“sede de nomeada” - esocite 2016 · resumo: este texto analisa as construções discursivas...
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A cultura do trabalho como um discurso vociferante,
nas vozes de Brás Cubas e Quincas Borba
The work culture as a vociferous speech,
in the voices of Brás Cubas and Quincas Borba
ANGELA MARIA RUBEL FANINI1*
GILBERTO GNOATO2*
MARCIA DOS SANTOS LOPES3*
Resumo: Este texto analisa as construções discursivas sobre a cultura do trabalho, na obra
Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), de Machado de Assis, fazendo um recorte
discursivo das vozes representadas pelos personagens Brás Cubas e Quincas Borba.
Considerando que a palavra no romance ou fora dele está sempre carregada do peso da
cultura, que o universo cultural criado pelo autor romanesco reflete e refrata o seu tempo e
que não há como afastar a cultura da orientação dialógica da linguagem, já que essa relação
pressupõe alteridade e discursividade, fazemos uma Análise Dialógica do Discurso (ADD),
baseada nas teorias de Bakhtin e do Círculo. As vozes da enunciação machadiana contrapõem
o discurso de longa duração da dignidade, do reconhecimento e da realização pessoal,
advindos do trabalho material ou imaterial, ao discurso do não-trabalho ou do anti-trabalho
das classes dominantes, que têm “sede de nomeada” por meio da aquisição de um diploma ou
de um cargo político. Os aspectos sociológicos da análise basearam-se nas visões do
sociólogo brasileiro Sérgio Buarque de Holanda e do crítico literário Roberto Scwarz.
Concluiu-se que, para as elites brasileiras oitocentistas, o que prevalecia era a cultura do não-
trabalho, da busca de prestígio, como uma herança cultural do período colonial.
Palavras-chave: Cultura. Trabalho. Discurso. Cubas e Borba. Machado de Assis.
Abstract: This paper analyzes the discursive constructions on the work culture, in the work
Posthumous Memories of Brás Cubas (1881), by Machado de Assis, making a discursive
* Professora Doutora do Programa de Pós-Graduação em Tecnologia (PPGTE), da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). Bolsista de Produtividade em Pesquisa, CNPq. * Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Tecnologia (PPGTE), da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). * Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Tecnologia (PPGTE), da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR).
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cross section by voices brought by Brás Cubas and Quincas Borba characters. Considering
that the word in the novel or out of it is always loaded with the weight of culture, that the
cultural universe created by the novelistic author reflects and refracts its time, and there is not
how to push away culture from language’s dialogical orientation, since this relationship
presupposes otherness and discourse, we make a dialogical analysis, based on the theories of
Bakhtin and the Circle. The voices of Machado’s enunciation reframe the long duration
discourse of dignity, recognition and personal fulfillment originated from material or
immaterial work to non-work or anti-work by the dominant classes who are “named
headquarters”, through the acquisition of a diploma or political office. The sociological
aspects analysis is based on the views of the Brazilian sociologist Sergio Buarque de Hollanda
and the literary critic Roberto Scwarz. We conclude that, to the nineteenth-century Brazilian
elites, what prevailed was the non-work culture, the pursuit for prestige as a cultural
inheritance from the colonial period.
Key words: Culture. Work. Speech. Cubas and Borba. Machado de Assis.
Introdução
Este texto é parte da pesquisa de doutorado em andamento no Programa de Pós-Graduação em
Tecnologia da Universidade Tecnológica Federal do Paraná e visa tratar, especificamente, das
construções discursivas sobre o trabalho na obra Memórias póstumas de Brás Cubas4, de
Machado de Assis5.
Analisaremos algumas das vozes que representam a cultura do trabalho, preconizada
socialmente no tempo de Machado como discurso de longa duração, que propala o labor como
fonte de dignidade, de reconhecimento e realização pessoal. São as vozes dos personagens
Brás Cubas e Quincas Borba, que representam o não-trabalho ou o anti-trabalho, como
constituidor da busca de prestígio, por meio de um diploma e por meio de cargos públicos.
Far-se-á uma Análise Dialógica do Discurso6, na perspectiva de Bakhtin e do Círculo, para a
qual a palavra carrega consigo sempre o peso da cultura; o universo cultural reflete e refrata o
tempo em que se vive, em alteridade e discursividade; e os discursos estão em diálogo
constante entre si. Buscar-se-á reconhecer os discursos já consagrados sobre o trabalho e que
4 Doravante Memórias póstumas. 5 Doravante Machado. 6 Doravante ADD.
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impõem a manutenção de certa ordem discursiva como um traço cultural e de identidade do
povo brasileiro. Segundo Bakhtin:
Todo discurso concreto (enunciação) encontra aquele objeto para o qual está
voltado sempre, por assim dizer, já desacreditado, contestado, avaliado, envolvido
por sua névoa escura ou, pelo contrário, iluminado pelos discursos de outrem que
já falaram sobre ele. O objeto está amarrado e penetrado por ideias gerais, por
pontos de vista, por apreciações de outros e por entonações. Orientado para o seu
objeto, o discurso penetra neste meio dialogicamente perturbado e tenso de
discursos de outrem, de julgamentos e de entonações. (BAKHTIN, 2010:86)
O romance de Machado, como qualquer outro texto literário canônico, é um discurso em
movimento, e, embora já o encontremos lido e analisado, nem por isso se esgota. Quando
Machado escreve sobre o trabalho, já encontra a ideia de cultura do trabalho discursada.
Porém, sua escrita personaliza o objeto, na sua perspectiva pessoal de autor, além de reduzir
estruturalmente a realidade externa, transformando-a em dados internos à obra. (CANDIDO,
2004) Como analistas do discurso, procuramos revelar a particularidade social do texto
literário machadiano, penetrando na tensão que ele provoca e que se estabelece, ao
analisarmos o discurso em interação com a realidade social e cultural brasileira do século
XIX. No entanto, não desvinculamos essa análise do viés axiológico a que o texto está ligado
moralmente e nem pretendemos analisar o conteúdo da obra, mas os caminhos que conduzem
à produção do discurso da cultura do trabalho. Sabemos que no ato social de trabalhar, o homem relaciona-se com o outro, convive e
estabelece relações de alteridade. No entanto, de posse da palavra, o homem não apenas
trabalha, como também fala e escreve sobre seu trabalho, proferindo palavras sobre o seu
labor. Essas vozes chegam até nós também por intermédio da arte literária e é com esse objeto
que dialogamos, nesta pesquisa.
O mito do trabalho como fonte de dignidade, reconhecimento e realização pessoal
O historiador Sérgio Buarque de Holanda, em seu livro Raízes do Brasil7, afirma que, dentre
tantas características do povo ibérico, que ele julga presentes no caráter do homem
colonizado, está a “invencível repulsa que sempre lhes inspirou toda moral fundada no culto
ao trabalho”, por isso nunca se naturalizou entre os ibéricos “a moderna religião do trabalho e
o apreço à atividade utilitária”. Complementando esse raciocínio, o autor afirma que:
Uma digna ociosidade sempre pareceu mais excelente, e até mais nobilitante, a um
bom português, ou a um espanhol, do que a luta insana pelo pão de cada dia. O que ambos admiram como ideal é uma vida de grande senhor, exclusiva de qualquer
7 HOLANDA, Sérgio B. de. Raízes do Brasil, 1936.
4 esforço, de qualquer preocupação. E assim, enquanto povos protestantes
preconizam e exaltam o esforço manual, as nações ibéricas colocam-se ainda
largamente no ponto de vista da Antiguidade clássica. O que entre elas predomina é
a concepção antiga de que o ócio importa mais que o negócio e de que a atividade
produtora é, em si, menos valiosa que a contemplação e o amor. (HOLANDA,
2009:38)
A moral do trabalho para espanhóis e portugueses representava um “fruto exótico”. Holanda
aponta, ainda, características peculiares aos portugueses, como a ausência de solidariedade, a
não ser que seja por interesse familiar ou entre amigos; a obediência, mesmo sendo rara e
difícil, vista como um bem supremo, entre povos nos quais a vontade de mandar e a
disposição para se cumprir ordens eram igualmente peculiares; e a falta de orgulho de raça, já
que eram mestiços, e de energia para arregaçar as mãos e trabalhar. E talvez lhes faltasse
também hipocrisia para acreditar que deveriam buscar tudo isso pelo trabalho árduo e
estafante, que faria deles homens ricos e respeitados, contrariando o discurso que tudo
organiza ao redor do trabalho. E isso seria uma virtude. Segundo Holanda, os portugueses, no Brasil, buscavam glória e riqueza, sem trabalho e sem
sacrifício, por meio das mãos e dos pés dos negros: “riqueza que custa ousadia, não riqueza
que custa trabalho”. (HOLANDA, 2009:49) E alcançaram esse objetivo facilmente com os
africanos trazidos por meio do comércio negreiro. Essa característica portuguesa tem seus
matizes em vários momentos em Memórias póstumas. Tudo começa pela confissão do
defunto-autor de que a ideia do emplasto, que o levou à morte, influenciou-o, principalmente,
pelo gosto de ver impressas nos jornais, mostradores, folhetos, esquinas, e enfim nas
caixinhas do remédio, estas três palavras: Emplasto Brás Cubas. Em outras palavras: busca de
prestígio. A essa busca chamá-la-emos, como Machado a chamou em suas memórias, de “sede de nomeada”. Era “a outra flor menos amarela e nada mórbida, - o amor da nomeada.”
Era a ideia “trapézio” que o perseguiu durante algum tempo. E continuando:
Para que negá-lo? Eu tinha a paixão do arruído, do cartaz, do foguete de lágrimas.
Talvez os modestos me arguam esse defeito; fio, porém, que esse talento me hão de
reconhecer os hábeis. Assim, a minha idéia trazia duas faces, como as medalhas,
uma virada para o público, outra para mim. De um lado, filantropia e lucro; de
outro, sede de nomeada. Digamos: - amor da glória. (ASSIS, 1997:15)
Ainda na tentativa de apresentar esse sentimento relacionado ao arruído e ao cartaz, Cubas
cita dois tios seus que têm pensamentos opostos sobre o tema. O tio cônego, portanto
religioso, dizia que “o amor da glória temporal era a perdição das almas, que só devem
cobiçar a glória eterna”. Outro tio, militar, afirma que “o amor da glória era a coisa mais
verdadeiramente humana que há no homem, e, conseguintemente, a sua mais genuína feição.” (ASSIS, 1997:15) Dois discursos de longa duração cruzam-se na voz de Brás Cubas: o
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primeiro de origem religiosa, muito repercutido durante os séculos em que a Igreja Católica
implantou o Cristianismo na colônia, representa um discurso desviante da ideia de acúmulo,
própria do pensamento capitalista, ou seja, induz a pensar que se deve cobiçar e ansiar por
coisas espirituais e não pelas materiais; o segundo discurso, dito por um militar, é terreno e
incentiva a busca da honra, justificando a atitude na essência do homem. Nessa perspectiva, não é o trabalho que é central e essencial na vida do homem, pelo menos
na vida das elites, é o arruído, sem esforço; é o cartaz e a ostentação, chamando a atenção de
todos para si. Holanda atribui esse caráter ao povo ibérico, e Machado coloca-o como um
traço distintivo da sociedade a qual Brás Cubas representa e preconizando o mito do trabalho
como fonte de dignidade, reconhecimento e realização pessoal. Essas vozes gritam nas
palavras do narrador a todo instante, vociferando o discurso do não-trabalho ou do anti-
trabalho, diferentemente do que o discurso dominante faz parecer. No capítulo III de Memórias póstumas, intitulado Genealogia, temos uma pequena noção do
que vem a ser o amor ao prestígio, quando Brás Cubas, personagem-narrador-defunto, explica
ao leitor, de forma bastante irônica como é própria a Machado, sua genealogia, a partir do
sobrenome familiar Cubas. Traça um perfil de sua família como uma possível representação
da sociedade brasileira, formada nos últimos séculos, e da cultura brasileira que
aparentemente venera o trabalho. Conta que o fundador de sua família era um tanoeiro8 de
ofício, “e talvez mau tanoeiro”, Damião Cubas, natural do Rio de Janeiro, ou seja, um
profissional do meio urbano, que teria morrido na penúria e na obscuridade, se apenas
exercesse a tanoaria. Como buscou outras fontes de renda, tornando-se lavrador, plantando,
colhendo e permutando seu produto por bom valor, morreu rico, deixando herança a seu filho
Luís Cubas, um jovem licenciado9 em Coimbra. É a partir do nome desse moço que começa a
família confessa do narrador-defunto, pois sua “verdadeira” família sempre negou a existência
do nome Damião Cubas, reconhecendo apenas o filho, Luís Cubas, como ancestral legítimo,
por este ter sido primado10
no Estado e amigo particular do vice-rei, conde da Cunha. O
antepassado lavrador de Cubas não era alguém que trabalhava na terra de um latifundiário,
por exemplo, era um proprietário, que lavrava sua própria terra e isso dava-lhe mais prestígio
social do que a tanoaria, que é um signo de pobreza.
8 Profissional que fabrica ou conserta tonéis ou pipas. Esses tonéis, dentre outras funções mais admiráveis como conter água, tinham que transportar excrementos das casas para serem jogados ao mar, por meio dos Tigres (ou tigrada), que eram os escravos que os carregavam.
9 Quem possuía título acadêmico à época, em Portugal. 10 Distinguido, apreciável ou notável.
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Essas referências machadianas mostram como o texto romanesco, ao mesmo tempo em que
reflete a realidade social, cronotópica, refrata-a também, apresentando-a a partir de um olhar
de classe. Uma das vozes aponta para o trabalho como forma de reconhecimento e ascensão
social. Outra voz destaca a genealogia da elite: apagando a herança do trabalho material, que
suja as mãos, e colocando o foco no não-trabalho. No último capítulo, Das Negativas, que
aparentemente está cheio de frustração, Machado estiliza a classe social, na qual seu
personagem está inserido:
Este último capítulo é todo de negativas. Não alcancei a celebridade do emplasto,
não fui ministro, não fui califa, não conheci o casamento. Verdade é que, ao lado
dessas faltas, coube-me a boa fortuna de não comprar o pão com o suor do meu
rosto. Mais; não padeci a morte de Dona Plácida, nem a semidemência do Quincas
Borba. Somadas umas coisas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve
míngua nem sobra, e conseguintemente que saí quite com a vida. E imaginará mal;
porque ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo,
que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: - Não tive filhos, não
transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria. (ASSIS, 1997:220)
Machado, sem ser lamuriante ou triste, apresenta aqui, de forma resumida, o estigma da elite
social de vacilantes a que pertence Brás Cubas: não precisa trabalhar para viver. O discurso
machadiano é um discurso de classe, marcado pelo lugar social, ocupado pelos personagens,
mas sua obra não pretende separar as classes, quanto à visão do humano. Para Machado, o
homem, independentemente da classe, é contraditório. O que fica explícito é que Cubas é
alguém para quem nada é digno de muito esforço e luta; é um sátiro, preguiçoso e vacilante e
Quincas é um herdeiro sem grandes objetivos na vida a não ser a busca de prestígio social.
Nas memórias, o diálogo persiste em outro patamar. O defunto-narrador tem liberdade para
confessar seus medos, fraquezas e vícios, já que não teme a opinião pública. Esse é um
expediente formal utilizado por Machado para dar-se a possibilidade de auto-ironia. Brás
Cubas tem um excedente de visão11
, que lhe permite criticar a partir de fora a si e ao outro,
sem fugir do social. Ele é o defunto-autor, traduzindo o ponto de vista axiológico de
Machado12
sobre as relações sociais, o trabalho e as mudanças sociais pelas quais passava sua
época. Assim, traz para a realidade textual as formas de trabalho, existentes no século XIX, e
propagadas discursivamente ou apagados por um discurso mais forte e mais duradouro.
No Brasil, a organização dos ofícios segundo moldes trazidos do reino teve seus efeitos perturbados pelas condições dominantes: preponderância absorvente do
trabalho escravo, indústria caseira capaz de garantir relativa independência aos
11
Conceito elaborado por Bakhtin, que designa a capacidade privilegiada de ver o outro, além de si, exotopicamente, possível apenas porque se está de fora, de outro lugar, único em relação ao que se está narrando ou retratando. 12
O autor Machado de Assis organiza a sua visão de mundo a partir das vozes dos personagens. O romance é sempre um discurso indireto, segundo Bakhtin e o Círculo. O autor “fala” por intermédio das vozes que organiza na obra literária, sendo ele sempre o organizador discursivo.
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ricos, entravando, por outro lado, o comércio, e, finalmente, escassez de artífices livres na maior parte das vilas e cidades. (HOLANDA, 2009:57-58)
E não foram apenas os ofícios que foram organizados à maneira do reino, mas a própria
sociedade brasileira oitocentista vivia uma realidade fora de lugar, deslocada, como diria
Schwarz13
, tendo como resultado da colonização com base no monopólio da terra, a produção
de três classes sociais: o latifundiário, o escravo e o “homem livre”, na verdade dependente. (SCHWARZ, 2012:15-16) As três classes estão indiretamente representadas em Memórias
póstumas, no entanto, esta análise basear-se-á na elite dominante, que embora não seja
latifundiária detém o poder econômico. Consideramos que a ideia de dignidade, reconhecimento e realização pessoal associada a
trabalho é um mito do liberalismo, implantado deslocadamente no país nos séculos de
colonização. As elites vivem em busca de prestígio e quem realmente trabalha é o escravo.
O discurso da “sede de nomeada” e prestígio pelo não-trabalho
Contrapondo-se ao mito discursivo da honra e da dignidade pelo trabalho, seja ele material ou
imaterial, consagrado pela sociedade liberal, está a “sede de nomeada”, designada assim por Machado em Memórias póstumas, que ultrapassa todos os limites da ética. Prevalecem, então,
os discursos de prestígio e ascensão a partir do sonho da nomeação por porte de um diploma.
Os personagens Brás Cubas e Quincas Borba certamente estão inseridos nessa lógica e,
mesmo que a sociedade liberal imponha o trabalho como um dos formadores do destino
histórico do homem, não dão a mínima importância a isso, não trabalham e não se submetem.
Eles cumprem o destino da classe da qual fazem parte. Desconhecem e ignoram a dignidade
ou os benefícios do labor, embora utilizem esses enunciados quando lhes convém. O que realmente importa para ambos é obter prestígio e essa busca está em todas as atitudes
de Cubas, mas não se concretiza facilmente e ele, mesmo não transparecendo, faz pouco caso
de cada uma das tentativas de obtê-la. Trata-se apenas dos sonhos de sua classe.
Eram tantos os castelos que engenhara, tantos e tantíssimos os sonhos, que não
podia vê-los assim esboroados, sem padecer um forte abalo no organismo. (...) Um Cubas! E dizia isso com tal convicção, que eu, já informado da nossa tanoaria,
esqueci um instante a volúvel dama... (ASSIS, 1995:88)
Nessa passagem, o narrador-defunto deixa antever por meio dos sonhos de seu pai, que eram
construídos muitos castelos em torno do ideal de um passado luminoso, pela conquista de um
cargo político ou uma posição de poder. Essas posições de prestígio, por demarcarem
13
Roberto Schwarz (1937) Crítico literário, professor aposentado de Teoria Literária brasileira e estudioso de Machado de Assis, nascido em Viena.
8
fronteiras sociais e econômicas, traziam orgulho aos que as possuíam, e por isso eram seus
objetos de desejo, aos quais mantinham a todo custo e não desejavam perdê-las. Da construção desses castelos e de um futuro promissor fazia parte a entrada do jovem do
século XIX na universidade. Era preciso construir uma história para o passado dos
portugueses que aqui moravam. O personagem-narrador Cubas não poderia passar sem essa
experiência tão comum à sua classe social: o diploma. Porém, demonstra, no capítulo 20, sua
insatisfação com o fato de ter que estudar em Coimbra, a fim de cumprir a vontade de seu pai.
Tinha eu conquistado em Coimbra uma grande nomeada de folião, era um
acadêmico estróina, superficial, tumultuário e petulante, dado às aventuras, fazendo romantismo prático e liberalismo teórico, vivendo na pura fé dos olhos pretos e das
constituições sociais. (ASSIS, 1997:56)
Cubas descreve uma universidade cansativa e um estudante medíocre, que vive em festas e
comemorações fora da sala de aula, porque sabia que o que aprendia ali não mudaria em nada
sua condição de elite. Sua expectativa em relação à vida era outra e os estudos eram mais um
capricho de classe e de família. Mesmo assim, cumpria seu papel social de preparar-se para o
trabalho, obtendo o diploma, que, muitas vezes, é também um componente do discurso do
não-trabalho, no sentido de resguardar o homem do trabalho material. Para compor a trajetória de Brás Cubas, posteriormente à aquisição do diploma, em direção
ao prestígio social, comecemos por sua tentativa de ser escritor:
Mandava artigos e versos para as folhas públicas e cheguei a alcançar certa reputação de polemista e de poeta. Quando me lembrava do Lobo Neves, que era já
deputado, e de Virgília, futura marquesa, perguntava a mim mesmo por que não
seria melhor deputado e melhor marquês do que o Lobo Neves, - eu, que valia mais,
muito mais do que ele, - dizia isto a olhar para a ponta do nariz... (ASSIS, 1997:93)
Porém, ser escritor era pouco para Cubas que queria ser ufanado e glorificado ainda em vida.
Colado ao discurso da glória pelo não-trabalho está o discurso da conquista de uma posição
social de poder, por meio de um cargo político: a candidatura a deputado. E o pai de Brás
Cubas já tinha estabelecido esse objetivo para a vida do filho, quando este retornou dos
estudos universitários em Coimbra: “- Tu; é um homem notável, faz hoje as vezes de
Imperador. (referindo-se ao Príncipe Regente)14
Demais trago comigo uma ideia, um projeto,
ou... sim, digo-te tudo; trago dois projetos, um lugar de deputado e um casamento.” (ASSIS, 1997:65) Ele quer brilhar por meio do filho: “... é preciso continuar o nosso nome, continuá-lo
e ilustrá-lo ainda mais. (...) Teme a obscuridade, Brás; foge do que é ínfimo. Olha que os
homens valem por diferentes modos, e que o mais seguro de todos é valer pela opinião dos
outros homens.” (ASSIS, 1997:69) Seu pai silencia o fato de sua genealogia não ser de boa
14
Grifo da autora.
9
estirpe e diz que quer continuar a ilustrar seu nome. Esse enunciado é reiterado em outras
páginas do livro, como para fortalecer o discurso que reflete a realidade da elite do século
XIX: ter um nome e mantê-lo, ser alguém, é muito importante e para isso não precisam de
trabalho. Aqui, percebe-se um embate claro entre o discurso do trabalho implantado pelas
elites liberais da época em oposição ao do não-trabalho ou do anti-trabalho. Os castelos de seu pai desmoronaram-se, porque Cubas não consegue eleger-se deputado:
perdeu o lugar para Lobo Neves15
. Assim, segue em busca de outra posição: de ministro.
- Por que não serei eu ministro? Esta ideia, rútila e grande, trajada ao bizarro,
como diria o padre Bernardes, - esta ideia começou uma vertigem de cabriolas e eu deixei-me estar com os olhos nela, a achar-lhe graça. (...) – Por que não serás
ministro, Cubas? – Cubas, por que não serás ministro de Estado? (ASSIS,
1997:107)
No entanto, essa é mais uma ideia vacilante que não se concretiza para esse homem já maduro
e sem colocação na vida. Então, surge nova oportunidade ao ser convidado por Lobo Neves,
futuro presidente de uma província no Norte, para ser seu secretário: “- Você é rico, continuou
ele, não precisa de um magro ordenado; mas se quisesse obsequiar-me, ia de secretário
comigo.” (ASSIS, 1997:136) Cubas é um errante profissional, que não precisa de dinheiro,
porque é rico, mas que precisa de uma posição social de destaque. Porém, infelizmente, mais
uma vez o destino ou a sorte16
impede-o de assumir esse cargo que, além de outras
possibilidades, dar-lhe-ia a satisfação da “sede de nomeada”. Ao completar quarenta anos e perder seu filho esperado por sua amante Virgília, Brás Cubas
tem uma crise de consciência e dá-se conta de que: “não era nada, nem simples eleitor de
paróquia. Urgia fazer alguma coisa, ainda por amor de Virgília, que havia de ufanar-se
quando visse luzir o meu nome...” (ASSIS, 1997:160) Contudo, essa atitude é apenas um
drama de consciência passageiro, gerado pela crise da idade, porque não tem qualquer efeito
prático sobre sua vida. É seu amigo Quincas Borba quem o incentiva a voltar a luzir e ao namoro com os aplausos.
Finalmente, aos “quarenta e tantos anos, tão vadios e tão vazios.” (ASSIS, 1997:176), Cubas
vê-se na câmara dos deputados, ao lado de Lobo Neves, realizando um desejo antigo de galgar
a posição de ministro de Estado.
15 Lobo Neves casou-se com a noiva de Cubas, Virgília, moça interesseira e que almeja ser marquesa. Tempos depois, Cubas e Virgília tornam-se amantes.
16 Lobo Neves, marido de Virgília, desiste da nomeação de presidente de província, porque era supersticioso e o decreto veio sob o número 13. Assim, Cubas também perdeu aoportunidade de tornar-se secretário. (ASSIS, 1997:141)
10
Da mesma forma, para Quincas Borba, seu companheiro de colégio, o trabalho não resultava
em nada: não lhe traria dignidade, reconhecimento ou realização pessoal. Quincas, abastado
na infância, experimentara a mendicância, morando na escadaria da Igreja de São Francisco,
por questões familiares. Nessa condição, ele via o trabalho com desdém. Apenas almejava ter
dinheiro para comer: “...Eu nada peço, a não ser dinheiro; dinheiro sim, porque é necessário
comer, e as casas de pasto não fiam. Nem as quitandeiras. Uma coisa de nada, uns dois
vinténs de angu, nem isso fiam as malditas quitandeiras...” (ASSIS, 1997:108- 109) No primeiro encontro casual entre eles, Cubas deu-lhe uma nota de cinco mil-réis, dizendo-
lhe que poderia conseguir muitas mais, na seguinte condição:
- Pois está em suas mãos ver outras muitas, disse eu. - Sim? Acudiu ele, dando um bote para mim. -Trabalhando, concluí eu. (ASSIS, 1997:109)
Uma lente capaz de aproximar-nos da realidade do contexto de Brás Cubas e Quincas Borba é
o discurso do trabalho elaborado por Paul Lafargue17
. Na contramão do Capitalismo e das
ideias marxianas, referindo-se ao apego da sociedade proletária do século XIX ao trabalho,
Lafargue afirma que o amor ao trabalho é uma “estranha loucura”, que apenas existe para
aqueles que não fazem parte da classe burguesa. “O fantasma que ronda a sociedade” é a
forma encontrada pelas classes altas de impor um dever às classes inferiores e projetar-se a si
mesmas socialmente. (LAFARGUE, 1977:15) O narrador-defunto, no contexto da citação anterior, é uma voz enaltecedora do trabalho dos
outros, mas, como já sabemos, não tem qualquer vínculo com a labuta. A cultura do trabalho
dignificante é reforçada pela ideia fixa que ficou na cabeça de Brás Cubas, após o encontro
com Quincas: “A necessidade de o regenerar, de o trazer ao trabalho e ao respeito de sua
pessoa enchia-me o coração; eu começava a sentir um bem-estar, uma elevação, uma
admiração de mim próprio...”. (ASSIS, 1997:111) A atitude de Cubas em relação a Quincas
confirma a visão lafargueana e representa um discurso elitista sobre o trabalho: aqueles que
labutam pouco, e têm muito, costumam afirmar que os que não têm nada é porque não
trabalham. Entretanto, a Quincas lhe é restituído status que tinha anteriormente, como é natural à sua
classe. Em um momento ele é um mendigo capaz de furtar um relógio ao amigo; em outro, é
capaz de devolver o objeto com uma carta, expondo sua transformação. Já não era mais um
morador de rua, vestia-se como um homem de valor, “um desembargador sem beca, um
17
Paul Lafargue (1842-1911): jornalista socialista franco-cubano, escritor e ativista político, que escreveu O direito à preguiça. Casou-se com a segunda filha de Karl Marx, de nome Laura.
11
general sem farda, um negociante sem deficit.” (ASSIS, 1997:170) Segundo Quincas, ele
tinha mudado, devido à pesquisa de um novo sistema de filosofia inovador intitulado
Humanitismo, de Humanitas. Porém, o narrador-defunto acaba admitindo que Quincas havia
herdado alguns pares de contos de réis de um velho tio de Barbacena. Em outras palavras, o
trabalho, ainda que imaterial, não outorga nenhum benefício monetário ou restitui a
dignidade. Apenas por meio de herança, o homem pode transpor a barreira da pobreza. A “sede de nomeada”, como um discurso de longa duração, persiste ao longo da trajetória
final de Brás Cubas e de Quincas Borba. Aos cinquenta anos, com toda a reflexão que essa
etapa da vida traz, o narrador-defunto, já como deputado, aconselhado pelo seu amigo
Quincas, decide intervir nas discussões da Câmara. No seu questionamento mesquinho ao
ministro sobre o tamanho da barretina18
, da guarda nacional, faz um discurso eloquente, mas
irrelevante do ponto de vista político. Assim, também não se faz Ministro de Estado e diz isso
no título de um capítulo, no qual não escreve absolutamente nada, apenas pontilhados:
(.............................................) (ASSIS, 1997:200) Os pontilhados são a representação do
completo vazio em que se encontra o personagem.
Quincas tenta animá-lo, reconhecendo que sua ambição não era pelo poder e sim pelo desejo
de folgar. No entanto, nada o animava, porque ele tinha quase tudo, mas faltava-lhe o
prestígio. O que dava sentido a sua vida era o gosto de ser ouvido e apreciado, a sede de luzir.
Ele tinha simpatia pelas palavras que bajulam, elogiam. Outras tentativas de experimentar a glória em vida surgem para os personagens, como fundar
um jornal, filiar-se a uma Ordem Terceira, publicar um manuscrito sobre filosofia.
Infelizmente, os planos dos amigos não se realizaram, pois nenhuma dessas formas lhes dá o
cartaz que realmente desejam. Assim, o vacilante Brás Cubas volta a estaca zero,
comprovando que nada o move realmente, porque sua classe social tem tudo do que precisa,
não necessitando lutar por nada e Quincas Borba é confirmado por um alienista como louco.
Machado parece querer mostrar-nos que a elite não precisa realmente de conquistas. Ambos, Borba e Cubas morrem sem alcançar prestígio algum, nem pelo trabalho nem pelo
não-trabalho. Borba, na sua semidemência, queima o manuscrito da sua teoria Humanitismo,
que era sua esperança de glória. Cubas, sem concluir a invenção do emplasto Brás Cubas, sem
tornar-se ministro ou califa, morre sem glória, mas conclui que pelo menos teve a sorte de não
comprar o pão com o suor do seu rosto, que é o ideal da sua classe social.
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Chapéu utilizado pelos militares da época.
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Considerações finais
Como já observado, as práticas sociais relativas ao trabalho no século XIX estão
representadas nos discursos da literatura machadiana a partir de vários enunciados. Neste
texto, buscamos apresentar a forma como Machado de Assis expõe sua visão de mundo sobre
a cultura do trabalho, no romance Memórias póstumas. A partir dos personagens Brás Cubas e
Quincas Borba, percebemos que, diferentemente do discurso mítico sobre o trabalho como
forma de alcançar a dignidade, o reconhecimento e a realização pessoal, o que emerge é a
enunciação da necessidade humana de prestígio, de ser ovacionado pelos grandes da
sociedade, ao galgar uma posição de destaque político, econômico ou social, representada
algumas vezes pelo trabalho imaterial ou pelo não-trabalho ou anti-trabalho. Na prática, a
dignificação pelo trabalho não ocorre, pois esses discursos são a todo momento interditados.
Assim, a análise das vozes sobre o trabalho, levou-nos a concluir que a elite burguesa do
Brasil oitocentista, no Rio de Janeiro, representada em Memórias póstumas, fugia ao trabalho,
pois não precisava dele para sobreviver. Embora a cultura do trabalho vocifere na obra, o que
predomina na análise dos dois personagens é o discurso do não-trabalho.
Referências bibliográficas
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