente neutralidade se esconde a masculinidade dos padrões e definições. Para

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Phillips, a universalidade seria uma fraude em si, caberia ser cético perante qualquer tentativa de proclamar critérios e normas universais.

Outros conceitos também geram controvérsias entre os pensadores deli-beracionistas. É o caso da noção de “bem comum”: não todos os auto-res lhe outorgam igual significação e tratamento. Assim, por um lado, Cohen (1997) afirma que as explicações públicas e justificações das leis e políticas devem ser tomadas em termos de concepções do bem comum, agregando, também, que a política democrática envolve um processo de deliberação pública que enfoca ou aponta para a busca do bem comum. A democracia exigiria, segundo ele, alguma forma de igualdade manifesta entre os cidadãos, e desenharia a identidade e interesses destes de forma tal a contribuir à formação de uma concepção pública do bem comum. O debate público estaria centrado no bem comum dos membros; os interes-ses, objetivos e ideais que são envolvidos pelo bem comum seriam os que sobrevivem quando o intercâmbio de ideias e opiniões se dá por encerrado. O objetivo dos deliberacionistas deveria visar a promover o desenho de instituições que ponham o foco do debate político no bem comum, que moldem identidades e interesses dos cidadãos de forma que contribuam a esse bem comum e que ofereçam condições favoráveis para o exercício dos poderes deliberativos requeridos pela autonomia.

Em resposta a este tipo de postura, de certo tom roussoniano, Bohman (1996) considera que não se poderia pensar o bem comum em termos substantivos, nem conceber a deliberação política como primariamente envolvida em uma autêntica apropriação de valores compartilhados e ide-ais políticos já prontos. Na mesma linha, Knight e Johnson (1994) afir-mam que não existe bem comum a descobrir. Para eles, o resultado do processo deliberativo pode ser visto como “um” bem comum possível, não como “o” bem comum, “[…] o resultado do processo democrático representa um – e não ‘o’ – bem comum. Um ‘bem comum’ é fabricado, não descoberto. É produzido pelas partes do processo deliberativo e não tem um status único e previamente normativo” (KNIGHT e JOHNSON, 1994, p. 286). No caso de Bernard Manin (1987), este sustenta que a fonte de legitimidade, ao contrário do que tradicionalmente afirmavam as teorias liberais e democráticas, não é a vontade predeterminada dos indivíduos, mas o processo da sua formação, ou seja, a própria delibera-ção. Leis legítimas seriam o resultado da deliberação entre todos e não a expressão da vontade geral. Não seria possível pensar que cada decisão concreta adotada por um grupo de pessoas reunidas deveria estar referida

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a uma verdade exterior anterior. Não se pode pretender avaliar cada deci-são em relação a um padrão independente do próprio processo que leva à sua elaboração, diz Manin.

Tampouco se deveria considerar que o processo democrático, por meio da deliberação, desembocará na resposta correta. Como alega Miller (1993), cabe distinguir a democracia deliberativa dos intentos de configurar uma “democracia epistêmica”, que definiria os procedimentos democráticos como os procedimentos que buscam chegar à resposta correta para ques-tões que enfrenta a comunidade política. Assumindo, em outras palavras, que há certa objetividade correta ou respostas válidas para a questão levan-tada, mas que havendo incerteza acerca de qual é a resposta, se necessita um processo de tomada de decisões – a democracia com seu voto de maio-ria – como aquele procedimento que seria o mais adequado para produ-zir tal resposta correta. Ao abrir potencialmente o processo para todos os pontos de vista, o resultado da deliberação deverá ser uma decisão que as partes envolvidas possam sentir como razoável. Mas isto não implicará, de modo algum, que venha ser o reflexo de algum padrão transcendente de justiça ou verdade. As pessoas não necessitam ser persuadidas da verdade, à diferença de uma demonstração lógica. Tampouco se pode confirmar ou refutar um argumento, tão só fortalecê-lo ou debilitá-lo. A eleição de uma política realiza-se a partir da opção entre valores, não entre verdades – em que pese a eleição entre valores não seja absolutamente arbitrária e alea-tória, dado que alguns valores têm mais probabilidades do que outros de ganhar em uma audiência de pessoas razoáveis (MANIN, 1987).

ii

Nesta seção, serão apresentados dois pontos centrais para a corrente deli-berativa, e em relação aos quais pesam as maiores críticas. Também serão elencados os argumentos elaborados pelos pensadores englobados nesta corrente nas suas tentativas de responder e defender-se. A atenção estará concentrada, então, nas seguintes questões: a) a contradição entre o ideal deliberativo e a realidade das sociedades contemporâneas, determinando de que maneira a não realização das condições ou requisitos básicos, que os autores referem em suas teorias como iniludíveis, para um processo

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deliberativo amplo e democrático influenciam em seu pobre desempenho; e b) as estratégias políticas e institucionais que, segundo eles, deveriam ser adotadas para alcançar uma melhor concretização do ideal deliberativo, assinalando seus principais defeitos.

a) Deliberação: entre o ideal e a realidade das sociedades contemporâneas

Em relação ao primeiro ponto, é muito o que foi reconhecido pelos pró-prios autores deliberacionistas. Deste modo, James Bohman (1996), por exemplo, inicia seu livro já citado apontando para a lacuna significativa que existe nos estudos e propostas sobre a democracia deliberativa: todos tratam sobre a deliberação, mas ninguém dá maiores detalhes de como poderia funcionar sob condições sociais reais. Segundo este autor, em geral as teorias são basicamente procedimentais e baseiam-se mais em condições ideais do que nas condições realmente existentes nas sociedades contemporâneas. Para apresentar um modelo deliberativo viável, se deve-riam levar em consideração as efetivas circunstâncias sociais nas quais os procedimentos deliberativos haverão de operar e pensar em que medida essas podem ser modificadas. A deliberação não poderia estar baseada em ideais impraticáveis e inalcançáveis, diz Bohman.

E desta forma, se para este autor haveria um conjunto de condições que ele compartiria, em geral, com os demais autores deliberacionistas, con-siderado básico e necessário para alcançar um procedimento “ideal” de deliberação democrática, então se deveria partir da análise das condições reais e, em base a estas, pensar e delinear estratégias políticas que permi-tissem uma maior aproximação ao modelo de deliberação: estratégias que possibilitassem colocar em prática, em algum grau, tal ideal. Há quem seja cético em relação às perspectivas concretas da democracia deliberativa. É o caso de Knight e Johnson (1994), os quais consideram que haveria sérios problemas para conseguir institucionalizar a deliberação: pôr em prática o modelo ideal exigiria uma luta política altamente conflitiva, dizem, cujo resultado seria altamente incerto. Estes argumentam que haveria uma tensão insuperável entre o plano normativo e as metas da deliberação na prática.

Antes de adentrar no estudo das desigualdades reais, cabe aqui fazer uma rápida revisão de quais seriam tais requisitos normativos indispensáveis para a deliberação. Segundo o mesmo Bohman (1996), deveria ser levada em conta a participação de todos os afetados pela decisão, a igualdade

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política substancial – incluindo igualdade de oportunidades para tomar parte na deliberação –, a igualdade nos métodos de tomada de decisões e na determinação da pauta de assuntos a tratar, e o intercâmbio livre e aberto de informação e razões, na medida suficiente para alcançar o conhecimento dos assuntos em discussão e das opiniões dos outros sobre esses assuntos. Carlos Nino (1997) também expõe estas e outras condi-ções. Um modelo de democracia como o que ele prega exigiria que todos os interessados participassem na discussão e na decisão, que houvesse uma base razoável de igualdade, que os argumentos fossem genuínos, que o grupo tivesse uma dimensão adequada que maximizasse as probabilidades de um resultado correto, que não houvesse nenhuma minoria isolada, que a composição das maiorias e minorias mudasse em função dos assuntos ou matérias tratadas e, por último, que os indivíduos não se encontrassem sujeitos a emoções extraordinárias no momento de trocar argumentos. Joshua Cohen (1997) também menciona as suas condições: as partes, em uma deliberação ideal, devem ser substancialmente iguais; todos têm de poder colocar assuntos na agenda, submeter e oferecer razões apoiando ou criticando as propostas; cada um deve ter igual voz na decisão, de modo que a distribuição do poder e dos recursos não influencie nas suas possibi-lidades de contribuir para a deliberação.

Isto no que se refere aos requisitos ideais. Contudo, o plano das condi-ções reais, mesmo nas sociedades mais desenvolvidas, está muito longe de acontecer. Passa-se, no que segue, a fazer uma leitura mais exaustiva de tais condições e a tentar analisar como poderiam ser modificadas. Dahl (1993), em Democracy and its critics, defende que se deveriam construir as oportunidades apropriadas e equitativas para que todos possam expres-sar suas preferências e razões, incorporando novos temas. Haveria de se encontrar mecanismos para reduzir a desigualdade de capacidades e pos-sibilidades para participar da vida política causadas pela injusta distribui-ção de posições, recursos e oportunidades econômicas, e pela iniquitativa distribuição do conhecimento, da informação e da capacidade cognitiva. Haveria de se conseguir que os interesses, preferências, opiniões, perspec-tivas e posições fossem sopesados de forma mais parelha ou equitativa no âmbito do debate público. O próprio Nino (1997) reconhece que a objeção mais forte que pode ser feita a este modelo é de índole prática: caso não forem resolvidas as aberrantes desigualdades sociais, dificilmente poderá se encontrar a forma de pôr em funcionamento uma autêntica democracia

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deliberativa. A grande incógnita para muitos dos autores citados é desco-brir como realizar tal tarefa.

Bohman (1996) adverte que as teorias deliberativas devem distinguir entre oportunidades meramente formais de deliberação e a real capaci-dade dos cidadãos de fazer uso da razão pública. Tal uso deveria significar um efetivo funcionamento dos arranjos deliberativos, apesar de diferenças na posição social e nos recursos culturais. A lista potencial de recursos escassos e de desigualdades relevantes para a deliberação pode ser enorme: diferenças em habilidades naturais, escassez de tempo, desigualdade na distribuição de informação moral e cognitiva, distinta experiência devida à divisão do trabalho e à seletividade na distribuição da informação etc. A partir desse diferencial de recursos, as pessoas perderiam, pouco a pouco, a confiança em si mesmas, não criariam as capacidades verbais necessárias para a deliberação, sentiriam menos autoestima, contariam com menos habilidades para persuadir os outros, não atingiriam a combinação indis-pensável de carga emocional e técnicas verbais para influenciar sobre seus pares (MANSBRIDGE, 1983). Evidentemente, as instituições democrá-ticas liberais não são suficientes para superar as desigualdades de recursos e capacidades com que os participantes chegam ao âmbito da deliberação pública.

James Bohman (1996) realiza uma análise especialmente interessante de como se deve prestar atenção não apenas à desigualdade de recursos eco-nômicos, mas também aos recursos mais propriamente políticos – embora, claro, ambos estejam estreitamente inter-relacionados. Este autor faz alu-são, em diversas oportunidades ao longo de sua obra, às noções de pobreza e impotência políticas e comunicativas. Ele destaca que a habilidade de responder em um debate exige recursos e capacidades que muitos cidadãos não têm. A pobreza política criaria um círculo vicioso análogo àquele que gera a pobreza econômica. Assim a pobreza política se reproduziria a si mesma na deliberação: um grupo excluído poderia superar sua exclusão somente iniciando a deliberação pública, precisamente algo que a própria exclusão tornaria mais difícil. A pobreza política consistiria em uma ina-bilidade do grupo ou indivíduo em questão para fazer uso efetivo de suas oportunidades de influenciar no processo deliberativo. Para este autor, um bom indicador empírico da desigualdade na capacidade deliberativa surgi-ria ao analisar se os cidadãos ou grupos são ou não capazes de iniciar com sucesso a deliberação pública sobre assuntos que lhes dizem respeito. A falta de habilidades para um uso pleno e efetivo de seus direitos políticos e

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liberdades na deliberação se manifestaria no fato de não conseguir intro-duzir novos temas no debate público, em não poder exercer algum grau de influência nos resultados e no fato de não ser capaz de proferir um discurso sem ser interrompido.

Com frequência, muitos indivíduos – aqueles que não alcançam eficácia no debate ou aqueles que sequer conseguem se fazer presentes – carecem de voz pública mais do que de oportunidades procedimentais, carecem do vocabulário para expressar suas necessidades e perspectivas publicamente. Ao não poderem iniciar a deliberação ou mudar seu curso, seu silêncio se torna consentimento para os deliberantes mais poderosos, os quais são capazes de ignorá-los e de produzir, assim, uma inclusão decididamente assimétrica. A melhor maneira de evitar a pobreza política, segundo Bohman (1996), é através de instituições democráticas, de uma esfera pública aberta e de uma maior informação. Tal esfera pública poderia che-gar a criar as condições para a expectativa política de efetividade ou eficá-cia. O fundamental seria encontrar os mecanismos que permitissem, uma vez redistribuídos os recursos e oportunidades mais equitativamente, que estes se vejam traduzidos em influência efetiva no processo de deliberação.

Cada participante deve ter confiança de que sua vontade, ao menos em alguma ocasião e em referência a alguma questão das que lhe interessa, terá influência favorável na deliberação. E para atingir tal coisa se requer um mínimo limiar de efetividade pública. O grande problema em relação a este assunto, e que Bohman não considera, é que, coincidindo desta vez com Danilo Zolo (1994), os recursos de atenção são bens escassos: um ser humano não pode prestar genuína atenção a uma quantidade ilimitada de assuntos. Não é fácil conseguir visibilidade na esfera pública, nem é fácil, tampouco, que pessoas estranhas estejam dispostas a prestar atenção ao que cada um tem a dizer, a dar ouvidos aos discursos e manifestações que expressam necessidades, problemas e questões que podem não ter nada a ver com seus próprios interesses, inquietudes e preferências.

Continuando com Zolo (1994), haveria de se levar em consideração que, com o aumento da diferenciação funcional nas sociedades, aumenta tam-bém a quantidade de atenção que é exigida a cada indivíduo para se adap-tar a um meio ambiente cada vez mais complexo e perigoso, o que leva a concluir que há, como postula este autor,

[…] uma escassez relativa da quantidade de atenção socialmente disponível. Múltiplos temas de informação, conhecimento

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e experiência rodeiam os agentes individuais com um fluxo crescente de estímulos simbólicos e demandas prescritivas que “consomem” uma quota de seu potencial de atenção consciente cada vez maior. Parece haver uma confirmação empírica de que o período de atenção do homo sapiens é um recurso limi-tado com pouca elasticidade, seja de um ponto de vista indi-vidual ou de um ponto de vista evolutivo [...] os períodos de atenção [...] não aumentam significativamente com o aumento do conhecimento e da aptidão intelectual, e tampouco podem ser subtituídos tecnologicamente [...] em que pese ter havido um aumento enorme, especialmente no decorrer do último século, na necessidade social de prestar atenção (ZOLO, 1994, p. 170-171).

As pessoas relegariam a ruído de fundo tudo aquilo que fosse além da sua experiência quotidiana, incluindo os assuntos políticos. Para Zolo, este fenômeno explica por que os meios de comunicação – aos que se fará referência com maior detalhe nas páginas adiante –, utilizam com uma frequência cada vez maior técnicas de persuasão subliminar.

E outro fenômeno fundamental que aparece quando se aborda a questão das desigualdades deliberativas é o que aborda profusamente Iris Young (1990; 1995; 1996; 1998) em suas obras: quais são as formas e estilos que são aceitos, e quais os rejeitados no debate público? Como indica a intelec-tual estadunidense, associar o debate unicamente a argumentos críticos, a formas “racionais”, a um estilo assertivo e confrontativo, é não perce-ber que são padrões que provêm de uma matriz cultural específica, que produz um viés que favorece a certos grupos e indivíduos em detrimento de outros. Young assinala que estas maneiras de deliberar respondem a pautas masculinistas, de predomínio branco e de setores pertencentes às classes média e alta da sociedade. O predomínio destes modos depreciaria o discurso dos demais. Ela explica como o próprio discurso envolve poder, não sendo suficiente para situar os falantes em uma situação de equidade, e portanto, pôr entre parênteses as desigualdades políticas e econômicas, como acreditam muitos deliberacionistas. Privilegiar certos estilos discur-sivos, opor razão a paixão, mente a corpo, identificar objetividade com calma e ausência de expressões emocionais deixa em desvantagem muitas pessoas, como as mulheres e as minorias raciais, por exemplo, as quais tenderiam a utilizar um tipo de discurso mais excitado, a usar uma forma diferente de modular e entoar a voz, a dar uma intervenção mais destacada

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ao corpo, com mais gestos e exteriorização de emoções, e a fazer um maior uso da linguagem figurativa.

Young sugere que sempre haverá algo a aprender de perspectivas e pon-tos de vista diferentes aos próprios e que ditas perspectivas e pontos de vista divergentes não podem ser redutíveis a um bem comum unificado. Considera que, para que haja realmente igualdade de oportunidades na manifestação dessas diversas visões de mundo, também se deve dar espaço às múltiplas formas em que podem ser expressas. Resgata, desta maneira, estilos e elementos discursivos que comumente seriam deprecia-dos ou desvalorizados pelos padrões “racionais” de deliberação, tais como a retórica, a narração de histórias, os cumprimentos e elogios. Ela estima que admitir outras formas pode facilitar a comunicação, ao estimular o reconhecimento do outro na sua particularidade, na sua especificidade. Além disso, pode ajudar a estabelecer confiança entre os participantes, especialmente quando as diferenças que os separam – culturais, sociais, de valores – são muito grandes. Avançaria-se, desta forma, na eliminação do etnocentrismo ocidental. As diferenças de perspectivas e estilos deixariam de ser consideradas como divisões a serem superadas e passariam a contar como recursos que ampliam a comunicação democrática.

Esta autora assevera que os privilégios dos profissionais se estendem para além do local de trabalho, abrangendo a forma de vida. Estendem-se ao que ela denomina “respeitabilidade”. As pessoas que são tratadas com res-peito são também escutadas e veem suas demandas satisfeitas, em virtude da sua autoridade, conhecimento ou influência. Estas normas de respei-tabilidade na sociedade estariam associadas especificamente à cultura profissional: determinadas roupas, determinadas formas de emissão dos discursos e tom de voz – com afabilidade, mas sem excitação ou muita demonstração, sem muitos gestos –, estilos e gostos particulares, formas de comportamento específicas, maneiras de se sentar, de ficar em pé, de caminhar. Todas elas seriam expressões de respeitabilidade. Geralmente os profissionais esperam e recebem respeito dos outros em virtude de sua posição e têm acesso primário aos meios de interpretação e comunicação na sociedade, algo que não acontece com aqueles que pertencem a algum grupo social oprimido, os que a toda hora deverão provar serem merecedo-res de respeito e estarão sendo observados e julgados de forma constante.

Bohman (1996) também faz referência a este tema, quando manifesta que muitas e diferentes capacidades de autogoverno seriam necessárias para

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que os cidadãos conseguissem participar de forma efetiva na deliberação pública e no diálogo. Ele inclui diversas formas de expressão, que dêem conta da imaginação, dos sonhos, da valorização dos desejos, da capaci-dade de narrar e do uso da retórica e da argumentação. Também as iro-nias, as piadas, as metáforas, o relato de experiências passadas, todos são elementos que podem contribuir para facilitar o processo de comunica-ção e ajudar, muitas vezes, a destravar uma deliberação paralisada. Todas seriam maneiras legítimas para tentar captar a atenção pública e institu-cional na deliberação. O problema reside em que, muitas vezes, operam formas de censura e autocensura através da imposição pública de determi-nados estilos de comunicação política, daquele estilo racional, profissional e respeitável de que falava Young. Surgem formas verbais de poder, intimi-dação verbal – demandas de experiência baseadas em recursos culturais e capacidades acumuladas podem chegar a intimidar se estão acompanha-das por uma ampla crença em sua posição epistêmica privilegiada. Outro fator de intimidação pode provir da existência de uma linguagem oficial para a deliberação, que favoreça determinados grupos étnicos e exclua outros. E se os mecanismos do diálogo estão contaminados ou inibidos por assimetrias, a deliberação perde sua dinâmica e deixa de ser pluralista, para se tornar a razão pública de um grupo ou de uma classe singular, que pretende revestir-se de caráter geral. Bohman insiste: o poder muitas vezes se reflete na forma em que os problemas são definidos e demarcados, distorcendo a comunicação entre as partes.

É fundamental, como bem aponta este autor, que as razões sejam comu-nicadas de forma em que todos possam entendê-las – que sejam inteli-gíveis para todos os participantes –, e assim todos possam aceitá-las ou rejeitá-las e livremente responder a elas em seus próprios termos. Razões formadas desta maneira dariam como resultado políticas que todos con-siderariam mais facilmente como legítimas. Ainda quando não se hou-vesse atingido a unanimidade em relação a um determinado assunto, os cidadãos concordariam o suficiente como para continuar cooperando na deliberação. Caso esta condição fundamental não se cumprisse, se esta-ria violando uma das principais condições da publicidade: a expectativa cidadã geral de que eles terão oportunidades de contribuir para a delibe-ração pública; a deliberação, então, se tornaria elitista, favorecendo aque-les com grandes recursos culturais, conhecimento e informação, os quais seriam mais capazes de impor, na arena pública, seus próprios interesses e valores ao restante. Sem uma linguagem inteligível para os participantes

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e informação clara e compreensível, não caberia falar em uma autêntica democracia (BOHMAN, 1996; DRYZEK, 1996).

Vale fazer uma pequena digressão sobre esta questão: se é positivo resgatar formas de discurso alternativas, já que isto ofereceria um maior potencial de expressão e uma maior inclusão de manifestações na arena do debate, restariam algumas dúvidas. Não poderia se correr o risco de que, garan-tindo o direito de expressão a todos, mas por meio de códigos diferentes, o diálogo não chegasse a se fazer realmente efetivo? Não poderia-se cair em uma pura e simples multiplicação de monólogos mutuamente inin-teligíveis, ou em um muito “democrático” diálogo de surdos? Como se pergunta em certo momento Bohman (1996), não se correria o risco de cair em um falatório de vozes incomensuráveis? E caso, procurando resol-ver estes problemas, se intentasse retraduzir as diferentes manifestações para que possam ser entendidas por todos, quem estaria legitimamente facultado para realizar essa interpretação ou processo de tradução? São perguntas que autores como Young não oferecem uma clara resposta. É certo que, como ela e outros sustentam, o importante não é só falar, mas também escutar; que é importante também destacar que a deliberação pública é dialógica, não meramente discursiva. Mas quem garante que os desfavorecidos poderão realmente escutar – e não tão somente ouvir sem entender – os avantajados socialmente?

E aqui aparece outro problema crucial. A questão não é só de formas, de estilos, é mais profunda: concretamente, como pensar em um diálogo igualitário quando os participantes contam com capacidades intelectuais diferenciadas, quando alguns tiveram maiores possibilidades educativas e de desenvolvimento mental que outros? O assunto vai muito mais além das meras formas. Aceitar a retórica, a narração de histórias e as saudações por si só não equipara os participantes. Este tema, em geral, não é suficien-temente considerado pelos teóricos da democracia deliberativa. A própria Iris Young, que demonstra uma louvável preocupação pela preservação das diferenças culturais, de estilos e formas de expressão, não dá um tra-tamento mais profundo à questão. Só de passagem aparecem menciona-dos em suas obras os maiores privilégios simbólicos ou materiais com que contam alguns grupos, mas para serem relacionados imediatamente, e de forma exclusiva, outra vez, com o tema dos estilos discursivos.

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b) Estratégias políticas e institucionais

Passando agora à questão das estratégias políticas e institucionais que poderiam ajudar a melhorar as condições para uma deliberação pública mais justa, aberta e democrática, as propostas apresentam um amplo leque de possibilidades, com graus diversos de elaboração, de imaginação e de ousadia. Iris Young (1990), por exemplo, busca dar uma ênfase especial à representação dos grupos sociais oprimidos através de medidas que levem a sua auto-organização e que tendam a fortalecer o entendimento reflexivo de sua experiência no contexto social, que estimulem os próprios grupos para que estejam em condições de propor e gerar políticas alternativas e que obriguem os tomadores de decisões a levar em conta novas perspec-tivas que são abertas com sua inclusão no debate. Young sugere que se deveriam outorgar fundos públicos para contribuir à reunião e articula-ção de novas propostas e ideias, também contemplando a possibilidade de adjudicar poder de veto a certos grupos sobre assuntos específicos que os afetem de forma direta – cita o caso das mulheres e dos direitos reproduti-vos, ou o das reservas indígenas e as políticas sobre a posse e o uso do solo.

Outros, como James Fishkin, Robert Dahl ou John Burnheim, oferecem novos formatos institucionais baseados em critérios de representação esta-tística, que permitiriam dar voz àqueles que hoje não conseguem ingressar no debate público. Bohman, por sua parte, propõe medidas que permitam redistribuir os recursos políticos e imponham limitações aos que já os têm, e considera importante, assim mesmo, a implantação do voto cumulativo, o qual poderia ser útil em alguns casos, para construir coalizões entre as diversas minorias. E Joshua Cohen, por seu lado, oferece argumentos em favor da criação de novas arenas públicas para o debate, financiadas com dinheiro público. Todos procuram arranjos institucionais que provejam as oportunidades e incentivos para que os funcionários públicos e os cida-dãos se vejam envolvidos em um amplo processo de discussão pública, e se vejam estimulados a permutar argumentações e razões. Nenhum defensor da democracia deliberativa chega, entretanto, a apregoar uma completa abolição das instituições da democracia liberal, mas apenas o seu redese-nho à luz de novos ideais reguladores, o que sem dúvidas expressa uma das maiores limitações desta corrente.

As ideias de Young em relação à política de grupos receberam grande atenção entre os estudiosos destes temas. Ela afirma que a representação de grupos promove resultados justos porque maximiza o conhecimento

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social expressado na discussão. As diferenças de grupo se manifestariam não apenas em diferentes necessidades, interesses e metas, mas também em diferentes localizações sociais e experiências. As pessoas pertencentes a diferentes grupos contariam, inclusive, com instituições e práticas sociais distintas. Young (1990, p. 186) considera que “[…] um público que faz uso de todo o conhecimento social em sua pluralidade conta com mais chan-ces de tomar decisões mais sábias e mais justas”. Ela afirma também que

[…] em certas ocasiões o reconhecimento de direitos particu-lares para os grupos é a única forma de promover sua plena participação. Alguns temem que tal tratamento diferenciado possa estigmatizar ainda mais tais grupos. Eu mostro como isto só é verdadeiro se continuarmos entendendo a diferença como oposição – identificando igualdade com uniformidade e diferença com desvio ou desvalorização. O reconhecimento da diferença exige também um processo de tomada de deci-sões políticas que estimule a organização autônoma dos grupos dentro da esfera pública. O que por sua vez pressupõe o esta-belecimento de procedimentos que assegurem a cada grupo o direito de ser ouvido, via instituições de representação grupal (YOUNG, 1990, p. 11-12).

Esta autora crê que são os grupos que devem ser os sujeitos da deliberação, pois a própria identidade das pessoas estaria, em parte, constituída por suas afinidades grupais. Os grupos sociais refletiriam as formas em que as pessoas se identificam a si mesmas e aos outros, o qual as levaria a associar--se com certas pessoas e a tratar os outros como diferentes. Os grupos se constituiriam a partir de tais diferenças e seriam identificáveis em suas relações recíprocas.

Tais propostas despertaram grande interesse entre os que se dedicam a estes temas, embora tenham sido também fonte de muitos questionamen-tos. Assim, por exemplo, Anne Phillips (1993) assinala que as propostas de financiar ou dar um status especial a certos grupos podem enfrentar sérias dificuldades na hora de determinar quais grupos seriam relevantes, quais mereceriam algum tipo de representação adicional ou reforçada. Para esta comentarista surgiriam, assim mesmo, problemas de responsabilização: como estabelecer mecanismos que façam responsáveis os representantes dos grupos oprimidos frente a seus representados? Outro risco, segundo Phillips, seria o de congelar os grupos e isolá-los do restante da socie-dade, congelar certas identidades e gerar compartimentos fechados com

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assuntos estreitos e específicos demais, motivo pelo qual, ela não considera adequado o mecanismo de veto que Young propõe, no lugar deste, defende formas institucionais não tão rígidas, como a política de quotas, por exem-plo. Phillips sustenta que se deveria desenvolver uma política que reconhe-cesse e representasse a diferença de grupos, mas sem cair em uma política de compartimentos estanques, evitando assim a divisão e fragmentação, e abrindo as portas para o desenvolvimento de solidariedades mais amplas.

John Dryzek (1996), por outra parte, considera que se o Estado apoiasse financeiramente aos grupos oprimidos e certificasse ou decidisse quais deveriam ser contemplados e quais não, imediatamente se geraria uma acirrada competição para ganhar o status de grupo oprimido, o que daria lugar a uma cultura patológica da vitimização. Para este autor, a questão seria muito diferente caso o Estado se abstivesse de intervir neste pro-cesso, evitando, desta forma, o congelamento e falsificação das identida-des grupais. Na mesma linha, e em implícita crítica às propostas de Young, James Bohman (1996) afirma que os grupos não devem ser entendidos como categorias culturalmente fixas. A formação de grupos deveria ser um processo aberto, pluralista e dinâmico. A pluralidade de grupos na sociedade civil, segundo ele, promoveria a deliberação unicamente na medida em que as associações grupais pudessem formar-se e reformar-se na esfera pública. Para Chantal Mouffe (1993), Iris Young teria uma noção de grupo exageradamente essencialista, de maneira tal que sua visão não seria tão diferente, apesar de seus protestos, do pluralismo dos grupos de interesse que ela critica: haveria grupos com seus interesses e identidades dadas, e a política não lidaria com a construção de novas identidades, mas com formas de satisfazer as demandas de certos grupos com identidades e interesses já constituídos. Mouffe propõe, então, um enfoque que aponte à construção de uma identidade política comum e crie as condições para o estabelecimento de uma nova hegemonia, articulada através de novas relações sociais igualitárias, novas práticas e novas instituições.

Seria pertinente incluir aqui, igualmente, as críticas realizadas por Carol Gould à política de grupos de interesse, que bem poderiam ser aplicadas à proposta de Iris Young:

A primeira crítica que eu faria da ontologia subjacente a este modelo pluralista é que ao definir os indivíduos fundamental-mente em termos de seu pertencimento grupal, não reconhece a importância das diferenças concretas entre os indivíduos que fazem parte de um mesmo grupo (GOULD, 1988, p. 98-99).

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Cada grupo é visto como tendo interesses e identidades definidos. A socie-dade é considerada como um simples agregado de grupos.

Devido à incapacidade de reconhecer as relações sociais con-cretas entre grupos e entre indivíduos dentro dos grupos, este modelo teórico não fornece uma base para criticar as relações desiguais de poder e dominação que podem existir entre os indivíduos dentro de um grupo [...] (GOULD, 1988, p. 100)3.

Em relação às políticas de incentivo à formação de grupos, cabe se per-guntar também: qual é o estilo ao qual poderiam recorrer aqueles que não têm vínculos para se identificar com nenhum grupo com estilo discursivo próprio, que só contam com os “restos” ou material de descarte da cultura dominante? Apesar de Young (1990) sustentar que os indivíduos podem não ser conscientes dos seus laços de pertencimento grupal e, embora con-sidere que um grupo pode ser identificado por terceiros sem que o identi-ficado tenha consciência específica de si mesmo enquanto grupo, caberia questionar: com que ferramentas discursivas poderiam se defender em um debate “democrático” e “igualitário” aqueles oprimidos que nem sequer têm consciência de pertencer a algum grupo? Como encontrariam sua cultura de “origem”, a fim de conseguir paridade em sua capacidade de discutir/dialogar/comunicar-se?

Não é tão evidente que todo indivíduo tenha um grupo onde possa se proteger, nem fica claro, tampouco, se ainda nos casos em que pertença efetivamente a algum grupo, este possa oferecer-lhe realmente seus pró-prios recursos discursivos. Não haveria aqui uma dificuldade, por parte desta autora, em romper definitivamente com as visões que apresentam a democracia corporativisticamente, em termos de grupos de interesse?

Além das ideias de Young, há outras propostas institucionais já menciona-das e que vale a pena destacar, como aquelas que apontam novos critérios de representação, baseados em padrões estatísticos. Dahl é um dos impul-sores desta classe de projetos. Em uma de suas obras mais recentes, sugere a possibilidade de criar o minipopulus, uma amostra estatisticamente repre-sentativa do conjunto da cidadania de um país ou região que se reuniria para deliberar sobre os assuntos comuns. Dahl explica que um minipo-pulus poderia contar com algo em torno de mil cidadãos “[…] escolhidos aleatoriamente no demos total, cuja tarefa consistiria em deliberar, talvez

3 Veja-se também GARGARELLA, 1996.

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durante um ano, sobre uma questão particular e depois dar a conhecer seu veredicto” (DAHL, 1993, p. 408). Este grupo de pessoas se reuniria de modo virtual, deveria contar com a assistência de um comitê assessor de estudiosos e especialistas, e de um comitê administrativo. O minipopulus realizaria audiências públicas, promoveria debates, nomearia comissões. Para ele, os minipopulus funcionariam como um complemento das insti-tuições legislativas, “[…] os julgamentos do ‘minipopulus’ representariam os julgamentos do demo; seu veredicto seria o veredicto do próprio demos, se este estivesse em condições de aproveitar os melhores conhecimentos disponíveis” (DAHL, 1993, p. 408).

Outro autor que imaginou um mecanismo que guarda várias semelhanças com a proposta de Dahl é James Fishkin. Ele busca a forma de conciliar a democracia com a deliberação. Tenta “[…] transportar algumas das carac-terísticas favoráveis da democracia face a face, de pequenos grupos, para o Estado-nação em grande escala” (FISHKIN, 1996, p. 11). Com estes objetivos em vista, Fishkin propõe a DOP (Deliberative Opinion Poll), ou pesquisa de opinião deliberativa, a qual “[…] proporcionaria a um micro-cosmos do conjunto da nação a oportunidade para a interação e a forma-ção de opiniões reflexivas que normalmente estão restritas a democracias de pequenos grupos” (FISHKIN, 1996, p. 16). Considera que a DOP “[…] ofereceria um modelo estatístico do que o eleitorado pensaria se, de um modo hipotético, todos os votantes tivessem as mesmas oportunidades que as que são oferecidas à amostra na DOP” (FISHKIN, 1996, p. 16). As DOPs incorporariam a igualdade política e, simultaneamente, oportuni-dades para a discussão pública, pois “[…] todas as pessoas teriam a mesma oportunidade de estar representadas na amostra nacional de participantes. Mas também incorporariam a deliberação, porque fariam com que um grupo selecionado de cidadãos mergulhasse num intenso debate face a face” (FISHKIN, 1996, p. 12-13). Através destas amostras representativas dos cidadãos comuns – semelhantes aos jurados dos processos judiciais – se abririam oportunidades de interação pessoal direta e oportunidades para que estes indivíduos, à diferença do que acontece em uma pesquisa de opinião convencional, pudessem refletir antes de dar uma resposta4.

Fishkin (1996) considera que o minipopulus de Dahl seria um experi-mento positivo, já que teria uma duração de um ano, tempo bastante mais prolongado daquele que ele atribui ao seu DOP. Entretanto, adverte que

4 Veja-se também FISHKIN, 1997.

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para que desse bons resultados requeriria dedicação exclusiva – o qual seria muito difícil nas sociedades contemporâneas – ou exigiria algum tipo de comunicação eletrônica, sem ficar claro em Dahl de que forma se daria tal interação. Fishkin, assim mesmo, brinda elogios à proposta realizada anos atrás por Amitai Etzioni de criação de assembleias eletrônicas (pro-posta batizada como Minerva). Segundo Fishkin, seria esta mais concreta e realista que a que formula Dahl e que, à diferença de outras propostas de teledemocracia, ressaltaria a necessidade do diálogo como condição inilu-dível para alcançar posições razoadas e informadas. Também faz referên-cia à proposta de Philippe Schmitter e Claus Offe de distribuição de vales de representação, que cada um poderia adjudicar ao grupo de interesse que escolhesse. “Haveria incentivos para que as organizações concorressem entre si para falar em nome das classes baixas, os despossuídos, os esque-cidos, os silenciados [...] criação de vozes efetivas onde antes imperava o silêncio e a indiferença”, possibilitando que todos os interesses consigam audiência (FISHKIN, 1996, p. 166).

Outra proposta que é mencionada na literatura sobre o tema passa pela criação de uma segunda câmara eleita que tenha outros critérios de repre-sentação, não partidários, mas com base em identidades grupais. Câmara, esta, que fiscalizaria aquelas propostas que pudessem favorecer aos grupos dominantes (PHILLIPS, 1993, p. 134). Proposta sugerida também por David Held (1994), no seu livro Modelos da democracia, onde esboça a possibilidade de contar com um congresso conformado por duas casas, uma baseada na representação proporcional e a outra na representação estatística, a partir de categorias chave, como gênero e raça.

E inclusive há aqueles, como o controvertido John Burnheim, que vão além das sugestões de Dahl e Fishkin e propõem, diretamente, substi-tuir as instituições representativas e burocráticas por membros seleciona-dos em forma aleatória entre voluntários e os que tenham um interesse material legítimo na área de assuntos da repartição, garantindo, por meio desta representação estatística, que todas as perspectivas relevantes sejam cobertas (DRYZEK, 1990, p. 73). John Burnheim, em seu polêmico Is Democracy Possible?, propõe amostras representativas de votantes envol-vidos com diversos interesses que constituiriam o que ele chama uma “demarquia”. À diferença do projeto de Fishkin não seria uma amostra do conjunto do eleitorado, mas apenas dos interesses afetados. Para Fishkin, este seria um esquema autoconscientemente utópico, que pretenderia subs-tituir todas as eleições e instituições representativas (FISHKIN, 1996, p.

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164-165). Seria um projeto que pretenderia a abolição do aparato estatal, a sua troca por uma série de corpos regulatórios autônomos em cooperação recíproca (BURNHEIM, 1989; HOLDEN, 1988).

O problema que estas propostas apresentam é o de não determinar com maior grau de exaustividade quais seriam as condições políticas para colocá-las em prática e quais as estratégias a desenhar para torná-las uma realidade. Além disto, distintos autores já apontaram problemas mais específicos, mas, não por isso, menos importantes. Assim, por exemplo, Carlos Nino (1997) mostra-se preocupado em como estabelecer os cri-térios ou quotas no processo de inclusão de cada um dos grupos sociais dentro da amostra representativa no minipopulus de Dahl. Para Nino poderiam gerar-se sérios riscos de manipulação. Haveria que considerar como clivagens relevantes a raça, o sexo, e quais outros? Outro incon-veniente é o risco de manipulação no processo de deliberação dentro da própria amostra selecionada:

[…] representação estatística (isto é, por sorteio) combina muito bem com um compromisso com a racionalidade comu-nicativa, porque é menos aberto à manipulação pelo dinheiro e elaboração de estratégias políticas que as formas mais familia-res de representação tais como eleições ou autonomeação por parte das lideranças de interesses organizados. Mas, mesmo assim, tais instituições discursivas podem ser ainda objeto de manipulações sutis pelos vestígios da hierarquia e da ação estratégica (DRYZEK, 1996, p. 114).

E como resolver os problemas de responsabilização – accountability, para a ciência política dominante – daqueles que não têm sido eleitos, mas selecionados como amostra de um universo maior? Haveria de se avan-çar na elaboração e no estudo de experiências concretas, a fim de poder determinar em que medida tais propostas poderiam ser realmente viáveis e desejáveis.

Uma questão sobre a qual certos autores coincidem, de forma parecida ao que já fora analisado com relação aos participacionistas, é sobre o papel fundamental que deveriam ter os partidos políticos no processo delibe-rativo. Os partidos seriam essenciais para a deliberação: canalizariam o debate, permitiriam a discussão sobre todos os assuntos já relativamente determinados e, por sua vez, os partidos debateriam entre si (MANIN, 1987; NINO, 1997). Os partidos impediriam que o debate caísse em

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interesses extremadamente estreitos ou locais e, para cumprir tal função, necessitariam ser financiados com fundos públicos,

[…] partidos políticos apoiados por fundos públicos podem desempenhar um papel importante na luta por tornar possível a democracia deliberativa [...] eles fornecem um meio através do qual indivíduos e grupos que não têm a vantagem “natu-ral” da riqueza podem superar os inconvenientes políticos que derivam dessa carência. Porque os partidos, ao se verem obri-gados a abordar um amplo leque de questões políticas, forne-cem arenas em que o debate não se restringe, como acontece nas organizações locais, regionais ou focadas em algum tema específico (COHEN, 1997, p. 85-86).

Foi feita referência também, anteriormente, às medidas sugeridas por Bohman (1996) para alcançar maiores condições de igualdade nos recur-sos políticos dos distintos atores. Segundo Bohman, a redução de tais bre-chas poderia se dar a partir da limitação do discurso dos avantajados, ou via redistribuição de recursos, tais como tempo e dinheiro, para todas as posições relevantes. Este autor considera que com meras regulamentações não é suficiente, que as compensações em favor dos desfavorecidos são essenciais, e suas fontes de financiamento se conseguiriam por meio da tributação. Para Bohman seria importante, ademais, criar novos espaços públicos para a deliberação, espaços que os participantes pudessem usar não apenas para expressar novas razões públicas, mas também para tentar restaurar a amplitude da esfera pública e fazê-la mais inclusiva. A própria elaboração da agenda deveria ser objeto de amplos debates, ou até tornar--se o foco principal da deliberação pública. Deveriam-se prover também mudanças nas regras informais, na criação de redes e de novos movimen-tos sociais. A emergência de tais redes e movimentos permitiria agrupar recursos, capacidades e experiências de várias pessoas e grupos, e dar-lhes uma expressão coerente e uma voz unificada, constituindo-se em uma forma de compensar as desigualdades de recursos e a pobreza política. Entretanto, Bohman reconhece que o problema para os movimentos dos politicamente pobres é que a pobreza política tende a produzir isolamento público, com o qual as oportunidades para reunir-se e criar novos movi-mentos seriam bastante reduzidas.

E, para concluir este capítulo, um tema que não pode ficar ausente de qualquer teoria da democracia deliberativa é o papel que desempenham os meios de comunicação de massa no processo de discussão pública.

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Concretamente: que relação se estabelece entre meios de comunicação, novas tecnologias e ampliação da discussão pública? Como bem sustenta Fishkin,

[…] vozes cruciais podem fracassar nas tentativas de alcan-çar uma consideração efetiva sem que seja necessário silenciar qualquer uma delas. Numa sociedade moderna, tecnologica-mente complexa, o acesso aos meios de comunicação é uma condição necessária para que uma voz possa contribuir para o debate público nacional. Se os meios de comunicação não permitem que o leque completo de opiniões que contam com um número significativo de seguidores na sociedade consiga acesso aos meios de comunicação em questões que revestem um interesse intenso para aqueles que defendem essas opini-ões, então a consecução da igualdade política terá sido insufi-ciente (FISHKIN, 1996, p. 62-63).

Muitos autores se encarregaram de fazer notar que o tipo de estrutura mercantil que predomina nos meios de comunicação vem se tornando um poderoso obstáculo para a realização de um amplo debate público. Situação, esta, claramente evidente nos países latino-americanos hoje em dia. Dentre os autores aqui analisados, Bohman, por exemplo, alega que devido à intervenção das leis do mercado na mídia e a consequente exis-tência de lógicas não públicas, a regulação e restrição de certos tipos de mensagens políticas produzidas comercialmente poderia ser mais apro-priada do que equiparar certos recursos através de uma reforma do finan-ciamento das campanhas partidárias. Ele sugere que seria fundamental a existência de meios públicos massivos sustentados com recursos provenien-tes de impostos, que poderiam ter como objetivos centrais manter uma opinião pública informada e procurar melhorar a qualidade e civilidade dos discursos sobre os assuntos públicos. Os meios orientados publica-mente poderiam exercer um papel importante em momentos de mudança, expandindo, assim, a audiência potencial de novos grupos e movimentos, e ajudar à constituição de novos públicos em formação.

Outros, como Carlos Nino (1997), alentam sistemas mistos de meios de comunicação, os quais dariam maiores possibilidades de expressão e gerariam maior pluralismo. John Keane (1993) comparte este tipo de sugestões e imagina a possibilidade de criar apoios legais e financeiros que garantam direitos de acesso no rádio e na televisão durante certas horas a indivíduos, grupos e realizadores de programas independentes. Keane

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busca mecanismos que favoreçam aos pequenos produtores de opinião, como forma de incrementar o pluralismo na mídia, e apoia a existência de meios da sociedade civil publicamente sustentados, sem fins de lucro e legalmente garantidos, instalados por voluntários e responsáveis de forma direta ante suas audiências por meio de procedimentos democráticos. Este autor descreve os benefícios que traria para a deliberação pública o estabe-lecimento de gráficas, canais de rádio e televisão de propriedade pública – financiados com impostos cobrados aos ingressos por publicidade da grande mídia privada –, o desenvolvimento de cinemas locais e estudos de gravação independentes, facilidades para a edição, subsídio aos jornais dos partidos políticos, a criação de boas redes de bibliotecas comunitárias etc. Keane ressalta a importância das novas tecnologias microeletrônicas na geração de uma democracia deliberativa mais ampla e versátil.

Seria importante dar maior espaço à análise do papel dos meios de comu-nicação nas teorias deliberativas da democracia. Haveria de se incorporar algumas das advertências que faz Danilo Zolo em relação a este tema:

[...] os procedimentos seletivos e distorsionadores que produ-zem a informação não apenas comunicam aos receptores os conteúdos de uma informação selecionada e distorcida, mas também lhes transmitem a estrutura mental a través da qual se dá a seleção e a distorção. No transcorrer de um longo perí-odo, esta estrutura se estabelece na psicologia do público, até se transformar em critérios objetivos para a preponderância de ítens noticiosos e em estruturas para a organização seletiva da atenção, a consciência e a motivação dos receptores [...] a comunicação de massas tem o efeito, em longo prazo, de defi-nir o leque de atenção pública e, com isto, a extensão das áreas que são consideradas socialmente relevantes ou até existentes [...] a mídia cumpre um papel decisivo na seleção do que o público percebe como relevante porque, em virtude de ser a moduladora mais eficaz da atenção pública, tem a função de estabelecer e distribuir o que bem pode ser chamado de “valo-res de atenção” (ZOLO, 1994, p. 203-204).

A mídia, segundo Zolo, seria percebida como o repositório do “saber público”, como a única, efetiva e legitimada “esfera pública” dentro das sociedades industriais na chamada “Era da informação”. Este autor con-sidera fundamental para as teorias da democracia a análise da influência política, no longo prazo, dos efeitos cognitivos da comunicação de massa;

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tema este que, como bem assinala Luis Felipe Miguel (2000), em geral não é alvo de maior atenção dentro da ciência política contemporânea.

Evidentemente, muito resta a se pensar em prol da construção de uma democracia autenticamente deliberativa. Novas formas de equiparar os participantes na discussão pública devem ser ideadas. Devem ser cria-das novas vias de acesso generalizado e plural aos meios de comunica-ção, novas maneiras de neutralizar a pobreza política e mecanismos para superar os diferenciais de educação e conhecimento, bem como novos foros e oportunidades de expressão política e social. Para que a discussão pública incorpore as múltiplas e diferentes perspectivas devem ser geradas as condições materiais e sociais concretas que o façam possível. Só assim o diálogo alcançará o efeito transformador ambicionado pelos autores deliberacionistas. E como último comentário a registrar neste capítulo, caberia retomar aqui uma crítica já feita aos pensadores enquadrados na corrente participacionista: neste tipo de análise faltam vínculos mais explí-citos com um estudo crítico da sociedade capitalista e com a constatação de que existem no seu seio classes sociais irremediavelmente antagônicas. Seriamente haveria de se considerar que sem contemplar uma mudança radical na estrutura econômico-social, dificilmente possam se construir condições de igualdade razoáveis que tornem realidade uma deliberação genuinamente pública, livre e democrática. Haveria que tentar conjugar, em definitivo, as análises críticas da sociedade capitalista com programas teóricos e estratégias políticas que levem a superá-la e com a construção e articulação das forças sociais que lhes deem sustentação.

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3 democrAciA cívico-republicAnA

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Neste terceiro capítulo será analisada outra vertente fundamental do pen-samento político contemporâneo: aquela centrada na democracia cívico--republicana, ou na tradição do republicanismo cívico. Esta corrente também procura articular uma posição alternativa à concepção elitista--competitiva da democracia. Entretanto, é ainda mais difícil de sistema-tizar em um corpo único de ideias do que as propostas participativa e deliberativa, já que remete a uma série de posturas que vêm de fontes e origens muito diversas. Estas diversas origens encontram sua tradução em um conjunto de autores e ideias não muito homogêneo. Deste modo, a análise focará, basicamente, a obra de três pensadores que, de certa forma, expressam tal heterogeneidade: Benjamin Barber, Sheldon Wolin e Hannah Arendt.

As raízes da vertente cívico-republicana podem ser rastreadas tanto nas práticas democráticas da Grécia clássica quanto no crítico mais notável da democracia grega: Aristóteles e sua conhecida noção do zoon politi-kon. Como sustenta Robert Dahl, tal corrente encontra suas raízes na democracia ateniense, mas também no seu contraexemplo, Esparta: “[…] enquanto encarnação de certos ideais políticos, o republicanismo não tem um modelo nem tanto em Atenas quanto na sua inimiga, Esparta, e ainda mais em Roma e Veneza” (DAHL, 1993, p. 35). Este tipo de ideais ganhou força renovada nas cidades-estado do Renascimento italiano no século XV – em Florência fundamentalmente – para posteriormente, nos séculos XVII e XVIII ser reinterpretado na Inglaterra e nos Estados Unidos atra-vés do trabalho de James Harrington e dos neo-harringtonianos, os whigs

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radicais e Thomas Jefferson. Nas últimas décadas, o republicanismo vem sendo resgatado principalmente a partir das reinterpretações e mudanças nas análises da Revolução Norte-Americana (DAHL, 1993; MOUFFE, 1993).

Para esta corrente, o significado do conceito de cidadania ativa em uma república tornou-se um tema central. O republicanismo persegue como seu grande objetivo a articulação de uma forma de cidadania mais rica, profunda e ativa, a partir da reformulação da noção ateniense de cidada-nia. Para isto, toma como referência ao próprio Aristóteles e segue, assim mesmo, o ideal romano da res publica e seu sistema misto de governo. O republicanismo cívico ou humanismo cívico – outra das denomina-ções que recebe –, afirma que a autêntica realização humana só é possível quando o indivíduo se torna cidadão e atua em uma comunidade livre e autogovernada, quando alcança o exercício efetivo da cidadania de forma contínua, não esporádica. Apelações ao bem comum, ao desenvolvimento da virtude cívica e a um senso de espírito comunitário ocupam um lugar de destaque no ideário desta corrente. O republicanismo pretende resgatar o profundo sentido de carga pública e de responsabilidade pelos assuntos comuns existentes na polis grega. Busca formular uma proposta que faça frente às consequências prejudiciais e corrosivas do individualismo rei-nante nas sociedades contemporâneas, através do fortalecimento dos laços sociais e do sentido de pertença comunitário, e a revalorização da partici-pação nos assuntos públicos. Procura, em definitivo, restaurar a dignidade do político.

Muitos dos pensadores que aderem a esta corrente consideram que, aban-donando a visão instrumental da política e restaurando a dignidade da esfera pública, poderiam encontrar-se os caminhos para resolver os proble-mas mais urgentes que enfrentam as nossas sociedades. Chantal Mouffe, coincidindo nisto com o republicanismo cívico, afirma que, ao reduzir a política ao econômico, ela se esvazia de toda substância.

Muitos dos problemas que enfrentam as democracias liberais hoje em dia derivam do fato de que a política foi reduzida a uma atividade instrumen-tal, centrada na satisfação egoísta de interesses privados. A limitação da democracia a um mero conjunto de procedimentos neutros, a transforma-ção de cidadãos em consumidores políticos e a insistência liberal em uma suposta “neutralidade” do Estado esvaziou a política de toda substância (MOUFFE, 1993, p. 111).

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3 democracia cívico-republicana

O republicanismo cívico pretende recuperar o sentido da política como atividade coletiva. Procura deixar para trás a concepção que traduz a ati-vidade política como o direito de perseguir sem interferências os próprios interesses no mercado. O republicanismo defende uma democracia com plena participação coletiva dos cidadãos na esfera pública, que vá além do governo representativo e do direito ao sufrágio, coincidindo aqui inteira-mente com as propostas analisadas nos capítulos anteriores.

Para o republicanismo cívico, a cidadania significa participação nos assun-tos públicos. Considera-se que, a partir da noção aristotélica do homem definido como animal político, sua plena natureza humana só pode ser realizada em sociedade. Esta corrente quer opor resistência à destruição niilista da vida pública promovida pelo individualismo liberal e observa com profundo desagrado a decadência de uma esfera especificamente política. De alguma maneira, o republicanismo tenta restabelecer a noção positiva de liberdade dos antigos, não se contentando com a liberdade negativa de não interferência típica do pensamento liberal. Aponta para uma noção mais comprometida e atuante da liberdade, centrada na ideia de autogoverno. A concepção republicanista da política e da democracia funda-se, em suma, na ideia de uma cidadania ativa, no valor e impor-tância do compromisso cívico e da deliberação coletiva sobre os diversos assuntos que afetam a vida da comunidade, negando a redução da política a meras escolhas privadas dos consumidores no mercado.

Os republicanistas buscam restabelecer a primazia do político. Pretendem realçar a distinção público/privado, destacando a política como a principal atividade pública. Entendem a política como um assunto diretamente rela-cionado com o reino da liberdade, e não com os ideais inferiores derivados da necessidade que predominariam na atualidade. Consequentemente, a política é vista como a busca da felicidade pública ou o gosto pela liber-dade, como o momento no qual indivíduos se afastam de seus interesses materiais mais imediatos, conseguindo se elevar e transcender os interes-ses pessoais, superando o autointeresse e o paroquialismo. Como resume Anne Phillips (1993, p. 79): “esta tradição reivindica a centralidade do especificamente político. A divisão público/privado é reafirmada, com toda a atenção dirigida ao primeiro”.

Benjamin Barber, com a obra Strong Democracy, deu um vigoroso impulso a muitas das questões até aqui mencionadas. Este autor começa seu livro com uma forte crítica à democracia representativa tal qual ela existe hoje

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em dia nos países desenvolvidos. Barber considera que a própria demo-cracia está em perigo enquanto não se abraçar um claro projeto de trans-formação do regime atual. Ele oferece uma série de pautas que deveriam contribuir para perfilar uma democracia distinta, que em alguns casos se opõem às instituições e práticas existentes, e em outros são complementá-rias destas. Este autor, na contramão do que sustentam alguns defensores do paradigma elitista-competitivo, afirma que a crise não é resultado de um excesso, mas sim de falta de democracia e que o exagero do liberalismo é o principal responsável pela sua debilidade atual. O único remédio que Barber encontra para os problemas da democracia não é menos senão mais democracia: o modelo de democracia forte, a única alternativa viável na vida política moderna, a única democracia plenamente legítima.

Mediante um modelo forte de democracia se conseguiria revitalizar a cida-dania. Barber define este novo regime como “[…] uma forma de governo em que todos se autogovernam em pelo menos alguns assuntos públicos, pelo menos por algum tempo. Legislar e aplicar as leis, pelo menos parte do tempo, é manter vivo o significado e a função da cidadania em todos nós o tempo todo” (BARBER, 1984, p. XIV). Só o autogoverno leva-ria a uma autêntica liberdade de todos os indivíduos, e tal autogoverno apenas seria possível caso mediasse uma cidadania plena. Barber propõe, como meta de tal projeto, a superação da modalidade de democracia tão débil, instrumental, cética e paralisante que se sofre no presente, assim como aspira encontrar uma alternativa a esta visão tão negativa da natu-reza humana que encerra o modelo vigente. Considera que muitos dos problemas sofridos pelos atuais regimes políticos derivariam da própria teoria liberal da democracia, cujos pressupostos não seriam genuinamente democráticos. Este autor apregoa um novo regime que privilegie a inven-ção e a criação, e não uma política entendida como mero intercâmbio e barganha entre interesses congelados,

[…] a política democrática em sentido fraco é, no melhor dos casos, uma política de interesses estáticos, nunca uma política de transformação; uma política de negociação e troca, nunca uma política de invenção e de criação; e uma política que leva em consideração o pior das mulheres e dos homens (a fim de protegê-los de si mesmos), nunca seu potencial (para ajudá-los a se tornarem melhores do que são) (BARBER, 1984, p. 24).

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3 democracia cívico-republicana

Barber procura esboçar um modelo de democracia que não caia em uma atitude nostálgica – atitude que pretenda imitar a democracia dos antigos –, nem em um coletivismo monolítico em grande escala.

Devemos fazer isto sem sermos vítimas de qualquer nostal-gia pelas antigas repúblicas em pequena escala, como acontece com tantas teorias comunitaristas que acabam se tornando irrelevantes para a vida moderna, ou vítimas do gosto pelo cole-tivismo monolítico que pode transformar a democracia direta em grande escala em uma tirania plebiscitária (BARBER, 1984, p. 25).

Barber quer recuperar, em versão moderna, a tradição do pensamento republicano que vê a vida política como uma vita ativa. Acredita que, desta maneira, se pode contribuir para superar o medo paralisante carac-terístico do liberalismo. Este autor imagina um modelo no qual a comu-nidade não está unida necessariamente por interesses, mas por um senso de compromisso cívico. Tal modelo daria lugar a uma teoria menos total e unitária da vida pública da que imperava na Antiguidade, embora mais completa e positiva daquela que defende o liberalismo contemporâneo. Nesta nova concepção, a política deixa de ser autodefesa para se converter em ação, em ação de homens livres. E o conflito não é escondido, negado ou administrado, mas é transformado em cooperação.

Barber propicia uma participação política mais comprometida, que não se limite ao mero ato de votar. E, inclusive, pugna pela ressignificação de tal ato no imaginário coletivo. Remetendo-se ao que acontecia na Suíça – e ainda acontece em alguns cantões daquele país – considera que o fato de votar deveria se tornar um bom motivo para comemorar e se reunir, uma boa oportunidade para se juntar com os demais integrantes da comuni-dade. O ato de votar deveria converter-se em uma verdadeira festa cívica, e deixar de ser o que é nos Estados Unidos atualmente, onde

[…] votar é mais ou menos como usar um banheiro público: nós esperamos numa longa fila, a fim de nos trancarmos em um pequeno compartimento onde podemos aliviar a nós mes-mos na solidão e na privacidade de nossos encargos, puxando uma alavanca e, em seguida, cedendo o lugar ao próximo da fila e voltando para casa em silêncio (BARBER, 1984, p. 188).

Ao votar, as pessoas deveriam sentir-se obrigadas a responder publica-mente pela decisão adotada, compelidas a explicar e justificar ante os

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demais aquilo que fizeram, e não refugiar-se no anonimato e na privaci-dade do segredo do voto. Barber alenta um caráter genuinamente público para cada um dos atos que constituem a atividade política cidadã. Ele propicia a reunião, o debate e a exposição pública de razões como formas de escapar do voto irresponsável e de acabar com o isolamento e a passi-vidade política.

Frente a eventuais ataques como os que sofreram outros impulsionadores de ideias de caráter republicanista ou comunitarista, Barber indica que a comunidade não é algo a priori, não é algo que se dê de uma só vez e para sempre. Para ele não existiriam fundamentos sanguíneos que pos-sam explicar a configuração de uma identidade comunitária. O próprio processo democrático, por meio de uma ampla participação e delibera-ção, seria o que definiria as bases para uma cidadania comum. Da mesma forma que os deliberacionistas, Barber considera que a política, concebida deste modo, exige que as pessoas devam reexaminar seus valores e inte-resses à luz dos valores e interesses dos outros, e de forma pública. Assim se abririam novas opções e soluções alternativas, e se gerariam incentivos para o desenvolvimento da imaginação dos indivíduos participantes da esfera pública. A democracia forte que ele propõe, em suma, implicaria ati-vidade, deliberação e autogoverno: bens públicos construídos no próprio processo de discussão comum. Em suas próprias palavras:

Os termos chave nesta formulação forte da democracia são ati-vidade, processo, autoregulamentação e criação de uma comu-nidade política capaz de transformar indivíduos privados e dependentes em cidadãos livres, assim como capaz de conver-ter interesses privados e parciais em bens públicos (BARBER, 1984, p. 151-152).

Um dos pilares básicos sobre os quais se deveria fundar esta nova forma de conceber a democracia, como foi dito acima, consiste na discussão pública ampla e irrestrita. Um diálogo aberto e constante no seio da comuni-dade, com toda sua carga de criatividade, flexibilidade, ambiguidade e inventividade.

A discussão continua a ser central para a política, a qual se enri-gideze completamente sem a sua criatividade, a sua variedade, a sua abertura e a sua flexibilidade, a sua inventividade, a sua capacidade de descoberta, a sua sutileza e complexidade, a sua eloquência, o seu potencial de empatia e de expressão afetiva

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e seu caráter profundamente paradoxal que exibe a natureza completa do homem como um ser finalista, interdependente e ativo (BARBER, 1984, p. 174).

E, como ele bem esclarece, e já foi visto ao analisar a corrente delibera-cionista, nesse diálogo se deveria valorizar não tão somente o ato de falar, como também o de escutar – requisito nem sempre considerado com a suficiente atenção. Esse diálogo deveria servir para as pessoas se encon-trarem publicamente, para explorar e criar questões comuns e, também, para construir a agenda socialmente, como algo central no processo polí-tico que necessariamente deveria recair aos próprios cidadãos. E, desde já, para que tal diálogo fosse realmente igualitário, deveria democratizar-se o próprio uso da palavra, deixando esta de ser reservada ao domínio dos especialistas.

O diálogo, de acordo com o cientista político estadunidense, deveria ser-vir para derrubar as paredes do mundo privado da família, dos amigos e dos vizinhos. Este diálogo permitiria às pessoas entrarem em contato com outras pessoas, até então tidas como estranhas. Com relação a este ponto, podem ser percebidas algumas diferenças com o modelo propiciado pelos participacionistas, analisado no primeiro capítulo. Para tal modelo o fun-damental não era tanto o compromisso com os grandes assuntos, mas a democratização das pequenas esferas. Autores como Barber, em maior ou menor grau, demonstram certo desdém pela participação em âmbitos tão reduzidos: a participação deveria operar na discussão e adoção das grandes decisões, ajudando, assim, a quebrar o paroquialismo.

Pode-se perceber a rejeição de Barber à participação em pequena escala na seguinte citação:

Os socialistas reformistas que trabalham dentro do contexto do capitalismo centram com frequência sua atenção na neces-sidade de “democratizar o local de trabalho”. Eles, portanto, deixam de lado a frutífera tarefa de legitimar o soberano setor público, em favor do inútil trabalho de democratizar o neces-sariamente ilegítimo setor privado. Suas prioridades, exata-mente as mesmas do capitalismo que querem reformar, estão invertidas (BARBER, 1988, p. 59).

Como indica Anne Phillips (1996), em geral os defensores do republica-nismo cívico – Barber entre eles – buscam fortalecer prioritariamente a divisão público/privado, não depositando muita confiança na participação

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micro ou em pequena escala. Quando, e de acordo com o que já fora apon-tado anteriormente, não é muito acertado colocar as coisas nestes termos, gerando uma opção excludente. Na realidade, ambas as posturas deveriam ser concebidas como complementárias.

Em contrapartida, Barber coincide plenamente com os participacionistas no que se refere ao valor outorgado à participação. Para ele a participação é um valor, um fim em si mesmo. Considera que o ato de participar se aprende, precisamente, participando, e que o compromisso com os assun-tos comuns é o que nos permitiria melhoras substantivas em nossas inter-venções e expressões públicas. Barber, da mesma forma que muitos dos autores enquadrados nessa corrente, não admite a divisão entre elites e massas, acreditando que a política deve ser uma atividade de amadores e não de especialistas, “[…] uma democracia forte é a política dos não espe-cialistas, onde cada homem é obrigado a enfrentar qualquer outro homem sem o intermédio da perícia” (BARBER, 1984, p. 152). Ele defende a tese de cidadãos redefinindo-se a si mesmos e aprendendo a se autogovernar, sem necessidade da intermediação dos especialistas ou dos políticos pro-fissionais. Seu projeto aponta para uma cidadania universalmente partici-pativa, onde cada um seja seu próprio político.

Continuando com Barber, ele formula sérias objeções contra o paradigma economicista, em prol da superação das limitações que, segundo sua opi-nião, apresentariam as análises materialistas. Pretende uma visão de felici-dade que vá além dos meros intercâmbios mercantis. Na sua concepção de uma política redinamizada, procura recuperar as necessidades do espírito. Para ele, tanto o liberalismo quanto o socialismo

[…] repudiam a compreensão da política como teatro para a coincidência e a vontade comuns. Despojada de sua auto-nomia, esta é convertida em uma atividade secundária, que reflete e portanto serve às relações internas (hedonistas) e externas (classe social) dos homens heterônomos (BARBER, 1988, p. 39).

Na sua forte alegação contra o economicismo, Barber sustenta que

[…] a subordinação do homem político ao homem econômico e da superestrutura política à base econômica, implica mais do que comprometer a ideia de uma política autônoma; insinua uma total rejeição da soberania como chave para a associação política [...] Sugerir que a política seja um produto das relações

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econômicas, dos modos físicos de produção, das forças his-tóricas ou das necessidades psicológicas organizadas como interesses de grupo é privar esta de sua essência definitória (BARBER, 1988, p. 43-44).

Este autor considera que sem política o indivíduo fica submerso na hete-ronomia, se vendo, de tal modo, privado da liberdade. Em suas palavras:

Sem política, o homem está preso na heteronomia. É essencial uma política autônoma para a libertação humana porque, à diferença da economia, a política é o lugar e a quinta-essência da comum vontade humana, onde se aplicam a imaginação e a criatividade no processo de descoberta de soluções para os problemas humanos comuns (BARBER, 1988, p. 45).

É por meio da política democrática que o homem se autogo-verna e se converte, até um certo ponto, em dono de si mesmo (BARBER, 1988, p. 46).

Concluímos com a convicção democrática radical que diz que [...] só se pode conceitualizar e servir à liberdade e igualdade dentro da estrutura da democracia, como condição antes que produto da economia e outras formas de interação sociais (BARBER, 1988, p. 48).

E definindo a liberdade e a igualdade, Barber sustenta que a primeira constitui a condição básica para que os cidadãos possam controlar seu destino comum, como prêmio pela sua participação ativa nos assuntos políticos e cívicos. E a segunda seria a condição da qual desfrutariam os cidadãos que participam, ao se tratar uns aos outros com respeito, sabendo que só podem ser livres compartindo suas experiências de vida com os demais. Barber agrega, também, que

[…] não há liberdade sem igualdade, nem igualdade sem auto-nomia. Apenas a igualdade dos cidadãos pode superar as desi-gualdades naturais da condição humana; só a autonomia dos cidadãos democráticos pode superar a insuficiência natural e a dependência ilegítima da natureza humana essencial […] esco-lher a liberdade e a igualdade é escolher contra a economia (BARBER, 1988, p. 54-55).

Passando agora a Sheldon Wolin, é fácil apreciar como este autor apre-senta uma decidida crítica ao liberalismo, na mesma ordem de ideias do

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que foi analisando no caso de Barber. Segundo Wolin, o liberalismo per-cebe a política como algo do qual caberia se defender, como uma força ameaçadora dos direitos individuais frente à qual projetou uma série de arranjos institucionais tendentes a proteger os indivíduos. Em suas pró-prias palavras:

Assim, a concepção liberal da política, com a sua noção de gru-pos perseguindo interesses que poderiam entrar em conflito com outros interesses protegidos legalmente, traz atrelada a presunção de que a política é uma atividade que, pela sua pró-pria natureza, constitui uma ameaça a esses direitos. A tarefa, como Madison e liberais defenderam mais tarde, consistiu em encorajar a criação de dispositivos institucionais que levem a controlar os efeitos da política, não a reconstituir a política. Na ótica liberal, os cidadãos devem ser absorvidos nas ações pri-vadas, para o qual homens e mulheres precisam contar com a liberdade para promover seus próprios interesses, sendo injusto e opressivo limitar seu exercício em nome da necessidade de fomentar a ação comum para fins comuns (WOLIN, 1992, p. 244).

Assim mesmo, Wolin sustenta que a política, baseada puramente nas noções de interesse e egoísmo, desestimula, em alto grau, o desenvolvi-mento de uma sólida cultura cívica. A política, nestes termos, seria enten-dida como uma mera batalha por obter vantagens frente aos demais.

Uma política centrada no interesse desencoraja o desenvolvi-mento de uma cultura cívica favorável à defesa dos direitos e à aceitação de ações integrativas como atividade primordial da cidadania. Uma política centrada nos interesses dissolve a ideia do cidadão como alguém para quem é natural se juntar com outros cidadãos para atuar em prol de fins relacionados com a comunidade em geral, em lugar de indivíduos que são agrupa-dos de acordo com interesses conflitantes [...] Como membro de um grupo de interesse, o indivíduo recebe uma educação essencialmente anticívica. Ele é ensinado que o primeiro dever é apoiar o autointeresse do grupo, porque a política não é senão uma luta pela conquista de vantagens. Já o cidadão tem de decidir o que fazer, não em um ambiente onde cada um tem o mesmo interesse que o outro, mas em um onde há diferen-ças que devem ser tidas em conta e, idealmente, integradas na decisão. O cidadão, ao contrário daqueles reunidos em grupos de interesse, tem de adquirir uma perspectiva de comunhão,

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de pensar integral e globalmente e não de modo excludente. Uma política de grupos nunca vai além da “pequena polí-tica”, um estágio onde primam os autointeresses não refletidos (WOLIN, 1992, p. 244-245).

Este autor considera que a democracia deve ser entendida como uma forma de constituir o poder. O poder seria essencial para a plena autorrealização dos seres humanos, para seu pleno desenvolvimento como pessoas.

Democracia envolve mais do que participação nos processos políticos: é uma forma de constituir poder. A democracia está intimamente associada à ideia de que a experiência com o poder, e o acesso a ele, são fundamentais para o desen-volvimento das capacidades das pessoas comuns, porque o poder é crucial para a dignidade e a realização do ser humano (WOLIN, 1989, p. 153-154).

Wolin sustenta que se deveria acabar com o predomínio dos assuntos econômicos. Para ele, a manutenção de tal supremacia não faria mais do que causar uma despolitização ainda mais profunda da sociedade. Wolin defende a necessidade de subordinar a economia à política, sem por isso deixar de apresentar uma clara preocupação pelas questões sociais. Ele propõe restaurar uma noção sólida de cidadania, que se contraponha à frágil versão liberal, versão que haveria transformado o cidadão em uma mera criatura domesticada pelos meios de comunicação.

Wolin argumenta contra a filosofia do medo e do desencanto promovida pelo liberalismo. Tal filosofia constitui um forte obstáculo para o desen-volvimento do compromisso cívico cidadão. Ele estima que o liberalismo falhou em proporcionar uma orientação para o exercício efetivo dos direi-tos que diz apoiar, “fracasso histórico do liberalismo para criar uma noção de compromisso cívico e de ação comum que possa dar contenção e for-necer orientação para o exercício dos direitos” (WOLIN, 1992, p. 242-243). Tão preocupado em prevenir e defender os indivíduos da tirania e do poder arbitrário, o liberalismo não soube criar os mecanismos que levassem o indivíduo a se tornar um cidadão plenamente ativo nos enten-dimentos coletivos.

Em seus escritos Wolin defende enfaticamente a busca das raízes da demo-cracia na memória coletiva das sociedades. A democracia e as instituições têm uma profunda densidade histórico-social, motivo pelo qual nunca

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podem ser consideradas em termos puramente abstratos. Aproximando-se de outra definição da questão democrática, Wolin sustenta que

[…] democracia significa participação, mas participação entendida não simplesmente como a “tomar parte” nas elei-ções. Significa realizar ações de cooperação com os outros. Esta forma de ação implica se envolver com a sociedade, em resposta às necessidades da população [...] Um dos aspectos mais importantes desta evolução é que a experiência política se torna acessível, obrigando os indivíduos a lidar com a comple-xidade de interesses e com reivindicações conflitantes, tarefa usualmente reservada aos políticos e burocratas. Desta forma, a ação política passa a se incorporar à vida quotidiana das pes-soas comuns (WOLIN, 1989, p. 149-150).

Como se pode apreciar, Wolin considera que a política deve tomar parte da vida quotidiana das pessoas; a política deve se tornar um assunto da vida diária de todo indivíduo. No entanto, ele dispara um sinal de alerta frente ao perigo de cair em um nocivo paroquialismo. O paroquialismo estaria atrelado à ideia de um cidadão local que levaria à fragmentação do homem político. Ele considera, referindo-se a teorias existentes tanto na direita quanto na esquerda do mapa ideológico que colocam a descentrali-zação e a democratização dos pequenos espaços como panaceias, que

[…] um resultado desse tipo de teorização tem sido o de redu-zir a tradicional “majestas” da ordem política. Isto foi realizado rebaixando a associação política ao nível de outras associações, ao mesmo tempo em que estas têm sido elevadas ao nível da ordem política e dotadas de muitas de suas características e valores [...] a ordem política chega a ocupar o lugar de legatário residual, abraçando tarefas que outros grupos ou organizações não querem ou não podem levar adiante (WOLIN, 1974, p. 465).

Tais teorizações, ele argumenta:

[…] produziram um quadro da sociedade como uma série de pequenas ilhotas, evoluindo cada uma para a autossuficiência, se esforçando cada uma por absorver os membros individuais, cada uma sem qualquer vinculação natural com uma unidade mais global [...] Assim, na perspectiva contemporânea do uni-verso social, a sociedade política no sentido mais amplo desa-pareceu (WOLIN, 1974, p. 466).

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Wolin considera equivocado tomar como política qualquer relação social, distinguindo-se desta maneira dos participacionistas. A política deve manter sua especificidade, para não se banalizar. Em suas palavras:

O equívoco provém [...] de tentar assimilar concepções políti-cas a situações apolíticas. Se pode se considerar responsável à gerência da grande empresa ou à liderança sindical; se o per-tencimento a igrejas, sociedades de caridade ou outras asso-ciações voluntárias proporciona uma experiência satisfatória aos participantes; todas estas questões, e outras semelhantes, são inegavelmente legítimas, mas não pertencem à espécie de problemas políticos, e se pressupomos que sim o fazem, dilui-remos os problemas políticos autênticos em uma confusão de contextos [...] de forma semelhante, afirmar que se pode satis-fazer politicamente a participação individual dentro dos limi-tes de grupos apolíticos é privar a cidadania de seu significado e tornar impossível a lealdade política. Utilizadas num sentido verdadeiramente político, cidadania e lealdade apenas têm sig-nificado se referidas a uma ordem geral (WOLIN, 1974, p. 467).

Só a política forneceria uma função integradora da pessoa e um marco ou perspectiva mais geral, coisa que nenhuma outra atividade social poderia oferecer. Wolin, sem negar o valor que possa ter a participação nas peque-nas esferas, enfatiza a necessidade de restaurar a ordem política, de forma integrativa e geral. No apoio desta postura, invoca o fato das grandes deci-sões não serem adotadas nas pequenas associações, “a existência humana não será decidida no âmbito das pequenas associações: é a ordem política a que processa as importantes decisões que dizem respeito à sobrevivência do ser humano numa era acossada pela possibilidade de uma destruição ilimitada” (WOLIN, 1974, p. 468). Admitindo a importância da mani-festação e os movimentos de base nos âmbitos mais reduzidos, Wolin pos-tula, todavia, que

[…] as limitações políticas de tal atividade devem ser reconhe-cidas. É uma atividade politicamente incompleta. Isso ocorre porque o localismo, que é a força das organizações de base, é também sua principal limitação. Há problemas graves na nossa sociedade que são de natureza geral e exigem concepções e ações abrangentes, não paroquiais (WOLIN, 1992, p. 252).

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Ao mesmo tempo, e apesar de tudo o que foi dito, Wolin reconhece que é nas relações e espaços mais próximos à experiência concreta dos indiví-duos onde eles encontram os recursos primigênios para se tornarem seres políticos:

[…] um ser político não deve ser definido como usualmente se faz com o cidadão, como um portador abstrato e desconexo de direitos, privilégios e imunidades, mas sim como uma pessoa cuja existência está ancorada em um determinado lugar e tira seu sustento de determinadas relações: família, amigos, igreja, vizinhança, trabalho, comunidade, cidade. Estas relações são as fontes das quais os seres políticos extraem seu poder “sim-bólico, material e psicológico” e que lhes permitem agir em conjunto (WOLIN, 1992, p. 251).

Mas, insistindo na especificidade do político e referindo-se a exemplos tais como o crescimento dos movimentos antinucleares, o fortalecimento da oposição interna à política imperialista estadunidense e a expansão das lutas pelos direitos humanos, Wolin também assinala que:

Estes desenvolvimentos são sugestivos porque eles representam os primeiros passos na direção da intervenção popular siste-mática no domínio sacrossanto dos segredos de Estado e da segurança nacional. Este é um novo terreno para a política democrática e é genuinamente político, compreendendo ques-tões como a guerra, os direitos e o imperialismo, temas que nos concernem a todos (WOLIN, 1992, p. 252).

Wolin, deste modo, formula uma exposição em favor de uma direta inge-rência popular nos grandes assuntos políticos. Considera que assim a ati-vidade política haveria de ser despojada dessa espécie de sacrossantidade que a caracteriza, sem por isso produzir sua degradação ou banalização.

Assim mesmo, Wolin luta pelo fim do consumismo mercantil. Alenta uma decidida oposição ao atual sistema, onde até os próprios direitos são ven-didos e comprados no mercado. Busca acabar com a fantasia do consumi-dor soberano como substituto do cidadão. Em suas palavras: “a sociedade está acostumada com a noção perigosa de que os direitos, assim como subsídios ou impostos, fazem parte do normal toma lá dá cá da política” (WOLIN, 1992, p. 245).

O próprio funcionamento de uma economia bem-sucedida parece transformar as categorias políticas e as expectativas

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políticas em categorias e expectativas econômicas e assim cria a ilusão de uma “democracia econômica” [...] Se não participa-mos como cidadãos, participamos como consumidores, exer-cendo a nossa liberdade de escolher ao nosso bel prazer. E de repente, quando como num passe de mágica, novos produtos se materializam nas prateleiras da loja, sentimos que a econo-mia está respondendo a cada impulso e a cada desejo – que seria mais do que podemos incidir sobre os nossos represen-tantes eleitos e sobre os administradores públicos não eleitos (WOLIN, 1992, p. 249).

Wolin argumenta também contra o Estado de Bem-estar. Esta forma esta-tal, segundo ele, fragmentaria a vida dos oprimidos, os despolitizaria, os deixaria sem capacidade de ação política e os trataria como parias.

A pessoa torna-se totalmente incapaz como ser político; inca-paz de compreender o significado das preocupações comuns, mesmo frente a uma totalidade tão pequena quanto seu bairro. Isso é porque ele ou ela tem sido privado da mais elementar das totalidades, o seu próprio “eu” (WOLIN, 1992, p. 247).

Considera, em suma, que se deve criar um novo e mais rico conceito de cidadania, “a velha cidadania deve ser substituída por uma noção mais completa e ampla, cuja politicidade não será expressa apenas em um ou dois modos de atividade – voto ou protesto – mas em muitos outros” (WOLIN, 1992, p. 251). Wolin ambiciona um novo conceito de cida-dania; conceito que permita recuperar e revalorizar o pleno exercício e desenvolvimento da atividade política, e a generalizada participação dos indivíduos nas decisões da vida comum e coletiva.

O terceiro nome escolhido neste apanhado dos argumentos desenvolvidos pelo republicanismo cívico é a filósofa alemã Hannah Arendt. Ao longo de sua obra e em numerosas oportunidades, Arendt abordou questões diretamente relacionadas com uma concepção alternativa da democracia. Assim, em primeiro lugar, cabe assinalar que, para Arendt, a liberdade não deve ser entendida apenas como não interferência, no sentido negativo outorgado pelo pensamento liberal. Para esta autora, a liberdade deve ser vista como a capacidade pública de participação democrática, sendo que tal liberdade exigiria um espaço para a palavra e a ação. Ela estabelece, assim mesmo, uma total interdependência entre liberdade e política: sem atuação política não se poderia aspirar a uma plena liberdade (ARENDT, 2000). “[...] o domínio da política, o único domínio em que os homens

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podem ser verdadeiramente livres” (ARENDT, 1990, p. 90). Para Arendt, a própria felicidade está ligada à liberdade pública e à participação no poder político.

O conceito de ação é fundamental no pensamento arendtiano. Para esta filósofa, a ação seria algo próprio e exclusivo dos seres humanos, a qual para sua realização exigiria a relação direta entre os homens, sem media-ção das coisas ou objetos. Em The human condition ela afirma: “só a ação é prerrogativa exclusiva do homem; nem um animal nem um deus é capaz de ação, e só a ação depende inteiramente da constante presença de outros” (ARENDT, 2007, p. 31). “Na ação e no discurso, os homens mostram quem são, revelam ativamente suas identidades pessoais e singulares, e assim apresentam-se ao mundo humano” (ARENDT, 2007, p. 192). O homem só é livre na medida em que atua. Há uma simbiose entre ser livre e atuar.

Encadeado à noção de ação, aparece o conceito de pluralidade. Arendt sustenta que “[…] a ação é a única faculdade humana que demanda uma pluralidade de homens” (ARENDT, 1990, p. 140). A ação seria possí-vel porque existe a condição humana de pluralidade; sem pluralidade não poderia haver ação nem política. A pluralidade humana passa a ser vista como condição básica da ação e do discurso. E tal pluralidade implicaria, por sua vez, a igualdade e a diferença, pois sem a primeira os homens não seriam capazes de compreender-se entre si, nem com as gerações passadas e futuras, e sem a segunda não precisariam da ação e do discurso para se entenderem mutuamente. Como nítida expressão dessa compreensão radi-cal da pluralidade, em obras como The human condition e Da revolução, Hannah Arendt afirma que ninguém é igual a outro que exista, haja exis-tido ou vá a existir, e sustenta, também, que a formação da opinião pública seria impossível caso todas as opiniões fossem idênticas.

Os homens, para exercer a ação, para interatuar, necessitam mostrar-se. Para mostrar-se, eles precisam de uma esfera pública, âmbito ao qual estava reservada a virtude no mundo antigo, onde a pessoa podia se sobressair e se distinguir das demais. Arendt considera que para alcançar a excelên-cia, os indivíduos precisam a presença de outros, necessitam a presença de seus pares, a existência de um público que lhes preste atenção. Fazer público implica dar aparência de realidade a algo que, de outro modo, ficaria encerrado na esfera do íntimo ou do privado. Os atos necessitam se tornar públicos, para poderem ser vistos e ouvidos por todos, e assim

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conseguir divulgação. A esfera pública reúne a todos, uns com os outros, constituindo um patrimônio comum ou coletivo. Para Arendt, o problema das sociedades de massa não seria de escala. O problema fundamental radicaria na impossibilidade de contar com uma autêntica esfera pública, dadas as sérias dificuldades que os indivíduos têm de se relacionar entre si, e dada a perda dos laços e da comunicação interpessoais (ARENDT, 2007).

Os homens livres aspirariam a transcender, a lograr uma imortalidade ter-rena. Para Arendt, “[…] sem essa transcendência para uma potencial imor-talidade terrena, nenhuma política, no sentido estrito do termo, nenhum mundo comum e nenhuma esfera pública são possíveis” (ARENDT, 2007, p. 64). A existência desta base comum, compartida por todos os homens livres, é o que lhes permite transcender suas vidas, ao ser uma base que já estava e continuará estando depois da morte. Tal base é o que os homens têm em comum com seus contemporâneos e com os que habitaram o mundo antes deles e também com os que virão. Esse mundo comum, para Arendt, só pode sobreviver enquanto conservar seu caráter público. O homem, então, conseguiria a imortalidade deixando algo seu nesta esfera. Tal busca de fama imortal é o que define a especificidade humana e configura a principal distinção entre o homem e o animal.

O grande problema de nossos tempos é que esta esfera estaria desapare-cendo. Nas palavras da autora:

Talvez o mais claro indício do desaparecimento da esfera pública na era moderna seja a quase completa perda de uma autêntica preocupação com a imortalidade, perda esta um tanto eclipsada pela perda simultânea da preocupação metafí-sica com a eternidade (ARENDT, 2007, p. 65).

No mundo antigo, a polis era a reafirmação contra a futilidade da vida individual, era o espaço que permitia a permanência, na memória pública, depois do desaparecimento físico. Isto, diz Arendt, está se perdendo no mundo moderno, onde os seres se tornam privados e carecem da capaci-dade de ver e de serem vistos, de ouvir e de serem ouvidos. E, ao estarem privados de uma esfera pública, os indivíduos não conseguem desenvolver uma vida inteiramente humana, não conseguem distinguir sua forma de vida da de um simples animal. Não teriam a possibilidade de mostrar--se ante os outros e marcar sua presença, de desfrutar da companhia dos demais, de interagir e deliberar com eles. Nem teriam a oportunidade de

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tentar realizar algo mais permanente do que sua própria passagem pelo mundo. Não contariam com o teatro onde a liberdade faz sua aparição. Essa esfera pública exige ser recriada de forma permanente, através da ação. Sem ação, não há possibilidades para tal esfera pública nem para a deliberação coletiva (ARENDT, 1990; 2000; 2007).

Hannah Arendt mostra uma clara preocupação frente à degradação do espaço público ou de uma esfera propriamente política. Segundo esta autora, se estaria frente à ascensão do homem laborans à esfera pública, fazendo com que esta deixe de ser verdadeiramente pública e degenere em uma simples vitrine de exibição de atividades privadas. O consumismo exasperado estaria levando ao reino da futilidade e da intranscendên-cia: nada do que se realiza adquiriria caráter permanente, nada existiria além do processo de sua fabricação e consumo. Em sua crítica ao consu-mismo e à desvalorização do político, Arendt encontra sólidas coincidên-cias com o que fora visto com relação a Barber e a Wolin, na medida em que tal crítica configura uma das características básicas do pensamento cívico-republicano.

Arendt busca resgatar a valorização do político existente em outros tempos. Ela destaca que na Antiguidade os cidadãos ascendiam do plano privado ao plano público, elevavam-se a um âmbito mais grandioso e luminoso. Também se refere a Maquiavel, que fazia menção constantemente a esta ideia da ascensão de uma esfera mais baixa a outra mais elevada. Arendt adere ao pensamento clássico, segundo o qual o exercício da política signi-ficava alcançar a possibilidade mais sublime da existência humana, sendo a glória o principal critério utilizado para avaliar a ação política. Arendt (2007), portanto, busca revigorar as fronteiras entre o público e o privado, entre o reino da liberdade e o da necessidade, entre o âmbito da realiza-ção e o âmbito da futilidade ou do perecível. A filósofa alemã considera que se deveriam transcender os estreitos limites da mesquinhez quoti-diana, os estreitos e egoístas interesses materiais. Isto a leva a subestimar a democracia no local de trabalho, pois esta não constituiria uma genuína esfera pública. Contrariamente, o local de trabalho seria um âmbito onde predominariam os interesses provincianos e a política do autointeresse mundano. A repolitização que ambiciona Arendt aponta para os grandes assuntos. Ela procura a recuperação da política com letras maiúsculas.

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Como sustenta um comentarista, apoiando-se em um dos textos desta autora (Men in dark times), Arendt não compartiria a aspiração dos parti-cipacionistas pela democratização dos pequenos espaços,

A ênfase de Arendt sobre as qualidades formais da cidadania fez com que a sua posição ficasse bastante distante daquela levantada pelos defensores da participação durante a década de 1960, que viam esta em termos de recapturar um sentimento de intimidade, de comunidade, de calor e autenticidade. Para Arendt, a participação política era importante porque permi-tia o estabelecimento de relações de civilidade e solidariedade entre os cidadãos [...] Uma vez que estas representam “paliati-vos [...] psicológicos pela perda do bem comum e do mundo visível”, os laços de intimidade e de calor humano nunca podem tornar-se políticos. As únicas relações verdadeiramente políticas são as de amizade e solidariedade cívica, já que “esta-belecem demandas políticas e preservam a conexão com o mundo”. Em outras palavras, para Arendt, o perigo de tentar recapturar uma noção de intimidade e de calor humano, de autenticidade e de sentimentos comuns é que leva a perder os valores públicos da imparcialidade, da amizade cívica e da soli-dariedade (D´ENTRÈVES, 1992, p. 151).

Em sua alegação contra a política dos grupos de interesse, Arendt não concorda em substituí-los por relações de intimidade ou sentimentos comunais.

Da mesma forma que Wolin, Arendt se preocupa pela falta de espaços ver-dadeiramente públicos onde os indivíduos possam desenvolver sua cida-dania. As pessoas contariam com um poder meramente privado e não disporiam das ferramentas para atuar publicamente. A autora considera que só os espaços públicos permitiriam a autosseleção de uma parte da cidadania para se fazer cargo da condução dos assuntos políticos. A autos-seleção daqueles que realmente desejassem participar das questões públi-cas e decidissem tomar a iniciativa.

O problema consiste na ausência de espaços públicos aos quais o povo em geral tivesse acesso, e de onde pudesse ser selecio-nada uma elite, ou melhor, onde ela pudesse fazer sua própria seleção. Em outras palavras, o problema é que a política se tornou uma profissão, uma carreira, e que, por conseguinte, a “elite” está sendo escolhida atendendo a padrões e criterios

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que são, eles próprios, profundamente apolíticos (ARENDT, 1990, p. 221).

Arendt defende a ideia de que se deve dar tal processo de autosseleção entre os que no ato de participar sintam a conquista da felicidade, entre aqueles que tenham a vontade de governarem-se a si mesmos.

As alegrias da felicidade pública e as responsabilidades dos negócios públicos se tornariam, assim, o quinhão daquela minoria, advinda de todas as esferas sociais, que anseia pela liberdade pública e que não pode ser “feliz” sem ela. Politicamente, eles são os melhores, e é a obrigação de um bom governo, e a marca registrada de uma república bem organi-zada, assegurar-lhes o lugar a que legitimamente fazem jus no ordenamento público. É certo que tal forma “aristocrática” de governo representaria o fim do sufrágio universal, tal como o entendemos hoje, pois apenas aqueles que, como membros voluntários de uma “república elementar”, tivessem demons-trado que suas preocupações não se limitam apenas a sua feli-cidade pessoal, mas abrangem igualmente o estado geral das coisas públicas, teriam o direito de ser ouvidos, na condução dos negócios da república. Entretanto, essa exclusão da política não seria depreciativa, uma vez que a elite política não é, de forma alguma, semelhante às elites sociais, culturais ou profis-sionais. Além do mais, a exclusão não dependeria da sanção de um organismo externo; se os que pertencem a essa esfera são autoescolhidos, os que a ela não pertencem são autoexcluídos (ARENDT, 1990, p. 223).

A autora enfatiza, em reiteradas oportunidades, a legitimidade de tal pro-cedimento, o que lhe valeu severas críticas, tendo sido acusada de defender uma postura elitista, contraditória com a própria utopia democrática5.

Contraditória e problemática foi, também, sua própria postura de conside-rar as questões sociais como assuntos técnicos, assuntos tais que não deve-riam entrar na esfera política nem serem resolvidos por esta. Contrastando com o âmbito da política, o social, para ela, seria

[...] o domínio dos problemas coletivos, da desigualdade, da criminalidade, da pobreza, da exploração, do desemprego,

5 Neste sentido veja-se, por exemplo, CANOVAN, 1978; para uma interpretação que tenta responder a estas críticas: ISAAC, 1994.

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da degradação ambiental, e assim por diante. Para Arendt, seria melhor deixar esse domínio do mundano para os admi-nistradores especializados (instrumentalmente racionais) (DRYZEK, 1990, p. 19-20).

Hannah Arendt acredita na inevitabilidade do conflito entre o autenti-camente “político” e o inevitavelmente “social”. Para Arendt, esta última, preocupada como está com as questões mundanas de resolução de pro-blemas, só pode corromper e destruir a política autêntica. Para evitar essa corrupção, ela concorda com a clássica (porém inatingível) separação da política e da administração (DRYZEK, 1990, p. 217).

Sua preocupação em recuperar a supremacia da esfera política a levaria a negar a importância do âmbito social para qualquer projeto de construção de uma democracia genuinamente alternativa.

ii

Muitas das questões expostas no debate acadêmico pelos republicanistas foram alvo de acirradas polêmicas. Algumas não atingem de modo direto os três autores aqui examinados, outras sim. Entre os assuntos mais con-trovertidos e mais destacados na literatura, podem ser listados os seguin-tes: a) o republicanismo cívico foi e é criticado por seu afã perfeccionista e sua potencial invasão da privacidade individual; b) foi e é questionado, também, por sua falta de pluralismo e, ainda, c) é criticado por seu uni-versalismo totalizante e homogeneizante. As objeções a esta corrente apon-taram e apontam, assim mesmo, para: d) sua falta de consideração pelas minorias e o silenciamento dos desconformes, e) para as pressões que exer-ceria sobre o tempo das pessoas, e, f) para os problemas de responsabili-zação envolvidos.

a) Perfeccionismo e privacidade individual

Um dos grandes perigos apontado pelos críticos do republicanismo reside no perfeccionismo. Carlos Nino, no texto citado no capítulo anterior, ressalta o risco de incorrer em implicâncias coletivistas e perfeccionistas quando se invoca a noção de comunidade. As teorias perfeccionistas, com seu postulado de autorrealização pessoal como resultado de um envolvi-mento ativo e solidário na vida pública comunitária, podem vir atentar

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contra o ideal de autonomia das pessoas, atentar contra a liberdade de perseguir qualquer plano de vida sem interferência estatal. “A visão per-feccionista incentiva a adoção de um modelo de virtude pessoal definido por ideais cívicos e comunitários” (NINO, 1997, p. 140), deixando menos oportunidades aos indivíduos para perseguir seus interesses privados.

Apesar do atrativo que possa parecer este ponto de vista e da intuitiva adesão que pode gerar a conexão entre a democracia e algumas virtudes cívicas, existe uma tensão entre aquele e a ideia liberal de autonomia da pessoa, entendida como garantia da liberdade de perseguir qualquer plano de vida que não pre-judique a terceiros e a proscrição da interferência estatal nessa eleição [...] (NINO, 1997, p. 140).

As tentativas de enriquecer a democracia restaurando uma concepção compartida de bem comum, trabalhando com a ideia de que a política seria para todos os cidadãos um de seus valores mais importantes, deman-dariam que os julgamentos políticos passassem pela prova da virtude pública. Demandariam algo mais do que simplesmente cumprir com o requisito da cooperação contínua entre grupos com diferentes valores e crenças. Exigiriam muito dos cidadãos e lhes pediriam um grau de virtude excessivamente elevado. Segundo James Bohman (1996), melhor seria uma concepção menos exigente, que deixasse mais espaço para a liberdade individual.

Nino (1997) insiste que caso a virtude pública e a participação nos assun-tos políticos sejam alentadas em demasia, as pessoas contariam com menos tempo e possibilidades de perseguir seus interesses individuais ou particu-lares. As teorias perfeccionistas da política ameaçariam, desta maneira, o princípio de autonomia pessoal. Na mesma direção, Bohman (1996) considera que uma exigência elevada demais em relação aos requisitos de igualdade pode não ser consistente com a prioridade atribuída à liberdade para determinar a própria concepção da vida boa. Não se deveria impor a ninguém uma concepção determinada do bem, nem um particular plano de vida. A moralidade individual deveria ser preservada como questão privada. Cada indivíduo deveria ter a capacidade de organizar sua vida como melhor lhe parecesse, como melhor o entendesse e preferisse. Neste sentido, dever-se-ia evitar a identificação de certas formas e estilos de vida como superiores e evitar a definição destas como ideal ou modelo único de virtude pessoal a ser realizado pelos demais na vida política (MOUFFE, 1993).

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As possibilidades de que cada um possa escolher o rumo que dará a sua vida estão relacionadas, de forma direta, com as oportunidades de preser-var um espaço infranqueável reservado à autonomia individual, à esfera íntima e às questões de moral privada. Como aponta Bohman (1996), alguns assuntos e esferas da vida não deveriam se submeter ao escrutínio público. Um espaço social para a privacidade funcionaria, em um regime democrático, como local para a liberdade individual e para realizar as experiências de vida com outros membros da comunidade que cada um escolhesse. No mesmo sentido, David Held defende que se deve prote-ger a esfera do íntimo, proteger “[...] todas aquelas circunstâncias onde as pessoas vivem suas vidas pessoais sem consequências sistematicamente prejudiciais para os demais ao seu redor” (HELD, 1987, p. 264). Como diz Carol Gould (1988), interferir na vida íntima dos indivíduos, naqueles assuntos nos quais o restante do grupo não tem por que se intrometer, levaria a lesionar seriamente a liberdade individual necessária para o pleno autodesenvolvimento das pessoas.

Esta crítica poderia chegar a se aplicar a certas propostas de Benjamin Barber. Apesar da clara alegação contra a democracia unitária que ele desenvolve em sua Strong Democracy, Barber, por exemplo, postula uma proposta de trabalho voluntário e formula uma exaltação do serviço militar, ambas sumamente discutíveis. Não se poderia incorrer em uma perigosa atitude perfeccionista, dado que por esta via poderia se chegar a reprimir um desdobrar mais amplo da diversidade social? Tais projetos, somados a ideias como a de definir a atividade cívica como prévia a todas as outras e guia para as atividades privadas, podem atentar seriamente contra a livre opção individual de planos de vida, mesmo que Barber tenha o cuidado de frisar que a cidadania deve constituir sempre um direito, nunca uma carga.

b) Os republicanistas e a questão do pluralismo

No que diz respeito às ameaças que o republicanismo cívico causaria ao pluralismo, Chantal Mouffe (1993), no seu livro The Return of the Political, sustenta que a apelação à tradição que este faz não forneceria a linguagem política necessária para a articulação da multiplicidade de lutas democráticas existentes hoje em dia. Segundo esta autora, cabe abandonar a ideia de um espaço único de constituição do político, pois não há uma comunidade, em singular, com um bem comum unificado. Os indiví-duos são sujeitos múltiplos e contraditórios, diz Mouffe, habitantes das

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comunidades mais diversas. Em algumas passagens da obra de Hannah Arendt (2007) se pode descobrir tal tendência, tal busca da construção e conservação de uma esfera pública que, se bem que plural, seria unificada.

Tomando a análise crítica de James Bohman (1996), pode se dizer, tam-bém, que os republicanistas cívicos nem sempre oferecem soluções convin-centes para os desacordos sobre valores. Segundo este autor, haveria de se encontrar a maneira de superar ou corrigir a concepção cívico-republicana da democracia, para poder assumir o pluralismo cultural e abandonar a luta por um bem comum unitário. Uma coisa seria apregoar a necessidade de uma sólida consciência cívica, outra muito diferente seria postular a existência de um bem comum que imponha uma mesma concepção de felicidade a todos. Como argumenta Mouffe (1993), a exigência de consci-ência cívica não deveria implicar, necessariamente, a geração de consenso. O ideal republicano não deveria pretender a supressão da diversidade em favor da unidade comunitária. Os indivíduos devem ter a possibilidade de organizar suas vidas como eles desejarem, de escolher seus próprios fins e de realizá-los como melhor lhes aprouver, reconhecendo o pluralismo como valor medular da democracia moderna.

E a preservação de uma sociedade pluralista exige pensar a cidadania de um modo que não implique renunciar à liberdade individual e que não implique sacrificar o indivíduo ao cidadão. A cidadania não deveria ser vista nem como uma identidade entre tantas outras, como alegam os libe-rais, nem tampouco como uma identidade que domina ou prevalece sobre as demais, como sustentam os cívico-republicanos. A cidadania, segundo Chantal Mouffe (1993), deve ser concebida como um princípio de articu-lação que afeta as diferentes posições de sujeito de todo agente social. O grande desafio é, conforme Mouffe, encontrar uma concepção de liber-dade que ao mesmo tempo seja negativa – não impondo um plano de vida ou ideia de felicidade singular – e positiva – ao incluir os ideais de participação política e virtude cívica em sua definição. Como postula em igual direção outro comentarista, deveria-se abandonar a ideia de uma comunidade unitária e de solidariedades preexistentes, que atentariam contra a pluralidade social,

[...] os democratas radicais devem desistir de vez do ideal rousseauniano do Estado como a expressão política de uma comunidade democrática, bem como devem deixar para trás a noção comunitarista/republicana de que a democracia pode ou deve, como questão de necessidade, revelar ou resultar na

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comunidade. Tais construções não combinam – mesmo como ideais “ com a natureza diferenciada, plural e extensamente politizada das sociedades contemporâneas (WARREN, 1996, p. 242-243).

Bohman (1996), coincidentemente, demonstra certo ceticismo ante tais variantes roussonianas e cívico-republicanas da democracia. Estas interpre-tações da democracia sugeririam que as decisões políticas expressariam os valores substantivos e as tradições de uma comunidade política homogênea ou uma vontade geral; pretensões que não seriam facilmente admissíveis nas democracias pluralistas contemporâneas. Tal rejeição do pluralismo e tal defesa de uma ideia substantiva do bem comum representariam outra forma de evadir a inevitabilidade do antagonismo (MOUFFE, 1993). Entre os pensadores filiados ao comunitarismo – corrente que exibe gran-des afinidades com o republicanismo cívico – muitos valoram em grau excessivo a ideia de pertença comunitária, os laços de sangue, a tradição e o culto pelos antepassados. Tais autores, ao buscar eliminar a falsa abs-tração do indivíduo e criticar o universalismo, chegam a revelar, como diz Anne Phillips (1996), um perigoso viés conservador.

Chantal Mouffe (1993) se interroga sobre como fazer para combinar a defesa do pluralismo e a prioridade dos direitos – características básicas da democracia moderna – com a revalorização do político entendido como participação coletiva em uma esfera pública. Como resolver o grande dilema de conciliar a liberdade dos modernos com a liberdade dos anti-gos? Como gerar uma nova concepção democrática que combine o ideal dos direitos e o pluralismo liberal com as ideias de espírito público e o compromisso ético-político do republicanismo? Ela considera que não se deve negar o bem comum, como faz o liberalismo, nem reificá-lo como faz o republicanismo cívico. O bem comum deveria ser um ponto de refe-rência constante para a atuação dos cidadãos, embora este nunca possa ser plenamente alcançado. Claro que se pode avançar ainda mais longe do que sugere Mouffe e propor como objetivo uma democracia que, superando a filosofia liberal, não abra mão do pluralismo. Isto em consequência de que não há razões que obriguem a aceitar a habitual identificação que se faz entre o pluralismo e o patrimônio categorial desenvolvido pelos liberais, tema este abordado em outro texto de nossa autoria (VITULLO, 2009).

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c) O republicanismo e a homogeneização

No que se refere a outro dos pontos mencionados, o perigo de incorrer em um universalismo homogeneizante, este é profusamente destacado por Iris Young (1990), autora à qual se fez menção no capítulo precedente. Para Young, a imparcialidade presente nas teorizações liberais aparece também no pensamento cívico-republicano, quando busca suprimir a diferença e excluir aquelas pessoas mais identificadas com o corporal, sentimental e afetivo – mulheres, judeus, negros, índios, entre outros. Os críticos do liberalismo apelariam, muitas vezes, para o ideal de comunidade, ideal de vida pública compartida, ou de reconhecimento e identificação recí-procos. Mas tal ideal, igual ao que acontece com a noção de imparciali-dade liberal, eliminaria a diferença entre sujeitos e grupos, excluindo as minorias. A própria noção de civismo público universal, segundo Young, deveria ser alvo de fortes suspeitas.

Para Young (1990), o moderno republicanismo tenderia a assumir uma esfera pública unitária – outra vez, a crítica pode ser aplicada ao pen-samento de Arendt – não condizente com a realidade das sociedades contemporâneas,

[...] a moderna teorização republicana, que define a política em termos do público, tende a assumir uma esfera pública unitá-ria estruturada por relações face a face simultâneas (Arendt, 1958; Barber, 1984). É importante observar que a vida pública em nossas sociedades, quando ela existe de fato, não conse-gue atender essas condições. A discussão pública liderada por movimentos insurgentes na maioria das vezes não ocorre em uma única assembleia, mas na heterogênea proliferação de grupos, associações e fóruns com diversas perspectivas e orien-tações [...] o que faz com que uma discussão seja pública não é nem a unidade nem a proximidade, mas a abertura com que ela ocorre (YOUNG, 1990, p. 88).

O republicanismo cívico valoraria excessivamente a unidade, o que o leva-ria a tentar forçar uma homogeneidade política e social. Nesta linha, Iris Young considera que

[...] o ideal da comunidade valida e reforça o medo e a aver-são que alguns grupos sociais têm em relação aos outros. Se a comunidade é uma norma positiva, ou seja, se o objetivo é existir juntamente com os outros em relações de compreensão

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mútua e reciprocidade, então é entendível que acabemos excluindo e evitando aqueles com quem não nos identificamos nem poderemos nos identificar (YOUNG, 1990, p. 235).

O desejo de preservar a identidade comunitária levaria, na prática, a mar-ginar os indivíduos que ameaçassem tal senso de identidade coletiva.

Entre os autores que ela indica como passíveis de tal crítica, está o próprio Barber. Young diz que, por um lado,

[Barber] se posiciona fortemente contra os teóricos políticos contemporâneos que constroem um modelo de discurso polí-tico livre de dimensões afetivas. Ritual, mito, paixão, expres-são emocional e o discurso poético têm significado político, para ele, tanto quanto a argumentação racional (YOUNG, 1990, p. 117).

Mas, por outro lado, Barber defenderia

[...] uma concepção do público definido pela sua unidade e universalidade, em oposição a afinidades grupais e necessida-des e interesses particulares. Ele distingue claramente entre a esfera pública da cidadania e da atividade cívica, por um lado, e uma esfera privada de identidades, papéis, filiações e interesses particulares, por outro. A democracia forte, ele afirma, deplora qualquer divisão no público, que, idealmente, deve expressar uma vontade comum e o julgamento comum de todos os cidadãos. A cidadania não exaure as identidades sociais das pessoas, mas deve ter prioridade moral sobre todas as outras atividades sociais [...] para Barber, o processo de democracia participativa exige o apagamento das diferenças sociais, o que tende a privilegiar alguns grupos cuja voz e pers-pectiva dominam essa esfera pública pretensamente comum (YOUNG, 1990, p. 117).

Concordando com a necessidade de restaurar a distinção entre o público e o privado, Young alega que isto não deveria ser feito a partir de uma opo-sição hierárquica entre razão e sentimentos, entre masculino e feminino, entre universal e particular.

De qualquer maneira, Young (1990) concorda com Barber e outros repu-blicanistas contemporâneos quando desaprova a privatização da polí-tica resultante dos processos pluralistas liberais e luta pela instituição de

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públicos verdadeiramente democráticos. Porém ela considera que as crí-ticas ao liberalismo deveriam ser realizadas sem ter de abraçar a comu-nidade como ideal político. O ideal comunitário expressaria o desejo de uma totalidade social simétrica, uma identidade segura e sólida. Desejo que, para Young, não passaria de um sonho, mas um sonho com perigo-síssimas consequências políticas. Como assinala Mouffe (1993), haveria de se encontrar a forma de superar a concepção da esfera pública construída de uma forma racionalista e universalista, dado que impediria reconhecer a divisão e o antagonismo, e relegaria ao privado todo particularismo e diferença.

Diretamente ligadas a esta objeção contra o universalismo, estão outras críticas realizadas pelo movimento feminista. Segundo autoras como Anne Phillips (1993; 1996), o republicanismo mantém estreitos vínculos com o heroísmo masculino e o elogio da glória militar, posicionando-se contra o mundo da mulher, contra o privado, o pessoal e o sensual. Ao comparar o republicanismo com as posições defendidas pelos movimentos de mulheres, assinala:

Nas suas origens históricas o republicanismo cívico foi gra-vemente omisso frente às preocupações da feminilidade e da mulher, com tendência a tratar a distinção entre as esfe-ras pública e privada como inviolável e a presumir que as mulheres ocupam esta última. Nas suas variantes modernas, ele recorre a essas ideias para condenar o vazio da democra-cia liberal – e particularmente a política mercenária que trata apenas dos interesses ou das necessidades materiais. Isto gerou uma importante crítica da política dos grupos de pressão e da capitulação frente aos interesses do mercado, compartilhada pelo pensamento feminista contemporâneo. Porém, essa crí-tica se combina com uma visão de cidadania em que as pes-soas devem aprender a transcender a sua própria localização imediata, para apontar para assuntos mais amplos e gerais. O contraste implícito entre o geral e o particular, o político e o pessoal, parece enfrentar o republicanismo cívico com as cor-rentes do pensamento feminista contemporâneo (PHILLIPS, 1993, p. 76-77).

Uma autora que procurou conciliar ambas as posturas, tentando chegar a uma versão do republicanismo cívico passada pelo filtro do feminismo, é Mary Dietz. Partindo do resgate e a reinterpretação do pensamento de Hannah Arendt, Dietz considera que a cidadania aponta para questões

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mais gerais, deixando de lado o “mundo privado” da família, dos vizinhos ou do trabalho. Dietz alerta para os limites que a luta pela “democrati-zação da vida quotidiana” apresenta, contribuindo, como bem assinala Phillips (1993), para repensar a relação entre as esferas econômica, política e social.

O projeto de Dietz (1992) passa pelo estabelecimento de um contraponto com a vertente maternalista do feminismo. A visão maternalista da polí-tica pretenderia erigir um senso de virtude cívica e de cidadania alternati-vos à visão liberal, fundando-se na primazia moral da família. Esta autora procura marcar sua oposição à ideia maternalista de conceber o mundo privado e familiar como um novo locus para a moralidade pública e como um modelo para a atividade do cidadão. Procura diferenciar-se de uma noção de política informada pelas virtudes da esfera privada e pautada por um tipo de personalidade comprometida com as capacidades de se relacionar, de brindar amor, de sentir compaixão e de cuidar dos mais vulneráveis. Dietz reprova a ideia de tomar a experiência das mulheres na esfera privada enquanto mães como exemplo e base para desenvolver uma capacidade especial e constitutiva de um imperativo moral, antagônico à visão masculina liberal e individualista do mundo e sua noção de cidada-nia. Não compartilha a tentativa de fazer das virtudes da maternidade a base para um novo mundo público humanizado.

Para Mary Dietz, o feminismo deveria entender a política de forma nem liberal nem maternalista. Deveria conseguir articular uma concepção da atividade humana que não seja necessária nem historicamente redutível à arrogante esfera pública masculina, nem trate os cidadãos como estran-geiros precavidos – conforme postula o liberalismo de mercado – e que ao mesmo tempo não lide com as pessoas como íntimos que se amam – con-forme o imaginário do feminismo maternalista. Dietz reafirma: “não há nenhuma razão para pensar que a maternidade necessariamente induz ao compromisso com práticas democráticas” (DIETZ, 1992, p. 76) ou que haja uma natureza democrática da mulher ou evidências que provem que a mulher conta com uma voz política mais madura (DIETZ, 1985). Cabe ao feminismo deixar de enfocar tão somente as questões sociais e econô-micas. O feminismo deve conseguir articular, também, uma verdadeira e comprometida visão política do mundo, sentando as bases para uma nova concepção do poder, da cidadania e da esfera pública. Uma nova concep-ção que no seu combate contra o individualismo competitivo liberal, por um lado, e contra o universalismo masculinista republicano, pelo outro,

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não gere um contraexemplo deste último: o essencialismo maternalista como novo ideal político, tão discriminador e culturalmente “imperia-lista” quanto os anteriores.

d) O republicanismo e os direitos das minorias

Outro defeito que, em geral, é atribuído à vertente cívico-republicana da democracia consiste na opressão que pode causar sobre os dissidentes. O republicanismo cívico teria uma forte tendência a produzir conformidade. Esta crítica cabe, fundamentalmente, quando a proposta é considerada para comunidades pequenas, onde a busca da homogeneidade seria maior, e onde os laços de amizade, afetividade, parentesco e vizinhança desempe-nhariam um papel mais destacado. Tais relações mais estreitas poderiam chegar a exercer uma forte opressão sobre os desconformes. E estas pres-sões em prol da conformidade dentro de um grupo podem chegar a ser sufocantes e insustentáveis, ainda mais se a unanimidade na adoção de decisões for considerada como um triunfo. “O foco no consenso poderá criar pressões para a conformidade e para a consideração negativa da dis-sidência, entendida como algo que necessariamente deve ser superado” (GOULD, 1988, p. 18)6.

Como bem resenha Phillips (1996), a amizade e a política como assuntos inter-relacionados eram comuns na Antiga Grécia e bastante frequentes, também, nas reuniões de mulheres. A amizade faria com que a participa-ção deixasse de ser um custo, passando a ser vista como uma atividade pra-zerosa. Entretanto, ao insistir no contato face a face, se oculta o conflito e se gera um falso consenso. Nas reuniões de mulheres, muitas participantes devem fingir que estão de acordo para não ofender as amigas ou para não parecerem estúpidas, assinala Phillips (1996). Nos momentos de maiores divergências, estas relações mais próximas ou mais íntimas levam muitas vezes a expressar-se com exagerada hostilidade, como se as participantes não pudessem conceber que suas companheiras pensassem de forma dis-tinta. Tais atitudes com frequência fazem com que uma simples discussão degenere em um conflito cheio de rancores.

Seguindo Jane Mansbridge (1993), que desenvolveu com grande detalhe estas questões em seu estudo sobre a democracia consensual – ou unitária

6 Vejam-se também DAHL, 1993, p. 265; DAHL e TUFTE, 1973, p. 14; COOK e MORGAN, 1971, p. 32.

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–, pode-se concordar que uma democracia unitária pura tenderia a ser, muitas vezes, exageradamente passional. Em sua instigante análise das relações políticas travadas em uma pequena cidade estadunidense e do funcionamento de uma fábrica autogestionada, ela encontra fortes evidên-cias que apontam para essa direção. Uma democracia unitária pode estar demasiado carregada de amor e de ódio, conclui Mansbridge, diferente-mente do que acontece com a democracia adversarial, a qual seria mais impessoal e menos imbuída de paixões. Se de um lado, positivamente, os contatos face a face melhoram a percepção de afinidades entre as pessoas, do outro, em termos negativos, podem aumentar as possibilidades de con-formidade por meio da intimidação, dando como resultado um consenso falso ou manipulado. Como bem ilustra esta autora, o contato direto, face a face, expõe mais em público, transforma os desacordos políticos em crí-ticas pessoais, e torna mais difícil dissociar as ideias dos indivíduos que as defendem.

Voltando a Anne Phillips (1993), é importante mencionar que quando se misturam a política e a amizade, os recém-chegados podem sentir-se mar-ginalizados ou não levados em conta. Mais uma vez fazendo referência aos movimentos de mulheres, Phillips relata que

[...] aquelas que estão fora do movimento muitas vezes se sen-tem excluídas pelo clima de irmandade reinante nas reuniões, percebendo que existem outros critérios para a adesão do que simplesmente o fato de ser mulher [...] A metáfora da família tem muito a ver com isso. Se o ideal é a irmandade ou frater-nidade, a linguagem dos irmãos impõe suas próprias restrições (PHILLIPS, 1993, p. 32-33).

Como também diz Mansbridge (1983), a informalidade – chamar pelo nome, fazer piadas etc. – pode ser muito divertida para os que já perten-cem ao grupo, mas nem tanto para os recém-chegados, que podem não entender os assuntos tratados. Tal informalidade, assim como levaria a muitos a se sentir parte de uma comunidade íntima, deixaria claro para os que vêm de fora que eles não pertencem a esta.

Em comunidades com estas características, onde os laços de amizade estão muito arraigados, as pessoas acabam evitando os assuntos controvertidos. Tentam não expor censuras e reprimendas em público, procuram evitar a luta aberta. Na hora de escolher representantes ou delegados, também buscam candidatos que todos possam aceitar. Algo muito frequente, diz

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Mansbridge (1983), em assembleias de cidades pequenas, em clubes ou departamentos acadêmicos, onde a unidade tem um grande valor. As pes-soas, segundo Mansbridge, não querem ter desacordos, não querem passar por situações desagradáveis. Opinar e criticar a postura dos demais pode gerar inimigos por toda a vida. As pessoas teriam medo de se opor aos outros em uma cidade pequena, onde existem relações familiares e onde a proximidade física pode induzir temores inconscientes à violência física.

Algumas pessoas não iriam às reuniões porque sabem de antemão que sai-rão perturbados. E, em caso de comparecer, muitos precisariam saber que contam com o apoio seguro de certo número, antes de conseguir a cora-gem necessária para entrar na discussão. Os cidadãos, muitas vezes, frente a fortes conflitos, prefeririam lutar por intermédio de seus representantes, como em um matrimônio que se desfaz. Assim, quando em uma comu-nidade política é necessário enfrentar alguma questão muito conflitiva, a maioria das pessoas prefere o voto secreto ou a representação eleitoral, que poriam alguma distância entre eles e seus adversários. O voto à viva voz nas assembleias pode ter um efeito coercitivo, que tornaria mais difícil fazer explícita a oposição (MANSBRIDGE, 1983).

O sério problema da democracia face a face é que dificilmente reconhecerá o conflito de forma explícita ou aberta. Quando muito, se reconhecido, o conflito costuma ser atribuído a diferentes opiniões acerca do que repre-senta melhor o interesse de todos. O consenso tenderia a beneficiar àqueles que estão a favor do status quo, que já têm o poder para selecionar, definir e formular os assuntos a discutir. O custo de tempo e energia emocional frequentemente seria tão alto que não valeria a pena fazer pública a dis-cordância. Deste modo, o consenso dificilmente chegaria a ser de todo real. E quando os conflitos efetivamente estouram, na maioria das vezes, se deveria a motivos menores. Motivos que, ligados à personalidade e à forma de ser dos antagonistas, acabariam tornando-os quase que cruzadas morais (MANSBRIDGE, 1983).

Seyla Benhabib (1996b) menciona, entre as teorizações que poderiam incorrer neste risco, as desenvolvidas por Hannah Arendt, Benjamin Barber ou Mouffe e Laclau. Segundo Benhabib, os modelos alternativos que propõem estes autores exigiriam um grau de consenso ou unanimidade elevado demais, ao preço de silenciar os dissidentes ou esconder os pon-tos de vista das minorias. Os grupos minoritários se veriam, deste modo, totalmente indefesos frente à vontade da maioria. Segundo Mansbridge

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(1983), no caso de Hannah Arendt, haveria um perigo destas característi-cas: a filósofa alemã teria uma visão um tanto ingênua no que diz respeito às possibilidades de manter a liberdade e a pluralidade. Procura evitar a unanimidade, mas não leva em conta as pressões para que esta se produza nas assembleias face a face, nem a carga de opressão e conformismo que estariam atreladas.

Já Barber, contradizendo a leitura que Benhabib efetua sobre ele, formula uma clara advertência que efetivamente iria ao encontro deste tipo de crí-ticas. Barber realiza uma nítida exposição contra a democracia unitária, que segundo ele, seria uma modalidade de democracia perigosamente conformista, coletivista e, com frequência, coercitiva. Para Barber, esta só seria aceitável em pequenas comunidades, onde poderia ser relativamente benigna. Em grande escala tenderia a acabar com a liberdade, com a cida-dania e com a própria democracia.

Chamamentos para que todas as questões polêmicas sejam resolvidas por unanimidade, pela vontade orgânica de uma comunidade homogênea, ou até monolítica – muitas vezes identificadas simbolicamente como a vontade de uma raça, uma nação, o povo ou a comunidade – [...] levam, obviamente, a degradar a autonomia e, portanto, em última instância a própria cidadania [...] a democracia unitária torna-se confor-mista, coletivista, e com frequência até mesmo coercitiva [...] em cenários mais amplos, a democracia unitária pode se tornar maligna, pode ser perigosa para a liberdade e cidadania e rui-nosa para a própria democracia (BARBER, 1984, p. 148-149).

Para este autor, haveria uma imperiosa necessidade de incluir oportuni-dades reais para que os desconformes pudessem expressar publicamente a sua opinião. Haveria de se criar mecanismos que garantissem o direito de opinião das minorias. Os perdedores deveriam poder deixar sentada sua desconformidade frente às decisões adotadas, incrementando, desta maneira, a legitimidade do resultado final.

e) A democracia e a administração do tempo

No ponto anterior se fez alusão às reuniões. Uma pergunta fundamental em relação a estas seria: Quem assistiria? Quem participaria? O próprio fato de decidir comparecer ou não a um debate seria autosselecionador e excludente. E o fator tempo seria crucial na hora de explicar tudo isto.

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Como bem diz Robert Dahl (1993), as pessoas têm outras coisas a fazer, além de ir a assembleias e reuniões. A participação é custosa, exige tempo e dinheiro. Concordando com Michael Walzer (1977), quem há alguns anos escrevera um brilhante ensaio intitulado Um dia na vida de um cida-dão socialista, pode-se afirmar que a participação imporia terríveis pressões sobre o escasso tempo das pessoas. Tal ensaio, dada sua direta relação com o tema aqui abordado, merece ser citado com certa amplitude. Segundo este autor, “uma figura poderosa existe por trás do caçador, do pastor e crítico de Marx: o cidadão ocupado, assistindo a suas intermináveis reuni-ões” (WALZER, 1977, p. 198). Glosando a Oscar Wilde, Walzer contra--argumenta que

[...] as exigências da cidadania estão em desarmonia com a liberdade do caçador, do pastor etc. […] o autogoverno é uma atividade muito exigente e que requer muito tempo [...] poderá exigir uma atividade quase contínua; e a vida tornar-se-á uma sucessão de reuniões. Quando haverá tempo para a criativi-dade pessoal, ou para a livre associação de amigos? No modo de vida [em que as reuniões ocupam tanto espaço], quando haverá tempo para a conversa íntima e privada? (WALZER, 1977, p. 198-199).

Para Walzer, a esquerda teve sempre uma ambição desmedida em rela-ção à participação generalizada e permanente da cidadania nos assuntos públicos, “[...] a ideia que a esquerda política tem da cidadania foi sem-pre esmagadora. Sugere um frenesi de atividade e muitas vezes, envolve a repressão de todos os sentimentos, à exceção dos sentimentos políticos” (WALZER, 1977, p. 199). Walzer considera que muitos teóricos, partindo das ideias de Rousseau, haveriam tentado assegurar o espírito cívico e a participação política mediante a contínua negação da vida privada. Para eles a felicidade comum absorveria boa parte da vida dos indivíduos, pelo que teriam menos necessidade de procurar a felicidade em atividades pri-vadas. Através da exaltação da “virtude republicana”, tais autores privile-giariam o êxito da comunidade por sobre o bem-estar pessoal e individual.

Coincidindo com Walzer mais uma vez, os cidadãos deveriam poder escolher o grau de participação que querem ter nos assuntos públicos, e deveriam contar, inclusive, com o direito a se negar a fazê-lo caso assim o preferissem. Nas suas palavras:

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[...] os cidadãos sempre têm o direito de escolher entre parti-cipação e inatividade. Suas obrigações são o resultado de suas escolhas, e não a causa das mesmas. Por essa razão, o Estado não pode impor uma escolha; não pode forçar os cidadãos a serem homens e mulheres autogovernantes. Então, apenas os cidadãos que se apresentarem voluntariamente para a ação serão ativistas […] O radicalismo e o socialismo fazem da polí-tica uma escolha real para todos os que a apreciam e um dever – às vezes – mesmo para os que não a apreciam. Mas que senso sufocante de responsabilidade e que excesso de virtude seriam necessários para manter a participação de todos por todo o tempo! Como seria exaustivo! (WALZER, 1977, p. 201).

Não seria aceitável esse fanatismo quase que religioso dos militantes, os quais continuamente exigem ao restante pôr fim a qualquer outro com-promisso em favor da “causa”. Uma política radicalizada não deveria res-tringir a pluralidade de intensidade nos compromissos.

Muitas pessoas, porém, permanecem afastadas das reuniões por razões que os militantes não compreendem ou que não querem reconhecer. Permanecem afastadas não porque sejam derrotadas, estejam com medo ou sejam ineducadas, ou ainda porque não tenham confiança ou habilidade (embora essas sejam razões frequentes de afastamento), mas sim porque assu-miram outros compromissos. Encontraram meios de [viver satisfatoriamente] sem participar de política (WALZER, 1977, p. 203).

No mesmo sentido, e referindo-se aos movimentos de mulheres, Anne Phillips comenta:

A ideia de que as pessoas deveriam ser congruentes não é exclu-sividade do feminismo e o outro lado da moeda é o moralismo ignominioso que os movimentos políticos produzem com tanta frequência. Há uma linha tênue entre o positivo de dizer que as pessoas deveriam praticar o que predicam, e o negativo de acusá-las quando não conseguem viver à altura de seus ide-ais (PHILLIPS, 1996, p. 114).

Como aponta um comentarista, haveria de se abandonar a ideia de que a participação é uma atividade prazerosa que, colocada à disposição, levaria todos os indivíduos a lançar-se a ela (WARREN, 1996). O fato de preten-der que todos sintam entusiasmo pela participação política e vejam esta

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como uma atividade agradável levaria a cair, como já fora assinalado, em uma atitude de tipo perfeccionista, tentando impor ao conjunto da cida-dania um ideal de vida predeterminado. E na prática, como bem expressa Phillips, uma democracia exigente demais em termos de participação poderia acabar sendo uma questão de minorias. “Quando uma democra-cia estabelece altas demandas na atividade e o envolvimento das pessoas, a participação se converte em um assunto de minorias, o que coloca uma árdua alternativa entre a intensidade do envolvimento e a medida em que a participação é igualmente compartilhada por todos” (PHILLIPS, 1996, p. 30). Quanto mais participativa uma instituição, mais pode chegar a pri-vilegiar aquele que conta com mais tempo, mais energias e maior educação (PHILLIPS, 1996, p. 158).

Em definitivo, e sem ter por que coincidir com o postulado clássico do liberalismo, tão bem refletido por Benjamin Constant, quando apregoava que “[...] enquanto o exercício de nossos direitos políticos nos deixar mais tempo para nos dedicarmos a nossos interesses privados, mais preciosa será a liberdade” (CONSTANT apud SANTILLÁN, 1994, p. 84), cabe-ria perguntar se a maioria das pessoas estaria disposta a afrontar as cargas que impõe uma participação mais elevada. Vale insistir, seguindo Pennock (1979), que muitas pessoas podem ter interesses profundos e definidos, mas não sobre assuntos políticos. Nestes casos, estaria justificado tratar de mudar suas vidas e fazer deles seres políticos? Há certeza de que eles seriam felizes, e melhores pessoas, caso se efetuasse tal transformação? Justificar-se-ia induzir as pessoas a participar, à custa de seus outros inte-resses, simplesmente para que conseguissem proteger-se do que poderia ser decidido em sua ausência?

Talvez haja que aceitar, junto a Phillips (1993), que as duas atividades políticas mais igualmente distribuídas na população seriam o ato de votar e o de assinar petitórios, justamente aquelas atividades que menos tempo demandariam dos indivíduos. O resto das atividades políticas implicaria, de forma inevitável, minorias mobilizadas autoselecionadas, nem sempre autorizadas a opinar pelos demais. E dado que isto seria assim nas demo-cracias contemporâneas, haveria de se concordar que tão somente as elei-ções garantiriam com segurança a igualdade numérica, outorgando a cada indivíduo um peso igual nas decisões políticas. Haveria que extremar a cautela na hora de pensar em mecanismos que permitissem, realmente, lograr um desenvolvimento mais alto do ideal democrático. A reunião

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nunca deveria substituir, completamente, o direito igual a se expressar nas urnas de votação.

f) Republicanismo, democracia e responsabilização

Outro dos defeitos adjudicados ao republicanismo cívico é o relativo aos problemas de responsabilização que podem surgir ao se pôr tais ideias em prática. Como diz Dahl (1993), sem regras de representação claras a autosseleção dos oradores pode chegar a ser muito arbitrária e injusta. Anne Phillips, mais uma vez referindo-se à experiência do movimento de mulheres, conta como, ao não haver procedimentos formais para se tornar membro, o movimento não pode assumir um caráter autentica-mente representativo face ao exterior, nem se erigir em órgão legítimo da opinião feminina. Nas experiências analisadas, ao fazer da reunião uma parte central do envolvimento, o movimento, segundo Phillips (1996), limitava o número de membros e acabava com umas poucas mulheres não representativas. E, ao não querer reconhecer a diferença dirigentes/dirigi-dos, não permitia que se contemplassem mecanismos de responsabilização frente ao processo de divisão que, de fato e igualmente, se produzia. Como diz Mansbridge (1983), nestes casos as responsabilidades dos dirigentes se voltavam extremamente difusas. O interesse dos que comparecem às reuniões e debates políticos nem sempre representa os interesses daqueles que não assistem. Haveria de se contemplar, junto a isto, o fato de que as oportunidades reais e efetivas de participar não são iguais para todos os indivíduos. Tão somente quando as possibilidades e custos de participar fossem iguais para todos, seria aceitável ver a decisão de participar, ou não participar, como um indicador do grau ou intensidade do interesse que a pessoa sente pelos assuntos tratados.

Recorrendo a Walzer, voltando ao papel do militante político, cabe relem-brar que este “[...] não representa ninguém; sua grande virtude é que ele escolheu a si mesmo, é um voluntário. Mas uma vez que ele sacrifica tanto pelos seus concidadãos, acredita que está agindo para eles. Interpreta sua falta de participação apenas como um sinal de sua opressão” (WALZER, 1977, p. 203). Importante seria não esquecer que “os militantes represen-tam a eles mesmos. Se o movimento for democrático, os outros também deverão ser representados” (WALZER, 1977, p. 204). Como afirmamos em outro texto (VITULLO, 2009), uma democracia mais profunda e radical, pós-representativa e pós-liberal, nunca poderá abandonar de forma definitiva a ideia de representação,

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[...] o poder tem de ser distribuído (coisa que não ocorre hoje em dia) a grupos de cidadãos ativos e interessados; mas esses cidadãos têm de ser responsáveis diante de um grupo maior [...] Nada é mais importante do que essa responsabilidade; sem ela, teremos apenas uma tirania ativista ou burocrática (WALZER, 1977, p. 204).

Este autor, referindo-se às reuniões em uma imaginária sociedade socia-lista, considera que,

[...] enquanto as reuniões necessárias continuam por muito tempo, esses cidadãos inativos darão longos passeios, brin-carão com seus filhos, pintarão quadros, farão amor e verão televisão. Às vezes irão às reuniões – quando seus interesses estiverem em jogo, ou quando assim o desejarem. Mas não assumirão o compromisso completo que é necessário ao socia-lismo e à democracia [participativa]. De que forma essas pes-soas devem ser representadas nas reuniões? Quais são seus direitos? (WALZER, 1977, p. 201-202).

Haveria de se tentar abandonar, também, qualquer classe de apelação ou exortação retórica que chamasse a assistir às reuniões públicas, impondo dita atividade quase como uma obrigação cívica. Exortações deste tipo legitimariam a ideia de que aqueles que não se apresentam às reuniões têm se comportado mal e que, portanto, seriam merecedores de qualquer des-graça que pudesse lhes acontecer. Mansbridge (1983) considera que, pelo contrário, deveria-se definir o comparecimento nas instâncias de debate e a tomada de decisões como um privilégio. Um direito e privilégio aberto a todos, mas que implicaria certas obrigações para os assistentes, como a de considerar não apenas os interesses próprios, mas também os interesses daqueles que não estão presentes.

Outra vez, uma autora que poderia ser alcançada por este tipo de críticas é Hannah Arendt. Como já fora mencionado, muitos questionam sua defesa das elites autosselecionadas. Assim, referindo-se a este assunto, Dryzek diz: Arendt considera que a autêntica democracia exige tempo, dedicação e virtude, características que só podem ser encontradas em uma minoria de autosselecionados. “Ela acredita que a política [...] sempre será para uma elite autosselecionada” (DRYZEK, 1990, p. 19). “Entre os teóricos republicanos, Hannah Arendt é a que defende a exclusão mais explici-tamente, acreditando que a política republicana poderia ser apenas para alguns autosselecionados” (DRYZEK, 1996, p. 65).

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De que forma tais elites autosselecionadas seriam responsáveis perante o restante da cidadania? Como responderiam ante as bases caso não exis-tissem mecanismos explícitos de representação? Benjamin Barber (1984) não comparte da postura de Arendt, autora que, segundo ele, acabaria aceitando a autoexclusão da esfera política dos indivíduos apáticos ou alie-nados. Segundo Barber, isto levaria a marginalizar politicamente ainda mais aqueles já de fato marginalizados nas esferas econômica e social.

Insistindo na responsabilidade dos mais ativos frente aos remanescentes, e no direito destes últimos a serem escutados, Walzer considera que os que não comparecem às reuniões ou não participam de forma direta também deveriam ter pleno direito de reclamar em caso de não concordar com alguma das decisões adotadas. Nas suas palavras:

[...] os que não vão podem tornar-se críticos mais eficazes do que os que vão [...] Numa sociedade radicalmente democrática [os melhores críticos] seriam as pessoas que permaneceriam afastadas de reuniões, às vezes por meses a fio, e somente então descobririam que acontecera algo insultuoso que deve ser ridi-cularizado ou contra o que se deve protestar. Os ativistas não deveriam reagir a esses protestos dizendo aos cidadãos atrasa-dos que eles deveriam ter sido ativos durante os meses que se passaram. Não lhes deveriam mandar fazer um trabalho em que não sentem prazer (ou que não fariam bem). Em vez disso, deveriam ouvir o que eles têm a dizer. E deveriam pensar o seguinte: como seria a política democrática sem seus críticos independentes? (WALZER, 1977, p. 205).

Deveria ser abandonada a ideia de que aquele que não comparece, poste-riormente não tem direito a opinar. Achar que a participação outorga direi-tos é não considerar a necessidade de mecanismos de representação. Para que sejam contempladas as necessidades e preferências de todos na discus-são pública, estes necessariamente terão que estar representados. Aquele que não vai, nem é representado, ou vai, mas não consegue ser escutado, terá menos possibilidades de ser contemplado na decisão adotada. Os inte-resses dos grupos que não possuem uma representação adequada serão menos levados em consideração. Ainda quando uma participação mais imediata e direta deva ser alcançada em outro tipo de democracia mais comprometida e radical, se deverá levar em consideração a necessidade de algum tipo de instituição ou sistema de representação e responsabilização.

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Antes de concluir este capítulo, cabe uma breve revisão das propostas institucionais formuladas por alguns dos autores cívico-republicanos. No caso de Benjamin Barber (1984), ocupam um lugar importante na sua obra os projetos relacionados com formas institucionais que incentivem a participação cidadã em grande escala. Ele defende, por exemplo, a cria-ção de um Sistema Nacional de Trabalho Cidadão Voluntário, que pode-ria assumir diversas modalidades, tais como o serviço militar, a defesa civil, corpos de apoio a projetos de desenvolvimento urbano ou rural, e de manutenção de infraestrutura, corpos internacionais de paz, entre outros. Este tipo de mecanismos fomentaria, segundo Barber, a camaradagem, a ideia de atividade comum, as noções de cooperação e espírito comunitário, o papel cívico do cidadão e a sua autoestima. Barber considera que o traba-lho voluntário contribuiria para quebrar o paroquialismo inerente a outros tipos de participação cidadã, facilitaria a ação cívica em grande escala e possibilitaria a participação direta dos indivíduos no âmbito nacional. O sério problema em relação a propostas como estas, como já fora dito ante-riormente, é que poderiam trazer atrelada uma perigosa tendência per-feccionista. Com maior razão ainda em se tratando de mecanismos de “cidadanização” ou conscientização cívica que não mostraram resultados muito alentadores nos países onde já foram aplicados. O próprio Barber chega a reconhecer isto em alguma passagem do seu livro, sem oferecer, entretanto, argumentos suficientes que sirvam para demonstrar por que tais mecanismos resultariam positivos sob o novo modelo democrático que ele propõe.

Barber (1984) oferece também no seu livro Strong Democracy outras ideias que ajudariam a revitalizar a cidadania, entre elas: assembleias de vizi-nhos, cooperativas de comunicação cívica, serviços públicos de video-texto e subsídios que equiparassem o acesso à informação, justiça local informal exercida pelos próprios cidadãos, iniciativa popular e referendo, voto eletrônico, vales de representação, democracia no local de trabalho, uma nova arquitetura dos espaços públicos etc. Este autor postula, igual-mente, a necessidade de heróis políticos representativos que sirvam como aglutinadores da comunidade, o alento às tradições populares orais e à celebração das datas pátrias que remetam a mitos e simbologias comuns; elementos que, segundo ele, podem ser um bom complemento do diálogo.

Barber (1984) considera, ademais, que em um novo modelo de democra-cia deveria ser criada uma espécie de casa da cidadania (civic home), um verdadeiro espaço público onde as pessoas pudessem se reunir e deliberar.

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Este autor propicia a instauração de foros locais e regionais com sistemas de delegação de atribuições, mas fundamentalmente foros eletrônicos de vizinhos, que permitiriam a participação direta em grande escala. Para Barber, os cargos públicos municipais deveriam ser ocupados em forma rotativa por cidadãos escolhidos aleatoriamente. Ele insiste, ao longo da sua obra, no mecanismo do sorteio combinado com uma rotação fre-quente e com o pagamento pelo serviço prestado (como estímulo para os mais pobres), o que poderia evitar, ou pelo menos mitigar, as tendências oligárquicas da representação política.

Hannah Arendt é menos concreta nas suas propostas, mas deixa ver na sua obra uma grande simpatia por determinado tipo de instituições, que garantiriam uma democracia genuinamente distinta. Ela cita com frequência o exemplo de Thomas Jefferson e suas posições no processo posterior à Revolução Norte-Americana. Arendt adere à fé jeffersoniana nas “pequenas repúblicas”, entidades que teriam sido a energia que deu vida à revolução e teriam feito com que toda a nação entrasse em atividade. Por meio dessas pequenas repúblicas ou assembleias municipais, se conseguiria que os indivíduos se sentissem partícipes do governo de forma permanente e não apenas no dia da eleição dos representantes (ARENDT, 1990).

Arendt demonstra também um grande interesse pelos sistemas piramidais de governo. Ela apoia um sistema federativo de conselhos como alternativa ao sistema representativo, baseado em partidos burocráticos e estruturas estatais. Assim a autora cita, entre outros exemplos, as experiências con-selhistas da Comuna de Paris de 1871, da Rússia de 1905 e de fevereiro de 1917, de Munique em 1919 e da Revolução Húngara de 1956. Arendt ressalta o caráter espontâneo de todos estes acontecimentos e o fato de, mesmo sem estar ligados entre si, terem dado lugar a estruturas institucio-nais semelhantes (ARENDT, 1990). Diretamente nas palavras dela:

Os conselhos eram, obviamente, esses espaços de liberdade. Como tais, eles se recusaram sistematicamente a se consi-derarem órgãos temporários da revolução e, ao contrário, envidaram todos os esforços para se firmarem como órgãos permanentes de governo (ARENDT, 1990, p. 211).

[…] os conselhos ou sovietes proliferaram por toda parte, intei-ramente independentes uns dos outros; conselhos de trabalha-dores, soldados e camponeses, no caso da Rússia, e conselhos dos mais diferentes tipos, na Hungria; os conselhos de bairro,

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que surgiram em todos os distritos residenciais, os chamados conselhos revolucionários, formados durante as lutas de rua, conselhos de escritores e artistas, formados nos cafés e bares de Budapeste, conselhos de jovens e estudantes nas universidades, conselhos de operários nas fábricas, conselhos no exército, no serviço público civil, e assim por diante (ARENDT, 1990, p. 213).

Entretanto, Arendt não consegue oferecer uma proposta institucional mais detalhada. Em geral, os republicanistas cívicos avançaram menos do que os autores enquadrados nas outras duas vertentes da democracia, analisados nos capítulos precedentes, na elaboração de uma melhor e mais acabada engenharia institucional alternativa.

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concluSõeS

Nestas últimas páginas será realizada uma rápida comparação das ques-tões tratadas nos capítulos precedentes. Tentou-se mapear e analisar um bom número de teorizações e propostas alternativas ao paradigma demo-crático predominante na ciência política contemporânea. Com este estudo procurou-se, também, esboçar algumas reflexões em torno de obras e autores não muito difundidos por estas latitudes. Através da explicação e comparação dos distintos argumentos, foram salientados alguns pontos de contato e certas questões controvertidas que separam as diferentes verten-tes alternativas da democracia.

No que se refere à corrente participacionista, pode se destacar que, de acordo com tudo o que fora exposto no primeiro capítulo, esta sustenta uma proposta cujo principal objetivo é o alargamento daquilo comu-mente definido como assunto político. Procura democratizar todas as esferas nas quais atuam os indivíduos. Propõe levar a democracia à vida diária das pessoas nos mais diversos âmbitos e espaços – lar, relações con-jugais, fábrica, escritório, administração, escola. Através de tal processo, as pessoas se tornariam politicamente mais responsáveis, mais ativas, mais comprometidas e tolerantes frente às perspectivas dos demais. As pessoas alcançariam uma maior consciência dos próprios interesses e dos interesses do conjunto da comunidade. Em definitivo, a participação contribuiria, de forma substancial, para o autodesenvolvimento individual e ajudaria a criar melhores cidadãos e cidadãs.

O deliberacionismo, por sua parte, enfatiza a necessidade do diálogo entre atores sociais com igualdade de recursos e condições para alcançar uma autêntica democracia. Esta corrente, como fora examinado no segundo capítulo, apregoa o intercâmbio constante de argumentos, o intercâmbio de razões postas à prova em foros públicos, como forma de contemplar

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maior número de posições, opiniões e preferências. Para os autores enqua-drados nesta corrente, os interesses dos grupos e indivíduos não são inal-teráveis nem chegam congelados ao debate público. Ao contrário, tais interesses se transformariam na medida em que se avança na discussão. Por meio do debate se gerariam maiores possibilidades de ouvir a todos e maiores chances de reconhecimento mútuo. O deliberacionismo também insiste no forte e benéfico efeito psicológico que derivaria da participação na discussão, expandindo os horizontes das pessoas, levando estas a pen-sarem menos em si mesmas e mais nos demais, e ajudando a preservar as diferenças e o pluralismo político e social.

A terceira corrente analisada, a republicanista cívica, procura fortalecer e revalorizar a política, restabelecendo sua supremacia. Considera funda-mental realçar a distinção público/privado, destacando a superioridade da primeira esfera. O republicanismo é, das três vertentes examinadas neste livro, a que mais claramente se posiciona contra a mercantilização e cor-rupção do mundo público, e contra a banalização e instrumentalização do político. Esta corrente busca uma ressignificação do compromisso cívico, através de uma concepção forte e plena da cidadania. Ambiciona um cida-dão ativo e responsável, que se interesse realmente pelos assuntos públicos. Considera que haveria uma estreita ligação entre as noções de felicidade, liberdade pública, ação e participação no poder político. A participação democrática, para os autores agrupados sob esta denominação, deveria se dar primordialmente na tomada de decisões relativas aos grandes assuntos comuns, aos grandes temas, precisamente devido à superioridade que atri-buem ao campo da política.

Nenhuma das correntes examinadas nesta investigação acredita que a democracia se limite apenas a eleições periódicas. Nenhuma aceita que a democracia exija, para permanecer estável, que entre um e outro ato eleitoral a cidadania deva manter-se à margem da tomada de decisões. Nenhuma delas adere, tampouco, à visão atemorizada e desencantada da política como autodefesa, e nem à filosofia do medo, próprias do pensa-mento liberal. Para todas estas vertentes alternativas, a democracia deve ir além de um voto pautado pelos interesses individuais; deve superar a barganha entre preferências pessoais e também deixar de ser um mero espetáculo. Os propulsores destas outras definições da democracia bus-cam evitar o esvaziamento e liquidação das instituições democráticas, assim como procuram estendê-las, aprofundá-las e dotá-las de novos con-teúdos. Tão somente uma mudança substancial nos padrões de tomada

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conclusões

de decisões poderia ajudar a superar esse sentimento de falta de poder e apatia reinantes. Como bem destacam as três correntes, isso se alcançaria não através de uma eleição ocasional de autoridades no isolamento de uma cabine eleitoral, mas por meio de um real envolvimento na efetiva tomada de decisões políticas.

Muito difícil seria poder alcançar uma proposta que servisse de síntese dos três grupos de autores analisados. Cada uma das teorizações cobre distintos aspectos e realça diferentes dimensões de uma nova concepção da democracia. Indubitavelmente deve abandonar-se toda pretensão de que um mesmo projeto possa servir para toda sociedade, em qualquer con-texto, em qualquer tempo e qualquer lugar. As particularidades regionais ou nacionais deverão ser sempre levadas em conta. O evidente é que have-ria de se conseguir maior flexibilidade à hora de tentar levar à prática estas propostas alternativas, assim como um maior grau de criatividade ao imaginar os novos caminhos a serem desenvolvidos.

Entre aqueles elementos fundamentais que nem sempre as três correntes consideram, está o novo papel que desempenhariam os partidos políticos e a radical transformação dos meios de comunicação. Todo modelo que apontasse para uma democracia mais profunda haveria de ter em conta, como questão estratégica central, o fortalecimento e democratização interna dos partidos. Sem um sólido e plural sistema partidário que abrisse mais e melhores canais de comunicação, seria difícil poder imaginar uma democracia radical nas sociedades contemporâneas. Os próprios meca-nismos de democracia direta que se propõem nunca prescindiriam com-pletamente da mediação partidária. Como alguns autores se encarregam de destacar, qualquer teorização alternativa deveria alentar, igualmente, a instauração de mecanismos que modificassem as relações existentes no mundo mediático entre os produtores/difusores e os consumidores de informação. Também seria fundamental a luta pela criação de novas vias e espaços de comunicação, novas e mais sólidas garantias institucionais para o acesso igualitário aos foros de expressão e comunicação social mais significativos. Com o redesenho das estruturas de propriedade dos gran-des meios e as formas de regulação estatal, a comunicação pode se ver estimulada, equiparando as possibilidades dos diversos indivíduos, grupos e atores sociais.

Por outra parte, as propostas alternativas se mostram preocupadas, em geral, por uma autêntica equiparação nas condições de acesso aos recursos

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educativos: pessoas com níveis muito baixos de formação ficam em des-vantagem quando procuram se fazer ouvir na arena pública, quando devem opinar e decidir sobre os grandes assuntos comuns, quando querem exercer sua cidadania. A educação seria fundamental para o desenvolvi-mento das capacidades intelectuais e habilidades de persuasão e boa ora-tória necessárias para a plena participação em uma democracia alternativa. Uma melhor educação seria essencial, ademais, para que todos os indiví-duos pudessem cultivar virtudes básicas para a deliberação democrática, tais como a veracidade, a tolerância, a disposição à não violência, o diálogo respeitoso e o desenvolvimento de mentes abertas, aptas a perceber a razo-abilidade das diferentes perspectivas políticas em disputa.

Uma autêntica participação na discussão e no debate tenderia a levar a processos de decisão efetiva em relação às medidas e políticas que afetas-sem ao conjunto. Os mais poderosos veriam restringidos seus privilégios e os mais desfavorecidos se sentiriam estimulados de diversas maneiras a participar na deliberação pública. Em um modelo alternativo se distri-buiriam melhor não apenas os recursos informativos e valores de conhe-cimento, mas também seriam trabalhados os estímulos e motivações que impulsionassem as grandes maiorias a se tornarem participantes. Assim, se inicia a construção de uma democracia radicalmente participativa, onde a política possa ser concebida principalmente de forma discursiva e educa-tiva, contando com uma cidadania realmente ativa.

Uma democracia alternativa tentaria encontrar, de acordo com os autores analisados, as formas de fazer as instituições mais permeáveis às demandas e necessidades dos oprimidos. Procuraria criar canais mais diretos para que todos pudessem expressar-se. A deliberação apontaria para a efetiva resolução dos conflitos políticos, não se limitando a uma mera conver-sação. O debate público seria um passo preliminar que desembocaria na possibilidade de escolher entre distintas soluções. As instituições se abri-riam ao debate político e ao diálogo. Cada instituição geraria uma esfera pública ao seu redor, buscaria criar audiências e foros públicos com os potencialmente afetados. Novos espaços públicos poderiam ser construí-dos, tornando as instituições mais responsáveis e efetivas frente à cidada-nia, mais sensíveis às demandas externas, procurando não mera influência ou pressão sobre as instituições, mas uma genuína participação no pro-cesso de tomada de decisões. A execução dos planos não estaria separada da deliberação pública. As instituições não seriam divididas em foros para deliberar, por um lado, e espaços para a efetiva tomada de decisões ou

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conclusões

arenas de poder, por outro. A participação estaria ligada ao exercício efe-tivo e permanente do poder popular.

Entretanto, ao longo do livro, pôde-se constatar como nenhuma das cor-rentes examinadas está isenta de problemas, nem está livre de críticas. Entre as objeções mais importantes que enfrenta cada uma destas três ver-tentes ou propostas, cabe ressaltar que a corrente participacionista é acu-sada de esquecer a política em grande escala e de se fechar nos pequenos espaços, de ignorar os grandes assuntos nacionais e se limitar aos espaços e relações sociais mais restritas, de se preocupar com a democratização dos âmbitos mais próximos à vida dos indivíduos e não considerar a estrutu-ração de um novo modelo político global. O deliberacionismo, por sua vez, é criticado por não prever mecanismos de equiparação das partes na discussão pública de maneira efetiva, por não saber lidar com os círculos viciosos de pobreza econômica e pobreza política e por não considerar os mecanismos que possibilitem traduzir os resultados do debate em medidas políticas concretas. Ao republicanismo cívico, por último, recrimina-se--lhe o fato de não levar muito em consideração a diferença e o pluralismo social, o fato de desprezar – ou não valorizar o suficiente – a democracia nos assuntos tradicionalmente considerados como não políticos e alentar tendências perigosamente perfeccionistas, por meio da imposição da par-ticipação política como ideal supremo e exclusivo de felicidade.

As três vertentes devem ser criticadas, também, por não haver alcançado uma elaboração mais concreta, que permita superar a arquitetura insti-tucional das democracias liberais realmente existentes. Nenhuma das três consegue realizar uma formulação mais detalhada de quais seriam as estratégias políticas viáveis para começar a construir estas novas formas de democracia. As três podem ser criticadas, assim mesmo, por nem sempre fazer explícita a conexão entre os formatos democráticos alternativos e um novo sistema econômico e social: de modo geral não vinculam as novas formas de conceber o sistema político com as imprescindíveis mudanças e transformações radicais nas relações de produção e na estrutura social. Nas obras e autores mencionados nem sempre aparece uma análise crítica da sociedade de classes e da economia capitalista. E sem esta análise, difi-cilmente poderão se encontrar as vias políticas para chegar a uma demo-cracia mais profunda e radical. Faltaria uma aproximação ao tema um tanto mais penetrante.

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De acordo com o exposto nesta obra, pode-se concluir que se torna funda-mental construir a vinculação entre as diferentes lutas, os denominadores comuns que possam unir os diferentes grupos e atores sociais, assim como encontrar mecanismos que permitam transladar as conquistas obtidas em certos espaços também a outras esferas, evitando cair em compartimentos estanques. A profundização da democracia deve passar, necessariamente, pela articulação das diferentes lutas. Lutas estas que, mesmo se vinculadas a questões de tipo cultural, não podem esquecer que o principal desafio democratizador passa pela superação das profundas desigualdades sociais e econômicas existentes nas sociedades contemporâneas. Cabe tomar consciência de que mesmo ante a ausência de barreiras legais para a parti-cipação, os custos para praticá-la são muito diferentes segundo a localiza-ção social do indivíduo. Enquanto persistirem as abismais desigualdades produzidas pelo sistema capitalista, a distribuição do ingresso mundial prosseguir seu caminho regressivo e a riqueza continuar traduzindo-se em poder político, excluindo os mais pobres da tomada de decisões, as pos-sibilidades das democracias realmente existentes seguirão sendo extrema-mente limitadas.

Cabe sistematizar melhor os fundamentos conceituais para uma nova teoria da democracia e enfrentar assim, em outras condições, as teorias convencionais da democracia liberal. Especialmente, há de se encontrar a forma de se contrapor em melhores termos à sua versão predominante: o paradigma elitista-competitivo da democracia. Como se pôde apreciar neste livro, nas últimas décadas foram realizados alguns desenvolvimentos teóricos e tentativas de construção institucional inovadoras, mas é muito o que resta por ainda se pensar para chegar a conceber um modelo de democracia alternativo autenticamente contra-hegemónico. Novas arma-ções normativas deverão ser imaginadas, abonando tais teorizações com a análise das forças sociais que estejam em condições de impulsioná-las e defendê-las. Cabe dar nova substância ao que já existe, assim como bus-car novos e melhores meios de enriquecer o significado da democracia. Impõe-se conseguir traduzir todas estas ideias em propostas e estratégias políticas concretas, logrando que não sejam meros exercícios acadêmicos. Com renovada imaginação, astúcia e ousadia, à hora de pensar em novas alternativas é cabível lutar pela abertura de novos caminhos que ajudem a potencializar a democracia. E neste processo, sem dúvidas, as experiências recentes dos povos latino-americanos em prol de uma democracia de mas-sas, radicalmente popular, têm muito para ensinar.

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IMPRESSÃO E ACABAMENTO

Este livro foi impresso nas Oficinas Gráficas da Editora da

UFRN em julho de 2012.