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 47 Teoria e Pesquisa Artigo Crise sistêmica, desordem mundial, nanceirização e Estado: desaos e oportunidades para os países emergentes Systemic crisis, world disorder, nancialization and the role of the State: challenges and opportunities for emerging countries Marcos Costa Lima Professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco Coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas Regionais e do Desenvolvime nto [email protected] Resumo: O trabalho está dividido em seis partes articuladas e, em nível mais geral, analisa o contexto macroeconômico e político mundial nos últimos trinta anos e aponta seus traços mais fortes. Na primeira parte, trabalha indicadores e as reflexões de Stiglitz e Krugman sobre o processo de ampliação da concentração de renda e riqueza no centro do sistema. Na segunda parte, introduz a discussão sobre o papel do Estado, apoian- do-se nas contribuições de Polanyi, Harvey e Bourdieu, sugerindo a necessidade de se pensar conjuntamente o econômico, o político e o território, que conformam uma totalidade. Na terceira parte, discute o lugar dos países emergentes nesta nova configuração do capital mundial. Na quarta parte, com base no último livro do economista Deepak Nayyar, passa-se em revista a situação mundial em dois períodos históricos – 1850-1950 e 1950-2010. Aponta-se a grande divergência, sobretudo em termos de renda per capita, que se inicia no século XIX em detrimento da periferia. Na quinta parte do texto, chega-se então ao contexto econômico global recente e suas repercussões negativas sobre a renda dos trabalhadores. Finalmente, apresenta-se o quadro de desafios e oportunidades para o Brasil, nisto que chamamos de crise do sistema mundial. Palavras-chave: crise sistêmica mundial; desigualdade; estado; países emergentes. Abstract: The work is divided into six parts articulat ed and, mo re broad ly, a nalyzes the m acroeconomic cont ext and political world in the past thirty years and points out its strongest traits. In the first par t, it discusses indicators and reflections of Stiglitz and Krugman on the process of expanding the concentration of income and wealth at the center of the system. In its second part introduces the discussion about the role of the state, relying on contributions of Polanyi, Harvey and Bourdieu, suggesting the need to think together the economic, the political and the territory, which conform a whole. In part three, discusses the place of emerging countries http://dx.doi.org/10.4322/tp.2014.004

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    Teoria e Pesquisa

    Artigo

    Crise sistmica, desordem mundial, financeirizao e Estado:

    desafios e oportunidades para os pases emergentes

    Systemic crisis, world disorder, financialization and the role of the State:

    challenges and opportunities for emerging countries

    Marcos Costa Lima

    Professor do Departamento de Cincia Poltica da Universidade Federal de Pernambuco

    Coordenador do Ncleo de Estudos e Pesquisas Regionais e do Desenvolvimento

    [email protected]

    Resumo: O trabalho est dividido em seis partes articuladas e, em nvel mais geral, analisa o contexto macroeconmico e poltico mundial nos ltimos trinta anos e aponta seus traos mais fortes. Na primeira parte, trabalha indicadores e as reflexes de Stiglitz e Krugman sobre o processo de ampliao da concentrao de renda e riqueza no centro do sistema. Na segunda parte, introduz a discusso sobre o papel do Estado, apoian-do-se nas contribuies de Polanyi, Harvey e Bourdieu, sugerindo a necessidade de se pensar conjuntamente o econmico, o poltico e o territrio, que conformam uma totalidade. Na terceira parte, discute o lugar dos pases emergentes nesta nova configurao do capital mundial. Na quarta parte, com base no ltimo livro do economista Deepak Nayyar, passa-se em revista a situao mundial em dois perodos histricos 1850-1950 e 1950-2010. Aponta-se a grande divergncia, sobretudo em termos de renda per capita, que se inicia no sculo XIX em detrimento da periferia. Na quinta parte do texto, chega-se ento ao contexto econmico global recente e suas repercusses negativas sobre a renda dos trabalhadores. Finalmente, apresenta-se o quadro de desafios e oportunidades para o Brasil, nisto que chamamos de crise do sistema mundial.

    Palavras-chave: crise sistmica mundial; desigualdade; estado; pases emergentes.

    Abstract: The work is divided into six parts articulated and, more broadly, analyzes the macroeconomic context and political world in the past thirty years and points out its strongest traits. In the first part, it discusses indicators and reflections of Stiglitz and Krugman on the process of expanding the concentration of income and wealth at the center of the system. In its second part introduces the discussion about the role of the state, relying on contributions of Polanyi, Harvey and Bourdieu, suggesting the need to think together the economic, the political and the territory, which conform a whole. In part three, discusses the place of emerging countries

    http://dx.doi.org/10.4322/tp.2014.004

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    in this new configuration of global capital. In the fourth part, based on the last book of economist Deepak Nay-yar, passes in review the world situation in two historical periods - 1850-1950 and 1950-2010, pointing to a great divergence especially in terms of per capita income that begins in the nineteenth century at the expense of the periphery. In the fifth part, then it comes to the recent global economic context and its negative impact on the income of workers. Finally, the paper presents the framework of challenges and opportunities for Brazil, in the heart of the world crisis system.

    Keywords: global systemic crisis; inequality; state; emerging countries.

    1 Estrutura e contexto

    O contexto macroeconmico mundial, nos ltimos trinta anos, foi marcado por

    dez traos distintivos: i) Taxas muito baixas de crescimento do PIB, inclusive no Japo,

    que tradicionalmente serviu como locomotiva para o restante da economia mundial;

    ii) uma taxa de crescimento muito forte dos indicadores relativos ao valor nominal1 dos

    ativos financeiros; iii) a limitao e reduo das polticas de bem-estar social, associada

    perda de regulao pela maioria dos estados nacionais; iv) altos ndices de desem-

    prego estrutural nos pases da OCDE, associados a formas de emprego temporrias e

    com baixo nvel de remunerao, provocando um aumento da pobreza nesses pases;

    v) ampliao das desigualdades entre pases ricos e pobres2; vi) uma conjuntura mun-

    dial instvel, entrecortada por sobressaltos monetrios e financeiros, com alto nvel de

    contgio internacional (Mxico, 1994; Malsia,1997; e a sequncia que vai da Rssia

    Argentina em 2001 e posteriormente a sub-prime em 2008); vii) uma deflao aberta

    e crescente entre os pases industrializados, principalmente entre os pases produtores

    de bens primrios; e, finalmente, viii) a marginalizao de regies inteiras do globo com

    relao ao sistema de comrcio internacional; ix) o surgimento da China como um pos-

    svel novo centro sistmico; x) o crescimento econmico mundial sendo puxado pelos

    pases emergentes, mas j em esgotamento.

    David A. Stockman3, que foi diretor do Office of Management and Budget de Ronald

    Reagan, afirmou no New York Times, em maro de 2013, que ao longo dos ltimos treze

    1 Nominal porque sobre elas incide um componente fictcio, mais ou menos importante, segundo a natureza dos ativos.

    2 PNUD (1999): Em 1820, a renda per capita dos pases mais ricos era 3 vezes maior do que os mais pobres. Em 1870 era 7 vezes maior; em 1913 era 11 vezes maior e em 1960, 30 vezes maior. Em 1997, um quinto da populao mundial que vivia nos pases mais ricos era 74 vezes mais rica que um quinto da populao nos pases mais pobres.

    3 Stockman, David A. (2013), The Great Deformation. The Corruption of Capitalism in America. New York: Public Affairs Book.

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    anos o mercado de aes caiu duas vezes, provocando graves recesses. As famlias

    americanas perderam um trilho de dlares na crise dot.com, em 2000, e mais de sete

    trilhes de dlares durante a crise subprime de 2007. Nesse perodo, o nmero de aux-

    lios-refeio e os benefcios por invalidez mais que dobraram, alcanando 59 milhes

    de pessoas, ou um em cada cinco americanos. Estes nmeros assustadores crescem

    em relevncia quando sabemos que a dvida pblica dos EUA alcanou 56 trilhes de

    dlares no incio deste ano4.

    No tempo em que Alan Greenspan esteve frente do Federal Reserve agosto de

    1987 a janeiro de 2006 se deu o maior equity boom do pas, com o mercado de aes

    crescendo cinco vezes entre a crise de 1987 e aquela da dot.com em 2000.

    A farra rentista terminou com a bancarrota do grupo Lehman Brothers, em setem-

    bro de 2008. Stockman nos diz que

    Washington, com a arma de Wall Street virada para sua cabea, foi ao socorro dos protagonistas desta baguna financeira, imprimindo dinheiro para o resgate de grandes empresas em pnico, o que segundo ele, consistiu no singular e mais vergo-nhoso captulo da histria financeira americana.5

    O fantstico crescimento da construo civil e dos investimentos em infraestrutura

    ao longo dos ltimos 15 anos na China vem arrefecendo. O Brasil, a Rssia, a ndia, a

    Turquia e a frica do Sul, bem como todas as outras naes de renda mdia em cresci-

    mento, no podem compensar a queda da demanda.

    Paul Krugman6, em seu livro publicado no Brasil em 2010, apontava que no hou-

    vera um grande aumento da desigualdade nos Estados Unidos at a dcada de 1980.

    Para o economista, a reviravolta se deu a partir da, quando os vencedores foram uma

    pequena elite de 1% no topo da distribuio de renda.

    O Secretrio do Trabalho no perodo Bill Clinton, Robert Reich7, escreveu sobre as

    dimenses histricas da ampliao das desigualdades nos EUA:

    4 A questo da sade nos EUA um aspecto relevante da crise que vive o pas. So 50 milhes de pessoas que hoje no dispem de seguro sade, ou seja, 1 em cada 6 pessoas. Cf. Louis Gill (2012), Aprs cinq ans de crise. Carr Rouge, n. 47, t, p. 46.

    5 STOCKMAN, David A. State-Wrecked: the corruption of capitalism in America. The New York Times, 30/3/2013, pp. 15-16 e 59.

    6 KRUGMAN, Paul (2010). A conscincia de um liberal. Rio de Janeiro: Record.7 REICH, Robert (2010). The Root of Economic Fragility and Politcall Anger, Huffington Post, 13 July 2010.

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    Em 1928 o 1% mais rico entre os americanos detinha 23,9% do total da renda

    nacional. Aps este perodo, esse valor declinou substantivamente. As reformas do

    New Deal, seguidas pela Segunda Guerra Mundial, o GI Bill and the Great Society8 ex-

    pandiram o crculo de prosperidade. Por volta do final de 1970 o 1% mais rico recebia

    no mais que 8 a 9% do total anual dos rendimentos nacionais. Depois disso, a desi-

    gualdade comeou a retomar e a renda reconcentrou no topo. Em 2007 o 1% mais

    rico retomaram a posio de 1928, com 23,5% do total.

    Joseph Stiglitz9, em seu ltimo livro sobre o crescimento da desigualdade de ren-

    da e da riqueza nos Estados Unidos nos ltimos trinta anos, ainda mais incisivo do

    que Krugman. Diz Stiglitz logo no prefcio, e em tom quase bombstico, que existem

    momentos na Histria quando as pessoas em todo o mundo parecem levantar-se para

    dizer que algo est errado. Seus dados so contundentes sobre os efeitos de polticas

    econmicas que geraram desigualdade de renda e riqueza nos Estados Unidos aps os

    anos 1980, quando 1% das maiores rendas entre os americanos recebia apenas 12% da

    renda nacional. Em 2007, a mdia dos rendimentos, retirados os impostos, do 1% mais

    ricos era de USD 1.3 milho, enquanto os rendimentos dos 20% na base da pirmide

    s representava USD 17.800. Ou seja, o 1% mais ricos ganhavam em uma semana 40%

    a mais do que 1/5 mais pobre durante todo o ano. Ainda nesse mesmo ano, a fatia de

    0,1% dos domiclios mais ricos do pas tinha uma renda 220 vezes maior do que a mdia

    dos 90% na base.

    Quando olhamos para a Europa a situao ainda mais dramtica. Segundo o

    Fundo Monetrio Internacional, 61 pases voltaram ao nvel do Produto Interno Bruto

    de 2007, entre os quais 22 dos 27 pases da Unio Europeia, e 6 dos 7 pases do G7,

    exceo da Alemanha. Em 10 dos 25 pases da OCDE, os salrios reais (corrigidos pela

    alta dos preos) de 2010 eram inferiores aos nveis de 2007. Havia desemprego de 24,3%

    na Espanha e de 21,7% na Grcia, em abril de 2012, sendo de 51,5% para os menores

    de 25 anos de idade. A Alemanha conseguiu se distinguir dos demais pases europeus

    graas a polticas de desregulamentao do mercado de trabalho e da proliferao do

    8 O Servicemens Readjustment Act, de 1944, conhecido por GI Bill foi uma lei que beneficiou os soldados vindos da guerra com uma srie de vantagens, como hipotecas favorveis, emprstimos a baixos juros para o incio de negcios, bolsas para educao vocacional, curso secundrio e faculdade e compensao por desemprego. As medidas chegaram a beneficiar um total de 6.6 milhes de pessoas.

    9 SITGLITZ, Joseph E. (2012). The Price of Inequality. How todays divided society endangers our future. New York: W. W. Norton & Company. p. IX, 2-3.

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    trabalho flexvel e precrio, que deram lugar aos baixos salrios. Nesse pas, o emprego

    em tempo integral caiu de 29,3 para 23,9 milhes entre 1991 e 2001, enquanto crescia o

    nmero de empregos em tempo parcial, que aumentou de 5,7 para 12,5 milhes10.

    Conforme Dani Rodrik11, mesmo na Europa, onde as instituies regionais so re-

    lativamente fortes, o interesse nacional e os polticos nacionais, em grande medida na

    pessoa da chanceler alem, Angela Merkel, tm dominado a definio de polticas. Se-

    gundo ele, se a chanceler Merkel tivesse se mostrado menos apaixonada pela austeri-

    dade com relao aos pases endividados da Europa e se tivesse conseguido convencer

    os seus eleitores da necessidade de uma abordagem diferente, a crise da zona do euro

    teria tido contornos bastante diferentes.

    Para Franois Chesnais12, a situao de conjunto da economia mundial marcada

    pela incapacidade do capital (os governos, os bancos centrais, o Fundo Monetrio

    Internacional e os centros privados de centralizao e de poder do capital tomado cole-

    tivamente) de encontrar, ao menos por agora, os meios de criar uma dinmica diferente.

    A crise da zona do Euro e seus impactos sobre um sistema financeiro opaco e vulnervel

    so uma das expresses. Esta incapacidade no , para o economista francs, sinnimo

    de passividade poltica. Ela significa simplesmente que a burguesia est se movendo,

    cada vez mais, pela vontade nica de preservar a dominao de classe em toda sua nu-

    dez. Portanto, esse projeto tem implicaes polticas ainda mais graves para os trabalha-

    dores, pois ele acompanhado pelo endurecimento do carter pr-cclico das polticas

    de austeridade e privatizao, e contribui para a ocorrncia de uma nova recesso, que

    est em marcha.

    Todo o impacto desta crise refletiu diferentemente em regies perifricas e, em es-

    pecial, em algumas economias emergentes, em particular na China, ndia e Brasil. Neste

    trabalho daremos nfase ao comportamento brasileiro no sentido de enfrentar a crise

    mundial e com relao aos tpicos a saber: formas atuais de manifestao da crise no

    Brasil; polticas pblicas para um desenvolvimento sustentvel; sustentabilidade urbana

    e rural; e a crise energtica e ambiental. Em todos estes pontos, h evidncias de um

    enfrentamento inadequado por parte do atual governo brasileiro, sobretudo no que

    10 GILL, Louis (2012). Aprs cinq ans de crise. Un tat des lieux sommaire. In: Carr Rouge, n. 47-t.11 RODRIK, Dani (2012). O renascer do Estado-nao, publicado em Project Syndicate, 13/3/2012. 12 CHESNAIS, Franois (2011). Aux racines de la crise conomique mondiale. Carr Rouge, n. 46, dcembre, pp.

    7-17.

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    concerne ao aumento da dvida pblica; o atrelamento das exportaes brasileiras s

    commodities agrcolas e minerais, com efeitos graves sobre a baixa empregabilidade no

    setor de agrobusiness, mas tambm com relao ao meio ambiente. O importante fen-

    meno da reprimarizao; o caos urbano, que provocou mobilizaes intensas ao lon-

    go de 2013; e a questo energtica, um dos fatores de importao de capital e de venda

    de ativos ao capital internacional. Finalmente, como estratgia geral, o foco intenso do

    governo numa viso intitulada de neodesenvolvimentista, tem levantado srias dvidas

    sobre a deteriorao ambiental. Os aspectos mais positivos esto por conta da conso-

    lidao do processo democrtico e de polticas sociais de distribuio, com respostas

    positivas na educao, na sade e no consumo alimentar das camadas populares, mas

    que no so suficientes para estruturar um padro de desenvolvimento alternativo para

    o pas e tem provocado o desgaste dos processos de representao de poltica formais.

    2 O Estado

    Em sua obra prima sobre o capitalismo a partir da Revoluo Industrial e seus des-

    dobramentos no sculo XIX, Karl Polanyi13 afirma que esse momento de ruptura que

    surge a partir da Inglaterra provocou uma desarticulao social de imensas propores;

    segundo ele, o problema da pobreza era apenas o aspecto econmico desse aconte-

    cimento. Polanyi alertava para o perigo de se deixar a economia de mercado desen-

    volver-se segundo suas prprias leis, o que para ele acarretaria grandes e permanentes

    males. O historiador de origem hngara nascido em Viena pe em relevo o momento

    crucial na histria da civilizao, quando o homem e a natureza so transformados em

    mercadoria. Se este processo se organizar atravs de um mecanismo autorregulador

    de permuta e troca, ento o homem e a natureza tm que ingressar na sua rbita, tm

    que se sujeitar oferta e procura, isto , eles passam a ser manuseados como merca-

    dorias, como bens produzidos para a venda14.

    Ele desenvolve seu argumento evidenciando qual o papel do Estado na estrutura-

    o do moinho satnico:

    13 POLANYI, Karl (2000). A grande transformao. As origens da nossa poca. Rio de Janeiro: Contraponto, p. 157.14 Id. ibid., p. 162.

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    No havia nada natural em relao ao laissez-faire; os mercados livres jamais

    poderiam funcionar deixando apenas que as coisas seguissem o seu curso. Assim

    como as manufaturas de algodo a indstria mais importante do livre comrcio

    foram criadas com a ao de tarifas protetoras, de exportaes subvencionadas e de

    subsdios indiretos dos salrios, o prprio laissez-faire foi imposto pelo Estado15.

    David Harvey16 refora o entendimento de Polanyi. Para ele o Estado sempre jogou

    um papel central na acumulao primitiva, sempre utilizando seus poderes no apenas

    para forar a adoo de arranjos institucionais capitalistas, mas tambm para adquirir e

    privatizar ativos, como base original para a acumulao de capital. E por certo, quando

    se tratou de luta por hegemonia, colonialismo ou poltica imperial, ou ainda sobre as-

    pectos mais mundanos das relaes internacionais, o Estado tem sido e continua sendo

    um agente fundamental na dinmica do capitalismo global. Como gegrafo, e inspi-

    rado por Lefebvre, Harvey aprofunda as dimenses territoriais do Estado, mas abre o

    leque dos tipos de poder que afloram em suas especificidades regionais, subnacionais e

    at em grandes cidades, onde o poder poltico nos governos territoriais tem uma varie-

    dade de escalas geogrficas e constitui uma hierarquia ordenada, onde o processo de

    acumulao acaba por acontecer. Ou seja, existe uma produo capitalista do espao

    que gera desenvolvimentos desiguais. Vantagens locacionais que jogam um papel to

    importante ou mesmo que concorrem para as vantagens tecnolgicas. As vantagens

    competitivas tendem, dentro dessas estruturas espaciais, a impelir a busca por lugares

    onde os custos so mais baixos e os lucros, maiores.

    Da a necessidade de pensar conjuntamente o poltico, o econmico e o territorial

    (que engloba o ambiental) como partes articuladas. As categorias analticas da cincia

    poltica, como o Estado, nas suas funes de mltiplas determinaes, ou as relaes

    internacionais, entendidas enquanto relaes de rivalidade, conflito e cooperao entre

    Estados, marcadas entre outras questes, por profundas assimetrias na capacidade de

    certos Estados em influenciar a conduta interna de outros, notadamente no domnio-

    -chave das regras, das instituies e da poltica econmica, enfim aquelas, certamente,

    do movimento de valorizao do capital em suas diferentes formas.

    15 Id. ibid., p. 170.16 HARVEY, David (2005). The New Imperialism. Oxford University Press, pp. 91-93.

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    Pierre Bourdieu17 publicou em 1998 uma entrevista sob o sugestivo ttulo de A

    mo esquerda e a mo direita do Estado. O socilogo, em crtica velada metfora da

    mo invisvel, torna concreta a manipulao do Estado. Diz ele: O estado se retirou de

    um certo nmero de setores da vida social que eram sua incumbncia e pelos quais

    era responsvel. O autor se refere aos cortes de gasto para setores coletivos e sociais

    como escolas pblicas, hospitais e habitao, os servios pblicos em geral oferecidos

    maioria da populao, a comear pelo salrio dos funcionrios. Mas podemos alargar

    a questo, apontando o abandono das aposentadorias, quando o sistema de cotizao

    abandonado e d lugar aos Fundos de Penso, que jogam um papel decisivo na fi-

    nanceirizaao18. Bourdieu aponta um fator importante, que nunca demais enfatizar: o

    campo simblico. Diz ele:

    A televiso contribuiu, sem dvida, tanto quanto as propinas, para a degra-

    dao da virtude civil. Ela chamou e promoveu ao primeiro plano da cena poltica

    e intelectual indivduos vaidosos, preocupados em exibir-se e valorizar-se, em con-

    tradio total com o devotamento obscuro ao interesse coletivo que caracterizava o

    funcionrio ou militante (...). Em suma, a grande corrupo, cujo desvelamento provo-

    ca escndalo porque revela a defasagem entre as virtudes professadas e as prticas

    reais, apenas o limite de todas as pequenas fraquezas comuns, ostentao de luxo,

    aceitao aodada dos privilgios materiais ou simblicos19.

    Mas, para alm destas contribuies, Bourdieu nega um sofisma que foi ampla-

    mente veiculado pela mdia global, a saber, de que o Estado deveria ser mnimo, para

    no atrapalhar a exuberante dinmica do capital. Na verdade, o Estado nitidamente tem

    operado como facilitador e gerenciador do grande capital, tem usado sistematicamen-

    te a sua mo direita.

    H uma reflexo de Harvey20 que pode aqui ser til, quando o gegrafo afirma

    que as condies preferidas para a atividade capitalista aquela de um estado bur-

    gus no qual as instituies e as regras do contrato (inclusive aquelas do trabalho) so

    17 BOURDIEU, Pierre (1998). Contrafogos. Tticas para enfrentar a invaso neoliberal. Rio de Janeiro: Zahar Editora, pp. 9-19.

    18 SERFATI, Claude (2014). The New Configuration of The Capitalist Class. In: Socialist Register, p. 145: foi calculado que ao final de 2011, a gerncia dos fundos globais est a gerir $132 trilhes de ativos, dos quais $31.5 trilhes vinham dos Fundos de Penso, um volume no muito distante do total do volume total de dinheiro proveniente da riqueza privada (USD 42 trilhes).

    19 BOURDIEU, op. cit., p. 13.20 HARVEY, op. cit., p. 91.

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    Marcos Costa Lima

    legalmente garantidas, e onde enquadramentos de regulao so construdos para

    conter conflitos de classe e para arbitrar entre os reclamos de diferentes faces do ca-

    pital (comerciantes, financistas, industriais, setor agrrio). A assertiva de Harvey vlida

    em termos, pois nos ltimos trinta anos, digamos, o sistema capitalista cortou todas as

    suas amarras legais, que no mais das vezes funcionam apenas como uma armadilha. Se

    assim no fosse, como poderamos explicar a proliferao de parasos fiscais21 em todo

    o mundo, que so justamente os albergues do capital-dinheiro em busca de maior ren-

    tabilidade, ou ainda toda a alavancagem que foi permitida aos bancos, tornados con-

    glomerados financeiros, agncias financeiras e de securitizao, sem falar na maquia-

    gem que foi realizada nos centros sistmicos, para encobrir as dificuldades contbeis de

    grandes empresas transnacionais? No me refiro aqui chamada economia do crime,

    mas quela praticada pelos grandes agentes legais do capital.

    Franois Chesnais nos ajuda a resolver a questo, quando afirma que s entende-

    remos o funcionamento da economia mundial se nos confrontarmos com um conjunto

    de relaes que fazem um sistema, sendo que tanto a marginalizao quanto a exclu-

    so social so nada mais do que formas especficas da relao como um todo.22 Os sis-

    temas de relaes interestatais que do suporte mundializao do capital devem ser

    abordados como elementos de uma totalidade, das diferenciaes que se estabelecem

    no interior mesmo dessa unidade:

    A diferenciao e a hierarquizao da economia-mundo contempornea de

    dimenso planetria resultam tanto de operaes do capital concentrado quanto das

    relaes de dominao e de dependncia polticas entre estados, cujos papis no

    so de nenhum modo reduzidos, mesmo se os mecanismos desta dominao te-

    nham se modificado23.

    21 Claude Serfati (op. cit., p. 140) fala do extenso desenvolvimento de centros financeiros offshore, mais de oitenta em todo o mundo. Esses centros financeiros recebem fundos em moeda estrangeira de no residentes que ali so depositados para depois serem canalizados, atravs de intermedirios financeiros offshore, aos tomadores de emprstimo, tambm no residentes; permitem a fuga do controle e regulamentos dos Estados de origem do investidor (individual ou institucional); so parte de redes de operaes financeiras protegidas pelo anonimato; e tambm constituem parte de redes financeiras de lavagem de dinheiro.

    22 COSTA LIMA, Marcos (2014). A economia poltica de Franois Chesnais: cincia e luta. In: CASSIOLATO, Jos; MATOS; Marcelo; LASTRES, Helena (orgs.). Desenvolvimento e mundializao. O Brasil e o pensamento de Franois Chesnais. Rio de Janeiro: E-papers.

    23 Chesnais, Franois (1997), op. cit., p. 64.

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    Esse regime de acumulao mundializado, com predomnio do financeiro, resulta

    tanto da poltica quanto da economia. E o neoliberalismo que quer fazer crer, propaga

    e difunde a ideia segundo a qual o Estado exterior ao mercado. Diz ele que o triunfo

    do mercado no teria sido possvel sem as interferncias polticas que provm dos mais

    poderosos Estados capitalistas, como os do G7. Foi atravs de uma articulao estreita

    entre a poltica e a economia que as condies para a emergncia dos mecanismos

    e das configuraes dominantes desse regime foram criadas24. Essa ofensiva poltica,

    como conhecemos, surgiu ao final dos anos 1970, na Inglaterra, e no incio dos 1980,

    com Reagan nos EUA.

    A figura do Estado, como foi antevista por James OConnor25, passa a sofrer um

    forte ataque miditico, sempre no sentido de proclamar a sua inoperncia, a sua fal-

    ta de agilidade e a atitude imprevidente de fazer gastos alm de suas possibilidades.

    Estabelecia-se assim o mantra propagado por toda grande imprensa e propulsado

    pelas escolas de administrao e economia dos Estados Unidos, na defesa arraigada do

    mercado.

    Em resumo, essa ofensiva consistiu precipuamente em quebrar o conjunto das

    instituies e das relaes sociais que constrangiam o capital. Essas instituies e suas

    relaes tinham capacidade para frear a liberdade de ao do capital, asseguravam aos

    assalariados os elementos de defesa contra seus empregadores, garantiam o pleno em-

    prego no perodo chamado keynesiano e uma proteo social para a maior parte da

    populao, ao menos no centro do sistema.

    Esse conjunto de fatores, que estabelecem o sistema, no capaz de reduzir ou

    diluir o papel dos Estados nacionais, nem tampouco das relaes de dominao e de

    dependncia poltica que se estabelecem. Muito pelo contrrio, acentuam a hierarqui-

    zao entre pases, ao mesmo tempo em que redesenham uma nova configurao. No

    centro e tendo lugar central, os Estados Unidos da Amrica e os pases da Trade ou a

    eles associados mesmo que de forma subordinada so os que participam dos cir-

    cuitos de valorizao do capital por um lado. Por outro, os pases que sofrem a domina-

    o do grande capital-dinheiro, das inovaes tecnolgicas e das patentes associadas,

    cujos governos ou sucumbem ao cnone dos estados hegemnicos, ou devem sofrer

    24 Id. ibid., p. 65.25 OCONNOR, James (1976). The fiscal Crises of the State. New York: St Martins Press.

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    Marcos Costa Lima

    ameaas pela rebeldia. Todo esse processo, que se acentua a partir dos anos 1980, re-

    pousa sobre as transformaes da relao salarial, no forte agravamento da taxa de

    explorao (nveis salariais, durao dos contratos, flexibilizao do emprego e das con-

    dies de trabalho nas empresas), que so as caractersticas fortes da globalizao do

    trabalho e do Consenso de Washington.

    3 Os pases emergentes

    Repercusses em escala planetria vm afetando com maior ou menor intensi-

    dade todas as regies e sociedades mundiais e ainda cedo para indicar com certeza

    quando ser superada. Os problemas tm se acumulado, desde aqueles diretamente

    relacionados ao sistema econmico at os relacionados ao meio ambiente ou, ainda,

    os sociais, pela incapacidade de resolver as questes relativas ao bem-estar de grandes

    contingentes populacionais, dispersos nas sociedades mundiais e que ainda sofrem de

    privaes intensas, marcados pela fome, pobreza, ausncia de perspectiva para os jo-

    vens, falta e desigualdade na esfera do emprego, em que pese uma incontestvel revo-

    luo tecnolgica e um avano nos domnios do conhecimento e da cincia26.

    As respostas crise, por parte dos Estados que lideram a governana mundial, nos

    fazem pensar sobre o futuro do sistema mundial, pois nenhuma mudana efetiva foi

    realizada para conter a dinmica perversa estabelecida a partir das finanas mundiais e

    da especulao rentista. Os governos dos pases centrais se valeram das intervenes

    keynesianas tpicas, injetando capital, sobretudo nas grandes corporaes ameaadas,

    sem grandes interrogaes sobre o paradigma no qual estamos envolvidos, pois esto

    convictos, em sua naturalizao do problema, que logo o equilbrio ser restabelecido

    (os neoclssicos) e esto confiantes na assertiva to big to fail.

    Ao mesmo tempo em que ocorreu a crise, a China vem se consolidando como um

    grande player internacional. O modelo ali implantado, desde 1978, baseado em polticas

    intensivas de exportao e investimentos pesados em infraestrutura estradas, ferro-

    vias, trens de alta velocidade, metrs, pontes, portos associou-se ao capital internacio-

    nal principalmente do Japo, Coreia, Estados Unidos e Unio Europeia fazendo do

    26 COSTA LIMA, Marcos (2011). Regio & desenvolvimento no capitalismo contemporneo. So Paulo: UNESP, pp. 1-2.

  • Crise sistmica, desordem mundial, financeirizao e Estado: desafios e oportunidades para os pases emergentes

    T&P

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    pas um forte candidato a disputar hegemonia com os EUA e se portar como a segunda

    economia mundial em termos de Produto Interno Bruto.

    A tabela a seguir importante por salientar o papel do capital internacional pro-

    dutivo na China, sobretudo produzindo para o mercado mundial e oportunizando as

    vantagens do pas asitico com relao aos salrios mais baixos, uma mo de obra dis-

    ciplinada e qualificada e tambm da infraestrutura rodoferroviria e de portos instalada.

    Tabela 1: Decomposio da estrutura de propriedade das firmas nas exportaes chinesas em 2005.

    Fonte: Manova e Zhang27 (2008)

    Em 2001, o chefe economista do Goldman Sachs liderou estudo apontando a di-

    nmica econmica de pases como Brasil, Rssia, ndia, China e, posteriormente, frica

    do Sul BRICS, concluindo que em 2050, a China j superaria a principal economia

    mundial e que os demais tambm subiriam ao topo do ranking, situando-se entre as

    economias mais ricas do planeta. Outros analistas, a exemplo de Deepak Nayyar28, alm

    de confirmar os nmeros e as anlises de Jim ONeil, acrescentaram que a mudana de

    posies na hierarquia econmica em favor dos BRICS se faria em menos tempo, ante-

    cipando os resultados esperados j para 2030.

    Por certo estas anlises e seus desdobramentos foram impactados pela crise da

    sub-prime a partir de 2008, no obstante o crescimento chins ter se mantido robusto

    at o presente, comparativamente aos resultados dos pases centrais. De todo modo,

    a China inicia uma transformao forte do sentido de sua economia para o mercado

    interno.

    27 MANOVA, K e ZHANG, Z. (2008). Chinas exporter and importer firms products, and trade partners. Unpublished manuscript. Dept. of Economics, Stanford University, June. Apud: PALLEY, Thomas I. (2013). Gattopardo economics. The crisis and the mainstream response of change that keeps things the same. Working Paper, april, n. 112. Macroeconomic Police Institute.

    28 NAYYAR, Deepak. Developing Countries in the World Economy: The Future in the Past? WIDER Annual Lecture 12, UNU-WIDER, Helsinki, 2009.

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    Marcos Costa Lima

    H muito a se discutir, pois a complexidade das transformaes nos ltimos dez

    anos tem grande abrangncia e precisa ser analisada em diversos setores: financeiros,

    industriais, tecnolgicos, territoriais, ambientais e sociais. O Brasil nos ltimos dez anos

    tambm foi impactado pela dinmica mundial e, em particular, pelo nvel da atividade

    econmica na China. Por um lado tivemos ganhos sociais substantivos em polticas

    pblicas, que foram capazes de reduzir a mortalidade infantil, reduzir o analfabetismo,

    ampliar o nmero de alunos nos cursos secundrio e tercirio, e, por outro, tambm

    conseguimos ampliar o nvel de emprego e aumentar o poder de consumo das cama-

    das populares, quando o centro do sistema se encontra em crise e estagnao e fazen-

    do polticas em direo contrria.

    Como foi assinalado por Marcos Costa Lima29, a participao da China nas importa-

    es brasileiras de vrios produtos industrializados disparou nos ltimos anos, atingindo

    em alguns casos propores muito elevadas; a exemplo da compra de celulares ao pas

    asitico, que entre janeiro e setembro de 2011 representou 70% do total importado

    desses bens. No mesmo perodo, 72% dos tecidos de fibras txteis, 81% dos brinque-

    dos, 84% dos aparelhos eletromecnicos de uso domstico, alm de 53% das mquinas

    automticas para processamento de dados vieram da China. Hoje, a China deslocou

    os EUA como nosso principal parceiro comercial, mas esse trade-off em certa medida

    reproduz um padro de pas rico x pas pobre.

    S para dar uma medida do que representou o grande crescimento das exporta-

    es brasileiras para a China, estas passaram, entre 2000 e 2010, de US$ 1,1 bilho para

    29 COSTA LIMA, Marcos (2012). O Brasil e os BRICS e a agenda internacional. In: FUNAG (Org.). O Brasil e os Brics e a agenda internacional. Braslia: Funag. p. 162.

  • Crise sistmica, desordem mundial, financeirizao e Estado: desafios e oportunidades para os pases emergentes

    T&P

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    US$ 30,8 bilhes. No sentido contrrio, as importaes brasileiras da China cresceram de

    US$ 1,2 bilho para US$ 25,6 bilhes no mesmo perodo.

    A China vem fazendo avanos substantivos na inovao e no conhecimento e tem

    feito crescer esses investimentos de US$ PPP 39,2 bilhes para US$ PPP 102,4 bilhes no

    mesmo perodo. Tudo isso aponta para uma assimetria que tem tendncia a ser refor-

    ada, em curto e mdio prazos, em prejuzo do Brasil, que passa a vender commodities

    em troca de produtos industriais com aporte tecnolgico intensivo.

    Poderamos aprofundar essas assimetrias, mas cabe chamar a ateno para o fato

    de que, estrategicamente, o Brasil necessita aprofundar seu conhecimento sobre a Chi-

    na em diversos setores e polticas, para poder compartilhar uma relao, no apenas

    comercial, mas poltica e diplomtica, mais segura e propositiva.

    4 A situao mundial em dois perodos: 1850-1950 e 1950-2010

    O economista indiano Deepak Nayyar30 recm publicou um livro que tem a qua-

    lidade de analisar a evoluo histrica dos pases desenvolvidos na economia mundial

    em um amplo contexto macroeconmico. Com base nas estatsticas formuladas por

    Angus Maddison31, entre outros, na comparao que fez sobre os nveis de PIB per ca-

    pita entre pases desenvolvidos e em desenvolvimento, Nayyar estabelece trs grandes

    perodos histricos, sendo o primeiro do ano 1000 a 1820, o segundo de 1820 a 1950 e

    o terceiro de 1950 os dias atuais, grosso modo incluindo as regies no Ocidente, na sia,

    na frica e Amrica Latina e, quando possveis as previses, abre os dados para o Japo,

    a China e a ndia. No primeiro perodo aponta o nivelamento entre as regies mundiais

    em torno do PIB, para em seguida evidenciar o declnio das hoje tidas como regies

    perifricas vis--vis, sobretudo, Europa, quando os efeitos da revoluo industrial a

    comeam a estabelecer uma divergncia que se acentua e ganha velocidade. No ter-

    ceiro momento, que engloba o perodo 1950 a 2010, para ele aparece o fenmeno do

    catch up. Aqui, o autor aprofunda as possibilidades e os constrangimentos tanto para

    30 NAYYAR, Deepak (2013). Catch up. Developing Countries in the World Economy. Oxford University Press.31 MADDISON, Angus (1983). A comparison of levels of GDP per capita in Develop and Developing Countries,

    1700-1980. Journal of Economic History, 43, pp. 27-41.

  • T&P

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    Marcos Costa Lima

    o centro como para a periferia destas transformaes e especula sobre as alteraes no

    contexto internacional.

    Para Deepak, mil anos atrs, a sia, frica e Amrica do Sul, juntas, contavam com

    mais de 80% da populao e do produto mundiais, o que se fazia, basicamente, pela

    China e ndia. Esse predomnio perdura at 1500 quando tm incio as mudanas, que

    passam a surgir no incio do sculo XVI at o final do XVIII. O processo colonial foi ponto

    crtico da mudana, com a expanso mercantil e as mudanas polticas, sociais e insti-

    tucionais na Europa. Mas mesmo nesse perodo as semelhanas entre a Europa e a sia

    eram mais fortes que as dessemelhanas, pois em 1820, portanto menos de duzentos

    anos atrs, a sia, a frica e a Amrica do Sul ainda contavam com quase trs quartos

    da populao mundial e em torno de dois teros da renda mundial. A participao da

    China e ndia, juntas, era de 50%, mesmo em 182032.

    Segundo o economista indiano, as dramticas transformaes da economia mun-

    dial comearam em torno de 1820 e essa diviso geogrfica no mundo acaba por se

    tornar uma diviso ou ruptura econmica. A partir da, diz ele:

    A relevncia econmica da sia, frica no produto mundial e Amrica Latina

    testemunham uma queda abrupta, de modo que, em torno de 1950, havia uma pro-

    nunciada assimetria entre sua participao na populao mundial, ento de dois ter-

    os (2/3) do total e uma participao na renda mundial de um quarto (1/4). Em agudo

    contraste e no mesmo perodo, a Europa, a Amrica do Norte e o Japo ampliaram

    sua participao na populao mundial de um quarto(1/4) para um tero (1/3), e em

    termos de renda mundial, de um pouco mais de um tero (1/3) para quase trs quar-

    tos (3/4).

    A grande divergncia em renda per capita foi, portanto, a realidade. E em um

    perodo de 130 anos, de 1820 para 1950, como percentagem do PIB per capita, a Am-

    rica Latina caiu de trs quintos (3/5) para dois quintos (2/5), na frica, de um tero (1/3)

    para um stimo (1/7), e na sia, de metade para um dcimo (1/10)33.

    Em termos de produo manufatureira, a participao da sia, frica e Amrica

    Latina, basicamente centrada na China e na ndia, entrou em colapso, baixando de 60%

    32 NAYYAR, Deepak (2013), op. cit., p. 174.33 Id. ibid., p. 174.

  • Crise sistmica, desordem mundial, financeirizao e Estado: desafios e oportunidades para os pases emergentes

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    para 7,5%, ao passo que a participao da Europa e Estados Unidos da Amrica e Japo

    saltou de 40% para 92,5%, permanecendo nesse patamar at 1950.

    Para Deepak, a industrializao da Europa Ocidental e a desindustrializao da sia

    ao longo do sculo XIX representavam os dois lados da mesma moeda.

    a partir da que se configura a forte preponderncia da Europa e dos EUA como

    exportadores de produtos industriais especializados e o resto do mundo como produ-

    tor de commodities. Ao mesmo tempo, de 1850 a 1950 as trs regies perifricas passam,

    pela via do comrcio, dos investimentos e da imigrao a serem progressivamente in-

    tegradas economia mundial, consolidando ainda uma particular diviso internacional

    do trabalho entre pases que reforaram as trocas desiguais34, com fortes tendncias

    ao desenvolvimento desigual.

    Finalmente, de 1950 a 2010, em termos das estatsticas de Maddisson, baseadas em

    PPP, a participao dos pases desenvolvidos no produto global parou de cair, a partir de

    1960, quando saem de um mero um quarto (1/4) para atingir metade (1/2) em 2008. A

    divergncia em termos de renda per capita parou de aumentar em 1980 e foi seguida de

    uma lenta convergncia da em diante. Entre 1970 e 2010, a participao dos pases em

    desenvolvimento no PIB mundial dobrou de um sexto (1/6) para um tero (1/3), mesmo

    que o PIB per capita tenha tido um alterao muito pequena, de um quatorze avos (1/14)

    para um onze avos (1/11)35.

    Por certo, essas agregaes esto vinculadas ao perodo keynesiano do ps-guer-

    ra, quando boa parte dos pases emergentes passou a construir seus parques industriais,

    atravs de polticas de substituio de importaes. Contudo, convm assinalar que, a

    partir dos regimes ditatoriais na Amrica Latina e das polticas de crescimento baseadas

    em poupana externa, essa regio entra numa espiral de endividamento e polticas de

    ajuste monetrio, que agravaram duramente as condies econmicas e sociais de seus

    pases, o que no ocorreu na sia. Contudo, durante o perodo 1981-2008, as taxas de

    crescimento dos perifricos passaram quase a duplicar aquelas nos pases industrializa-

    dos. A participao dos perifricos no comrcio de mercadorias, exportaes e impor-

    taes mais que duplicou, de menos de 20% em 1970 para mais que 40% em 2010. Em

    termos da produo industrial, a participao dos perifricos saltou de um doze avos

    34 PREBISH, Ral (1968). Dinmica do desenvolvimento latino-americano. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura. pp. 94-196.

    35 NAYYAR, Deepak (2013), op. cit., p. 175.

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    (1/12) para um tero (1/3) em preos constantes. Da mesma forma, sua participao nas

    exportaes mundiais de manufaturas, em preos correntes, passou de um quatorze

    avos (1/14) para dois quintos (2/5), em grande medida devido ao desempenho da China,

    o que o autor intitula de dramticas transformaes36.

    Deepak Nayyar considera acertadamente que o catch up que vem se cristalizando

    necessrio, mas no suficiente para melhorar as condies de vida da maioria das po-

    pulaes dos pases perifricos. Mantm-se divergncias graves na economia mundial:

    desigualdade entre pases, entre regies e entre grupos sociais no acesso aos benefcios

    e ao conforto produzido pelas tecnologias, em termos de sade e educao, entre ou-

    tras questes de relevo. fato que entre o perodo de 1981 e 2008 a pobreza absoluta

    caiu nos pases perifricos, no obstante estes nmeros serem ainda muito expressivos.

    Em 2008, dos pobres no mundo, abaixo da linha de pobreza, viviam na sia, em que

    pesem o rpido crescimento econmico, a crescente participao da regio na renda

    mundial e a industrializao.

    importante assinalar que a longa marcha das corporaes internacionais, sua

    conquista de capilaridade internacional, fez com que uma parte significativa da indus-

    trializao dos perifricos tenha ocorrido sob a gide do capital internacional. So em-

    presas que se beneficiam no apenas dos baixos salrios nessas regies, mas tambm

    dos aportes de financiamento dos estados receptores e ainda da remessa de lucros e

    dos pagamentos por uso de tecnologias exgenas. O economista Celso Furtado cha-

    mou a ateno para a questo:

    Utilizando tecnologia amortizada, algumas vezes equipamentos tambm amortizados, e mobilizando capital local, as grandes empresas esto em condies de instalar indstrias na maior parte dos pases de periferia, particularmente se essas indstrias se integram parcialmente com atividades de importao.37

    As figuras abaixo ilustram alguns argumentos expostos, relativos pobreza, par-

    ticipao no comrcio mundial de mercadorias e nas exportaes de manufaturas, in-

    clusive aquelas de valor agregado, entre os pases em desenvolvimento.

    36 Id. ibid., p. 176.37 FURTADO, Celso (1983). O mito do desenvolvimento econmico. 6. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra. p. 45.

  • Crise sistmica, desordem mundial, financeirizao e Estado: desafios e oportunidades para os pases emergentes

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    Na primeira figura patente a queda das curvas de pobreza e da indigncia en-

    tre 1981 e 2008. Em percentagens a queda acentuada, mas em valores numricos, a

    queda da indigncia muito maior que a queda nominal da pobreza. J na segunda

    figura, numa srie temporal maior, percebe-se uma queda acentuada no quadro da

    participao no comrcio mundial no perodo 1950-1974, que ser interrompida a partir

    da, para no mais deixar de crescer entre 1974 e 2010, salvo um breve perodo nos anos

    1980-1985, quando ainda assim manteve patamares maiores que o perodo anterior de

    queda. Finalmente, a terceira figura evidencia a participao dos pases em desenvolvi-

    mento com relao s exportaes de manufaturas e aquelas de valor agregado entre

    1950 e 2010, quando, a partir de 1970 a regio passa a avanar ano a ano nas exporta-

    es de manufatura, o que tambm se credita a uma maior penetrao das multinacio-

    nais em escala planetria.

  • T&P

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    Marcos Costa Lima

    Figura 1: Tendncias na Pobreza Absoluta em Pases em Desenvolvimento 1981-2008.

    Fonte: Chen e Revallion (2012).

    Figura 2: Participao dos pases em desenvolvimento no comrcio mundial de mercadorias 1950/2010.

    Fonte: United Nations, UnctadStat, baseado em UN International Trade Statistics.

  • Crise sistmica, desordem mundial, financeirizao e Estado: desafios e oportunidades para os pases emergentes

    T&P

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    Figura 3: Participao dos pases em desenvolvimento na exportao de manufa-turas e manufaturas de valor agregado na economia mundial 1960-2010.

    Fonte: United Nations.

    5 O contexto econmico global: crise, recesso e emprego, salrios mundiais

    A crise global teve repercusses negativas importantes sobre os mercados de tra-

    balho em muitas regies do mundo, e a retomada ainda incerta e ser, muito prova-

    velmente, duradoura. Sobretudo pelos efeitos nefastos que produziu. Em mbito global

    os salrios mdios cresceram, mas a taxas inferiores s do perodo antes da crise. O

    presente Relatrio Global sobre os Salrios 2012/1338 evidencia, no entanto, que o impacto

    da crise nos salrios est longe de ser uniforme.

    Nas economias desenvolvidas, a crise provocou uma dupla queda nos salrios: os

    salrios mdios reais caram em 2008 e de novo em 2011; e em muitos destes pases os

    salrios registraram em 2012 um crescimento marginal.

    Nos pases emergentes, o crescimento dos salrios foi, de modo geral, mais resi-

    liente, com um forte crescimento na sia e mais modesto, mas apresentando ainda uma

    tendncia positiva em frica, na Amrica Latina e nas Carabas.

    38 OIT (2013). Relatrio Global sobre os Salrios 2012/13: salrios e crescimento equitativo. Genve: ILO Publications.

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    Marcos Costa Lima

    Na Europa de Leste e na sia Central, aps a queda dos salrios provocada pela cri-

    se em 2009, registrou-se um crescimento dos salrios positivo, mas relativamente mais

    baixo.

    Numa perspectiva de mais longo prazo, o relatrio estima que os salrios mdios

    reais mensais quase duplicaram na sia entre 2000 e 2011, tendo aumentado 18% em

    frica, 15% na Amrica Latina e nas Carabas e 5% nas economias desenvolvidas. Na

    Europa de Leste e na sia Central os salrios quase triplicaram, embora partindo de

    uma base muito baixa na sequncia do colapso econmico dos anos de 1990. Os da-

    dos disponveis sobre salrios no Oriente Mdio so limitados, mas indicam que a baixa

    produtividade e a debilidade das instituies foram responsveis pela estagnao dos

    salrios durante a ltima dcada39.

    Figura 4: Mdia Anual de Crescimento Econmico PIB Mundial 1995-2012. (PIB a preos constantes)

    5.1 As taxas de crescimento econmico entre regies mundiais

    Aps um perodo de forte crescimento econmico nos primeiros anos do sculo

    XXI, a economia mundial sofreu uma contrao em 2009, como resultado da crise fi-

    nanceira e econmica global O impacto da crise foi sentido de formas muito diversas

    em todo o mundo. No grupo de pases mais avanados, 2009 passou a ser visto como

    o ano da Grande Recesso, a crise econmica mais grave desde a Grande Depresso

    dos anos de 1930. Embora a recuperao em 2010 tenha sido mais forte do que inicial-

    mente previsto, a crise da dvida soberana e as vrias medidas de austeridade que a

    39 Id. ibid.

  • Crise sistmica, desordem mundial, financeirizao e Estado: desafios e oportunidades para os pases emergentes

    T&P

    68 (2014) 23 (1) 47 77

    acompanharam levaram a uma desacelerao significativa do crescimento subsequen-

    te, especialmente na Europa. O grupo de pases emergentes e em desenvolvimento,

    pelo contrrio, evitou uma recesso generalizada e conseguiu manter taxas de cresci-

    mento superiores s dos pases avanados desde o ano 2000.

    Figura 5: Estimativas e projees de crescimento global e regional GDP, 2011-15 (porcentagem)

    5.2 A estagnao dos salrios

    Em termos globais o crescimento dos salrios mdios reais manteve-se muito abai-

    xo dos nveis pr-crise, apresentando valores negativos nas economias desenvolvidas,

    embora tenha permanecido elevado nas economias emergentes. Os salrios mdios

    mensais ajustados pela inflao conhecidos como salrios mdios reais cresceram

    globalmente 1,2% em 2011, valor inferior aos 2,1% em 2010 e aos 3% em 2007. Face sua

    dimenso e a um forte desempenho econmico, a China tem um grande peso neste

    clculo global. Se no considerarmos a China, o crescimento dos salrios mdios reais

    globais foi de apenas 0,2% em 2011, abaixo, portanto dos 1,3% em 2010 e dos 2,3% em

    2007.

    A OCDE observou que, durante o perodo de 1990 a 2009, o peso da remunerao

    do trabalho no rendimento nacional diminuiu em 26 dos 30 pases avanados para os

    quais existem dados disponveis, e calculou que o peso mediano do rendimento do tra-

    balho no rendimento nacional em todos estes pases caiu consideravelmente, de 66,1%

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    para 61,7%40. Estas concluses fazem eco das provas apresentadas no Relatrio Global

    dos Salrios de 2010/11 da OIT, o qual descreveu o declnio do peso dos salrios na gran-

    de maioria dos pases da OCDE desde 198041.

    5.3 Diferenas salariais nos nveis regionais

    Apesar do crescimento significativo dos salrios nas economias emergentes, as di-

    ferenas nos nveis salariais continuam a ser considerveis. Nas Filipinas, um trabalhador

    da indstria transformadora ganhou menos de 1,40 USD por hora de trabalho. No Brasil,

    a remunerao paga numa base horria no setor foi de 5,40 USD; na Grcia, foi de 13

    USD; nos Estados Unidos, de 23,30 USD; e na Dinamarca, de 34,80 USD (taxas de cmbio

    de 2010 arredondadas). Na Alemanha, a produtividade do trabalho aumentou em quase

    um quarto ao longo das ltimas duas dcadas, enquanto os salrios reais mensais se

    mantiveram estveis.

    5.4 A reduo da participao dos trabalhadores no produto global

    Entre 1999 e 2011 a produtividade mdia do trabalho nas economias desenvolvidas

    aumentou mais que o dobro do salrio mdio. Nos Estados Unidos, a produtividade real

    horria do trabalho no setor empresarial no agrcola aumentou cerca de 85% desde

    1980, enquanto a remunerao horria real cresceu apenas cerca de 35%. Na Alemanha,

    a produtividade do trabalho aumentou em quase um quarto ao longo das ltimas duas

    dcadas, enquanto os salrios reais mensais se mantiveram estveis.

    A tendncia global resultou numa mudana na distribuio do rendimento nacio-

    nal, com uma diminuio da parte afeta aos rendimentos do trabalho ao passo que a

    parte do rendimento do capital aumentou na maioria dos pases. Mesmo na China, um

    pas onde os salrios praticamente triplicaram na ltima dcada, o PIB cresceu a uma

    taxa mais rpida do que a massa salarial total e, consequentemente o peso do rendi-

    mento do trabalho caiu.

    40 OCDE (2012). OECD Employment Outlook 2012. Paris.41 International Labour Office ILO (2008). Global Wage Report 2008/09: Minimum wages and collective

    bargaining Towards policy coherence. Geneva. Id. (2010). Global Wage Report 2010/11: Wage policies in times of crisis. Geneva.

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    Figura 6: Tendncias de crescimento dos salrios mdios e produtividade do trabalho nas economias desenvolvidas (ndice: 1999= 100).

    A queda no peso do rendimento do trabalho ficou a dever-se ao progresso tecnolgico,

    globalizao do comrcio, expanso dos mercados financeiros e diminuio da taxa de sin-

    dicalizao, o que degradou o poder de negociao coletiva dos trabalhadores. A globalizao

    financeira, em particular, pode ter desempenhado um papel mais relevante do que inicialmente

    se pensava.

    O FMI42 concluiu que, entre 1980 e 2005, o peso do rendimento do trabalho dos trabalhado-

    res no qualificados caiu nos Estados Unidos, Japo e Europa, mas aumentou para os trabalhadores

    qualificados com um nvel de educao tercirio ou superior (em 7,2 e 8%, respectivamente).

    Analisando um conjunto de quatro economias desenvolvidas (Frana, Alemanha, Reino Uni-

    do e Estados Unidos), Husson43 concluiu que durante o perodo 1987-2008 grande parte do exce-

    dente das empresas se destinou a reforar os dividendos pagos aos acionistas. Calculou que na

    Frana o total de dividendos aumentou de 4% da massa salarial total no incio dos anos 1980 para

    13% em 2008. Curiosamente, no Reino Unido tanto a proporo dos pagamentos de dividendos

    das aes como o peso da remunerao do trabalho aumentaram, pelo que os dividendos mais

    elevados foram possveis custa da reduzida reteno de lucros. Nos Estados Unidos, trs quar-

    tos do aumento do excedente bruto de explorao destinaram-se ao pagamento de dividendos.

    42 International Monetary Fund IMF (2007). The globalization of labor. In: World Economic Outlook, April 2007: Spillovers and cycles in the world economy. Washington, DC. pp. 161-192.

    43 HUSSON, M. (2010). Le partage de la valeur ajoute en Europe. In: La Revue de lIRES, vol. 64, n. 1, pp. 47-91.

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    Dada a maior concentrao dos rendimentos do capital face aos do trabalho, o aumento dos di-

    videndos, contribuiu quase sempre para o aumento da desigualdade de rendimento das famlias,

    em termos genricos44.

    6 O Brasil: desafios e oportunidades

    Concluo esse j longo artigo estabelecendo algumas reflexes sobre o Brasil.

    O economista e ex-presidente do IPEA, Mrcio Pochman45 constata que justamente

    o pior desempenho econmico e social ocorreu durante as dcadas de 1980 e 1990,

    44 Organization for Economic Co-operation and Development OECD (2011). Divided we stand: Why inequality keeps rising. Paris. ROINE, J.; WALDENSTRM, D. (2012). On the role of capital gains in Swedish income inequality. In: Review of Income and Wealth, vol. 58, n. 3, pp. 569-587.

    45 POCHMAN, Mrcio (2009). A tarefa dos progressistas. In: . Acessado em 30/1/2014.

  • Crise sistmica, desordem mundial, financeirizao e Estado: desafios e oportunidades para os pases emergentes

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    quando a renda per capita manteve-se praticamente estagnada, a distribuio da renda

    nacional tornou-se ainda mais concentrada, a inflao atingiu patamares inaceitveis, o

    endividamento pblico era crescente e a insero internacional foi regressiva. Tudo isso

    em decorrncia das polticas de ajuste definidas pelo FMI e acatadas pelos governos de

    ento.

    Esse quadro passou a ser alterado a partir de 2004, quando o conjunto dos indi-

    cadores econmicos e sociais brasileiros passou a confirmar o cenrio muito diferente

    daquele verificado nas dcadas anteriores. O endividamento do setor pblico passou

    a refluir significativamente (de mais de 50% para prximo de 1/3 do produto nacional),

    acompanhado por estvel ndice do custo de vida da populao, pelo reforo das re-

    laes externas e satisfatria expanso econmica, mais de duas vezes superior veri-

    ficada nos anos 1990, por exemplo. As implicaes disso para o pas no tardaram a se

    manifestar em termos da considervel ampliao do emprego formal e da mobilidade

    social, bem como pela queda no desemprego, na pobreza e na desigualdade de renda.

    Em sntese, a combinao positiva do crescimento econmico com a incluso so-

    cial potencializada por corretas polticas pblicas de incorporao de mais de vinte mi-

    lhes de brasileiros ao padro de consumo de massa, o que pode ser verificado pelo

    grfico a seguir.

    Renda: Participao de salrios no PIB (%): 19952010 Brasil

    Fonte: Publicado em 01/10/2010 por brasilfatosedados.

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    Aps a crise que se instala e propaga a partir da economia dos Estados Unidos em

    2008, diz o economista46 que para o Brasil, trs principais vetores de transmisso da crise

    externa se destacam. O primeiro refere-se drstica conteno do crdito internacio-

    nal, que atingiu fortemente o setor produtivo domstico, especialmente as empresas

    produtoras de mercadorias de maior valor unitrio e dependentes de financiamentos

    (bens de consumo durvel e de capitais). O segundo vetor est relacionado retrao

    do comrcio externo, que impacta diretamente parcela do setor produtivo exportador.

    O terceiro vetor decorrente das decises das matrizes das grandes corporaes trans-

    nacionais, responsveis pelo reposicionamento mais contido das filiais em operao no

    pas. De todo modo, o Brasil tem um conjunto de problemas estruturais que precisam

    ser enfrentados, ao custo de perdermos os avanos que foram consolidados a partir de

    2004. So eles: a pobreza rural e urbana; a concentrao fundiria; a ainda imensa con-

    centrao de renda; os desnveis regionais acentuados; a baixa escolaridade da maioria

    da populao; os gargalos de infraestrutura; a debilidade de nosso sistema de pesquisa

    e desenvolvimento; a corrupo poltica; a baixa qualificao da mo de obra; um pro-

    cesso insidioso de desindustrializao e de reprimarizao da economia; os problemas

    habitacionais e de mobilidade urbana.

    Oportunidades: democracia consolidada; liderana na Amrica do Sul; pacifismo

    nas fronteiras; pacifismo interno; crescimento com incluso; reduo da pobreza

    e analfabetismo; polticas Sul-Sul bem construdas.

    Questo agrria: concentrao fundiria e agrobusiness pobreza rural e de-

    semprego no campo;

    Concentrao de renda;

    Reprimarizao da economia;

    Dvida pblica: 42% do oramento geral da Unio

    Dvida pblica em 2013: R$2,02 trilhes

    Sade e educao juntos: apenas 7,06%

    Dficit de 8 milhes de moradias;

    Fortes desigualdades regionais.

    A pea oramentria de 2013 reserva 900 bilhes de reais (correspondente a 42%

    do oramento geral da Unio) para o pagamento de juros e amortizaes da dvida

    46 Id. ibid.

  • Crise sistmica, desordem mundial, financeirizao e Estado: desafios e oportunidades para os pases emergentes

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    pblica, enquanto esto previstos, por exemplo, R$ 71,7 bilhes para educao, R$ 87,7

    bilhes para a sade e R$ 5 bilhes para a reforma agrria.

    A distribuio do investimento estrangeiro direto por setores no Brasil mudou sig-

    nificativamente entre 2000 e 2009.

    De fato, nossa carga tributria saltou de 26,7% do PIB em 1996 para 35,9% do PIB

    em 2012. A despeito disto, o investimento pblico federal nos ltimos anos tem estado

    estagnado em nveis prximos a apenas 1% do PIB.

    O Brasil, que pouco avanou na democratizao da propriedade segue mantendo

    apenas 6% de toda sua da populao com posse dos meios de produo47.

    Em 2000, o setor tercirio era o principal receptor de IED, recebendo 72% do total.

    Em 2009, a participao do IED mudou de cenrio: o investimento do tercirio

    diminuiu para 43%. Aumentou a participao dos setores primrio e secundrio, que

    eram 3% e 15%, respectivamente em 2000, e passaram, em 2009, para 14,5% e 43%,

    Crescimento mdio anual dos salrios reais no Brasil 2006-2011

    47 AMORIM, R. et al (2009). Os proprietrios no Brasil. So Paulo: Cortez.

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    Recebido: 12/6/2014

    Aceito: 25/6/2014