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Relendo William Morris: Tradução do Manifesto da SPAB, The Society for the Protection of Ancient Buildings Pedro Freire de Oliveira ROSSI Arquiteto e Urbanista M. Sc. em Teoria e História da Arquitetura Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado da Paraíba/IPHAEP, Brasil Doutorado em Teoria e História da Arquitetura Universidade Politécnica da Catalunha/UPC, Espanha [email protected] Resumo Alguns pesquisadores reconhecem William Morris, autor do Manifesto da SPAB, The Society for the Protection of Ancient Buildings, como um dos mais importantes nomes da corrente preservacionista/anti-restaurativa e um dos idealizadores do movimento das Arts and Crafts na Europa do século XIX. Sua base teórica reside, por um lado, no romantismo inglês e, por outro, nas ideias socialistas Marxistas, cuja principal linha de pensamento desenvolve o tema do trabalho como dignificação do ser humano e a valorização do processo artesanal frente à Revolução Industrial. Nikolaus Pevsner vai além e o define como um dos precursores do Movimento Moderno na arquitetura. Morris, um intelectual fora de seu tempo, é visto hoje como um dos nomes mais relevantes quando se fala de preservação do Patrimônio Cultural, tema que assumiu sua devida importância ao longo do século XX e que vem, continuamente, sendo tema de discussão e prática durante a primeira década do século XXI. Seu discurso atemporal é imbuído de uma relevante importância artístico-social e merece uma atenta releitura com intuito de contribuir ainda mais para esse debate cultural. Apresenta-se aqui uma tradução desse documento ao português, realizada pelo autor, a partir de fontes primárias, em sua versão original em inglês. Palavras-chave: Patrimônio cultural, Preservação, Restauração, Monumento Artístico Abstract Some researchers recognizes William Morris, author of The Manifesto of the SPAB, The Society of the Protection of Ancient Buildings, as one of the most important names of the preservationist/anti-restorative tide and one of the creators of the European Arts-and-Crafts movement in the 19th century. His theoretical basis stays, in one hand, in the English romanticism and, in the other, in the socialists Marxists ideas, whom philosophical mainstream develops the subject of work as dignification of the human being and the valorization of the handicraft process against the Industrial Revolution. Nikolaus Pevsner goes beyond and defines him as one of the precursors of the architecture Modern Movement. Morris, an intellectual ahead of his time, is seen nowadays as one the more relevant names in Cultural Heritage preservation, subject that assumed its rightful value along by the 20th century and its, continuously, being matter of discussion and practice during the first decade of the 21st century. His timeless speech is imbued of a relevant social-artistic importance and deserves another attentive reading with intention of contributing even more to this cultural debate. It is presented here a Portuguese translation of this document, made by the author, using the primary sources, in its original English version. Keywords: Cultural Heritage, Preservation, Restoration, Artistic Monument

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Relendo William Morris: Tradução do Manifesto da SPAB, The Society for the Protection of Ancient Buildings. Trabalho apresentado no XVI Seminário da Associação de Estudantes Brasileiros na Catalunha, APEC. Barcelona/ES, 2010.

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Relendo William Morris: Tradução do Manifesto da SPAB, The Society for the Protection of Ancient Buildings

Pedro Freire de Oliveira ROSSI

Arquiteto e Urbanista M. Sc. em Teoria e História da Arquitetura Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado da Paraíba/IPHAEP, Brasil

Doutorado em Teoria e História da Arquitetura Universidade Politécnica da Catalunha/UPC, Espanha

[email protected] Resumo Alguns pesquisadores reconhecem William Morris, autor do Manifesto da SPAB, The Society for the Protection of Ancient Buildings, como um dos mais importantes nomes da corrente preservacionista/anti-restaurativa e um dos idealizadores do movimento das Arts and Crafts na Europa do século XIX. Sua base teórica reside, por um lado, no romantismo inglês e, por outro, nas ideias socialistas Marxistas, cuja principal linha de pensamento desenvolve o tema do trabalho como dignificação do ser humano e a valorização do processo artesanal frente à Revolução Industrial. Nikolaus Pevsner vai além e o define como um dos precursores do Movimento Moderno na arquitetura. Morris, um intelectual fora de seu tempo, é visto hoje como um dos nomes mais relevantes quando se fala de preservação do Patrimônio Cultural, tema que assumiu sua devida importância ao longo do século XX e que vem, continuamente, sendo tema de discussão e prática durante a primeira década do século XXI. Seu discurso atemporal é imbuído de uma relevante importância artístico-social e merece uma atenta releitura com intuito de contribuir ainda mais para esse debate cultural. Apresenta-se aqui uma tradução desse documento ao português, realizada pelo autor, a partir de fontes primárias, em sua versão original em inglês. Palavras-chave: Patrimônio cultural, Preservação, Restauração, Monumento Artístico Abstract Some researchers recognizes William Morris, author of The Manifesto of the SPAB, The Society of the Protection of Ancient Buildings, as one of the most important names of the preservationist/anti-restorative tide and one of the creators of the European Arts-and-Crafts movement in the 19th century. His theoretical basis stays, in one hand, in the English romanticism and, in the other, in the socialists Marxists ideas, whom philosophical mainstream develops the subject of work as dignification of the human being and the valorization of the handicraft process against the Industrial Revolution. Nikolaus Pevsner goes beyond and defines him as one of the precursors of the architecture Modern Movement. Morris, an intellectual ahead of his time, is seen nowadays as one the more relevant names in Cultural Heritage preservation, subject that assumed its rightful value along by the 20th century and its, continuously, being matter of discussion and practice during the first decade of the 21st century. His timeless speech is imbued of a relevant social-artistic importance and deserves another attentive reading with intention of contributing even more to this cultural debate. It is presented here a Portuguese translation of this document, made by the author, using the primary sources, in its original English version. Keywords: Cultural Heritage, Preservation, Restoration, Artistic Monument

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1. Manifesto da SPAB, The Society for the Protection of Ancient Buildings §1. Uma sociedade que se apresenta perante o público com um nome como o acima indicado necessariamente deve explicar como, e por que, se propõe a proteger edificações antigas que, para a maioria das pessoas, sem dúvida, parecem ter tantos e tão excelentes protetores. Esta é, por tanto, a explicação que oferecemos.

§2. Indiscutivelmente nos últimos cinqüenta anos vêm surgindo, quase como um novo sentido, um renovado interesse pelos antigos monumentos artísticos, os quais têm se tornado tema dos mais interessantes estudos, e de um entusiasmo religioso, histórico e artístico que constitui um autêntico fruto do nosso tempo; entretanto, pensamos que se o atual tratamento que lhes é dado continuar, nossos descendentes os considerarão inúteis para estudos e de um frígido entusiasmo. Acreditamos que os últimos cinquenta anos de conhecimento e atenção têm feito mais por sua destruição que todos os séculos precedentes de revolução, violência e desprezo.

§3. A arquitetura, ao menos como arte popular, se extinguiu em um longo processo decadente assim que nasceu o conhecimento da arte medieval, de modo que o mundo civilizado do século XIX não possui um estilo próprio, apesar do seu amplo conhecimento estilístico de outras eras. Deste vazio e desta conquista surgiu na mente dos homens a curiosa ideia da Restauração de construções antigas; uma estranha e péssima ideia, cujo nome sugere que é possível despir de uma edificação esta, aquela e outra parte de sua história, isto é, de sua vida, para então se deter em algum ponto arbitrário, mantendo-a histórica, viva, da mesma maneira como o foi em uma determinada época.

§4. Em outras épocas, este tipo de falsificação seria impossível, devido à falta de conhecimento dos construtores, ou, talvez, porque o instinto os impediria de fazê-lo. Se reparos eram necessários, se a ambição ou a devoção incitavam mudar, esta mudança era realizada de acordo com o inconfundível estilo da época; uma igreja do século XI poderia ser ampliada ou modificada durante os séculos XII, XIII, XIV, XV, XVI ou, inclusive, nos séculos XVII ou XVIII; mas qualquer mudança, fosse qual fosse a história a ser destruída, deixaria suas marcas no tempo e a edificação seguiria com vida, apesar das reformas levadas a cabo. Normalmente, o resultado de tudo isso era uma construção em que as muitas modificações, ainda que duras e bastante visíveis, eram realizadas por mero contraste – interessantes e instrutivas, e não poderiam induzir a nenhum engano. Mas aqueles que levam adiante as alterações em nossos dias sob o nome de Restauração, apesar de pretenderem devolver à edificação o melhor de sua história, não possuem regras a não ser seu próprio capricho para indicar o que resulta ser apreciável e o que é desprezível, enquanto que a própria natureza da tarefa os obriga a destruir algo e suprir este vazio imaginando o que os primeiros construtores poderiam ou deveriam ter feito. Além disso, no transcurso desse duplo processo de destruição e adição, toda a superfície da edificação forçosamente se perde; com isso, se elimina a aparência envelhecida das partes antigas e das que foram deixadas, não permitindo ao espectador intuir o que se pôde ter perdido; em poucas palavras, uma pobre e inânime falsificação é o resultado final de todo o trabalho perdido. É triste dizer que, desta maneira, grande parte das maiores Catedrais e um vasto número de edificações mais humildes, ambos na Inglaterra e no Continente, foram, na maioria das vezes, encarregados por homens de talento e dignos do melhor trabalho, mas surdos às exigências da poesia e da história no sentido mais elevado das palavras.

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§5. É por aquilo que sobrou que suplicamos ante os nossos arquitetos, ante os guardiões oficiais das edificações e ante o público geral; e rogamos para que se lembrem do quanto se perdeu da religião, do pensamento e dos costumes do passado, quase nunca por um consenso universal, de ser Restaurado; e considerar se é possível Restaurar aquelas edificações, o espírito vivo, das quais também não é possível ser repetido, que era parte inseparável desta religião e pensamento, e destes costumes do passado. De nossa parte, asseguramos, sem medo, que, de todas as Restaurações já empreendidas, as piores têm significado a imprudente remoção dos traços mais interessantes de uma edificação; enquanto que as melhores fazem perfeita analogia à Restauração de um quadro antigo, onde o trabalho parcialmente deteriorado de um antigo artesão voltou limpo e esmerado graças à mão habilidosa de algum pseudo-artista inconsciente e pouco original de hoje em dia. Se, para os demais, se nos peça que precisemos que quantidade exata de arte, estilo ou outro interesse faz com que uma edificação mereça proteção, nós respondemos qualquer coisa que se possa perceber como artística, pitoresca, histórica, antiga ou substancial; qualquer trabalho, em poucas palavras, sobre o qual pessoas cultas, artísticas, considerem que mereça ser discutido.

§6. É por estas construções, portanto, de todas as épocas e estilos, que imploramos e conclamamos a todos que tenham de lidar com elas para que a Proteção se imponha à Restauração, para que se evite a deterioração mediante o cuidado diário, que se reforcem muros em perigo ou se conserte um telhado com goteiras, que não se ostentem outras artes e, além disso, que se evite estragar o material e o ornamento da edificação; se o seu uso atual não se considera mais conveniente, que se edifique outra construção ao invés de alterar ou ampliar a antiga. Por fim, que tratem nossas edificações antigas como monumentos de uma arte do passado, criados por costumes passados, no quais a arte moderna não pode intrometer-se sem destruí-los.

§7. Assim, e somente assim, conseguiremos escapar da vergonha que seria o nosso conhecimento se converter em armadilha; assim, e somente assim, poderemos proteger nossos edifícios antigos e legá-los como herança instrutiva e venerável aos que vêm depois de nós. Apresenta-se aqui uma primeira tradução do autor por não ter sido encontrada nenhuma versão deste documento no idioma português. Esta foi realizada a partir de fontes primárias, em sua versão original, em inglês, e que podem ser consultadas em diversas bibliografias que abordam o tema da restauração, as quais, algumas, foram utilizadas na produção deste trabalho1. A SPAB, por meio de seu atual Deputy Secretary, Mathew Slocombe, afirma não possuir qualquer documento original nos arquivos de sua sede, em Londres, no entanto, esta Sociedade dispõe o Manifesto em formato digital em sua página virtual na internet2. Para a tradução, foi consultada a versão castelhana como forma de complementar a apreensão terminológica das expressões e das ideias utilizadas no Manifesto. Esta última pode ser encontrada em grande parte da bibliografia ora aqui usufruída e em outras publicações que compreendem traduções de textos e conferências proferidas por Morris3.

                                                            1 Vid. DENSLAGEN, Wim. 1994, pp. 71-73; KELVIN, Norman. 1984, pp. 359-360; MIELE, Chris. 2005, pp. 337-339; TSCHUDI-MADSEN, Stephen. 1976, pp. 144-146. Outras fontes primárias consultadas para a realização deste trabalho foram consultadas na própria sede da SPAB, em Londres, em viagem realizada pelo autor em abril de 2008. 2 http://www.spab.org.uk/what-is-spab-/the-manifesto/ [12 de abril de 2008]. 3 Vid. ELIA, Mario Manieri. 2001, pp. 22-23; HERNÁNDEZ MARTÍNEZ, Ascensión. 1999; MORRIS, William. 2005, pp. 1-4. 

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valor documental. Esta superação se deve à classe de antiquários, que surgiam como os novos eruditos, dotando de uma nova coerência visual semântica aos edifícios antigos mediante um esforço de conceitualização e revalorização das antiguidades ao recopilar um vasto repertório histórico ilustrando os vestígios das eras clássicas e medievais. O século XIX, com o advento romântico historicista, aproximou, mais ainda, as edificações antigas ao novo conceito de “monumento”. No entanto, o reconhecimento social dessas edificações como valores históricos e científicos pertencia, ainda, a um seleto grupo de eruditos que se interessavam pelas artes em geral. Morris fez dessas artes o principal elemento de valorização das edificações antigas como “monumentos artísticos”. Se a limitação do reconhecimento do valor artístico intrínseco às edificações como especial componente à sua preservação e posterior herança às futuras civilizações pertencia a tempos passados e ao próprio século XIX, guardadas as devidas proporções de alcance para cada época, Morris viu na popularização de todas as artes, e que ele titulou em 1877 no momento de sua primeira conferência, The Lesser Arts, a oportunidade de tornar universal a condição de “monumentos artísticos” os edifícios “de todas as épocas e estilos”. Em relação à arquitetura como “arte popular”, que engloba desde as “maiores Catedrais” a “um vasto número de edificações mais humildes”, esta é a principal ligação realizada no Manifesto com o novo conceito de “monumento artístico”. A própria exposição dessa ideia em forma de manifesto social, originalmente publicada em um meio de comunicação de massas, o jornal, neste caso, o The Atheneum, confirma o anseio de disseminar o valor das edificações antigas a todas as camadas da sociedade. Também é valido recordar que todos os discursos então levados adiante por Morris, em relação ao seu pensamento popular da arte, são conduzidos em conferências públicas ou expostos em folhetins de alcance global, bem como em relação às edificações antigas, fizeram da SPAB a principal ferramenta prática de divulgação de suas ideias.

“É por estas construções, portanto, de todas as épocas e estilos, que imploramos e conclamamos a todos que tenham de lidar com elas [...]”. (Manifesto da SPAB. 1877, §6)

3. Patrimônio: uma ideia a ser preservada Uma das bases da concepção moderna de “patrimônio histórico”, e talvez a mais importante para associar a análise aqui apresentada, está relacionada à ideia que o “historicismo” do século XIX associou o valor de “monumento histórico” como instrumento a serviço das ideologias do presente. O Romantismo transformou as relações com o passado artístico e criou laços emotivos com determinadas épocas históricas, em especial a medieval, e somou aos seus “monumentos” o gérmen de “pátria”. Neste sentido, pode-se dizer que, uma edificação antiga abandonada representa, em consequência, uma nação abandonada. Esta carga ideológica surge no Manifesto quando se atribuem às edificações antigas valores religiosos, artísticos e culturais – variáveis imateriais que condizem ao pensamento e aos costumes de uma cultura do passado. Tais qualidades conferem ao “monumento” mais que um objeto científico de valor documental, lhe associa um caráter subjetivo e o relaciona como um objeto de manifestação social materializado, palpável, cuja persistência física, ao longo dos tempos, está diretamente coligada à ideia de patrimônio – herança, legado – de uma nação. Tal afirmação se comprova com as seguintes passagens do Manifesto:

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“[...] (os monumentos artísticos) têm se tornado tema dos mais interessantes estudos, e de um entusiasmo religioso, histórico e artístico [...]”. (Manifesto da SPAB. 1877, §2) “[...] que tratem nossas edificações antigas como monumentos de uma arte do passado, criados por costumes passados [...]”. (Manifesto da SPAB. 1877, §6)

A expressão “nossas edificações antigas” vem fortalecer a ideia de que tais construções podem ser associadas às propriedades de domínio de um povo, seu patrimônio. São estes bens materiais e intelectuais que Morris predicava preservar como herança histórica. Como ferramenta útil a tornar os monumentos “instrutivos e veneráveis” às gerações futuras, a preservação se estende a todos os períodos da história e a quaisquer quantidades de elementos que se configurem capazes de expressar este legado, “ambos na Inglaterra e no Continente”. Todo e qualquer patrimônio, pertencente a qualquer povo, deve ser preservado. Acerca de tais considerações, valem destacar as seguintes passagens do Manifesto:

“[...] que quantidade exata de arte, estilo ou outro interesse faz com que uma edificação mereça proteção, nós respondemos qualquer coisa que se possa perceber como artística, pitoresca, histórica, antiga ou substancial [...]” (Manifesto da SPAB. 1877, §5) “É por estas construções, portanto, de todas as épocas e estilos [...]”. (Manifesto da SPAB. 1877, §6)

No entanto, um novo tratamento dado às edificações antigas faz com que Morris volte seu discurso à necessidade de reavaliar a sua prática. 4. Proteção versus Restauração Envolvidos por esta que foi conhecida como sendo uma fase de muitas pesquisas e de grande produção de conhecimento dos tempos passados, muitos arquitetos da época se inspiraram nos estilos consagrados para desenvolver uma prática profissional contemporânea. Entretanto, o trabalho que vinha sendo executado naqueles momentos, em relação à produção de novas construções, foi motivo de grande discussão, que resultou em duras críticas por aqueles que se importavam por sua arquitetura, considerando-a como a imagem de uma era, e, ainda, discordavam da produção quantitativa como processo que se abstinha da produção qualitativa. O saldo desse período foi a reprodução de modelos antigos da arquitetura e o nascimento da expressão “revivalismo” de estilos, que se entende hoje por “historicismo”. Em outras palavras, o século XIX aprendeu os séculos anteriores e não com eles. No âmbito do tratamento para com as edificações antigas não foi diferente. No impulso de recuperar a imagem de uma instituição falida, a Igreja investiu fortemente na recuperação dos santuários que se encontravam em situação de abandono, tanto fisicamente quanto liturgicamente. A esta recuperação foi associado o termo “restauração”. Em relação a esse pensamento, Morris sintetiza:

“A arquitetura, ao menos como arte popular, se extinguiu em um longo processo decadente assim que nasceu o conhecimento da arte medieval. De modo que o mundo civilizado do século XIX não possui um estilo próprio, apesar do seu amplo conhecimento estilístico de outras eras. Deste vazio e desta conquista surgiu na mente dos homens a curiosa ideia da Restauração de construções antigas [...]”. (Manifesto da SPAB. 1877, §3)

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A ausência de concepção de novos modelos estilísticos no século XIX fez com que essa prática se tornasse uma das mais vis atividades realizadas com as edificações antigas.

“Acreditamos que os últimos cinquenta anos de conhecimento e atenção têm feito mais por sua destruição que todos os séculos precedentes de revolução, violência e desprezo.”. (Manifesto da SPAB. 1877, §2)

No entanto, cabe destacar as principais ideias de restauração, tanto conceituais como práticas, que levaram Morris a produzir esse ponto de vista. Por um lado, a reflexão crítica das palavras de Viollet-le-Duc:

“Restauration / s. f. Le mot et la chose sont modernes. Restaurer un édifice, ce n'est pas l'entretenir, le réparer ou le refaire, c'est le rétablir dans un état complet qui peut n'avoir jamais existé à un moment donné.” (VIOLLET-LE-DUC. 1866, p.14) “Ce programme admet tout d'abord en principe que chaque édifice ou chaque partie d'un édifice doivent être restaurés dans le style qui leur appartient [...]” (VIOLLET-LE-DUC. 1866, p.23) “Il faut qu'il [o arquiteto] ait pénétré dans toutes les parties de cette structure, comme si lui-même l'avait dirigée, et cette connaissance acquise, il doit avoir à sa disposition plusieurs moyens pour entreprendre un travail de reprise” (VIOLLET-LE-DUC. 1866, p.27)

E, por outro lado, as sugestões de John Ruskin:

“It [restauração] means the most total destruction which a building can suffer: a destruction out of which no remnants can be gathered: a destruction accompanied with false description of the thing destroyed. Do not let us deceive ourselves in this important matter; it is impossible, as impossible as to raise the dead, to restore anything that has ever been great or beautiful in architecture.” (RUSKIN. 1865, p.161) “The first step to restoration, [...] is to dash the old work to pieces; the second is usually to put up the cheapest and basest imitation which can escape detection, but in all cases, however careful, and however laboured, an imitation still, a cold model of such parts as can be modeled, with conjectural supplements [...]” (RUSKIN. 1865, p.162) “Do not let us talk then of restoration. The thing is a Lie from beginning to end.” (RUSKIN. 1865, p.162)

Os trechos acima citados ilustram a dicotomia ideológica em torno da atividade da restauração, tanto na França quanto na Inglaterra. Na prática, em ambos os países, geralmente utilizava-se do discurso técnico violetiano nos seus mais amplos conceitos, devolvendo à edificação antiga o seu tempo na história, como se o presente momento daquele trabalho não imperasse sobre o seu estado histórico, este, que já fora consagrado em tempos passados. Além do mais, restaurar era uma tarefa cujo conhecimento aprofundado das técnicas construtivas antepassadas era de fundamental importância para os arquitetos restauradores, visto que esse conceito os conduzia a se remontar na história e reproduzir, como os primeiros autores, uma cópia fidedigna de qualquer elemento, ornamental ou estrutural, considerado passível de restauração. Restauração, de um modo geral, consistia em despir de seu conjunto arquitetônico elementos por uma repetição de estilos ultrapassados. O resultado era uma obra, considerada por Ruskin e logo acolhida por Morris, falsa, cuja percepção do que foi mantido e

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do que foi alterado tornou-se ilegível ao olhar do espectador. Morris discorre sobre esse conceito da seguinte maneira:

“[...] no transcurso desse duplo processo de destruição e adição, toda a superfície da edificação forçosamente se perde; com isso se elimina a aparência envelhecida das partes antigas e das que foram deixadas [...]” (Manifesto da SPAB. 1877, §4)

Sobe a forma como esse tratamento era realizado em tempos passados, Morris comenta que:

“[...] este tipo de falsificação seria impossível devido à falta de conhecimento dos construtores, ou talvez porque o instinto os impediria de fazê-lo.” (Manifesto da SPAB. 1877, §4)

De fato, o que o “homem civilizado do século XIX” produziu em relação ao conhecimento das técnicas construtivas e restaurativas, nenhuma outra civilização passada havia até então desenvolvido. Contudo, o instinto que Morris comenta que poderia ser a outra razão pela qual esta prática não era realizada antigamente é a que falta no homem “moderno”. Por instinto, aqui, pode se associar à valorização do monumento como um objeto mais que um elemento tectônico, um legado histórico, artístico e cultural que o século XIX ainda não tinha compreendido o seu significado poético. E de aí vem a argumentação contra a ideia de restauração. A crítica a este conceito equivocado de tratamento às edificações antigas está na ausência de sua valorização quanto ao seu aspecto documental, “cujo nome sugere que é possível despir de uma construção esta, aquela, e outra parte de sua história”. Outro ponto, e que ultrapassa o entendimento do seu conceito, está relacionado aos profissionais envolvidos nesta prática que não haviam assimilado a importância das qualidades espirituais contidas na vida do monumento. Acerca destas declarações, Morris comenta:

“É triste dizer que, desta maneira, grande parte das maiores Catedrais e um vasto número de edificações mais humildes, ambos na Inglaterra e no Continente, foram, na maioria das vezes, encarregados por homens de talento e dignos do melhor trabalho, mas surdos às exigências da poesia e da história no sentido mais elevado das palavras.” (Manifesto da SPAB. 1877, §4)

A sociedade vitoriana presenciava naquele período uma inédita revolução associada à produção industrial. O operário tornou-se obsoleto, e a máquina tomou seu lugar no mundo do trabalho, implicando um processo produtivo serial quantitativo, desvalorizando a singularidade intrínseca à maneira artesanal de produção até então conduzida. Essa desvalorização se refletiu na arquitetura quando os homens encarregados da recuperação das edificações antigas sublimaram o processo artesanal que cada monumento possuía, destruindo a “poesia” das mais complexas estruturas aos menores ornamentos que tais construções carregavam consigo ao largo dos anos. Morris era contrário a essa destruição, e propôs, em oposição à “restauração”, a “proteção” dos edifícios antigos. Como forma de valorizar o trabalho do homem do passado, Morris propõe a reavaliação do conceito de “restaurar” e sugere a ideia de “proteger” como sendo a única maneira de legar às gerações futuras o edifico como um objeto vivo que descreve a história de seu povo. No entanto, o significado de proteção desses monumentos vai mais além. Proteger significa, também, atentar ao homem do século XIX que é necessário desenvolver um novo estilo para a sua época. O que seria do mundo clássico sem seus templos e do medievo sem suas catedrais góticas? São duas épocas da história, dentre outras, que ilustram que o homem é capaz de deixar sua própria e singular marca no tempo. Proteger este legado histórico é, de certa forma, abrir um novo espaço temporal na história e assumir que o homem é capaz de evoluir.

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Figura 2. Igreja de St. Albans em Hertfordshire, Inglaterra, antes (esq.) e depois (dir.) da restauração de Gilbert Scott na década de 1870

Fonte: TSCHUDI-MADSEN, 1976.

Figura 3. Interior da Abadia de Tewkesbury, Inglaterra, antes (esq.) e depois (dir.) da restauração de Gilbert Scott na década de 1870

Fonte: FAWCETT, 1976.

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