“sede de nomeada” - esocite 2016 · resumo: este texto analisa as construções discursivas...

12
1 A cultura do trabalho como um discurso vociferante, nas vozes de Brás Cubas e Quincas Borba The work culture as a vociferous speech, in the voices of Brás Cubas and Quincas Borba ANGELA MARIA RUBEL FANINI 1 * GILBERTO GNOATO 2 * MARCIA DOS SANTOS LOPES 3 * Resumo: Este texto analisa as construções discursivas sobre a cultura do trabalho, na obra Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), de Machado de Assis, fazendo um recorte discursivo das vozes representadas pelos personagens Brás Cubas e Quincas Borba. Considerando que a palavra no romance ou fora dele está sempre carregada do peso da cultura, que o universo cultural criado pelo autor romanesco reflete e refrata o seu tempo e que não há como afastar a cultura da orientação dialógica da linguagem, já que essa relação pressupõe alteridade e discursividade, fazemos uma Análise Dialógica do Discurso (ADD), baseada nas teorias de Bakhtin e do Círculo. As vozes da enunciação machadiana contrapõem o discurso de longa duração da dignidade, do reconhecimento e da realização pessoal, advindos do trabalho material ou imaterial, ao discurso do não-trabalho ou do anti-trabalho das classes dominantes, que têm “sede de nomeada” por meio da aquisição de um diploma ou de um cargo político. Os aspectos sociológicos da análise basearam-se nas visões do sociólogo brasileiro Sérgio Buarque de Holanda e do crítico literário Roberto Scwarz. Concluiu-se que, para as elites brasileiras oitocentistas, o que prevalecia era a cultura do não- trabalho, da busca de prestígio, como uma herança cultural do período colonial. Palavras-chave: Cultura. Trabalho. Discurso. Cubas e Borba. Machado de Assis. Abstract: This paper analyzes the discursive constructions on the work culture, in the work Posthumous Memories of Brás Cubas (1881), by Machado de Assis, making a discursive * Professora Doutora do Programa de Pós-Graduação em Tecnologia (PPGTE), da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). Bolsista de Produtividade em Pesquisa, CNPq. * Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Tecnologia (PPGTE), da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). * Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Tecnologia (PPGTE), da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR).

Upload: phamque

Post on 10-Dec-2018

213 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

1

A cultura do trabalho como um discurso vociferante,

nas vozes de Brás Cubas e Quincas Borba

The work culture as a vociferous speech,

in the voices of Brás Cubas and Quincas Borba

ANGELA MARIA RUBEL FANINI1*

GILBERTO GNOATO2*

MARCIA DOS SANTOS LOPES3*

Resumo: Este texto analisa as construções discursivas sobre a cultura do trabalho, na obra

Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), de Machado de Assis, fazendo um recorte

discursivo das vozes representadas pelos personagens Brás Cubas e Quincas Borba.

Considerando que a palavra no romance ou fora dele está sempre carregada do peso da

cultura, que o universo cultural criado pelo autor romanesco reflete e refrata o seu tempo e

que não há como afastar a cultura da orientação dialógica da linguagem, já que essa relação

pressupõe alteridade e discursividade, fazemos uma Análise Dialógica do Discurso (ADD),

baseada nas teorias de Bakhtin e do Círculo. As vozes da enunciação machadiana contrapõem

o discurso de longa duração da dignidade, do reconhecimento e da realização pessoal,

advindos do trabalho material ou imaterial, ao discurso do não-trabalho ou do anti-trabalho

das classes dominantes, que têm “sede de nomeada” por meio da aquisição de um diploma ou

de um cargo político. Os aspectos sociológicos da análise basearam-se nas visões do

sociólogo brasileiro Sérgio Buarque de Holanda e do crítico literário Roberto Scwarz.

Concluiu-se que, para as elites brasileiras oitocentistas, o que prevalecia era a cultura do não-

trabalho, da busca de prestígio, como uma herança cultural do período colonial.

Palavras-chave: Cultura. Trabalho. Discurso. Cubas e Borba. Machado de Assis.

Abstract: This paper analyzes the discursive constructions on the work culture, in the work

Posthumous Memories of Brás Cubas (1881), by Machado de Assis, making a discursive

* Professora Doutora do Programa de Pós-Graduação em Tecnologia (PPGTE), da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). Bolsista de Produtividade em Pesquisa, CNPq. * Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Tecnologia (PPGTE), da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). * Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Tecnologia (PPGTE), da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR).

2

cross section by voices brought by Brás Cubas and Quincas Borba characters. Considering

that the word in the novel or out of it is always loaded with the weight of culture, that the

cultural universe created by the novelistic author reflects and refracts its time, and there is not

how to push away culture from language’s dialogical orientation, since this relationship

presupposes otherness and discourse, we make a dialogical analysis, based on the theories of

Bakhtin and the Circle. The voices of Machado’s enunciation reframe the long duration

discourse of dignity, recognition and personal fulfillment originated from material or

immaterial work to non-work or anti-work by the dominant classes who are “named

headquarters”, through the acquisition of a diploma or political office. The sociological

aspects analysis is based on the views of the Brazilian sociologist Sergio Buarque de Hollanda

and the literary critic Roberto Scwarz. We conclude that, to the nineteenth-century Brazilian

elites, what prevailed was the non-work culture, the pursuit for prestige as a cultural

inheritance from the colonial period.

Key words: Culture. Work. Speech. Cubas and Borba. Machado de Assis.

Introdução

Este texto é parte da pesquisa de doutorado em andamento no Programa de Pós-Graduação em

Tecnologia da Universidade Tecnológica Federal do Paraná e visa tratar, especificamente, das

construções discursivas sobre o trabalho na obra Memórias póstumas de Brás Cubas4, de

Machado de Assis5.

Analisaremos algumas das vozes que representam a cultura do trabalho, preconizada

socialmente no tempo de Machado como discurso de longa duração, que propala o labor como

fonte de dignidade, de reconhecimento e realização pessoal. São as vozes dos personagens

Brás Cubas e Quincas Borba, que representam o não-trabalho ou o anti-trabalho, como

constituidor da busca de prestígio, por meio de um diploma e por meio de cargos públicos.

Far-se-á uma Análise Dialógica do Discurso6, na perspectiva de Bakhtin e do Círculo, para a

qual a palavra carrega consigo sempre o peso da cultura; o universo cultural reflete e refrata o

tempo em que se vive, em alteridade e discursividade; e os discursos estão em diálogo

constante entre si. Buscar-se-á reconhecer os discursos já consagrados sobre o trabalho e que

4 Doravante Memórias póstumas. 5 Doravante Machado. 6 Doravante ADD.

3

impõem a manutenção de certa ordem discursiva como um traço cultural e de identidade do

povo brasileiro. Segundo Bakhtin:

Todo discurso concreto (enunciação) encontra aquele objeto para o qual está

voltado sempre, por assim dizer, já desacreditado, contestado, avaliado, envolvido

por sua névoa escura ou, pelo contrário, iluminado pelos discursos de outrem que

já falaram sobre ele. O objeto está amarrado e penetrado por ideias gerais, por

pontos de vista, por apreciações de outros e por entonações. Orientado para o seu

objeto, o discurso penetra neste meio dialogicamente perturbado e tenso de

discursos de outrem, de julgamentos e de entonações. (BAKHTIN, 2010:86)

O romance de Machado, como qualquer outro texto literário canônico, é um discurso em

movimento, e, embora já o encontremos lido e analisado, nem por isso se esgota. Quando

Machado escreve sobre o trabalho, já encontra a ideia de cultura do trabalho discursada.

Porém, sua escrita personaliza o objeto, na sua perspectiva pessoal de autor, além de reduzir

estruturalmente a realidade externa, transformando-a em dados internos à obra. (CANDIDO,

2004) Como analistas do discurso, procuramos revelar a particularidade social do texto

literário machadiano, penetrando na tensão que ele provoca e que se estabelece, ao

analisarmos o discurso em interação com a realidade social e cultural brasileira do século

XIX. No entanto, não desvinculamos essa análise do viés axiológico a que o texto está ligado

moralmente e nem pretendemos analisar o conteúdo da obra, mas os caminhos que conduzem

à produção do discurso da cultura do trabalho. Sabemos que no ato social de trabalhar, o homem relaciona-se com o outro, convive e

estabelece relações de alteridade. No entanto, de posse da palavra, o homem não apenas

trabalha, como também fala e escreve sobre seu trabalho, proferindo palavras sobre o seu

labor. Essas vozes chegam até nós também por intermédio da arte literária e é com esse objeto

que dialogamos, nesta pesquisa.

O mito do trabalho como fonte de dignidade, reconhecimento e realização pessoal

O historiador Sérgio Buarque de Holanda, em seu livro Raízes do Brasil7, afirma que, dentre

tantas características do povo ibérico, que ele julga presentes no caráter do homem

colonizado, está a “invencível repulsa que sempre lhes inspirou toda moral fundada no culto

ao trabalho”, por isso nunca se naturalizou entre os ibéricos “a moderna religião do trabalho e

o apreço à atividade utilitária”. Complementando esse raciocínio, o autor afirma que:

Uma digna ociosidade sempre pareceu mais excelente, e até mais nobilitante, a um

bom português, ou a um espanhol, do que a luta insana pelo pão de cada dia. O que ambos admiram como ideal é uma vida de grande senhor, exclusiva de qualquer

7 HOLANDA, Sérgio B. de. Raízes do Brasil, 1936.

4 esforço, de qualquer preocupação. E assim, enquanto povos protestantes

preconizam e exaltam o esforço manual, as nações ibéricas colocam-se ainda

largamente no ponto de vista da Antiguidade clássica. O que entre elas predomina é

a concepção antiga de que o ócio importa mais que o negócio e de que a atividade

produtora é, em si, menos valiosa que a contemplação e o amor. (HOLANDA,

2009:38)

A moral do trabalho para espanhóis e portugueses representava um “fruto exótico”. Holanda

aponta, ainda, características peculiares aos portugueses, como a ausência de solidariedade, a

não ser que seja por interesse familiar ou entre amigos; a obediência, mesmo sendo rara e

difícil, vista como um bem supremo, entre povos nos quais a vontade de mandar e a

disposição para se cumprir ordens eram igualmente peculiares; e a falta de orgulho de raça, já

que eram mestiços, e de energia para arregaçar as mãos e trabalhar. E talvez lhes faltasse

também hipocrisia para acreditar que deveriam buscar tudo isso pelo trabalho árduo e

estafante, que faria deles homens ricos e respeitados, contrariando o discurso que tudo

organiza ao redor do trabalho. E isso seria uma virtude. Segundo Holanda, os portugueses, no Brasil, buscavam glória e riqueza, sem trabalho e sem

sacrifício, por meio das mãos e dos pés dos negros: “riqueza que custa ousadia, não riqueza

que custa trabalho”. (HOLANDA, 2009:49) E alcançaram esse objetivo facilmente com os

africanos trazidos por meio do comércio negreiro. Essa característica portuguesa tem seus

matizes em vários momentos em Memórias póstumas. Tudo começa pela confissão do

defunto-autor de que a ideia do emplasto, que o levou à morte, influenciou-o, principalmente,

pelo gosto de ver impressas nos jornais, mostradores, folhetos, esquinas, e enfim nas

caixinhas do remédio, estas três palavras: Emplasto Brás Cubas. Em outras palavras: busca de

prestígio. A essa busca chamá-la-emos, como Machado a chamou em suas memórias, de “sede de nomeada”. Era “a outra flor menos amarela e nada mórbida, - o amor da nomeada.”

Era a ideia “trapézio” que o perseguiu durante algum tempo. E continuando:

Para que negá-lo? Eu tinha a paixão do arruído, do cartaz, do foguete de lágrimas.

Talvez os modestos me arguam esse defeito; fio, porém, que esse talento me hão de

reconhecer os hábeis. Assim, a minha idéia trazia duas faces, como as medalhas,

uma virada para o público, outra para mim. De um lado, filantropia e lucro; de

outro, sede de nomeada. Digamos: - amor da glória. (ASSIS, 1997:15)

Ainda na tentativa de apresentar esse sentimento relacionado ao arruído e ao cartaz, Cubas

cita dois tios seus que têm pensamentos opostos sobre o tema. O tio cônego, portanto

religioso, dizia que “o amor da glória temporal era a perdição das almas, que só devem

cobiçar a glória eterna”. Outro tio, militar, afirma que “o amor da glória era a coisa mais

verdadeiramente humana que há no homem, e, conseguintemente, a sua mais genuína feição.” (ASSIS, 1997:15) Dois discursos de longa duração cruzam-se na voz de Brás Cubas: o

5

primeiro de origem religiosa, muito repercutido durante os séculos em que a Igreja Católica

implantou o Cristianismo na colônia, representa um discurso desviante da ideia de acúmulo,

própria do pensamento capitalista, ou seja, induz a pensar que se deve cobiçar e ansiar por

coisas espirituais e não pelas materiais; o segundo discurso, dito por um militar, é terreno e

incentiva a busca da honra, justificando a atitude na essência do homem. Nessa perspectiva, não é o trabalho que é central e essencial na vida do homem, pelo menos

na vida das elites, é o arruído, sem esforço; é o cartaz e a ostentação, chamando a atenção de

todos para si. Holanda atribui esse caráter ao povo ibérico, e Machado coloca-o como um

traço distintivo da sociedade a qual Brás Cubas representa e preconizando o mito do trabalho

como fonte de dignidade, reconhecimento e realização pessoal. Essas vozes gritam nas

palavras do narrador a todo instante, vociferando o discurso do não-trabalho ou do anti-

trabalho, diferentemente do que o discurso dominante faz parecer. No capítulo III de Memórias póstumas, intitulado Genealogia, temos uma pequena noção do

que vem a ser o amor ao prestígio, quando Brás Cubas, personagem-narrador-defunto, explica

ao leitor, de forma bastante irônica como é própria a Machado, sua genealogia, a partir do

sobrenome familiar Cubas. Traça um perfil de sua família como uma possível representação

da sociedade brasileira, formada nos últimos séculos, e da cultura brasileira que

aparentemente venera o trabalho. Conta que o fundador de sua família era um tanoeiro8 de

ofício, “e talvez mau tanoeiro”, Damião Cubas, natural do Rio de Janeiro, ou seja, um

profissional do meio urbano, que teria morrido na penúria e na obscuridade, se apenas

exercesse a tanoaria. Como buscou outras fontes de renda, tornando-se lavrador, plantando,

colhendo e permutando seu produto por bom valor, morreu rico, deixando herança a seu filho

Luís Cubas, um jovem licenciado9 em Coimbra. É a partir do nome desse moço que começa a

família confessa do narrador-defunto, pois sua “verdadeira” família sempre negou a existência

do nome Damião Cubas, reconhecendo apenas o filho, Luís Cubas, como ancestral legítimo,

por este ter sido primado10

no Estado e amigo particular do vice-rei, conde da Cunha. O

antepassado lavrador de Cubas não era alguém que trabalhava na terra de um latifundiário,

por exemplo, era um proprietário, que lavrava sua própria terra e isso dava-lhe mais prestígio

social do que a tanoaria, que é um signo de pobreza.

8 Profissional que fabrica ou conserta tonéis ou pipas. Esses tonéis, dentre outras funções mais admiráveis como conter água, tinham que transportar excrementos das casas para serem jogados ao mar, por meio dos Tigres (ou tigrada), que eram os escravos que os carregavam.

9 Quem possuía título acadêmico à época, em Portugal. 10 Distinguido, apreciável ou notável.

6

Essas referências machadianas mostram como o texto romanesco, ao mesmo tempo em que

reflete a realidade social, cronotópica, refrata-a também, apresentando-a a partir de um olhar

de classe. Uma das vozes aponta para o trabalho como forma de reconhecimento e ascensão

social. Outra voz destaca a genealogia da elite: apagando a herança do trabalho material, que

suja as mãos, e colocando o foco no não-trabalho. No último capítulo, Das Negativas, que

aparentemente está cheio de frustração, Machado estiliza a classe social, na qual seu

personagem está inserido:

Este último capítulo é todo de negativas. Não alcancei a celebridade do emplasto,

não fui ministro, não fui califa, não conheci o casamento. Verdade é que, ao lado

dessas faltas, coube-me a boa fortuna de não comprar o pão com o suor do meu

rosto. Mais; não padeci a morte de Dona Plácida, nem a semidemência do Quincas

Borba. Somadas umas coisas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve

míngua nem sobra, e conseguintemente que saí quite com a vida. E imaginará mal;

porque ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo,

que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: - Não tive filhos, não

transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria. (ASSIS, 1997:220)

Machado, sem ser lamuriante ou triste, apresenta aqui, de forma resumida, o estigma da elite

social de vacilantes a que pertence Brás Cubas: não precisa trabalhar para viver. O discurso

machadiano é um discurso de classe, marcado pelo lugar social, ocupado pelos personagens,

mas sua obra não pretende separar as classes, quanto à visão do humano. Para Machado, o

homem, independentemente da classe, é contraditório. O que fica explícito é que Cubas é

alguém para quem nada é digno de muito esforço e luta; é um sátiro, preguiçoso e vacilante e

Quincas é um herdeiro sem grandes objetivos na vida a não ser a busca de prestígio social.

Nas memórias, o diálogo persiste em outro patamar. O defunto-narrador tem liberdade para

confessar seus medos, fraquezas e vícios, já que não teme a opinião pública. Esse é um

expediente formal utilizado por Machado para dar-se a possibilidade de auto-ironia. Brás

Cubas tem um excedente de visão11

, que lhe permite criticar a partir de fora a si e ao outro,

sem fugir do social. Ele é o defunto-autor, traduzindo o ponto de vista axiológico de

Machado12

sobre as relações sociais, o trabalho e as mudanças sociais pelas quais passava sua

época. Assim, traz para a realidade textual as formas de trabalho, existentes no século XIX, e

propagadas discursivamente ou apagados por um discurso mais forte e mais duradouro.

No Brasil, a organização dos ofícios segundo moldes trazidos do reino teve seus efeitos perturbados pelas condições dominantes: preponderância absorvente do

trabalho escravo, indústria caseira capaz de garantir relativa independência aos

11

Conceito elaborado por Bakhtin, que designa a capacidade privilegiada de ver o outro, além de si, exotopicamente, possível apenas porque se está de fora, de outro lugar, único em relação ao que se está narrando ou retratando. 12

O autor Machado de Assis organiza a sua visão de mundo a partir das vozes dos personagens. O romance é sempre um discurso indireto, segundo Bakhtin e o Círculo. O autor “fala” por intermédio das vozes que organiza na obra literária, sendo ele sempre o organizador discursivo.

7

ricos, entravando, por outro lado, o comércio, e, finalmente, escassez de artífices livres na maior parte das vilas e cidades. (HOLANDA, 2009:57-58)

E não foram apenas os ofícios que foram organizados à maneira do reino, mas a própria

sociedade brasileira oitocentista vivia uma realidade fora de lugar, deslocada, como diria

Schwarz13

, tendo como resultado da colonização com base no monopólio da terra, a produção

de três classes sociais: o latifundiário, o escravo e o “homem livre”, na verdade dependente. (SCHWARZ, 2012:15-16) As três classes estão indiretamente representadas em Memórias

póstumas, no entanto, esta análise basear-se-á na elite dominante, que embora não seja

latifundiária detém o poder econômico. Consideramos que a ideia de dignidade, reconhecimento e realização pessoal associada a

trabalho é um mito do liberalismo, implantado deslocadamente no país nos séculos de

colonização. As elites vivem em busca de prestígio e quem realmente trabalha é o escravo.

O discurso da “sede de nomeada” e prestígio pelo não-trabalho

Contrapondo-se ao mito discursivo da honra e da dignidade pelo trabalho, seja ele material ou

imaterial, consagrado pela sociedade liberal, está a “sede de nomeada”, designada assim por Machado em Memórias póstumas, que ultrapassa todos os limites da ética. Prevalecem, então,

os discursos de prestígio e ascensão a partir do sonho da nomeação por porte de um diploma.

Os personagens Brás Cubas e Quincas Borba certamente estão inseridos nessa lógica e,

mesmo que a sociedade liberal imponha o trabalho como um dos formadores do destino

histórico do homem, não dão a mínima importância a isso, não trabalham e não se submetem.

Eles cumprem o destino da classe da qual fazem parte. Desconhecem e ignoram a dignidade

ou os benefícios do labor, embora utilizem esses enunciados quando lhes convém. O que realmente importa para ambos é obter prestígio e essa busca está em todas as atitudes

de Cubas, mas não se concretiza facilmente e ele, mesmo não transparecendo, faz pouco caso

de cada uma das tentativas de obtê-la. Trata-se apenas dos sonhos de sua classe.

Eram tantos os castelos que engenhara, tantos e tantíssimos os sonhos, que não

podia vê-los assim esboroados, sem padecer um forte abalo no organismo. (...) Um Cubas! E dizia isso com tal convicção, que eu, já informado da nossa tanoaria,

esqueci um instante a volúvel dama... (ASSIS, 1995:88)

Nessa passagem, o narrador-defunto deixa antever por meio dos sonhos de seu pai, que eram

construídos muitos castelos em torno do ideal de um passado luminoso, pela conquista de um

cargo político ou uma posição de poder. Essas posições de prestígio, por demarcarem

13

Roberto Schwarz (1937) Crítico literário, professor aposentado de Teoria Literária brasileira e estudioso de Machado de Assis, nascido em Viena.

8

fronteiras sociais e econômicas, traziam orgulho aos que as possuíam, e por isso eram seus

objetos de desejo, aos quais mantinham a todo custo e não desejavam perdê-las. Da construção desses castelos e de um futuro promissor fazia parte a entrada do jovem do

século XIX na universidade. Era preciso construir uma história para o passado dos

portugueses que aqui moravam. O personagem-narrador Cubas não poderia passar sem essa

experiência tão comum à sua classe social: o diploma. Porém, demonstra, no capítulo 20, sua

insatisfação com o fato de ter que estudar em Coimbra, a fim de cumprir a vontade de seu pai.

Tinha eu conquistado em Coimbra uma grande nomeada de folião, era um

acadêmico estróina, superficial, tumultuário e petulante, dado às aventuras, fazendo romantismo prático e liberalismo teórico, vivendo na pura fé dos olhos pretos e das

constituições sociais. (ASSIS, 1997:56)

Cubas descreve uma universidade cansativa e um estudante medíocre, que vive em festas e

comemorações fora da sala de aula, porque sabia que o que aprendia ali não mudaria em nada

sua condição de elite. Sua expectativa em relação à vida era outra e os estudos eram mais um

capricho de classe e de família. Mesmo assim, cumpria seu papel social de preparar-se para o

trabalho, obtendo o diploma, que, muitas vezes, é também um componente do discurso do

não-trabalho, no sentido de resguardar o homem do trabalho material. Para compor a trajetória de Brás Cubas, posteriormente à aquisição do diploma, em direção

ao prestígio social, comecemos por sua tentativa de ser escritor:

Mandava artigos e versos para as folhas públicas e cheguei a alcançar certa reputação de polemista e de poeta. Quando me lembrava do Lobo Neves, que era já

deputado, e de Virgília, futura marquesa, perguntava a mim mesmo por que não

seria melhor deputado e melhor marquês do que o Lobo Neves, - eu, que valia mais,

muito mais do que ele, - dizia isto a olhar para a ponta do nariz... (ASSIS, 1997:93)

Porém, ser escritor era pouco para Cubas que queria ser ufanado e glorificado ainda em vida.

Colado ao discurso da glória pelo não-trabalho está o discurso da conquista de uma posição

social de poder, por meio de um cargo político: a candidatura a deputado. E o pai de Brás

Cubas já tinha estabelecido esse objetivo para a vida do filho, quando este retornou dos

estudos universitários em Coimbra: “- Tu; é um homem notável, faz hoje as vezes de

Imperador. (referindo-se ao Príncipe Regente)14

Demais trago comigo uma ideia, um projeto,

ou... sim, digo-te tudo; trago dois projetos, um lugar de deputado e um casamento.” (ASSIS, 1997:65) Ele quer brilhar por meio do filho: “... é preciso continuar o nosso nome, continuá-lo

e ilustrá-lo ainda mais. (...) Teme a obscuridade, Brás; foge do que é ínfimo. Olha que os

homens valem por diferentes modos, e que o mais seguro de todos é valer pela opinião dos

outros homens.” (ASSIS, 1997:69) Seu pai silencia o fato de sua genealogia não ser de boa

14

Grifo da autora.

9

estirpe e diz que quer continuar a ilustrar seu nome. Esse enunciado é reiterado em outras

páginas do livro, como para fortalecer o discurso que reflete a realidade da elite do século

XIX: ter um nome e mantê-lo, ser alguém, é muito importante e para isso não precisam de

trabalho. Aqui, percebe-se um embate claro entre o discurso do trabalho implantado pelas

elites liberais da época em oposição ao do não-trabalho ou do anti-trabalho. Os castelos de seu pai desmoronaram-se, porque Cubas não consegue eleger-se deputado:

perdeu o lugar para Lobo Neves15

. Assim, segue em busca de outra posição: de ministro.

- Por que não serei eu ministro? Esta ideia, rútila e grande, trajada ao bizarro,

como diria o padre Bernardes, - esta ideia começou uma vertigem de cabriolas e eu deixei-me estar com os olhos nela, a achar-lhe graça. (...) – Por que não serás

ministro, Cubas? – Cubas, por que não serás ministro de Estado? (ASSIS,

1997:107)

No entanto, essa é mais uma ideia vacilante que não se concretiza para esse homem já maduro

e sem colocação na vida. Então, surge nova oportunidade ao ser convidado por Lobo Neves,

futuro presidente de uma província no Norte, para ser seu secretário: “- Você é rico, continuou

ele, não precisa de um magro ordenado; mas se quisesse obsequiar-me, ia de secretário

comigo.” (ASSIS, 1997:136) Cubas é um errante profissional, que não precisa de dinheiro,

porque é rico, mas que precisa de uma posição social de destaque. Porém, infelizmente, mais

uma vez o destino ou a sorte16

impede-o de assumir esse cargo que, além de outras

possibilidades, dar-lhe-ia a satisfação da “sede de nomeada”. Ao completar quarenta anos e perder seu filho esperado por sua amante Virgília, Brás Cubas

tem uma crise de consciência e dá-se conta de que: “não era nada, nem simples eleitor de

paróquia. Urgia fazer alguma coisa, ainda por amor de Virgília, que havia de ufanar-se

quando visse luzir o meu nome...” (ASSIS, 1997:160) Contudo, essa atitude é apenas um

drama de consciência passageiro, gerado pela crise da idade, porque não tem qualquer efeito

prático sobre sua vida. É seu amigo Quincas Borba quem o incentiva a voltar a luzir e ao namoro com os aplausos.

Finalmente, aos “quarenta e tantos anos, tão vadios e tão vazios.” (ASSIS, 1997:176), Cubas

vê-se na câmara dos deputados, ao lado de Lobo Neves, realizando um desejo antigo de galgar

a posição de ministro de Estado.

15 Lobo Neves casou-se com a noiva de Cubas, Virgília, moça interesseira e que almeja ser marquesa. Tempos depois, Cubas e Virgília tornam-se amantes.

16 Lobo Neves, marido de Virgília, desiste da nomeação de presidente de província, porque era supersticioso e o decreto veio sob o número 13. Assim, Cubas também perdeu aoportunidade de tornar-se secretário. (ASSIS, 1997:141)

10

Da mesma forma, para Quincas Borba, seu companheiro de colégio, o trabalho não resultava

em nada: não lhe traria dignidade, reconhecimento ou realização pessoal. Quincas, abastado

na infância, experimentara a mendicância, morando na escadaria da Igreja de São Francisco,

por questões familiares. Nessa condição, ele via o trabalho com desdém. Apenas almejava ter

dinheiro para comer: “...Eu nada peço, a não ser dinheiro; dinheiro sim, porque é necessário

comer, e as casas de pasto não fiam. Nem as quitandeiras. Uma coisa de nada, uns dois

vinténs de angu, nem isso fiam as malditas quitandeiras...” (ASSIS, 1997:108- 109) No primeiro encontro casual entre eles, Cubas deu-lhe uma nota de cinco mil-réis, dizendo-

lhe que poderia conseguir muitas mais, na seguinte condição:

- Pois está em suas mãos ver outras muitas, disse eu. - Sim? Acudiu ele, dando um bote para mim. -Trabalhando, concluí eu. (ASSIS, 1997:109)

Uma lente capaz de aproximar-nos da realidade do contexto de Brás Cubas e Quincas Borba é

o discurso do trabalho elaborado por Paul Lafargue17

. Na contramão do Capitalismo e das

ideias marxianas, referindo-se ao apego da sociedade proletária do século XIX ao trabalho,

Lafargue afirma que o amor ao trabalho é uma “estranha loucura”, que apenas existe para

aqueles que não fazem parte da classe burguesa. “O fantasma que ronda a sociedade” é a

forma encontrada pelas classes altas de impor um dever às classes inferiores e projetar-se a si

mesmas socialmente. (LAFARGUE, 1977:15) O narrador-defunto, no contexto da citação anterior, é uma voz enaltecedora do trabalho dos

outros, mas, como já sabemos, não tem qualquer vínculo com a labuta. A cultura do trabalho

dignificante é reforçada pela ideia fixa que ficou na cabeça de Brás Cubas, após o encontro

com Quincas: “A necessidade de o regenerar, de o trazer ao trabalho e ao respeito de sua

pessoa enchia-me o coração; eu começava a sentir um bem-estar, uma elevação, uma

admiração de mim próprio...”. (ASSIS, 1997:111) A atitude de Cubas em relação a Quincas

confirma a visão lafargueana e representa um discurso elitista sobre o trabalho: aqueles que

labutam pouco, e têm muito, costumam afirmar que os que não têm nada é porque não

trabalham. Entretanto, a Quincas lhe é restituído status que tinha anteriormente, como é natural à sua

classe. Em um momento ele é um mendigo capaz de furtar um relógio ao amigo; em outro, é

capaz de devolver o objeto com uma carta, expondo sua transformação. Já não era mais um

morador de rua, vestia-se como um homem de valor, “um desembargador sem beca, um

17

Paul Lafargue (1842-1911): jornalista socialista franco-cubano, escritor e ativista político, que escreveu O direito à preguiça. Casou-se com a segunda filha de Karl Marx, de nome Laura.

11

general sem farda, um negociante sem deficit.” (ASSIS, 1997:170) Segundo Quincas, ele

tinha mudado, devido à pesquisa de um novo sistema de filosofia inovador intitulado

Humanitismo, de Humanitas. Porém, o narrador-defunto acaba admitindo que Quincas havia

herdado alguns pares de contos de réis de um velho tio de Barbacena. Em outras palavras, o

trabalho, ainda que imaterial, não outorga nenhum benefício monetário ou restitui a

dignidade. Apenas por meio de herança, o homem pode transpor a barreira da pobreza. A “sede de nomeada”, como um discurso de longa duração, persiste ao longo da trajetória

final de Brás Cubas e de Quincas Borba. Aos cinquenta anos, com toda a reflexão que essa

etapa da vida traz, o narrador-defunto, já como deputado, aconselhado pelo seu amigo

Quincas, decide intervir nas discussões da Câmara. No seu questionamento mesquinho ao

ministro sobre o tamanho da barretina18

, da guarda nacional, faz um discurso eloquente, mas

irrelevante do ponto de vista político. Assim, também não se faz Ministro de Estado e diz isso

no título de um capítulo, no qual não escreve absolutamente nada, apenas pontilhados:

(.............................................) (ASSIS, 1997:200) Os pontilhados são a representação do

completo vazio em que se encontra o personagem.

Quincas tenta animá-lo, reconhecendo que sua ambição não era pelo poder e sim pelo desejo

de folgar. No entanto, nada o animava, porque ele tinha quase tudo, mas faltava-lhe o

prestígio. O que dava sentido a sua vida era o gosto de ser ouvido e apreciado, a sede de luzir.

Ele tinha simpatia pelas palavras que bajulam, elogiam. Outras tentativas de experimentar a glória em vida surgem para os personagens, como fundar

um jornal, filiar-se a uma Ordem Terceira, publicar um manuscrito sobre filosofia.

Infelizmente, os planos dos amigos não se realizaram, pois nenhuma dessas formas lhes dá o

cartaz que realmente desejam. Assim, o vacilante Brás Cubas volta a estaca zero,

comprovando que nada o move realmente, porque sua classe social tem tudo do que precisa,

não necessitando lutar por nada e Quincas Borba é confirmado por um alienista como louco.

Machado parece querer mostrar-nos que a elite não precisa realmente de conquistas. Ambos, Borba e Cubas morrem sem alcançar prestígio algum, nem pelo trabalho nem pelo

não-trabalho. Borba, na sua semidemência, queima o manuscrito da sua teoria Humanitismo,

que era sua esperança de glória. Cubas, sem concluir a invenção do emplasto Brás Cubas, sem

tornar-se ministro ou califa, morre sem glória, mas conclui que pelo menos teve a sorte de não

comprar o pão com o suor do seu rosto, que é o ideal da sua classe social.

18

Chapéu utilizado pelos militares da época.

12

Considerações finais

Como já observado, as práticas sociais relativas ao trabalho no século XIX estão

representadas nos discursos da literatura machadiana a partir de vários enunciados. Neste

texto, buscamos apresentar a forma como Machado de Assis expõe sua visão de mundo sobre

a cultura do trabalho, no romance Memórias póstumas. A partir dos personagens Brás Cubas e

Quincas Borba, percebemos que, diferentemente do discurso mítico sobre o trabalho como

forma de alcançar a dignidade, o reconhecimento e a realização pessoal, o que emerge é a

enunciação da necessidade humana de prestígio, de ser ovacionado pelos grandes da

sociedade, ao galgar uma posição de destaque político, econômico ou social, representada

algumas vezes pelo trabalho imaterial ou pelo não-trabalho ou anti-trabalho. Na prática, a

dignificação pelo trabalho não ocorre, pois esses discursos são a todo momento interditados.

Assim, a análise das vozes sobre o trabalho, levou-nos a concluir que a elite burguesa do

Brasil oitocentista, no Rio de Janeiro, representada em Memórias póstumas, fugia ao trabalho,

pois não precisava dele para sobreviver. Embora a cultura do trabalho vocifere na obra, o que

predomina na análise dos dois personagens é o discurso do não-trabalho.

Referências bibliográficas

ASSIS, Manuel M. Memórias póstumas de Brás Cubas. Rio de Janeiro: Ediouro, 1997.

BAKHTIN, Mikhail M. Questões de Literatura e de Estética: A Teoria do Romance 6ª ed. Trad. Aurora Fornoni Bernardini, José Pereira Júnior, Augusto Goés Júnior, Helena Spryndis Nazário e Homero Freitas de Andrade, São Paulo: Hucitec, 2010.

CANDIDO, Antonio. Dialética da Malandragem In.: O discurso e as cidades. São Paulo/Rio de Janeiro: Duas cidades e Ouro sobre o azul, 1992.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26ª Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

LAFARGUE, Paul. O direito à preguiça e outros textos. Trad. Maria Flor Marques Simões. Lisboa: Editorial Estampa, 1977.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. O manifesto comunista. São Paulo: Paz e Terra, 1997.

SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas Forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. 6ª ed. São Paulo: Duas cidades/Editora 34, 2012.