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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE GEOGRAFIA, HISTÓRIA E DOCUMENTAÇÃO DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO MESTRADO EM HISTÓRIA ANTILIBERALISMO E AUTORITARISMO NOS ESCRITOS DE CARL SCHMITT (1919-1933) ALENCAR CARDOSO DA COSTA CUIABÁ-MT ABRIL/2016

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

INSTITUTO DE GEOGRAFIA, HISTÓRIA E DOCUMENTAÇÃO

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO

MESTRADO EM HISTÓRIA

ANTILIBERALISMO E AUTORITARISMO NOS ESCRITOS DE CARL SCHMITT

(1919-1933)

ALENCAR CARDOSO DA COSTA

CUIABÁ-MT

ABRIL/2016

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ALENCAR CARDOSO DA COSTA

ANTILIBERALISMO E AUTORITARISMO NOS ESCRITOS DE CARL SCHMITT

(1919-1933)

Dissertação de Mestrado apresentada à Banca

Examinadora do Programa de Pós-Graduação História,

do Instituto de Geografia, História e Documentação, da

Universidade Federal de Mato Grosso como requisito

parcial para a obtenção do título de Mestre em História.

Orientador: Prof. Dr. Cândido Moreira Rodrigues

Cuiabá-MT

ABRIL/2016

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RESUMO

Esta dissertação de mestrado tem como objeto de estudo os escritos produzidos por Carl

Schmitt entre os anos da República de Weimar (1919-1933). O nosso sujeito histórico foi

jurista e politólogo, sendo considerado o maior jurista alemão do século XX. Desenvolveu

centenas de trabalhos nos formatos de artigos, livros e ensaios. Dedicado ao ramo da

jurisprudência, interessou-se pelo Direito Público e pelo Direito Internacional. Realizou

trabalhos que compreendem aos campos do direito, filosofia e ciências políticas. Seu

pensamento, no recorte de tempo analisado, esteve marcado por uma postura antiliberal e

autoritária. Tendo suas ideias inspiradas nos autores contrarrevolucionários, sendo Donoso

Córtes o principal deles. Também possuiu inspiração pelas obras do pensador inglês Thomas

Hobbes. A trajetória intelectual de Carl Schmitt é estigmatizada pelo seu envolvimento no

nacional-socialismo, tendo se afiliado ao Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores

Alemães (NSDAP), em 1933. Porém, em 1936 acabará afastando-se dos quadros oficiais do

partido. Carl Schmitt defendeu a formação de um governo forte e centralizado, em

contraposição ao que ele denominava de “fraco”, “anacrônico” e “despolitizado” governo

parlamentar da República de Weimar. Acreditou que o poder soberano poderia ser exercido

por um líder que contivesse em si a vontade geral do povo.

Palavras-chave: Soberania; Autoritarismo; Antiliberalismo; Poder; Intelectual.

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ABSTRACT

The study object of this dissertation is the writings produced by Carl Schmitt between the

years of the Weimar Republic (1919-1933). Our historical subject was a lawyer and political

scientist, considered the greatest German jurist of the twentieth century. This jurist developed

hundreds of works such as articles, books and essays. He was devoted to the branch of

jurisprudence, became interested in Public Law and International Law. He performed works

that comprise the fields of law, philosophy and political science. His thought, clipping

analyzed time, was marked by an illiberal and authoritarian stance. Drawing inspiration from

the ideas of counterrevolutionary authors, and Donoso Cortés the main one. Also owned

inspired by the works of the English thinker Thomas Hobbes. The intellectual history of Carl

Schmitt is stigmatized for their involvement in National Socialism, and is affiliated with the

National Socialist German Workers Party (NSDAP) in 1933. However, in 1936 eventually

moving away from official party cadres. Carl Schmitt advocated the formation of a strong,

centralized government, as opposed to what he called "weak", "anachronistic" and

"depoliticized" parliamentary government of the Weimar Republic. He believed that the

sovereign power could be exercised by a leader who contained in himself the general will of

the people.

Keywords: Sovereignty; authoritarianism; antiliberalism; Power; Intellectual.

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Dedico este trabalho a ideia expressa nessa canção:

Imagine

(John Lennon)

Imagine que não há paraíso

É fácil se você tentar

Nenhum inferno abaixo de nós

Acima de nós apenas o céu

Imagine todas as pessoas

Vivendo para o hoje

Imagine não existir países

Não é difícil de fazer

Nada pelo que matar ou morrer

E nenhuma religião também

Imagine todas as pessoas

Vivendo a vida em paz

Você pode dizer

Que sou um sonhador

Mas não sou o único

Tenho a esperança de que um dia

Você se juntará a nós

E o mundo será como um só

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AGRADECIMENTOS

Agradeço ao apoio institucional dos órgãos de financiamento do Governo Federal

(CAPES/CNPq), que possibilitaram, desde a graduação, dedicar-me ao ofício da história e do

ensino de história. Agradeço ao Departamento de História, que se dedicou em prestar o

melhor ensino possível na graduação, atendendo com responsabilidade e atenção as nossas

demandas como discentes. Também, presto homenagem ao Programa de Pós-Graduação em

História (PPGHis/UFMT), pela experiência intelectual dos dois últimos anos.

Homenageio meus colegas intelectuais, da graduação e do mestrado: GiseliOriguela,

Rafael Adão, Tiago Viera de Melo, AndriellyNatharry Leite, Silvana Ferrai Leite, Rhaissa

Botelho Lobo, Waltemberg Santos, Alessandro Henrique de Lima, Beatriz Feitosa, Fernanda

Queiroz de Menezes, Luciene Castravechi, Emanuelle Maria M. de Souza e Valdomira

Ribeiro. Em especial, meus colegas de trabalho na Escola Estadual André Luiz da Silva Reis,

e, meus alunos que tiveram que aguentar minhas paranoias de mestrando.

A minha família pelo amor, compreensão e incentivo: Minha mãe Cleodenice

Cardoso Bitencourt da Costa, meu pai José Miranda da Costa, meu irmão Alan J. Cardoso da

Costa, minha irmã Aline Cardoso da Costa, minha avó Maria Lima e demais parentes.

Ao meu orientador Drº. Cândido Moreira Rodrigues, pela dedicação, paciência,

conselhos e pela liberdade de condução das temáticas da pesquisa. Por haver confiado em

nosso trabalho, permanecendo como orientador no mestrado.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.................................................................................................... .................... 10

CAPÍTULO I....................................................................................................... ..................... 15

História das ideias e história das ideias políticas ........................................................... .......15

Intelectuais, Trajetórias e Poder: do gabinete ao engajamento político................................ 24

Interpretações sobre os fascismos: os escritos schmittianos entre a teoria e o engajamento

político dos anos 1930 .......................................................................................................... 40

Sob o estigma do engajamento: Carl Schmitt e a sua trajetória intelectual .......................... 48

Nem vencedor, nem vencido: a História por contradições ................................................... 53

CAPÍTULO II............................................................................................................. .............. 67

Do Estado Natural a Comunidade Civil: das formas de governo, dos princípios, dos meios e

suas finalidades ..................................................................................................................... 67

A modernidade como um processo de transformações nas ideias ........................................ 68

Da guerra de todos contra todos à Comunidade Civil .......................................................... 72

Estado Liberal: a formação do Estado de Direito e os limites do poder soberano ............... 82

Persistências do Antigo Regime na sociedade liberal........................................................... 88

A República de Weimar: a crise do sistema parlamentar ou o aprofundamento das práticas

autoritárias na Alemanha do Entreguerras ............................................................................ 98

Capítulo III......................................................................................................... .................... 105

A erosão da República de Weimar e a legitimação da Ditadura Nazista: meios violentos e

fins trágicos ......................................................................................................................... 105

O decisionismo político schmittiano: a excepcionalidade do político e o governo autoritário

das massas ........................................................................................................................... 118

A Constituição, os poderes constituídos e a sua proteção .................................................. 122

Democracia parlamentar versus Estado Total .................................................................... 131

Conclusão.................................................................................................................. ............. 144

Referências............................................................................................................. ................ 149

Fontes .................................................................................................................................. 149

Bibliografia ......................................................................................................................... 149

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INTRODUÇÃO

Buscaremos desenvolver neste trabalho, uma análise de alguns escritos do jurista e

politólogo alemão Carl Schmitt (1888-1985), produzidos durante o período da República de

Weimar, por meio da análise dos conceitos desenvolvidos no campo do direito público e do

direito internacional. Não é objetivo deste trabalho realizar a biografia intelectual do nosso

sujeito histórico, nem tampouco uma história do nazismo, mesmo que tratemos desses

assuntos de forma auxiliar. Temos como propósito a análise conceitual dos escritos

schmittianos, revisão bibliográfica e historiográfica referente ao período da República de

Weimar (1919-1933). Ou seja, a derrota alemã na Grande Guerra Mundial, o desenvolvimento

do governo parlamentar no Estado alemão e a tomada do poder pelo Nacional-Socialismo em

1933. Para isso, ampliaremos a discussão ao período do Império Alemão (1871-1918) e da

Ditadura Nazista (1933-1945)1, quando necessário para compreender e articular o contexto

histórico, político e social.

Como intelectual Carl Schmitt, inspirou-se nos pensadores contrarrevolucionários,

pós-Revolução Francesa, de denominação católica. Contudo, Carl Schmitt não defendeu em

seus escritos um retorno das monarquias de direito divino, como a corrente anterior. Em seus

escritos do período analisado, ele fundamentou uma perspectiva antiliberal e autoritária para o

Estado, sob o véu de uma vontade geral que queria se demonstrar democrática – onde a figura

do presidente do Reich deveria ser o guardião da Constituição. Mas que, na realidade,

despolitizava os cidadãos a partir da escolha de um líder de caráter providencial, que

conseguiria, na visão do autor, reunir em si as qualidades e desejos dos cidadãos. Nesse

sentido, nosso objeto de análise, os escritos produzidos pelo autor durante o entreguerras, são

um rico material de pesquisa – salientando-se a natureza ideológica autoritária, antiliberal,

antissemita (principalmente durante o Terceiro Reich), dos escritos. Cabe ressaltar que Carl

Schmitt é considerado o maior jurista alemão do século XX (segundo os comentadores de

suas obras)2, fato este que transforma nossa missão numa árdua caminhada intelectual sobre

1 Durante o trabalho faremos uso das seguintes nomenclaturas para o período de 1933-1945: Ditadura Nazista,

Terceiro Reich e Governo Nacional-Socialista. Todos retratando um momento de governo autoritário e totalitário

na história alemã. 2 Ao analisar a filosofia de Martin Heidegger, o filósofo Emmanuel Faye questiona o caráter filosófico dos textos

daquele. Da mesma forma, este autor questiona os elogios dados a escrita schmittiana, afirmando que o seu

conhecimento de latim mascara a “carência de pensamento”, não vendo o porquê de alguns intérpretes o

caracterizarem como “grande ‘pensador” (FAYE, 2015, p. 303). Como vimos, a classificação de maior jurista do

século XX é questionável, tanto pelo conteúdo dos escritos quanto pela natureza comprometida com o Nacional-

Socialismo. Como bem demonstra Emmanuel Faye, esses personagens históricos cooperaram de forma objetiva

e engajada com a estruturação do nazismo nas universidades alemãs, no campo do direito e no campo da

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pensamentos de diversos pensadores, anteriores à Idade Contemporânea. Por conseguinte, a

participação do autor no Movimento Nazista, filiando-se ao Partido Nacional-Socialista dos

Trabalhadores Alemães, em 1933, conduz o trabalho por discussões de ordem teórica e moral

que atravessaram todo o século XX e início do XXI – que não pretendemos por fim com essa

dissertação. Compreendemos que esse debate não deve ser sublimado, pois os escritos

schmittianos continuam a agenciar ideias inerentes aos regimes totalitários do século XX,

ainda neste início do século XXI. Além disso, o fato de trabalharmos com traduções das obras

schmittianas se constitui numa problemática que acreditamos superar pela crítica sobre essas

produções já consagradas em língua portuguesa e espanhola, e pelo caráter de análise

conceitual a que nos propomos.

Teremos como missão não restringir a pesquisa sobre um único prisma, diversificando

os autores e correntes teóricas durante a argumentação que desejamos construir. Manteremos

a devida coerência científica do campo historiográfico, nos valendo de trabalhos dos campos

jurídico, filosófico e sociológico, além da análise de nossas fontes. As fontes e o contexto

histórico serão as bases nas quais estabeleceremos o diálogo com a teoria e a historiografia.

Sobre a compreensão da questão intelectual teremos como fundamentação os seguintes

pensadores: Antonio Gramsci, Eric J. Hobsbawm, Jean-François Sirinelli, Louis Pinto e

Norberto Bobbio. Suas reflexões sobre o papel intelectual nas relações de forças entre os

grupos sociais, sua relação com o poder e as trajetórias intelectuais favoreceram a

compreensão de Carl Schmitt como um sujeito múltiplo e inserido nos problemas de seu

tempo histórico. O engajamento do autor com o Nacional-Socialismo, acreditamos poder

resolver a questão de este ter sido ou não um intelectual orgânico do movimento, e quando se

iniciou esse processo – se já nos anos 1920 ou se somente com a tomada do poder pelo

movimento, em 1933. Da mesma forma buscamos compreender até quando ele pôde ser um

porta voz intelectual do nazismo, sendo esta uma questão de acaloradas discussões entre

aqueles que defendem que Carl Schmitt era um nazista convicto, e os que o consideram um

mero oportunista.

A historiografia que faremos uso, conta com a leitura de autores nacionais e

internacionais. Dados os limites do idioma, trabalharemos com textos em português, francês e

espanhol. Não nos concentraremos em uma perspectiva monolítica do problema, intentando

dialogar com correntes de visões antagônicas sobre o processo histórico a ser analisado.

Assim, elencamos como principais pensadores sobre o período: Arno Mayer, Emilio Gentile,

filosofia, não se caracterizando as suas filiações como meras formas de sobrevivência no “turbilhão” gerado com

o desmonte da República de Weimar pelo hitlerismo.

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Eric J. Hobsbawm, Hannah Arendt, Peter Gay, Norbert Elias e Richard J. Evans, etc. O

entreguerras em âmbito geral e a República de Weimar em particular, são elementos

controversos na história contemporânea. Com o término da Grande Guerra (1914-1918) e a

falência do Antigo Regime, com a vitória das potências liberais, se consolidou a derrota das

casas monárquicas absolutistas europeias em 1918.A Revolução Russa iniciada em 1917

simboliza uma alternativa real ao modelo liberal e capitalista, que se agrava com a crise

econômica de 1929, seguida da Grande Depressão e a ascensão dos fascismos pelo mundo. As

reflexões presentes neste trabalho são condicionadas às diversas esferas de um cenário

explosivo, tanto nos âmbitos políticos, sociais e econômicos, da primeira metade do século

XX, que resultam em posturas extremistas, fazendo referência ao historiador Eric Hobsbawm,

que caracteriza o contexto como a Era dos Extremos.

Também intentamos dialogar com os principais comentadores dos escritos de Carl

Schmitt que conseguimos rastrear, com o propósito de traçar os pontos em que os mesmos

concordam e discordam sobre a trajetória intelectual do pensador, inferindo-os o contraste

com as nossas fontes. São eles: Agassiz Almeida Filho, Bernardo Ferreira, Jean-François

Kervégan, Jürgen Habermas, Mark Lilla, Norberto Bobbio, Rafael Agapito, etc.

Utilizaremos como fontes os escritos produzidos durante o período da República de

Weimar: La Dictadura (1921); Teologia Política (1922); Situação Intelectual do Sistema

Parlamentar Atual (1923); Teoría de la Constituición (1928); O guardião da Constituição

(1931) e O Conceito do Político (1932). Estes constituem um corpus documental traduzido

para o português e o espanhol. Ainda analisaremos a sua autobiografia intitulada Ex

Captivitate Salus, produzida durante o período do cárcere (1945-1946), onde almejamos

conferir seus posicionamentos em relação à concepção teórica e a posição que assume diante

das consequências de seu engajamento ao Nacional-Socialismo. Buscamos dar maior atenção

aos prefácios das citadas fontes, buscando relatos mais subjetivos dos posicionamentos de

Carl Schmitt sobre o contexto histórico do período weimariano.

Esta dissertação é constituída por três capítulos, nos quais buscamos realizar o diálogo

com as fontes, contrastando-as com a historiografia referente a primeira metade do século

XX, disponível em português, francês e espanhol. O Capítulo I inicia com uma revisão

historiográfica sobre a “História das ideias e História das ideias políticas”, tendo em vista a

característica conceitual dessa dissertação. Em seguida, trataremos dos “Intelectuais,

trajetórias e poder: do gabinete ao engajamento político”, desenvolvendo uma discussão

teórica sobre o conceito de intelectual e como este se relaciona com as esferas de poder na

sociedade. Consideramos esta problemática necessária, visto que compreendemos nosso

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sujeito histórico sob o viés da trajetória intelectual. Ampliaremos o olhar sobre as

“Interpretações sobre os fascismos” dialogando com a historiografia e confrontando com

nossas fontes. Também nos propomos a apresentar a trajetória intelectual de Carl Schmitt,

como alguns pensadores compreendem seu percurso no entreguerras e como ele próprio

visualiza sua situação durante o período do cárcere.

No Capítulo II, trabalharemos assuntos frequentes nos escritos schmittianos que terão

seus desdobramentos no Capítulo III. Neste segundo capítulo compreendemos “A

modernidade como um processo de transformações nas ideias”, intentando realizar um

diálogo entre os pensadores iluministas e os escritos schmittianos a partir de conceitos, tais

como: Estado Liberal, Direito Natural, limitação do poder soberano, equilíbrio dos poderes e

democracia. Levantamos o debate acerca das persistências do Antigo Regime na sociedade

liberal, observando como posturas conservadoras e contrarrevolucionárias se desenvolveram

nos séculos XIX e início do XX. Em seguida, focamos no período da República de Weimar

(1919-1933), demonstrando como certos elementos autoritários e antiliberais permaneceram

nas instituições da república após a queda do Império Alemão em 1918. Almejamos

demonstrar que o pensamento autoritário e antiliberal, expresso nos escritos schmittianos,

produzidos entre 1919-1933, não estavam distantes do que era vivenciado por segmentos da

sociedade alemã do período.

Por fim, no Capítulo III realizamos uma retrospectiva dos assuntos tratados nos

capítulos precedentes, demonstrando a relação com as nossas fontes. A forma como a

dissertação foi pensada buscou distribuir a discussão teórica, metodológica e documental por

todos os capítulos. Sabemos que cada um desses fatores ficou concentrado em lugar

específico, isso em virtude do nosso desejo que possibilitar ao leitor encontrar mais

facilmente as nossas ferramentas de análise. Deste modo, retornamos no terceiro capítulo a

discussão sobre a República de Weimar e o seu desdobramento até a ascensão do nazismo ao

poder. Evidenciaremos como Carl Schmitt foi utilizado e utilizou-se desse processo de

transformação no modo de governo do Reich para legitimar o Terceiro Reich e conquistar

postos de trabalho como professor universitário, garantindo seu status, enquanto outros foram

perseguidos, demitidos, deportados e assassinados. Trabalhamos com sua concepção

decisionista da política e sua defesa do uso dos poderes excepcionais pelo Presidente do

Reich, transformando-o em guardião da Constituição. Finalmente, traçaremos um debate

sobre a concepção de democracia presente nos escritos schmittianos e como esta percepção é

fundamental para a formulação do Estado Total.

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Nesse sentido, essa dissertação busca compreender como um erudito, versado sobre

conceitos importantes para a diminuição das desigualdades entre os seres humanos preferiu

posicionar-se contra o direito igualitário. Importa-se questionar como os especialistas

políticos, jurídicos e etc, podem atribuir o título de maior jurista alemão do século XX a um

dos porta-vozes do fenômeno político responsável pelo extermínio em massa de milhões de

vidas humanas. Bem mais que isso, precisamos pensar historicamente as consequências de

projetos de poder autocráticos para a convivência entre os agrupamentos humanos. Refletir

sobre quais as ressonâncias desses processos históricas na contemporaneidade.

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CAPÍTULO I

História das ideias e história das ideias políticas

“Os homens fazem sua própria história, mas não a

fazem como querem; não a fazem sob

circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas

com se defrontam diretamente, legadas e

transmitidas pelo passado. A tradição de tôdas as

gerações mortas oprime como um pesadelo o

cérebro dos vivos. E justamente quando parecem

empenhados em revolucionar-se a si e às coisas,

em criar algo que jamais existiu, precisamente

nesses períodos de crise revolucionária, os homens

conjuram ansiosamente em seu auxílio os espíritos

do passado, tomando-lhes emprestado os nomes, os

gritos de guerra e as roupagens, a fim de apresentar

a nova cena da história do mundo nesse disfarce

tradicional e nessa linguagem emprestada [...]”

(KARL MARX, O 18 de Brumário, 1956)

As ideias podem ser consideradas conjuntos de concepções organizadas e estruturadas,

que primam por um sentido socialmente construído. Definir o papel das ideias na estrutura

social, ou no jogo político, não é uma simples tarefa – e não será esse o nosso objetivo. No

campo da História, as ideias serão compreendidas conforme a linha teórica seguida pelo

historiador e a metodologia empregada. As ideias são objetos de poder, e o seu domínio

garante proeminência política, social e cultural. “Portanto, ao lado dos fenômenos naturais, do

material tecnológico e dos artigos de consumo, existe um universo particular, o universo dos

signos” (BAKHTIN, 2014, p. 32). A complexidade da existência humana, na sua formação

intelectual e social passa por aprender e ensinar manejar os signos sociais, socialmente

construídos e inteligíveis a seus pares – no tempo e no espaço. Fazer história das ideias não

seria, então, apenas conseguir decodificar os signos, mas compreendê-los no jogo social ao

qual está inserido. Observar o porquê das escolhas do agente social, que em nosso caso é um

intelectual, significa utilizar certos conceitos e abrir mão de outros.

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No domínio dos signos, isto é, na esfera ideológica, existem diferenças

profundas, pois este domínio é, ao mesmo tempo, o da representação, do

símbolo religioso, da fórmula científica e da forma jurídica, etc. Cada campo

da criatividade ideológica tem seu próprio modo de orientação para a

realidade e retrata a realidade à sua própria maneira. Cada campo dispõe de

sua própria função no conjunto da vida social. É seu caráter semiótico que

coloca todos os fenômenos ideológicos sob a mesma definição geral

(BAKHTIN, 2014, p. 33).

A realidade ganha múltiplos discursos sobre essa visão, mas isso não significa que existam

múltiplas realidades. É a limitação humana, ou a sua própria condição, que condiciona seu

olhar “ideológico” sobre a realidade. “[...] Tudo que é ideológico possui um significado e

remete a algo situado fora de si mesmo. Em outros termos, tudo que é ideológico é um signo.

Sem signos não existe ideologia [...]” (BAKHTIN, 2014, p. 31). Assim, os escritos de Carl

Schmitt se constituem como construção ideológica, como qualquer outra produção humana

que contenha em si signo e significado. Pois, as concepções schmittianas surgem a partir da

sua relação com as ideologias dispostas em seu momento histórico e acessíveis ao seu contato,

seja de forma direta ou por meio de terceiros (comentadores, artigos de jornais, artigos

científicos, etc.).

As ideias se modificam com as realidades sociais, ou as ideias modificam a realidade

social? Possivelmente haja uma inter-relação entre elas, mesmo que alguns acreditem haver

uma que molde a outra de forma predominante. Segundo Patrick Gardiner, o século XVII foi

marcado pelo progresso nas ciências físicas, e as descobertas das leis gerais nas ciências

físicas levaram a pesquisadores de outros campos do conhecimento a buscarem as suas leis

gerais. Enquadra-se aqui, por exemplo, a história com as leis gerais do desenvolvimento das

sociedades humanas. No referido século, os pensadores de novo tipo tiveram “[...] choques

com o enquadramento tradicional do pensamento e da crença herdados da Idade Média [...]”

(GARDINER, 2004, p. 3). Choques semelhantes ocorreram nos séculos posteriores, como,

por exemplo, a contradição entre a concepção schmittiana decisionista e o universalismo e

humanismo Iluminista, que é parte dos debates presentes na obra de Carl Schmitt.

[...] Como conceito polêmico contraposto a tais neutralizações e despolitizações de

importantes domínios surge o Estado total da identidade entre Estado e sociedades,

o qual não se desinteressa por qualquer âmbito e, potencialmente, abrange qualquer

área. Nele, por conseguinte, tudo é, pelo menos potencialmente, político, e a

referência ao Estado não mais consegue fundamentar um marco distintivo específico

do “político” (SCHMITT, 1992, p. 47).

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Nesse fragmento de O Conceito do Político, observa-se o contraste entre o que propõe o

pensamento schmittiano e as concepções dos séculos XVIII e XIX. O Estado limitado pelas

liberdades individuais deixaria de existir por um Estado de novo tipo, o Estado Total. Nesse

modelo, tudo seria potencialmente objeto de intervenção do Estado e do político. O político,

para o autor, seria aquilo que dá medida as coisas. De forma mais específica, o político não

estaria preso a leis gerais, mas a relações de forças objetivas inerentes a qualquer contexto

social, para este pensador. Para Carl Schmitt o político define a realidade concreta, e o direito

surgiria dessa conjuntura. Se, no mesmo livro, o autor caracteriza o século XX como a Era do

Estado Total, o direito liberal se tornaria anacrônico, assim como as suas instituições

representativas e modelo econômico. Cronologicamente, essas afirmações schmittianas já

demonstram uma ligação com movimentos totalitários nos anos de 1930.

Pierre Rosanvallon considera que o político nas sociedades modernas se fundamenta a

partir da mudança de uma sociedade de modelo corporativa para uma sociedade de

indivíduos, o que produziu “[...] um tipo de déficit de representação. Desse modo, o político é

convocado a ser o agente que “representa” uma sociedade cuja natureza não está dada de

forma imediata [...]” (ROSANVALLON, 2010, p. 43). De modo geral “[...] Nas sociedades

modernas já não há limites que possam ser impostos – seja pela natureza, seja pela história –

contra os processos igualitários. A igualdade subverte todas as tentativas de legitimar as

diferenças em razão de alguma ordem natural [...]” (ROSANVALLON, 2010, p. 43). Essa

erosão do sistema de ordens de tipo medieval foi uma das principais forças políticas das

revoluções burguesas3.

As ideias políticas como impulsos sociais, nos escritos schmittianos, teriam como

“força propulsora” o conflito. Sobre essa concepção, apresenta-nos a seguinte reflexão:

No que se refere ao século XIX, podemos resumir a história da idéias

políticas e das teorias de Estado um único slogan: a marcha vitoriosa da

democracia. Nenhum Estado do círculo cultural do Ocidente Europeu

resistiu à disseminação das idéias e instituições democráticas. Mesmo ali,

onde existia uma oposição de forças sociais poderosas, como na monarquia

prussiana, faltava uma energia intelectual cujo efeito transcendesse os seus

próprios limites restritos e fosse capaz de derrotar a crença democrática.

“Progresso” significava o mesmo que “expansão da democracia”;

“resistência antidemocrática” o mesmo que uma simples postura defensiva –

a defesa de coisas historicamente sobreviventes e a luta do antigo contra o

3 Sobre esse assunto nos dedicaremos mais precisamente no segundo capítulo desse trabalho. Pois, para Carl

Schmitt, somente existe igualdade entre os iguais, e o político é quem define quem pertence ao grupo dos iguais

num dado agrupamento político.

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novo. Em todo o período de pensamentos políticos oficiais. As pessoas

assumem essas idéias, que parecem evidentes num sentido específico e são

bastante óbvias para as grandes massas, mesmo com muitos mal-entendidos

e mitificações. No século XIX e pelo século XX adentro, esse tipo de

aceitação natural e de evidência com certeza favorecia muito a democracia.

Ranke definia a noção de soberania do povo como a idéia mais forte da

época, e o seu conflito com o princípio da monarquia, a tendência mais

importante do século. Enquanto isso, o conflito terminou, provisoriamente,

com a vitória da democracia (SCHMITT, 1996a, p. 23).

As ideias políticas e a teoria de Estado, para Carl Schmitt, ganham destaque como elemento

construtor de uma nova realidade política e social, a democracia liberal, concebida como uma

luta dicotômica entre a soberania popular e a soberania monárquica. Vitoriosa após a Grande

Guerra, segundo Schmitt, a democracia liberal perderia seu oponente histórico, perdendo

força o seu slogan político. Chama atenção, nesse fragmento de a Situação intelectual do

sistema parlamentar atual, o enfoque dos mal-entendidos e das mitificações, que são

atribuídos às massas, dando contorno a uma aceitação de forma natural a expansão das ideias

democráticas pelo mundo ocidental daqueles séculos4. Entretanto, se pensarmos que a

democracia se tencionar em contraposição ao poder autocrático, do qual o monarca é um

exemplo. E, inserirmos a ascensão dos movimentos autoritários do pós-guerra, dos quais o

fascismo e o nazismo são exemplo, a democracia em si teria obtido novos inimigos. Desse

modo, o pensamento schmittiano não contrapõe a democracia a esses movimentos, mas contra

o liberalismo. Como expressa Bernardo Ferreira “[...] a crítica do liberalismo assume uma

importância teórica, e não apenas política, na formulação do seu pensamento [...]”

(FERREIRA, 2004, p. 51). Salienta este autor, que o comunismo se constituiu como outro

adversário. Mas não constatamos tal crítica negativa para com o fascismo, mesmo nos anos de

1920, nos escritos schmittianos.

A história das ideias, segundo Francisco Falcon, como ramo da historiografia,

constitui-se pelo prestígio e longevidade, tendo contra si dois oponentes: a tradição marxista e

a historiografia francesa dos Annales. Além desse conflito interno, para o autor, o objeto dessa

forma de construção histórica seria reivindicado por outras ciências humanas e pela história

da filosofia. Nesse sentido, haveria na história uma diferença de conteúdos e métodos entre a

4 Nos escritos do período weimariano, Carl Schmitt buscou impostar seu Estado Total sobre uma roupagem

democrática. Nisso constituiu a sua sempre presente afirmação da contrariedade do liberalismo e da democracia.

Mas em nenhum momento questiona-se sobre uma possível contradição entre a democracia e o Estado Total.

Obviamente que isso não passaria despercebido por um grande jurista e politólogo com a sua erudição, ao menos

que fosse algo intencional. Contradição essa que buscaremos trabalhar no último capítulo.

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história das ideias e a história intelectual. Ao apresentar essa interpretação de Krieger,

Francisco Falcon nos diz:

[...] A história das ideias remete a textos nos quais os conceitos articulados

constituem os agentes históricos primários, vindo a seguir as pessoas dos

portadores desses conceitos, enquanto as chamadas relações externas são

entendidas como simples condições de existência das ideias propriamente

ditas (...) A história intelectual remete a textos bem mais abrangentes, uma

vez que ela inclui as crenças não articuladas, opiniões amorfas, suposições

não ditas, além, é claro, das ideias formalizadas (FALCON, 2011, p. 85).

Assim, enquanto a primeira não demonstraria grande importância aos aspectos externos, a

história intelectual inseriria, segundo Francisco Falcon, o “estudo das ideias e atitudes no

conjunto das práticas sociais”. Para ele, a história intelectual teria como tendência o

rompimento das barreiras disciplinares. Além disso, existe o debate atual sobre o papel da

linguagem e da narrativa na produção historiográfica5.

A história intelectual e a história política, como diversas outras formas de abordagem

históricas necessitam realizar diálogos com outras ciências e formas de conhecimento, seja

por uma necessidade teórico-metodológica, seja pela particularidade do objeto e das fontes

trabalhadas. Neste caso, a análise dos escritos de Carl Schmitt como jurista, nos faz ter

contato com ideias, teorias, disputas, jogos de interesses distintos ao campo da história. Isso

não transforma este trabalho em algo diferente dos demais trabalhos históricos. Longe de ser a

história dos “grandes homens”, a história política tem buscado dinamizar sua interpretação,

pois “[...] as idéias políticas não são apenas as dos filósofos e dos teóricos, mas também as do

homem comum [...]” (WINOCK, 2003, p. 278). O ato de pensar é uma capacidade humana,

mesmo que alguns se tornem profissionais na arte de pensar, como exemplificam os

intelectuais – essa discussão será tratada posteriormente.

A história política é abordada por Pierre Rosanvallon de modo a demonstrar as

diversas contribuições que a mesma recebeu tanto no campo da História, quanto dos campos

da Filosofia e da Sociologia. As novas formas de abordagens metodológicas são decorrentes

da mudança nas concepções historiográficas onde, por um lado “[...] os historiadores das

mentalidades sucedem aos historiadores ditos factuais. Por outro, os sociólogos deram

5 Não é o nosso objetivo abarcar o complexo debate que envolve essa problemática. Para mais detalhes, consultar

a obra de Michel de Certeau, A Escrita da História, ou a obra Domínios da História, organizada por Ciro

Flamarion Cardoso e Ronaldo Vainfas.

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continuidade aos historiadores, depois os filósofos aos sociólogos [...]” (ROSANVALLON,

1995, p. 11). Rosanvallon valoriza a multidisciplinaridade para a produção histórica, pois a

desmontagem das fronteiras disciplinares tem como propósito romper a divisão existente entre

filosofia política e a história política, alcançando uma convergência no intercalo delas. “[...]

As razões dessa ambição se radicam no pressuposto importante de que a história deve ser

considerada um material da filosofia política e um objeto sobre o qual ela reflete [...]”

(ROSANVALLON, 2010, p. 51). Ele fundamenta sua argumentação no pensamento de

Hannah Arendt, onde os incidentes da experiência são de onde emerge o próprio pensamento,

sendo aqueles os possíveis guias para obter uma orientação.

O autor enfatiza as contribuições que a filosofia política trouxe para a análise do

político no espaço intelectual francês a partir da década de 1980, que seriam explicadas

[...] por um certo esgotamento das grandes correntes que marcaram o

desenvolvimento das ciências sociais nos anos 60. Contudo, este fenômeno

não se confunde com outro mais difuso, conexo, porém distinto: a formação

progressiva de uma “histoire conceptuelle du politique”, superando o jogo de

fragmentação e dos deslocamentos que acabo de evocar (ROSANVALLON,

1995, p. 11).

Além de especificara história conceitual do político com a filosofia política, o autor também

distingue aquela da história tradicional das ideias, pois haveria uma convergência entre essas

formas metodológicas. Para que se as diferencie

[...] o primeiro passo dessa construção implica em diferenciar com clareza

essa história conceitual da história tradicional das idéias. Diferenciação

necessária, pois temos a impressão que os autores e obras citadas, estão

muitas vezes, sobre o fio da navalha – posição precária, naturalmente, que

também sinto como sendo a minha (ROSANVALLON, 1995, p. 12).

Buscamos compreender o significado do político e como ele se articula na experiência

histórica das relações políticas, das instituições e organizações, de forma que os conceitos

detenham seu sentido histórico específico. Para Christian E. C. Lynch, o historiador Pierre

Rosanvallon e aqueles que pertencem ao seu círculo compartilham as reflexões acerca “do

político” referente da filosofia produzida por Claude Lefort. “[...] Ele situa a sua reflexão num

plano filosófico à maneira aristotélica, que lhe permite considerar o político abarcando a

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totalidade do social valendo-se, simultaneamente, de todos os instrumentos disponíveis para

tanto oriundos dos mais diversos campos do conhecimento social [...]” (LYNCH, 2010, p.

20). Carl Schmitt também se dedicou a definir e conhecer o político, num período anterior a

esses pensadores, tendo inclusive uma obra intitulada O conceito do político. Mesmo tendo

algumas aproximações, Carl Schmitt e Claude Lefort trilharam caminhos diferentes, chegando

a respostas distintas. Como atesta Lynch:

[...] tanto Lefort quanto o autor de A ditadura concebem o político como

domínio transcendente dos limites da política entendida como um subsistema

social, a articular a existência comunitária. Para ambos, a política não passa

de um subsistema entre outros – como o jurídico, o econômico e o religioso -

, que surge com o advento da modernidade e, como tal, permanece à sombra

do político [...] (LYNCH, 2010, p. 21).

A partir daí, segundo o autor, as semelhanças se findam. Por um lado, tendo sua concepção do

político centralizada na relação amigo-inimigo6, Schmitt buscou superar a vinculação da

política ao liberalismo, enquanto Claude Lefort, por outro lado, associou a ideia schmittiana

ao totalitarismo, recuperando o elemento liberal em sua concepção de democracia. O

significado do termo inimigo para Carl Schmitt se embasa na compreensão do autor de que

com o inimigo não se negocia. Pois, este coloca em risco a existência do “Nós” como

agrupamento político.

Existe uma semelhança nas concepções de Carl Schmitt e Pierre Rosanvallon que

permeia as suas linhas de raciocínio. Para ambos, a democracia contém em sua essência uma

espécie de fraqueza que reside no tempo de tomada de decisões. A discussão democrática

exige tempo, o que pode ser oneroso do ponto de vista político para evitar e/ou solucionar

problemas de caráter emergenciais. Sabe-se que Carl Schmitt buscou resolver esse problema

com a defesa do uso de poderes excepcionais, nos momentos de caso limite7. Esse é um

problema recorrente nos escritos de Carl Schmitt aqui analisados, como exporemos no

6 Como desenvolveremos no decorrer do trabalho, os conceitos amigo e inimigo para Carl Schmitt não

determinam relações privadas. Estes conceitos nos seus escritos, como ele saliente, compreendem agrupamentos

políticos complexos no âmbito das ações políticas empregadas em momentos de paz e guerra. Essa formulação

foi apresentada de forma mais complexa em O Conceito do Político. 7 O caso limite para Carl Schmitt, nos escritos do período weimariano, é decidido por aquele que possui os meios

de identificar, pois ele nasceria do conflito amigo/inimigo. Ou seja, de certo modo, o caso limite na concepção

schmittiana não estaria assentado em critérios racionais de uma necessidade real. A democracia liberal na

concepção schmittiana repousa sobre um risco constante, dada a sua concepção conflituosa do gênero humano e

a sua classificação da fraqueza do pensamento liberal em resolver os problemas prontamente. Isso claramente

demonstrado em a Situação intelectual do sistema parlamentar atual.

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decorrer do trabalho. Para Pierre Rosanvallon “[...] O tempo da democracia aparece assim

suscetível de uma dupla defasagem: excessivamente imediato para problema de longo prazo,

excessivamente lento para a gestão da urgência. Nos dois casos, a pertinência da ideia de

vontade geral é posta em xeque” (ROSANVALLON, 2010). A reflexão sobre o tempo de

resposta é pertinente ao se pensar o governo. Mas as soluções a determinadas questões podem

conduzir a posturas políticas extremas. E a história do século XX, como bem aponta Eric

Hobsbawm, é marcada pelo uso da força e da violência nos assuntos de Estado e entre

Estados.

Aqueles que se interessam em compreender o poder, segundo Rosanvallon, necessitam

analisar e refletir o mundo real.

[...] As deliberações racionais e as reflexões filosóficas não podem ser

dissociadas das paixões e dos interesses. O majestoso teatro da vontade geral

está atravessado permanentemente por cenas retiradas da comédia do poder.

Por isso, não é nos refugiando num suposto céu apaziguado de ideias que

poderemos compreender verdadeiramente os mecanismos e as dificuldades

da instituição polis (ROSANVALLON, 2010, p. 78).

A realidade política pode ser uma comédia ou uma tragédia. E em alguns momentos, uma

seara de ações e sentimentos humanos. Ao estudioso do político, analisar esses interesses e

sentimentos pode ir de encontro aos seus referenciais de mundo.

A ideia de Norbert Elias, expressa em Os Alemães, parece-nos emblemática. O ideal

de civilização fez com que tanto o povo quanto os agentes políticos contrários ao nazismo, o

subestimassem – tanto num âmbito interno, quanto no cenário internacional. Quando no

poder, tendo o nazismo implementado suas propostas, em especial aos judeus e deficientes,

houve uma ruptura de mentalidade. Compreendida pelo autor como o colapso da ideia de

civilização herdada do Iluminismo e da concepção de progresso. A história do político em

Rosanvallon se apresenta como uma necessidade imperiosa de que o passado possua uma

relação com o presente, sendo uma história filosófica, ela deve traçar as ressonâncias de nossa

experiência com o passado. Parece-nos que o autor compreende o político como um objeto de

estudo de múltiplas ciências, e por isso a sua defesa de que o historiador do político lance mão

de uma metodologia multidisciplinar, pois “[...] Entender o passado e investigar o presente faz

parte de um mesmo processo intelectual [...]” (ROSANVALLON, 2010, p. 54). Os conflitos

políticos, no campo das ideias ou das práticas, segundo o historiador, não podem ser

dissociados de sua historicidade.

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No intuito de defender uma história conceitual do político, o texto de Pierre

Rosanvallon conceitua criticamente cada forma de abordagem da história tradicional das

ideias, apontando suas fraquezas: a tentação do dicionário, a história das doutrinas, o

corporativismo textual, o reconstrutivismo e o tipologismo. Ao apontar suas limitações e o

que seria necessário superar, pouco acrescenta nas discussões sobre as questões políticas. A

história conceitual do político tem como objetivo, na sua visão:

[...] a compreensão da formação e evolução das racionalidades políticas, ou

seja, dos sistemas de representações que comandam a maneira pela qual uma

época, um país ou grupos sociais conduzem sua ação encaram seu futuro (...)

Ela é história política na medida em que a esfera do político é o lugar da

articulação do social e de sua representação. Ela é história conceitual porque

é ao redor de conceitos – a igualdade, a soberania, a democracia, etc. – que

se amarram e se comprovam a inteligibilidade das situações e o princípio de

sua ativação (ROSANVALLON, 1995, p. 16).

Segundo o autor, a temática central desse tipo de história seria apreender objetivos distintos

relacionados à modernidade política, a formação progressiva do indivíduo como agente social

e a relação entre liberalismo e democracia. Esse tipo de história pretende coletar todo o

conjunto de materiais que os historiadores das ideias, das mentalidades, das instituições e dos

acontecimentos se apoiam, não havendo uma matéria própria à mesma. Os historiadores

devem estar atentos quando se utilizam dos métodos, conceitos e estruturas das ciências

sociais e humanas, pois estudam os processos de mudanças e continuidades em tempos

históricos análogos aos que esses métodos foram produzidos.

As ideias são fabricações humanas, por isso, passíveis de historicização. Nelas,

expressam-se nossos limites e potencialidades, valores morais, questões da ética profissional e

questões passionais. Segundo Thomas Hobbes, a liberdade humana estaria na consciência de

cada um. Mas como ser livre, no campo das ideias, envolvido entre ideologias antagônicas e o

atual controle dos mecanismos de comunicação em massa? Seriam os intelectuais seres livres

de responsabilidades sobre as ideias que constroem e transformam a sociedade? Estas são

questões de um intenso debate que buscaremos demonstrar a seguir, integrando as

problemáticas que cercam o nosso corpus documental e o sujeito do nosso objeto de estudo.

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Intelectuais, Trajetórias e Poder: do gabinete ao engajamento político

“Enquanto, por efeito de leis e costumes, houver proscrição

social, forçando a existência, em plena civilização, de

verdadeiros infernos, e desvirtuando, por humana fatalidade,

que um destino por natureza divino; enquanto os três problemas

do século – a degradação do homem pelo proletariado, a

prostituição da mulher pela forme, e a atrofia da criança pela

ignorância – não forem resolvidos; enquanto houver lugares

onde seja possível a asfixia social; em outras palavras, e de um

ponto de vista mais amplo ainda, enquanto sobre a terra houver

ignorância e miséria, livros como este não serão inúteis.”

(Victor Hugo, Os miseráveis)

Os questionamentos sobre quem são e o que fazem os intelectuais foram debatidos por

diversos pensadores, principalmente a partir das primeiras décadas do século XX. Dentre eles,

propomo-nos realizar um diálogo dentre aqueles que consideramos terem apontado caminhos

para o entendimento e a compreensão do sujeito de análise deste trabalho – o jurista e

politólogo alemão Carl Schmitt (1888-1985), bem como ao nosso objeto de estudo – sua

crítica ao sistema liberal e a formulação do Estado Total (1919-1939).8Nossas escolhas

primam por não enquadrar nosso sujeito em uma caixa conceitual, pronta e cerrada. Mas

demonstrar a flexibilidade e mutabilidade deste homem de saber num dos períodos históricos

mais conturbados de nossa história – o entreguerras (1919-1939) – onde a humanidade teve

diante de si diversos rumos a seguir, ou seja, os seres humanos contavam com inúmeras ideias

que orientavam para novas formas de modernidade. Tanto o objeto quanto o sujeito,

analisados neste trabalho, pertencem ao contexto da ascensão dos fascismos pela Europa. O

próprio Carl Schmitt afiliou-se ao Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães

(NSDAP)9 em 1933, e sua saída em 1936 é recoberta de mistérios (AGAPITO, 2006;

FERREIRA, 2004; KERVÉGAN, 2006).

8 Por motivos da dificuldade em lidar com a língua alemã e da limitação do nosso corpus documental, essa

dissertação não será construída sobre a égide da história intelectual. Pelas características desse trabalho e das

limitações a que nos defrontamos, e por compreender que a história intelectual tem como princípio um trabalho

investigativo mais preciso sobre as redes de sociabilidades, locais de ação e escritos mais particulares, como as

cartas. Nesse sentido, esse movimento da dissertação objetiva apresentar alguns dos debates sobre a questão

intelectual e inserir Carl Schmitt nessas discussões. Sempre quando possível, os métodos da história intelectual

serão inseridos no nosso trabalho, que prioriza a história das ideias. O trabalho com a concepção de história

política de Pierre Rosanvallon nos permite ampliar as discussões de forma interdisciplinar, entre os campos de

sociabilidades e sobre as concepções teóricas, desde que respeitando as particularidades e concepções

específicas. 9 Daqui por diante apenas faremos uso da sigla NSDAP para representar o Partido Nacional-Socialista dos

Trabalhadores Alemães.

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O modelo constitucional dos estados modernos – ou o parlamentarismo

especificamente na Alemanha pós-Primeira Guerra Mundial – é o principal objeto de estudo

de Carl Schmitt, produzindo um discurso antiliberal durante a existência da República de

Weimar (1919-1933) e fundamentando o conceito de decisionismo. Segundo Agapito:

[...] Dentro de ese contexto tienen especial relevancia su comprensión de las

razones de la crisis del modelo constitucional alemán heredado del XIX, su

crítica a la insuficiencia del enfoque y las categorías jurídico-

constitucionales del positivismo jurídico, y finalmente su respuesta al déficit

de autoridad del Estado que se plantea a lo largo de la historia de la

República de Weimar. (AGAPITO, 2006, p. 13).

A crítica schmittiana se volta nesse período (1919-1933) à construção de um novo tipo de

Estado, por meio do uso dos aparatos técnicos e da expansão do campo político para todos os

seguimentos da sociedade – não permitindo divergência nem opções diversas do “todo”.

Assim, constitui-se o que Schmitt conceituou como Estado Total10

. Sendo este, uma

contraposição ao modelo liberal de governo.

O início do século XX, principalmente após a Grande Guerra, marcou a ruptura entre a

sociedade liberal burguesa e o surgimento das massas como força política, sobretudo no

mundo ocidental. Segundo Eric Hobsbawm, houve uma crise de hegemonia das elites

governantes, onde:

[...] a lógica tanto do desenvolvimento capitalista como da própria

civilização burguesa estava destinada a destruir seus alicerces, uma

sociedade e suas instituições governadas por uma elite minoritária

progressista, tolerada e talvez aprovada pela maioria, ao menos enquanto o

sistema garantisse a estabilidade, a paz e a ordem pública e as modestas

expectativas aos pobres. Ela não poderia resistir ao triplo golpe da revolução

da ciência e da tecnologia no século XX, que transformou antigas maneiras

de ganhar a vida antes de destruí-las, da sociedade de consumo de massa

gerada pela explosão do potencial das economias ocidentais, e da decisiva

entrada das massas na cena política como consumidores e eleitores [...]

(HOBSBAWM, 2013, p. 13).

10

Para Emmanuel Faye, nos anos do engajamento ao Nacional-Socialismo, Carl Schmitt colocou em prática a

sua ideia de Estado Total. Além de colaborar, depois do pedido de Martin Heidegger por meio de carta, na

nazificação da faculdade de direito da Universidade de Friburgo, durante o reitorado deste entre 1933-1934

(FAYE, 2015).

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Esta crise, para Hobsbawm, estaria relacionada com a tomada de posição desses pequenos

grupos governantes, que se baseavam no caráter da meritocracia de seu poder, e não nos

princípios igualitários e democráticos (HOBSBAWM, 2013, p. 12).

As transformações apresentadas colocaram em risco o modelo de sociedade liberal. A

Grande Guerra fez ruir os antigos impérios, o centro do poder econômico deslocara-se da

Europa para os Estados Unidos11

. A vitória no campo de batalha não garantiu as nações

vencedoras um longo período de paz e prosperidade. Assim:

O otimismo de 1918 iria se revelar excessivo, para não dizer abertamente

equivocado. A Rússia soviética já construía, desde 1917, uma política não só

alternativa ao liberalismo, mas desafiadora de seus pressupostos e valores.

Nos anos seguintes, na Itália, Mussolini marcharia sobre Roma; na

Alemanha, aqueles que se apresentavam como os representantes do volk

organizavam-se para solapar a República de Weimar e substituí-la por um

regime que, até hoje, é de difícil conceituação; mesmo nos Estados Unidos,

país que, na sua própria forma de ver as coisas, havia nascido sob a égide

dos ideais de igualdade e liberdade, de democracia representativa e

contratualismo privado, a crise econômica iniciada em 1929 vinha colocar

em xeque os princípios do laissez-faire, fortemente atacados pelo New Deal

de Franklin Roosevelt (LIMONCIC, MARTINHO, 2010, p. 9).

O liberalismo saído vitorioso da Grande Guerra teria pela frente sua maior crise econômica.

Mas a oposição a este sistema já era praticada pelas diversas doutrinas de caráter econômico-

político, gestadas para sua “restauração”, ou até mesmo sua superação. O fato de ressaltarmos

o contexto histórico da primeira metade do século XX não tem por finalidade enquadrar os

pensadores unicamente em sua época. Os intelectuais antiliberais, dos quais Carl Schmitt faz

parte, trazem em seus escritos elementos passados, presentes e futuros. Consideramos, pois,

que o conceito de intelectual antiliberal melhor defina Carl Schmitt, do que o de intelectual

nazista (questão terminológica que discutiremos no próximo tópico)12

. Por essa decisão, não

queremos diminuir suas responsabilidades com o nazismo, nem enaltecer sua personalidade,

apenas demonstrar que até onde nossas análises puderam verificar, o maior volume de sua

obra intelectual está voltado ao antiliberalismo e ao autoritarismo. Que, inclusive, 11

Com relação a este deslocamento do poder aos Estados Unidos e a política de não intervenção na Europa, Carl

Schmitt elabora uma reflexão sobre a criação do que ele chama de Hemisfério Ocidental e da Doutrina Monroe

em 1823. Importante o enfoque acerca da evolução dos meios técnicos para as transformações no Direito das

Gentes no que concerne aos espaços terrestres, marítimos e aéreos em O Nomos da Terra, publicado 1950. Livro

este já se insere no contexto de Guerra Fria. 12

O engajamento de Carl Schmitt ao Nacional-Socialismo é um fato inquestionável, e este trabalho não objetiva

ocultar ou dar maior visibilidade do que este momento sombrio e complexo necessita. Como membro do partido

e intelectual, Carl Schmitt fez parte do regime político das grandes transformações dos anos de 1930 na

Alemanha. Mas comunga das responsabilidades perante a destruição e o morticínio perpetrados pela Alemanha

Nazista, da mesma forma que outros intelectuais, tal como Martin Heidegger (LILLA, 2004).

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consideramos mais próximos do fascismo italiano nos anos de 1920 do que do próprio

Movimento Nazista alemão do mesmo período. O que se alterou claramente nos anos de

1930. Importa salientar que isso não vem a minimizar a gravidade dos efeitos do engajamento

de Carl Schmitt ao nazismo, devido a sua participação concreta nas políticas antissemitas da

Ditadura Nazista. Muito menos tornar os seus escritos do período weimariano isentos do

caráter polêmico e antidemocráticos no qual se fundamentam.

A reflexão que nos é apresentada por Antonio Gramsci, parece-nos convergir para a

ponderação e a serenidade. Diz-nos ele:

[...] Não se pode separar a filosofia da história da filosofia, nem a cultura da

história da cultura. No sentido mais imediato e determinado, não se pode ser

filósofo – isto é, ter uma concepção do mundo criticamente coerente – sem a

consciência da própria historicidade, da fase de desenvolvimento por ela

representada e do fato de que ela está em contradição com outras concepções

ou com elementos de outras concepções. A própria concepção do mundo

responde a determinados problemas colocados pela realidade, que são bem

determinados e “originais” em sua atualidade [...] (GRAMSCI, 2014, p. 95).

O trabalho intelectual, nesse sentido, na justeza e na serenidade, não deve imputar ao agente

histórico nossas ideias de forma anacrônica, nem cumpre nos iludir de que tudo se passou

como foi cristalizado pelo tempo. No presente, o historiador propicia a coexistência de

diversos regimes de historicidade. Um desses pode constituir numa temporalidade

hegemônica. Ele é o interlocutor entre o legado daqueles que não existem mais, para aqueles

que ainda resistem ao poder imperioso do tempo. E como afirma Michel de Certeau, é a

técnica da disciplina histórica que faz do historiador o porta-voz qualificado, produtor de uma

narrativa que tem suas especificidades. Sem jamais esquecer que este historiador sempre

falará de um lugar social específico. Assim, segundo Certeau, a história teria uma relação

enigmática com o presente e a morte (CERTEAU, 2006). O historiador pode, então, ser

considerado o intelectual profissional, que lida com as memórias, os sonhos, os medos de seus

companheiros de espécie. Relação essa que transcende as fronteiras de seu tempo e espaço,

que se afirmam sobre a necessidade de se questionar o estabelecido e buscar aquilo que se

ignora. A autonomia crítica deve ser o horizonte do saber científico, consciente de que

estaremos sujeitos a nossa própria historicidade (GRAMSCI, 2014). Mas o tempo e as ideias,

em particular as ideias políticas, não são uma especificidade dos historiadores – nem mesmo

dos intelectuais profissionais, como nos advertiu Michel Winock.

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Nesse sentido, passaremos a apresentar alguns dos possíveis métodos compreensão da

figura intelectual. Não nos detivemos ao âmbito cronológico, nem à importância individual,

para definir a ordem de apresentação. Mas nos concentramos a uma exposição sucinta e

coerente com o legado destes ao campo científico.

Sobre o surgimento dos intelectuais, Eric Hobsbawm recua no tempo a sua

compreensão, reconhecendo o caráter de intelectuais a diversos grupos sociais ligados ao

saber humano desde a Antiguidade. Segundo este mesmo autor, anteriormente aos séculos

XIX e XX:

[...] o monopólio da capacidade de ler e escrever no mundo alfabetizado e a

instrução necessária para dominá-la também implicavam um monopólio do

poder, protegido da competição pelo conhecimento de línguas escritas

especializadas, ritual ou culturalmente prestigiosas (HOBSBAWM, 2013,

227).

O saber intelectual, nesse sentido, serve aos grupos dominantes no intuito de garantir a

hegemonia do exercício do poder. Modo de compreensão semelhante é apresentado pelo

pensador italiano Antonio Gramsci, sobre seu conceito de “intelectuais orgânicos”. Porém,

Hobsbawm admite que o conceito “intelectuais” – ou “intelligentsia” – passou a existir, no

sentido que o compreendemos atualmente, a partir de “[...] 1860 em diante, numa turbulenta

Rússia czarista, depois numa França abalada pelo caso Dreyfus [...]” (HOBSBAWM, 2013, p.

229). O século XX, segundo ele, seria marcado pelo engajamento intelectual, onde esses

ideólogos participariam dos partidos políticos, fóruns de discussão e na formação dos

manifestos – caracterizados pelo autor como principal forma de participação dos intelectuais

contra ou a favor do poder dominante.

O “breve século XX”, no que se refere aos intelectuais, é definido pelo autor da

seguinte forma:

[...] de revoluções e guerras de religião ideológica tornar-se-ia a era

característica do engajamento político dos intelectuais. Eles não só

defendiam suas próprias causas na época do antifascismo e depois do

socialismo de Estado, mas também eram vistos dos dois lados como

reconhecidos pesos pesados do intelecto. Seu período de glória estendeu-se

do fim da Segunda Guerra Mundial ao colapso do comunismo (...) [pelos

mais diversos motivos de engajamento] Os intelectuais formavam a linha de

frente de quase todas. (HOBSBAWM, 2013, p. 229).

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O papel de vanguarda era atribuído à intelectualidade, onde cada manifesto estaria sendo

avaliado pelos grupos envolvidos, de acordo com os nomes de “peso” que conseguisse

arregimentar como signatários. Porém, como salienta o autor, esse papel de vanguarda e de

prestígio dos intelectuais começou a ruir com o colapso do comunismo soviético.

Que perspectivas de futuro haveria para os intelectuais na sociedade de consumo, num

mundo cada vez mais dinâmico e com ideias fluídas? Reflexivamente, Hobsbawm afirma-nos

que “[...] é um paradoxo do nosso tempo o fato de que a irracionalidade na política e na

ideologia não tem tido dificuldade alguma para coexistir com, e na realidade usar, a

tecnologia mais avançada [...]” (HOBSBAWM, 2013, p. 234). Faltaria aos intelectuais saber

se utilizar dos novos meios disponibilizados pela tecnologia para garantir sua existência, fato

este que o autor não apresenta como um problema difícil de ser solucionado. Um dos

principais problemas, para a superação da crise dos intelectuais, seria na visão do autor:

[...] A humanidade hoje em dia já se acostumou caracteristicamente com

vidas de contradição interna, divididas entre um mundo de sentimentos e

uma tecnologia impermeável à emoção, entre o reino da experiência em

escala humana e do senso-conhecimento e o reino de magnitudes que nada

significam, entre o “senso comum” da vida diária e a incompreensibilidade,

salvo para exíguas minorias, das operações intelectuais que criam a estrutura

básica em que vivemos [...] (HOBSBAWM, 2013, p. 235).

Observamos que, para Hobsbawm, não estamos vivendo a extinção dos intelectuais. As

sociedades humanas, principalmente as ocidentais, enfrentam há décadas uma globalização

das ideias, dos estilos de vida e das formas de se relacionarem entre si. Nesse processo, “[...]

mesmo a sociedade mais automaticamente contraintelectual hoje tem maior necessidade de

pessoas com ideias, e de ambientes nos quais elas se desenvolvam [...]” (HOBSBAWM,

2013, p. 235). O futuro dos intelectuais, para o autor, não está condicionado a extinção. Falta-

os compreender que “[...] os intelectuais pensantes por si não têm condições de mudar o

mundo, embora nenhuma mudança desse tipo seja possível sem a sua contribuição [...]”

(HOBSBAWM, 2013, p 236). Nesse sentido, enquanto a história for construída por seres

humanos, num processo de transformações e permanências, a figura do intelectual estará

presente como sujeito pensante, promotor de ideias e de grupos sociais, socialmente

constituídos13

.

13

Não é nosso objetivo nesse trabalho estudar o nazismo e os desdobramentos do governo nazista na Alemanha

do Terceiro Reich de forma detalhada. Na obra Crer & Destruir: intelectuais na máquina de guerra da SS

nazista, do historiador francês Christian Ingrao, apresenta-nos como os intelectuais foram arregimentados ou se

ingressaram as fileiras do nazismo, realizando atividades tanto de legitimação e afirmação do movimento e do

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Por outro lado, Jean-Françoise Sirinelli apresenta-nos sua compreensão metodológica

de como analisar e produzir uma história dos intelectuais, que se formaria do entrecruzamento

de outras formas de escrita da história – dentre elas, a história política, a história social e a

história cultural. Ou seja, produzir um relato histórico sobre um sujeito pelo viés da história

intelectual não seria apenas produzir um relato biográfico. Contudo, para que ocorresse o

surgimento dessa forma de produção historiográfica, houve certo pessimismo, pois acreditava

que a história dos intelectuais seria apenas um discurso biográfico ou retornaria a velha

história política. Assim, os historiadores dos intelectuais haveriam de contrariar os cânones

vigentes no campo historiográfico:

[...] Pois esta história dos intelectuais remetia obrigatoriamente, por algumas

de suas facetas, à história política, que na época estava no ostracismo:

empreendia pela via indireta da história dos engajamentos individuais, ela se

situava – duplo efeito! – no cruzamento da biografia e do político;

considerada sob o ângulo coletivo, também esbarrava, é claro, na história

social, mas tinha, nesse domínio, outros preconceitos a combater.

(SIRINELLI, 2003, p. 234).

Dentre as preocupações dos historiadores nesse momento do século XX, estava o

“entusiasmo” pelas massas, no qual os intelectuais não poderiam aspirar pertencer, levando-se

em consideração o baixo número destes. Cabe ressaltar que os intelectuais influem na

sociedade para o bem e para o mal e, por isso, o estudo de suas ideias como sujeitos sociais é

fecundo para a compreensão do mundo social e das massas. Sendo que, as trajetórias dos

intelectuais estão correlacionadas às da própria sociedade em que vivem e pensam.

Entretanto, não podemos criar determinismos, pois, tanto os intelectuais quanto as sociedades

possuem sua autonomia nas formas de agir e pensar seu percurso.

Quando um intelectual como Carl Schmitt propõe-se a idealizar um novo modelo de

sociedade, devemos observar que aquele pertence a grupos sociais distintos, e que as suas

ideias não estão apenas demarcadas pelo contexto histórico. Mas também pelo seu

pertencimento, ou desejo de pertencimento a determinados grupos sociais – como reflete

Pierre Bourdieu sobre os usos do capital simbólico para a promoção do status social. Porém,

tanto o desejo como a ação, seja daqueles que impunham armas, ou deslizam por meio da

“pena” e do papel suas ideias, são responsáveis por suas práticas, pois pertencem a uma ação

determinada, com múltiplas formas execução. As ideias, ou a intelectualidade não se

governo quanto como agentes de polícia SS e organizadores da Solução Final judaica. Esses intelectuais agentes

da SS eram crianças nos anos de guerra (1914-1918).

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constituem como torres de marfim, encantadoras e sedutoras. A ação historiográfica não pode

circunscrever limites do que se deve ou não ser discutido, analisado e demonstrado. Não é a

neutralidade que define a historicidade do trabalho do historiador, mas a capacidade de deixar

fluir aquilo que as nossas fontes possibilitam, sabendo-se das limitações do lugar social de

nossa ação (CERTEAU, 2006). É nesta ação entre o intelectual e a sociedade que a história

dos intelectuais se torna fecunda ao processo histórico de dada sociedade, grupo intelectual

e/ou como defensor de um legado qualquer (SIRINELLI, 2003).

Os intelectuais, como grupo social, produzem suas redes de sociabilidade, que são

elementares para o entendimento da produção de um dado intelectual. Para o estudo destas

redes de sociabilidade14

, Sirinelli nos apresenta três níveis, nos quais:

[...] A descrição desses três níveis e dos mecanismos de capilaridade em seu

interior facilitaria sobretudo a localização de cruzamentos, onde se

encontrariam maítres à penser e “despertadores”, e o esclarecimento de

genealogias de influências – pois um “despertador” pode aceitar dentro de si

um outro, que o marcou uma geração antes –, tornando mais inteligíveis os

percursos dos intelectuais. (SIRINELLI, 2003, p. 246).

Nestes três níveis se constataria como a sociabilidade intelectual se entrelaça, onde sujeitos

vivos e mortos, de classes sociais distintas, e porque não, nacionalidades diferentes,

compartilham de “uma sensibilidade ideológica ou cultural comum” (SIRINELLI, 2003).

Como então se portariam os intelectuais frente às tomadas de posição morais? Suas

ideias, engajamentos políticos e ações cotidianas? Como atribuir responsabilidade aos

intelectuais por seus engajamentos? Seriam estes seres infalíveis? O homem de saber sempre

está ao lado da lucidez e da razão? A esses questionamentos, Sirinelli é categórico ao dizer

que seria uma ingenuidade “[...] grave quando se supõe que o engajamento político procede

da lucidez, ela própria alimentada pela Razão. E forçoso é constatar que, nesse engajamento,

o sentimento e a afetividade algumas vezes prevalecem sobre a Razão” (SIRINELLI, 2003, p.

260). Neste ponto, Carl Schmitt possui um passado sombrio, pois seu engajamento com o

NSDAP fez com que sua produção intelectual ficasse por muitos anos sublimada e inaudita no

campo científico, como sustentam seus interlocutores nas últimas décadas. A sua luta contra o

espírito judeu, além de sua participação na criação das leis raciais de Nuremberg, de 1935, são

14

Para demonstrar a introdução do nazismo na filosofia, por meio das obras e ações de Martin Heidegger,

Emmanuel Faye monta uma rede de sociabilidade entre o “filósofo” e outras figuras ligadas ao contexto da

tomada do poder pelo Nacional-Socialismo e a formação do Reich nazista. Rede esta, onde Carl Schmitt aparece

como tendo grande influência nos rumos políticos, administrativos e “filosóficos” de Heidegger no período

citado (FAYE, 2015).

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demonstrativas do caráter perverso do seu trabalho do período do engajamento (FAYE, 2015,

p. 381).

Os posicionamentos dos intelectuais, dado seus engajamentos na vida social, refletem

os contornos de sua trajetória no campo do saber. Aqueles não constituem um grupo coeso e

inquebrantável, mas as redes de sociabilidade formam-se por meio dos mais distintos

condicionamentos. Entre os quais podemos considerar a religiosidade ou não religiosidade,

posicionamento político de esquerda, centro ou direita, etc. Estas tomadas de posição

ocasionaram conflitos entre os intelectuais, e são nos grupos intelectuais distintos que estas

abrem espaço para as contendas entre estes sujeitos. Ao observar as estratégias para legitimar

e deslegitimar o discurso de intelectuais em lados opostos, nos diz Louis Pinto:

As estratégias de desqualificação política dos concorrentes se insinuam na

ordem intelectual. Aquele que persiste em pensar que, embora seja verdade

que o mundo muda, nos princípios de inteligibilidade não podem, a cada

trinta anos, caducar para dar lugar a uma outra “geração”, se arrisca muito a

ser alinhado do lado ruim: ele tenta trazer clareza pelos processos da

argumentação e da dedução, quando se anunciam novos paradigmas que têm

por definição principal pulverizar todo quadro recebido. (PINTO, 1997, p.

210).

Assim como Jean-François Sirinelli, Louis Pinto nos faz refletir sobre a questão do

engajamento entre os intelectuais. Além disso, coloca-nos a observar que este engajamento

pode ser momentâneo, por uma geração ou por diversas gerações de intelectuais. É papel do

pesquisador, ou seja, do historiador que busca analisar o campo intelectual, entender o porquê

das cisões e das permanências.

Aos intelectuais, como homens de cultura, somente compete seu caráter de seres

pensantes, ou também devem esses indivíduos ser seres de ação? A teoria pode se separar da

prática? Ou a prática pode se distanciar e em certos momentos de crise, contrapor-se a toda

uma filosofia defendida por um intelectual durante sua trajetória de vida? Esses

questionamentos são analisados por Norberto Bobbio em algumas de suas obras. Este autor

caracteriza o termo intelectual de forma muito abrangente, onde todo ser humano que

desenvolva um trabalho de reflexão intelectual em um dado momento participa do grupo dos

intelectuais. Nesse sentido, há de se ressaltar que o termo intelectual na visão de Bobbio não é

monovalente, mas caracteriza-se por um pluralismo, onde:

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[...] segundo as idéias que sustentam e pelas quais se batem, são

progressistas ou conservadores, radicais ou reacionários; segundo as

ideologias que defendem, são libertários ou autoritários, liberais ou

socialistas; segundo a atitude diante das próprias idéias que sustentam, são

céticos ou dogmáticos, laicos ou clericais [...] (BOBBIO, 1997, p. 116).

É esse pluralismo de intelectuais que traduz a diversidade de ideias, atitudes e ideologias deste

grupo social. Para atribuir qualquer um destes sentidos a um determinado intelectual, o

historiador deve estar atento à conjuntura histórica vivida pelo mesmo. Pois podemos realizar

anacronismos quando não observamos a mutabilidade destes contextos no tempo e no espaço

de cada sociedade. Ao proporcionar a discussão sobre a vida intelectual nos deparamos, não

apenas com reflexões de um indivíduo solitário, mas também constatamos que estes homens

de cultura compartilham dos sonhos e dos medos de seu tempo.

Demonstrar essa relação entre o sujeito e a sociedade é dar-lhe vida, sem ocultar os

momentos e as ideias sombrias que possam ter defendido e gestado em sua trajetória

intelectual. Assim podemos, tal como Jean-François Kervérgan, afirmar que Carl Schmitt

possui em seus escritos proposições antissemitas e de defesa ao nazismo, sem deixarmos de

ressaltar que análise de sua produção intelectual é profícua para o entendimento de um

determinado grupo da sociedade alemã durante o entreguerras (KERVÉGAN, 2006, p. xv).

Mas como adverte Emmanuel Faye, devemos nos posicionar sobre esses escritos, pois de uma

forma ou de outra, convergiram com a destruição do pensamento universalista do Iluminismo

e legitimaram a eliminação física de grupos humanos, tendo o Holocausto como exemplo.

Reiterando a partir dos apontamentos de Mark Lilla, houve um processo de legitimação do

Terceiro Reich do qual Schmitt foi um ator, estando consciente do discurso antissemita do

Nacional-Socialismo dos anos de 1920.

Os intelectuais possuem uma influência sobre a sociedade, logo sobre o poder que a

controla – ou melhor, sobre os poderes que a constitui. Desde o sacerdote ou o professor da

longínqua vila, distante dos polos de poder centrais, aos grandes pensadores e cientistas que

estão ligados ou não ao poder político. Salientamos que essa influência pode ser benéfica ou

maléfica, segundo os valores morais que determinem a dicotomia entre o bem e o mal. A

amplitude deste diálogo entre o intelectual e seus interlocutores se expandiu com os avanços

técnicos da modernidade, desde a invenção da prensa no século XV, ao poder quase que

ilimitado de transmissão de dados e de mobilização propiciados pela internet. Mas essa nova

conjuntura propiciada pelas novas mídias de comunicação em massa alterou o mundo dos

intelectuais, e estes passaram a conviver com uma realidade onde a dinâmica social se

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acelerou a níveis nunca vivenciados pela humanidade. Assim, segundo Bobbio, os debates

dos intelectuais atualmente “[...] se assemelham a fogos de artifício: uma luz intensa, mas

efêmera, um estalido que dura um instante, para logo depois voltarem à escuridão e o silêncio

[...]” (BOBBIO, 1997, p. 94). Viveríamos, segundo o autor, num período de efervescência das

ideias, mas esta quantidade estaria sufocando a qualidade delas.

Dentre os pensadores que refletiram sobre o papel dos intelectuais na sociedade,

compreendemos que Antonio Gramsci é o que propõe um caminho de análise que melhor se

aplique às proposições de nosso objeto neste trabalho (a crítica ao sistema liberal e a

formulação do Estado Total nos escritos produzidos por Carl Schmitt entre 1919 -1933), bem

como ao nosso sujeito histórico – o próprio Carl Schmitt. Isso não quer dizer que os outros

pensadores até agora apresentados não sejam necessários para essa tarefa. Todavia, o conceito

de “intelectual orgânico” definido por Gramsci contempla aquilo que o nosso objeto, pelo

menos em um determinado momento de sua trajetória intelectual, realizou como um expoente

antiliberal e, posteriormente, como membro do NSDAP. Segundo o autor, a forma orgânica

pode ser caracterizada da seguinte maneira:

[...] Cada grupo social, nascendo no terreno originário de uma função

essencial no mundo da produção econômica, cria para si, ao mesmo tempo,

de um modo orgánico, uma ou mais camadas de intelectuais que lhe dão

homogeneidade e consciência da própria função, não apenas no campo

econômico, mas também no social e no político [...] (GRAMSCI, 1982, p.

3).

Ao grupo dominante, faz-se necessário a criação e manutenção de um grupo voltado para a

construção da hegemonia político-social, e não apenas o seu caráter econômico. A

complexidade dos intelectuais no pensamento gramsciano surge a partir da existência de outro

grupo de intelectuais, onde o autor define-os por “intelectuais tradicionais”, assim

apresentados:

[...] Cada grupo social “essencial”, contudo, surgindo na história a partir da

estrutura econômica anterior e como expressão do desenvolvimento dessa

estrutura, encontrou – pelo menos na história que se desenrolou até aos

nossos dias categorias de intelectuais preexistentes, as quais apareciam,

aliás, como representantes de uma continuidade histórica que não fora

interrompida nem mesmo pelas mais complicadas e radicais modificações

das formas sociais e políticas (GRAMSCI, 1982, p. 5).

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O processo histórico faz com que coexistam diferentes formas de intelectuais de acordo com o

momento histórico vivenciado e/ou analisado – aqueles que representam os grupos

hegemônicos anteriores, o(s) grupo(s) que exerce(m) a hegemonia e os grupos que buscam

alcançar a hegemonia. Norberto Bobbio ao apresentar o conceito de intelectuais tradicionais

de Gramsci, diz-nos o seguinte:

[...] os intelectuais tradicionais também foram, por sua vez, orgânicos de

classes ora em declínio: são os ex-orgânicos, agora não mais orgânicos

unicamente porque a sociedade, em sua evolução, colocou-os pouco a pouco

fora do jogo. Apenas pode ser considerado inorgânico, nesse sentido, o

intelectual que recusa totalmente o mundo da política, nesse sentido, o

intelectual se fecha arrogante e raivosamente na própria solidão [...]”

(BOBBIO, 1997, p. 87).

Antonio Gramsci questiona a crença dos intelectuais tradicionais, que se consideram como

autônomos e independentes. De fato, tanto ele quanto Norberto Bobbio defendem que existem

intelectuais organizados e intelectuais a serem organizados, pois estes intelectuais tradicionais

são cortejados pelos grupos hegemônicos em determinados momentos (BOBBIO, 1997;

GRAMSCI, 1982).

O projeto de Antonio Gramsci para compreender a atividade intelectual humana faz

parte de seu engajamento político. Segundo Giovanni Semeraro, Gramsci não se limitou a

noção corrente de intelectual. Podendo se compreender que:

O intelectual que emerge dos escritos de Gramsci é “orgânico” (voltado a

impulsionar a sociedade inteira, não apenas uma parte dela), democrático

(determinado a superar a relação de poder-dominação) e popular

(sintonizado com a cultura e os projetos hegemônicas dos “subalternos)

(SEMERARO, 2006, p. 147).

Há uma missão científica e uma vontade de transformação da realidade prática do mundo.

Isso não torna seus apontamentos, reflexões, conceituações e métodos sem valor científico

apenas por não serem neutros, somente reafirmam sua própria reflexão sobre a concepção de

mundo (GRAMSCI, 2014, p. 95). Suas ideias advindas da filosofia da práxis demonstram

isso, filosofia essa definida por ele, em contraposição ao catolicismo:

[...] a filosofia da práxis não busca manter os “simples” na filosofia primitiva

do senso comum, mas busca, ao contrário, conduzi-los a uma concepção de

vida superior. Se ela afirma a exigência do contato entre os intelectuais e os

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simples não é para limitar a atividade científica e para manter uma unidade

no nível inferior das massas, mas justamente para forjar um bloco-intelectual

que torne politicamente possível um progresso intelectual de massa e não

apenas de pequenos grupos intelectuais (GRAMSCI, 2014, p. 103).

É necessário fazer com que os homens tomem consciência de sua ação, segundo essa

concepção, de que são eles os que fazem a história da humanidade. Mas essa própria

consciência, também os condiciona a ter parte com as consequências de suas atitudes.

A unidade entre a teoria e a prática é compreendida como um devir histórico, fazendo-

se, por parte de Gramsci, uma crítica ao mecanicismo. Contudo, o determinismo mecânico é

apresentado pelo autor como uma fase histórica do desenvolvimento humano, tornando-se

uma forma apaixonada de dar continuidade à transformação desejada, mesmo frente às

derrotas. Sendo assim, advém existir uma mistura, sendo que “[...] a vontade real se disfarça

em um ato de fé, numa certa racionalidade da história, numa forma empírica e primitiva de

finalismo apaixonado, que surge como um substituto da predestinação, da providência, etc.,

próprias das religiões [...]” (GRAMSCI, 2014, p. 106). Com uma desenvoltura crítica frente

ao próprio mestre, Gramsci não se deixou cultuar cegamente: seja por meio do marxismo

mecanicista, ou da inefabilidade dos escritos de Karl Marx. Segundo Semeraro:

[...] Gramsci compreende plenamente o marxismo porque o leu criticamente

e o abriu às transformações da história de nosso século; deu continuidade à

tradição revolucionária das classes trabalhadoras e elaborou instrumentos

mais atuais de luta porque nunca perdeu de vista a concepção fundamental

derivada de Marx, sem transformá-la em doutrina intocável e livro sagrado

(SEMERARO, 2006, p. 43).

Ou seja, Gramsci buscou manter a máxima da teoria e da prática, pois se a realidade prática se

transforma, a teoria deve se adequar aos novos parâmetros históricos. Sem isso a ação política

se tornaria anacrônica.

Nesse contexto, trabalho intelectual de Gramsci se volta para:

[...] desmascarar os novos mecanismos de dominação do capitalismo

avançado, por outro, dissipava também as ilusões de uma revolução iminente

e as visões unilaterais de realidade em uma época em que o marxismo

enveredava perigosamente para a estrada do tratado fechado e para o

centralismo autoritário (SEMERARO, 2006, p. 42).

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Segundo Gramsci, a categoria social dos intelectuais de forma cristalizada, no âmbito

ideológico, se relaciona por meio de nomenclaturas e conceitos idênticos, com uma categoria

intelectual precedente. Isso não caracterizaria uma nova intelectualidade, mas “um rebotalho

conservador e fossilizado” dum grupo social superado. Uma nova sociedade, ou seja:

[...] todo novo organismo histórico (tipo de sociedade) cria uma nova

superestrutura, cujos representantes especializados e porta-vozes (os

intelectuais) só podem ser concebidos também como “novos” intelectuais,

surgidos da nova situação, e não como continuação da intelectualidade

precedente [...] (GRAMSCI, 2014, p. 125).

A formação de uma nova sociedade parte do princípio de mudança da linguagem,

demarcando-se uma nova situação histórica. Gramsci nos alerta que nem sempre essa

mudança histórica, por mais radical que seja, transforma rapidamente toda a superestrutura,

mas a transformação na linguagem deveria ocorrer. Como demonstra Emilio Gentile, o

homem novo, que o fascismo italiano almejou criar, possuía vínculos com o “homem antigo”,

como por exemplo, a religião católica.

Isso pode ocorrer frente a diferenças culturais existentes no novo grupo social, que

pode haver se constituído a partir de elementos sociais de terrenos ideológicos distintos, ou

até mesmo da cultura ideológica superada recentemente (GRAMSCI, 2014, p. 125). Na

concepção de Gramsci, uma classe pode ser atrasada ideologicamente, mas ser avançada nas

funções econômicas e políticas. Por sua vez:

[...] Se a tarefa dos intelectuais é determinar e organizar a reforma moral e

intelectual, isto é, adequar a cultura à função prática, torna-se evidente que

os intelectuais “cristalizados” são conservadores e reacionários. Isto porque,

enquanto o novo grupo social sente pelo menos que é distinto e separado do

grupo precedente, tais intelectuais não sentem nem mesmo esta distinção,

mas acreditam poder se ligar ao passado (GRAMSCI, 2014, p. 126).

Intelectualmente, salienta Gramsci que nem toda herança do passado deva ser afastada, mas

que os “valores instrumentais” devem ser elaborados e refinados. Podemos observar que

Gramsci caracteriza diversas formas de intelectuais. E não parece ser mero formalismo,

determinações conceituais fechadas, pois o conceito de intelectual na sua obra é amplo, sendo

que para ele, todos os homens são intelectuais, porém, nem todos desempenham socialmente a

função de intelectual. Ou seja:

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Quando se distingue entre intelectuais e não-intelectuais, faz-se referência,

na realidade, tão-somente à imediata função social da categoria profissional

dos intelectuais, isto é, leva-se em conta a direção sobre a qual incide o peso

maior da atividade profissional específica, se na elaboração intelectual ou se

no esforço muscular-nervoso (...) Em suma, todo homem, fora de sua

profissão, desenvolve uma atividade intelectual qualquer, ou seja, é um

“filósofo”, um artista, um homem de gosto, participa de uma concepção do

mundo, possui uma linha consciente de conduta moral, contribui assim para

manter ou para modificar uma concepção do mundo, isto é, para promover

novas maneiras de pensar (GRAMSCI, 1982, p. 7-8).

Esta é uma conceituação ampla sobre o caráter intelectual dos seres humanos, mas que não

deixa de perder sua minuciosa categorização na amplitude da ideia exposta. Todos os seres

humanos são intelectuais, pois utilizam da função do intelecto, seja no trabalho, no lazer ou na

ação política na sociedade civil. Contudo, existem os intelectuais de profissão: aqueles que

têm como missão social pensar, categorizar, inovar, conservar, revolucionar e inventar.

Nesse sentido, Carl Schmitt é um intelectual pela função social que desempenhou, seja

como estudante, professor universitário e jurista. Não deixemos de fora seu caráter de

intelectual engajado com a ação política do NSDAP. A intelectualidade, exercida como

função organizadora da sociedade, como porta voz dos grupos sociais, trava seus embates por

assimilar e delinear quais dos intelectuais tradicionais podem fazer parte do novo aparato

ideológico. Sendo que:

[...] Uma das mais marcantes características de todo grupo social que se

desenvolve no sentido de domínio é sua luta pela assimilação e pela

conquista “ideológica” dos intelectuais tradicionais, assimilação e conquista

que são tão mais rápidas e eficazes quanto mais o grupo em questão elaborar

simultaneamente seus próprios intelectuais orgânicos (GRAMSCI, 1982, p.

9).

Desejamos demonstrar que Carl Schmitt desempenhou, ao menos em alguns momentos, a

função de intelectual orgânico de setores conservadores da sociedade alemã, na primeira

metade do século XX. Para isso, analisaremos seus escritos e verificaremos como seu

engajamento político refletiu em sua obra intelectual. Como intelectual orgânico, Schmitt fez

uso de intelectuais tradicionais para construir seu pensamento. Especificamente em suas

obras, podemos notar o seu desejo de aproximação e distanciamento com determinados

intelectuais, sejam eles, ou não, seus contemporâneos. Discutiremos isso em outro momento

com maior profundidade, tendo em vista que o objeto deste trabalho circunscreve a crítica do

sistema liberal e a formação do Estado Total nos escritos schmittianos entre 1919 a 1933.

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Nos textos de Gramsci, verifica-se a relação entre dominadores e dominados,

caracterizada entre as figuras do(s) grupo(s) hegemônico(s) e dos subalternos. A função de

exercer o poder hegemônico teria dois planos: a criação do consenso e a coerção àqueles que

não consentem. Segundo Gramsci:

[...] Os intelectuais são os “comissários” do grupo dominante para o

exercício das funções subalternas da hegemonia social e do governo político,

isto é: 1) do consenso “espontâneo” dado pelas grandes massas da população

à orientação impressa pelo grupo fundamental dominante à vida social,

consenso que nasce “historicamente” do prestigio (e, portanto, da confiança)

que o grupo dominante obtém, por causa da sua posição e de sua função no

mundo da produção; 2) do aparato de coerção estatal que assegura

“legalmente” a disciplina dos grupos que não “consente”, nem ativa nem

passivamente, mas que é constituído para toda a sociedade, na previsão de

momentos de crise no comando e na direção, nos quais fracassa o consenso

espontâneo (GRAMSCI, 1982, p. 11).

Deste modo, os intelectuais não são apenas depositários de conhecimento, muito menos seres

com ação neutra na sociedade. Estes, portanto, constroem e/ou ajudam a preservar concepções

de mundo, podem ser revolucionários e convulsionar toda uma sociedade. Podem ter atitudes

pontuais, como um simples manifesto de apoio a determinada causa. Engajam-se as devoções

religiosas, a movimentos políticos e a ações que visão a preservação do meio ambiente. São

indivíduos polissêmicos, contraditórios, amados e odiados. Como qualquer ser humano, têm

suas vidas entrelaçadas ao contexto histórico do seu tempo, como seres do saber, ligam-se ao

passado e ao futuro. De acordo ao tempo que se identificam, suas ideias são definidas. Carl

Schmitt esteve inserido no universo dos intelectuais, formou intelectuais e até mesmo os

perseguiu com o poder advindo de seu pertencimento ao NSDAP15

. As relações de força nesse

contexto não ficaram apenas no âmbito da discussão racional. Nesse quadro conturbado dos

anos de 1920 e 1930, precisamos compreender o movimento fascista, em suas diversas

facetas. Dedicar-nos-emos a compreender o fascismo histórico no próximo tópico.

15

Segundo Tristan Storme, Carl Schmitt influenciou alguns historiadores com sua forma de compreender a

historicidade de cada sociedade, povo ou nação. Os mais eminentes historiadores fascinados pela forma de

interpretação da história europeia schmittiana, foram HannoKesting e ReinhartKoselleck. Essa influência

permaneceu mesmo quando Carl Schmitt foi privado de ministrar aulas após a Segunda Guerra Mundial. Jürgen

Habermas também ressalta esse aspecto tanto nos meios políticos quanto nos intelectuais (STORME, 2013, p.

120).

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Interpretações sobre os fascismos: os escritos schmittianos entre a teoria e o

engajamento político dos anos 1930

“Independente disto, o historiador para o qual a

história não é só passado levará também em conta

o desafio atual e concreto de nossa discussão sobre

o político, ou seja, observará a confusa situação

intermediária entre os conceitos jurídicos clássicos

e revolucionários, e não entenderá mal o sentido de

nossa resposta a este desafio. O desdobramento

iniciado em 1939 entre guerra e inimigo levou a

novas e mais intensivas formas de guerra, a

concepções de paz completamente confusas e à

moderna guerra revolucionária e de guerrilhas.

Como se poderá compreender teoricamente tudo

isto, se se recalcar da consciência científica a

realidade de que existe inimizade entre os homens?

[...]”

(Carl Schmitt, O Conceito do Político, p. 36).

No trecho acima, presente no Prefácio de 1963, em O Conceito do Político, Carl

Schmitt afirma a pertinência de sua obra frente afirmação de sua visão conflitiva sobre a

natureza do ser humano, após os desdobramentos da Segunda Guerra Mundial (1939-1945).

Ao contrário de sua autobiografia, nota-se que o autor assume uma postura mais segura sobre

o futuro de sua obra, onde o historiador é conclamado observar o cenário de transformação

dos conceitos clássicos e revolucionários. Os anos 1960 significaram, segundo os

comentadores dos escritos schmittianos, um retorno de Carl Schmitt ao jogo intelectual da

República Federal da Alemanha (1949-1990), inclusive para pensadores de concepção política

de esquerda. Contudo, necessitamos apresentar o papel dos fascismos no desenvolvimento do

processo histórico do entreguerras.

Os fascismos pertencem ao conjunto de movimentos de massa da Idade

Contemporânea. Podemos caracterizá-los como complexos, intimidadores, autoritários e

singulares em suas manifestações em cada país. Para Francisco Carlos Teixeira da Silva:

Denominamos de fascismo, algumas vezes mais corretamente no plural –

fascismos -, o conjunto de movimentos e regimes de extrema direita que

dominou um grande número de países europeus desde o início dos anos 20

até 1945. Assim, as expressões nazismo, nacional-socialismo, hitlerismo etc.

recobririam uma só realidade política, os regimes de extrema direita que

dominaram vários países no período em questão. A denominação genérica

fascismo decorre da primazia cronológica do regime italiano, estabelecido no

poder em 1922, constituído em movimento político de identidade própria

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pouco antes, e do fato de ter servido de modelo, como veremos mais tarde, à

maioria dos demais regimes (DA SILVA, 2000, p.112).

De forma geral, o conceito Fascismo engendra o conjunto de movimentos acima delineados

pelo autor. Esses movimentos haveriam começado a ganhar contorno no contexto da Grande

Guerra de 1914-1918, evocando símbolos, tradições e formas de ação distintas em cada

localidade, ao contrário do movimento socialista e comunista, segundo o historiador italiano

Emilio Gentile, em sua obra Qu’est-ce que lefascisme?.

A experiência da guerra, para Emilio Gentile, foi fundamental tanto para os militantes

do fascismo italiano quanto para os do nazismo alemão – os dois impulsionaram uma forma

de concepção política sacralizada. Na sua visão, o fascismo italiano, ao contrário do que

alguns estudiosos defendem, foi um fenômeno político moderno, antimarxista, antiliberal,

nacionalista, revolucionário, organizado em partido milícia, com uma concepção totalitária,

uma ideologia ativista e anti-teórica, viril e anti-hedonista, com fundamentos míticos,

sacralizado como uma religião laica, afirmando o primado absoluto da nação, homogenia e

organizada num Estado corporativista (GENTILE, 2004, p. 16-17). Para o autor, seria preciso

recuperar a particularidade do fascismo italiano e rebater concepções relativistas que

buscavam diminuir as consequências negativas de suas ações. Tanto o fascismo quanto o

nazismo opuseram-se à modernidade racionalista, liberal e democrática, propondo uma

modernidade antagonista, totalitária e nacionalista, baseada na militarização e na sacralização

da política, onde o indivíduo estaria totalmente submetido ao Estado (GENTILE, 2004, p. 16).

Assim, o ser fascista se constituiria pela crença e pela militância. Ele compreende que o

fascismo, de forma genérica, não pode ser considerado como “autenticamente

internacionalista”, ao contrário do comunismo. Isso, por conta de sua matriz nacionalista e

racista (GENTILE, 2004, p. 98). De forma categórica, o fascismo italiano e o nazismo são

contrários a tradição Iluminista. Mesma postura adotada por Carl Schmitt nos escritos

analisados neste trabalho. Onde o fundador da teoria decisionista do político nega: a

universalidade da humanidade e a igualdade de todos perante a própria lei.

O interesse pelo fascismo italiano, por Carl Schmitt, pode ser constatado ainda na

década de 1920. Mesmo que alguns comentadores defendam a ideia de que esse jurista apenas

tenha se tornando um intelectual engajado ao nazismo após 1933, o fascismo se constituía

num movimento no qual os pensamentos de Schmitt sobre a força do Estado, a crítica ao

Direito Natural e ao universalismo humanista tomavam o campo da prática política e de

governo. A mudança histórica e as particularidades dos povos, em períodos históricos

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distintos, fazem parte do aparato conceitual schmittiano. Ao realizar uma resenha ao texto de

Erwin Von Beckerath, intitulado Wesenund Werdendesfaschistischen Staates, Carl Schmitt

apresentou alguns prognósticos sobre o ser e o porvir do Estado fascista, em 1929. Salienta o

autor que o escrito analisado é um dos principais textos sobre o assunto, em língua alemã,

longe dos entusiasmos dos apoiadores e da ira dos opositores – uma obra de nível científica

clara e objetiva. Carl Schmitt retoma a crítica à condição política e constitucional alemã da

República de Weimar, para ele, baseada em uma condição histórica que não mais existe,

advinda dos contextos de 1789 e 1848. Seriam os Estados mais industrializados que ainda

adotavam esse modelo, desconexo com as mudanças em suas estruturas econômicas e sociais.

Por outro lado, a Itália e a Rússia adotavam, nesse contexto, as constituições fascista e

bolchevique, que para ele “[...] son por demás modernas, unas verdaderas “constituciones

económicas” en este sentido, es decir, en lo concerniente al reconocimiento de los nuevos

problemas económicos y sociales por parte de la organización estatal [...]” (SCHMITT, 2001,

p. 78). As duas novas formas de governo se distanciavam do ideal liberal de sociedade, de

liberdade econômica e organização política.

Nesse sentido, o então Estado industrial moderno e desenvolvido haveria para o autor:

[...]la característica fundamental de que el patrón y el trabajador se enfrentan

como dueños más o menos del mismo poder social, de que ninguno de estos

grupos, en todo caso es capaz de imponer una decisión radical al otro sin que

se suscite una devastadora guerra civil, no es posible tomar decisiones

sociales ni efectuar cambios fundamentales en la constitución por vía legal, y

todos los elementos de Estado y gobierno constituyen más o menos un

tercero neutral (y no superior, capaz de tomar decisiones a raíz de su fuerza y

autoridad inmanentes […] (SCHMITT, 2001, p. 78).

Notamos nesse fragmento pontos cruciais do discurso político do fascismo e do nazismo a

respeito do Estado liberal. Podemos perceber a preocupação de Carl Schmitt perante a

fraqueza, segundo ele, desse modelo de governo, as divergências sociais internas em ponto de

eclosão de uma guerra civil e o mais importante: a incapacidade de algum grupo tomar uma

decisão radical. Em síntese, o Estado fascista não toma decisão como terceiro neutral, mas

como terceiro superior – nisto, segundo Schmitt, residiria sua supremacia.

Essa “energía y fuerza nueva” do fascismo italiano adviria da energia individual de

Benito Mussolini, do entusiasmo nacional, do movimento dos veteranos de guerra entre

outros. Carl Schmitt compreende nesta resenha que aversão fascista ao elezionismo, ao

pluralismo partidário, ao voto secreto e individual, que colocam em perigo “a essência do

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Estado” não são atos antidemocráticos. Seriam, então, atos contrários ao modelo liberal do

século XIX. Especificamente no escrito schmittiano em questão, o autor expressa que as

ideias fascistas, no âmbito ético e estatal, pertencem a um ambiente de fraude ideológica

percebida e odiada por milhões de pessoas, praticadas pelo liberalismo. Nesse sentido:

[...] El espíritu Del fascismo parte igualmente de aquel sentimiento de

defraudación que desde el siglo XIX se observa en todas partes, no

constituye sólo un afecto proletario, y desde Guerra Mundial se ha

manifestado con mayor fuerza en países latinos que en Alemania. Con la

sinceridad propia de la antigüedad, el Estado fascista quiere volver a ser

Estado, con autoridades y representantes visibles, no fachada y antecámara

de mandatarios y patrocinadores invisibles e irresponsables […] (SCHMITT,

2001, p. 80-81).

Nesse fragmento podemos ver que os pontos apresentados por Schmitt sobre o espírito do

fascismo se entrelaçam com suas ideias expostas nos escritos do entreguerras, à sua crítica a

democracia liberal, a corrupção e aos agentes invisíveis, representantes partidários.

Lembramos que Carl Schmitt considera que tanto o fascismo quanto o governo bolchevique

buscam superar o modelo liberal, por meio de um maior controle do Estado sobre os

indivíduos e a sociedade. Mas para ele, o fascismo se sente superior ao socialismo marxista

pelo fato deste possuir “[...] el concepto socialista de la humanidad y su monismo ideológico-

abstracto-fantástico [...]” (SCHMITT, 2001, p. 81). Seriam estes, segundo o autor, uma

herança que o socialismo manteria do caráter liberal, em sua busca pelo poder estatal. Diz

ainda que:

[...] el fascismo cree haber superado por reconocer, con la simplicidad propia

del pasado antiguo, el pluralismo concreto de los pueblos y las naciones, de

las muchas burguesías diferentes y del gran número de proletariados

distintos, y por saber que el pueblo italiano sólo conservará su forma

concreta de ser nacional a través de un esfuerzo de voluntad política

(SCHMITT, 2001, p. 81).

Observa-se que tanto Schmitt quanto o fascismo por ele apresentado negam a universalidade

humana herdada do Iluminismo. Por fim, a ação política concreta exposta busca a

conservação do ser nacional, pela imprescindível vontade política do povo italiano.

Por outro lado, o filósofo marxista brasileiro Leandro Konder, ao refletir sobre o

assunto em sua obra Introdução ao fascismo – produzida durante o período de Guerra Fria –

define o fascismo como:

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[...] uma tendência que surge na fase imperialista do capitalismo, que

procura se fortalecer nas condições de implantação do capitalismo

monopolista de Estado, exprimindo-se através de uma política favorável à

crescente concentração do capital; é um movimento político de conteúdo

social conservador, que se disfarça sob uma máscara “modernizadora”,

guiado pela ideologia de um pragmatismo radical, servindo-se de mitos

irracionalistas e conciliando-os com procedimentos racionalistas-formais de

tipo manipulatório. O fascismo é um movimento chauvinista, antiliberal,

antidemocrático, antissocialista, antioperário. Seu crescimento num país

pressupõe condições históricas especiais, pressupõe uma preparação

reacionária que tenha sido capaz de minar as bases das forças potencialmente

antifascistas (enfraquecendo-lhes a influência junto às massas); e pressupõe

também as condições da chamada sociedade de massas de consumo dirigido,

bem como a existência dele de um certo nível de fusão do capital bancário

com o capital industrial, isto é, a existência do capital financeiro (KONDER,

2009, p. 53).

Leandro Konder e Emilio Gentile apresentam pontos de aproximação em suas caracterizações

sobre o movimento fascista. Porém, o primeiro se detêm muito mais as questões materiais que

envolvem o fascismo, suas relação com seguimentos industriais e o uso das massas no jogo

político-econômico. O segundo se dedicou a essas temáticas, mas se aprofundou na questão

cultural do movimento fascista, em particular do italiano, demonstrando sua relação com

diversos segmentos sociais, inclusive com as vanguardas culturais italianas, como exemplo do

Futurismo. Leandro Konder vê o fascismo como um movimento reacionário conservador,

Emilio Gentile, de forma diversa, concebe o fascismo como um movimento revolucionário,

que busca criar uma civilização nova, com apego à tradição e ao passado glorioso, mas com a

finalidade de criar o homem novo, para um Estado Novo. O fascismo, para Gentile, por meio

de sua análise histórica, projetou-se como uma terceira via ao mundo liberal e ao socialismo e

comunismo. Partindo de uma mesma pergunta, eles chegaram a resultados diversos, seja pelo

contexto histórico de sua escrita, seja pelos referenciais e fontes trabalhadas.

Percebe-se que para os fascistas, o Estado tinha um papel fundamental na criação do

novo mundo, do novo homem, ou na condução da nação escolhida para comandar as outras.

Buscava-se estabelecer um Estado forte, que não tivesse limites, ou seja, o primado do

político, como argumenta Emilio Gentile. Para esse autor, para se compreender o fascismo,

não basta conhecer as suas concepções ideológicas. Faz-se necessário investigar as suas

instituições, formas de organização e os seus comportamentos (GENTILE, 2004, p. 422). A

crítica nazi-fascista ao liberalismo econômico, ao Estado liberal parlamentar, sua fraqueza

estrutural causada pela corrupção de seus membros, seria superada por um Estado de novo

tipo. A pujança imperialista desse estado tem se espelhado nos gloriosos feitos do povo

italiano de um lado, e do povo germânico de outro. “[...] O Estado, assim concebido,

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apresenta-se como fator de coesão nacional, capaz de reerguer a Nação e restaurar a

identidade nacional dilacerada pelas lutas ensejadas pelo regime liberal [...]” (DA SILVA,

2000, p. 133). Existe um sentimento de traição interna, e recuperar a grandeza desses povos se

torna a missão do fascismo.

Além disso, a transformação da sociedade possui espaço nas discussões fascistas. O

termo revolução, segundo Francisco J. Calazans Falcon, após a Primeira Guerra Mundial foi

reapropriado por novos grupos, tomando novos matizes.

Na prática, ela deixou de ser um monopólio dos partidos e movimentos de

esquerda e passou a freqüentar também o ideário de direitistas,

conservadores ou radicais, adversários da revolução vermelha, bolchevique,

mas partidários de algo que ora denominaram de terceira revolução, ora de

verdadeira revolução, situada como capaz de ultrapassar o dilema

liberalismo X comunismo (FALCON, 2008, p. 21).

Os fascismos fizeram uso de termos clássicos da esquerda, e como demonstra o autor,

desejavam superar os conflitos sociais internos do Estado, ou seja, a luta de classes. Pois, esta

tornava a nação mais fraca aos perigos externos. Para o sociólogo Michel Mann, “[...] A

nação e o Estado formavam seu centro de gravidade – não as classes (...) Fascistas tenderam a

atacar não o capitalismo per se, mas o capitalismo financeiro, estrangeiro ou judeu [...]”

(MANN, 2008, p. 32). Essa tendência do fascismo, para o autor, levou o conflito mais para

com a esquerda do que para com a direita. Ao prognosticar o futuro do fascismo italiano, Carl

Schmitt, questiona-se a quem esse modelo de governo acabaria por ser cooptado: os interesses

capitalistas dos patrões ou aos dos trabalhadores socialistas. A esse respeito, diz-nos: “[...]

supongo que a larga favorecerá a los trabajadores, porque hoy día éstos son el pueblo y el

Estado representa la unidad política del pueblo. Sólo un Estado débil es el siervo capitalista de

la propiedad privada […]” (SCHMITT, 2001, p. 79)16

. Parece-nos que a previsão não se

concretizou. Sabemos que o fascismo italiano investiu na melhoria dos padrões de vida dos

trabalhadores nacionais, mas o Estado fascista teve sua existência interrompida em

decorrência do choque com as potências rivais, em sua política expansionista, durante a

Segunda Guerra Mundial.

Se a democracia é ameaçada, segundo as concepções fascistas, pelas tensões inerentes

da sociedade moderna, ela deve ser assegurada por meios prescritivos, pois: “[...] a ameaça

16

Conferir em Emmanuel Faye a crítica de Martin Heidegger a Bismarck sobre a questão dos trabalhadores. Para

aquele, um dos maiores erros deste haveria sido não haver conseguido integrar os trabalhadores ao Segundo

Reich. Uma característica própria do Nacional-Socialismo, em espacial, do Führer Adolf Hitler (FAYE, 2015).

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passa a ter então a forma de uma religião política, mais do que uma religião civil, a qual pode

tomar, de agora em diante, a seu turno aspectos autoritários e integristas, para se transformar

numa religião política”17

(GENTILE, 2004, p. 316)18

. Destaca-se o surgimento de uma

religião política, em detrimento da substituição de uma religião civil, onde os fascismos

realizaram uma sacralização da política, com os mitos, os rituais e os símbolos, com o intuito

de formar militantes engajados aos ideais fascistas, havendo uma total submissão ao partido e

ao líder. A mitificação do político, como religião política “[...] era puramente política, não

teológica” (GENTILE, 2004, p. 320)19

– no caso italiano. Nesses termos, “o fascismo refutava

explicitamente o racionalismo e exaltava o pensamento mítico como uma atitude mental e

instrumento de técnica política” (GENTILE, 2004, p. 340)20

. A recusa do racionalismo e a

exaltação do pensamento mítico, para o autor, não é por uma incapacidade ou inferioridade

intelectual. Mas por uma opção de ação política, utilizando-se dessa tendência como

diferencial na luta política. Em sua especificidade histórica, o fascismo italiano foi “[...]O

primeiro movimento nacionalista do século XX a se servir do poder de um Estado moderno

para institucionalizar uma religião política e elevar milhões de homens e de mulheres no culto

da nação e do Estado como valores supremos e absolutos”(GENTILE, 2004,p. 353)21

. Com o

Duce na liderança do Partido Nacional Fascista, o movimento fascista passou a controlar o

Estado italiano em 1922. A partir desta data, o fascismo se apodera das instituições legais, que

não é o nosso foco nesse momento. A fragilidade da democracia, mais especificamente, a

parlamentar, é uma das temáticas presentes nos escritos de Carl Schmitt, entre 1919 a 1933,

como veremos posteriormente.

O período pós-Grande Guerra Mundial é considerado de crises para todos os

estudiosos que analisamos até aqui. Essas crises, em suma, fizeram com que:

[...] metade do continente mais desenvolvido do mundo se viu em um ataque

político conservador dos partidos de classes, liderados por um antigo regime

exercendo alguma repressão do Estado, combinado com o apoio dos partidos

políticos de massa com ideologias nacionalistas e estadistas. Esse

17

Os textos em língua francesa serão citados em traduções livres no corpo do texto e em seu original em notas de

rodapé. 18

“[...] la menace tient alors à la présence d’une religion politique, plutôt que d’une religion civile, laquelle peut

cependant prendre à son tour desaspects autoristaristes et intégristes, pour se transformeren religion politique”

(GENTILE, 2004, p. 316). 19

“[...] était exclusivement politique, non pás théologique” (GENTILE, 2004, p. 320). 20

“Le fascisme réfutait explicitement le racionalisme et exaltait la pensée mythique comme attitude mentale et

instrument de technique politique” (GENTILE, 2004, p. 340). 21

“le premier mouvement nationaliste du XXe

siècle à se servir du pouvoir d’un État moderne pour

instutionnaliser une religion politique et élever des millions d’hommes et de femmes dans le culte de la nation et

de l’État comme valeurs Supremes et absolues” (GENTILE, 2004,p. 353).

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movimento surgiu principalmente das crises políticas, embora o poder

militar fosse o seu principal meio de chegar ao poder (MANN, 2008, p. 35).

Caracteristicamente, “[...] Nenhum movimento fascista era simplesmente um partido político

– eram sempre uniformizados, marchando, armados e perigosos [...]” (MANN, 2008, p. 32).

Michel Mann identificou “quatro fontes de poder social” nas sociedades: político, ideológico,

militar e econômico. No quadro de crise apresentado pelos fascismos, em sua concepção, eles

se engajaram em todos, apresentando-os respostas a todos.

O fascismo, sendo um conceito impactante, com uma carga histórica e sentimental,

corre o risco de perder sua especificidade histórica e ideológica. Francisco J. Calazans Falcon,

ao citar Lucien Febvre, questiona a postura de alguns estudiosos que tratam do termo como

“uma essência ou entidade a-histórica”, no que o último denominou de “ideias descarnadas”.

Falcon refere-se “[...] aos intelectuais que se remetem a uma suposta natureza fascista

definida como própria essência de diferentes regimes, que poderiam ser mais bem definidos

em termos de autoritários ou ditatoriais [...]” (FALCON, 2008, p. 11). De forma geral, os

autores apresentados nesta parte do trabalho concordam da necessidade de um refinamento do

conceito fascismo, tanto ao que se circunscreve ao período, quanto ao seu sentido. Outro

ponto polêmico seria o conceito Totalitarismo, que segundo Falcon, é contemporâneo aos

movimentos fascistas e surgiu fora das discussões marxistas. Assim:

[...] O conceito de totalitário surge, historicamente, no processo mesmo da

produção de uma autoconsciência fascista – o stato totalitário representava o

objetivo maior do fascismo italiano, constituindo, segundo Mussolini, um

tipo de Estado capaz de aglutinar todos os cidadãos e grupos sociais, tendo

como instrumento de tal integração o partido fascista ou, no caso alemão

(Schieder, 1975, p. 124), o partido nacional-socialista (FALCON, 2008, 17).

Para Falcon, o conceito teria como função apresentar o caráter totalitário encanado pelo

Estado, identificando ao mesmo tempo o nacional-socialismo germânico e o regime estalinista

soviético, o que é contraposto pela vertente marxista. Por outro lado, Gentile foi contrário aos

teóricos do Totalitarismo que argumentavam que, na Itália, o governo fascista não houvesse

sido totalitário. A sua obra teria como missão demonstrar o caráter totalitário do fascismo

italiano. Este autor questiona uma tendência a desfastização do movimento e do governo

fascista na Itália a partir dos anos de 1960.

A produção intelectual de Carl Schmitt é muito ampla. A sua capacidade intelectual

está longe de uma produção sem importância – mas passível de muitas críticas, podendo ser

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proscrita principalmente sobre as questões autoritárias e a aniquilação física dos inimigos. O

que pôde legitimar, por exemplo, o extermínio em massa dos judeus sobre o Nacional-

Socialismo22

. As suas observações sobre a teoria política e jurídica, ofereceram-lhe a fama de

ser considerado o mais proeminente jurista alemão do século XX. Da mesma forma que

história da Alemanha do século XX está marcada pelas consequências do nazismo, a trajetória

de Carl Schmitt também compartilha desse legado malquisto. A brutalidade do nazismo não

pode ser esquecida, muito menos quem cooperou com ela deve ser poupado de suas

vinculações23

. Porém, da mesma forma que a Alemanha do século XX é muito maior do que a

experiência nazista, a vida e obra de Carl Schmitt também o são – isso sobre a análise de sua

produção intelectual anterior e posterior. Mas a relativização desses processos não podem se

constituir num apagamento – devem servir apenas para dinamizar a interpretação histórica. A

reflexão sobre esse legado schmittiano é diversamente ampla, entre partidários e opositores, e

se expressa em diversas línguas. É sobre a sua trajetória intelectual que nos dedicaremos a

seguir.

Sob o estigma do engajamento: Carl Schmitt e a sua trajetória intelectual

“Este livro, fruto sem reservas de árduas

experiências, o deposito no altar da ciência do

direito, uma ciência a que servi por mais de

quarenta anos. Não posso prever quem irá se

apoderar-se de minha oferenda, se será um homem

de pensamento ou um homem de capacidade

prática, se será um demolidor que viola e

desrespeita o estatuto de asilo. Os destinos de um

livro não estão nas mãos do autor, tampouco seu

destino pessoal, apenso àqueles.”

(Carl Schmitt, O nomos da Terra no direito das

gentes do jus publicum europaeum)

22

O princípio da alteridade presente nos escritos schmittianos pode legitimar movimentos extremistas na

atualidade, sejam de cunho político ou religioso. Nesse ponto esse escritos não podem ser simplesmente aceitos,

pois contrariam os princípios humanitários da Declaração Universal dos Direitos Humanos, estabelecidos pela

ONU, em 1948. Na realidade, já se constituíam como uma contraposição aos princípios da Liga das Nações,

criada em 1919. 23

Partilhamos da postura do filósofo francês Emmanuel Faye, pois não é com a censura de textos

comprometidos com a causa nazista que poderemos resguardar o futuro de novos movimentos inspirados nesses

escritos. Mas, sim, como salienta ele, identificar essas obras e seus autores, realizando uma crítica aos seus

pressupostos.

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O pensador alemão Carl Schmitt é um dos muitos seres humanos que vivenciaram

uma era turbulenta e sangrenta, marcada pela intolerância e pela tecnicidade – denominada

por Eric Hobsbawm, de a Era dos Extremos. Como profissão, a carreira jurídica foi sua opção,

o Direito Público e o Direito Internacional seus campos de atuação. Trabalho desenvolvido

com dedicação, sendo considerado não só um jurista, mas um pensador, dada a complexidade

e domínio de saberes diversos em seus escritos. O acaso tem seu lugar na história, mas

sabemos que os agentes sociais têm em suas mãos a capacidade trilhar caminhos diversos.

Como ele mesmo salienta, em sua vida, foram árduas as experiências. Como produtor de

conhecimento, teórico do poder soberano, por suas ideias – tanto no interior quanto no

exterior da Alemanha – milhares de seres humanos sofreram os efeitos danosos decorrentes da

ação prática de suas ideias. Seus escritos, depositados no “altar da ciência do direito” ainda

influenciam a política, tanto em âmbito interno de alguns países, quanto no âmbito

internacional.

Carl Schmitt, em sua autobiografia intitulada Ex Captivitate Salus, apresenta-se como

um visionário, da mesma forma como Alexis de Tocqueville o foi, na sua compreensão –

chegando a denominar este como seu amigo. Neste livro, Schmitt diz que por meio da

tenacidade do pensamento de Tocqueville, este pôde compreender a nova estrutura de poder

mundial que viria a existir. Sendo os Estados Unidos da América e a Rússia como as grandes

potências mundiais – num mundo em que os países europeus ainda exerciam um poder

hegemônico pelo mundo. Sobre a perspicacia de Alexis de Tocqueville, diz-nos:

[...] Es sorprendente cómo su mirada penetra la superficie de las

revoluciones y de las restauraciones para alcanzar la médula decisiva de la

evolución que se gesta tras los frentes y consignas contradictorias, evolución

que utiliza a todos los de derecha e izquierda para empujarlas cosas hacia

una centralización y democratización crecientes (SCHMITT, 1994, p. 29).

Tocqueville haveria então compreendido que as sociedades caminhavam para a

democratização, onde a política de massas se tornaria a força política do mundo

contemporâneo. Da mesma forma que atribuir a Alexis de Tocqueville a façanha de haver

descoberto os rumos da política internacional a partir das revoluções burguesas e suas

contrarrevoluções, Carl Schmitt acreditava ter alcançado o mesmo – haveria ele assimilado a

nova estrutura política mundial. Segundo Schmitt, Tocqueville foi incompreendido em seu

tempo, da mesma forma que ele o era, estando inclusive encarcerado (SCHMITT, 1994).

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Mas, se Alexis de Tocqueville havia sistematizado a nova composição política em

centralização e democratização, tendo as massas como peças chaves na formação do poder

político e da estabilidade do Estado contemporâneo, qual seria então a nova força política

encontrada por Carl Schmitt? A política de exceção. Segundo o filósofo Giorgio Agamben, a

exceção é de difícil conceituação. Esta tem uma relação próxima com a insurreição, à guerra

civil e a resistência. Para ele, os três últimos anos da República de Weimar já eram marcados

pelo governo sobre o Estado de exceção. O Terceiro Reich seria do ponto de vista jurídico,

um Estado de exceção que perdurou por doze anos. Haveria então surgido uma tendência

voluntária, por parte dos Estados contemporâneos, incluindo-se os democráticos, a evocarem

estado de emergência permanente. Nesse sentido, acrescenta o filósofo:

Diante do incessante avanço do que foi definido como uma “guerra civil

mundial”, o estado de exceção tende cada vez mais a se apresentar como o

paradigma de governo dominante na política contemporânea. Esse

deslocamento de uma medida provisória e excepcional para uma técnica de

governo ameaça transformar radicalmente – e, de fato, já transformou de

modo muito perceptível – a estrutura e o sentido da distinção tradicional

entre diversos tipos de constituição. O estado de exceção apresenta-se, nessa

perspectiva, como um patamar de indeterminação entre democracia e

absolutismo (AGAMBEN, 2004, p. 13).

A política da excepcionalidade foi um dos grandes objetos de estudo de Carl Schmitt. Para

ele, a exceção não pode ser normatizada24

. Esse novo “paradigma” teria a técnica como base

das ações políticas.

Como já foram apresentados, os estudos sobre a história intelectual de um personagem

histórico se diferem em alguns aspectos metodológicos de outras formas de escrita histórica.

Mas, como afirma Michel de Certeau, em A Escrita da História, o lugar social do historiador

é uma das peças chaves da construção do discurso histórico. Falando sobre Carl Schmitt, os

discursos sobre suas obras confirmam a constatação de Certeau25

. De acordo com o tempo sua

produção, as obras críticas ao pensamento schmittiano e a sua biografia estão inseridas em

disputas ideológicas em alguns momentos, de reconquista dos seus escritos como material de

legitimação em obras tidas como revisionistas (HABERMAS, 1994; KERVÉGAN, 2006). E 24

O Estado de exceção e o Estado Total serão discutidos e analisados com maior profundidade no terceiro

capítulo desse trabalho. 25

Não buscamos identificar Carl Schmitt como historiador, pois já apresentamos suas funções intelectuais e

profissionais anteriormente. Desejamos demonstrar que o lugar social discutido por Michel de Certeau não

interfere apenas no ofício do historiador, mas também nas outras funções, como de juízes e professores

universitários. Mesmo aos juristas, que buscam produzir um discurso neutro e impessoal, como reflete Pierre

Bourdieu, objetivando-se a neutralização e a universalização na linguagem jurídica (BOURDIEU, 1989, p.

2015).

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até mesmo por pensadores de esquerda, o que Mark Lilla nos apresenta como “scmittianismo

de izquierda”, durante os anos setenta, no contexto do radicalismo político na Alemanha.

Nesse contexto, Carl Schmitt saiu do ostracismo pós-guerra, segundo Mark Lilla, e em seus

últimos vinte anos de vida, quase todos os meses novos livros sobre o intelectual surgiam. A

Nova Direita europeia também se voltou aos escritos schmittianos, a exemplo de Gianfranco

Miglio e Alain Benoist (LILLA, 2004, p. 63). Esse fenômeno pode ser compreendido pela

ideia expressa por Norberto Bobbio, em seu livro Direita e Esquerda, onde a extrema direita e

a extrema esquerda podem compartilhar formas de ação e ferramentas de luta política, em

virtude do caráter extremo de suas intenções (BOBBIO, 2011a).

Ressaltamos que Carl Schmitt produziu seus escritos por meio de uma postura

histórica, chegando a refletir sobre a história dos vencidos e dos vencedores. Seu discurso é

permeado por uma historicidade, esse tempo caracterizando:

[...] a determinação do sentido político da história mundial depende

inteiramente do desenrolar de um combate quase mitológico que no qual se

enfrentam, de um lado as forças ‘aceleradoras’ do curso histórico, que

conduzem o Estado moderno para a ‘crise’ e que semeiam o caos como o

Anticristo na economia cristão de salvação e, por outro lado, as forças ‘de

conservação’ que mantém o fim dos tempos históricos e que preservam a

integridade do mundo terreno [...] (STORME, 2013, p. 121)26

.

Vemos aqui uma historicidade trágica e mitológica, onde a salvação do espírito europeu para

Carl Schmitt, segundo Tristan Storme, dependeria de uma tomada de posição desse espírito,

ou seja, de resistência ao processo autodestruidor promovido pelo pensamento liberal

moderno, de caráter técno-econômico.

Todos os autores apresentados identificam, com conceituações distintas, a trajetória de

vida como um fator preponderante para o desenvolvimento do pensamento singular de cada

intelectual. Sendo assim, desde a criação familiar, pertencimento a um determinado credo

religioso, região ou nacionalidade, engajamento político, posição social, dentre outros

elementos, servem como balizas positivas ou negativas27

para a formação do pensamento de

26

« la détermination du sens polítique de l'histoire modiale dépend entièrement du sort d'un combat quasi

mythologique que se livrent, d'une part, les forces "accélératrices" du cours historique, que précipitent l'État

moderne vers la "crise" et qui sèment le chaos à l'instar de l'Antéchrist dans l'économie chrétienne du salut, et,

d'autre part, les forces "freinantes", qui retiennent la fin des tempes historiques et qui préservent l'intégrité du

monde ici-bas » (STORME, 2013, p. 121). 27

Balizas essas sempre qualificadas segundo aos parâmetros morais e filosóficos do receptor, ou daquele que

analisa dada trajetória de vida – o conhecimento construído e vivenciado.

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dado intelectual, ou, em casos mais amplos, de correntes intelectuais (BOBBIO, 1997;

HOBSBAWM, 2013; SIRINELLI, 2003).

Durante sua vida, Carl Schmitt, presenciou profundas e traumáticas transformações no

campo sociopolítico alemão28

. Nascido em 11 de julho de 1888, em Plettenberg (cidade

situada na região da Renania-Wesfalia), pertencente a uma família católica, numa região

predominantemente de protestantes. Desde pequeno Schmitt pudera vivenciar as tensões e as

diferenças existentes no conflito entre católicos e protestantes. Em 1907, começou a cursar a

faculdade de jurisprudência, na Real Universidade Friedrich-Wilhelm, em Berlim. Sendo um

“[...] adolescente católico en la metrópoli protestante, practicante de una religión en el mundo

secularizado del Estado guilhermino y recién llegado dentro del monolítico ambiente de los

mandarines académicos” [...] (AGUILAR, 2001, p. 10). Sua vida acadêmica, segundo Héctor

Orestes Aguilar, é trilhada por dois semestres em Berlim, outro em Munique e três em

Estrasburgo. As ideias expostas em seus escritos variam de acordo as transformações da

conjuntura histórica. Elaborou em suas obras uma crítica ao sistema liberal-burguês de

governo, principalmente sobre sua neutralidade e fragilidade frente ao excepcional, sendo

que, em sua lógica, as mudanças no quadro político, entre os séculos XIX e XX, inseriram as

massas no jogo político dos Estados nacionais. Então, o sistema liberal por não poder fazer a

distinção entre amigo-inimigo estaria fadado a desaparecer. Ao mesmo tempo em que

questionou o modo liberal-burguês de governar, passou a fundamentar um novo modelo de

Estado, o Estado Total. A capacidade argumentativa, apresentando uma lucidez teórica,

segundo seus comentadores mais favoráveis, fez de Carl Schmitt um dos grandes pensadores

antiliberais do século XX.

Contudo, sua obra política até os anos de 1980 esteve estigmatiza ao grupo dos

“intelectuais malditos”. A adesão e a defesa, por Carl Schmitt, das políticas implantadas pelo

Nacional-Socialismo na Alemanha pós-1933 é indiscutível – como já foi dito sobre sua

filiação ao NSDAP neste ano – onde passou a produzir textos alinhados com os ideais

nazistas, como um intelectual orgânico do movimento. Porém, como ressalta Hans Georg

28

Ressaltamos que Carl Schmitt não apenas demonstrou querer “sobreviver” ao fenômeno do nazismo, pelo

contrário, ele foi promotor desse fenômeno ao menos, nos anos de 1930. Como demonstrou Emmanuel Faye,

juntamente com Heidegger, Carl Schmitt promoveu a nazificação do direito. Do mesmo modo, Heidegger

buscou de uma forma pioneira implementar o Führerprinzip (princípio do Führer) na universidade de Friburgo

durante o seu reitorado, entre 1933-1934. Sendo assim: “[...] Esse fato capital nos prova que Heidegger não é

somente um nazista que consente, como é o caso no que se refere à legislação, mas também um nazista muito

ativo, que persegue com sucesso um fim político preciso” (FAYE, 2015, p. 110). Caracterizando-se como uma

luta “contra o espírito não alemão”. Como reitor, segundo Faye, Heidegger escreveu uma carta a Carl Schmitt

em 22 de agosto de 1933 (sem resposta de Schmitt em forma documental até o momento), para auxiliar no

enquadramento do direito da Universidade de Friburgo ao novo contexto do Füherprinzinp (FAYE, 2015, p.

149).

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Flickinger, há uma produção anterior com significativa importância para o pensamento

político e para o ordenamento jurídico. Sem dúvidas, os escritos schmittianos constituem um

corpus documental que retrata os ideais antiliberais, forjados no âmbito do pensamento de

direita, e historicamente entrelaçados com o nazismo histórico29

. Carl Schmitt faleceu em 7 de

abril de 1985, em sua cidade natal, tendo uma longa trajetória de produção intelectual – que

trataremos no terceiro capítulo – tendo sua vida marcada pelo explosivo século XX.

Nem vencedor, nem vencido: a História por contradições

“Hay que preguntar en qué medida un poderoso es

capaz de manejar la productividad intelectual de un

pueblo de manera que no quede ningún

pensamiento libre y ninguna objeción. La

posibilidad de un totalitarismo total, cien por cien,

es un problema sociológico de primer orden.” (Carl

Schmitt, Ex Captivitate Salus).

O problema da relação entre o saber e o poder é atualmente objetivo de diversas

reflexões. Desde história em quadrinhos, obras literárias, obras de arte e trabalhos científicos.

O saber é poder. Por outro lado, aquele que possui o poder de não permitir que os outros

saibam e que oculta dados, que manipulam esses com a finalidade de expressar a sua vontade,

demonstra outra forma de poder. O domínio das ideias nos Estados totalitários é uma questão

essencial para a manutenção da ordem totalitária. Mas, mesmo nestes regimes o conhecimento

pode se transformar em arma de luta contra a dominação. As ideias divergentes, nos governos

autoritários e totalitários são motivo de perseguição, retificação e de aniquilação física. A

propaganda e a violência de Estado são elementos característicos de controle e de ampliação

dos ideais totalitários no mundo contemporâneo (ARENDT, 1989). O turbilhão totalitário não

consegue, ao menos num curto espaço de tempo, exterminar as ideias dissonantes

constitutivas dos mais diversos grupos e indivíduos numa dada sociedade.

Os intelectuais, como já analisamos, têm como algumas de suas funções sociais as de

pensar, refletir, organizar e reorganizar o mundo ao seu redor. Produtores e reprodutores do

29

Compreendemos por nazismo histórico – segundo a compreensão do historiador Francisco C. Teixeira da

Silva –, como sendo o período em que este, sobre a bandeira do NSDAP esteve no comando do poder sobre a

Alemanha Nazista (1933-1945), distinguindo-se dos movimentos neonazistas de fins do século XX aos dias

atuais.

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conhecimento, esses agentes sociais vislumbram um mundo virtualmente novo (ou se

encantam pelo glorioso passado, se apegando as tradições), em um mundo onde as

contingências poucas vezes permitem que certos ideais se tornem prática no mundo real. O

saber, a inteligência e o conhecimento são elementos que compõe a experiência intelectual.

Mas, eles podem se separar da moral? Ou seja, existiria uma razão neutra capaz de fazer com

que os homens de cultura não deixassem que os seus medos, desejos e a busca do poder pelo

poder fizessem de seu trabalho intelectual um mecanismo de controle e de destruição – “em

direção à destruição total”? Avaliando estas condições humanas, Norberto Bobbio nos

demonstra a relação que há entre o saber científico e a ideologia. Precisaríamos considerar,

segundo o autor:

[...] por um momento os dois polos opostos entre os produtos da inteligência

humana: a ciência e a ideologia (opostos na medida em que se entenda por

ciência toda forma de saber teórico e, por ideologia, um saber que tem por

finalidade a proposição e a justificação de ideais práticos) [...] (BOBBIO,

1997, p. 96).

Os intelectuais, segundo Bobbio, são dotados de um poder social baseado na sua função de

homens de cultura. E este poder os tornaria arrogantes, caso estes homens de cultura não

compreendessem que o poder, mesmo o intelectual, tem seus limites. Trata-se, então, de

entender “[...] que o poder da inteligência humana é hoje enorme, e precisamente por isso,

como todas as demais formas de poder, podem produzir se não estiverem controlados e

limitados, efeitos perversos” (BOBBIO, 1997, p. 96). Os intelectuais deveriam, então, refletir

sobre as responsabilidades e as consequências de suas próprias ações.

Contudo, precisamos levar em consideração, que essa avaliação por parte do

intelectual estaria condicionada a sua experiência de vida, que é singular para cada ser

humano, mesmo em sociedades totalitárias. Mas, todo o engajamento a um movimento – a um

ideal – não pode resultar em desculpa para as ações cometidas em seu nome. Carl Schmitt, em

sua autobiografia intitulada Ex Captivitate Salus, induz ao leitor a compreender que estaria

sofrendo perseguição, por parte dos Estados Unidos da América (os vencedores). Com isso,

em decorrência de seu status de vencido, onde as suas ideias como intelectual estariam

sofrendo censura. Parece querer reclamar a si um status diferenciado, ainda que

contraditoriamente (por em suas obras questionar a liberdade e o direito de discussão), visto

que evoca a si uma liberdade de expressão pelo caráter de sua função social: pesquisador do

Direito Público e do Direito Internacional. Alega residir aí o perigo do político, pois nelas

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“[...] concierne a problemas de alcance de la política interior e exterior. Por consiguiente, está

expuesto de manera inmediata al peligro de lo político [...]” (SCHMITT, 1994, p. 53). A

função desempenhada como jurista o redimiria de qualquer crime realizado graças a suas

ideias postas em ação, mesmo que por outros agentes? De tudo isso, podemos concluir que

Carl Schmitt acreditava, ou demonstrava existir, diferentes variáveis a liberdade de expressão,

a grupos sociais ou indivíduos específicos. Dada a ajuda oferecida pelo seu benfeitor, o

médico norte-americano Charles, que lhe forneceu os meios para que escrevesse suas

memórias, que segundo Schmitt, desrespeitou as ordens de que não se fornecessem meios

para que os presos pudessem escrever durante o cárcere – como relata no escrito referido.

Em nenhum momento, na sua autobiografia, Cal Schmitt parece se compadecer de

outros intelectuais, que durante a Ditadura Nazista foram privados de sua liberdade de

expressão, do direito de publicizar suas ideias – ou ainda das suas próprias vidas, mesmo estes

sendo especialistas em suas funções sociais. O exame de consciência conduz a uma mágoa

pelos rumos que os fatos conduziram o processo histórico. O risco do político é, na sua visão,

realizar sua função, e por esta, se considerado inimigo, como um simples criminoso de guerra.

Não acredita ser qualquer prisioneiro, mas o único jurista no mundo, naquele contexto, a ter

captado e experimentado a guerra justa em sua intensidade e profundidade, incluindo-se a

guerra civil (SCMHITT, 1994, p. 15).

Sabendo-se que Norberto Bobbio compreende os intelectuais como homens de cultura,

no seu livro Os intelectuais e o poder, ele pretende demonstrar as relações de forças existentes

entre o campo político e o campo intelectual. Argumenta que, em determinados momentos, a

autonomia da cultura é dilapidada pelos Estados autoritários e totalitários. Efetua-se uma

crítica à politização de todas as esferas sociais nestas formas de governo, onde “[...] A

redução de todas as esferas em que se desenrola a vida do homem em sociedade à política, ou

seja, a politização integral do homem, o desaparecimento de qualquer diferença entre o

político e – como se diz hoje – o pessoal, é quintessência do totalitarismo [...]” (BOBBIO,

1997, p. 80). São momentos de crise dos direitos fundamentais da liberdade expressão e de

pensamento, onde o nacionalismo e o monopartidarismo controlam e censuram a atividade

intelectual (utilizando-se de exemplos do século XX: os governos Nazifascistas da Europa

Ocidental e o governo Estalinista na União Soviética). Ao se refletir sobre os intelectuais no

século XX, necessita-se compreender que:

[...] Los regímenes fascistas y comunistas fueron recibidos con los brazos

abiertos por muchos intelectuales del oeste europeo a lo largo del siglo XX,

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así como por incontables movimientos de “liberación nacional” que se

convirtieron rápidamente en dictaduras en toda regla y llevaran la miseria a

los desafortunados pueblos de todo el mundo (LILLA, 2004, p. 22).

Isso não foi uma particularidade do oeste europeu, intelectuais ocidentais também

simpatizaram com os ideais destes movimentos, bem como no Brasil. E na busca de entender

o que levou a esses sujeitos ao se engajarem, salienta Mark Lilla, precisamos compreender o

porquê fizeram e como fizeram.

A relação existente entre o campo intelectual e o Estado, na visão de Bobbio,

constitui-se no fato de que os intelectuais não poderiam permitir que o Estado possuísse

outras formas de monopólio, além do monopólio da força. Logo:

[...] A força é tão necessária que sem aquele processo de monopolização da

força em que consiste o Estado, as sociedades humanas, ao menos até agora,

não poderiam sobreviver. Mas o único monopólio que cabe ao Estado é o

monopólio da força (é sempre melhor uma única força pública do que várias

forças privadas em contraste entre si). A primeira tarefa dos intelectuais

deveria ser a de impedir que o monopólio da força torne-se também o

monopólio da verdade (BOBBIO, 1997, p. 81).

Podemos observar que Norberto Bobbio compreende a função social do intelectual para além

das de produzir teorias e invenções. Há uma função social para com o campo político, que é

manter o horizonte social aberto às distintas formas de posturas políticas, científicas, culturais,

etc. Ou seja, que os intelectuais ajam para a manutenção da racionalidade e da tolerância. O

intelectual e o político não possuem, na visão do autor, as mesmas tarefas, distinguindo-as da

seguinte forma: “[...] a tarefa do intelectual é a de agitar idéias, levantar problemas, elaborar

programas ou apenas teorias gerais; a tarefa do político é a de tomar decisões [...]” (BOBBIO,

1997, p. 82). Outra diferença é que a ação política possui razões que a teoria desconhece e,

dentre as inúmeras propostas ideais, o político necessita decidir qual responderá melhor aos

fatos.

Norberto Bobbio defende a existência de dois tipos principais de intelectuais,

buscando-se responder a seguinte questão: “o intelectual age com base na ética da pura

intenção ou com base na ética da responsabilidade?” Pergunta suscitada a partir da reflexão

sobre a classificação de Max Weber sobre a atitude frente aos princípios, distinguidas entre “a

ética da convicção ou da pura intenção e a ética da responsabilidade” (BOBBIO, 1997).

Bobbio classificou em dois tipos ideais, por ele definidos: “[...] ideólogos e expertos,

compreendendo por ideólogos aqueles que fornecem princípios-guia (precisamente as

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ideologias) aos detentores do poder político atual ou potencial, e, por expertos, aqueles que

fornecem conhecimentos técnicos [...]” (BOBBIO, 1997, p. 97). A diferenciação é criada pelo

fato do autor acreditar haver uma distinção entre os dois grupos frente à responsabilidade,

onde os ideólogos estariam voltados à ética da convicção, e os expertos à ética da

responsabilidade. O termo responsabilidade é utilizado por Norberto Bobbio, em detrimento

do engajamento intelectual. Pois o termo engajamento, segundo ele, não conseguiu libertar os

intelectuais da subordinação, ou a diferentes formas de subordinação. Engajar-se, sobre a

ótica dele, “quer dizer pura e simplesmente tomar partido”. Haveria então, apenas “uma

contraposição entre engajamento e engajamento” (BOBBIO, 1997, p. 99).

Sobre a questão da ética e da política, Bobbio nos diz que no mundo moderno passou a

existir, entre os pensadores modernos, uma separação entre esses dois campos, que no mundo

ocidental significaria uma dualidade entre a moral cristã e a ação política. Outro fato seria a

defesa da existência de duas morais, uma moral na qual estão sujeitos os homens comuns e

outra, aos políticos, uma moral essencialmente política. Segundo o autor, a reflexão do

pensamento político moderno buscava justificar o contraste entre moral comum e moral

política (BOBBIO, 2011b). Questões morais e políticas permeiam o cotidiano dos seres

humanos e, em grande parte do tempo, esses dois aspectos da vida humana entram em

conflito, e é nos momentos limites da história humana que essas duas forças parecem expor

toda a sua energia.

É aceito que o pensamento político moderno buscou estabelecer os limites da moral

comum e da moral política que, segundo Bobbio, nas diversas vertentes existentes, pode se

caracterizar pelo predomínio da moral comum sobre a política, a união destas em uma só e os

momentos em que uma deva prevalecer sobre a outra. O que dá o aspecto geral dessas ações é

a busca de justificar o contraste entre as duas. Entendendo justificação como:

[...] A conduta que precisa ser justificada é que não está conforme às regras.

Não se justifica a observância da norma, isto é, a conduta moral. A exigência

da justificação nasce quando o ato viola ou parece violar as regras sociais

geralmente aceitas, não importa se morais, jurídicas ou do costume [...]

(BOBBIO, 2011b, p. 54).

Em essência, não há a necessidade de se justificar a obediência das normas, mas apenas aquilo

que é ou pode ser considerado como desobediência às mesmas. Para Bobbio, essa necessidade

de justificação nasce a partir de Maquiavel, singularmente com a formação do Estado

moderno, denominando-se como “razão de Estado”. Esse debate teria seu ápice durante o

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período das guerras religiosas, segundo o autor, concretizando-se na afirmação de que “[...] na

ação política, não são os princípios que contam, mas as grandes coisas” (BOBBIO, 2011b, p.

57). Grandes coisas que nessa lógica significariam para o maquiavelismo dois pontos:

primeiro, “vencer e manter o Estado”, e, segundo, “a salvação da pátria”. Há uma missão

clara que deve guiar a ação política, por meio desses parâmetros.

Concordando existir dois valores, a moral comum e a moral política, definir o papel do

poder soberano pode parecer simples. Mas como já dissemos, não há um único princípio guia

para a ação política. Segundo a lógica da necessidade, em determinados momentos cabe ao

soberano o poder da excepcionalidade. Nesse ponto, justifica-se o posicionamento de Carl

Schmitt em buscar legitimar essa atitude soberana, na qual o autor atribuir residir toda a força

política, em contraste com a lógica liberal da limitação dos poderes do soberano – seja na

monarquia, seja na democracia. A derrogação, possível em casos excepcionais, ao soberano

desse status singular, consiste em:

[...] O que eventualmente caracteriza a conduta do soberano é a

extraordinária frequência das situações excepcionais em que ele vem a se

encontrar, em comparação com o homem comum: tal frequência se deve ao

fato de que ele opera num contexto de relações, especialmente com outros

soberanos, em que a exceção é elevada a regra, por mais que isso possa ser

considerado contraditório (mas contraditório não é, pois aqui se trata da

regra no sentido da regularidade, e não está dito que a regularidade de um

comportamento diminua a validade da regra dada) (...) de fato, a derrogação

pode agir extensivamente porque permite ao soberano aquilo que é

moralmente proibido, mas pode agir também restritivamente porque proíbe a

realização de ações que são permitidas ao homem comum: noblesse obligue

(BOBBIO, 2011b, p. 62).

Por mais que se flexibilize as ações para o soberano, seu próprio status de governante o

impede de realizar certas coisas que são comuns aos seus governados. Os momentos de “[...]

mudança e restabelecimento de regime são precisamente aquelas circunstâncias excepcionais,

aquele estado de necessidade que justifica atos que em circunstâncias normais seriam

considerados imorais” (BOBBIO, 2011b, p. 63). Mas há limites para a razão de Estado? Seja

para a fundação ou para a proteção de um Estado, existem parâmetros que possam guiar a

figura do político? Na reflexão realizada por Bobbio, Max Weber considera que uma

ponderação entre a ética da convicção e a ética da responsabilidade seria a resposta para se

evitar excessos. Logo, praticadas distintamente em seu aspecto mais extremo, se traduziriam

em dois tipos:

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“[...] A primeira, tomada em si, conduzida às últimas consequências, é

própria do fanático, figura moralmente repugnante. A segunda, totalmente

afastada da consideração dos princípios de que nascem as grandes ações, e

voltada apenas para o sucesso (recorde-se o maquiavélico “cuide o príncipe

de vencer”), caracterizaria a figura não menos reprovável do cínico

(BOBBIO, 2011b, p. 75).

Tendo em vista que o político pertence à ética da responsabilidade, levado ao seu

extremo o desejo de sucesso, o político poderia massacrar uma população inteira, para

conquistar a grande obra. Desde usar gás para matar milhões de pessoas em escala industrial,

como nos campos de extermínio nazista. Como na atitude desumana de soltar uma bomba

atômica que exterminaria a tudo e a todos em seu caminho, sem se preocupar que ali haviam

idosos ou crianças. Acima de tudo, sem se preocupar que ali haviam seres humanos, privados

de defender a sua existência pela simples meta de vitória, pela razão do Estado belicista, que

já não consegue separar princípios de respeito à vida, com o método mais rápido e eficiente

para a derrota do “inimigo”.

É sabida a afirmação de Marc Bloch, em A apologia da história, que o historiador não

é um juiz, que o historiador tenha do compreender e não julgar as ações dos agentes

históricos. Mas atribuir que o pensamento intelectual de Carl Schmitt possibilitou, e ainda

possibilita ações que busquem a plena eficiência da ação política, e por meio da aniquilação

de contingentes populacionais inteiros, traduz-se numa constatação histórica, a do fazer

história, ainda mais quando concerne a um período conturbado, aonde suas reminiscências

nos chegam aos dias atuais com posturas conservadoras e com o neonazismo. Como aponta

Jürgen Habermas, as ideias de Carl Schmitt, por meio de leituras pós-modernas dos anos de

1980, serviram a Nova Direita francesa. Principalmente suas ideias de “segurança interior”,

“homogeneidade racial” e “invasão dos estrangeiros”, criam um cenário de aceitação e

legitimação de práticas de intolerância ao diferente, aquilo que destrói a pureza ou a

homogeneidade da nação. Mesmo marcados pelo engajamento político ao Nacional-

Socialismo, afirma Habermas, pensadores como Carl Schmitt e Martin Heidegger, exerceram

influência por meios políticos e intelectuais durante a República Federal Alemã

(HABERMAS, 1994, p. 26-27). A recusa de Carl Schmitt a sua desnazificação é outro ponto

complexo na trajetória de vida deste intelectual.

Obviamente, o historiador não tem a função de ler a mente de seu sujeito histórico

analisado, e nesse caso, de concluir se Carl Schmitt era um convicto nazista, como acredita

Hannah Arendt, ou se era apenas um oportunista como creem outros estudiosos. O seu

engajamento e suas ações durante a Ditadura Nazista nos fornecem dados suficientes para

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concluir que suas ações influenciaram os rumos da história alemã, e na execução dos projetos

políticos empregados pelo Nacional-Socialismo. Na prática, são as suas ações como homem

de cultura e funcionário do Terceiro Reich que importam no desenvolvimento mais amplo. Se

havia convicção em suas ideias pertence mais a sua questão psicológica própria, ao juiz que

julgou suas responsabilidades aos fatos históricos30

.

O historiador Richard Wolin, ao tratar sobre o existencialismo político de Carl Schmitt

e a sua ideia de Estado Total, apresenta-nos traços não apenas antiliberais, mas de matriz

fascista, nos escritos de schmittianos anterior à sua filiação ao NSDAP. Isso não desmerece a

capacidade intelectual de Schmitt, somente coloca em suspenso a ideia de que os escritos

anteriores ao seu engajamento ao NSDAP não contenham ideias semelhantes ao nazifascismo.

Ao definir uma verdadeira democracia, Carl Schmitt argumenta:

Em toda verdadeira democracia está implícito que não só o igual seja tratado

como igualmente, mas que, como conseqüência inevitável, o não igual seja

tratado de modo diferente. Portanto, a democracia deve, em primeiro lugar,

ter homogeneidade e, em segundo, - se for preciso – eliminar ou aniquilar o

heterogêneo (...) A força política de uma democracia se evidencia quando

mantém à distância ou afasta tudo o que é estranho e diferente, o que ameaça

a sua homogeneidade [...] (SCHMITT, 1996a, p. 10).

Parece claro, como afirma Richard Wolin, que Carl Schmitt em A crise da democracia

parlamentar já se posiciona sobre questões típicas do nazismo: homogeneidade interna,

inimizade ao estrangeiro e a defesa da aniquilação física daqueles que colocam em risco a

ideia de nação pura. Autor conceitua essa posição schmittiana como “pseudoengajamento”

pelo ideal de democracia, da mesma forma que os Nazis teriam o “pseudoengajamento” pelo

populismo. Nesse fragmento, Carl Schmitt se distancia dos ideais modernos, voltados a uma

política liberal, operando uma conceituação tendenciosa sobre a democracia. No mesmo

parágrafo Carl Schmitt elogia as leis racistas australianas e a repatriação radical dos gregos,

por parte da Turquia, onde que por leis rígidas estaria turquificando o país (WOLIN, 1990, p.

72-73).

30

Salientamos que a discussão a que nos propomos é de apresentar as ideias schmittianas. Desse ponto de vista,

declaramos que sua concepção antiliberal e antidemocrática de governo não é por nós apresentada saudosamente.

Buscamos apresentar ainda, dentro dos limites estabelecidos, o habitus que possibilitou a gestação da teoria

decisionista schmittiana – compreendendo aquele como “[...] geradores de práticas distintas e distintivas (...)

Assim, por exemplo, o mesmo comportamento ou o mesmo bem pode parecer distinto para um, pretensioso ou

ostentatório para outro e vulgar para um terceiro” (BOURDIEU, 1996, p. 22). E essa aversão ao habitus de

outrem pode estar num mesmo campo, como o jurídico. Por exemplo, a disputa entre Carl Schmitt e Hans

Kelsen. O problema é quando a aversão ao Outro se manifesta pela vontade do extermínio do diferente, como

nos escritos schmittianos.

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61

Entre o engajamento e a responsabilidade dos intelectuais, Norberto Bobbio acredita

haver a necessidade de uma distinção entre os dois grupos. Segundo o autor, as duas atitudes

humanas, inspirado nas ideias de Umberto Campagnolo, distinguem-se entre: “[...] a cultura

não deve ser apolítica, mas a sua política não é a política tout court, aquela que nós chamamos

de ordinária, mas é uma política própria da cultura, que não coincide, não deve coincidir, com

a política dos políticos (BOBBIO, 1997, p. 1003). Deve haver um diálogo entre os dois

campos, pois deve haver uma interdependência entre os dois polos de ação humana aqui

exemplificados.

Nesse sentido, é óbvio que durante os governos autoritários e totalitários ocorrem

produção de conhecimento, obras de artes e materiais de entretenimento. Mas o que fazer com

todo esse material quando a “onda” totalitária se desmonta no desenrolar dos acontecimentos

históricos? O próprio Carl Schmitt se questiona sobre qual seria o destino das produções

científicas alemãs entre 1935-1945. E, por esta argumentação, o autor tentará demonstrar que

a ciência moderna, seguindo os métodos do racionalismo ocidental poderia se desvencilhar da

censura totalitária. A interferência dos americanos e dos soviéticos na sociedade alemã do

pós-guerra o preocupa, demonstrando haver uma série de perseguições a certos segmentos da

sociedade alemã, entre oficiais do exército, burocratas do governo e intelectuais. Há uma

necessidade de demonstrar (para a sua própria preservação), que o regime que se seguiu entre

1933-1945 não conseguiu controlar de forma maniqueísta toda a produção científica

(SCHMITT, 2014)31

. No curso da história, os escritos do autor que esteve no ostracismo

intelectual durante certo período, foram reapropriados por segmentos conservadores de outros

países, tal como a direita francesa, e, nas políticas internacionais dos Estados Unidos pós o

atentado de 11 de setembro de 2001 (AGAMBEM, 2004). De qualquer forma, a produção

intelectual de Carl Schmitt é significativa para se compreender o mundo contemporâneo, pois

ela se insere justamente na quebra do ideal de progresso forjado pelas luzes, pelo racionalismo

e pela industrialização, por parte da barbárie desenrolada pelos Estados totalitários e pelos

genocídios em massa no século XX (ELIAS, 1997). Quando dizemos isso não é por concordar

com seus escritos, sua ideia de democracia, o predomínio do político sobre a sociedade, a

homogeneidade social, etc., mas por entender que o discurso schmittiano expõe um quadro

31

Outro intelectual de renome internacional que têm por sua trajetória o engajamento ao Nacional- Socialismo foi

Martin Heidegger. Para Mark Lilla, o filosofo em questão viu no Nacional- Socialismo uma forma de pôr em

ação as ideias expressas em sua obra Ser e Tempo, como um programa de regeneração nacional. Mas como Carl

Schmitt, Heidegger enfrentou problemas com o nazismo. Ao mesmo que tempo que se considerava uma vítima

do movimento. Segundo Mark Lilla, Heidegger se desencantou com o nazismo, afirmando que os próprios

nazistas haviam destruído a “fuerza y la grandeza interior”, e por no haverem seguido o modelo projetado por ele

“[...] habían privado a los alemanes de su encuentro con el destino [...]” (LILLA, 2004, p. 45).

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histórico maior, que concerne à primeira metade do século XX. Não promovemos os escritos

schmittianos como um modelo crítico a ser seguido para solucionar a “fraqueza da

democracia”, o pontuamos como uma resposta circunscrita a um período histórico, que foi

capaz de gestar o maior conflito bélico dos nossos tempos, além do genocídio de populações

inteiras, como a sua ideia de aniquilação do inimigo legitima.

A compreensão da existência humana, em Carl Schmitt, é delineada pelo seu

pessimismo antropológico. A lógica de seu raciocínio foi orientada pelos parâmetros da

vertente autoritária, compreendendo o Estado como força capaz de frear a essência hostil do

ser humano. O pensamento contrarrevolucionário do século XIX, por parte dos intelectuais

românticos e antiburgueses, foi fonte de inspiração para a composição de sua teoria

decisionista – como atestam seus comentadores. A defesa dos ensinamentos da Igreja por

aqueles intelectuais se propagaria “[...] até inícios do século XX, lastreando, por exemplo, as

construções decisionistas do direito em Carl Schmitt, que toma aqueles pensadores como

modelos para suas justificações do nazismo” (ROMANO, 1997, p. 16). No contexto do século

XIX, a burguesia e a sua criação, “o proletário revolucionário”, tinham em si aspectos

semelhantes. Sendo que:

Dois tempos contraditórios: o da burguesia e o do proletariado. Mas, nem

um nem outro aceita retornar ao velho tempo cristão, escandido pelo sino

paroquial. Nisso, as classes modernas opunham-se à Igreja. Ambas eram

racionais, mundanas, democráticas, contrárias à Tradição. Sobretudo, eram

anticlericais. A apologia Ultramontana atacou esses pontos comuns entre o

burguês e operário. Ambos seriam frutos de uma conjuntura maquiavélica,

modernos filhos de satanás. Entre a Revolução Francesa e a Comuna de

Paris, diz o Ultramontanismo, a relação é direta. Indo mais fundo na história,

alegam os seguidores de Lammenais, De Bonald e outros, que o socialismo é

fruto da Reforma, cuja “liberdade de perdição” abalou o fundamento

eclesiástico, pondo em perigo a barca de Pedro (ROMANO, 1997, p. 18).

De um lado, a burguesia e o proletariado, com seu anticlericalismo e seu ideal de progresso.

De outro, os contrarrevolucionários em defesa do Ultramontanismo e da tradição. No século

XX, a fórmula conservadora de Carl Schmitt realizou mudanças com respeito ao mecanismo

de preservação da tradição. A política de massas era uma realidade para qual um pensador da

realidade concreta, tal como Schmitt se intitulava, não poderia fechar os olhos.

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Os fenômenos políticos são constitutivos das relações de forças presentes nas

sociedades. No pensamento schmittiano, isso se demarcaria pelo enfrentamento entre os

indivíduos e os agrupamentos políticos – lembrando que para Carl Schmitt o inimigo sempre

é público, nunca privado. Quando o assunto em discussão é política (e no caso dos escritos de

Schmitt, uma política revestida de uma roupagem teológica), os princípios morais geram

atritos. Já apresentamos como Norberto Bobbio compreende essa relação entre a ética política

e os valores morais cristãos. As pessoas são polissêmicas, e a contradição nas ideias e ações

podem advir de atos involuntários e impensados, até mesmo para os mais eruditos. Mas nunca

podemos descartar que os indivíduos desenvolvam estratégias de convivência e sociabilidade

para manter ou conquistar poder e destaque social. Frente à complexidade de ideias e forças

sociais em contraste a todo o momento, devemo-nos estar atentos. Ao que concernem os

parâmetros morais é preciso, sem cessar, forjar mentalidades tolerantes e democráticas, pois

“[...] a tendência de fugir para uma Política marcada pelo conflito e pela falta de consenso é

algo que o século XX e a história como um todo demonstraram à exaustão” (ALMEIDA

FILHO, 2014, p. 12). Carl Schmitt nunca produziu uma condenação moral ao Nacional-

Socialismo, como afirma Agassiz Almeida Filho, e como lhe cobrou Jürgen Habermas.

Mesmo ao questionar sobre sua prisão e julgamento em Nuremberg, Carl Schmitt discute

sobre o Nacional-Socialismo sem lhe atribuir uma qualidade específica entre o Bem e o Mal.

Assim, destaca-se:

[...] como “homem do seu tempo”, de um tempo em que a irresolução

política, a intolerância e a guerra pareciam como verdadeiros ícones

históricos, Carl Schmitt situa-se como um autor que pensa o fenômeno

político a partir de uma ótima realista, procurando entender o político nos

termos colocados pelo comportamento concreto dos indivíduos (ALMEIDA

FILHO, 2014, p. 28).

Realismo político e pessimismo antropológico, conservadorismo católico e progressismo

conservador, figura contraditória do século XX, Carl Schmitt não se enquadra numa única

concepção. Intelectual católico de viés conservador e intelectual orgânico do NSDAP por

certo tempo. O autoritarismo decisionista schmittiano, a nosso ver, por meio das análises de

seus escritos, não resultou em uma transformação drástica nos anos de engajamento ao

Nacional-Socialismo, mesmo que defendamos que seus escritos dos anos de 1920 mais se

aproximem do fascismo italiano.

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Segundo Rüdiger Voigt, a lógica reflexiva de Carl Schmitt se baseava no “[...] método

de pensar por meio de contradições [...]” (VOIGT, 2014, p. 13). Em suas memórias do

cárcere, ao refletir sobre a sua existência a partir da existência humana, Carl Schmitt diz-nos:

Observo mi celda, y me convence inmediatamente que el hombre es

desnudo. El más desnudo de los hombres es el que está despojado delante de

un hombre vestido, desarmado delante de uno armado, impotente delante de

un poderoso. Todo esto ya lo experimentaron Adn y Eva en la expulsión del

paraíso (SCHMITT, 1994, p. 75).

Utilizando-se da mitológica representação bíblica da expulsão dos seres humanos do paraíso,

por Deus, Todo Poderoso, Schmitt parece realizar uma alegoria ao novo poder mundial

forjado ao fim da Segunda Guerra Mundial. Impotente e desprotegido, cabe a ele seguir o

caminho imposto. Não lhe há escapatória, pois como ele mesmo afirma na citação acima, o

cárcere lhe fez compreender que estava desnudo onde os homens andavam vestidos. Existe

neste fragmento uma compreensão trágica de sua existência, por meio das suas experiências

de vida entre 1945 e 1946, período de sua prisão e julgamento por envolvimento ao

movimento Nacional-Socialista, com a promoção de discursos racistas contra os judeus.

A complexidade do pensamento schmittiano se depreende de sua vasta produção

intelectual no seu quase um século de vida. Não tratamos aqui de um mero agitador político,

ou intelectual desinteressado. Podemos não concordar com as respostas dadas aos problemas

por ele suscitados. Porém, não podemos negar que esses sejam problemas reais, também

trabalhados por outros pensadores contemporâneos a ele, ou em outros contextos históricos.

Em sua jornada intelectual, Carl Schmitt produziu “[...] quase cinqüenta livros e mais de

duzentos ensaios, abrange ampla área do mundo político e espiritual sem, no entanto,

desembocar em qualquer diletantismo” (FLICKINGER, 1992, p. 11). Dentro dessa vasta

trajetória intelectual, o nosso sujeito histórico foi:

[...] crítico veemente do sistema político da República de Weimar, tornou-se

conselheiro do governo quando da intervenção do poder federal na Prússia –

em 1932 – e, um ano depois, era a eminência parda de círculos importantes

dentro do nazismo; desde 1937 ignorado pelo regime, internado pelos

Americanos depois da Segunda Guerra Mundial e tornado tabu, em seguida,

como pensador ultraconservador, Carl Schmitt foi redescoberto pelo

movimento estudantil dos anos sessenta [...](FLICKINGER, 1992, p. 9).

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A ambiguidade deste pensador não é um caso isolado na história do pensamento ocidental.

Maquiavel, Karl Marx e Lênin receberam e recebem interpretações controversas, hora de

amor, outrora de ódio. Não se pode suprimir toda uma vida intelectual por engajamentos em

situações que afrontam a vida e a dignidade humana. E, não se deve esquecer que o

pensamento intelectual possui limitações que concerne à própria ética do campo em que se

produz o conhecimento. Como defende Norberto Bobbio, os intelectuais devem ser

responsabilizados por aquilo que produziram e se comprometeram. Apensar de Flickinger

questionar a postura preconceituosa praticada contra Carl Schmitt no pós-guerra, o

engajamento deste e de qualquer outro indivíduo são avaliados segundo padrões morais e

éticos da sociedade em que vivem ou nas sucessoras. Sabendo que, como afirma Marc Bloch,

em A Apologia da História, não seja função do historiador julgar da mesma forma que um

juiz. Compreendemos que o engajamento de Carl Schmitt ao NSDAP não foi um ato

desinteressado, além de lhe render prestígio social. Estabelecer qual o interesse predominante

é problemático e negar suas responsabilidades, como outros intelectuais que se engajaram ao

nazismo, seria afrontar contra a realidade histórica das experiências desses sujeitos. O jogo

intelectual possui suas estratégias específicas do próprio campo. Cabe-nos, assim:

[...] Lembrar que os jogos intelectuais também têm alvos, que esses alvos

suscitam interesses – coisas que de certo modo todos sabem – é tentar

estender a todas condutas humanas aí compreendidas as que se apresentam

ou são vividas como desinteressadas, o modo de explicação e de

compreensão de aplicação universal que define a visão científica, e arrancar

o mundo intelectual do estatuto de exceção ou de extraterritorialidade que os

intelectuais têm a tendência de lhe atribuir (BOURDIEU, 1996, 138).

Ressalta Pierre Bourdieu essa necessidade de arrancar os intelectuais da extraterritorialidade

do mundo dos homens comuns. Os seres humanos não conseguem escapar de sua

historicidade, temporalidade e espacialidade. Muito menos, como também defende Norberto

Bobbio, é possível ao intelectual escapar de suas responsabilidades como homem de cultura e

cidadão.

Nesse sentido, nos dedicaremos no próximo capítulo em compreender como a Idade

Moderna representou um espaço de interesse para o pensamento schmittiano. A Era do

desenvolvimento da ciência moderna, das guerras religiosas, do poder absoluto dos reis e das

ideias iluministas. Apresentaremos alguns dos principais autores que propuseram a limitação

do poder soberano, da divisão dos poderes e democratização do poder. Discutiremos quais as

implicações disso nos séculos XIX e XX, de como a sociedade do Antigo Regime se

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contrapôs ao modelo liberal de sociedade, culminando no maior conflito da humanidade –

seja compreendendo haverem existido duas grandes guerras mundiais, ou uma guerra única

dividida em dois momentos. Relacionando esses temas com os escritos schmittianos e leituras

sobre o pensamento conservador católico contrarrevolucionário.

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CAPÍTULO II

Do Estado Natural a Comunidade Civil: das formas de governo,

dos princípios, dos meios e suas finalidades

“O homem nasceu livre e em toda parte é posto a ferros.

Quem se julga o senhor dos outros não deixa de ser tão

escravo quanto eles. Como se produziu essa mudança?

Ignoro. O que pode torná-la legítima? Acredito poder

resolver essa questão.”

(Jean-Jacques Rousseau, O Contrato Social)

A vontade de Jean-Jacques Rousseau acima exposta ainda permeia o pensamento

político contemporâneo. Contudo, sua força máxima, com variações de entendimentos,

pertenceu a Idade Moderna. Definir a natureza humana e as formações dos governos foi o

desejo de alguns pesadores modernos, dentre eles: Thomas Hobbes, John Locke, Montesquieu

e Jean-Jacques Rousseau. Antes de apresentar suas ideias, procuraremos entender um pouco

mais sobre a Modernidade. Como cientista jurídico e político, Carl Schmitt formulou

considerações acerca do direito dos povos, do poder do Estado e dos limites do poder do

soberano. Tendo como objetos de análises semelhantes aos escritores modernos, mas

apresentando conclusões distintas sobre esses conceitos, que muitas vezes se constituíram a

partir da total contraposição aos princípios liberais. Como se percebe em seus escritos, Carl

Schmitt recusa a filosofia Iluminista, baseada na razão e na limitação do poder do soberano,

de acordo com seus escritos, muito antes da adesão ao NSDAP. O pensamento schmittiano

baseia-se na defesa de uma realidade concreta (que estaria relacionada ao contexto histórico

em si) e de uma antropologia política que defende um Estado forte, capaz de conter a maldade

natural humana.

Relacionando ao contexto histórico do entreguerras, importa ressaltar que essa recusa

dos fundamentos iluministas não foi uma particularidade do pensamento schmittiano. Como

demonstra Emmanuel Faye, Martin Heidegger compartilhou essa aversão aos princípios

iluministas, e, do pensamento cartesiano. Demonstrando que seus escritos e seus cursos

“filosóficos” condicionaram diversos jovens à doutrinação do pensamento nazista no interior

da universidade:

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O que mais se destaca na conduta e nos escritos de Heidegger durante os

primeiros anos do Reich é a ausência de qualquer tipo de ponderação, o

compromisso desenfreado em relação à afirmação política do hitlerismo; em

sua, como já dissemos, o contrário do que se poderia esperar de um pensador

(FAYE, 2015, p. 139).

Da mesma forma, não se pode considerar a adesão de Carl Schmitt a política Nacional-

Socialista como um mero acidente. O NSDAP possuía uma ação política muito clara nos anos

de 1920, com a perseguição de seus inimigos políticos por suas forças paramilitares (SA)32

.

Assim como o fascismo e o nazismo, Carl Schmitt via na filosofia das luzes e no liberalismo,

em particular, uma impotência política. Logo, a ideia de uma humanidade universal é o oposto

do que a sua concepção política centrada no conflito sustenta, pois nela é a identificação do

diferente que é a ação propriamente política. Ou seja, a identificação do inimigo, aquele, que

segundo Schmitt, coloca a própria existência de um Outro em risco, e deve em último caso ser

aniquilada. E esse inimigo pode estar na própria nação, sendo este o inimigo interno. A

desumanização do outro, nesses dois ditos pensadores – Carl Schmitt e Martin Heidegger –

coloca em sério risco os valores igualitários e os direitos humanos básicos conquistados com

o custo do sangue humano nos últimos séculos.

A modernidade como um processo de transformações nas ideias

O século XVII foi um século de profunda reflexão sobre as questões que norteavam as

questões da verdade, da religião e da ciência, por parte dos pensadores modernos. Um

profundo questionamento sobre quem detinha a verdade, qual a sua natureza e a sua

aplicação. Surge então uma disputa entre os pensamentos científico e filosófico ocidental que

se convencionou chamar “Antigos contra Modernos”33

. Nesse contexto, podemos observar

uma constante separação entre a religião e a ciência na parte ocidental da Europa. Momento

de cisão entre o “homem medieval” e o “homem moderno”, não é possível demarcar o exato

32

Como demonstraremos no último capítulo em especial. 33

O autor Joan DeJean, no livro Antigos contra Modernos: As Guerras Culturais e a construção de um fin de

siècle, apresenta-nos questões práticas sobre o desenvolvimento dos embates entre as duas formas de

compreender o mundo. Para o autor, o desenvolvimento dos espaços públicos de circulação de ideias, os jornais,

os romances, a imprensa e a République des Lettres, foram espaços onde o pensamento moderno pode se

desenvolver. Ainda devemos mencionar as Academias de Ciências que passam a ser criadas no período

moderno, ou seja, o financiamento do Estado Absolutista para o progresso das ciências na Europa dos séculos

XVII e XVIII. Sendo assim, o aumento progressivo das pessoas alfabetizadas, que tinham acesso a informações

ganha continuamente o incremento de novos leitores, que já não leem somente textos bíblicos ou políticos, mas

também textos informativos e de “entretenimento”- as novelas como exemplo.

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ponto de ruptura entre as duas formas de pensar a existência humana, segundo os estudiosos

consultados. Por isso, buscaremos compreender esse período como um processo de transição.

A Era Moderna, pode ser demarcada temporalmente como o período entre o século

XV e XVIII da história do Ocidente. A demarcação temporal é dada por pensadores franceses

no século XIX, que compreende aos acontecimentos posteriores à tomada de Constantinopla,

então capital do Império Bizantino, pelos turcos otomanos em 1453 e os acontecimentos da

Revolução Francesa em 1789. A modernidade pode ser considerada como um período de

centralização do poder nas mãos dos reis (o que resultou no Absolutismo34

), e pela

intolerância religiosa – principalmente os conflitos entre católicos e reformados, que

resultaram em guerras civis na Inglaterra, França e no Sacro Império Romano-Germânico.

Portanto,

A noção de “moderno” não basta por si só para dizer algo de concreto ou

definitivo sobre o período que queremos analisar. Modernos foram os

nominalistas medievais, os humanistas do Renascimento, e aqueles que, no

século XVII, travaram formidável batalha contra os “antigos”. Só aos

poucos, nas sociedades ocidentais, foi havendo uma tomada de consciência

quanto a modernidade nascente, em cujo seio já se vislumbra, indecisa, a

teoria do progresso. Foi a partir daí que se originou a noção de uma História

Moderna, distinta enquanto época daquelas que lhe haviam precedido

(FALCON, 1989, p. 11).

Ou seja, as mudanças no modo como os seres humanos deste momento concebiam a sua

filosofia de vida, suas formas de relação social, sua maneira de entender e alcançar a

divindade passou por uma progressiva ruptura, em relação com a dos “antigos”. Não se

presenciou nenhuma revolução, ou seja, não houve uma transformação radical num curto

espaço de tempo na forma como os modernos concebiam o mundo no campo das ideias e das

ações para com o sagrado e o político. Segundo Hazard:

34

Para Pierangelo Schiera, o Absolutismo é um conceito difundido entre os séculos XVIII e XIX, por aqueles

que defendiam o Estado liberal. Comumente confundido ou associado ao Despotismo e a Tirania, que segundo o

autor possuem características históricas distintas. A partir do século XX, o Absolutismo ainda seria projetado

sobre a dimensão do totalitarismo. O termo, para esse autor, possui uma especificidade histórico-institucional

quando relacionado ao período da Idade Moderna, na cultura do Ocidente europeu, institucionalmente nos

moldes do Estado moderno. O Absolutismo, observado sobre o prisma da soberania, “Trata-se então de um

regime político constitucional (no sentido de que seu funcionamento está sujeito a limites e regras

preestabelecidas), não arbitrário (enquanto a vontade do monarca não é ilimitada) e sobretudo de tradições

seculares e profanas [...]” (SCHIERA, 2010, p. 2). O Absolutismo surge, segundo o autor, da secularização

política, baseada na expressão “Razão de Estado”, na qual Maquiavel se destacou. A Reforma Protestante

exerceu um papel importante na consolidação do Absolutismo, na centralização do poder nas mãos do monarca.

Por fim, com Thomas Hobbes, Pierangelo Schiera, funda-se “a própria obrigação política”, por meio da

soberania, de forma dualista, obrigação baseada na relação entre autoridade e súditos – que, segundo o autor, os

modelos posteriores não foram capazes de sair dessa “rígida relação-obrigação” (SCHIERA, 2010, p.6).

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[...] Operou-se, então, uma crise na consciência europeia; entre o

Renascimento, de que directamente procede, e a Revolução Francesa, que

prepara, não há outra mais importante na história das ideias. A uma

civilização fundada sobre a ideia do dever: deveres para com Deus, deveres

para com o Príncipe, os novos filósofos tentaram sobrepor uma civilização

fundada sobre a ideia do direito: direitos da consciência individual, direitos

da crítica, direitos da razão, direitos do homem e do cidadão (HAZARD,

1971, p. 11).

Segundo Paul Hazard, a Idade Moderna buscou constituir: a política sem direito divino, a

filosofia sem sonhos metafísicos, uma moral não dogmática, uma religião sem mistério. A

respeito da ciência:

era preciso forçar a ciência a que deixasse de ser um simples jogo do

espírito, para decididamente se tornar um poder capaz de dominar a

natureza; pela ciência, conquistar-se-ia uma felicidade inequívoca.

Reconquistando assim o mundo, o homem organizá-lo-ia para o seu bem-

estar, para sua glória e felicidade futura (HAZARD, 1971, p. 11).

Não podemos deixar de citar a “descoberta do Novo Mundo”, uma das principais

características da modernidade35

, que impactou sobre o modo como os europeus

compreendiam o mundo tanto na sua geografia quanto na sua questão espiritual e econômica.

O exotismo das Américas e das Índias, os intercâmbios intelectuais e os conflitos entre

europeus e não europeus provocaram a formação de culturas mestiças nos mais diversos

locais do mundo. Fato este presente nos tratados políticos – Locke e Rousseau utilizaram de

observações sobre os povos nativos americanos para construir seus discursos políticos. Não

será ao acaso que a filosofia moderna tratará de temas como “bom selvagem”, “natureza

humana”, bárbaros e civilizados, etc.

As formações humanas durante o tempo desenvolveram diversas formas de

organização social: as comunidades coletivas, as pólis gregas, os reinos, as comunas, as

tribos, os Estados modernos, etc. Cada sociedade se organiza segundo os elementos que as

constituem sobre preceitos filosóficos, religiosos, econômicos, sociais, culturais, etc. Os

Estados modernos são as formas mais burocratizadas de organização governamental

(WEBER, 1982). As relações sociais em cada sociedade se desenvolvem segundo o jogo de

forças que agem tanto interna quanto externamente em sua estrutura, sendo que as

35

A modernidade é um conceito complexo e polissêmico. Não é nosso intuito aprofundar nas discussões

específicas desse período histórico. Nossa intenção é gerar uma discussão sobre o pensamento moderno,

especificamente o Iluminista, com os escritos de Carl Schmitt.

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permanências históricas perpassam as diversas formas de organização política, podendo haver

em um governo democrático características de um governo monárquico ou aristocrático, ou

vice-versa. Com o fim da Idade Média, o reino se tornou a unidade política dominante, onde

“[...] o monarca não se contenta em manifestar sua independência de fato em relação ao

imperador; proclama que não há ninguém acima dele na ordem temporal e apresenta-se como

o fiador da união de um povo e da permanência da comunidade do reino [...]” (LEFORT,

2003, p. 63). Segundo Bobbio, o Estado liberal surge como sucessor ao Estado absoluto

vigente na Europa até fins da Era Moderna,

[...] historicamente, o Estado liberal nasce de uma contínua e progressiva

erosão do poder absoluto do rei e, em períodos históricos de crise mais

aguda, de uma ruptura revolucionária (exemplares os casos da Inglaterra do

século XVII e da França do fim do século XVIII); racionalmente, o Estado

liberal é justificado como o resultado de um acordo entre indivíduos

inicialmente livres que convencionam estabelecer os vínculos estritamente

necessários a uma convivência pacífica e duradoura [...] (BOBBIO, 2013, p.

14).

Nesta ruptura histórica que se desenvolveu gradualmente após a queda dos direitos feudais e

transformou a forma de governo de alguns países, são exemplos: a criação da Monarquia

Parlamentar na Inglaterra e do governo republicano na França.

Podemos admitir que a Era Moderna se deu como um período de florescimento do

intercâmbio entre os povos, que não foram em essência pacíficos e causaram a destruição e

apropriação de culturas e povos, sob o poder das armas de fogo e dos canhões. Fatores

intelectuais e morais podem ser uma das causas, pois:

[...] os europeus tiveram o desejo e conceberam a possibilidade de descobrir

o mundo: curiosidade, vontade de saber, de fazer recuar os limites do mundo

conhecido. Os motivos são claramente científicos, desde os meados do

século XV, para os portugueses que fazem parte do círculo de pessoas que

convivem com Henrique, o Navegador. A esses motivos científicos

acrescentam-se outros, igualmente desinteressados, de ordem religiosa: a

universalidade do cristianismo, a vontade de levar até os limites da terra a

mensagem evangélica, de acordo as palavras de Cristo antes de sua

Ascensão (RÉMOND, 1986, p. 23).

As questões sociais são totalmente diferentes da atualidade, a sociedade do Antigo Regime

era heterogênea, baseada nas Ordens – segundo René Rémond, pertence-se a uma

determinada Ordem por nascimento (Nobres e Terceiro Estado) ou por vocação (Clero). A lei,

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no Antigo Regime é a lei particular, sendo assim, a “[...] sociedade do Antigo Regime, que

repousa explicitamente sobre a desigualdade: a desigualdade é considerada legítima, porque é

a expressão da diferença das dignidades, das tarefas, das situações” (RÉMOND, 1986, p. 53).

Essa mesma era de concentração do poder nas mãos do rei, da distinção dos seres humanos

pelo nascimento e da expansão dos povos europeus pelo globo, foi o momento de reflexão

sobre a natureza humana, fundamentação do direito dos homens entre si e para com os outros,

da luta pela delimitação do poder e da sua divisão entre diversas instituições. Essas serão as

temáticas tratadas a seguir, com o desenvolvimento da filosofia iluminista, refletindo sobre

questões sociais referentes às relações dos homens em sociedade e dos homens com a

divindade.

Da guerra de todos contra todos à Comunidade Civil

“[...] O legislador não é aquele por cuja autoridade

as leis foram feitas pela primeira vez, mas aquele

por cuja autoridade elas continuam a ser leis [...]”

(Thomas Hobbes, O Leviatã, p. 2015)

A natureza humana e o direito natural foram preocupações dos pensadores

contratualistas modernos. O inglês Thomas Hobbes36

(1588-1679) foi um dos grandes

pensadores do contratualismo que se dedicaram a matemática, teoria política e filosofia.

Buscou explicar o universo de forma mecanicista, e para ele o Estado (Leviatã), poderia ser

comparado a um corpo, sendo que a sua matéria constituinte são os seres humanos, e o seu

poder nasce do acordo social entre esses seres humanos para a sua proteção da guerra de todos

contra todos. O caráter religioso é presente em seus escritos políticos. Defensor do Estado

Absolutista, Hobbes acredita que o pior governo ainda é melhor que o Estado de Natureza,

onde existe a guerra de todos contra todos37

. Estado esse em que os homens não poderiam

contar com nenhuma outra forma de proteção do que a sua própria força e talento (HOBBES,

2012). Thomas Hobbes criticava duramente o pensamento escolástico e a sua linguagem

36

Utilizaremos principalmente a obra o Leviatã nesse trabalho. Contudo, faremos apontamentos sobre as

principais colocações de Thomas Hobbes sobre o Estado de Natureza e a formação do Estado e as suas formas,

sabendo ser impossível retratar toda a discussão disposta pelo autor numa breve apresentação. 37

Essa concepção de Thomas Hobbes difere dos outros pensadores contratualistas analisados neste capítulo, pois

eles observam o Estado Natural com fonte de inspiração para um novo modelo de sociedade, como

apresentaremos a seguir.

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incoerente. Para ele, a ciência deveria ser à base da construção do conhecimento, não a

sensação e a imaginação, criticando a forma de como o aristotelismo era empregado nas

universidades da Europa.

O pensamento contratualista moderno defende que a sociedade e/ou o Estado se

originam numa forma de contrato: “[...] os homens viveriam, naturalmente, sem poder e sem

organização – que somente surgiriam depois de um pacto firmado por eles, estabelecendo as

regras do convívio social e da subordinação política [...]” (RIBEIRO, 2000, p. 53). Segundo

Hobbes:

A Natureza criou os homens tão iguais nas faculdades do corpo e do espírito

que, se um homem, às vezes, é visivelmente mais forte de corpo ou mais

sagaz do que outro, quando considerados em conjunto a diferença entre um

homem e outro não é tão relevante que possa fazer um deles reclamar para si

um beneficio qualquer a que outro não possa aspirar tanto quanto ele. No

que diz respeito à força corporal, o mais fraco tem força suficiente para

matar o mais forte, seja por meio de maquinações secretas ou aliando-se a

outro que se ache no mesmo perigo em que eles se encontra (HOBBES,

2012, p. 102).

A igualdade entre os homens está na particularidade de que, segundo o autor, ao se somar as

características individuais de cada um, qualquer ser humano tem a força suficiente para

subjugar (matar) o outro38

. Segundo ele, quando almejamos a mesma coisa que outro homem,

um tratará de subjugar ou eliminar o outro:

[...] Um agressor teme somente o simples poder de outro homem; se alguém

semeia, constrói ou possui uma área conveniente, pode estar certo de que

chegarão outros que, unindo suas forças, procurarão despojá-lo de privá-lo

do fruto de seu trabalho e até de sua vida ou liberdade. O invasor, por seu

turno, assumirá o mesmo perigo enfrentando por aquele cuja propriedade

invadiu e a quem subjugou (HOBBES, 2012, p. 103).

Assim, a guerra de todos contra todos não produz uma segurança maior do que as próprias

forças para garantir a posse da propriedade, da liberdade e da própria vida. Sendo a

autopreservação uma lei natural, segundo Hobbes, quando necessário, para este fim, um

homem pode pilhar os bens de outro, e até pôr fim à vida deste.

38

Por exemplo, podemos imaginar na história de Davi e o gigante Golias, foi o talento de Davi que o possibilitou

vencer um inimigo com maior força. Igualdade essa que conduz os humanos, na visão de Hobbes, a desconfiança

mútua, tornando-se um ciclo sem fim as agressões se os homens não põem fim a sua igualdade natural.

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Para pôr fim à guerra de todos contra todos e da desconfiança mútua, os homens criam

os Estados. Ou seja:

A causa final, fim ou desígnio dos homens (que apreciam naturalmente, a

liberdade e o domínio sobre os outros), ao introduzir a restrição a si mesmo

que os leva a viver em Estados, é a preocupação com sua própria

conservação e a garantia de uma vida mais feliz. Ou seja, a vontade de

abandonar a mísera condição de guerra, consequência necessária (...) das

paixões naturais dos homens, se não houver um poder visível que os

mantenha em atitude de respeito, forçando-os, por temor à punição, a

cumprir seus pactos e a observar as leis naturais [...] (HOBBES, 2012, p.

136).

O Estado passará então a constituir leis positivas, em observância às leis naturais e divinas.

Essa organização social terá por finalidade a autopreservação da comunidade frente aos outros

Estados, e coibirá e punirá os deturpadores da ordem interna. Sua missão é pôr fim às

hostilidades dentro da comunidade civil.

Contudo, salienta Hobbes, que os pactos são apenas palavras vazias se não contarem

com um elemento que os sustente e garanta a execução das regras. Assim, “[...] sem a espada,

os pactos não passam de palavras sem força, que não dão a mínima segurança a ninguém [...]”

(HOBBES, 2012, p. 136). Nisso, cabe ressaltar que a união surgida desse pacto deve contar

com um número considerável de pessoas, pois se esse contingente for muito pequeno, poderá

ser facilmente subjugado por uma força maior, colocando fim à comunidade, ao pacto e ao

Estado então constituído. Em decorrência disto, aqueles que sobrevirem passarão a estar livres

do pacto firmado, e terão somente as leis naturais para sua proteção – volta-se ao estado de

guerra de todos contra todos, caso não seja apreendido pelo grupo vencedor.

O Estado surgido do pacto, segundo Hobbes, não corre apenas o risco de ser destruído

por uma força externa, como já apresentamos acima. A desunião interna, os apetites

individuais podem colocar em risco a força de proteção da união estabelecida, pois “[...] Ao

divergirem de opinião quanto ao melhor uso e aplicação de sua força, os homens de

determinada multidão não se ajudam, pelo contrário, atrapalham-se uns aos outros e, em razão

dessa oposição mútua, anulam sua força [...]” (HOBBES, 2012, p. 137). Na compreensão de

Hobbes, se a força e a devoção ao pacto então estabelecido não forem plenas, os indivíduos

continuariam a lutar entre si para defender seus interesses particulares. O Estado é uma

criação humana para a proteção coletiva, segundo Hobbes, por meio do estabelecimento de

um poder soberano. Este poder soberano tem como finalidade garantir a concórdia interna e

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definir quem são os amigos e os inimigos externos39

. Essa dupla função do poder soberano do

Estado necessita da coesão interna dos governados. Ao contrário de outros contratualistas e/ou

jusnaturalistas, que acreditam que o homem é bom por natureza, Hobbes crê que a natureza

humana promove a hostilidade entre os seres humanos, como já apresentamos. Nesse sentido:

Ser governado e dirigido por um critério único, apenas durante um período

limitado, como no caso de uma batalha ou de uma guerra, não é suficiente

para garantir a segurança que os homens desejariam que durasse todo o

tempo de suas vidas. Mesmo que o esforço conjunto redundasse em vitória

contra um inimigo comum, ou quando aquele que para alguns é inimigo

passasse a ser considerado amigo por outros, seria inevitável que a diferença

entre seus interesses os levasse a desunir, voltando a cair em guerra uns

contra os outros (HOBBES, 2012, p. 138).

Observamos que a constituição de um Estado não é a simples união para beligerar, mesmo

quando há uma causa que una os seres humanos. O Estado somente se constitui quando é uma

força duradoura. O Jusnaturalismo, segundo Guido Fassò, tem entre suas subdivisões

conceituais a característica comum de ser “um sistema de normas logicamente anteriores e

eticamente superiores às do Estado”. Sendo assim, “[...] O Jusnaturalismo é uma doutrina

segundo a qual existe e pode ser conhecido um “direito natural” (ius naturale), ou seja, um

sistema de normas de conduta intersubjetiva diverso do sistema constituído pelas normas

fixadas pelo Estado (direito positivo). Este direito natural tem por validade em si, é anterior e

superior ao direito positivo e, em caso de conflito, é ele que deve prevalecer [...]” (FASSÒ,

1998, p. 655-656). Essa compreensão do direito será questionada por Schmitt, pois aqui o

direito preexistiria ao político, e o autor compreende que o direito procede do político.

Trataremos disso com maior detalhamento no decorrer do texto.

Como figura alegórica, Hobbes caracteriza o Estado como uma pessoa instituída,

sendo que “o titular dessa pessoa chama-se soberano, e dizemos que possui poder soberano.

Todos os restantes são súditos” (HOBBES, 2012, p. 140). E são duas as formas, segundo ele,

como o poder soberano poder ser adquirido:

[...] Uma, pela força natural, como quando um homem obriga seus filhos a se

submeterem e a submeterem seus próprios filhos a sua autoridade, sendo

capaz de destruí-los em caso de recusa; ou, ainda como quando um homem

39

Carl Schmitt defenderá uma postura semelhante sobre a relação do poder soberano e a delimitação de quem é

amigo e inimigo do Estado nos âmbitos externos e internos, e do estabelecimento dos meios necessários para pôr

fim a essas ameaças a manutenção do Estado. Essas ideias são tratadas em seu livro O conceito do político, que

abordaremos em outro momento neste trabalho.

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poupa, durante a guerra, a vida de seus inimigos, desde que se sujeitem a sua

vontade. A outra forma é quando os homens concordam entre si em se

submeterem voluntariamente a um homem, ou a uma assembleia de homens,

esperando serem protegidos contra todos os outros. Esse último é o chamado

Estado político, ou um Estado por instituição, enquanto o primeiro é o

Estado por aquisição (HOBBES, 2012, p. 140-141).

Quando é formado por uma multidão que compactua e concorda em transmitir seu poder

natural para o Estado, vê-se nascer o Estado por instituição. Podendo todo o poder ser

concedido a um rei ou a uma assembleia, devendo ser dado a um desses dois, o poder

soberano de constituir as leis, executar a justiça e garantir a paz (tanto interna como externa

ao Estado). Caso algum outro povo ameace a paz, ou a comunidade necessite se expandir para

sua autopreservação, segundo Hobbes, é dever e direito do poder soberano empreender a

guerra caso necessário. No Estado por aquisição, os homens escolhem o soberano, mas essa

escolha não é dada com plena liberdade, e sim pelo temor, nesse caso o poder soberano é

adquiro pela força. Os súditos o aceitam como manda a lei natural para preservar as suas

vidas, ou do cativeiro (que pode se tornar em escravidão). Cabe ressaltar que o Estado por

aquisição não legitima a escravidão, pois o escravo, ao contrário do servo, segundo Hobbes,

não realiza um pacto com seu senhor. A relação do escravo com o senhor não tem um pacto,

vivem sob a lei natural. O escravo apenas espera o momento no qual possa reunir forças para

recuperar sua liberdade natural, fugindo ou pondo fim a vida do seu senhor – sendo essa uma

relação semelhante ao do Estado natural, não sendo ilegítimo que o escravo utilize de todos os

meios para garantir sua existência (HOBBES, 2012)40

.

O poder soberano, para Hobbes, é absoluto e deve estar concentrado unicamente nas

mãos do soberano, seja ele um monarca ou uma assembleia. Todos devem obediência a ele,

contudo, o soberano não está preso a nenhuma lei, ele próprio é a lei – Carl Schmitt apresenta

uma mesma compreensão sobre o soberano e a lei. O soberano é o generalíssimo poder do

Estado, em sua visão. Por isso:

40

Mark Lilla nos diz que Thomas Hobbes foi o primeiro a conceber a inimizade como elemento natural do

desenvolvimento das relações humanas, e que o Leviatã tinha como função conceber uma forma política capaz

de controlar a aparição das hostilidades. Assim, “[...] Hasta Hobbes, los pensadores políticos asociaban la guerra

al fracaso de las políticas sanas; así pues, su tratado es la excepción que confirma la regla” (LILLA, 2004, p. 65).

A possibilidade da guerra, em última instância, não está fora da realidade política concreta. Carl Schmitt

compreende que as exceções mostram todo potencial político, sendo que a religião, a economia e a arte, ao entrar

em contato um inimigo, podem se transformar em instrumentos políticos, ou em fontes de conflitos – assuntos

que trabalharemos no terceiro capítulo.

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A obrigação dos súditos perante o soberano permanece apenas enquanto

dura o poder por meio do qual este os protege. Porque o direito que, por

natureza, os homens têm de se defender não pode ser abandonado mediante

qualquer pacto. A soberania é a alma do Estado e, uma vez separada do

corpo, tira os movimentos dos membros. A finalidade da obediência é a

proteção, e, quando um homem a vê, seja em sua própria espada, seja na de

outro, a natureza determina que a obedeça e se esforce por conservá-la.

Embora a soberania seja imortal, na intenção daqueles que a criaram, ela

está, por sua própria natureza, sujeita a morte violenta pela guerra exterior;

em razão da ignorância e das paixões dos homens, a soberania conserva,

desde o momento de sua instituição, semente de mortalidade natural,

decorrente da discórdia intestina (HOBBES, 2012, p. 179).

O súdito tem o dever da obediência, então, desde que dessa obediência derive a preservação

do Estado e da sua própria vida. Quando o súdito tem sua vida em risco, ele tem o direito

natural de tentá-la defender, segundo Hobbes, pois o homem não pode contrariar a lei natural

da autopreservação. Exemplifica que mesmo quando um súdito se apresenta de boa vontade, e

aceita a sua condenação à morte, o Estado deve mantê-lo sob a guarda de oficiais. Por outro

lado, quando o Estado não é mais capaz de garantir a segurança do súdito, este tem o direito

buscar a melhor forma de preservar a sua vida, pois o contrato social que este tinha para com

o Estado se torna inválido.

A definição de soberania para Carl Schmitt aparece, por exemplo, em seu livro

Teologia política, considerando-a como um conceito limite e de difícil conceituação. O poder

soberano para o jurista se constitui quando pode ser sustentado acima de tudo e todos.

Sintetizado na sentença “Soberano é aquele que decide sobe o Estado de exceção [...]”

(SCHMITT, 1996b, p. 87). Sabe-se que Schmitt se inspirou em Hobbes, sendo este apontado

por Hans Georg Flickinger como autor preferido daquele.

Outro grande pensador inglês foi John Locke (1632-1704), sendo considerado por

alguns, como pai do Iluminismo e um dos fundadores da escola empirista. Desenvolveu

estudos sobre problemas educativos, sociais, religiosos, econômicos e políticos. Ao contrário

de Thomas Hobbes, ele propôs que o governo fosse dividido em três poderes: legislativo,

executivo e federativo. Em seus escritos pregou que a liberdade é a essência da soberania

política. Sua obra influenciou a declaração de Independência dos Estados Unidos (MELLO,

2000; MIRANDA, 2014). Assim como Thomas Hobbes, John Locke vivenciou o conturbado

século XVII na Inglaterra, com suas guerras civis e guerras religiosas. Ou seja:

O século XVII foi marcado pelo antagonismo entre a Coroa e o Parlamento,

controlados, respectivamente, pela dinastia Stuart, defensora do absolutismo,

e a burguesia ascendente, partidária do liberalismo. Esse conflito assumiu

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também conotações religiosas e se mesclou com as lutas sectárias entre

católicos, anglicanos, presbiterianos e puritanos. Finalmente, a crise político-

religiosa foi agravada pela rivalidade econômica entre os beneficiários dos

privilégios e monopólios mercantilistas concedidos pelo Estado e os setores

que advogavam a liberdade de comércio e de produção (MELLO, 2000, p.

81).

Não parece ser por acaso que os dois pensadores ingleses busquem pensar nesse contexto

regras basilares para a formação e consolidação do Estado. Sendo Hobbes partidário da

Monarquia Absoluta e do poder soberano do rei, e, Locke, por outro lado, partidário do

governo liberal, defensor do Parlamento e do poder soberano do povo.

Refletiremos principalmente, no concernente ao pensamento lockeano, sobre as ideias

expostas em sua obra Segundo Tratado sobre o Governo Civil, publicado pela primeira vez

em 1690. Este tratado seria:

[...] uma justificação ex post facto da Revolução Gloriosa, onde Locke

fundamenta a legitimidade da deposição de Jaime II por Guilherme de

Orange e pelo Parlamento com base na doutrina do direito de resistência.

Segundo o autor, seu ensaio estava destinado “a confirmar a entronização de

nosso Grande Restaurador, o atual Rei Guilherme; a justificar seu título em

razão do consentimento do povo, pelo que, sendo o único dos governos

legais, ele o possui de modo mais completo e claro do que qualquer outro

príncipe da cristandade” (MELLO, 2000, p. 82-83).

Fica claro o desejo da obra, que não se limita a legitimação do poder do rei restaurador, mas

na formação de novos parâmetros para o poder civil. Sendo a liberdade um princípio humano,

“[...] ser livre é ter a liberdade de ditar suas ações e dispor de seus bens, e de todas as

propriedades, de acordo com as leis regentes; e, dessa forma, não sujeita à vontade arbitrária

de outros, podendo seguir livremente a sua própria vontade [...]” (LOCKE, 2014, p. 61). Ser

livre para Locke é uma lei natural inalienável, tanto no Estado de Natureza quanto na

Comunidade Civil. Disso surge sua crítica à monarquia absolutista, pois o rei pode dispor do

uso da força sem o consentimento dos súditos, para impor leis e ações as quais os súditos não

concordem. Vemos então que a distinção entre as ideias de Hobbes e Locke tangem

principalmente a limitação do poder soberano: em Hobbes o poder soberano é indivisível e

ilimitado (o único limite é a sua própria força com fins a preservação do Estado); em Locke o

poder soberano é divido em três, e limitado pela vontade do povo, que é a única forma de dar

legitimidade ao poder soberano. Sendo assim, no pensamento lockeano:

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[...] O estado de natureza não é uma condição amoral (como era para

Hobbes), na verdade, Locke o vê como uma condição moral em que as

pessoas se governam por uma lei moral (a lei natural) que determina a paz e

a sociabilidade, ou seja, há uma moral natural que determina que ninguém

deve prejudicar o outro em sua vida, liberdade ou posses (MIRANDA, 2014,

p. 11).

Segundo Locke, os homens são livres e iguais por natureza, o que justifica sua concepção de

que “[...] o governo político legítimo é resultado de um contrato social por meio do qual as

pessoas em estado de natureza transferem de forma condicional alguns dos seus direitos ao

governo [...]” (MIRANDA, 2014, p. 10). Transferência essa que teria como finalidade que os

homens desfrutem de suas vidas, liberdade e propriedade. A lei natural, para ele é dada aos

homens por Deus. A questão do trabalho é fundamental para compreender o pensamento

lockeano, pois dele deriva o direito de propriedade.

No Estado Natural, para Locke, os homens têm o direito, como os outros animais, de

buscar sua subsistência naquilo que a natureza lhe oferece, sendo tudo comum a todos.

Contudo, “[...] Embora a Terra e todas as criaturas inferiores sejam comuns a todos os

homens, cada um é proprietário de si mesmo; e nenhum homem tem qualquer direito sobre

outro homem, salvo sobre si mesmo. O trabalho de seu corpo e feito por suas mãos pertencem

a ele [...]” (LOCKE, 2014, p. 44). Logo, o homem tendo propriedade sobre si, graças ao seu

próprio trabalho, tem por propriedade aquilo que produz, o que era comum passa a ser

individual. Tanto a terra trabalhada por este homem, quanto os frutos que dela provenham,

tornam-se propriedade particular, saindo-se do estado comum a todos os outros homens. Ou

seja, a propriedade no pensamento lockeano é compreendida como a propriedade que os

homens têm sobre si mesmos, bem como sobre seus bens materiais, tanto no Estado de

Natureza, quanto na Comunidade Civil (LOCKE, 2014). Além de preservar a vida, o Estado

em Locke tem como função proteger a propriedade privada de seus súditos.

Mas seria a liberdade ilimitada, ou tem seus limites? Em Hobbes, a lei natural exige

que todos os homens busquem a autopreservação, utilizando dos meios necessários, ou seja, a

possibilidade de aniquilar quem ponha em risco a vida de si mesmo, ou outrem. Hobbes tem

uma visão pessimista sobre a natureza humana (HOBBES, 2012). Por outro lado, Locke

apresenta uma visão otimista da natureza humana. Segundo o pensamento lockeano, o Estado

Natural:

[...] seja um estado de liberdade, não é um estado de licença. Ainda que o

homem desfrute da total liberdade de dispor de seus bens ou de si mesmo,

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não é livre para causar a própria destruição nem a de qualquer criatura que

lhe pertença, exceto por algum motivo mais que a sua própria conservação.

O estado de natureza é composto por algum direito natural que favorece a

todos os homens. A razão que ensina a toda humanidade, que dela tira

proveito, pois, por sermos todos iguais e independentes, não devemos fazer

mal ao próximo, atentando contra sua saúde e liberdade, ou seus bens [...]

(LOCKE, 2014, p. 30).

Segundo ele, todos os seres humanos são obedientes a um único soberano, o sábio Criador. E

somente Ele tem o poder de tirar a vida. Vemos que a razão deve possibilitar o

esclarecimento, para que os seres humanos e os governantes possam de forma ponderada e

coerente julgar um infrator. Ou seja, para Locke, tantos os homens como o Estado estão

limitados por um poder soberano e divino.

A vontade da maioria, o direito de propriedade, de liberdade e a igualdade entre os

homens são basilares no pensamento de Locke. Sua crítica à monarquia absolutista decorre da

reflexão desses elementos, e como nesta forma de governo, o soberano utiliza de seu poder de

forma imparcial, não pensando no bem comum. Mas para satisfazer seu bel prazer, quase

baseado no discurso de bajuladores. Sobre tudo isso, ele nos diz:

[...] Gostaria que os que discordam lembrassem que os monarcas absolutos

são apenas homens, e para que o governo civil possa ser a cura de todos os

males, nesse caso específico, o estado de natureza não deve ser aplicado;

gostaria ainda de saber que tipo de governo é esse, e até que pinto ponto é

melhor do que o estado de natureza, em que um homem, comandando

outros, tem a liberdade de julgar a própria causa e fazer em seus súditos o

que convier, sem dar a mínima liberdade para que se questiones ou controle

os que executam sua vontade, seja ela fundamentada na razão, no erro ou na

emoção? Tudo fica melhor no estado de natureza, pois o homem não é

obrigado a se submeter à vontade injusta de outro homem. Se aquele que

julga o faz de forma errada e de propósito, precisará responder por isso

perante a humanidade (LOCKE, 2014. P. 34).

A vontade soberana, quando condicionada às mãos de um único ser, poderia se tornar pior do

que a existência no próprio Estado de Natureza. Como Locke exemplifica, nenhum homem é

obrigado a se submeter “à vontade injusta de outro homem”.

O princípio da sociedade política e do governo em Locke vai muito além da

preservação da vida defendido por Hobbes. Segundo Locke, no Estado de Natureza, o homem

goza de liberdade, é senhor absoluto de suas posses e de si mesmo. Mas como todos os outros

homens gozam da mesma condição natural, o pleno gozo de seus bens se torna incerto e fica

frequentemente exposta à invasão de outrem. Essa condição de insegurança o faz ficar

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disposto a renunciar a condição natural, sujeitando-se a comunidade civil, em favor da

“preservação mútua de vidas, liberdade e terras” e demais propriedades conquistadas pelo

trabalho no Estado de Natureza. Assim sendo, “[...] a finalidade maior e principal de os

homens se unirem em comunidades civis, de acordo com o jugo de um governo, é a

preservação das suas propriedades. No estado de natureza, há muitas carências” (LOCKE,

2014, p. 101). Segundo ele, seriam carências no Estado de Natureza: uma lei estabelecida,

consentida comumente, que padronizasse o que seja errado, que solucionasse as controvérsias

ente os homens como medida comum a todos; carência de um juiz estabelecido e imparcial,

que fizesse uso da lei consentida mutuamente; e um poder que executasse a sentença

proferida, quando justa, objetivando a sua execução. Por fim, o homem como ser racional,

segundo Locke, não desejaria alterar seu estado para um pior.

Um Estado Civil deve, segundo Locke, ser composto de três poderes: legislativo,

executivo e federativo. O poder legislativo é o poder soberano por excelência. E o melhor

modelo seria aquele onde o poder legislativo pense o bem comum de toda a comunidade, ou

seja:

[...] em comunidades civis bem organizadas, considerando o bem do todo em

primeiro lugar, como sempre deve ser, o poder legislativo é posto nas mãos

de várias pessoas, que, devidamente escolhidas, têm, sozinhas ou com

outras, o poder de legislar; e quando terminam, ao serem separadas

novamente, são submetidas às próprias leis que criaram; leis que elas têm a

obrigação de criar em benefício do povo (LOCKE, 2014, p. 115).

Todos devem então, segundo Locke, estar submetidos à lei. Até mesmo o poder soberano,

quando constituído. O que limitaria o poder legislativo a somente legislar em benefício

comum, e não em proveito próprio. Os três poderes conforme Locke pensou articulam-se da

seguinte forma:

O Poder Legislativo é responsável por estabelecer leis permanentes para o

bem público. Não precisa estar em sessão contínua, porque não há

necessidade de ser promulgar leis todo o tempo. O poder executivo têm entre

seus poderes o de convocar o Legislativo e convocar eleições. Locke não

lista o Judiciário entre os poderes. Neste ponto devemos ver o judiciário

mais como uma instituição interpretadora das leis e não como um poder.

Além disso, em Locke, os poderes Executivo e Legislativo já são os

intérpretes das leis em sua manufatura, estabelecimento de punições e

métodos de execução das leis (MIRANDA, 2014, p. 20).

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O poder Federativo, por sua vez, cuida dos problemas de cunho nacional, ou seja, do

relacionamento do Estado com outros governos. Assim, o pensamento lockeano é

fundamental para se compreender o Estado Liberal, no campo político, e o próprio

Liberalismo, no campo econômico, pois “os direitos inalienáveis do indivíduo à vida, à

liberdade, à propriedade constituem para Locke o cerne do estado civil e ele é considerado por

isso pai do individualismo liberal” (MELLO, 2000, p. 88). Enfim, segundo ele, o poder

soberano se legitima com o consentimento do povo, que busca preservar sua propriedade de

forma que haja um sistema de leis conhecido e reconhecido mutuamente, onde o Estado, por

meio de mecanismos legais, garanta a equidade entre os cidadãos e faça se respeitar a lei,

mantendo a ordem na Comunidade Civil.

Observamos que a construção dos limites do poder do soberano, estando concentrado

nas mãos de um só ou distribuído numa assembleia, se constitui na formação do Estado

liberal. Nesse processo, por meio da defesa do Direito Natural, surge a formação dos direitos

humanos, que para os pensadores clássicos do Iluminismo se constituem em algo inalienável.

Sobre essas questões controversas, colocadas em segundo plano pelos detentores do poder, e

em alguns casos, totalmente renegadas e destituídas de sentido, como nos Estados totalitários,

que trataremos daqui por diante. No Estado Total, como o pensado por Carl Schmitt, é a

concentração do poder decisório concentrado nas mãos de um só que garante a legitimidade

do poder. Como discutiremos no último capítulo, há uma postura totalmente diversa daquilo

de Locke propôs, surgindo o um indivíduo além dos limites constitucionais. Pois para

Schmitt, o presidente do Reich nos usos de seus poderes, deveria salvaguardar o Estado contra

os inimigos internos e externos, fora dos limites da própria Constituição – como expressa em

O Guardião da Constituição.

Estado Liberal: a formação do Estado de Direito e os limites do poder

soberano

“[...] Aqueles que estão unidos em uma sociedade

e têm leis e justiça devidamente estabelecidas às

quais apelar, com autoridade para decidir

controvérsias entre eles e punir os transgressores,

estão em plena sociedade civil. Mas aqueles que

não têm nenhum direito de recurso comum ainda

estão no estado de natureza, e não há nenhum

outro, pois cada qual julga por si mesmo e é, em si,

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o executor – essa condição, como mostrei antes, é

o perfeito estado de natureza.”

(John Locke, Segundo tratado sobre o governo

civil, p. 78)

O Estado liberal surgiu de profundas rupturas para com o Estado Absolutista. Podendo

ser este caracterizado como um processo gradual, dinâmico e singular em cada país em que

ocorreu. Pois, ele pode ser compreendido em níveis revolucionários e reformadores, nos

campos: religioso, político, econômico e social. Como já discutimos, o pensamento liberal

defende que o poder do Estado seja controlado, e que tenha o menor poder possível frente ao

indivíduo em sociedade – para os pensadores liberais o Estado é tido como um mal

necessário. A esfera econômica se autorregularia, segundo a lei da oferta e da procura. A

tolerância religiosa e a liberdade de expressão passam a ser direitos inalienáveis.

Politicamente, a vontade da maioria será progressivamente defendida e adotada pelos Estados

liberais, mas essa própria vontade deverá ser controlada – certos setores liberais temem o

surgimento da tirania da maioria. Socialmente, haverá a defesa da mobilidade social e da livre

iniciativa, a promulgação de direitos humanos inalienáveis (BOBBIO, 2013).

A formação do Estado liberal se entrecruza com a gênese do Estado de Direito, onde o

poder soberano e os cidadãos (ou súditos) devem saber quais os seus direitos e deveres dentro

da estrutura governamental. Como já tratamos anteriormente, será constituído pelo poder

legislativo, que proverá as leis que garantam a liberdades pessoais, as punições e as formas de

reparação para as ofensas tanto em âmbito privado quanto público (BOBBIO, 2013; LOCKE,

2014). Compreende-se que o direito deva ser entendido como ao ato de:

Atribuir a alguém um direito significa reconhecer que ele tem a faculdade de

fazer ou não fazer algo conforme seu desejo e também o poder de resistir,

recorrendo, em última instância, à força (própria ou de outros), contra o

eventual transgressor, o qual tem em consequência o dever (ou a obrigação)

de se abster de qualquer ato que possa de algum modo interferir naquela

faculdade de fazer ou não fazer [...] (BOBBIO, 2013, p. 11-13).

No pensamento liberal clássico, as leis e os princípios que as regem tiveram no direito natural

(ou jusnaturalismo) seu alicerce legitimador. Este, por sua vez, foi duramente criticado pelos

autores liberais do século XIX. Segundo Bobbio, direito e dever pertencem à linguagem

prescritiva, pressupondo a existência de normas ou regras de conduta que se atribui a um

sujeito de fazer ou não fazer algo.

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O espírito da lei e as formas de direito foi objeto de reflexão do pensador iluminista

Charles-Louis de Secondat, o Barão de Montesquieu (1689-1755). Foi escritor, jurista e

político francês. Assim como Locke, Montesquieu foi um crítico ferrenho ao absolutismo, por

outro lado, defendia a separação do Estado em três poderes distintos: Executivo, Legislativo e

Judiciário. Em seu livro, Do Espírito das Leis (1748), realizou uma profunda análise das leis e

do direito sobre a luz da razão. Suas ideias como podem observar atualmente, influenciaram

na constituição dos Estados contemporâneos, pós-revolucionários (mais precisamente da

Revolução Francesa de 1789). Interessante ressaltar que este autor apresenta uma forma de

compreender a guerra de todos contra todos, muito distinta da expressa por Hobbes. Segundo

aquele, “tão logo os homens se veem em sociedade, perdem o sentimento de fraqueza, cessa a

igualdade que havia entre ele e começa o estado de guerra” (MONTESQUIEU, 2010, p. 25).

Estado de guerra esse que ocorre tanto no âmbito externo da nação, quanto em seu interior.

Sendo que:

Cada sociedade particular vem a sentir a sua própria força: o que produz um

estado de guerra de nação contra nação. Os particulares, em cada sociedade,

começam a sentir a sua própria força; procuram reverter em seu favor as

principais vantagens dessa sociedade: o que cria um estado de guerra entre

ele (MONTESQUIEU, 2010, p. 25).

Tal reflexão nos conduz a objetivar que é a sociedade que corrompe a harmonia entre os seres

humanos, que existiria no Estado de Natureza. A questão do poder, ou da força, parece

conduzir a isso. Segundo Montesquieu, são esses dois estados de guerra que fazem surgir às

leis. Seriam estas leis baseadas em três definições: o direito das gentes, o direito político e o

direito civil. Para Montesquieu, existem três espécies de governo: o Republicano, o

Monárquico e o Despótico. Sendo definidos da seguinte forma:

[...] o governo republicano é aquele em que o corpo do povo, ou somente

parte do povo, tem o poder soberano; o monárquico, aquele em que um só

governa, mas por leis fixas e estabelecidas; ao passo que no despótico um só,

sem lei e sem regra, tudo determina por seus caprichos (MONTESQUIEU,

2010, p. 27).

O governo republicano pode ser na forma de uma democracia, ou de uma aristocracia. O

monárquico, regido por um só, deve estar baseado em leis que deem estabilidade ao

ordenamento do corpo executivo e do direito dos súditos. Quando isso não ocorre, surge o

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Estado despótico, segundo ele, característico dos povos orientais. Cada espécie de governo

possui, segundo Montesquieu, seus princípios: na democracia, é a virtude – compreendida

como virtude política, cidadã, e não como virtude cristã; na aristocracia, é a moderação que se

funda na virtude; na monarquia é a honra; e no despotismo, é o temor. Salienta o autor que

estes princípios podem estar presentes em qualquer uma das espécies de governo, mas que o

princípio fundamental deve ser aquele que contenha maior força dentro de dada sociedade,

caso contrário o governo pode vir a se corromper.

A linguagem, a clareza e o método de análise utilizados por Montesquieu, com

objetivo de traçar regras gerais sobre as formas de governo, derivam do paradigma moderno –

que estabelece a razão como guia. Sendo enfático ao afirmar que os seus princípios não são de

seus preconceitos, “mas da natureza das coisas”. Essa preocupação deriva de sua proposição

de que mesmo um povo sendo esclarecido, tendo magistrados preconceituosos, os

preconceitos destes se tornariam os da nação. Segundo J. A. Guilhon Albuquerque,

Montesquieu com sua definição de lei como “relações necessárias que derivam da natureza

das coisas”, passa a utilizar as diretrizes das ciências empíricas, mais estreitamente com a

física newtoniana. Com essa mudança na lógica jurídico-política, romperia com a tradicional

submissão política à teologia. Por outro lado, se questiona se isso não o faria cair num

determinismo natural. Onde conclui:

Montesquieu está dizendo, em primeiro lugar, que é possível encontrar

uniformidades, constâncias na variação dos comportamentos e formas de

organizar dos homens, assim como é possível tratá-las nas relações entre os

corpos físicos. Tal como é possível estabelecer as leis que regem os corpos

físicos a partir de relações entre massa e movimento, também as leis que

regem os costumes e as instituições são relações que derivam da natureza

das coisas. Mas aqui se trata de massa e movimento de outra ordem, a massa

e o movimento próprios da política, que poderiam corresponder, se

precisássemos levar adiante a metáfora, a quem exerce o pode e como ele é

exercido. São esses, como veremos, a natureza e princípio de governo, bases

da tipologia de Montesquieu (GUILHON, 2000, p. 115).

Segundo Guilhon Albuquerque, esse método empregado por Montesquieu traria a política

para o campo propriamente teórico, estabelecendo uma regra de imanência. Assim,

Montesquieu teria como objeto as leis positivas, ou seja, as instituições e as leis constituídas

pelos seres humanos para reger as relações entre si.

Outro iluminista que se preocupou com a relação entre a força e o poder na sociedade

foi Jean-Jacques Rousseau, nascido em Genebra, em 28 de junho de 1712, e falecido em 2 de

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julho de 1778, em Ermenon ville, na França. Segundo ele, “[...] haverá sempre uma grande

diferença entre submeter uma multidão e dirigir uma sociedade [...]” (ROUSSEAU, 2010, p.

31). Há uma distinção entre demonstrar a força e exercer o poder em sociedade. Como os

demais pensadores iluministas apresentados, Rousseau pensava existir um Direito Natural,

por outro lado, defendia que os homens eram bons por natureza e a sociedade os corrompia.

O mais forte nunca é bastante forte para ser sempre o senhor se não

transformar sua força em direito e a obediência em dever. Daí o direito do

mais forte; direito tomado aparentemente com ironia e, na realidade,

estabelecido como princípio. Mas será que nunca nos explicarão essa

palavra? A força é um poder físico; não vejo que moralidade pode resultar de

seus efeitos. Ceder à força é um ato de necessidade, não de vontade; quando

muito, é um ato de prudência. Em que sentido poderá ser um dever?

(ROUSSEAU, 2010, p. 26).

Tal como os outros pensadores já citados, Rousseau diz não existir autoridade natural

nenhuma que faça um homem se submeter a outro. Somente as convenções poderiam

constituir uma base de autoridade legítima entre os homens. A legitimidade do poder, então,

surge a partir do consentimento, por uma ação humana e não de sua natureza. A passagem do

homem do Estado de Natureza para o Estado Civil faria com que o homem trocasse o instinto

pela justiça e por outras condutas morais que lhe faltava. “[...] É somente então que, a voz do

dever sucedendo ao impulso físico e o direito ao apetite, o homem, que até então só havia

considerado a si mesmo, vê-se forçado a agir segundo outros princípios e a consultar sua

razão antes de escutar suas inclinações [...]” (ROUSSEAU, 2010, p. 37). A questão da

liberdade do homem também é discutida pelo autor, pois com o contrato social, perderia o

homem a liberdade natural e um direito ilimitado, por outro lado, por este mesmo contrato,

ganharia a “liberdade civil e a propriedade de tudo o que possui”. Nesse sentido “[...] poder-

se-ia acrescentar a aquisição, no estado civil, da liberdade moral, a única que torna o homem

verdadeiramente senhor de si, pois o impulso do simples apetite é escravidão, enquanto a

obediência à lei a que está prescrito é liberdade [...]” (ROUSSEAU, 2010, p. 38). A posse de

si pelos homens seria apenas garantida no Estado Civil, legitimamente constituído com leis

prescritas, garantindo a liberdade frente a sua obediência. De formar clara, a propriedade

privada para Rousseau e para Locke possui sentidos valorativos distintos, para o primeiro de

forma negativa e para o segundo, positiva.

Em sentido amplo, por meio da história do pensamento político, o contratualismo

marca um rompimento com o organicismo. Explicado por Bobbio da seguinte forma:

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[...] o contratualismo moderno representa uma verdadeira reviravolta na

história do pensamento político dominado pelo organicismo na medida em

que, subvertendo as relações entre indivíduo e sociedade, faz da sociedade não

mais um fato natural, a existir independentemente da vontade dos indivíduos,

mas um compor artificial, criado pelos indivíduos à sua imagem e semelhança

e para a satisfação de seus interesses e carências e o mais amplo exercício de

seus direitos (BOBBIO, 2013, p.15).

O indivíduo, nesse sentido, surge como elemento fundamental para existência da sociedade,

ou melhor, sem os indivíduos não existiria a sociedade. Como assinala o autor, o Direito

Natural e a teoria do contrato social estão intrinsecamente ligados, mesmo que estas sejam,

por estes pensadores, apresentadas de forma invertida pelo curso histórico.

O processo no qual se constituem o Estado liberal e os direitos humanos, a questão do

poder está sensivelmente condicionada ao aumento ou diminuição da participação popular no

comando do poder. Progressivamente, o liberalismo e a democracia irão constituir a essência

política do Estado liberal, melhor conceituando, o Estado liberal-democrático. Tanto no

liberalismo quanto na democracia, a igualdade é um conceito fundamental. A igualdade de

oportunidades e a igualdade de direitos. No entanto, a igualdade existente nos dois podem se

tornar contrapostos, pois suas bases se fundam em princípios conflitantes: “[...] individualista,

conflituosa e pluralista a liberal; totalizante, harmônica e monista a igualitária [...]”

(BOBBIO, 2013, p. 38). Em suas extremidades, a duas formas de compreender a organização

social teriam um descompasso no sentido em que uma coloca a liberdade individual acima da

igualdade plena da comunidade, e vice-versa. Segundo Bobbio, a compatibilidade estaria no

fato de que:

A única forma de igualdade que não só é compatível com a liberdade tal

como entendida pela doutrina liberal, mas que é inclusive por essa solicitada,

é a igualdade na liberdade: o que significa que cada um deve gozar de tanta

liberdade quanto compatível com a liberdade dos outros, podendo fazer tudo

o que não ofenda a igual liberdade dos outros (BOBBIO, 2013, p. 39).

Nesse sentido, o autor sustenta que a coexistência das duas doutrinas se sacramentou com as

normas constitucionais: a igualdade perante a lei e a igualdade dos direitos. Porém, esse

processo de difusão dos ideais liberais encontrou resistências dos aspectos tradicionais das

sociedades do Antigo Regime. Resistências e permanências essas que buscaremos

problematizar a seguir.

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Persistências do Antigo Regime na sociedade liberal

“[...] O elenco dos direitos fundamentais varia de

época para época, de povo para povo, e por isso

não se pode fixar um elenco de uma vez por todas:

pode-se apenas dizer que são fundamentais os

direitos que numa determinada constituição são

atribuídos a todos os cidadãos indistintamente, em

suam, aqueles diante dos quais todos os cidadãos

são iguais.”

(Norberto Bobbio, Liberalismo e Democracia, p.

41)

A história se desenvolve a partir dos processos de transformações e permanências,

onde aspectos singulares de sociedades contemporâneas convivem com elementos de outras

formas de agrupamentos sociais – que podem ser completamente distintos e excludentes.

Como já tratamos anteriormente, a sociedade do Antigo Regime entrou em colapso com o

desenvolvimento e a implantação dos ideais liberais na Europa e na América. Movimentos

restauradores, como a Santa Aliança lutaram pela manutenção do status hegemônico da

nobreza e da realeza após o desencadeamento do processo revolucionário na França a partir

de 1789. Sociedade esta, segundo Arno J. Mayer41

, constituída:

[...] sobretudo, em uma economia camponesa e uma sociedade rural

dominadas por nobrezas hereditárias e privilegiadas. À exceção de uns

poucos banqueiros, negociantes e armadores, as grandes fortunas e rendas se

baseavam na terra. Por toda Europa, as nobrezas fundiárias ocupavam o

primeiro plano não só em termos econômicos, sociais e culturais (MAYER,

16, 1987).

O poder hegemônico da sociedade do Antigo Regime se caracteriza por direitos hereditários e

pela posse da terra, preponderantemente. Como o próprio autor destaca, coexistem outras

formas de aquisição de riquezas além das grandes propriedades latifundiárias.

O livro A Força da Tradição, de Arno J. Mayer apresenta-se com o objetivo de criticar

os historiadores que, segundo ele, deram muita ênfase às transformações sociais, do avanço da

41

Importante salientar que este autor analisou as persistências do Antigo Regime na Europa após as revoluções

liberais sob o viés da linha marxista da história, como ele mesmo destaca no prefácio do livro. A obra tem a

intenção de demonstrar como o século XX foi palco da disputa final da permanência da sociedade do Antigo

Regime contra a sociedade liberal burguesa. Essa disputa forjou o que o autor denominou em a Guerra dos Trinta

Anos do século XX, compreendendo a duas grandes guerras mundiais como um único conflito, pois teriam as

mesmas “causa causans”.

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ciência, da classe burguesa e da tecnologia no século XX. Havendo então negligência,

desvalorização e subestimação das resistências das velhas forças e ideias e a sua capacidade

de retardar, assimilar e neutralizar a modernização capitalista e a própria industrialização

(MAYER, 1987). O autor constrói uma tese baseada na afirmação de que os elementos “pré-

modernos” não se tornaram meras permanências frágeis e decadentes de um tempo que não

mais existia, mas que esses elementos ainda constituíam a essência das sociedades políticas e

civis na Europa. Assim, o autor nos diz:

[...] Isso não significa negar a importância crescente das forças modernas

que solaparam e desafiaram a antiga ordem. Mas significa sustentar que até

1914 as forças de inércia e resistência contiveram e refrearam essa nova

sociedade dinâmica e expansiva no interior dos anciens regimes que

dominavam o cenário histórico europeu (MAYER, 1987, p. 15-16).

Havia, então, duas forças no cenário europeu que, segundo o autor, nem sempre caminhavam

para o enfrentamento, dadas as capacidades de acomodação realizada pela sociedade da antiga

ordem, e pelo desejo de certos setores da burguesia em passar a integrar a nobreza. Sobre a

nobreza, Arno J. Mayer argumenta que esta herdou muito mais do que os costumes, tradições

e a mentalidade de classe superior do feudalismo. O feudalismo, nesse sentido, “[...] penetrou

nos anciens regimes através de nobiliarquias posicionadas de modo a monopolizar postos

econômicos, militares, burocráticos e culturais estratégicos [...]” (MAYER, 1987, P. 18). Por

meio destes postos de poder, a nobreza fundiária se manteve superior em termos de status, de

classe e de poder sobre a burguesia comercial e industrial até 1914. Seguindo o raciocínio de

Mayer, mesmo a industrializada Inglaterra e a republicana França não se desvincularam

completamente do predomínio da nobreza e de seu espírito feudal, pois para ele:

[...] nem a Inglaterra e nem a França haviam se tornado sociedades civis e

políticas industrial-capitalistas e burguesas em 1914. Suas políticas eram tão

“obviamente antiquadas” e “obstinadamente preocupadas com sua

longevidade” quanto as políticas das outra quatro grandes potências. Todas

eram igualmente anciens regimes fundados na predominância duradoura das

elites agrárias, da agricultura, ou de ambas (MAYER, 1987, p. 21).

A nobreza e a burguesia praticavam, segundo o autor, de uma simbiose ativa, onde as antigas

elites mantinham o predomínio social, cultural e político. Aproveitando-se das vantagens

econômicas do capitalismo, essas elites cuidavam dos interesses burgueses, distanciando-se

do modo de vida burguês (MAYER, 1987).

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Não apenas o poder econômico das antigas elites possibilitou a sua permanência como

grupo dominante no cenário europeu até o início do século XX, mas também os discursos

produzidos por seus intelectuais, que mantinham e revigoravam a crença de grupo eleito por

Deus para governar sobre a terra. “Quando o desígnio divino para a sociedade começou a ser

contestado, a subversão teórica e simbólica do político surge como o Mal [...]” (ROMANO,

1997, p.13). Com a progressiva separação da religião do pensamento político no mundo

moderno, a figura de Maquiavel esteve revestida com um caráter mundano e até mesmo

diabólico, o anticristo. Segundo Roberto Romano, “[...] com Maquiavel, rompe-se a antiga

tábua de valores: a bipartição do mundo em Bem e Mal será “posta de ponta cabeça”,

invertendo-se radicalmente a experiência política do mundo” (ROMANO, 1997, p. 13). Para o

autor, anteriormente o poder se apresentava com a missão de conduzir os homens à

Eternidade. Com o pensamento de Maquiavel desenvolve-se a política secularizada e a ideia

da existência da “Raison d’État”. Como salientamos anteriormente, Norberto Bobbio

considera que no mundo moderno existam duas ideias em disputa, uma moral cristã e uma

ética política laica. Roberto Romano afirma que essa dualidade se traduziu num conflito onde

a dominação religiosa foi suplantada pela soberania laica. Nesse sentido:

[...] O instituto eclesiástico, à medida que perdeu poder efetivo, potencia

todo um imaginário negro e nublado do mundano, identificando-o como

fonte de perdição. Esse antimodernismo católico travejou a ideologia contra-

revolucionária defendida após 1789, no refluxo das Restaurações, e

exasperada contra os movimentos políticos antireligiosos burgueses ou

proletários, sobretudo após 1848 [...] (ROMANO, 1997, p. 15-16).

Ou seja, os pensadores contrarrevolucionários se afirmaram com um discurso antiburguês e

romântico, segundo o autor, identificando Maquiavel com os ideais da Revolução Francesa,

um poder “diabólico”, pois se dirigia contra os ensinamentos da Igreja. Essas seriam as

principais bandeiras dos defensores da Ordem católica.

Como expomos a pouco, Arno J. Mayer defende que o poder das elites do Antigo

Regime perdurou até o início do século XX, numa relação de simbiose ativa. Sobre outro

aspecto, Roberto Romano argumenta que o discurso restaurador e antiburguês, dos escritores

contrarrevolucionários, sobreviveram até o século XX, materializando-se nos escritos de Carl

Schmitt. A esse respeito, Roberto Romano considera que “[...] Este juízo inapelável

propagou-se até inícios do século XX, lastreando, por exemplo, as construções decisionistas

do direito em Carl Schmitt, que toma aqueles pensadores como modelos para suas

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justificações para o nazismo” (ROMANO, 1997, p. 16). A Igreja, com progressiva

deterioração do seu poder dentro do Estado moderno, não deixou de ser um poder

fundamental para manter a legitimidade do governo. O Império Napoleônico pode ser usado

como exemplo da utilização simbólica da Igreja para sua legitimação, de um modo diferente

ao que se praticava com as monarquias cristãs. A questão residia na soberania do poder, na

qual as dualidades da concepção eclesiástica e da concepção laica discordavam. “O conceito

de soberania é central, portando, no choque entre política católica e laica. Enquanto a última

aprofundou as noções de Estado e Nação como par particular, a primeira tentou afirmar a

universalidade do ser eclesiástico [...]” (ROMANO, 1997, p. 16). Dessa forma, segundo o

autor, na maioria dos Estados pós-modernos, a Igreja será vista como um poder estrangeiro,

que acabava por minar a soberania do poder laico – o que em diversos países se baseou no

Anticlericalismo42

.

Com o modo de vida moderno, a Igreja acabou por perder o tempo qualitativo. Um

novo estilo de vida, o burguês, pouco a pouco desafiava o tempo litúrgico eclesiástico. A

divisão do trabalho, a implantação da disciplina horária, a rapidez do mercado, o cálculo,

suplantavam as ideias cristãs as virtudes e do tempo, tornando-as anacrônicas. Mas a própria

burguesia, nesse processo, gestou o “proletariado revolucionário” (ROMANO, 1997).

Passaram a existir dois tempos contraditórios entre as duas classes modernas:

[...] o da burguesia e o do proletariado. Mas, nem um nem outro aceita

retornar ao velho tempo cristão, escandido pelo sino paroquial. Nisso as

classes modernas opunham-se à Igreja. Ambas eram racionais, mundanas,

democráticas, contrárias à Tradição. Sobretudo, eram anticlericais. A

apologia Ultramontana atacou esses pontos comuns entre burguês e o

operário. Ambos seriam frutos de uma conjura maquiavélica, modernos

filhos de Satanás. Entre a Revolução Francesa e a Comuna de Paris, diz o

Ultramontanismo, a relação é direta. Indo mais fundo na história, alegam os

seguidores de Lammanais, De Bonalde outros, que o socialismo é fruto da

Reforma, cuja “liberdade de perdição” abalou o fundamento eclesiástico,

pode em perigo a barca de Pedro (ROMANO, 1997, p. 18).

A história política, social e econômica da modernidade, segundo o autor, foi entrelaçada por

um discurso onde existe a luta entre o Bem e o Mal, na escrita dos Ultramontanos. A luta

42

Essa forma de pensar e agir, para Guido Verucci, surgiu ainda durante a Idade Média. Ao que concerne o

período aqui em questão, entre 1850 e 1870, o Anticlericalismo em oposição ao catolicismo Ultramontano, se

caracterizou por uma “[...] rejeição de toda interferência da Igreja e da religião na vida pública, como afirmação

de uma necessária separação entre política e religião, entre Estado e Igreja, reduzindo a Igreja ao direito comum

e a religião a um fato privado, segundo a inspiração do individualismo liberal [...]” (VERUCCI, 2010, p. 32). Por

vezes, salienta o autor, ao Anticlericalismo praticou a intolerância.

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política para esses pensadores é travada para garantir a Eternidade, contra o “Adversário do

Gênero Humano”.

Garantir a legitimidade de um governo é tarefa fundamental para o seu

estabelecimento. A fonte da legitimidade dos governos varia de acordo com conjunturas

sócio-históricas, por meio de processos distintos, como exemplo as três formas de poderes

legítimos apresentadas por Max Weber. Carl Schmitt buscou entender como se desenvolveu o

critério de legitimação do poder no século XIX e início do XX, argumentado que “[...] o

desenvolvimento da democracia de 1815 a 1918 pode ser descrito como o desenvolvimento de

um conceito de legitimidade – da legitimidade dinástica à democrática [...]” (SCHMIT,

1996a, p. 30). A progressiva democratização dos Estados europeus, um dos assuntos mais

importantes para Carl Schmitt, foi a confirmação da ideia de Alexis de Tocqueville sobre a

transformação no modo de governo no mundo contemporâneo.

Houve uma vitória, segundo Eric Hobsbawm, da ideologia secular sobre a ideologia

religiosa, com a Revolução Americana e a Revolução Francesa.

[...] A linguagem, o simbolismo e o costume de 1789 são puramente não

cristãos, se deixamos de considerar alguns esforços arcaico-populares para a

criação de cultos a santos e mártires, análogos aos antigo (sic) cultos, em

honra dos heróis “sansculottes” mortos. Isto era, de fato, romano. Ao mesmo

tempo este secularismo da revolução demonstra a impressionante hegemonia

política da classe média liberal, que impunha suas formas ideológicas

particulares a um movimento de massas bem vasto [...] (HOBSBAWN,

1991, p. 242).

Com algumas exceções apontadas pelo historiador, os movimentos revolucionários de massas,

posteriores a esse marco, adotariam o aspecto secularizado em suas bases teóricas e nas ações

práticas. A democratização das sociedades, para Carl Schmitt, em seu escrito Situação

intelectual do sistema parlamentar atual, pertence ao imaginário da marcha do progresso.

Para ser moderna, uma sociedade deve ser democrática – combinada com os princípios do

liberalismo. Até o início do processo revolucionário da França, “[...] a formulação mais

poderosa e adiantada desta ideologia de progresso tinha sido o clássico liberalismo burguês

(...) Era uma filosofia estreita, lúcida e cortante que encontrou seus mais puros expoentes

como poderíamos esperar, na Grã-Bretanha e na França” (HOBSBAWM, 1991, p. 256). Em

síntese, o liberalismo clássico defendia que:

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[...] o mundo humano estava constituído de átomos individuais com certas

paixões e necessidades, cada um procurando acima de tudo aumentar ao

máximo suas satisfações e diminuir seus desprazeres, nisto igual a todos os

outros, e naturalmente não reconhecendo limites ou direitos de interferência

em suas pretensões. Em outras palavras, cada homem era “naturalmente”

possuído de vida, liberdade e busca da felicidade, como afirmava a

Declaração de Independência dos Estados Unidos, embora os pensadores

liberais mais lógicos proferissem não colocar isto na linguagem dos “direitos

naturais” [...] (HOBSBAWM, 1991, p. 256-257).

Sobre essa visão de mundo, segundo Hobsbawm, estabelecia-se o dever da política de reduzir

a interferência nas liberdades individuais a um “mínimo praticável”. A felicidade, o supremo

objetivo dos indivíduos. A soma das vontades individuais formava os objetivos sociais.

Obviamente, relacionados a um pensamento racionalista e secular, em parâmetros científicos

e nas revoluções científicas do século XVII.

Esse pensamento racionalista e secular, que buscava a democratização da sociedade,

ou de alguns segmentos dela, surgiu em contraposição ao Estado Absolutista da Era Moderna.

Entre as transformações políticas, econômicas e sociais dos séculos XIX e XX, surgiu outra

forma de governo, que buscava concentrar em si o conjunto das tomadas de decisões tanto no

âmbito do Estado, quanto no da sociedade civil e nas individualidades dos cidadãos. Ao

interpretar a compreensão de Hannah Arendt sobre o Totalitarismo, Jonathan Schell

contrapõe-lo as tiranias anteriores da seguinte forma:

[...] As enormidades do totalitarismo estão tremendamente distantes de

qualquer coisa do passado. Enquanto os tiranos anteriores se contentavam

basicamente em dominar a esfera política, sem se imiscuir na vida privada e,

por vezes, deixando intocadas amplas áreas da vida econômica e cultural, os

totalitários pretendiam controlar todos os aspectos da existência humana. A

essência do totalitarismo, afirma Arendt, é a dominação total dos seres

humanos pelo terror. O inédito não é apenas a escala, e sim a natureza dos

crimes. A essência deles consiste na tentativa de extirpar toda e qualquer

“expontaneidade” humana, ou seja, a liberdade humana (SCHELL, 2011, p.

13).

Objetiva não apenas governar os governados, essa forma de Estado, mas em controlá-los e

moldá-los de acordo com a vontade do chefe, do grupo dominante ou do partido que

comanda. Aqueles que estão à frente desses movimentos, segundo Jonathan Schell, não

possuem as mesmas ambições dos tiranos clássicos (ou que não sejam as que se destacam).

Estes tinham ambições como a ganância, o desejo de poder, a expansão territorial. Os

totalitários, nesse sentido, dariam pouco valor a suas vidas e a de outros que os seguem, “[...]

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eles sentem satisfação em participar ou, pelo menos, em ser arrastados em gigantescos

processos históricos, cujos estágios e destinos finais estão apresentados em seus esquemas

ideológicos” (SCHELL, 2011, p. 14). Apresenta-se um cenário catastrófico onde o autor, ao

refletir sobre a visão arendiana sobre o tema, diz-nos que é como se a tradição do pensamento

ocidental estivesse em ruínas por onde essa forma de governo administrou ou tentou

conquistar. Os direitos humanos foram renegados e arrasados, e as leis já não podiam mais

formular termos passíveis de entendimento, pois os sistemas jurídicos foram, então,

demolidos ou ultrapassados.

A realidade nos movimentos totalitários, e não só neles, é manipulável. “[...] Os

totalitários conseguiam realizar tais proezas porque fazia parte de seus novos artifícios a

investida maciça contra o mundo factual, substituindo-o por um mundo factício inventado por

eles mesmos” (SCHELL, 2011, p. 14). A propaganda e o terror são necessários para sustentar

essa ação. Quando um movimento totalitário alcança o poder, no aspecto prático ocorre que:

[...] a posse de todos os instrumentos de força e de violência por parte do

totalitarismo no poder cria uma situação difícil e paradoxal para o

movimento totalitário. O possuir de poder significa o confronto direto com a

realidade, e o totalitarismo no poder procura constantemente evitar esse

confronto, mantendo o seu desprezo pelos fatos e impondo a rígida

observância das normas do mundo fictício que criou. Já não basta que a

propaganda e a organização afirmem que o impossível é possível, que o

incrível é verdadeiro e que a coerente loucura governa o mundo; o principal

esteio psicológico da ficção totalitária – o ativo ressentimento contra o status

quo, que as massas recusaram aceitar como possível – já não existe, e cada

fragmento de informação concreta que se infiltra através da cortina de ferro,

construída para deter a sempre perigosa torrente da realidade vinda do lado

não-totalitário, é uma ameaça maior para o domínio totalitário do que era a

contrapropaganda para o movimento totalitário (ARENDT, 1989, p. 442).

Pode-se observar que existem claras diferenças no Totalitarismo, principalmente quando ele é

avaliado, por um lado, como um movimento de massas que luta pela posse do poder. E, por

outro, no momento em que ele detém e maneja os instrumentos do poder para a sua

manutenção e expansão, sendo um poder constituído. Como centro de emanação do poder e

da violência, as ideias totalitárias são utilizadas para “moldar a realidade” (criar ou inventar

uma realidade que confirme o discurso exaltado pelo movimento, seja ela nazi-fascista ou

stalinista). Nessas condições, o regime no poder sendo de ordem totalitária, se o processo

histórico não transcorre como o previsto, por meio da mentira “[...] ele pode alterar a própria

realidade para adequá-la a ilusão – por exemplo, assassinando classes ou raças inteiras para

“provar” que elas tinham sido condenadas pela História. Mesmo a natureza humana, antes tida

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como inexpugnável, foi arrasada no sistema dos campos” (SCHELL, 2011, p. 15). A realidade

se transforma num campo de luta pelo poder, e a sua adequação aos desígnios ideológicos se

faz necessária, seja no nazismo ou no stalinismo.

Estudioso do pensamento de Karl Marx e de Friedrich Engels, Carl Schmitt expõe

certas mudanças no pensamento marxista no início do século XX. Ao comentar o escrito de

Georges Sorel, Reflexões sobre a violência, Schmitt destaca a defesa de uma postura

nacionalista contraposta ao ideal internacionalista que norteava o socialismo anteriormente.

Salienta que aquele autor, acrescentou em uma das edições do livro uma apologia a Lenin,

denominando-o como:

[...] “o maior teórico do socialismo depois de Marx”, e compara-o, como

estadista, a Pedro, o Grande; só que, atualmente, ali não se assinalou mais

um intelectualismo europeu ocidental, mas muito pelo contrário, o uso

proletário da força pelo menos conseguiu que a Rússia voltasse a ser russa,

que Moscou voltasse a ser a capital, e que fosse eliminada a camada

superficial europeizada do país que renegava a própria Rússia. O uso da

força pelo proletariado fez com que a Rússia voltasse ser moscovita. Nas

palavras de um marxista internacional esse é um elogio estranho, pois mostra

que a energia do sentimento nacional é maior que o mito da luta de classes

(SCHMITT, 1996a, p. 69).

A crítica schmittiana conduz a algumas das questões centrais do socialismo, em sua busca à

transformação social e ao seu caráter de movimento internacionalista. O nacionalismo para

Schmitt constituía uma força com maior capacidade de impulsionar determinado movimento,

em contraposição ao que ele denomina de “mito da luta de classes”. Sobre essa mudança de

postura do socialismo a respeito do nacionalismo, Hannah Arendt argumenta que:

Quando um movimento, internacional em sua organização, universal em seu

alcance ideológico e global em sua aspiração política, toma o poder num

único país, coloca-se obviamente em situação contraditória. O movimento

socialista escapou a essa crise, em primeiro lugar, porque a questão nacional

– ou seja, o problema estratégico suscitado pela revolução – havia sido

cuidadosamente negligenciado por Marx e Engels e, em segundo lugar,

porque só teve de encarar o problema de governar depois que a Primeira

Grande Guerra retirou da Segunda Internacional a autoridade sobre os

membros nacionais, que em toda parte haviam aceito como fato inalterável a

prioridade dos sentimentos nacionais em relação à solidariedade

internacional. Em outras palavras, quando chegou o momento da tomada do

poder em seus respectivos países, os movimentos socialistas já eram partidos

nacionais (ARENDT, 1989, p. 439).

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Dessa forma, compreende-se como o próprio processo histórico condiciona os movimentos

totalitários, que se rendem ou se utilizam de determinados contextos factuais, para

redimensionar sua prática pela conquista e pela manutenção do poder.

O liberalismo, segundo Carl Schmitt, havia no início do século XX chegado a um

ponto crítico. No período de 1919 a 1933, a crítica ao liberalismo feita pelo pensador se

baseia em traçar, por outro lado, uma distinção dicotômica entre aquele e a democracia. A

democracia não se apresentou anacrônica ao contexto da participação das massas no cenário

político, para o autor. Porém, este terá uma concepção democrática peculiar – se pudermos

validar um governo centralizador, onde os cidadãos exercem o poder democrático delegando

poderes supremos a um líder (abordaremos essa questão com maior profundidade no decorrer

do próximo tópico). O princípio democrático seria o elemento legitimador dos Estados

modernos para Schmitt, transformação da legitimidade dinástica. Assim, os países de cultura

ocidental e até mesmo o governo bolchevista da Rússia Soviética buscariam legitimar seus

governos pela defesa e manutenção da democracia – argumenta o autor, que o comunismo

acreditava trazer a existência da “verdadeira democracia”. Ao refletir acerca da postura

monarquista e comunista sobre a democracia, Carl Schmitt nos diz que:

[...] predomina uma concordância dos dois lados. Quando o teórico do

bolchevismo suspende a democracia em nome de uma verdadeira

democracia, e quando o inimigo da democracia espera abafá-la, então o

primeiro pressupõe a exatidão teórica dos princípios democráticos e o outro

o seu domínio concreto, que deve ser levado em conta. Só o fascismo

italiano, aparentemente, não faz questão de ser “democrático”. Apesar dele,

somos obrigados a dizer que o princípio democrático é irrestrita e

universalmente reconhecido (SCHMITT, 1996a, p. 30).

A democracia é o lema de ordem desse período histórico, segundo Schmitt. Apenas o

fascismo italiano não se preocuparia em buscar se legitimar sobre o caráter democrático de

governo. Avalia o autor, que nos anos 1920, que qualquer governo que passe a existir seja

empoçado por uma Assembleia Constituinte, dotada de princípios democráticos – qualquer

governo que surja fora dessa estrutura se apresentaria como uma usurpação do poder. Pois o

povo, nesse contexto, já não mais necessitaria de uma ditadura educativa, nos moldes da

Ditadura Jacobina da França revolucionária (SCHMITT, 1996a).

A legitimidade do governo está relacionada à soberania, na monárquica do rei e na

democrática, na vontade popular. Assim, Carl Schmitt buscar desenvolver distanciamentos e

aproximações entre a Santa Aliança e a Liga das Nações:

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[...] Quando uma Constituição é desrespeitada, na deturpação de princípios

democráticos, então deve-se restaurar o direito de autodeterminação de um

povo, o que acontece por meio de intervenção. Uma intervenção baseada no

conceito monárquico de legitimidade só é ilícita para o pensamento

democrático porque fere o princípio da autodeterminação dos povos. Por

outro lado, a restauração da livre autodeterminação de um povo por meio de

uma intervenção, a sua libertação de um tirano, não poderia nunca ferir o

princípio de não-intervenção, mas ao contrário, proveria os seus

pressupostos. Uma Liga das Nações moderna, de base democrática, também

precisa de um conceito de legitimidade para realizar uma possível

intervenção quando for ferido o princípio que lhe serve de base jurídica

(SCHMITT, 1996a, p. 31).

A atenção exposta no fragmento acima se refere ao dilema de se estabelecer bases legitimas

de uma instituição internacional intervir em determinado Estado, local ou região quando a

base legitimadora do governo, a Constituição é desrespeitada. A Liga das Nações, segundo

Schmitt, ainda não possuía um fundamento concreto para realizar intervenções em lugares

onde a autodeterminação do povo estivesse sendo desrespeitada. Questão controversa, pois

uma intervenção estrangeira causaria um conflito com a questão da autodeterminação dos

povos, em sua lógica, defendida pela própria liga. Ao contrário da Santa Aliança, que segundo

o autor, interferiu na autodeterminação dos povos por meio de intervenções tanto no âmbito

externo quanto no interno.

Seguindo a reflexão sobre os aspectos da emanação do poder na monarquia de origem

divina e na democracia, Schmitt traçou uma relação, referindo-se ao argumento jacobino, da

seguinte forma: o “[...] interesse passa a concentrar na formação e moldagem da vontade

popular, e a crença de que todo poder emana do povo contém um significado semelhante à

crença de que toda força autoritária emana de Deus [...]” (SCHMITT, 1996a, p. 31). A origem

da legitimidade do poder nesses dois sistemas de governo sofre uma aproximação no

pensamento schmittiano, operando-se um afastamento da democracia com a sua associação ao

sistema parlamentar moderno. “[...] Pode existir uma democracia sem aquilo que chamamos

de sistema parlamentar moderno, e pode existir um sistema parlamentar sem democracia. A

ditadura também não é o oposto decisivo da democracia, assim como esta não o é da ditadura”

(SCHMITT, 1996a, p. 32). Aproximações e distanciamentos complexos, que o autor

demonstra uma argumentação coerente, atacando o liberalismo sem se posicionar contrário a

democracia. Mas, se a democracia é a forma de governo onde o povo está, ou deve estar

presente no governo, como uma ditadura pode ser democrática? Camuflar o autoritarismo de

uma ditadura se utilizando de um discurso de defensor da democracia, da verdadeira

democracia no mundo contemporâneo esteve presente em ditaduras de direita e esquerda.

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Todo sistema político necessita ser legitimando de alguma forma, como já

observamos. Quando a legitimidade do regime político dominante é enfraquecida, mantê-lo é

uma tarefa complicada. A tirania ou a ditadura podem ser mecanismos que alcancem essa

finalidade. Quando o Império Alemão é derrotado na Primeira Guerra Mundial, os alemães

vivenciam uma série de conflitos, em que diversos agrupamentos políticos lutavam pelo

poder. A República de Weimar irá prevalecer com a difícil tarefa de lidar com o que

determinou o Tratado de Versalhes. A social-democracia conseguiu governar, segundo alguns

historiadores que veremos a seguir, por meio da articulação com partidos de centro. Utilizou

da violência para derrotar movimentos de esquerda que almejavam implantar governos

comunistas. O surgimento dos movimentos fascistas se constituiu num novo componente de

luta política no pós-guerra. E sua variação alemã, o Nacional-Socialismo, com uma visão

política voltada aos trabalhadores alemães, na defesa da supremacia da raça ariana e na

perseguição contra os judeus, estabeleceu o fim da curta experiência democrática alemã do

entreguerras. É sobre o desenvolvimento desse quadro histórico, no qual Carl Schmitt esteve

inserido, que discutiremos em seguida.

A República de Weimar: a crise do sistema parlamentar ou o

aprofundamento das práticas autoritárias na Alemanha do Entreguerras

“[...] Membros de uma sociedade-Estado que foi

absolutista por largo tempo – governada de cima

para baixo na forma do que chamaríamos um

Estado policial – desenvolvem estruturas de

personalidade muito análogas, em que sua

capacidade para exercer a autocoação permanece

na dependência de uma coação externa, de uma

força que os ameace desde fora com severas

punições. Um regime não absolutista e multipartite

requer um mecanismo muito mais forte e mais

firme de autocação [...]”

(Norbert Elias, Os Alemães,p. 44)

Os seres humanos se organizam a partir de instituições socialmente estabelecidas, de

forma singular a cada modelo de sociedade. Os regimes políticos se inserem nesse processo,

como produtos e produtores da transformação social. Como aborda Norbert Elias, pouco

adiante do fragmento acima, em determinados casos, é a condição social do “outro” que

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determinará a forma como “eu” me portarei perante ele e para com ele. Ao embate político,

argumenta ele, as transformações das práticas de disputa pelo poder podem levar diversas

gerações. Pensando as formas de sociedade de seu tempo, ao que concernem as diferenças

sociais, diz-nos que elas declinaram com o processo de democratização. O que levou a todos

necessitarem desenvolver “um grau relativamente elevado” de mecanismos de auto-contenção

– para com todas as pessoas, mesmo com subordinados socialmente (ELIAS, 1997, p. 45). Ou

seja, as mudanças nessas sociedades democráticas, demandariam transformações na relação

entre as gerações, os gêneros sexuais e do pertencimento de classe. Sem nos esquecer dos

problemas ligados a questão racial, marcante no século XX, e pelo movimento nazista na

Alemanha. Para que isso ocorresse, segundo o autor, deveria se implantar a persuasão e a

argumentação convincente.

Podemos deduzir pelo processo histórico da Alemanha do século XX, que a

experiência democrática após a queda do Império Alemão em 1918, chegou ao fim por meio

do emprego de uma política de cunho autoritário? A pergunta pode receber uma resposta

rápida: o Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães, por meio de Hitler, deu

início a Ditadura Nazista em 1933, pondo fim a República de Weimar. Mas será que foi Adolf

Hitler quem desrespeitou e colocou fim ao sistema parlamentar dos tempos de Weimar? Uma

indagação que não pode passar despercebida pela reflexão histórica apresentada por Francisco

Carlos Teixeira da Silva, em um artigo intitulado Cultura operária e resistência antifascista

no ocaso da República de Weimar (1919-1933). Para o autor, além da disputa política entre os

partidos de diferentes doutrinas (tendo alguns defendido abertamente a superação do sistema

vigente no período, por vieses de extrema-direita e de extrema-esquerda) e pela Crise de

1929, o cenário político da Alemanha do entreguerras se agravava “[...] no caráter anti-

republicano de Hindeburg (sic), avesso aos partidos políticos e ao jogo parlamentar, com uma

personalidade profundamente autoritária” (DA SILVA, 2008, p. 161). Em alguns momentos,

a postura violenta dos nazistas acabou por sublimar outros elementos que no contexto

histórico contribuíram para o trágico fim da referida república.

Para Francisco Teixeira43

, o presidente da República de Weimar, Paul Von

Hindenburg (1847-1934)44

, utilizando-se do que estava disposto no Artigo 48 da Constituição

de 1919, passou a partir dos anos 1930, a formar “gabinetes presidenciais” se opondo aos

“gabinetes parlamentares”.

43

Adotaremos essa nomenclatura para nos referirmos ao autor daqui por diante. 44

Foi o segundo presidente alemão, assumindo o país por dois mandatos, governou entre 1925 a 1934,

sucedendo Friedrich Ebert.

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[...] A atenção sobre esse ponto elucida largamente a falsa questão sobre a

pretensa chegada “democrática” de Hitler ao poder. Em verdade, desde

1930, com a intervenção presidencial nos governos, a democracia

weimariana estava superada pela dinâmica política. As principais lideranças

a assumirem o protagonismo da crise nesse momento acreditam ter chegado

o momento de eliminar o jogo parlamentar da vida do país. Assim, homens

conservadores e autoritários – como Brüning, Von Papen e Von Schleicher –

imaginam uma república autoritária e estável, tendo nas forças armadas um

esteio de poder. Tal projeto, acalentado por grandes industriais, católicos e

altos funcionários civis e militares, não era um apoio ao nazismo [...] (DA

SILVA, 2008, p. 161).

Como argumentou Arno Mayer, Francisco Teixeira também compreende um quadro de

permanência de autoritarismo no governo parlamentarista alemão do período – que não era

defendido por apenas um grupo da sociedade alemã.

O processo de democratização do Estado alemão foi realizado sem que, segundo

alguns pensadores, houvesse a formação de uma identidade democrática. Passou a existir uma

transformação na sociedade alemã, na concepção de Norbert Elias, onde novas classes sociais

ascenderam na escala do poder nos pós-Grande Guerra, onde:

[...] tornou-se possível na Alemanha transformar as instituições políticas, de

uma forma sumamente consciente, na direção de uma democracia

parlamentar (...) As classes alta e média tradicionais da Alemanha e suas

elites representativas tinham sofrido uma perda de poder, em conseqüência

da derrota; as classes trabalhadoras em ascensão e suas elites de poder, em

conjunto com relativamente pequenas seções liberais das antigas classes

médias, entre muitos judeus e a intelligentsia liberal e socialista, tinham

ganho através da mudança (...) os alemães experimentaram nesse período um

impulso bastante abrupto no desenvolvimento de instituições e relações de

poder, sem passar por um recrudescimento análogo no desenvolvimento de

seu “caráter nacional”. Enquanto que as instituições conheceram uma

perceptível mudança no sentido de maior democratização, as relações de

poder retiveram muito mais o cunho autoritário que tinham adquirido nos

séculos de domínio autoritário [...] (ELIAS, 1997, p. 300).

No âmbito institucional e nas relações sociais de poder, constitui-se uma nova conjuntura

democrática parlamentarista. Entretanto, o cunho autoritário não havia sido superado, como

aponta Elias, o habitus social se manteve autoritário. Mas, como Francisco Teixeira

demonstra no texto acima referido, a base da República de Weimar se formou pela união da

Social de Democracia alemã, com partidos e instituições que apresentavam posturas distintas

ao pensamento democrático, como por exemplo, o Exército. A própria esquerda, segundo o

autor, estaria dividida entre defensores de uma política reformadora e de uma política

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revolucionária. Ou seja, os próprios grupos ganharam destaque político e social após a queda

do Império Alemão, possuíam rumos diferentes para o país.

A própria ideia de restauração do poder monárquico ainda exercia influência, onde se

acreditava que o próprio Hindenburg realizaria a restauração monárquica (Da SILVA, 2008).

A legitimidade política não se assentaria em práticas liberais, mas nos dispositivos referente

às reminiscências do Antigo Regime, “derrotado” em 1918 – do qual o próprio pensamento

schmittiano se inspirou na força da decisão e na soberania do poder do soberano, em sua obra

Teologia Política. A soberania é considerada por Schmitt, como “um conceito-limite em si

mesmo”. A excepcionalidade que legitimaria uma intervenção no ordenamento jurídico

estabelecido seria aquela que pusesse em risco a unidade do político. O Estado de exceção

aponta Schmitt que:

[...] no sentido eminente, ser adequado para a definição jurídica de

soberania, tem uma razão sistemática lógico-jurídica. A decisão sobre a

exceção é, portanto, uma decisão no sentido eminente. Pois uma norma

genérica, como se apresenta a norma jurídica válida, não pode nunca

assimilar uma exceção absoluta e, portanto, nunca justificar totalmente a

decisão tomada em um verdadeiro caso de exceção [...] (SCHMITT, 1996b,

p. 87).

Na compreensão schmittiana, o Estado de exceção transcende a questão da situação

emergencial ou do Estado de sítio. Surge então a figura do soberano, sendo aquele que:

[...] não só decide sobre a existência do Estado emergencial extremo, mas

também sobre o que deve ser feito para eliminá-lo. Ele se situa externamente

à ordem legal vigente, mas mesmo assim pertence a ela, pois é competente

para decidir sobre a suspensão total da Constituição. Todas as tendências do

desenvolvimento do moderno Estado de direito são no sentido de eliminar o

soberano (...) Mas se o caso extremo de exceção realmente pode ou não ser

eliminado do mundo, não é uma questão jurídica. A confiança e a esperança

de que ele possa realmente ser eliminado depende muito mais de convicções

filosóficas, principalmente histórico-filosóficas ou metafísicas (SCHMITT,

1996b, p.88).

Na Constituição de 1919, o Estado de exceção, segundo Carl Schmitt, estaria regulamento

pelo Artigo 48, sendo ele declarado pelo presidente, aos cuidados do Parlamento. Esse

dispositivo conferiria a alguém, segundo o autor, “poder total e ilimitado”, como se apresenta

em Teologia Política. Desta forma, como abordamos acima, no início dos anos 1930, o

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presidente Hindenburg fez uso do Artigo 48 para formar “gabinetes presidenciais” de governo

e dissolver o parlamento (Da SILVA, 2008).

A condição do novo Estado republicano alemão em formação após a queda da

monarquia, destruído e endividado por conta dos gastos de guerra, fazia da jovem república

alemã uma frágil economia. As disputas de poder internamente entre partidários burgueses,

realistas e socialistas, provocaram instabilidade política e fragmentação do território do antigo

Império Alemão. Que não são originárias da República de Weimar, mas uma herança da mal

sucedida política de expansão territorial do Império Alemão durante a Grande Guerra. A

representação partidária na república, por volta dos anos 1930, migrou para os partidos de

tendência radical – de esquerda e de direita. Nos primórdios da República de Weimar ocorrem

as fragmentações territoriais decorrentes das proclamações de repúblicas socialistas

independentes, tais como as repúblicas de conselhos de operários e exército na Baviera. A

Social-democracia conseguiu manter o governo centralizado, criando um aparato institucional

e jurídico, mas utilizando das forças conservadoras da sociedade. Contudo, não houve um

aprofundamento do processo revolucionário. A participação popular nas tomadas de decisão,

de enfrentamento às antigas estruturas do poder, foi constantemente desarticulada através do

uso da força das armas, prisões, deportações e fuzilamentos, em prol da ordem. Assim, a

Social-democracia, utilizando-se da união com segmentos sociais conservadores de direita –

que futuramente iriam pôr fim a República de Weimar –, findou a Revolução Alemã, que

ocorreu de 1918 a 1923. Nesses anos, a Alemanha foi o único país industrializado a vivenciar

a formação de governos de orientação socialista (LOUREIRO, 2005, p. 41-125). Além da

fragmentação interna, disputas de comando pelos grupos políticos, os efeitos do Tratado de

Versalhes contribuíram, no cenário internacional do pós-guerra, para desestabilização política

do país, onde os grupos contrários ao governo utilizaram o tratado para demonstrar a fraqueza

do regime republicano – o que o nazismo denominava como apunhalada pelas costas. Nesse

sentido,

O governo estabelecido pela coligação SPD/Zentrum/DDP não decepcionou

seus críticos. Mostrou-se, desde logo, incapaz de conter os grupos

militaristas que haviam garantido a vitória contra o levante comunista e

manteve-se impassível face às fortalezas do reacionarismo prussiano. As

reformas que deveriam balizar a transição entre a nova república, liberal e

representativa, e o velho império, conservador e militarista, nunca se

realizaram. Grande parte das mais importantes instituições do Estado alemão

não foi tocada, muito especialmente, o Estado-Maior. Mesmo que as

obrigações decorrentes do Tratado de Versalhes tenham atingindo duramente

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o Reischwehr – o exército alemão – este não foi democratizado e nem

socialmente aberto a sociedade alemã (DA SILVA, 2008, p. 147-148).

Este historiador, assim como Elias, focaliza na manutenção das estruturas autoritárias do

Estado alemão elementos causadores do drástico fim da experiência weimariana. As

universidades, o corpo diplomático (segundo o autor, dotado do saudosismo imperial), a

polícia de Berlim, não enfrentaram reformas democráticas. Sendo que, o caráter reacionário

dessas instituições, foi utilizado pela coalizão weimariana para pôr fim ao perigo

revolucionário. Nessa lógica de raciocínio, as

[...] estruturas básicas do conservadorismo mantiveram-se intactas, em

especial, na burocracia estatal, facilitando o lançar de pontes entre a

Alemanha imperial e o Nacional-Socialismo (...) a transição entre o regime

liberal representativo da República (1919-1930) pôde transmutar-se, sem

maiores traumas, nas estruturas policiais do Terceiro Reich (1933-1945),

tendo os anos de crise de 1930/33 como a rápida transição representada no

processo prévio de fascistização do Estado [...] (DA SILVA, 2008, p. 148).

O período de crise representaria outra prática, para o autor, que já não mais se enquadra no

sistema parlamentar anterior. A transição do parlamentarismo weimariano para a Ditadura

Nazista foi amortecida pelo autoritarismo nos quadros institucionais do Estado. A

permanência dessa estrutura por toda a república, preponderantemente nos anos de crise

econômico-política de 1930/33, reafirma o autor, descredibiliza a tese de que o nazismo

alcançou o poder de forma democrática e então, realizou um golpe, concentrando poder nas

mãos do partido.

Para Norbert Elias, desde o período pós-guerra (1914-1918), a destruição do “regime

republicano-parlamentar” já pertencia às metas políticas das seções da classe média na

nascente República de Weimar. E com a Grande Depressão, “[...] Um fortalecimento das

forças anti-russas e anticomunistas na Alemanha não tinha nada de desagradável para muitos

estadistas ocidentais [...]” (ELIAS, 1997, p. 2003). Isso em virtude que o militarismo

soviético passou a ser mais temido que o militarismo alemão. Assim, associações

paramilitares de direita passaram a surgir da clandestinidade, frente a um enfraquecimento do

monopólio do poder pela República. Essas associações violentas poderiam, a partir de então:

[...] expor-se em público de um modo relativamente aberto, através de

ameaças e de atos de violência cuja autoria reivindicavam confiantes em sua

impunidade, e contribuir para a criação daquelas mesmas circunstâncias

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caóticas que eles imputavam à República parlamentar, como um sinal de

fraqueza e de incompetências. As lutas nos níveis parlamentar que tinham

acontecido paralelamente nos primeiros dias da República, agora afetavam-

se mutuamente de um modo cada vez mais estreito e acabaram por fundir-se,

quando o parlamento legalizou as organizações que apoiavam a violência

extraparlamentar (ELIAS, 1997, p. 2003).

Para o autor, a oficialização dessas organizações de defesa, sejam as nacional-socialistas,

socialdemocratas ou proletárias faziam com que cada vez mais o Estado tivesse seu

monopólio da violência enfraquecido. A crise econômica na Alemanha, envolvida numa

profunda crise política criava, para Norbert Elias, um cenário próximo a guerra civil. A cada

choque, de um ou de outro, a violência aumentava. Assim:

[...] a República de Weimar soçobrou em conseqüência da fraqueza estrutural

do seu monopólio da violência e da exploração deliberada dessa fraqueza por

organizações de classe média que, por causa da ausência de uma tradição

parlamentar, achavam que o regime parlamentar-republicano as discriminava

e, por conseguinte, procuraram destruí-lo (ELIAS, 1997, p. 204).

Havia, então, forças políticas centrífugas em oposição a um ideal republicano e parlamentar –

tanto de direita quanto de esquerda. A experiência republicana alemã do pós-guerra chegaria

ao fim antes que Adolf Hitler assumisse o cargo de chanceler em 1933, como já discutimos. E

como sustenta o historiador Richard J. Evans, em O Terceiro Reich no poder, os nacional-

socialistas não ganharam nenhuma eleição antes de se apoderarem do aparelho estatal. O que

faz sucumbir a ideia propagada que os nazistas conquistaram o poder de forma democrática.

No próximo capítulo nos dedicaremos novamente ao processo que conduziu o NSDAP

ao poder da Alemanha e a formação do Terceiro Reich, sobre a liderança de Adolf Hitler.

Isso, por meio de uma verificação do papel desempenhado pelos escritos de Carl Schmitt para

a ruína da experiência parlamentar de Weimar. Destacando o desenvolvimento de sua teoria

decisionista e a sua caracterização do Estado Total – em seus dois tipos. Também nos

dedicaremos a compreender como os rumos das relações políticas do Terceiro Reich pôde

haver conduzido Carl Schmitt a uma marginalidade ao que concerne a um papel de liderança,

como jurista do Reich e a sua saída do Partido frente a uma pressão interna de membros deste.

Em sintonia, trabalharemos com os aspectos anti-intelectuais do movimento nazista e como

este passará a produzir uma elite intelectual própria.

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Capítulo III

A erosão da República de Weimar e a legitimação da Ditadura

Nazista: meios violentos e fins trágicos

“[...] Penso que toda a história do pensamento

político moderno, ou ao menos grande parte dela,

pode ser resumida na busca de uma solução do

problema moral em política, interpretando-a como

uma série de tentativas de dar uma justificação

para o fato, em si mesmo escandaloso de que existe

um evidente contraste entre moral comum e moral

política [...]”

(Norberto Bobbio, O elogio da serenidade)

A ciência política – e porque não a história – empenhou-se e se emprenha em

compreender como os regimes de governo surgem, estabelecem-se e chegam ao seu colapso.

Em O Príncipe, Nicolau Maquiavel demonstrou os procedimentos necessários para que um

príncipe mantivesse ou conquistasse o poder de um reino – sendo considerado como o

fundador da ciência política moderna. De uma forma trágica e violenta, muitos democratas e

republicanos de Weimar, juntamente com comunistas e nacionalistas, viram-se “atropelados”

pelos rumos da política na primeira metade dos anos de 1930. Os alemães que vivenciaram o

desenrolar dos acontecimentos da ascensão nazista ao poder não tinham uma compreensão

global do processo histórico em curso. O historiador, no presente e com oportunidades

diferentes dos sujeitos históricos, trabalha com uma visão global – e não total. Nisso constitui

a aventura em analisar os escritos schmittianos gestados em tal contexto. Sem mencionar tudo

aquilo que já foi escrito sobre eles. Uma transformação radical do governo e da sociedade

como a executada pela “revolução nacional-socialista” carrega consigo, para aqueles que a

viveram e tiveram que conviver com ela, traços polêmicos. Para além da pura sobrevivência,

em que sentido os valores éticos e morais podem ser cobrados em momentos assim?

Independente da resposta, os rumos que os agentes históricos tomam em sua trajetória de vida

devem ser analisados com clareza, por meio da confrontação das fontes. E por fim, responder

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aos problemas históricos sem haver formulado as respostas antes das averiguações dos dados,

questionando as variáveis suscitadas por meio da pesquisa histórica45

.

A historiografia vem desconstruindo o mito de que os nacional-socialistas haviam

conquistado o poder em 1933 de forma democrática e legal, e, posteriormente, implantado a

ditadura. Nessa corrente historiográfica, por exemplo, o historiador britânico Richard J.

Evans, afirma que os nazistas nunca obtiveram maioria dos votos em eleições livres. O

próprio cargo de chanceler do Reich dado a Adolf Hitler, em janeiro de 1933, pelo presidente

do Reich Paul von Hindenburg, foi realizado por meio do uso dos poderes excepcionais que o

Artigo 48 da Constituição de Weimar de 1919 conferia ao presidente da república. Uma

prática já realizada pelo presidente para formar outros gabinetes de governo após 1930, por

meio de decreto. O primeiro presidente, Friedrich Ebert (1919-1925), já havia evocado seus

poderes de emergência para conter os tumultos nos primeiros anos da república (EVANS,

2010). Artigo esse que Carl Schmitt tanto memorava em seus escritos, legitimando o seu

raciocínio sobre o uso dos poderes emergenciais pelo presidente quando houvesse risco a

ordem.

No trajeto percorrido pela dissertação até agora nos ocupamos de discutir metodologia,

aspectos teóricos e escritos schmittianos. Ao iniciar com famosa citação de Karl Marx sobre

como os homens fazem a história, escolhemos uma forma de olhar sobre os quesitos teórico-

metodológicos e o corpus documental. Se os homens fazem a história, mas não a fazem sob a

maneira de suas escolhas, “[...] Essas condições incluem não só o contexto histórico em que

vivem, mas também a forma como pensam, as pressuposições sobre as quais agem, e os

princípios e crenças que influenciaram seu comportamento [...]” (EVANS, 2010, p. 20). As

condições atuais sobre as quais nos enquadramos são distintas dos agentes sociais do passado,

e não podemos, como adverte Richard J. Evans, afirmar que agiríamos de forma diferente ao

que Carl Schmitt e outros milhares de cidadãos alemães enfrentaram no entreguerras. Além de

anacronismo, poderíamos cair numa hipocrisia. Estivemos, então, abertos ao diálogo com

correntes de pensamento distintas, extraindo aquilo que consideramos essencial. Até esse

momento, nossa intenção não foi retratar Carl Schmitt como um nazista convicto, deixando

claro que essa postura não abranda as consequências de seu engajamento aos NSDAP após

1933. O próprio Carl Schmitt em sua autobiografia, Ex Captivitate Salus, não se desvinculou

dessa questão polêmica. Mas apresentou motivo, segundo ele, de sua saída do partido: não

45

A metodologia de pesquisa histórica elaborada por Marc Bloch nos propõe essas diretrizes. Sabemos o quanto

é difícil não julgar a priori. Mas precisamos estar abertos ao contraste das informações, ainda mais quando

vivemos numa sociedade democrática.

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abrir mão da cientificidade de seu trabalho. Consideramos haver outros fatores a isso, que

trataremos posteriormente.

As ideias, ou os escritos, ganham vida própria após a sua exteriorização. Como

salienta Mikhail Bakhtin, todo discurso tem um contexto de origem, sendo uma construção

sócio-ideológica (BAKHTIN, 2014). A autopreservação da vida, segundo Thomas Hobbes, é

uma atitude natural dos seres humanos, e eles utilizam as mais diversificadas maneiras para

garantir essa lei natural. A complexidade da história reside na mutabilidade dos seres

humanos, e o historiador não pode fugir do seu presente como destacou Marc Bloch. O lugar

social do historiador é a condição objetiva das possibilidades das quais ele pode “ler o

passado”, embate do qual Michel de Certeau coloca limites a objetividade científica da

história. A neutralidade da história é um tanto complexa em virtude do seu sujeito – os seres

humanos –, e seus objetos de análise – os suportes documentais (sejam eles materiais ou

imateriais), dos quais a história contemporânea possui uma miscelânea um tanto mais

diversificada quanto a outros períodos históricos – e não dizemos nenhuma novidade a esse

sentido do que já trabalhou a historiografia. Ao mesmo tempo em que essas singularidades

favorecem ao historiador do mundo contemporâneo, também o coloca em questões

complexas, que podem ser conflitantes com suas convicções ou trajetórias de vida. Assim:

Relatar a experiência de indivíduos demonstra, mais do que tudo, a

complexidade das escolhas que precisaram fazer e a difícil e muitas vezes

obscura natureza das situações que confrontaram. As pessoas da época não

podiam ver as coisas com tanta clareza quanto nós, dotados do conhecimento

do que aconteceu depois: não podiam saber em 1930 o que estava por vir em

1933, não podiam saber em 1933 o que estava por vir em 1939 ou em 1942 ou

1945. Se tivessem sabido, sem dúvida as escolhas teriam sido diferentes [...]

(EVANS, 2010, p. 20).

Nesse sentido, a incerteza sobre o futuro é algo que não podemos escapar. Olhando ao

passado, se os judeus soubessem sobre a efetivação da solução final, teriam permanecido na

Alemanha? Fugir seria uma solução plausível para os que soubessem. Mas se a estes não

fosse revelado que fins tomariam Polônia e França, por exemplo, não escapariam do problema

inicial.

A realidade histórica é complexa, ainda mais quando se trata sobre o nazismo. Ou seja,

“[...] Um dos maiores problemas de escrever história é se imaginar de volta ao mundo do

passado, com todas as dúvidas e incertezas que as pessoas encaram ao lidar com um futuro

que, para o historiador, se tornou passado [...]” (EVANS, 2010, p. 20). Nesse sentido, estaria

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Carl Schmitt totalmente ligado ao nazismo antes de 1933? Faria ele parte daqueles

conservadores nacionalistas, a exemplo de Hindenburg, que acreditavam utilizar o partido

nazista para estabilizar a violência, destruindo os comunistas e os social-democratas? Seria

um oportunista, que com o sucesso do movimento nazista pós-1933, via nele uma chance de

alcançar mais poder e prestígio? Ou seria um dos milhares que tentaram se adequar as novas

regras do jogo para não perder o emprego público, ou até mesmo, a vida – como tanto outros

perderam? Quem sabe tenha sido de tudo um pouco, ou até mesmo algo não problematizado

até o momento.Mas ressaltamos que o nosso objetivo é demonstrar os aspectos antiliberais e

antidemocráticos dos escritos schmittianos durante a República de Weimar. Não temos o

propósito de apresentar um trabalho sobre a gênese e desdobramentos do Estado nazista em

todos seus aspectos. As suas responsabilidades como intelectual, em certo sentido, são

distintas dos homens comuns, nas categorias utilizadas por Norberto Bobbio. Como seus

escritos atestam, Schmitt possuía vasto conhecimento sobre governos autoritários precedentes

e as consequências nas quais isso implicava a garantia de vida e segurança aos cidadãos. O

seu decisionismo político deixa claro o quanto ele concordava com o extermínio físico do

inimigo político, como exposto em O Conceito do político. Difícil é avaliar como as

dimensões catastróficas da barbárie nazista poderiam lhe possibilitar uma mudança de postura

sobre o poder soberano, compreendido como “aquele que decide sobre o Estado de exceção”,

em sua Teologia Política. O que diversos pensadores atestam é que o fim da República de

Weimar não esteve fadado desde o início ao fracasso, “[...] pois existiam republicanos que

levaram a sério o símbolo de Weimar e tentaram, persistente e corajosamente, dar ao seu ideal

um contexto real” (GAY, 1978, p. 16). A democracia, como explicam Carl Schmitt e Claude

Lefort, possui os seus riscos inerentes. Mas são esses maiores do que outras formas de

governo? A questão da legitimidade do governo parlamentar de Weimar parece ser

preponderante, que a Grande Depressão e o desemprego coloraram os alemães a se agarrarem

a certezas autoritárias e violentas, contra o diálogo e a participação democrática (EVANS,

2010).

Com o caos decorrente da derrota alemã da Grande Guerra em 1918, a monarquia e o

Exército alemão saíram da cena política, desgastados. Aquela para não mais retornar, já o

Exército, segundo Peter Gay e Richard Evans, logo reabilitou seu prestígio sem abandonar os

valores monárquicos e sem adotar uma defesa incondicional a república. Principalmente se

esta estivesse sob o comando da coalizão que a criou em 1919, o Partido de Centro e o Partido

Social-Democrata. A situação do país era catastrófica, tanto que o exército e a monarquia não

foram até as últimas consequências para reabilitar a ordem do Império Alemão. Até que ponto

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o discurso sobre a fraqueza da república por parte dos historiadores não é estar se apropriando

do discurso nazista e conservador que a minou até causar sua derrocada? Nesse sentido:

Historiadores têm exagerado muito os fracassos dos políticos que

governaram a jovem República. Se tivessem falhado totalmente, seria

compreensível; Ebert e seus associados enfrentaram dificuldades que teriam

atemorizado o mais frio e experimentado estadista. Havia desordem

endêmica, fome desesperadora, existia desmoralização entre os intelectuais,

havia um exército a ser trazido de volta e a ser desmobilizado, havia feridas

profundas a serem curadas, sem tempo para fazê-lo, havia uma constituição a

ser escrita e posta em prática. E acima disso tudo existia um fator que

ocupava um lugar especial na história de Weimar, pois os mitos que a

cercavam vieram a ferir a República mais ainda do que a realidade: a Paz de

Versalhes (GAY, 1978, p. 27).

As condições objetivas já eram um fardo muito pesado para um governo que nascia com uma

dívida gigantesca, milhares de feridos, milhões de desempregados e tendo de fazer concessões

para evitar uma guerra civil – maior do que os conflitos e golpes de Estado aplicados pela

Esquerda e pela Direita nos primeiros anos. O mito da traição interna, “a punhalada pelas

costas” ajudou a reabilitar o prestígio do Exército, servindo de combustível aos ataques dos

nazistas aos “traidores do novembro de 1918”. A República de Weimar, segundo Peter Gay,

foi uma saída aceitável a diversos grupos monarquistas, temendo a guerra civil ou uma

revolução aos moldes soviéticos de 1917. Mas sua natureza conciliatória provocou problemas

desde o início, segundo ele, as intenções eram boas, mas as ações desagradavam. Como o

fuzilamento de centenas de revoltosos em Munique e a inserção dos trabalhadores no jogo

político com papel de destaque.

[...] Os novos conservadores começaram a desprezar precisamente as

inovações que a Revolução introduziu; por seu lado, os radicais eram contra

os remanescentes deixados pelo Império. Parece que a República de Weimar

era demasiado bem sucedida para satisfazer seus críticos e não tão bem

sucedida a ponto de satisfazer seus simpatizantes [...] (GAY, 1978, p. 23).

Essa característica foi particularmente danosa para a república. Ao herdar o Judiciário, o

Exército, a Polícia e o funcionalismo público da época do Império, como demonstra Richard

Evans, a república não criou mecanismos para cunhar uma consciência republicana. Os

julgamentos, por exemplo, tinham penas muito mais duras aos infratores de Esquerda do que

os de Direita – aos quais os próprios social-democratas eram vítimas.

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Por outro lado, essa característica dividiu a esquerda alemã, entre o Partido Social-

Democrata e o Partido Comunista. Esse, nascido da cisão com aquele, quando os socialistas

Independentes fundaram a Liga Espartacus, tendo Karl Liebknecht e Rosa Luxemburgo à

frente. Esses se transformaram em causa para uma progressiva cisão entre os social-

democratas e os comunistas (EVANS, 2010, p. 301-307). Por tudo isso, a legitimidade de

Weimar é compreendida como fraca perante o universo político alemão do pós-Grande

Guerra:

A república foi acossada por problemas intransponíveis de violência política,

assassinato e conflitos inconciliáveis sobre seu direito de existir. Não era

amada nem defendida por seus servidores no Exército e na burocracia. Foi

acusada por muitos pela humilhação nacional do Tratado de Versalhes. E

teve também de encarar enormes problemas econômicos, começando pela

gigantesca inflação monetária que tanto dificultou a vida de muitos nos anos

em ela estava tentando se estabelecer (EVANS, 2010, p. 149).

Essas dificuldades não foram enfrentadas somente pela Alemanha no pós-Guerra, como

adverte Richard Evans. A Polônia, Áustria e Hungria tiveram problemas semelhantes, o que

fez o caso alemão ganhar a evidência foi à própria condição da Alemanha como maior

potência continental da Europa e maior população. A própria Itália já enfrentava o processo

de fascistização do governo após a Marcha sobre Roma, em 1922. Fato esse que serviu de

inspiração a Adolf Hitler e ao Movimento Nazista, como descreveu Emilio Gentile.

Movimento Fascista Italiano que também inspirou Carl Schmitt nos anos de 1920,

caracterizando o como aquele que “[...] no toma sus decisiones como tercero neutral sino

superior. En ello radica su supremacía [...]” (SCHMITT, 2001, p. p. 79). Assunto que

debatemos no primeiro capítulo ao definir o fascismo. O Estado fascista é aquele que toma

uma decisão sobre o problema, declara Schmitt, como superior aos grupos em litígio.

Contrastando com o governo parlamentar de Weimar, que ele qualifica como fraco, sempre

protelando tomar uma decisão. Para Schmitt, a falta de legitimidade de Weimar era que sua

Constituição estava alicerçada sobre o modelo de 1848. Já as constituições bolchevique e

fascista estavam fundadas sobre os novos problemas econômicos e sociais que concerniam a

organização estatal (SCHMITT, 2001, p. 78). Sobre essa nova condição, Carl Schmitt nos diz:

[...] Quando o teórico do bolchevismo suspende a democracia em nome de

uma verdadeira democracia, e quando o inimigo da democracia espera abafá-

la, então o primeiro pressupõe a exatidão teórica dos princípios democráticos

e o outro o seu domínio concreto, que deve ser levado em conta. Só o

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fascismo italiano, aparentemente, não faz questão nenhuma de ser

“democrático”. Apesar dele, somos obrigados a dizer que o princípio

democrático é irrestritamente e universalmente reconhecido (SCHMITT,

1996a, p. 30).

Atesta Schmitt, como já vimos, que nos países ocidentais o critério de legitimação dos

governos pós-1848 é o democrático. O bolchevismo, como herdeiro do Iluminismo o manteve

na constituição da sociedade comunista. Mas o fascismo, que nega os valores iluministas,

assim como o nazismo, não o estabelece como um fim último. Ou seja, surge uma forma de

legitimação do poder distinta da democrática no início do século XX, que é a submissão das

massas a um líder que governe a partir dos seus interesses – ao menos na teoria. Até esse

momento, o movimento nazista não aparece nos escritos consultados com uma caracterização

positiva por parte de Schmitt, como vimos acima ao governo fascista.

A filiação de Carl Schmitt ao NSDAP, segundo Mark Lilla, ocorreu em 1 de maio de

1933. Período posterior ao incêndio do Reichstag, a lei que possibilitou que os comunistas

fossem detidos em massa, fazendo-se uso do Artigo 48 da Constituição. O seu número de

afiliação ao partido foi o 2.098.860. Segundo Lilla, a sua afiliação não surpreende tendo em

vista a posição de Carl Schmitt ser um antiliberal e contrário ao Tratado de Versalhes. Além

disso, como aparece nos escritos schmittianos, a sua defesa de que o presidente do Reich

fizesse uso do referido artigo para pôr fim às tensões entre a extrema direita e a extrema

esquerda, por meio de um regime ditatorial transitório. Carl Schmitt já haveria defendido o

uso dos poderes emergenciais pelo governo alemão na intervenção no Estado da Prússia,

em1932, quando foi designado um comissário do Reich com a finalidade de conter o poder

dos social-democratas na região. Graças a essa defesa, os nazistas o haveriam convidados a

ser um dos conselheiros jurídicos do governo após a nomeação de Adolf Hitler como

chanceler. Dado a sua aceitação, como afirma Mark Lilla, os jornais passaram a lhe chamar

Kronjuristen (jurista da coroa), ou seja, do Terceiro Reich (LILLA, 2004, p. 59-60). Outros

intelectuais alemães defenderam o Terceiro Reich: Martin Heidegger, Ernest Jüger e

Gottofried Benn. Salienta Mark Lilla que Schmitt foi além que seus colegas nessa defesa

pública do regime, citando o trabalho de Andreas Koenen sobre o “caso” Schmitt. Sobre o

apoio de Hermann Göring, Carl Schmitt ganhou uma cátedra na Universidade de Berlim,

editava sua influente revista jurídica46

, nomeado membro do Conselho de Estado Prussiano.

46

Em uma nota de rodapé, Mark Lilla nos diz que a revista se chamava Deutsche JuristenZeitung. Inclusive, em

15 de outubro de 1936, haveria sido publicado o texto de uma conferência em que Schmitt dizia que a

jurisprudência alemã estava em luta contra o espírito judeu. Afirmando que esses escritos nunca foram

reeditados, pelo que ele considerou motivos óbvios (LILLA, 2004, p. 60).

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Em troca, segundo ele, os nazistas esperavam adquirir a respeitabilidade jurídica das ações de

Hitler. O que de fato ocorrera, pois:

[...] Poco después de afiliarse al partido, escribió panfletos defendiendo los

principios del Führer, la primacía del partido nazi y el racismo, con el

fundamento de que “todo derecho es derecho de un Volk [pueblo]

específico”. En junio de 1934, después de la “noche de los cuchillos largos”,

cuando Hitler hizo ejecutar a ErnestRöhm y a sus adversarios de las SA

(entre ellos un íntimo amigo de Schmitt), publicó un artículo tan influyente

como infame en el que argumentaba que la acción de Hitler “era en sí misma

un acto de la más alta justicia” (LILLA, 2004, p. 60).

Adolf Hitler tomou todos os cuidados para manter sua postura de líder do partido, sendo dele

a última palavra. Não era segredo que as tropas SA e SS faziam com os oponentes políticos

do partido, nos campos de concentração, a tortura e as mortes violentas praticadas por esses.

Se Carl Schmitt possuía um status de destaque no campo intelectual e como professor

universitário antes de 1933, ir contra o partido significaria entre outras coisas: ser perseguido

e ter promoções negadas, ser demitido ou aposentado compulsoriamente, ser detido

previamente sem provas graças ao decreto do incêndio do Reichstag, ou emigrar. Mesmo os

conservadores nacionalistas, que faziam parte da coalizão de governo que nomeou Hitler

como chanceler, não tiveram muitos privilégios antes mesmo da morte de Hindenburg, em

1934 (EVANS, 2010). Lembramos que ao início dos anos 1930, Carl Schmitt manifestava que

deveria ser Paul von Hindenburg, presidente do Reich, a conduzir a ditadura transitória, que

pusesse fim às inimizades internas entre os partidos políticos de Weimar.

As filiações ao Partido Nazista cresceram muito de 1933 em diante. E o motivo é

óbvio quando se observa as perseguições e demissões de funcionários públicos que não

estavam de alguma forma ligados ao Nacional-Socialismo. Se o funcionalismo público de

Weimar em grande parte torcia pela queda de Weimar, isso não significa que todos viam no

nazismo a melhor das opções. Grande parte deste era conservador, nacionalista e monarquista,

desejando a ordem e estabilidade que Bismarck havia estabelecido de volta. E ao fim do

processo de nazificação do governo e da sociedade alemã, segundo Richard Evans,

praticamente o Exército e as igrejas não eram associações nazistas. Ou seja, “toda a trama da

vida associacional foi nazificada”. Nesse processo:

[...] Para salvar o emprego numa época em que o desemprego havia

atingindo dimensões aterrorizantes, 1,6 milhão de pessoas filiaram-se ao

Partido Nazista entre 30 de janeiro e 1º de maio de 1933, quando a liderança

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nazista proibiu mais recrutamento, ao passo que o número de paramilitares

camisas-pardas cresceu para mais de dois milhões no verão de 1933

(EVANS, 2014, p. 33).

Constata-se que a própria filiação de Carl Schmitt está no marco temporal de filiação em

massa ao NSDAP. A própria eleição para o Reichstag de março de 1933 era propagandeada

pelos nazistas, segundo Richard Evans, como a última eleição. A partir dela apenas passaram

a ocorrer plebiscitos, como o que ocorreu em 1934, para fundir o cargo de presidente e

chanceler do Reich, após a morte de Hindenburg, quando Hitler obteve êxito em sua demanda

pública. Nesse momento, segundo o historiador, a resistência ao nazismo já havia sido

aniquilada: os camisas-pardas dissonantes, executados ou presos, os comunistas e social-

democratas de destaque, presos, no exílio ou mortos.

Mas até 1934 os nazistas não possuíam controle total sobre o Estado alemão. A

coalizão com os conservadores nacionalistas ainda se matinha, Paul von Hindenburg ainda era

o presidente da República. Após o incêndio do Reichstag, os nazistas conseguiram

transformar os camisas-pardas em força policial auxiliar, o que representou um aspecto legal

aos atos de violência que eles praticavam (EVANS, 2010; EVANS, 2014). A República de

Weimar havia se tornando uma democracia moderna em 1919, com um regime democrático

universal, com voto feminino. No entanto, muito da sociedade fundada sobre o período do

Império Alemão, permaneceu – a figura de Bismarck como grande líder nacional, com

características autoritárias. Mas o regime de Weimar não era puramente parlamentar, nesse

sentido:

[...] a constituição deu-lhe um presidente forte, eleito por um período de sete

anos por eleições populares; era um símbolo no país e representante no

estrangeiro, podia dissolver o Reichstag, escolher e dispensar os chanceleres,

e tomar a liderança caso a “segurança pública e a ordem fossem seriamente

rompidas ou ameaçadas [...] (Gay, 1978, p. 169).

Esse poder presidencial materializado no Artigo 48 possibilitava a própria exceção na

democracia, pondo fim aos direitos humanos e as liberdades individuais em caso de

emergência. Para Peter Gay, quando o presidente da república nomeou Hitler como chanceler,

muitos intelectuais já consideravam a república como morta. “[...] A República estava morta

de todo, menos no nome, vítima de falhas estruturais, defensores relutantes, aristocratas

inescrupulosos, assim como de industriais, um legado histórico de autoritarismo, uma situação

mundial desastrosa e um crime deliberado” (GAY, 1978, p. 183). Os dados eleitorais

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apresentados por Peter Gay e Richard Evans demonstram que até 1929, o nacional-socialismo

não era uma vertente política forte no Reichstag, muito menos nos estados confederados. Mas,

com a Grande Depressão, a coalizão de Weimar perdeu a legitimidade política. Tanto os

nazistas como os comunistas passaram a aumentar eleição após eleição suas cadeiras no

parlamento nacional. Para uma grande parte da classe média, industriais e conservadores isso

significou uma mudança de postura eleitoral, migrando seus votos e apoio econômico para a

extrema direita, com receio de que os comunistas obtivessem sucesso em alcançar o poder – e

criar uma república soviética na Alemanha. Richard Evans acrescenta que Adolf Hitler mudou

sua postura, retirou de seu discurso as questões notadamente socialistas. Os bens a serem

nacionalizados seriam os dos judeus. E, como sugere o historiador, em discursos aos

industriais, Hitler e seus apoiadores não falavam em exterminar os judeus, pois sabiam que

isso não era bem visto para aquele público. Ou seja, os nacional-socialistas conseguiram

discursar para diversos públicos, dizendo o que os agradaria.

Isso passou a inspirar segurança no partido. Os nazistas souberam aproveitar o caos

dos últimos anos da República de Weimar, caos esse que eles foram responsáveis por criar e

amplificar os seus efeitos, por meio da violência, dos discursos de ódio, o desejo de alcançar o

poder e nele permanecer. “[...] Democracias sob a ameaça de destruição encaram o dilema

insuportável de se render à ameaça insistindo em preservar as sutilezas democráticas ou violar

seus princípios restringindo os direitos democráticos [...]” (EVANS, 2010, p.541). A

República de Weimar, com o que nos foi possível avaliar, eliminou em grande parte as

diferenças internas entre seus cidadãos, no que concerne ao elemento político. Questões

econômicas e sociais como adverte Peter Gay, não tiveram o mesmo cuidado na Constituição

de 1919. Em Situação intelectual do sistema parlamentar atual, Carl Schmitt argumenta que

toda igualdade deve possuir uma substância, e em sua essência, deve resguardar “a

possibilidade e o risco de uma desigualdade”. Pois para ele, uma democracia evidencia sua

força quando consegue manter à distância tudo aquilo que ameace a sua homogeneidade. O

quadro partidário da República de Weimar, em particular, demonstrava uma fraqueza e um

risco à democracia, “[...] pois uma igualdade sempre pressupõe também uma desigualdade –

pode excluir uma parte da população dominada pelo Estado, sem deixar de ser democracia

[...]” (SCHMITT, 1996a, p. 11). O autor legitima sua argumentação ao expor Estados

democráticos através da história que possuíam um grande número de escravos, mulheres e

outros segmentos sociais fora do jogo político, permanecendo seu caráter democrático.

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O problema em questão, para Carl Schmitt se caracterizaria pela falência do modelo

liberal burguês do século XIX e a emergência das massas como força política no início do

século XX. No sistema parlamentar, o de Weimar, em particular:

[...] As dificuldades de seu funcionamento e das suas organizações crescem,

na verdade, em função das condições da moderna democracia de massas.

Esta desemboca, em primeiro lugar, numa crise da própria democracia, pois

devido à igualdade humana geral, a questão da igualdade e homogeneidade

substanciais, necessárias a uma democracia, é basicamente insolúvel [...]

(SCHMITT, 1996a, p. 15-16).

Carl Schmitt considera que tanto o sistema parlamentar quanto a democracia parlamentar

estavam em crise, no início do século passado. O arranjo histórico do século XIX que,

segundo ele legitimou o parlamento frente à monarquia foi solapado pela “luta de classes”.

Mas haveria uma distinção que poderia salvaguardar a democracia no novo contexto das

massas no jogo político do século XX, do fascismo e do bolchevismo. Nesse novo contexto,

para Schmitt, as massas, na nova democracia moderna, poderiam enfrentar o parlamento,

considerado uma “instituição obsoleta e inconcebível”, por meio da concretização da

identidade entre governantes e governados. Então, para ele, quando a identidade democrática

é levada a sério, nenhuma instituição constitucional pode refutar a vontade do povo. Diante

desta, “[...] uma instituição que se baseia principalmente na discussão entre os membros

independentes não tem direito a uma existência autônoma, e menos ainda quando a crença na

discussão não tem fontes democráticas, mas sim liberais” (SCHMITT, 1996a, p. 16).

Observa-se uma desvinculação do ideal democrático e liberal projetada pela ideia parlamentar

de representação. Para Schmitt, com a formação da sociedade de massas, a representação

liberal perde sua relevância e o seu direito concreto de existir, pois foi superada por um novo

modelo de representatividade política, na relação entre governante e governados. Essas são

ideias expressas por Carl Schmitt no prefácio a segunda edição do escrito, em 1926, momento

em que a República de Weimar havia encontrado certa estabilidade política e financeira. Por

outro lado, o bolchevismo na União Soviética e o governo fascista na Itália também haviam se

firmado como alternativas ao sistema liberal de governo, e ao liberalismo econômico. Carl

Schmitt caracterizou esses dois tipos de governo como antiliberais, “[...] mas não

necessariamente antidemocráticos [...]” (SCHMITT, 1996a, p. 16). Ele critica o voto

individual e a sua soma aritmética das vontades individuais. Uma clara crítica ao sistema

representativo partidário de Weimar.

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Carl Schmitt desejava, pelo seu raciocínio exposto nos escritos analisados, determinar

uma dicotomia insuperável entre a forma parlamentar liberal de governo e a democracia –

uma democracia soberana, mais necessariamente, onde a vontade da maioria não fosse

limitada pelo Estado de direito burguês. Para isso, ele relativizou a questão autoritária então

abominada por aqueles que seguiam a lógica iluminista e liberal de sociedade, a limitação do

poder soberano e a participação popular. Nesse sentido:

[...] Diante de uma democracia direta, não só no sentido técnico, mas

também no vital, o Parlamento formado a partir de linhas liberais de

pensamento aparece como uma máquina artificial, enquanto os métodos

ditatoriais e imperialistas podem até ser sustentados pelo povo, não só por

meio da acclamatio, mas também dos meios diretos de expressão, de

substância e força democráticas (SCHMITT, 1996a, p. 17).

O autor, em total contraposição ao pensamento liberal, estabelece que meios autoritários e

ditatoriais possam ser democraticamente legitimados – e não o seu fim. A grande questão que

impossibilitou isso no século anterior foi a união entre o pensamento liberal e a ideia de

Estado democrático contra o absolutismo principesco. Salienta que não foram o fascismo e o

bolchevismo as causas dessa crise do sistema parlamentar, mas a perda do inimigo comum,

que faziam das divergências entre os dois um elemento desimportante. O contraste gerador

dessa crise “[...] insuperável em sua profundidade, entre a consciência liberal do homem como

indivíduo e a homogeneidade democrática” (SCHMITT, 1996a, p. 17). O valor liberal ao

individualismo e a garantia da tolerância frente às diferenças de pensamento, de religião e de

concepção política contrastariam com a homogeneidade necessária, segundo Schmitt, para o

desenvolvimento da vontade geral numa democracia. O regime pluripartidário seria um

elemento maléfico para a força do Estado. Críticas compartilhadas pelos nazistas e pelos

segmentos monarquistas durante a República de Weimar, como demonstra Richard J. Evans

em sua análise sobre a formação do Terceiro Reich. Por isso, não devemos com exagero

alegar que Carl Schmitt possua uma vinculação ao nazismo nesse contexto. Como outros

alemães durante os anos de Weimar, Schmitt defende o retorno de um governo forte e

centralizador, capaz derrotar seus inimigos internos e externos.

No ano 1926, quando o prefácio foi feito, os monarquistas nacionalistas se

apresentavam como uma alternativa mais real a isso. Como Peter Gay e Richard J. Evans

argumentaram em suas obras, muitos acreditavam que Hindenburg pusesse fim a República.

Mas ao contrário, até os anos 1930, o marechal da guerra permaneceu fiel a Constituição de

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1919 e aos dispositivos institucionais de governo parlamentar. A própria questão do risco

político a qual um Estado democrático está sujeito, pela sua essência, frente à disputa do

poder de forma democrática faz com que Carl Schmitt reflita os meios para garantir a sua

durabilidade. Sabemos que ele considera a República de Weimar como um sistema político

fraco, face às disputas das facções partidárias pelo controle do poder. Em seu livro, A Teoria

da Constituição, essa fraqueza parece residir no Parlamento. O jogo político passa a ser

retratado como um negócio de burgueses, desde os escritos do início dos anos 1920. No

Parlamento Alemão desse período não há uma homogeneidade, segundo Carl Schmitt, onde o

povo alemão como um todo possa se sentir representado. Assim, surgem os governos de

coalizão, que se constituem na união de diversos partidos para formarem uma maioria

parlamentar. Porém, delas decorrem as crises de gabinete, onde Carl Schmitt ao citar

Poetzchs, diz que: a “[...] crisis de coalición, es decir del bloque de partidos que sustituye a

un partido con capacidad de gobernar [...]” (SCHMITT, 1996c, p. 329). As formações dos

gabinetes governamentais não são inconstitucionais, segundo Carl Schmitt, pois a

Constituição de Weimar de 1919 inscreve quatro possíveis sistemas parlamentares. Assim,

[...] Con la introducción del sistema presidencial se encuentran reconocidas

potencialmente en la Constitución de Weimar las cuatro subespecies del

sistema parlamentario que se cabe considerar. El problema específico del

gobierno parlamentario en el Reich alemán según la Constitución de Weimar

es la relación recíproca de las diversas posibilidades (SCHMITT, 1996c, p.

328).

A constituição do Estado federal alemão, dessa forma, estaria aberta a quatro diversos tipos de

governos de modelo parlamentar, sendo eles, segundo Carl Schmitt: Sistema de Parlamento

(em sentido estrito); Sistema de Primeiro Ministro (ou Chanceler); Sistema de Gabinetes; e,

Sistema presidencial (SCHMITT, 1996c, p. 327). Para o jurista, a Assembleia Nacional de

Weimar não precisou com rigor o tipo de sistema parlamentar a ser adotado, pois desejava,

segundo ele, uma “sólida conexión” entre o Parlamento e o Governo. Essa elasticidade do

entendimento jurídico sobre o modelo a ser adotado pelo Estado permitiu ao que parece, uma

organização do governo segundo a conjuntura política de cada momento durante a existência

da República de Weimar.

O nacional-socialismo não foi o único inimigo ao qual a República de Weimar teve

que enfrentar. As alas conservadoras e nacionalistas desejavam o retorno da monarquia e um

maior controle sobre os trabalhadores. Os comunistas, em seu desejo de criar na Alemanha

uma República Soviética, eram contrários ao estilo parlamentar liberal do governo. Segundo

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Richard J. Evans, a forma como os social-democratas destruíram os levantes dos anos iniciais

da república impossibilitou uma união entre os dois maiores partidos de esquerda. Aliado a

isso, o comando comunista soviético não desejava essa união, denominando-os “social-

fascistas” (EVANS, 2010; 2014). O uso da propaganda foi um elemento fundamental para o

sucesso do nazismo, como demonstra Hannah Arendt, aliada ao uso da violência. Destarte,

passaremos a apresentar como Carl Schmitt buscou encontrar saídas para o que ele chamou de

divisões em facções das forças políticas do período weimariano. Diferindo dos juristas

normativistas, o jurista alemão nesse período defendeu um decisionismo político, que tinha

inspiração no poder soberano dos reis do início da Idade Moderna. Para isso, ela buscou

defender o uso dos poderes excepcionais por parte do Presidente do Reich estabelecidos pelo

artigo 48 da Constituição de Weimar.

O decisionismo político schmittiano: a excepcionalidade do político e o

governo autoritário das massas

“[...] Nenhum homem pode conservar em sua

mente imagem de infinita magnitude, nem

conceber infinita sabedoria, tempo infinito, força

infinita ou infinito poder [...]”

(Thomas Hobbes, Leviatã, p. 31).

Em seu livro O Conceito do Político de 1932, Carl Schmitt discute inúmeros

conceitos referentes ao campo da política e do ordenamento jurídico ligado ao político.

Segundo ele, “a distinção especificamente política a que podem reportar-se as ações e os

motivos políticos é a discriminação entre amigo e inimigo” (SCHMITT, 1992, p. 51).A

construção do “Nós” (identidade que no processo histórico acaba por homogeneizar um

agrupamento humano, no campo religioso e/ou político),seria construída a partir da oposição

do “Outro” (elementos constitutivos de um agrupamento político e/ou religioso que acredita-

se distinto). Ele entendia que o liberalismo, com seu normativismo jurídico, limitava o poder

de decisão soberana a qual o político deveria possuir, relativizando as diferenças culturais dos

povos. Segundo Norberto Bobbio, essa díade política (a categoria “amigo-inimigo”), “resume

em nível de alta abstração a ideia da política como espaço do antagonismo, cuja forma

extrema é a guerra, que é naturaliter dicotômica (mors tua vitamea)” (BOBBIO, 2011a, p.

82). A eliminação física daquilo que se considera diferente, com a finalidade de garantir a

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existência da coletividade (nação). Ou seja, o político para Carl Schmitt não pode ser

normatizado, pois o campo político está condicionado também ao excepcional.

A situação limite da existência – a guerra – não pertence ao campo exclusivo do

racional, sendo impossível a sua normatização por meio de tratados bilaterais ou

internacionais, pois a existência destes estaria condicionada às mudanças do jogo político47

.

Cada geração política, segundo a lógica schmittiana, possuiria o direito de tomar decisões

referentes à sua existência como corpo político constituído ou passível de constituição. Sobre

os conceitos de decisão e inimigo em Carl Schmitt, Bernardo Ferreira nos diz:

[...] O confronto com o inimigo impõe uma decisão a respeito do outro que é

simultaneamente uma decisão sobre si mesmo, porque tem relação com a

possibilidade de sobrevivência da própria maneira de ser. Tal decisão coloca

a pergunta por aquilo que é fundamental e inegociável na minha forma de

existência. O conflito político é um conflito sem meio termo, que não pode

ser adiado ou contornado, negociado ou recusado [...] (FERREIRA, 2004, p.

47).

A preservação de um modo de ser – modo de existir – representa uma preocupação central na

argumentação de Schmitt. Essa, podendo ser defendida a todo custo, por meio da guerra,

segundo ele, em um caso limite.

Conceitualmente, Carl Schmitt propõe-se a interpretar o político de forma singular,

de acordo com o contexto histórico e as exigências do mesmo. No prefácio de O Conceito do

Político, demonstra o seu interesse de

[...] estabelecer um contexto para determinadas questões de jurisprudência,

com o fim de ordenar uma temática confusa e encontrar uma tópica de seus

conceitos. Este é um trabalho que não pode partir de definições essenciais

intemporais, mas deve partir inicialmente de critérios que impeçam perder-se

de vista a situação e o tema. Trata-se, principalmente, da relação e posição

recíproca de conceitos de estatal e político, de um lado, e de guerra e

inimigo, de outro, para reconhecer seu conteúdo de informação concernente

a este campo conceitual. (SCHMITT, 1992, p. 31).

O conflito é a tônica de sua conceituação política, onde o político seria o instrumento de

mediação e execução do mesmo. O pensamento schmittiano buscou entender, entre 1919 a

47

Podemos relacionar essa questão, com a questão dramática em que a Alemanha se viu no pós-Grande Guerra:

a rendição e o Tratado de Versalhes. Sabe-se que diversos grupos imputavam a culpa da derrota alemã no front

graças à crença, ao que se pode denominar como “sabotagem interna”. Essa argumentação de Schmitt pode

haver legitimado o descumprimento do tratado por Adolf Hitler. Sobre a questão da sabotagem interna, Eric

Hobsbawm, em A Era dos Extremos e Norbert Elias, em Os Alemães, tratam sobre essa crença defendida nos

círculos nazistas.

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1933, os elementos que limitavam o poder do Estado a partir do desenvolvimento do Direito

Natural, surgido das discussões dos pensadores iluministas, nesse sentido, John Locke e

Montesquieu48

. No caso alemão, a criação da República de Weimar e sua governabilidade

durante 1919-1933 é fundamental para se entender as preocupações conceituais schmittianas.

O modelo constitucional dos estados modernos é o seu principal objeto de estudo, para assim

poder fundamentar a sua ideia decisionista.

[...] Dentro de ese contexto tienen especial relevancia su comprensión de las

razones de la crisis del modelo constitucional alemán heredado del XIX, su

crítica a la insuficiencia del enfoque y las categorías jurídico-

constitucionales del positivismo jurídico, y finalmente su respuesta al déficit

de autoridad del Estado que se plantea a lo largo de la historia de la

República de Weimar. (AGAPITO, 2006, p. 13).

Nesse sentido, o Estado como instituição não poderia constituir uma identidade política. O

Estado liberal burguês ao haver relativizado o conflito entre o “Nós” e o “Outro”, não poderia

consistir em sua essência uma “díade política”.

Sintomática de uma série de mudanças do início do século XX é a questão da

representação numa sociedade de massas. A democracia representativa necessita ser

legitimada por meio dos votos dos cidadãos e esses devem sentir-se ligados aos seus

representantes. Isso, acrescido nos Estados liberais, segundo Carl Schmitt, do Estado de

Direito. Para o jurista, com a democratização das sociedades no século XIX, o povo voltou-se

para o parlamento como instituição que o representasse em contraposição ao poder do

monarca, antes soberano absoluto. Na república, com o fim da monarquia na Alemanha, surge

a figura do presidente. Segundo Schmitt, este “[...] es el monarca republicanizado de la

Monarquía parlamentaria; se le mantiene por razón de la distinción de poderes y se le

atribuyen ciertas facultades (por ejemplo, disolución del Parlamento)” (SCHMITT, 1996c, p.

282). Para o autor, o presidente do Reich por meio da possibilidade de poder dissolver o

Parlamento, apresentaria uma independência frente ao Parlamento. Dessa forma:

La Constitución de Weimar aceptó ese sistema, introduciendo en la

Constitución elementos de un sistema presidencial junto a los de un puro

sistema parlamentario. El Presidente del Reich es elegido por todo el Pueblo

48

Ao que compreende a democracia a e lei, Carl Schmitt argumenta “a lei é o que o povo quer”, sendo que “[...]

Frente a esa voluntad, no hay frenos ningún los principios democráticos […]”. Dessa forma, é “[…] El concepto

de ley proprio del Estado de Derecho, que transforma la Democracia en una Democracia constitucional, es el que

hace posibles aquí garantías contra injusticias y desigualdades […]” (SCHMITT, 1996c, p. 252). Seriam os

preceitos liberais que, para ele, limitariam o poder soberano do povo.

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alemán; tiene una serie de competencias importantes de naturaleza política,

como la representación internacional del Reich (art. 45, C. a49

.),

nombramiento y separación de los funcionarios del Reich y oficiales

(artículo 46), alto mando de las fuerzas armadas del Reich (art. 47),

ejecución del Reich contra un País (art. 48, 1), medidas del estado de

excepción (artículo 48, 2), derecho de gracia en el Reich (art. 50). Sus

facultades frente al Parlamento, destinadas a crear en su cargo un contrapeso

del Reichstag, son: facultad de disolución (art. 25) y disposición de un

referéndum contra una ley acordada por el Reichstag (art. 73) (SCHMITT,

1996c, p. 282).

As faculdades mencionadas por Carl Schmitt presentes na Constituição de Weimar, fazem do

presidente do Reich, para ele, um contrapeso ao Parlamento. Além disso, segundo ele, o

Presidente apossa-se dessa forma das atribuições que o Imperador detinha durante o Império

Alemão. Ao mesclar os princípios políticos formas, essa constituição, para o jurista, apenas

mantém uma tradição das constituições do Estado burguês de Direito (SCHMITT, 1996c, p.

283). Observa-se que o presidente continha um poder significativo frente ao parlamento

durante a República de Weimar. Dentre essas atribuições, o direito de declarar o Estado de

Exceção, que foi um dos pontos mais ressaltados nos escritos schmittianos. Ao fim da

República, quando Adolf Hitler, por meio de um referendo, une os cargos de Chanceler e

Presidente, torna-se detentor de um poder gigantesco perante a Constituição. Poder tamanho,

que como já ressaltamos, ele jamais colocou fim a Constituição de Weimar (EVANS, 2010).

Hitler governou a Alemanha até 1945 por meio das atribuições dispostas pelo artigo 48, ou

seja, pelo Estado de Exceção.

Para desenvolver sua teoria decisionista, Carl Schmitt produziu uma série de escritos

nos anos weimarianos. Todos tinham como plano de fundo, o que ele chamava de situação

concreta do sistema parlamentar atual (ou do período da República de Weimar, mais

estritamente). Para legitimar a promoção do presidente como um personagem diferente do

soberano monarquista do século XIX (distante do povo), ele se utilizou do texto

constitucional. Além disso, buscou no poder moderador, pensado por Benjamin Constant no

início do século XIX, uma forma teórica de enquadrar o presidente como um terceiro superior

no plano político da moderna sociedade democrática. Ou seja, o presidente estaria longe das

disputas político partidárias. Para isso, ele chega a citar a Constituição Brasileira de 1824, que

atribui ao Imperador um poder superior ao legislativo e ao judiciário. O que logicamente

colocava fim ao equilíbrio dos poderes.

49

Na tradução por nós utilizada em língua espanhola, o tradutor preferiu utilizar a sigla C. a. para denominar a

Constituição de Weimar de 1919.

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A Constituição, os poderes constituídos e a sua proteção

“[...] Entrementes, tivemos a experiência de que é

um artifício especialmente político apresentar a

própria concepção como apolítica e as questões e

opiniões do adversário como políticas [...]”

(Carl Schmitt, O Guardião da Constituição, p. 4)

Em seus escritos por nós analisados, Carl Schmitt sempre argumenta que quando um

povo não consegue mais reconhecer um inimigo, aquele deixa de existir como uma entidade

política concreta. Outra problemática está ligada aos artifícios políticos para legitimar os

discursos. Proteger o status político definido na constituição é uma necessidade das

democracias modernas. O político é mutável, o desejo pelo poder conduz os seres humanos a

conflitos de vida e morte. Como garantir que o desejo político exposto numa dada

constituição esteja protegido contra as ameaças internas e externas? Essas são questões sobre

a soberania das democracias modernas, das quais Carl Schmitt buscou responder. Em seu

prefácio de O Guardião da Constituição, diz:

[...] O que mais dificulta o reconhecimento de nossa situação constitucional

concreta é a concomitante ligação e interseção de organização federalista

com outros princípios de volição estatal. Tentei caracterizá-la como “Estado

partidário pluralista” e “policracia” e também tratar o problema daí

resultante, da “neutralidade da política interna do Estado”, de modo algum

por prazer com uma tese “brilhante” ou “estimulante”, e, sim, sob a força

coercitiva de uma necessidade criada pelo próprio tema (SCHMITT, 2007, p.

xviii).

Ainda no prefácio, escrito em 1931, Carl Schmitt expõe que a constituição deva ser o maior

problema enfrentado pelos Estados naquele momento. Esse problema estaria relacionado às

necessidades de reformas. Ele utiliza o exemplo da questão federativa50

, adotada pela

Constituição de Weimar como forma de organização política do Estado alemão. Mais uma

vez notamos que Carl Schmitt evoca a condição concreta por ele vivenciada para a produção

de uma obra, denotando uma forma existencialista de compreender sua vida intelectual.

Nos escritos schmittianos da República de Weimar, o povo politicamente constituído

deve ter ou produzir mecanismos para identificar, distanciar e/ou exterminar seus inimigos

50

O Estado alemão se organizava pela união de Estados federativos, durante a República de Weimar. Sobre essa

questão Carl Schmitt também se dedicou em seu outro texto sobre a temática da constituição, A Teoria da

Constituição.

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políticos. Seja no âmbito interno (país, sistema político, por exemplo) ou no âmbito externo

(países estrangeiros que afrontem a soberania e a segurança do país em questão). As

democracias modernas se constituíram a partir da confecção de constituições nacionais que,

para Carl Schmitt, significavam um mecanismo de controle do poder soberanos dos reis. No

século XIX, esse freio do poder real, para o jurista, se constituiu na contraposição entre

monarquia e parlamento, compreendido então como uma ferramenta burguesa de governo

num sentido liberal. Entretanto, a conjuntura histórica que legitimava a instituição do

parlamento, para Schmitt, perdeu seu sentido com a politização das massas por meio do

processo de democratização iniciado ao final do século XIX. Além disso, as monarquias

europeias foram derrotadas durante a Primeira Guerra Mundial.

Os escritos schmittianos, como já apresentamos, são produzidos a partir de uma

concepção histórica da política e do direito. O desenrolar histórico apresentado conduziu para

o autor a uma mudança, no sentido de saber quem ao certo representaria o povo de forma

homogênea. Por meio disso:

[...] Enquanto no século XIX lutava-se, sobretudo, por proteção contra o

governo, tem-se em mente hoje, freqüentemente, apenas a proteção contra a

legislação por parte da maioria parlamentar. Mas o risco para a Constituição

emanar, doravante, da esfera do legislativo, o legislador não pode mais ser o

guardião [...] (SCHMITT, 2007, p. 38).

Quando o poder do rei deixa de existir de forma concreta, para Schmitt, desaparece a

dualidade política que legitimava o parlamento como representante do povo. Além disso, o

próprio parlamento se transforma em uma instituição não mais capaz de proteger a

constituição. Encontrar um novo guardião da constituição se transforma numa tarefa de

primeira ordem nesse contexto de transição. Mas esse guardião deve possuir legitimidade

democrática, pois para Schmitt a questão que garante a legitimidade nas sociedades modernas

desde o século XIX é o princípio democrático (SCHMITT, 1996a, p. 30). Nessa busca:

[...] Exigindo-se um guardião, espera-se, naturalmente, uma determinada

proteção e se parte da idéia de um determinado risco que vem de uma

determinada direção. O guardião não deve se proteger abstrata e

simplesmente, mas, sim, se proteger contra riscos bem definidos e temidos

concretamente. Enquanto antigamente, no século XIX, o risco provinha do

governo, ou seja, vinha da esfera do “executivo”, a preocupação se dirige,

hoje, sobretudo, contra o legislador [...] (SCHMITT, 2007, p. 36-37).

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Carl Schmitt está se posicionando contra, nesse fragmento, no intento de alguns pensadores

de buscar no judiciário o novo guardião da constituição. Se o poder judiciário para Schmitt

não se apresenta como uma instituição capaz de garantir a defesa da constituição nos

parâmetros acima elencados, e o legislativo também tem a sua legitimidade questionada,

resta-se ao ordenamento do Estado o poder executivo. Agora, para Schmitt, não mais o

monarca, mas sim o presidente da república possui em si um elemento legítimo. Diferente do

outro, o presidente é eleito por sufrágio e a sua eleição, para Schmitt, representa a vontade da

maioria do povo. Tanto na Teoria da Constituição quanto em O Guardião da Constituição, o

jurista vai caracterizar o presidente do Reich como aquele que concentra em si a vontade geral

do povo, em contraposição ao parlamento, fracionado pelos partidos políticos. Mas até que

ponto o presidente pode ser considerado alguém acima das disputas partidárias? Não estaria

Carl Schmitt desvirtuando o problema da representação democrática para favorecer o

presidente, sem resolver o problema das vontades diversas presentes na sociedade? A solução

nos parece não haver solucionado o problema da representação democrática.

O pluralismo político das democracias modernas (e do sistema parlamentar alemão da

República de Weimar em especial), com a existência de diversos partidos que

ideologicamente negavam-se uns aos outros (e lutavam entre si pelo domínio do poder),

demonstrariam, na visão de Schmitt, a fraqueza do sistema de governo liberal frente à ideia de

coletividade e a homogeneidade nacional. Sobre a relação entre o Estado e o político,

[...] Carl Schmitt inverte esse axioma: atualmente não se pode mais definir o

político partindo do Estado; todavia, aquilo que hoje se pode chamar de

Estado deve, ao contrário, ser entendido a partir do político. O que estava

acontecendo é que seria necessário, depois da Primeira Guerra, atualizar-se

rumo a uma sociedade profundamente diferente: um Estado concreto não

pode pensar existir senão como organização jurídica de uma coletividade

ordenada segundo uma ideia política e a Constituição material não pode

deixar de conter essa coletividade (ADINOLFI, 2010, p. 371).

A crítica schmittiana ao individualismo burguês e ao pluralismo demonstra que as suas ideias

pretendem conduzir a um sistema político onde o chefe de governo represente os desejos da

coletividade. O Estado é soberano quando o desejo do líder, que tem como virtude encarnar

em si os anseios do povo, tornando-se a lei. Ou seja, as minorias deveriam ser colocadas à

parte do cenário político, em razão de a maioria significar a verdade concreta, e não eterna, no

momento em que são travados os conflitos de representação. Schmitt infere que após a

Primeira Guerra Mundial, surge “uma sociedade profundamente diferente”. Ele chama

atenção para o fato de que as massas ganham uma maior expressividade no meio político e no

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fim da década de 1920, o poder delas já se apresenta solidificado no pensamento

schmittiano51

. Podemos assim, inserir a questão da crítica que Carl Schmitt fez no livro

Romantismo Político (publicado em 1919), onde segundo Bernardo Ferreira, Schmitt ao

conseguir constatar a mudança na ordem política que até então era baseada no liberalismo

burguês do século XIX, declara que os românticos políticos não deram valor à mudança

política ocorrida no início do século XX. Ao polemizar o liberalismo em suas obras, ele

direciona suas críticas

Contra os princípios em que, ao seu ver, se baseava a organização jurídico-

política da Alemanha de Weimar: o parlamentarismo e o Estado de direito.

Tanto num caso quanto no outro, o reconhecimento dos conflitos inerentes à

existência política cedia lugar ao ideal de uma ordem auto-regulada: no

parlamentarismo, através da transformação da decisão política no resultado

final do confronto público de argumentos racionais; no Estado de direito,

pela subsunção do conjunto da vida política a um sistema fechado de normas

gerais e abstratas. No entanto, acreditava Schmitt que a nova realidade

surgida com as modernas democracias de massa evidenciava o caráter

ilusório das crenças liberais: diante das práticas dos partidos de massa, os

princípios de publicidade e discussão do parlamentarismo se revelavam

obsoletos; a tendência de interpretação das esferas do Estado e da sociedade

tornava inadequado o ideal do constitucionalismo liberal de limitação do

poder do Estado. (FERREIRA, 2000, p. 410).

Mesmo que o liberalismo defenda uma menor intervenção do Estado na economia, sempre

quando surgem os problemas econômicos, buscam-se no Estado às soluções dos mesmos. As

críticas proferidas por Schmitt ao liberalismo vão além de seu caráter teórico, aprofundando-

se nas práticas, procurando demonstrar o quanto é diferente aquilo que seus defensores

pregam, do que é realmente executado.

Sua crítica aponta para a despolitização da sociedade sobre os efeitos da doutrina

liberal, onde a presença do Estado como “força regulatória” das contendas tanto internas

quanto externas, seria substituída pela convivência pacífica entre os homens. Ou seja,

significariam o fim das formas de coação praticadas pelos governos para a proteção de seus

interesses comerciais para com outros governos. Nesse sentido,

[...] As despolitizações liberais são solidárias, portanto, de uma

representação da existência social como um lugar de convivência pacífica

entre os homens. Elas tenderiam a banir do horizonte da vida coletiva a

51

Francisco Teixeira historiciza essa problemática do artigo Cultura operária e resistência antifascista no acaso

da República de Weimar (1919-1933), defendendo que houve um esvaziamento do eleitorado dos partidos de

centro. Em contrapartida, o NSDAP e o Partido Comunista Alemão, com a crise de 1929, passaram a contar com

uma votação expressiva, frente à Coligação Weimariana.

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perspectiva da inimizade política, recusando a radicalidade dos conflitos

políticos em nome de uma convivência que seria capaz de se manter dentro

dos limites do razoável; ou melhor, que seria passível de ser resolvida dentro

de um quadro de normalidade, isto é, de um quadro em que as referências

normativas conservariam a sua força regulatória. Nesse contexto, as

divergências, em virtude da atenuação da sua própria intensidade, poderiam

se preservar dentro de bases comumente reconhecidas, dispensando, no fim

das contas, o governo como instância de coação [...] (FERREIRA, 2010, p.

77).

Porém, a realidade concreta não é passível de normatização na lógica schmittiana. Ele não

acredita na “paz perpétua”. Assim, em sua ótica, a relação entre os homens é de conflito, e a

sua extrema realização é a guerra. Quando as disputas convergem para a luta armada,

[...] os conceitos de amigo, inimigo e luta adquirem seu real sentido pelo fato

de terem e manterem primordialmente uma relação com a possibilidade real

de aniquilamento físico. A guerra decorre da inimizade, pois esta é a

negação ontológica de outro ser. A guerra é apenas a realização extrema da

inimizade. Ela não carece de ser algo de cotidiano, algo normal, nem precisa

ser compreendida como algo ideal ou desejável, contudo precisa permanecer

presente como possibilidade real, enquanto o conceito de inimigo tiver

sentido. (SCHMITT, 1992, p 59).

Constata-se assim, duas críticas de Schmitt às democracias liberais e a sua relação com o

conceito de guerra e soberania do executivo: a primeira, por ser necessária a aprovação da

guerra pelos parlamentares, o que pode envolver todo um desgaste político para o

representante máximo do governo, isso contribuiria para fortalecer o inimigo, pelo fato deste

estar à frente na formação de seus exércitos e táticas de batalha; a segunda crítica se enquadra

no sentido dos tratados internacionais, que colocam uma série de imposições para a realização

de guerras, tal como era a situação da Alemanha após a Primeira Guerra Mundial.

No cenário político econômico da República de Weimar, argumenta Carl Schmitt, as

forças políticas do século XIX se transformaram em algo novo. Não existe mais a monarquia

constitucional e o parlamento ganha um novo status político e social. Destarte, a situação

constitucional do Reich alemão desse período, caracteriza-se pelos seguintes fatores:

[...] a Constituição de Weimar é uma constituição democrática e baseia-se

em um equilíbrio de elementos parlamentares e plebiscitários, sua estrutura é

essencialmente determinada pelo fato de que o povo decide da mesma forma

perante o parlamento quanto perante o governo e o presidente como o

terceiro superior (por meio da reeleição, plebiscito ou outras votações). Um

conflito constitucional na forma monárquico século XIX, é hoje tão

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impossível e inimaginável quanto são intransferíveis os argumentos e

conceitos de semelhante conflito (SCHMITT, 2007, p. 189).

Observa-se que essa nova constituição do período de Weimar produz uma nova relação entre

o governo executivo e o legislativo. Schmitt atenta para que ao manter a linguagem do século

XIX, políticos e teóricos políticos, cairiam em anacronismo, pois esses conceitos não se

embasariam com a sua realidade concreta atual. Nessa nova constituição do Reich alemão, o

presidente do Reich exerce uma função que lega aspectos dos direitos do monarca do século

XIX. Mas aquele tem uma relação direta com o povo, pois é este quem lhe confere o direito

de governar. Desta forma,

[...] Parte-se do princípio de que um governo apoiado em camadas populares

e que encontra a anuência e a aclamação do povo é mais forte e mais intenso

do que os demais tipos de governo. Por essa razão, a primeira parte

organizacional da Constituição do Reich contém, fora as determinações de

direito federal, um equilíbrio, em princípio, bem refletido da democracia

parlamentar para com o plebiscitária [...] (SCHMITT, 2007, p. 168).

Carl Schmitt buscou articular uma relação direta entre o povo, a instituição do parlamento e a

figura do presidente do Reich. Um poder baseado no referendum e outro no plebiscito, as duas

forças políticas democráticas presentes no ordenamento constitucional de Weimar

possibilitariam na prática um equilíbrio entre o parlamentarismo e o presidencialismo52

. No

entanto, esse equilíbrio é colocado em xeque quando o parlamento não consegue estabelecer

uma maioria parlamentar. O autor posiciona-se de forma contrária aos governos de coalizão

dos anos weimarianos, pois nem eles representariam meios duradouros de governo53

,

significando “[...] a falta de um governo estável e capaz de governar [...]” (SCHMITT, 2007,

p. 149). A fragmentação das forças políticas pela representação partidária somente encontraria

uma solução, para Schmitt, não por meio de “imparcialidade apolítica”, “[...] mas em uma

política objetivamente informada e que não perde de vista o interesse do todo” (SCHMITT,

2007, 168). Atenta, Carl Schmitt, para o risco de uma espécie de vazio institucional, ou seja,

de que as instituições encarregadas da representação do povo não consigam mais gerar uma

identidade com o todo, de forma homogênea. Deste modo, se “[...] os órgãos e instâncias

constitucionalmente previstos ainda não forem capazes de uma vontade política uniforme,

52

Carl Schmitt evoca diversas vezes discursos de Hugo Preuss, um dos parlamentares que escreveram a

Constituição de Weimar, para ligar seu discurso do poder presidencial como ente moderador frente às

instituições do Reich desde o princípio da confecção da referida constituição (SCHMITT, 2007). 53

Sobre a organização dos governos de coalizão durante a República de Weimar, suas fraquezas e pontos de

permanências ministeriais, verificar as obras de Peter Gay e Richard J. Evans citadas na dissertação.

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torna-se, assim, inevitável que a substância política emigre pra alguns pontos do sistema

social ou político [...]” (SCHMITT, 2007, p. 147). O risco à Constituição está justamente caso

esse poder de decisão política (e nos Estados político-econômicos54

, decisão econômica), não

resida mais nas instituições constitucionalmente habilitadas para tal.

O problema para a crise do sistema parlamentar da República de Weimar se

constituiria que agora, para Carl Schmitt, o Estado era “[...] uma auto-organização da

sociedade [...]” (SCHMITT, 2007, p. 121). A polêmica nos escritos schmittianos sobre esse

assunto permeia seus pensamentos do período weimariano. A sua dúvida é como essa

sociedade que se auto-organiza conseguiria formar uma unidade. Como apresenta-nos Peter

Gay, a sociedade deste período aproveitou da abertura do novo sistema social, florescendo o

campo das ideias, artes e participação política. Para Schmitt, esse pluralismo é um elemento

corrosivo à unidade estatal estabelecida. Ele demonstra sua visão ao retratar os partidos

políticos de então. Apresentando-os como:

[...] produtos rígidos e minuciosamente organizados e, em parte, localizam-

se em um complexo social minuciosamente organizado com burocracias

influentes, um exército permanente de funcionários remunerados e todo um

sistema de organizações de ajuda e apoio, nas quais se encontra vinculado

uma clientela unida intelectual, social e economicamente [...] (SCHMITT,

2007, p. 122).

A formação do que Schmitt denomina de facções sociais, os partidos, tornam-se sistemas

burocráticos permanentes. Além disso, esses partidos estariam organizados por aparatos

ideológicos que não mais permitiam aos seus associados a uma liberdade intelectual,

interferindo no processo parlamentar da discussão e da emanação de discursos com juízos

próprios, mas condicionados aos ditames partidários55

.

54

Como já presente nos escritos schmittianos citados no primeiro capítulo, o autor retorna sua atenção a questão

do que ele denominada de Estados de constituição econômica e de modelo unipartidarista, ou seja, a Itália

Fascista e URSS. Nesses Estados, as suas constituições estão alinhadas com a realidade política e econômica do

século XX, segundo o autor. Ao contrário da Alemanha perante a República de Weimar que optou por uma

Constituição política, baseada nos princípios do século XIX, de forma anacrônica com a realidade concreta em

que ela se encontrava nos pós Primeira Guerra Mundial. Ainda para Schmitt, os dois governos presidenciais sob

Weimar utilizaram-se dos poderes excepcionais do Presidente do Reich para solucionar esse conflito

(SCHMITT, 2001; 2007). 55

O historiador Richard J. Evans demonstra em sua obra como a organização partidária dos períodos

weimarianos se constitui. Salienta o autor, que um filiado a um grande partido do período poderia ter uma vida

ligada restritamente aos serviços do partido, desde frequentar um pub, ler um jornal, associar-se a clubes e

trabalhar em órgãos do partido de sua escolha (EVANS, 2010).

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De certa forma, Carl Schmitt pensou suas construções teóricas por meio do que

continha na Constituição de Weimar e nas ações governamentais dos anos de 1920. Assim

sendo:

[...] A prática das leis de plenos poderes, especialmente em ambos os casos

das leis do Reich de 13 de outubro de 1923 (Diário oficial do Reich I, p 943)

e de 8 de dezembro de 1923 (Diário oficial do Reich I, p. 1179), mostra que,

no caso crítico, é possível um afastamento do parlamento (SCHMITT, 2007,

p. 169).

Esses casos críticos seriam quando o aspecto constitucional do Reich não legislasse sobre

qual resolução tomar, tendo o parlamento fracionado pelas tendências partidárias. Nesse

contexto, o Presidente do Reich poderia (e deveria, para Schmitt), fazer uso dos poderes

excepcionais a ele dispostos pelo artigo 48 da Constituição de Weimar56

. Por essas leis acima

referidas, para Schmitt, o Presidente do Reich e os ministros abriram os precedentes

constitucionais para outras ações nos anos vindouros57

.

Para Peter Gay, a Constituição de Weimar era moderna com um eleitorado

democrático. Mas para muitos que lutaram por transformações sociais e econômicas, ela “era

muito vaga”. O próprio Carl Schmitt também critica esse aspecto da mesma. Obviamente os

autores, contemporâneos do período weimariano tinham respostas divergentes a essa

problemática. Nesse sentido, Carl Schmitt defendeu que o presidente do Reich tinha a missão

constitucional, frente à atual situação da República de Weimar, de ser o guardião da

Constituição. Pois:

[...] se, na presente situação constitucional da Alemanha, se formou

justamente uma praxe do estado de exceção econômico-financeiro com um

direito de baixar decretos substantivos de leis, isso, então, não é

arbitrariedade nem acaso, nem mesmo “ditadura” no sentido da divisa vulgar

56

Não haviam limites precisos para possíveis abusos dos poderes excepcionais do presidente ditados pelo artigo

48, salienta Schmitt. Para ele, deveria surgir uma lei que regulasse de forma mais precisa a questão, mas

enquanto isso, argumenta ele, que o parlamento unido, constituindo uma maioria de ação política unitária deveria

bastar para que o presidente não abusasse do mesmo (SCHMITT, 2007). Mas o próprio presidente também tinha

em sua atribuição constitucional o poder de dissolver o parlamento, pelo artigo 25, se este rejeitasse um ato

presidencial em forma de decreto (EVANS, 2010, p. 125). 57

Pelo que pudemos compreender da nota de rodapé número 15 de O Guardião da Constituição, o artigo 48 que

rege sobre o Estado de Exceção somente permite ao presidente legislar por meio de leis ordinárias. Não

conferindo ao mesmo o poder de criar emendas à Constituição, tarefa do Reichstag. Além disso, o presidente, é

claro, não teria poderes legais para criar uma nova constituição. O referido artigo somente o permitia proteger a

Constituição e o Estado legiferante constituídos (SCHMITT, 2007, p. 176-177). Se o presidente do Reich não

possuísse poderes ditatoriais como alega Schmitt, esses poderes excepcionais ao menos significaram

possibilidade de ação extrema por parte do executivo.

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e político-partidária, mas a expressão de uma relação profunda e

internamente legal. Corresponde ao rumo que um Estado legiferante toma

para o Estado econômico e que não pode mais ser executado por um

parlamento pluralisticamente divido. O estado de exceção revela, como

mostrado anteriormente, o núcleo do Estado em sua particularidade concreta

e o Estado judicante desenvolve a lei marcial, um processo judicial sumário,

o Estado militar e policial a transição do poder executivo como típico meio

de seu estado de exceção. O direito econômico-financeiro de baixar decretos

substitutivos de leis da atual praxe do artigo 48 permanece, analogamente, de

acordo com a ordem existente e, diante de um pluralismo inconstitucional,

procura salvar o Estado legiferante constitucional, cuja corporação

legislativa está pluralisticamente dividida. A tentativa de produzi um

antídoto e um movimento contrário só pode ser empreendida constitucional e

legalmente pelo presidente do Reich, dá a perceber, simultaneamente, que o

presidente do Reich precisa ser visto como guardião de toda essa ordem

constitucional (SCHMITT, 2007, 190).

O autor defende diversas vezes a sua teoria de que o Presidente do Reich deve ser o guardião

da Constituição58

, pois é ele que possui esse direito pelos artigos 25 e 48 da Constituição de

Weimar. Se o parlamento, o outro órgão democrático do Estado, estiver impossibilitado por

suas divisões de legislar e proteger o Estado, é função do presidente fazê-lo. Para Schmitt,

portanto, se o parlamento estiver comprometido com suas divisões pluralísticas, ele não deve

furtar o direito do presidente de fazer tudo o que for possível para a autopreservação do

Estado legiferante59

.

Para se compreender a construção teórica schmittiana desse poder do presidente no

contexto de divisão pluralística do parlamento, faz-se necessário retomar a sua compreensão

sobre o Estado fascista italiano. Além disso, também entender qual é o significado de

democracia que ele busca estabelecer nesse casamento entre o poder democrático que emana

do povo ao Presidente do Reich e das atribuições que este havia herdado pela Constituição de

Weimar do monarca constitucional.

58

Carl Schmitt se estabelece contrário a vertente do direito constitucional que defendia a formação de um

Tribunal Constitucional, responsável pela defesa da constituição. Entre os juristas que defendiam essa formula

estava o austríaco judeu, Hans Kelsen. 59

Além dos aspectos já elencados, Carl Schmitt evoca um discurso de Friedrich Ebert, datado de 1922, onde o

mesmo diz: “De minha função como guardião da Constituição do Reich” (SCHMITT, 2007, p. 205). Ou seja,

demonstra que muito antes da sua defesa do presidente como guardião da constituição, já haviam discursos que

coadunavam com sua teoria.

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Democracia parlamentar versus Estado Total

“[...] Quanto maior a concordância nas

assembléias, isto é, quanto mais as opiniões se

aproximam da unanimidade, mais a vontade geral é

dominante; já os longos debates, as dissensões, o

tumulto anunciaram o crescimento dos interesses

particulares e o declínio do Estado.”

(Jean-Jacques Rousseau, O Contrato Social, p.

117).

Carl Schmitt compreende que a nova conjuntura histórica, marcada pela

predominância do econômico sobre o político, fez com que o jogo parlamentar se desgastasse.

Já em seus escritos do início dos anos 1920 retratava as negociações políticas como uma bolsa

de valores. Carl Schmitt expõe, por outro lado, o presidente com um agente central nessa nova

conjuntura democrática e econômica. Esse novo agente necessitaria “[...] de uma teoria mais

desenvolvida de um poder neutro, intermediário, regulador e preservador” (SCHMITT, 2007,

p. 201)60

. O ponto central para validar o poder como terceiro superior no sistema

constitucional de Weimar estava na questão democrática, e o presidente poderia conceber a

vontade geral do povo, para Schmitt, por meio do plebiscito e da aclamação61

. Sendo assim,

Schmitt estabeleceu que:

[...] A concepção estatal democrática (não liberal) tem que perseverar no

axioma democrático fundamental, freqüentemente mencionado, de que o

Estado é uma unidade indivisível e que a parte vencida por maioria de votos,

na verdade, não é violentada nem forçada, mas apenas conduzida a sua

própria vontade real. Logo, não existe nenhuma vitória por maioria de votos,

mas apenas um acordo dado desde o início, sempre existente e livre de

desvios errôneos mediante votação. Mas essa idéia se vê-se cada vez mais

destruída pelo sistema pluralista, o qual, qual é oligárquico e não-

democrático, pois o Estado lhe parece como um complexo de poder ao lado

de outros complexos sociais de poder, que se alia ora a um lado, ora a outro,

provocando, com isso, uma decisão. Assim, a formação da maioria torna-se

60

Para fundamentar seu preceito de que o Presidente do Reich teria uma espécie de poder mediador, melhor

dizendo, terceiro superior, Carl Schmitt passou a evocar as ideias de Benjamin Constant sobre o poder

moderador dos reis. Tanto em A Teoria da Constituição quanto em O Guardião da Constituição, Schmitt cita o

poder moderador atribuído ao Imperador do Brasil, por meio da Constituição Brasileira de 1824. 61

Grande parte dos comentadores dos escritos schmittianos veem uma deturpação do princípio rousseauniano da

vontade geral apresentada por Carl Schmitt. Por exemplo, para Jean-Jacques Rousseau, o plebiscito significava a

declaração da vontade do povo romano, por meio da discussão. Já a aclamação era utilizada durante o período

imperial, onde: “[...] o temor e a bajulação transformam os sufrágios em aclamação; não se delibera mais, adora-

se ou amaldiçoa-se [...]” (ROUSSEAU, 2010, p. 118). Vemos que Rousseau compreende a vontade do povo livre

mediante a discussão democrática, enquanto a aclamação é apenas uma ação de povos escravizados ou

subjugados.

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um meio de sobrepeso e coação externos, em que o Estado não é um neutro

no sentido da objetividade e da razão, como o terceiro decisivo em J. St.

Mill, mas como um fator de poder acessório que proporciona a uma parte a

vitória sobre a outra (SCHMITT, 2007, p. 213).

Observa-se que Carl Schmitt realiza uma profunda crítica ao sistema pluralista

weimariano. Crítica tão profunda e avassaladora que nos faz compreender com clareza que,

segundo ele, aquela forma de ser já não possui mais nem legitimidade democrática e muito

menos constitucional. Se a Constituição de Weimar é democrática, e a democracia é

conduzida, em seu raciocínio, pela vontade da maioria, que se apreende por meio da votação,

esse resultado torna-se a vontade de todo o povo, por meio de um acordo a priori. Schmitt

vislumbra um caos onde grupos antagônicos se digladiam pela posse do Estado, não para se

transformar na vontade da unidade do povo, mas como um instrumento egocêntrico de facção

político-partidária. Se o parlamento estava então corrompido pelas divisões externas e já não

poderia exercer sua função de maioria, cabia ao outro elemento democrático do Estado agir de

forma concreta. Ou seja, “[...] O presidente do Reich é eleito pela totalidade do povo alemão e

seus poderes políticos perante as instâncias legislativas (especialmente dissolução do

parlamento do Reich e instituição de um plebiscito) são, pela natureza dos fatos, apenas um

“apelo do povo [...]” (SCHMITT, 2007, p. 233). Por outro lado, como dizia Jean-Jacques

Rousseau, ninguém pode representar a vontade de outro. A eleição de um presidente não

significa o fim do poder do povo, mas o seu início em uma democracia.

Ao analisar a questão da vontade geral e o seu enfraquecimento frente às vontades

individuais, Rousseau argumenta:

Enfim, quando o Estado, perto de sua ruína, não subsiste mais senão por uma

ilusória e vã, quando o vínculo social está rompido e o mais vil interesse

ostenta descaradamente o nome sagrado do bem público, então a vontade

geral torna-se muda; todos, guiados por motivos secretos, não opinam mais

como cidadãos, como se o Estado nunca tivesse existido, e são aprovados,

sob o nome de leis, decretos iníquos que têm por finalidade apenas o

interesse particular (ROUSSEAU, 2010, p. 116).

Vemos que a crítica schmittiana não destoa sobre a corrupção do poder popular frente às

vontades individuais, de outros pensadores clássicos sobre o tema. Mas como o próprio

Rousseau salienta sobre essa problemática, as perguntas colocadas sobre essa questão podem

conduzir a respostas que não tenham como retorno uma solução a querela em questão. O

cidadão teria, para Rousseau, o direito de votar nos atos de soberania, “[...] direito que nunca

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pode ser tirado dos cidadãos, e o de opinar, de propor, de dividir, de discutir, que o Governo

tem sempre o maior cuidado de só deixar a seus membros [...]” (ROUSSEAU, 2010, p. 116).

Para Rousseau, um povo somente pode ser autogovernar quando é livre, sendo esse um

preceito fundamental. Para ele a vontade geral não desaparece frente às vontades individuais.

“[...] Isso supõe, é verdade, que todos os caracteres da vontade geral estejam ainda na

pluralidade; quando deixam de estar, não importa o partido que se tome, não há mais

liberdade” (ROUSSEAU, 2010, p. 119). Ao contrário de Carl Schmitt que imagina somente

ser possível uma democracia verdadeira quando existe uma unidade entre a vontade do povo e

a do governo, sendo para ele os pluralismos elementos maléficos ao Estado democrático.

Afirma Rousseau, ao contrário, que o Estado democrático é aquele onde os pluralismos

podem ser expressos, discutidos e avaliados pelo povo livre que, por meio de um acordo (o

contrato social fundador), compreende como vontade geral a união dos elementos plurais.

Não existem perdedores, para o pensador iluminista, pois a vontade geral estava em todos

desde o início. Nos escritos Schmittianos o povo parece sumir após a aclamação de seu

representante, a ele não é mais evocado posicionar-se, discutir e opinar livremente.

É importante notar como a tese schmittiana para legitimação do poder presidencial é

construída desde o início de O Guardião de Constituição62

, como reflexo da fragilidade,

divisão, fragmentação e confusão do campo político da República de Weimar. Ressaltamos

aqui posições já expressas de que diversos grupos afirmaram que a República parlamentar

possuía uma fraqueza inerente de sua formação, confrontada com a monarquia, ou com um

poder forte (ditatorial ou autocrático). Tese essa contestada pela historiografia por nós

consultada. Richard J. Evans, por exemplo, questiona isso pelos avanços sociais que a

República alcançou, mesmo enfrentando diversos reveses profundos. O voto universal,

sufrágio feminino, liberdade de expressão, construção de casas populares, aposentadoria e

seguro desemprego, são avanços que o autor considera muito superiores aos que se creditam

ao governo nacional-socialista (1933-1945). Cabe lembrar que outros países europeus do

entreguerras sucumbiram a governos autoritários muito antes da Alemanha, como exemplo a

62

Importante salientar que, para Carl Schmitt, o povo existe antes e por cima da constituição. Assim: “El pueblo

es, en la Democracia, sujeto del Poder constituyente. Toda Constitución, según la concepción democrática, se

basa, incluso par su elemento de Estado de Derecho, en la decisión política concreta del pueblo dotado de

capacidad política. Toda Constitución democrática supone un tal pueblo con capacidad […]” (SCHMITT, 1996c,

p. 234). Proposição polêmica quando se avalia o conjunto do discurso schmittiano da República de Weimar.

Pois, se o mesmo alega que o parlamento já não mais pode representar o povo, dada as divisões pluralísticas, e

que somente resta o presidente como elemento de representação popular para guardar a Constituição, pode-se

argumentar que o presidente legisle em nome do povo. Percebe-se uma erosão do poder parlamentar, e seu

possível descarte por tempo indeterminado, sem abalar o princípio democrático que Carl Schmitt busca

estabelecer para os novos Estados de constituição econômica.

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Áustria, Polônia e Itália (EVANS, 2010; 2014). Como afirma Peter Gay, a República foi

minada por forças de diversas matrizes ideológicas.

Norbert Elias nos lembra que haviam forças centrífugas que fizeram com que a República se

vaporizasse perante o nacional-socialismo. Podemos afirmar, por tudo que foi apresentado,

que mesmo tendo que pagar indenizações astronômicas aos países vencedores, a República de

Weimar alcançou um sucesso bastante sólido. Posição que Schmitt discorda, obviamente. O

pacifismo e o pluralismo político somente poderiam significar fraqueza para alguém que

temia a voracidade dos apetites humanos, creditando ao gênero humano uma antropologia da

maldade63

, onde somente um governo autoritário poderia controlar e/ou exterminar

fisicamente os inimigos internos e externos da unidade total que representava o povo alemão

por meio do Reich64

.

A despolitização de um povo, no pensamento schmittiano, somente seria segura

quando todos os outros povos estivessem também despolitizados – inexistindo a possibilidade

de luta65

. O ideal do Jusnaturalismo para Carl Schmitt é uma utopia, não aplicável à realidade

concreta. Sendo o mundo um “pluriversum político”, a despolitização em âmbito mundial é

algo praticamente impossível. Observando-se que:

[...] a humanidade das doutrinas jusnaturalistas e individualistas-liberais é

uma humanidade universal, isto é, uma construção social ideal englobando

todos os homens da terra, um sistema de relações entre homens individuais

que só então estará realmente presente quando a possibilidade real de luta

estiver excluída e todo agrupamento de amigo e inimigo tornado impossível.

Nesta sociedade universal não existirão mais povos ou nações enquanto

unidades políticas, mas nem classes conflitantes e nem grupos inimigos

(SCHMITT, 1992, p. 82).

As teorias universalistas não foram capazes de apreender o pensamento humano, segundo o

autor, pois a humanidade não é um todo homogêneo. Mas sim, seguindo a lógica schmittiana,

um complexo multifacetado de seres formados a partir de conhecimentos próprios e inerentes

63

Para mais informações sobre o pessimismo antropológico na teoria política de Carl Schmitt, consultar a obra 10

Lições sobre Carl Schmitt. 64

Nesse sentido, Carl Schmitt difere do pensamento Iluminista do século XVIII e da teoria do Estado liberal, das

quais trabalhamos no segundo capítulo. Principalmente aos preceitos defendidos por John Locke e a limitação do

poder soberano, sobre a questão da bondade humana defendida por Jean-Jacques Rousseau e a divisão e o

equilíbrio dos poderes teorizados por Montesquieu. 65

Para Carl Schmitt a democracia corre um risco quando a população não consegue estabelecer a relação de

amigo-inimigo, pois “[...] el peligro de que la opinión pública y la voluntad del pueblo sean dirigidas por fuerzas

sociales invisibles e irresponsables. Pero también par esto se encuentra la respuesta al problema en el supuesto

esencial de toda Democracia. En tanto que exista la homogeneidad democrática de la sustancia y al pueblo tenga

conciencia política, es decir, pueda distinguir de amigos y enemigos, el peligro no es tan grande […]”

(SCHMITT, 1996c, p. 241).

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a cada espaço físico, social e moral, não podendo ser traduzida por uma única ótica de

pensamento. Ou seja, em sua crítica ao pensamento jusnaturalista, Carl Schmitt deixa claro

que o seu posicionamento leva em conta os fatores culturais, religiosos e filosóficos dos

povos. Obviamente que esta forma de compreender a humanidade condiciona a forma de

compreender e agir sobre o outro, que é diferente e passível de destruição quando ameaça o

estilo de vida de outro agrupamento humano.

Por meio do princípio da decisão política, nos escritos schmittianos do período

weimariano, o direito seria atualizável frente às mudanças sociais, não estando normatizado

(naturalizado) por regras incontestáveis e pré-estabelecidas antes da formulação do Estado.

Ou seja, somente existiria direito pela política, pois é ela quem estabeleceria o que seria

verdadeiro ou falso, correto e incorreto, que diferenciaria o amigo do inimigo. A sua crítica ao

sistema parlamentar é contundente ao que se refere a problemas de identidade. Ao separar os

conceitos de democracia e de liberalismo, Carl Schmitt tem como objetivo demonstrar que

eles são antagônicos e que se negam entre si. Para ele,

A crença no sistema parlamentar, num government by discussion, pertence

ao mundo intelectual do liberalismo. Não pertence à democracia. O

liberalismo e a democracia devem ser separados, para que se reconheça a

imagem heterogeneamente montada que constitui a moderna democracia de

massas (SCHMITT, 1996a, p. 10).

As questões culturais e sociais são pensadas por Schmitt, de forma que as diferenças internas

na sociedade não possibilitariam um discurso homogêneo, necessário para um governo liberal.

A sociedade de massas se apresenta heterogênea e não há um caminho único a se seguir. Por

isso, segundo ele, ocorre a crise do sistema parlamentar, onde as massas não se veem

representadas no meio político estabelecido – seja porque os políticos liberais não quiseram

ou não souberam lidar com elas.

A democracia historicamente pode conviver com diferenças internas, pois não era o

discurso da liberdade individual e nem da igualdade a todos os homens que regia seu plano

político, mas sim a defesa do interesse coletivo. Dentro do pensamento político

contemporâneo, os conceitos de igualdade e liberdade são intrinsecamente ligados ao

desenvolvimento político das constituições burguesas66

. O termo igualdade, segundo Carl

66

Reconhecidamente por Carl Schmitt e por seus comentadores um dos pensadores que inspiraram as saídas

teóricas do jurista alemão, Donoso Cortés foi extremamente crítico ao Estado liberal do século XIX. Em seu

Discurso sobre a Ditadura, realizado no parlamento espanhol em 1849, o autor reflete sobre o fim da era

monárquica europeia, as individualidades liberais e a soberania do poder Papal sobre os Estados papais e sobre

toda a cristandade. Ao fim de seu discurso, se colocando a pergunta se na atual situação espanhola, se ele

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Schmitt, estaria ligado a formas de governos democráticos, sendo que no “[...] concepto

democrático de igualdad no basta cualquier igualdad general e indiferente que se encuentre

dada, sin atención a la sustancia o valor de la misma. La forma política específica de la

Democracia sólo puede basarse en un concepto específico e sustancial de igualdad”

(SCHMITT, 1996c, p. 223). A igualdade como conceito político, seria conceituada conforme

cada sociedade lhe conferisse sentido próprio, historicamente situado. Pois a democracia é o

governo da maioria e não de todo o povo, e a igualdade pode ser atribuída a determinados

grupos sociais (por credo, capital econômico, grupo racial, gênero sexual, etc.), e não estaria

relacionada diretamente ao gênero humano – ao direito natural. Aqui Schmitt discorda dos

ideais lockeanos.

No sistema liberal os conceitos de liberdade, igualdade e individualismo são os

elementos que sustentam o seu discurso, abrindo espaço para o acirramento das diferenças

internas. O problema do liberalismo, na visão de Carl Schmitt, seria de inserir o direito natural

(da igualdade e das liberdades individuais como elementos intrínsecos aos seres humanos),

acima do direito de Estado, limitando assim o poder do Estado. Com isso a coletividade que é

o ponto central da democracia é abalada. Nesse sentido, Carl Schmitt acreditava que todo o

direito nascia da política, e uma sociedade política não podia ter em seu discurso, direitos

universais e incontestáveis. A dupla negação entre parlamentarismo e a democracia teria

criado a crise pensada por Schmitt.

Em outras palavras, a questão da democracia e a do parlamentarismo teriam

que ser radicalmente diferenciadas devido à oposição dos princípios nelas

vigentes: a democracia basear-se-ia na idéia da necessária homogeneidade

do povo, enquanto o parlamentarismo de massas pressuporia a contradição

existente dos interesses particulares entre as camadas da sociedade

(FLICKINGER, 1992, p. 12).

Por isso, Carl Schmitt acreditou que em decorrência desta crise conceitual, um novo modelo

de Estado surgiria, o Estado Total. Estado esse em que a vontade soberana do povo seria

conduzida por um indivíduo que pudesse reunir em si a vontade da maioria, o chefe soberano

que daria, então, coesão à coletividade. A vontade do chefe seria então, por meio de uma

espécie de espelho invertido, a vontade do povo.

escolheria a liberdade ou a ditadura, responde da seguinte forma: “[...] si estuviera entre la libertad y la dictadura,

yo votaría por la libertad, como todos los que nos sentamos aquí. Pero la cuestión es ésta, y concluyo: se trata de

escoger entre la dictadura de la insurrección y la dictadura del Gobierno; puesto este caso, yo escojo la dictadura

del Gobierno, como menos pesada y menos afrentosa (CORTÉS, 1970, p. 322). Para o pensador, existiriam dois

tipos de ditadura, uma que vinha de baixo e outra de cima. Segundo ele, escolhia a que vinha de cima, por vir de

regiões mais serenas e limpas.

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Dentre os elementos da política, devemos ressaltar que os mitos políticos são parte da

estrutura que legitima uma dada organização política. A sua legitimidade não se baseia na

racionalidade, mesmo podendo haver sentidos racionais em sua concepção política, mas no

imaginário da sociedade que o adota. O mito político não está restrito às sociedades antigas ou

ditas primitivas, pois no século XX podemos observar que o sucesso do nazismo esteve ligado

à evocação dessa prática política. Entre os mitos políticos,

[...] o tema do Salvador, do chefe providencial, aparecerá sempre associado a

símbolos de purificação: o herói redentor é aquele que liberta, corta os

grilhões, aniquila os monstros, faz recuar as forças más (...) o tema da

conspiração maléfica sempre se encontrará colocado em referência a uma

certa simbólica da mácula: o homem do complô desabrocha na fetidez

obscura; confundido com os animais imundos, rasteja e se insinua; viscoso

ou tentacular, espalha o veneno e a infecção... (GIRARDET, 1987, p. 17).

A figura do salvador foi utilizada pelos nazistas na construção de um ethos político baseado

na personificação do líder, representado por Adolf Hitler. A criação de um imaginário sobre

os judeus, baseado na sua impureza e os caracterizando como ratos que propagam pestes e

pensamentos impuros fizeram parte da criação do mito político da raça pura, defendido pelo

NSDAP. A eleição dos judeus como inimigos internos possibilitou aos nazistas realizarem a

desconstrução da figura humana deles, tornando possível a desumanização do povo judeu e a

sua aniquilação física67

.

O Estado pensado por Carl Schmitt se apresenta de forma intervencionista,

expandindo seu domínio por todos os campos da sociedade civil. Acima de tudo, é um Estado

belicoso, pois

Ao Estado como unidade essencialmente política pertence o jus belli, isto é,

a possibilidade real [de], num dado caso, determinar, em virtude de sua

própria decisão, o inimigo, e combate-lo. Com que meios técnicos a luta será

travada, que organização das forças armadas existe, quais são as perspectivas

de vencer a guerra, é aqui indiferente, enquanto o povo unido politicamente

estiver pronto a lutar por sua existência e sua independência, sendo que ele

mesmo determina, em virtude de decisão própria, em que consiste sua

independência e sua liberdade [...] (SCHMITT, 1992,p. 71).

Refletindo sobre o cerceamento do poder do Estado, sobre a normatização do político como

analisou Max Weber – ou seja, a burocratização do Estado Moderno –, Schmitt entende que a

67

Para mais informações sobre os atos de extermínio em massa das minorias nos domínios do Terceiro Reich

consultar as obras referenciadas de Hannah Arendt, Norbert Elias e Francisco C. Teixeira da silva.

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decisão perdeu sua preponderância política, sendo condicionada à negociação, “[...] o político

desaparece no econômico ou no técnico-organizacional e, por outro lado, se desfaz no eterno

discurso das generalidades histórico-filosóficas e culturais, que com caracterizações estéticas

degustam uma época clássica, romântica ou barroca [...]” (SCHMITT, 1996b, p. 130). Pelo

seu arquétipo político entre 1919 a 1933, constatamos que o discurso antiliberal e autoritário

schmittiano sobre o modelo liberal-burguês de governo, baseado na discussão, buscou

inspiração em alguns dos intelectuais católicos da contrarrevolução68

. Segundo ele,

[...] Os filósofos de Estado católicos de Maistre, Bonald, Donoso Cortés,

chamados na Alemanha de românticos por terem sido conservadores ou

reacionários e terem idealizado as condições medievais, consideravam o

eterno discurso muito mais como um produto tragicômico da fantasia. O que

a sua filosofia de Estado contra-revolucionária mais destaca é a consciência

de que a época exigia uma decisão; com uma energia levada ao extremo

entre as duas revoluções de 1789 a 1848, o conceito de decisão passou a

ocupar o centro de seus pensamentos. Em todos os lugares em que a filosofia

católica do século XIX se expressou, numa atualidade espiritual, de alguma

forma ela expressou o pensamento da imposição de uma alternativa, que não

admitia mais mediações [...] (SCHMITT, 1996b, p. 121).

Assim, como afirmam os autores Bernardo Ferreira (2004, p. 129-235) e Jean-François

Kervégan (2006, p. 3-23), o decisionismo político é o tema de maior relevância tratado nos

trabalhos de Carl Schmitt no período de 1919 a 1933, antes de seu engajamento no

movimento nazista. Ou seja, a sua matriz conceitual estaria vinculada ao pensamento dos

filósofos católicos sobre as questões de Estado do século XIX.

Possivelmente, os motivos dessa defesa de ações extremas tomadas pelo Estado para

manter a ordem estejam relacionados ao contexto histórico da Alemanha após o fim da

Primeira Guerra Mundial e a queda do Império Alemão. Uma Alemanha dominada pela

guerra civil, movimento operário, grupos armados de extrema direita, golpes de Estado e

fragmentação territorial decorrem após a derrota alemã de 1918 (ELIAS, 1997; LOUREIRO,

2005). Como superação inevitável do incoerente modo de governo parlamentar, surgiria então

68

O teórico político Roberto Bueno aponta que: “A antropologia de Donoso – e também a de De Maistre e de De

Bonald – estão comprometidas com a demarcação de fronteiras pessimistas. E essa alternativa é logo posta por

Schmitt como o antídoto teórico adequado para a opção antropológica rousseauniana [...]” (BUENO, 2012, p.

488). A pluralística visão democrática de Rousseau, anteriormente apresentada, é vista como perigosa por Carl

Schmitt, pois ele compartilha a visão de que os seres humanos são maus por natureza. Para garantir a

preservação do Estado frente às cobiças individuais, ele se filia principalmente a lógica do pensador espanhol do

século XIX que via na ditadura a saída menos maléfica frente o fim da era monárquica. Ou seja, ambos propõem

saídas radicais às tensões inerentes ao sistema parlamentar (em Donoso, a ditadura, e, em Schmitt, o Estado de

Exceção), onde o soberano manteria a ordem frente a um mal insuportável (BUENO, 2012, p. 489).

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um quarto tipo de Estado, segundo Carl Schmitt, o Estado Total, sendo compreendido da

seguinte forma:

[...] conceito polêmico contraposto a tais neutralizações e despolitizações

[por parte liberalismo parlamentar] de importantes domínios surge o Estado

total da identidade entre Estado e sociedade, o qual não se desinteressa por

qualquer âmbito e, potencialmente, abrange qualquer área. Nele, por

conseguinte, tudo é, pelo menos potencialmente, político, e a referência ao

Estado não mais consegue fundamentar um marco distintivo específico do

político (SCHMITT, 1992, p. 47).

Ao pensar seu tempo – o contexto político conturbado da República de Weimar, com

tentativas de golpe de Estado por parte de extrema direita e extrema esquerda –, Carl Schmitt

busca nas ideias políticas respostas para os problemas que julga corromperem o sistema

liberal burguês de governo.

Tratando especificamente da Alemanha antes da tomada do poder pelos nazistas, ele

nos diz que:

[...] O que mais dificulta o reconhecimento de nossa situação constitucional

concreta é a concomitante ligação e interseção de organização federalista

com outros princípios de volição estatal. Tentei caracterizá-la como “Estado

partidário pluralista” e “policracia” e também tratar o problema, dai

resultante, da “neutralidade da política interna do Estado”, de modo algum

por prazer com uma tese “brilhante” ou “estimulante”, e, sim, sob a força

coercitiva de uma necessidade criada com o próprio tema (SCHMITT, 2007,

p. XVIII).

Observam-se as temáticas que Carl Schmitt buscou desenvolver em seus livros de 1919 a

1933, e a sua inspiração – os acontecimentos da Alemanha do Entreguerras. Quando da sua

filiação ao NSDAP, as pessoas não tinham a consciência que os nazistas colocariam em

prática os seus ideais até as últimas consequências.

Com razão, existem diferenças entre o Estado Total pensado por Carl Schmitt e o

Estado totalitário posto em prática durante o Terceiro Reich. Contudo, não observar que as

aproximações são maiores que os distanciamentos seria imprudência, ou adotar uma postura

incoerente com os fatos.

[...] O Estado total autêntico, isto é, o que se chama hoje de totalitarismo,

aparece, neste contexto, como o limite do processo pelo qual o político - ou a

“politicidade” da existência – coincide realmente consigo. Sem dúvida, não é

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preciso dizer a Schmitt que o totalitarismo, fascista ou nazista, é o final da

História, assim como ele não o faz [...] (KERVÉRGAN, 2006, p. 73).

A existência do Estado Total, politizado e decisionista pode ser observado no fascismo

histórico. A questão da soberania para Schmitt é o seu objetivo para a formação de um Estado

forte, capaz de neutralizar ou aniquilar os seus inimigos. Isso se insere tanto em seu caráter

externo, como interno. Quando o governo se vê ameaçado, para proteger a sua constituição

ele pode agir utilizando-se de instrumentos não constitucionais para retomar a ordem, pois

segundo Schmitt, é impossível que numa constituição possua os mecanismos necessários para

garantir a sua existência eterna. Como já discutimos, no âmbito teórico do direito, os escritos

schmittianos do período weimariano legitimam os atos nazistas, como decisão política – tanto

na tomada do poder, a decisão soberana, quanto nas atrocidades contra a humanidade, em sua

desconstrução dos direitos naturais dos seres humanos. Que contrapõem o ideal do Estado

Liberal, típico do pensamento lockeano.

O conceito de ditadura69

pode ser considerado um dos mais importantes de sua

racionalização conceitual, onde Carl Schmitt utilizou de um livro completo para demonstrar a

sua variação desde a antiguidade até o mundo contemporâneo. De forma geral, no mundo

contemporâneo, segundo ele

[...] puede llamarse dictadura a toda excepción de una situación considerada

como justa, por lo que esta palabra designa ya una excepción de la

democracia, ya una excepción de los derechos de libertad garantizados por la

Constitución de la separación de los poderes o bien (como en la filosofía de

la historia del siglo XIX) una excepción del desarrollo orgánico de las cosas.

Desde luego, el concepto permanece así siempre en una dependencia

funcional respecto de una Constitución existente o idealizada [...]

(SCHMITT, 1968, p. 194-195).

Como sabemos, a prática se distancia da teoria. A intenção não é fazer aqui um julgamento

sobre a culpabilidade de Carl Schmitt sobre os milhões de mortos relacionados à Ditadura

Nazista, mas demonstrar que a sua teoria política esteve presente na conceituação do mesmo.

69

Em sua obra A Ditadura, publicada em alemão no ano de 1921, Carl Schmitt apresenta uma discussão sobre o

termo, demonstrando seu sentido mutável. Haveria, segundo ele, duas formas de ditaduras: “[...] El dictador

comisarial es el comissário de acción incondicionado de um pouvoir constitué; la ditadura soberana es la

comisión de acción incondicionada de un pouvoir constituant” (SCHMITT, 1968, p. 193). A questão do poder

incondicionado da comissão de ação estaria submetida às duas formas de poder: o poder constituído, onde os

poderes de exceção são concedidos para a manutenção da ordem estabelecida; e o poder constituinte, onde os

poderes de exceção são concedidos para possibilitarem o processo de transição de uma ordem à outra – por

exemplo, a Ditadura Jacobina na França entre 1993 a 1994. Neste último caso, os poderes de exceção eram

atribuídos pela Assembleia Nacional Constituinte para o Comitê de Salvação Pública, tendo esse último como

principal membro Maximilien François Marie Isidore de Robespierre (1758-1794).

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E não só isso, que ele foi um intelectual engajado, produzindo textos que buscavam legitimar

o direito de existência do Terceiro Reich frente à extinção da República de Weimar. Pelo

menos após 1933. Enfim, sua crítica ao parlamentarismo se demonstrou factível – a destruição

deste com a subida dos nazistas ao poder, implantado um governo de partido único, pode ser

compreendida pela perda de representação do parlamento frente às massas, ou seja,

A repreensão do liberalismo na forma de democracia de massas, motivo

básico da crítica schmittiana ao parlamentarismo moderno (colocado, pela

primeira vez, no esboço A situação espiritual do parlamentarismo atual),

atou-se aos princípios roussaunianos de democracia direta, defendendo a tese

da incompatibilidade da democracia com o sistema de representação

parlamentar. O parlamentarismo, por sua vez, teria perdido seu fundamento e

sua credibilidade no momento em que a livre discussão pública entre os

cidadãos independentes arruinou-se pelo compromisso tático dos partidos

fazendo desaparecer, assim, o ser público no processo de decisão política,

dando lugar às negociações em comissões fechadas etc (FLICKINGER,

1992, p. 11-12).

A perda da publicidade nos atos políticos e a transformação do parlamento em uma espécie de

bolsa de valores fizeram, segundo Carl Schmitt, das questões políticas resoluções de gabinete

– sem a participação do povo, como no Antigo Regime. Nesse sentido, o seu principal alvo é

a República de Weimar e a corrupção nos órgãos públicos e dos agentes legislativos.

Desse modo, a deturpação da democracia por um viés autoritário é compreendida por

nós de forma irracional. Não há como existir um governo democrático sem a participação

efetiva do povo nas tomadas de decisões e na discussão pública livre pelo mesmo. Visto que,

até mesmo um monarca que governe com sabedoria e promova o bem-estar de seu povo sem

permitir que esse participe de forma consciente do processo não governa democraticamente –

o que é lógico – dada a natureza da monarquia. Da mesma forma, a ideia de que um

presidente representaria a vontade do povo por ser eleito pela maioria, expressa por Carl

Schmitt em o Guardião da Constituição, é uma fábula política. Seria minimizar a democracia

ao ato de votar, o que vimos não ser apenas isso. Uma corrupção do jogo democrático

semelhante ao tão questionado por Schmitt nos anos 1920 – o simples computo dos votos

individuais das democracias modernas que, também privados de espaços públicos de debate,

não constituem uma democracia participativa.

Norberto Bobbio, diferentemente, demonstra haver sim uma compatibilidade entre

democracia e liberalismo – renegada por Carl Schmitt. Onde:

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[...] Todas as democracia reais, não a ideal de Rousseau, nasceram limitadas,

no sentimento já esclarecido de que às decisões que cabem à maioria foram

subtraídas desde o início todas as matérias referentes aos direitos de

liberdade, chamadas precisamente de "invioláveis” (BOBBIO, 2013, p. 95).

Dessa forma, concebemos necessário o embate conceitual para a compreensão histórica. O

princípio schmittiano do poder presidencial neutro e superior é uma identificação deste com o

princípio do monarca soberano, contraditório ao princípio democrático da participação dos

cidadãos nas tomadas de decisão. Racionalmente, um povo não pode abrir mão desses

princípios e ainda estar num regime democrático.

Ao criticar a concepção de Heidegger, da qual “um Estado poderia ao mesmo tempo

depender inteiramente de seu dirigente” e persistir na fundação do povo, Emmanuel Faye

responde-nos:

[...] De um ponto de vista racional, o Estado não poderia ser ao mesmo

tempo ditadura e democracia. Mesmo no plebiscito, a democracia se abole

desde o instante em que ela leva ao poder um novo tirano. Todavia,

precisamente, o Estado nacional-socialista encarna essa contradição, de

modo que toda a ideia racional do Estado é destruída. Ou antes, o hitlerismo

pretende superar a oposição, mas de maneira oculta e irracional, afirmando a

unidade substancial entre o “ser” do dirigente e o “ser” de seu povo, que não

depende de qualquer deliberação e repousa sobre um pressuposto racial

(FAYE, 2015, p. 250-251).

A democracia e a autocracia não têm uma mesma natureza conceitual, pelo contrário, uma é a

total negação da outra. A pluralidade é a essência da democracia, a discussão pública que

resulte numa mediação entre as diferenças. A eliminação do outro, por ser inimigo público do

Estado não parece condizer com os parâmetros democráticos. Carl Schmitt como pensador do

Estado Total claramente forneceu as bases para a legitimação da Ditadura Nazista. Deste

modo, sob uma fachada científica, os escritos schmittianos weimarianos conduzem a uma

compreensão autoritária do político. Fundada numa alteridade irreconciliável entre os

agrupamentos políticos distintos – nos âmbitos interno e externo ao Estado. Distanciando-se

das iniciativas de criação de mecanismos internacionais para a resolução pacífica entre as

nações, das quais a Liga das Nações e a Organização das Nações Unidas são exemplos

históricos. Para além do engajamento ao Nacional-Socialismo, os escritos weimarianos

schmittianos se constituem como elementos perigosos ao pensamento democrático, humanista

e igualitário. Como documentos históricos, esses escritos dizem muito sobre o contexto do

surgimento do autoritarismo pós Primeira Guerra Mundial. Marcados pela recusa do diferente

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e da aversão ao estrangeiro. Acreditamos que povo não pode ser compreendido de forma

maniqueísta, como objeto legitimação para governos autoritários e de extermínios em massa,

como se depreende dos escritos de Carl Schmitt aqui analisados.

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Conclusão

Esta dissertação de mestrado apresentada é resultado de um percurso de formação

acadêmica conjunta entre mim e o orientador. Contou com o apoio de diversos companheiros

de ofício, das instituições de fomento a iniciação científica e da bolsa de mestrado. Após

quatro anos de estudo sobre os escritos schmittianos e a primeira metade do século XX, temos

a sensatez de afirmar que muito desconhecemos desse período histórico. Mas a coragem de

garantir havermos realizado uma discussão historiografia bastante concisa frente às

possibilidades encontradas. Não buscamos inventar nada novo, muito menos dizer nada que

as fontes não nos habilitassem. Estudar a ascensão do nazismo nos requereu um

comprometimento moral e científico para com a teoria da história e a teoria política,

endossadas pela necessidade de erudição que o nosso sujeito histórico nos condicionou a

adquirir. Sendo este um trabalho de história contemporânea sobre os conceitos políticos

definidos por Carl Schmitt, entre 1919 a 1933, tivemos inúmeras vezes de nos aventurarmos

em outras temporalidades históricas. Exigência requerida pelas fontes documentais em

questão.

Como mencionamos no início deste trabalho, a História política passou por descréditos

no século XX, frente às formas de construção históricas mais voltadas a aspectos culturais e

da sociedade de massas. Compreendemos que as novas metodologias possibilitaram uma

expansão do campo histórico, impulsionadas pela televisão, o cinema e os aparelhos digitais.

Mas, a política ainda se constitui como um campo importante das relações humanas. Ela é um

elemento que transpassa consciente ou inconscientemente as nossas vidas, seja em Estados

mínimos como os neoliberais ou Estados totalitários, a exemplo da Alemanha do Terceiro

Reich e a União Soviética do período Estalinista. A política não é o vilão da história, ela é

apenas um instrumento de organização das relações sociais dos seres humanos em sociedades,

constituídos em Estado ou não. Como instrumento, ela está submetida à subjetividade humana

que a controla e a condiciona a determinados propósitos. Como uma caneta que pode escrever

várias histórias, a política é um atributo humano que pode produzir rumos históricos

diferentes e antagônicos. Nesse sentido, parece-nos habitar aí a principal utilidade desta

dissertação. Pois ela nos possibilitou compreender o mundo conceitual político de forma mais

abrangente, em especial os debates sobre a política democrática. A cidadania é formada por

meio das dimensões em que os cidadãos podem se utilizar de seus atributos políticos (direitos

e deveres), em benefício próprio e para a promoção do bem comum. Nos Estados

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democráticos, observamos como é nociva a apropriação do governo por grupos (oligarquias)

que os controla a partir do poder financeiro, da tradição, militar de forma autocrática. Ou por

oradores populistas que lideram massas a ações irracionais e messiânicas, criando uma

religião política. Nesse sentido, corremos o risco de depararmos com movimentos intolerantes

e fascistizados, que ao invés da discussão democrática, se apropriam do governo por meio de

turbas incontroláveis e truculentas. A democracia é o governo do povo, não da maioria

numérica em si. Mas do acordo do respeito às vontades plurais. Quando no século XIX, se

alinhou com o Estado de Direito, fez surgir uma série de reivindicações sociais por parte dos

elementos mais baixos das sociedades democratizadas que os grupos superiores não estavam

dispostos a satisfazer.

Consideramos que a discussão dos conceitos e as suas caracterizações segundo o

tempo e o espaço ao qual eles foram gestados são de extrema importância para o

desenvolvimento do conhecimento histórico, das ciências e das religiões. Assim, como

defende Pierre Rosanvallon, como apresentamos no primeiro capítulo, traçamos como meta

deste trabalho articular conceitos de diferentes matrizes ideológicas, por meio das suas

historicizações. Nesse capítulo, discutimos como o fascismo foi um movimento

multifacetado, apresentando características singulares em cada país em que foi implantado.

Esses fascismos mesclaram aspectos racionais por meio de fundamentações irracionalistas. E

como se apresentou por meio dos escritos de Emilio Gentile, foram movimentos modernos,

que se utilizaram dos inventos da modernidade (rádio, cinema, televisão, etc.), para

construírem um sistema ideológico de massas. Ainda, por meio de uma militarização da

sociedade, intentaram construir um tipo de “Novo Homem”. Por meio dessas interpretações

sobre o fascismo histórico, inserimos os escritos schmittianos em sintonia a esse movimento,

demonstrando que Carl Schmitt acreditava que esse fascismo era um novo tipo de Estado,

com uma Constituição econômica, e não mais política, como as constituições liberais do

século XIX. Observou-se que nosso sujeito histórico compreendia o fascismo como uma

transformação histórica irreversível, pois ele compreendia as necessidades concretas na sua

realidade histórica. Por meio da trajetória intelectual de Carl Schmitt, ao menos aquela que

compreende o período histórico aqui delimitado, entendemos que ele estava mais inserido

num contexto ligado aos intelectuais e políticos conservadores da Alemanha de Weimar. E

que ocorre um deslocamento para o movimento nazista no início dos anos de 1930, momento

em que seus escritos demonstram um engajamento ao movimento nazista, defendendo a

autoridade inquestionável do Füher e o antissemitismo exacerbado. Vemos um oportunismo

nessa postura intelectual, onde o mesmo passa a conquistar cargos e promoções em sua

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carreira profissional, como apresentado no Capítulo III. Oportunismo que não exclui uma real

crença no nazismo por Carl Schmitt, apenas torna seu engajamento mais dinâmico.

No Capítulo II desenvolvemos uma revisão historiográfica sobre a Era Moderna e os

inícios da Idade Contemporânea, precisamente por serem os períodos históricos mais citados

nos escritos schmittianos. Necessitamos realizar isso para criar uma lógica argumentativa que

apresentasse conceitos como guerra civil, poder soberano, liberalismo, Estado liberal, amigo-

inimigo, contrarrevolucionário, Estado democrático e parlamentarismo. Demonstrando como

ocorreu a gestação dos mesmos e as decorrentes transformações de sentido e de suas

utilizações práticas no jogo político dos séculos XIX e XX. Nesse movimento, inscrevemos as

considerações de Carl Schmitt sobre cada um dos conceitos, contrastando com outros autores

clássicos, tais como: Thomas Hobbes, John Locke, Montesquieu, Jean-Jacques Rousseau e

Norberto Bobbio. Além disso, nesse capítulo sistematizamos algumas observações

historiográficas e teóricas sobre as causas e os efeitos da crise do sistema parlamentar,

apontado por Schmitt em seus escritos, da República de Weimar. Nesse contexto, foi

importante destacar as persistências do Antigo Regime, apresentadas por Arno J. Mayer e

Norbert Elias, na sociedade e no Estado alemão do início do século XX.

Após esses movimentos realizados na dissertação, fizemos uma pequena revisão

desses temas no Capítulo III, dialogando com a historiografia e a metodologia por nós

utilizada. Nesse capítulo, demonstramos como Carl Schmitt se integrou ao movimento

Nacional-Socialista em 1933 e como se procedeu a sua desfiliação em 1936. Realizamos a

apresentação da sua teoria decisionista sobre o político, teoria esta que submete todo o direito

ao político. Pois, segundo ele, não existe direito sem uma definição política. Argumento esse

que se posiciona de forma antagônica aos postulados liberais e jusnaturalistas dos séculos

XVIII e XIX. Para o autor, a sociedade de massas do século XX não mais se organiza sob os

postulados da mediação e da discussão parlamentar. A corrupção gerada pelas facções

políticas do sistema parlamentar não mais permite que ocorra a representação popular unitária

e homogênea. Para reparar esse problema, ele buscou na Constituição de Weimar de 1919,

mais precisamente no artigo 48, uma saída do Estado pluripartidário weimariano, inspirando-

se nas constituições da Itália fascista e da União Soviética. Para Schmitt, como apresentamos

no capítulo III, o Presidente do Reich deveria ser o guardião da constituição, pois, ele

representaria a vontade unitária e homogenia da nação alemã. Salientamos que essa

compreensão é articulada pela visão democratizada do executivo no sistema parlamentar que,

para Carl Schmitt, se diferiria do monarca constitucional. Pois aquele também se constituía

num representante popular ao lado do parlamento, ao contrário deste, que tinha a sua

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autoridade legitimada pelo critério hereditário. Por fim, questionamos essa construção teórica

schmittiana por meio da explanação das características de um governo democrático

apresentados por Jean-Jacques Rousseau. Ressaltamos que a democracia somente pode existir

quando o povo possui o direito da discussão, argumentação, participação política igualitária e

o direito de representar e ser representado. Por tudo isso, consideramos que os escritos

schmittianos contém um discurso antiliberal e antidemocrático. Não compreendemos que a

sua formulação aos problemas da questionável fraqueza da República de Weimar pudesse

conduzir a um Estado Total, ou Totalitário, aos moldes da Itália fascista e da Alemanha do

Terceiro Reich. Observamos que muito dos seus apontamentos foram realmente

concretizados, como a questão da propaganda sendo utilizada para uma política de massas,

sem o compromisso com o poder democrático da livre escolha. Mas, a sua ideia de

transformar o presidente em um ser acima dos problemas sociais concretos, das divisões

partidárias e dos jogos políticos da política externa (como um terceiro neutro) não possibilitou

o fim das divergências internas nos Estados totalitários.

Desta forma, os escritos de Carl Schmitt apresentam uma discussão atual sobre

elementos dos Estados modernos e a participação das massas no cenário político. Como

pontuamos anteriormente, o autor desenvolveu respostas com vieses autoritários para as

problemáticas surgidas em seu contexto histórico. Respostas extremas devido ao que

acreditamos resultar da sua visão pessimista da essência antropológica dos seres humanos,

inspirada nos resultados das guerras religiosas do início da Idade Moderna, tendo no poder

Absoluto do rei uma resposta pacificadora. O pensador Giorgio Agamben demonstra em seu

livro, Estado de Exceção, que esta postura autoritária e contrária aos ideais de liberdade e

igualdade de direitos não é uma questão superada no mundo contemporâneo. Pelo contrário,

segundo ele, as ideais de Schmitt ganharam relevância após o atentado de 11 de setembro de

2001, no Estado Unidos. O “país da liberdade” passou a controlar e a cercear os direitos

estabelecidos pela Constituição Americana, base da identidade daquela nação para consigo

mesma e para o mundo. Em âmbito global, Agamben apresenta como por quase todo século

XX, os governos cada vez mais fizeram uso do poder do executivo para tomar as decisões e

estabelecer leis que contrariam questões de participação cidadã e debate legislativo. Por isso,

cabe aos cidadãos refletirem sobre os problemas que constituem a base da democracia liberal

e a participação efetiva do povo nas tomadas de decisão nos governos.

Nos últimos anos, o sistema representativo brasileiro também vem passando por

contestações populares de distintas vertentes ideológicas e de classes sociais diversas. A

representação político partidária tem sido questionada e o próprio judiciário passou a ter uma

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vanguarda que deveria ser constitucionalmente do poder legislativo. Frente à erosão da

representatividade política partidária, cada vez mais observamos o Superior Tribunal Federal

ser buscado por grupos políticos divergentes para solucionar as querelas políticas. O próprio

Carl Schmitt, como jurista e politólogo, foi temeroso na politização do poder judiciário

alemão do período weimariano.

O nosso sujeito histórico no decorrer do processo histórico adquiriu denominações

diversas, que o enquadram em determinados conceitos. Dentre eles: conservador, fascista,

nazista e antiliberal. Pela natureza de nossa análise, dado o contexto histórico e os escritos por

nós analisados, preferimos utilizar o conceito antiliberal de forma mais ampla. Pois nesse

contexto, esse conceito melhor definiria as ideias de Carl Schmitt. Isso em momento algum

foi feito para retirar o peso de conceitos como intelectual fascista e nazista. Segundo as nossas

conclusões, nos anos 1920 o pensamento schmittiano estava mais alinhado com uma postura

conservadora e fascista. Já nos anos 1930, o seu engajamento ao nazismo é incontestável,

sendo ele um intelectual engajado como o governo Nacional-Socialista, dando-o legitimidade

por meio de seu capital simbólico, de natureza universitária e jurídica. Além de combater o

“espírito judeu”, estrangeiro e inimigo público do povo alemão e da raça germânica.

Assim, buscamos demonstrar a pertinência do nosso trabalho no contexto

contemporâneo. Onde, a participação popular se defronta a questões econômicas, étnicas,

religiosas e de gênero. Além disso, devemos salientar que não comungamos das respostas

dadas por Carl Schmitt aos problemas de representação nas sociedades democráticas de

massas. Para nós, a democracia é um bem inegociável, e deve ser defendida de forma

racional, possibilitando o debate com formas antagônicas de compreensão da ação política.

Mas, como salienta Norberto Bobbio, em O Elogio da Serenidade, devemos ser serenos em

saber conciliar os diversos discursos. Essa serenidade não é passividade, mas atitude de

proteção do ideal democrático e da promoção da liberdade de expressão, da discussão e da

participação política, em moldes que possibilitem sempre a um maior grupo possível de

cidadãos expressarem sua pluralidade, um atributo inerentemente democrático.

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