revista de estudos judaicos - dor de letra - cesar rios

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______ REVISTA DE ESTUDOS JUDAICOS. v. 8, p. 68-84. Belo Horizonte, 2009-2010 HESCHEL, Abraham Joshua. Deus em busca do homem. São Paulo: Paulinas, 1975. ___ o Tbe Earth Is tbe Lord's: The lnner World of the Jew in Eastern Europe. Woodstock, VT:Jewish Lights, 1995. ___ o O homem àproCtlra de Deus. São Paulo: Paulinas, 1974a. ___ o O homem não está só. São Paulo: Paulinas, 1974b. ___ o A Passionfor T rutb. Woodstock, VT: Jewish Lights, 1973. ___ o Tbe Propbets. Nova York: Harper Perennial Modern Classics, 2001. (perennial Classics). ___ o O Schabat. São Paulo: Perspectiva, 2000. (Elos, 49). ___ o O último dosprofetas. São Paulo: Manole, 2002. LEONE, Alexandre Goes. A imagem divina e opó da terra: humanismo sagrado e crítica da modernidade em A. J. Heschel. São Paulo: Humanitas, 2002. ___ o A oração como experiência rnistica em Abraham J. Heschel. Revista de Estudos da Religião, São Paulo, n. 4, p. 42-53, 2003. LOWY, Michael. Romantismo e messianismo: ensaios sobre Lukács e Benjamin. São Paulo: Perspectiva; Edusp, 1990. p. 131-188. (Debates, 234). MATZLIAH, Melamed. Sidur Teft//at Matzliah. Miarni Beach: Cuban Sephardic Hebrew Congregation, 1966. MEYER, Marshall T. ln Memorian. 10: HESCHEL, Abraham Joshua. O últifl'1o dosprofetas. São Paulo: Manole, 2002. 84 4 Dor de letra: relatos de sofrimento em Fílon de Alexandria e Primo Levi Cesar Motta Rios Neste ensaio,pretendo observar a maneira comoFilon e Levi lidam com o ato de narrar o sofrimento imposto aosjudeus de seu tempo. Não se trata de uma comparação entre dois eventos históricos (a perseguição aosjudeus alexandrinos em meados do século 1 e a Shoá, no século20), mas entre as maneiras de se colocarcomo narrado r dessesfatos. Ambos optam pela palavra como meio de sua expressão, mas também reconhecemas limitações desse "órgão" e, em algum momento, recorrem a uma forma específicadele (apoesia, palavra-arte) e ao corpo (o corpo narrado) para precisar o que contam. Esse aspecto deve ser explorado com algum cuidado nas páginas que seguem,juntamente com uma indagação inicial' em que medida os relatos de Filon podem ser considerados "testemunhos literários"juntamente com os de Primo Levi? {Fílon de Alexandria; Primo Levi; testemunhos literários} Introdução Há um perigo constante em reflexões como a que proponho: a va- lorização exagerada das semelhanças. A aproximação entre os relatos de Fílon e Primo Levi poderia levar à conclusão de que o que teve lugar na Alexandria do século 1 foi uma prévia do que viria a acontecer na Euro- pa do século 20. Seduzido pela semelhança, alguém concluiria mais do que o indicado pelos dados. Não é esse o caminho que pretendo trilhar. Os eventos históricos, com suas proximidades e distanciamentos, têm um papel secundário nesta reflexão. O conteúdo do enunciado só será interes- sante na medida em que revelar algo sobre a maneira da enunciação. 85

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Page 1: Revista de estudos judaicos - dor de letra - cesar rios

______ REVISTA DE ESTUDOS JUDAICOS. v. 8, p. 68-84. Belo Horizonte, 2009-2010

HESCHEL, Abraham Joshua. Deus em busca do homem. São Paulo: Paulinas, 1975.

___ o Tbe Earth Is tbe Lord's: The lnner World of the Jew in Eastern Europe.Woodstock, VT:Jewish Lights, 1995.

___ o O homem àproCtlra de Deus. São Paulo: Paulinas, 1974a.

___ o O homem não está só. São Paulo: Paulinas, 1974b.

___ o A Passionfor Trutb. Woodstock, VT: Jewish Lights, 1973.

___ o Tbe Propbets. Nova York: Harper Perennial Modern Classics, 2001.(perennial Classics).

___ o O Schabat. São Paulo: Perspectiva, 2000. (Elos, 49).

___ o O último dosprofetas. São Paulo: Manole, 2002.

LEONE, Alexandre Goes. A imagem divina e opó da terra: humanismo sagrado ecrítica da modernidade em A. J. Heschel. São Paulo: Humanitas, 2002.

___ o A oração como experiência rnistica em Abraham J. Heschel. Revista deEstudos da Religião, São Paulo, n. 4, p. 42-53, 2003.

LOWY, Michael. Romantismo e messianismo: ensaios sobre Lukács e Benjamin. SãoPaulo: Perspectiva; Edusp, 1990. p. 131-188. (Debates, 234).

MATZLIAH, Melamed. Sidur Teft//at Matzliah. Miarni Beach: Cuban SephardicHebrew Congregation, 1966.

MEYER, Marshall T. ln Memorian. 10: HESCHEL, Abraham Joshua. O últifl'1odosprofetas. São Paulo: Manole, 2002.

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4 Dor de letra: relatosde sofrimento em Fílonde Alexandria e Primo Levi

Cesar Motta Rios

Neste ensaio,pretendo observar a maneira comoFilon eLevi lidam com o ato de narraro sofrimento imposto aosjudeus de seu tempo. Não se trata de uma comparação entredois eventos históricos (a perseguição aosjudeus alexandrinos em meados do século 1 ea Shoá, no século20), mas entre as maneiras de se colocarcomo narrado r dessesfatos.Ambos optam pela palavra como meio de sua expressão, mas também reconhecemaslimitações desse "órgão" e, em algum momento, recorrem a uma forma específicadele(apoesia, palavra-arte) e ao corpo (o corpo narrado) para precisar o que contam. Esseaspecto deve ser explorado com algum cuidado nas páginas que seguem,juntamentecom uma indagação inicial' em que medida os relatos de Filon podem ser considerados"testemunhos literários"juntamente com os de Primo Levi?{Fílon deAlexandria; Primo Levi; testemunhos literários}

Introdução

Há um perigo constante em reflexões como a que proponho: a va-lorização exagerada das semelhanças. A aproximação entre os relatos deFílon e Primo Levi poderia levar à conclusão de que o que teve lugar naAlexandria do século 1 foi uma prévia do que viria a acontecer na Euro-pa do século 20. Seduzido pela semelhança, alguém concluiria mais doque o indicado pelos dados. Não é esse o caminho que pretendo trilhar.Os eventos históricos, com suas proximidades e distanciamentos, têm umpapel secundário nesta reflexão. O conteúdo do enunciado só será interes-sante na medida em que revelar algo sobre a maneira da enunciação.

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Como Fílon e Levi se colocam como narradores? Por que e paraque narram o que narram? São ambos "testemunhas"? Como se relacio-nam com a mediação da linguagem e o que fazem para lidar com suaslimitações? Essas são as perguntas que nortearão o pensamento para esteescrito, à medida que palavras dos próprios autores serão evocadas paraele. De Primo Levi, abordo sobretudo o livro É isto um homem? Para ocaso de Fílon, considerarei Contra Flaco, que narra os eventos da perse-guição sofrida pelos judeus alexandrinos em 38 E.C, quando Aula AvilioPlaca ocupava o cargo de "prefeito". Ademais, observarei Embaixada aCalígula, que, poucos anos mais tarde, recupera eventos de Contra Flaco,enquanto conta sobre uma embaixada enviada pelos judeus ao impera-dor romano Caio Caligula com o intuito de solicitar o direito à cidadaniaalexandrina. Fílon era um dos representantes dos judeus. Os gregos dacidade também haviam enviado uma embaixada com objetivo contrá-rio: impedir a aquisição de direitos por parte dos conterrâneos judeus.Durante a embaixada, é revelado o intento de Caligula de colocar umaimagem sua dentro do Templo em Jerusalém. Embora ambos os trata-dos tenham forte teor político, cada qual revela uma tentativa diferentede lidar com a linguagem e com o lugar do narrador, o que deverá serexplicitado ao longo deste ensaio.

Lugares da testemunha

Uma dúvida que pretendo resolver ao longo desta reflexão é justa-mente a possibilidade de se classificar os referidos escritos filônicos como"testemunhos literários". Um caminho viável para aproximar-me de umaconclusão parece ser a comparação da maneira como Fílon ocupa a fun-ção de narrado r dos eventos que o cercam com a maneira de alguém hojeconsiderado (quase unanimemente) uma testemunha. Giorgio Agambenafirma de modo determinado: "Um tipo perfeito de testemunha é PrimoLevi" (AGAMBEN, 2008, p. 26).

O filósofo procura nos termos latinos utilizados para referir-se àtestemunha algum esclarecimento sobre essa condição. Testis é aquele quese coloca como terceiro em um litígio entre duas partes. Já superstes é osobrevivente, aquele que "atravessou até o final um evento e pode, por-tanto, dar testemunho disso" (AGAMBEN, 2008, p. 27). De inicio, fica

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claro que Levi não é um testis. Ele não pode colocar-se como terceiro,porque está incluído no evento de maneira radical. Por isso também, elenão pode colaborar de modo neutro para um julgamento. Em princípio, eleseria então um superstes, afinal, esteve no Lager e saiu vivo, tatuado paracontar. Adiante, porém, ao deparar-se com a figura do "muçulmano","a testemunha integral" que, paradoxalmente, não tem condição de relataro que viveu depois de "tocar afundo", Agamben parece reconsiderar acondição de Levi. Ele não experimentou o Lager em sua completude, atéo limite de sua atrocidade. Outro termo latino é evocado pelo filósofo:auctor. Este é aquele que concede (e tem autoridade para tanto) autori-zação àquele que dela carece. Assim, o auctor supre uma incapacidade daoutra parte.

E assim como o ato do auctor completa o do incapaz, dá força deprova ao que, em si, falta, e vida ao que por si só não poderia viver,pode-se afirmar, ao contrário, que é o ato imperfeito ou a incapa-cidade que o precedem e que ele vem a integrar que dá sentido aoato ou à palavra do aflclor-testemunha. Um ato de autor que tivesse apretensão de valer por si é um sem-sentido, assim como o testemu-nho do sobrevivente é verdadeiro e tem razão de ser unicamente sevier a integrar o de quem não pode dar testemunho (AGA1vfBEN,2008, p. 151).

Há, pois, duas partes. Há, também, uma relação de comunhão entreelas. Ou seja, o testemunho perde sua aura de unicidade e individuali-dade (da experiência) e torna-se comunitário. A relação é de comum in-terdependência. O que se cala (o "muçulmano", no caso da Shoa') existe(isto é, se sustenta) no mundo depois de si a partir do testemunho dosobrevivente. Este só é testemunha na medida em que é cocriador, tra-balhando com o preexistente, o silêncio do outro (que lhe dá a possibi-lidade da voz).

Assim, parece que Agamben encontra o lugar de Primo Levi e ocaracteriza minimamente a partir dos termos latinos. Inquieto-me: qualdesses três termos se refere melhor a Fílon? Apresento a seguir pequenostrechos de Contra Flaco para buscar alguma compreensão do teor do texto.Vejamos um primeiro:

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Pois, poucos dias depois, ele [Flaco] estabelece um edito, por meio doqual nos nomeava estrangeiros e imigrantes, sem ter-nos concedido apalavra, mas sim sentenciando-nos sem julgamento. O que seria umaproclamação de tirania maior que isso? Ele mesmo se fazendo todas ascoisas (acusador, inimigo, testemunha, juiz, carrasco ...). Assim, aos doisprimeiros [erros] acrescentou um terceiro, ao permitir aos que quises-sem, como em conquistas de guerra, saquear os judeus.

E o que fazem os que receberam a imunidade? Há cinco partes da cida-de, nomeadas com os primeiros elementos da voz em letras [isto é, doalfabeto]. Destas, duas são ditas "judaicas", pelo fato de nelas habitar amaior parte dos judeus (também nas demais moram não poucos espa-lhados). O que fizeram então? Expulsaram osjude«: de quatro "letras"e os forçaram a ir para uma pequeníssima parte de uma delas (pHILO,1995a, p. 54-55. Grifos meus).'

Além de revelar a natureza da perseguição que teve lugar em Alexan-dria, esse trecho revela um problema relacionado à posição que Filon ocu-pa no evento. De início, ele, por ser também judeu, se inclui entre os quesão nomeados "estrangeiros e imigrantes": "nos nomeava" (hemás apekález).Em seguida, contudo, ele se refere aos expulsos como "os judeus" (toiuIoudaíotls), não explicitando sua participação na experiência. Ele parece estarausente do padecimento em si. Diferente de Levi, em alguns momentos Fí-lon, aparentemente, se coloca como espectador mais que como aquele quevivencia os eventos, como no trecho que a seguir exponho. Após explicitaras nefastas consequências econômicas da formação desse "gueto" judeuem uma das cinco partes de Alexandria, Filon passa a narrar os sofrimentosfísicos impostos sobre aqueles que saiam dos limites recém-estabelecidos:

Malfadados! Pois, imediatamente, tendo sido capturados pelos que ha-viam fortificado a "populachocracia", eram dolosamente assassinadose, sendo puxados e levados por toda a cidade, eram largados, quando jánão restava nenhuma parte que pudesse ter parte em um sepultamento.

E os enlouquecidos sob uma selvageria, [levados] a uma natureza deferas, subjugaram e mataram ainda outros milhares com multiface-tadas formas de males praticadas com vistas a uma dura crueldade.Eles expulsavam aqueles dentre os judeus que por acaso apareciam em

I Esta tradução, como todas as da obra de Filon apresentadas neste texto, é de minha responsabilidade e

elaborada a partir do texto em grego.

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qualquer lugar, ou com paus os espancavam, lançando os golpes nãoimediatamente sobre as partes vitais, para que não acontecesse que,chegando a termo rapidamente, rapidamente também escapassem dapercepção das dores. Mas alguns que agiam com audácia jovial pelaimunidade e licença das circunstâncias, desconsiderando as armas maisvagarosas, erguiam as mais eficazes de todas, fogo e aço. Muitos foramaniquilados com espadas, e não poucos, por sua vez, foram mortoscom fogo. E os mais sem compaixão de todos queimaram nesse mo-mento famílias inteiras, homens junto com as mulheres, filhos infan-tes junto com progenitores, em plena cidade, não tendo piedade nempara com velhice, nem juventude, nem para com a idade sem maldadedas crianças. E quando quer que estivesse em falta a lenha de árvores,ajuntando gravetos matavam com fumaça, mais gue com fogo, arquite-tando uma destruição mais digna de piedade e mais prolongada para osmiseráveis, cujos corpos semigueimados jaziam confusamente. Dura edolorosíssima visão! (pHILO, 1995a, p. 65-68).

O padecimento do narrado r se limita à dor da visão, não chegan-do a inserir-se como alvo direto da violência. Além disso, as vítimas nãosão nomeadas ou identificadas como parentes ou pessoas de seu convíviopróximo. São alguns dentre os judeus. Por ser ele também um judeu, en-tendemos que está implicado; no entanto, ele parece não estar inseridoexplicitamente no acontecimento.

Por isso, talvez seja difícil identificar Fílon como sobrevivente (supers-tes), ademais de não poder-se localizar com clareza sua situação durante oocorrido. Éprovável que também ele estivesse entre os judeus encurraladosnuma pequena parte da cidade. Mas, ainda que isso seja verossímil, nãotransparece no discurso. De alguma forma, ele se descola do grupo com oqual está identificado para narrar, como observador, o sofrimento dos seus.!

Restam, pois, duas opções entre as arroladas por Agamben: testis eauctor. Ambos os termos revelam algo sobre o lugar ocupado por Filon.De fato, ele parece procurar o lugar de testis, do terceiro, ao ausentar-sedas cenas e referir-se aos seus, em alguns momentos, como "os judeus".

2 Fllon não exclui 05 judeus mais abastados dos sofrimentos impostos pelos gregos, mas é possivel que a

posição que sua família ocupava lhe permitisse algum beneficio. Os filonistas são unãnimes sobre a riquezada família de Fllon. Um conhecido parente foi Alexandre. seu irmão. que exercia uma função burocrática oupolftica em Alexandria referida pelo titulo de alabarca, e que era extremamente rico pelo que se sabe a partir

dos relatos de Flávio Josefo (ver, por exemplo: ARNALDEZ, 1961, p. 18; BORGEN, 2005, p. 14-15; MARTIN,2009, p. 13-14).

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Ademais, diferente de Levi, ele não só assume a possibilidade de um julga-mento, como procura demonstrar a culpa daqueles a quem considera seusalgozes". É considerável, por exemplo, que quase a metade de Contra Placaseja dedicada à narrativa do destino que coube ao "prefeito" de Alexandria_ exílio e morte -, segundo Fílon, uma punição providenciada por D'us.Assim conclui-se o tratado: "Tais coisas Flaco sofreu também, tornando--se a prova mais livre de mentira de que a etnia dos judeus não foi privadado socorro da parte de Deus" (pHILO, 1995a, p. 191). Notável a utiliza-ção do termo prova (pístis), emprestado do vocabulário jurídico.

Parece razoável, então, compreender que Fílon procura, de fato,narrar fatos com vistas a uma acusação, ou à justificação de um julgamen-to." Ele não percebeu a zona cinzenta (LEVI, 1990, p. 31-59), descobertade Primo Levi. Talvez por isso acredite na possibilidade (e utilidade) de umjulgamento. Outra diferença correlata se apresenta: no livro do italiano já édescartada desde o início qualquer pretensão lógica:

O livro foi escrito, em primeiro lugar, portanto, com a finalidade deliberação interior. Daí seu caráter fragmentário: seus capitulos foramescritos não em sucessão lógica, mas por ordem de urgência. O traba-lho de ligação e fusão foi planejado posteriormente (LEVI, 2000, p. 8).

Não está em questão a urgência ou não da escrita de Fílon, mas éevidente que a estruturação de seu escrito não se faz "posteriormente",mas de forma pensada com vistas a certa finalidade. Entretanto, não sereconhece nele a neutralidade requerida pela posição de testis, ainda que elepossa simulá-Ia em algum momento.'

Caberia, pois, recorrer ao outro termo: auitor. Como o testemunhode Levi depende da impossibilidade do testemunho dos "muçulmanos",o relato de Fílon talvez se apoie no silêncio dos corpos semiqueimados edos destroçados pelas ruas da cidade. No caso do autor antigo especifica-mente, pode-se pensar que seu relato se apoia não só no silêncio dos que

3 No tratado agora em análise, Flaco; no outro a ser abordado. Callgula .• Um julgamento divino? Alguém poderia indagar: ·Se é divino, precisaria de explicações?" Deve-se observarque a acusação e a explicação podem servir como meio de se perceber o nexo causal entre uma atitude e

outro acontecimento. de modo a apontar a uma interpretação dos fatos que considere uma intervenção da

Providência.S No caso de Primo Levi, também se pode pensar em uma relação com o julgamento. Embora o livro mesmonão deixe perceber essa intenção e até indique outra, Dalya M. Sachs revela uma situação mais complexa com

relação ao assunto (ver SACHS, 1995).

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não puderam expressar-se, mas também na voz daqueles que escreveramsobre o assunto (caso tenham escrito) e se perderam ao longo dos séculos.

Encaminho-me a uma solução provisória. Parece-me que, emboraos três termos cooperem para uma compreensão dos papéis exercidos porFílon e Levi, cada um tende a movimentar-se preferencialmente entre doisdeles. Primo Levi, de início, parece ser simplesmente uma testemunha--superstes, mas carecemos do termo auctor para cornpreendê-Io. Fílon, porsua vez, solicita testis, em princípio, por sua maneira de articular os fatos ea acusação, mas seu discurso só se sustenta a partir do silêncio alheio; peloque, sem o termo auctor, seu lugar é sem sentido. De alguma maneira ele po-deria ser também considerado superstes, mas, como observei, não há ênfasenessa direção. Assim, temos um Levi-sttperstes-auctor e um Filon-testis-auctor,cada qual se dispondo a relatar os sofrimentos por um motivo e com umobjetivo aparentemente diferente, mas incorrendo em alguns problemas eencontrando alguns limites semelhantes, como a seguir observarei.

As coisas e o som/ silêncio da palavra

cm lá recebemos as primeiras pancadas, o que foi tão novo e ab-surdo que não chegamos a sentir dor, nem no corpo nem na alma. Ape-nas um profundo assombro: Como é que, sem raiva, pode-se bater numacriatura humana?" (LEVI, 2000, p. 15). O assombro diante do que não secompreende é um passo prévio ao que quero observar neste tópico.

A novidade dos fatos ou seu deslocamento provocam naquele queos experimenta (e os narra) a percepção de um desacerto que interferiráem sua utilização da linguagem. O soco estava, até certo momento, direta-mente relacionado à raiva. Quando se desconectam os dois, há estranheza.O que se espera não se realiza, ou se realiza de modo completamente forada lógica do mundo previamente experimentado. As comparações surgem,então, como elementos retóricos próprios para tornar clara a situação.

Para com os condenados à morte, a tradição prescreve um austerocerimonial, a fIm de tornar evidente que já não existe paixão nem raiva;apenas medida de justiça, triste obrigação perante a sociedade, tantoque até o verdugo pode ter piedade da vítima. Evita-se ao condenado,portanto, toda preocupação externa; a solidão lhe é concedida e, seassim ele o desejar, todo conforto espiritual [...]

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Nada disso, porém, nos foi concedido, já que éramos muitos, e poucoo tempo. Além do mais, de que deveríamos nos arrepender ou sermosperdoados? (LEVI, 2000, p. 13).

O que se faz a um condenado à morte pela Justiça se contrapõe aoque lhes foi feito, não sendo eles nem mesmo judicialmente condenados.

De modo semelhante, Filon observa que inclusive os que perecemna guerra são deixados para que os seus lhe prestem as homenagens fú-nebres. Logo introduz a comparação nos seguintes termos: "Na guerra,por um lado, os inimigos [fazem] estas coisas. Na paz, por outro lado, ob-servemos o que fizeram os que há pouco eram amigos" (pHILO, 1995a,p. 62). Em seguida, ele chega ao trecho que citei acima, no qual revela otratamento dado aos corpos dos judeus mortos.

Os condenados e os nem-sequer-julgados, em tempo de guerra eem tempo de paz. As ações realizadas em situações diferentes são con-trapostas com vistas a um esclarecimento único: o que fizeram (a nós?Aos nossos? Aos judeus?) em uma situação "imprópria" foi mais grave,mais intenso ou aterrador que o que fazem na situação "própria"? A açãointensificada está fora de seu contexto. Então, a comparação pode ser,como disse, uma tentativa de compreensão ou expressão dos fatos. Umatentativa necessária porque a simples nomeação dos fatos e ações não éeficaz para produzir a comunicação almejada (isto é, não faz comum entrenarrador e leitor o que está sendo de fato narrado).

Os narradores (tanto o que suponho ser Levi-superstes-auctor quantoo também hipotético Fílon-testis-auctor) tocam os limites da linguagem:

Assim como nossa fome não é apenas a sensação de quem deixou dealmoçar, nossa maneira de termos frio mereceria uma denominaçãoespecífica. Dizemos "fome", dizemos "cansaço", "medo" e "dor", di-zemos "inverno", mas trata-se de outras coisas. Aquelas são palavraslivres, criadas, usadas por homens livres que viviam, entre alegrias etristezas, em suas casas. Se os Campos de Extermínio tivessem duradomais tempo, teria nascido uma nova, áspera linguagem, e ela nos fazfalta agora para explicar o que significa labutar o dia inteiro no vento,abaixo de zero, vestindo apenas camisa, cuecas, casaco e calças de brime tendo dentro de si fraqueza, fome e a consciência da morte que chega(LEVI, 2000, p. 125-126).

E estas coisas, se já são insuportáveis, comparadas, entretanto, com aspraticadas em seguida são leváveis. Pois a pobreza é difícil (sobretudo

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quando preparada da parte de inimigos), mas é menos que a violênciaaos corpos, ainda que seja brevíssima. E com relação aos nossos, dado oexcesso das coisas que sofreram, nem que alguém dissesse ter recebidoviolência ou ultraje estaria usando termos próprios, mas parece-me queestaria em falta de designações familiares, pela grandeza da crueldaderecém-obrada, de modo que as dos que saem conquistadores na guerra(que são por natureza implacáveis para com os prisioneiros) pareceriamser as mais doces comparadas com aquelas (pHILO, 1995a, p. 58-59).

Levi se inquieta e pensa na possibilidade de uma linguagem criadaa partir daquela realidade dura, uma vez que a trazida do mundo livrenão lhe servia plenamente. Filon, por sua vez, deixa claro que o alcancedas palavras conhecidas não chega aos eventos narrados "pela grandezada crueldade recém-obrada". O novo, o diferente, o deslocado não sãocontemplados satisfatoriamente pelo vocabulário preexistente. Por isso, onarrador vê-se incomodado, insatisfeito, pois as palavras indicam minima-mente o que ele pretende expressar, mas silenciam parte do significado, ouenganam, ao ocultar diferenças. A relação com a palavra se torna parado-xal, mas permanece necessária, como observa Valerio Ferme:

Não importa quão inadequada a linguagem possa ter sido inicialmente,como ferramenta para entender como os campos funcionavam; ela per-manece presente na ausência, como o único meio de resistência que podeescapar do controle do nazismo (FERME, 2001, p. 57.Tradução minha).

O narrador depende da linguagem, mas precisa ir além do uso cor-riqueiro do léxico, buscando explicações por analogias (como as mencio-nadas), enfatizando certos elementos da realidade/narrativa ou lançandomão de recursos especiais. O que chamo aqui de "recursos especiais" é otema do próximo tópico: uma aproximação da linguagem da narrativa àpoesia, uma ênfase no corpo ou, ao mesmo tempo, um trabalho de poéticae corporeidade na escrita (a partir da relação com um gênero específico).

o corpo inscrito e o recurso ao poético

Uma frase pode ter passado despercebida na última citação: "Poisa pobreza é difícil (sobretudo quando preparada da parte de inimigos),mas é menos que a violência aos corpos, ainda que seja brevissima"(pHILO, 1995a, p. 58). Um elemento definitivamente envolvido nos fatos

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que dão origem às narrativas de Fílon e Levi e, consequentemente, estáinscrito nestas, é justamente o corpo. A diferença entre os dois autores,como antes vimos, é que os corpos na narrativa de Contra Flaco são de ou-tros judeus. O corpo do escritor não aparece marcado, ou melhor, só estáimplicado pela marca comum com aqueles que padecem: a circuncisão. ] áo corpo de Levi é de tal modo sofrido que convém observá-lo:

O enfermeiro aponta as minhas costelas ao outro, como se eu fosseum cadáver na sala de anatomia; mostra as pálpebras, as faces inchadas,o pescoço fino; inclina-se, faz pressão com o dedo em minha canela,indicando a profunda cavidade que o dedo deixa na pálida carne, comose fosse cera (LEVI, 2000, p. 48).

Uma mudança que marca a degradação, pois: "No ano passado, a estahora eu era um homem livre. Fora da lei, porém livre, tinha nome e família,uma mente ávida e inquieta, um corpo ágil e saudável." (LEVI, 2000, p. 145).

O corpo é trazido à cena. Colocado em evidência, ele revela a mu-dança, explicita a gravidade do fato. O corpo parece ser um caminho parase tentar fazer comum uma experiência. O narrador fala do corpo, talvezcom a intenção de atingir também, isto é, trazer para o ato da leitura o cor-po do leitor, ou, no mínimo, para dar mostra da concretude da violência.O foco no corpo parece, então, tentar suprir alguma limitação da lingua-gem, ainda que dependente dela.

Resta, ainda, outra tentativa: a poesia. Se a linguagem pode ser percebidacomo um órgão fora do corpo (e este, imagino um verbo fora da linguagem),entendo a poesia como parte ou função desse órgão. Ou melhor, uma formade realização do órgão-linguagem. Nas palavras mais precisas de Karl ]aspers:

Poesia é o órgão pelo qual apreendemos o cosmos e todos os conteú-dos de nossa essência da forma mais natural e evidente. Levados pelalinguagem, transformamo-nos a nós mesmos. Imperceptivelmente, afantasia provocada pela poesia abre em nós o mundo das concepçõespelas quais primeiro nos tornamos capazes de apreender significativa-mente nossas realidades GASPERS, 2004, p. 23).

Apresenta-se a possibilidade de uma apreensão das realidades coma colaboração da poesia. No meio do campo (e entre as páginas de É istoum homem?) comparece a poesia: "O canto de Ulisses. Quem sabe como epor que veio-me à memória, mas não temos tempo pra escolher, esta horajá não é mais uma hora. Se ]ean é inteligente, vai compreender. Vai: hoje

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sinto-me capaz disso" (LEVI, 2000, p. 114). Ao longo das páginas escritaspor Levi não são escassas as referências, mais ou menos sutis, a dados daliteratura. Mas nesse capítulo, intitulado "O canto de Ulisses", a poesia en-tra definitivamente em cena, como meio de fazer algo comum. A "descul-pa" para o poético vir à tona é uma aula de italiano. O produto escolhidoé a obra de Dante. O personagem, Ulisses, o herói do retorno. Primo Levirememora versos e os explica a ]ean ("Pikolo''). Em certo ponto:

Pikolo me pede para repetir esses versos. Como ele é bom: compreen-deu que está me ajudando. Ou talvez seja algo mais: talvez (apesar datradução pobre e do comentário banal e apressado) tenha recebido amensagem, percebido que se refere a ele também, refere-se a todos oshomens que sofrem e, especialmente, a nós: a nós dois, nós que ousa-mos discutir sobre estas coisas, enquanto levamos nos ombros as alçasdo rancho (LEVI, 2000, p. 116).6

A poesia participa de um processo que pode ser entendido como re-apropriação da dimensão humana, como recuperação da possibilidade dese apreender a realidade por meio da linguagem, ou como a constituiçãodo ser por meio da rememoração. Seja como for, parece que o capítulo emquestão ("O canto de Ulisses'') "marca uma importante transição na ex-periência do campo por parte de Levi" (FERME, 2001, p. 63).7 O poemaparece ajudar o ser a localizar-se no mundo.

Cabe, agora, observar essa relação entre a poesia e a escrita de Fílon,o que não é estranho, uma vez que ele cita versos de vários poetas gregos,ou faz referências mais ou menos perceptíveis a esses ao longo de seus tra-tados (inclusive nos exegéticos). Entretanto, mais que citações, e inclusivemais que referências sutis, outros rastros helênicos podem ser deixados naescrita de Fílon. Essa escrita que nasce em prosa poderia ter sua fonte, seumodelo, sempre observado no arquivo canônico judaico. Mas não é o quese verifica, ao menos não exclusivamente. Como a prosa grega de então(penso sobretudo nos romances gregos), a escrita de Fílon se deixa marcarpor um trabalho na fronteira dos gêneros literários. Parece que, na narrativaem prosa, é fácil jogar com elementos de outros gêneros. A impressão que

• Cito os versos a Que se refere essa parte do diálogo: "Relembrai vossa origem. vossa essência:1 vós nãofostes criados para bichos.! e sim para o valor e a experiência."

7 Chegou-se a sugerir uma posslvel aproximação estrutural entre o livro de levi e a obra de Oante (ver FERME.

2001, p. 53-54, nota 5), mas não me sinto seguro a ponto de explorar essa possibilidade.

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tenho, e que pretendo demonstrar minimamente, é que Fílon escolhe ele-mentos da tragédia grega para retratar os ocorridos em sua época.

Horror e piedade, desmedida e erro figuram como características deuma época em que um homem decide ser cultuado como deus e impõe essaprática inclusive aos judeus. Mais que isso: Fílon parece conceber e traba-lhar sobre a tragédia em cena, como espetáculo, não texto somente. Por isso,o corpo está em total evidência, participando e comunicando a experiênciade então. Para início de uma demonstração, refiro-me a um trecho especí-fico, o qual servirá de mero exemplo, escolhido entre outras possibilidades.Fílon vem narrando a ansiosa espera da embaixada (da qual faz parte) en-viada pelos judeus de Alexandria ao encontro de Calígula. O tempo passa eo imperador não os recebe. Então, ocorre uma mudança na situação:

A nós, que refletíamos sobre a questão - pois tínhamos sempre a ex-pectativa de sermos chamados - aproxima-se uma pessoa que nos olha-va com [olhar] ensanguentado e perplexo, completamente ofegante e,conduzindo-nos um pouco para longe dos outros - pois havia algumaspessoas perto - disse: "Ouvistes as novidades?" E, quando estava aponto de nos contar, foi interrompido, pois lhe saía uma incessantecorrente de lágrimas. E, tendo começado de novo, por uma segundavez foi interrompido, e por uma terceira ainda. Vendo isso, nós nosagitamos e pedimos que contasse o assunto pelo qual havia vindo. Ale-gávamos: "Pois não [foi] com o intuito de prantear com testemunhas[que vieste]. E se são coisas dignas de lágrimas, não padeças sozinhoda tristeza.Já estamos acostumados a infortúnios." E ele, embora comdificuldade, soluçando e com a respiração entrecortada, disse: "Nossotemplo se foi! Caio ordenou erigir na parte mais interna do santuáriouma gigantesca estátua humanóide dele mesmo apelidada de Zeus."Enquanto estávamos atônitos pelo dito, congelados pela consternaçãoe já não podendo ir adiante - pois jazíamos de pé mudos, tendo poucasforças e desfalecendo por causa de nós mesmos, uma vez que estavamexaustos nossos vigores corpóreos - outros se aproximavam trazendosuas próprias aflições (PHILO, 1995b,p. 186-189).

Como se percebe, nesse trecho ocorre a chegada de um mensageiro,personagem muito recorrente nas tragédias gregas. É possível chamá-lomensageiro trágico, tanto para marcar sua relação com aquele da tragédia,quanto para caracterizar o conteúdo que anuncia (pensando no significado

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atual do termo trágicoB-y. Contudo, a teatralidade do episódio poderia nãoser dada a perceber, não fosse outro aspecto destacável: a ênfase no corpodo mensageiro e dos que recebem a mensagem. Primeiro, o mensageironão consegue falar por causa do choro incessante. Uma, duas, três vezes o"vemos" tentar e não conseguir. Em seguida, ele fala, mas entre soluços ecom respiração entrecortada. A mensagem em si é breve, ao menos nesseprimeiro momento. A atenção às maneiras, às reações e aos movimentosdos corpos no espaço cênico, por outro lado, é detida. Uma pergunta nadaimportante, mas talvez reveladora: um grupo de atores teria grande tra-balho para reconstruir a cena, inclusive o comportamento não verbal dosparticipantes?

Alguém poderia, decerto, perguntar se não se trata de uma preo-cupação impensada ou relacionada a outra causa que não uma aproxima-ção intencional com a tragédia. Em princípio, eu tenderia a reconhecerque sim. Não obstante, alguns indícios nesse mesmo tratado me levamà convicção de que há de fato um interesse especial na comunicação quetranscende o verbal (chegando ao corporal, ao espetacular) e na própriatragédia especificamente.

Noto, por exemplo, que, quando a narrativa se detém em um grupode judeus que suplica a Petrônio que colabore para evitar a procissão quelevaria a imagem de Calígula-Zeus ao Templo, há também uma ênfase nadescrição do corpo dos suplicantes. Em seguida, diz-se que o romano foicomovido "pelas coisas que foram ditas e pelas que foram vistas" ("hypàtôn lekhthénton kai horoménon" - PHILO, 1995b, p. 243). Em outrotrecho, é o próprio Calígula que diz a Agripa que este já deveria ter notadoo seguinte fato: "falo claramente não somente com a voz, mas tambémcom os olhos" (ou "têi phonêi mónon allà kai tOISómmasi phthéngomai"- PHILO, 1995b, p. 264).

Resta observar o fato de que essa ênfase no corporal reflete umarelação estabelecida com a tragédia como gênero. Para tanto, não me basta,embora me sirva como testemunho, lembrar que, segundo Aristóteles, a

• Para uma reflexão sobre os significados do termo, confira-se MOST (2001). Para uma diferenciação entre asnoções de testemunho, tragédia e trágico. veja-se SELlGMANN-SILVA (2005). Ressalto que o que proponhonão é uma explicação do testemunho pela tragédia, mas uma observação do texto como lugar de negociação

e construção de significado a partir dos meios (língua, gênero, fórmulas retóricas etc.) disponiveis em seuuniverso discursivo.

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tragédia se divide em seis partes, sendo que uma das quais é justamenteum componente visual (ópsis. Ver Poética, 1450a). Devo observar tambémtrechos do próprio tratado filônico que se refiram especificamente ao gê-nero em questão. Destaco, então, a atenção que se dá ao fato de Apeles,um certo ator trágico, ter chegado a ser conselheiro de Calígula (pHILO,1995b, p. 203-204). Mas o fato é histórico, alguém poderia dizer. De fato,mas a meu ver, a presença desse personagem histórico traz à cena a tragé-dia e possibilita um diálogo com esta. Ainda assim, é bom considerar ou-tro trecho. Durante a já mencíonada súplica a Petrônio, os anciãos dizemque não faria falta um exército para se opor aos judeus, pois estes estavamsujeitos à autoridade política e se entregariam a si mesmos em sacrifício,"os assassinos de esposas oferecendo suas esposas ao altar, os fratricídas,os irmãos e as irmãs, e os infanticídas, garotos e garotas, em idade deinocência" (pHILO, 1995b, p. 234). A escolha dos termos, por si só, jáseria interessante ao meu objetivo. Contudo, o comentário imediatamenteposterior não deixará dúvidas: "Pois palavras trágicas [traguikôn onomáton]são necessárias para aqueles que suportam circunstâncias trágicas [tragui-kàs symphoràs]." (pHILO, 1995b, p. 234).9

O que proponho é simplesmente a possibilidade de se pensar queesse recurso à tragédia não se limitaria a seu vocabulário e a essa súplicaespecífica. A meu ver, esta fala pontual possibilita uma suspeita maisgeral de que, mais do que palavras, outras características da tragédia sãomobilizadas no escrito. É conveniente, pois, estudar como Fílon agenciaelementos do gênero trágico para narrar as "circunstâncias trágicas" aque estiveram submetidos os judeus de meados do século 1. E o maisinstigante, entender por que um gênero especificamente grego é mo-bilizado para narrar a resistência (e sofrimento) dos judeus diante domundo greco-romano. A resposta talvez se encontre no mesmo tratado,inclusive em sua parte inicial, mais dissertativa, na qual não somente ateologia judaica, mas também (e mais detidamente) a própria mitologiagrega é evocada para se refutar a divinização de Calígula. Talvez seja essauma marca da obra de Fílon: a possibilidade de se mover nos diferentes

• Vale lembrar que o adjetivo traguik6s, que traduzo por trágico, remete à tragédia como gênero. Talvez pos-samos pensar em um sentido mais desconectado da própria tragédia como gênero na segunda ocorrência na

frase, mas o jogo com o sentido que agora me interessa é inegável.

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discursos, argumentando, interpretando e narrando nas fronteiras, ne-gocíando habilmente em meio a uma situação de considerável tensãocultural. 10

Além disso, algo interessante é perceptível no trecho mais longoantes citado: um dos "atores" é o próprio narrador. Se em Contra Placo elesó observava corpos alheios, agora seu próprio corpo está em cena, faltode forças, como os dos outros. O envolvimento é bem marcado. Poucoantes, porém, ele havia fornecido um dado também importante, que dealguma maneira o destaca no grupo: ele diz que todos estavam iludidoscom a recepção do imperador, mas que ele (e ele usa a palavra eu - ego)era mais cauteloso (eulabésteros), pela idade e pela outra formação (kaidi'helikían kai tên állen paideían). A idade mais avançada e a formação, istoé, educação formal, o distinguem, fazendo-o mais prudente, por um lado,mas também, a meu ver, dando a ele uma posição privilegiada para relatar.De alguma maneira, ele se apresenta explicitamente como preparado paraconsiderar as ações com cuidado e, por conseguinte, defende implicita-mente sua qualidade de narrador. Logo, como vimos, inclui-se na cena. Ameu ver, ele diz algo como: "Estarei em cena, mas sou capaz de narrá-Iacom acerto."

Decerto, os relatos de sofrimento não são necessariamente poéticos.Ademais, o poético não precisa ter uma ancoragem precisa no mundo dasrealidades. Não obstante, há uma relação perceptível entre poeta e teste-munha, pois ambos se movimentam em um espaço localizado entre a im-possibilidade e a possibilidade de dizer. Encerro este tópico com palavrasde Giorgio Agamben:

a palavra poética é aquela que se situa, de cada vez, na posição deresto, e pode, dessa maneira, dar testemunho. Os poetas - as teste-munhas - fundam a língua como o que resta, o que sobrevive emato à possibilidade - ou à impossibilidade - de falar (AGAMBEN,2008, p. 160).

10 Interessante também notar que, se a tragédia está relacionada com a forma de narrar a perseguição sofridaapós os eventos, outro tipo de representação aparece no inicio desta. Em Contra Flaco (PHILO, 1995a, p.

3640), Filon conta que, quando da visita de Agripa a Alexandria, os gregos tomaram um lunático da cidade,vestiram-no como rei e se curvaram a ele no Ginásio, em uma espécie de mimica teatral para ridicularizar orei dos judeus (HORST, 2003, p. 130).

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No campo da hermenêutica

Primo Levi não era escritor quando foi levado ao campo de concen-tração. Fílon, por sua vez, parece que já havia escrito muitos de seus trata-dos quando compôs Embaixada a Calígula e Contra Flaco. Vale lembrar quea maioria dos outros tratados são caracterizados como exegéticos porque,o mais das vezes, reescrevem ou apresentam interpretações para o Pen-tateuco. De alguma maneira, percebo que ao contar a violência que tevelugar em Alexandria, Fílon não deixa de ser um hermeneuta. Ele, de fato,apresenta as diversas "cenas" de sua narrativa com o intuito de produziruma compreensão sobre o ocorrido. Como vimos, no caso de Contra Flaco,a interpretação conclui que o povo judeu continuava sob uma proteçãoespecial de D''us. Mas essa conclusão só é dada após a estruturação detoda uma narrativa que enfatiza certos elementos e os arranja de manei-ra devida. Em Embaixada a Calígula parece acontecer algo semelhante, oautor mostra como D'us colocou em prova a virtude dos judeus. O fimde Caligula não é demonstrado, como o de Flaco, mas o tratado terminaem aberto, como anunciando outro tratado, ou indicando que a históriademonstraria o que se segue (BORGEN, 2005, P: 193). Sobre ambos ostratados, Peder Borgen afirma de forma clara e resumida:

Fílon aqui narra uma história teologicamente interpretada, baseada emideias relacionadas à Lei de Moisés. Nesse aspecto, esses tratados mos-tram uma similaridade com a escrita da história no Antigo Testamento,no judaísmo e no Novo Testamento (BORGEN, 2005, p. 192. Tradu-ção minha).

Quanto a Primo Levi, devo destacar algo que ele parece entrever,mas que não desenvolve detidamente:

Na marcha para o trabalho, vacilando sobre nossos tamancos por cimada neve gelada, trocamos algumas palavras. Resnyk é polonês; morouvinte anos em Paris, mas fala um francês terrível. Tem trinta anos, po-rém, assim como cada um de nós, poderia aparentar entre dezessete ecinqüenta. Contou-me a sua história e já a esqueci, devia ser, por certo,uma história dolorosa, comovedora, cruel, porque todas as nossas his-tórias são assim, centenas de milhares de histórias, cada uma diferentedas demais e cada uma carregada de uma trágica, surpreendente fata-lidade. Contamo-nos essas histórias, uns aos outros, à noite; histórias

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de fatos acontecidos na Noruega, na Itália, na Argélia, na Ucrânia, his-tórias simples e incompreensíveis como as da Bíblia. Ou serão, acaso,histórias de uma nova Bíblia? (LEVI, 2000, p. 65).

As histórias vividas por cada judeu levado ao campo, bem comoa de Levi, têm uma semelhança com as da Bíblia: simplicidade e falta deacesso a uma compreensão. Parecem, então, histórias deslocadas de acon-tecimentos que estariam bem localizados se narrados dentro do cânone sa-grado. Ali receberiam, juntamente com outras tantas narrativas, o cuidadohermenêutico de todas as gerações. Sua estranheza teria um entorno, umenquadramento próprio. Mas, se elas não estão na Bíblia, seriam de umanova Bíblia? Uma Bíblia, talvez, sem a mesma solicitação de sacralidade daoutra, mas com semelhante solicitação de hermenêutica, de comentáriose, isso em especial, de reescritas.

Por esse pensamento, se são considerados também os textos deFílon para a reflexão, pode-se indagar: Por que Contra Flaco não está,mas Ester sim? Filon e Levi (cada um a seu modo e com uma relaçãodiferente para com a religião judaica - e independente disso) parecemescrever textos de uma bíblia fora da Bíblia. Se o italiano não procu-ra explicações rápidas para cada dado de seu objeto de leitura é por-que sua hermenêutica não é aquela dos comentadores "verso a verso".

le busca mais uma apreensão reflexiva (não radicalmente racional)do "texto". Como na hermenêutica de Fílon (refiro-me agora às in-terpretações que ele faz do Pentateuco), nem sempre se encontra umaresposta certeira, definitiva ou única, havendo lugar para certa fluidez(RIOS, 2009, p. 100-102). Por isso, escrevem. Esse é um passo parafazer a leitura, manter o objeto de interpretação em evidência e analisá--10 (isto é, desenrolar seu novelo na esperança de isolar alguma de suaslinhas [de sentido]).

Em outras palavras, quer queiram ou não emitirjufgamento sobre osfatos, algo é mais certo, ambos os escritores procuram estabelecer um tipode critica do acontecimento. O termo crítica, como se sabe, pode ser aproxi-mado por etimologia da ideia de julgamento. Entenda-se, pois, que querousá-lo, ao mesmo tempo, tão próximo e tão distante quanto possível des-sa. Eles emitem critica por não poderem não fazê-lo, justamente porqueos próprios acontecimentos os convidam ao trabalho de hermeneutas. E

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já que percebemos que seu objeto de leitura não é exatamente um texto,lembro-me da consideração de Paul Ricceur: "como um texto, a ação hu-mana é uma obra aberta, cuja significação está 'em suspenso'" (RICCEUR,1986, p. 197. Tradução minha). Uma significação que deve ser repensada erefletida por cada geração, como em um comentário cumulativo da outrabíblia: "Rab Fílon de Alexandria disse ... Rab Primo Levi disse ... Rab ..."

Conclusões

Observei, neste breve ensaio, que corpo e poesia (em algum momen-to juntos) podem ser convocados para um discurso que pretende narrar ohorror e a violência contra um povo. Isso, o fiz aproximando e tratandolado a lado uma obra do século 20 e escritos do século 1. A obra do século20 foi chamada de testemunho. Para os tratados antigos, não utilizei nenhu-ma designação tão definitiva. Mas, agora, talvez seja mais fácil considerar aquestão: essas obras de Fílon podem ser tomadas como "testemunhos lite-rários"? Pois bem, de fato até o termo literário é de difícil manuseio quandose trata de escritos de um tempo em que a noção de literatura não existiaainda nos moldes modernos. Mas não deixo de referir-me a esses escritosdo alexandrino como literários, uma vez que assim os leio, facilitado (corro-borado, penso) pelo intenso diálogo que ele estabelece com obras que sãocorriqueiramente chamadas de "literatura grega". Testemunho? A sensataasserção de Seligmann-Silva pode ajudar nesse momento:

Nos estudos de testemunho deve-se buscar caracterizar o "teor teste-munhal" que marca toda obra literária (mas, repito, que aprendemos adetectar a partir da concentração deste teor na literatura e escritura doséculo 20). Este teor indica diversas modalidades de relação rnetoní-mica entre o "real" e a escritura (SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 85).

Em suma, após essa leitura, parece-me plausível considerar os doistratados filônicos estudados em comparação com a obra de Levi como umtipo de prosa literária comfundo histórico e marcado teor testemunhal. Lembrandoque esse teor não é encontrado de modo único em todas as obras, mas va-ria entre tantas possibilidades de relação da escritura para com esse "real",que Seligmann-Silva pretende ler, seguindo orientação freudiana, comotrauma, o que convém no caso de Filon.

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Por fim, vale dizer, também, pelo que tangencialmente se percebeneste breve escrito, que a leitura da obra de Primo Levi em comparaçãocom outras de teor testemunhal, mas mais antigas, pode ser proveitosa.Parece-me que o procedimento revela semelhanças e diferenças que lo-calizam a escritura do italiano (inclusive no que diz respeito ao aspectotestemunhal) em uma história literária, não a deixando isolada ou emcontato somente com a chamada "literatura do Holocausto" (ou, paradizer melhor, literatura da Shoa).

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5 Uma travessia frustrada:da galut para o exil

Luis S. Krausz

Este artigo analisa a novela "O rabbi de Bacherach'~ de Heinricb Heine, atentandoparticularmente para o caráter transiciona/ dessa obra CI'!JO enredo, ambientado na IdadeMédia, parece tratar da passagem do mundo isolado e ssjeito à constante perseguição dogueto para um universo defeições mais modernas, no qual opertencimento aojudaísmo setorna lima possibilidade, mas não uma necessidade, Sugiro q1le a trajetária apresentadana novela possui para/elos com a própria trajetôria descrita pelo autor que, educado nosmoldes do pensamento iluminista, desejava integrar-se plenamente à sociedade européia.Heine efetivamente pertencia à primeira geração que escapou do gueto, embora suaambição de tornar-se tl11I alemão paradoxalmente só pôde concretizar-se, e ainda emparte, em seu exílio francês.

{Literatura judaica; literatura alemã; assimilação; gueto; iluminismo}

Agora sou odiado por judeus e por cristãos.Arrependo-me muito de ter-me batizado, e não

vejo que minha situação tenha melhorado emdecorrência do batismo. Ao contrário, desde

então só tenho sido infeliz ...

Heinrich Heine (2000)'

1 Esta e todas as citações de Heine apresentadas no artigo são traduções a partir do alemão feitas por LuisS. Krausz. (N. do E.)

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