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Page 1: Peter Pan Escarlate - Geraldine McCaughrean
Page 2: Peter Pan Escarlate - Geraldine McCaughrean

“Gosto muito de estar na companhia de Exploradores.”

J. M. Barrie

Geraldine McCaughrean

Capa e ilustrações de David Wyatt

Tradução de

Maria Luiza Newlands Silveira

Publicado com o apoio do Hospital Infantil de Great Ormond Street. Londres

Título original: Peter Pan in Scarlet O poema de Hilaire Belloc, usado como epígrafe, foi retirado das Poesias completas do autor. Tradução de Maria Luira Newlands Silveira.

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Para todos os Exploradores audazes e para o senhor Barrie, é claro.

G.M.

COMO SURGIU ESTE LIVRO De início, foi uma peça de teatro. Depois, um

livro. Durante os primeiros anos do século 20, a his-tória de Peter Pan foi um sucesso permanente, que transformou James Matthew Barrie em um dos mais bem-sucedidos autores da Grã-Bretanha.

Em 1929, Barrie deu um presente extraordiná-rio para a sua instituição de caridade favorita. Doou todos os direitos autorais de Peter Pan para o Great Ormond Street Hospital, um hospital londrino para crianças. Isso significava que, sempre que alguém en-

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cenasse uma produção da peça ou comprasse um exemplar de Peter Pan and Wendy, o hospital ficaria mais rico, em vez de Barrie. Ao longo dos anos, veri-ficou-se que o presente fora mais valioso do que ele jamais poderia imaginar.

Em 2004, o Hospital Infantil de Great Or-mond Street decidiu autorizar, pela primeira vez, a criação de uma seqüência para o livro Peter Pan and Wendy. Promoveu-se um concurso para encontrar, entre autores de todo o mun-do, alguém capaz de continuar as aventuras de Peter na Terra do Nunca. Com um resumo do livro e um capítulo de amostra, Geraldine McCaughrean venceu o concurso. Peter Pan escarlate foi o livro que ela escreveu. E, agora, vo-cê pode lê-lo.

Do sossego do lar e do dia de começar Até o fim ainda por descobrir, Nada se compara ao prazer de vencer A não ser rir e ter amigos para amar

Hilaire Belloc

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Capítulo Um

Senhores de Respeito — Não quero ir dormir — disse João, o que

surpreendeu sua mulher. As crianças nunca estão com vontade de ir dormir, mas gente grande como João geralmente já sai correndo para seu travesseiro e seu edredom assim que acaba de jantar.

— Não quero ir dormir! — João disse outra vez, e de um jeito tão exaltado que a mulher percebeu que ele estava muito aflito realmente.

— Andou sonhando outra vez, não é? — disse ela, com meiguice na voz. — Coitado, que aborreci-mento...

João esfregou os olhos com as mãos fechadas. — Já disse a você, eu não sonho nunca! Que

coisa, ninguém acredita em mim, nem na minha pró-pria casa!

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A mulher afagou o cabelo lustroso dele e foi arrumar a cama para a noite. E lá, no lado da cama onde João dormia, havia algo protuberante debaixo da colcha. Não era uma bolsa de água quente nem um urso de pelúcia nem um livro da biblioteca. A senhora João levantou o lençol. Era um sabre de pi-rata.

Dando um suspiro, pendurou-o no cabide a-trás da porta do quarto, junto com a aljava cheia de flechas e o roupão de João. Tanto ela quanto o ma-rido preferiam fingir que nada estava acontecendo (porque é assim que gente grande faz quando está em uma situação difícil), mas secretamente ambos sabi-am: João estava sonhando de novo com a Terra do Nunca.

E, depois de cada sonho, alguma coisa sempre ficava para trás em sua cama, na manhã seguinte, como os caroços em um prato depois que se come ameixas. Uma espada aqui, uma vela ali, um arco, um vidro de remédio, uma cartola... Depois da noite em que ele sonhou com sereias, um cheiro de peixe pai-rou pelas escadas durante o dia inteiro. O armário estava entulhado até em cima com os refugos dos sonhos — um despertador, um cocar de índio, um tapa-olho, um chapéu de pirata, de três pontas. (As piores noites eram aquelas em que João sonhava com o Capitão Gancho.) A senhora João afofou os tra-vesseiros com um tapinha enérgico — e um tiro de pistola ecoou pela casa, acordando os vizinhos e a-pavorando o cachorro. A bala disparou dentro do quarto, derrubou o pé do abajur e espatifou um vaso. Com dois dedos e o maior cuidado, a senhora João

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puxou a pistola de debaixo do travesseiro e jogou-a dentro da lata de lixo, como se fosse um salmão que não estivesse muito fresco.

— São tão reais! — choramingou o marido, parado à porta. — Esses sonhos desgraçados são tão incrivelmente REAIS!

Em toda a cidade de Londres, até em lugares afastados como Fotheringdene e Grimswater, senho-res respeitáveis estavam sonhando o mesmo tipo de sonhos. Não eram meninos pequenos, jovens e bo-bos, mas meninos que já tinham crescido: senhores bem dispostos, fleumáticos, que trabalhavam em bancos ou dirigiam trens ou cultivavam morangos ou escreviam peças de teatro ou se candidatavam para o Parlamento.

No aconchego de seus lares, rodeados pelas famílias e pelos amigos, sentiam-se confortáveis e seguros... até que os sonhos começaram. Agora, so-nhavam todas as noites com a Terra do Nunca e, ao acordar, encontravam sobras em suas camas — ada-gas, rolos de corda, montes de folhas, um gancho.

E o que eles tinham em comum, todos esses sonhadores? Só uma coisa. Haviam sido um dia Me-ninos na Terra do Nunca.

— Reuni vocês todos aqui porque algo precisa ser feito! — disse o juiz Piuí, torcendo seus vastos bigodes. — Esse negócio não está nada bom! Isso já foi longe demais! Assim não dá! Chega! Temos de agir!

Estavam tomando uma sopa marrom na bibli-

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oteca do Clube dos Cavalheiros, perto de Piccadilly1 — uma sala marrom com retratos marrons de cava-lheiros vestindo ternos marrons. A fumaça da lareira pairava no ar parecendo um nevoeiro marrom. Em cima da mesa de jantar, encontravam-se armas varia-das, uma sola de sapato, um gorro e dois gigantescos ovos de pássaro.

Sua Excelência Deleve mexeu nos objetos com ar pensativo:

— Os despojos da Noite lançados às praias da Manhã! — murmurou (é que Sua Excelência Deleve, além de tocar clarineta em um clube noturno, tinha uma certa inclinação para escrever poesia).

— Chamem a senhora Wendy! A senhora Wendy com certeza saberá o que devemos fazer! — determinou o juiz Piuí. Mas a senhora Wendy, é cla-ro, não fora convidada, porque não é permitida a en-trada de senhoras no Clube dos Cavalheiros.

— Acho que é melhor deixar as coisas como estão, não vale a pena mexer com cachorro bravo que está dormindo — disse o senhor Bicudo, mas nin-guém aclamou a idéia porque também não permitem a entrada de cachorros no Clube dos Cavalheiros.

— A mente domina a matéria! — exclamou o senhor João. — Precisamos nos esforçar para não so-nhar!

— Já fizemos isso — disseram os Gêmeos com ar sombrio. — Ficamos acordados todas as noi- 1 Uma praça do centro de Londres, que fica na interseção de ruas importantes como a Regent Street (um centro de com-pras) e a Shaftesburry Avenue (onde ficam os teatros mais importantes da cidade). (Nota da Editora.)

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tes durante uma semana inteira. — E o que aconteceu? — perguntou o senhor

João, intrigado. — Adormecemos no ônibus em Londres

quando íamos para o trabalho e sonhamos sem parar até chegar em Putney2. Quando saltamos do ônibus, estávamos os dois pintados para a guerra como dois índios.

— Absolutamente fascinante — comentou Sua Excelência Deleve.

— Na noite passada, sonhamos com a Lagoa — acrescentou o Segundo Gêmeo.

Ouviu-se um murmúrio de suspiros de simpa-tia. Cada um dos Senhores de Respeito sonhara re-centemente com a Lagoa e acordara com o cabelo molhado e os olhos ofuscados pelos reflexos da luz na água.

— Isso tem cura, Cabelinho? — indagou o senhor Bicudo, mas o doutor Cabelinho não sabia de nenhum tratamento que curasse surtos de sonhos in-desejados.

— Deveríamos redigir uma carta de protesto! — ressoou o vozeirão do juiz Piuí, indignado.

Mas ninguém conhecia nenhum Ministério dos Sonhos nem sabia se existia um Secretário de Estado para Pesadelos.

Por fim, nada tendo resolvido e sem ter um plano de campanha, os Senhores de Respeito mergu-lharam no silêncio e adormeceram em suas poltronas,

2 Bairro de Londres que fica a cerca de 5 km do centro. (Nota da Editora.)

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e gotas marrons do café de suas xícaras pingaram no tapete marrom. E todos sonharam o mesmo sonho.

Sonharam que estavam brincando de pe-ga-pega com as sereias, enquanto os reflexos do ar-co-íris moviam-se sinuosos ao redor e entre eles co-mo se fossem cobras-d’água. Então, de algum ponto mais profundo e escuro, veio deslizando um vulto imenso e eles sentiram sua couraça encalombada e escamada roçar-lhes as solas dos pés...

Quando acordaram, as roupas dos Senhores de Respeito estavam encharcadas e, bem ali na frente, de barriga para cima, no meio da Biblioteca do Clube dos Cavalheiros, havia um crocodilo prodigioso, agi-tando violentamente a cauda, abrindo e fechando a bocarra com um barulhão tremendo, em um esforço para se virar e fazer deles sua ceia.

O Clube dos Cavalheiros esvaziou-se no tem-po recorde de quarenta e três segundos e, no dia se-guinte, todos os membros receberam uma carta da gerência.

Clube dos Cavalheiros Rua Marrom, esquina de Piccadilly, Londres,

W1 23 de abril de 1926 Lamentamos informar que o Clube ficará fe-

chado para reformas de 23 de abril até aproximada-mente 1999.

Cordialmente, A Gerência

No fim, é claro, foi mesmo a senhora Wendy

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quem explicou tudo. — Os sonhos estão vazando da Terra do

Nunca — declarou ela. — Alguma coisa deve estar errada. Se quisermos que os sonhos parem, temos de descobrir o que é.

A senhora Wendy era uma mulher adulta, e das mais sensatas. Tinha uma cabeça metódica, organiza-da. Durante os seis primeiros dias de todas aquelas semanas, não admitiu de modo nenhum que os so-nhos atravancassem sua casa com objetos estranhos.

Mas, no sétimo, já não estava tão segura. Nos últimos tempos, dera por si com pressa de ir dormir, ansiosa para entrar naquele lampejo crepuscular que vem entre a vigília e o sono. Por trás das pálpebras fechadas, ela observava um sonho vir flutuando em sua direção — assim como outrora observara o céu da janela de seu quarto, esperando em vão que um pequeno vulto surgisse de repente entre as estrelas. Todos os dias, na hora de dormir, seu coração batia mais rápido quando pensava em avistar a Lagoa outra vez ou escutar o canto do Pássaro do Nunca. Mais que tudo, ansiava por ver Peter de novo: o amigo que deixara na Terra do Nunca tantos anos antes.

Naquele momento, porém, a Terra do Nunca estava roçando no Aqui e Agora, fazendo furos no tecido que os separava. Tentáculos de sonho esguei-ravam-se pelas frestas. Algo ia mal. A senhora Wendy de alguma forma o pressentia.

— Talvez os sonhos sejam mensagens — disse um Gêmeo.

— Talvez sejam avisos — sugeriu o outro. — Talvez sejam sintomas — especulou o

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doutor Cabelinho, pondo seu estetoscópio na própria testa e auscultando-a para verificar os sonhos lá den-tro.

— Receio muitíssimo que de fato sejam — disse Wendy. — Algo vai mal na Terra do Nunca, cavalheiros... E é por isso que temos de voltar lá.

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Capítulo Dois Primeiro, encontre sua fada

— Voltar!? Voltar para a Terra do Nunca? Voltar para a

ilha misteriosa, com suas sereias, piratas e índios pe-les-vermelhas? Os Senhores de Respeito bufaram e vociferaram e sacudiram as cabeças até suas boche-chas sacolejarem. Voltar para a Terra do Nunca? Nunca!

— Absurdo! — Ridículo! — Tolice! — Despautério! Chorumela! Disparate! — Sou um homem ocupado! Na claridade rósea de sua sala de visitas, a se-

nhora Wendy serviu mais chá e ofereceu os sanduí-ches de pepino.

— A meu ver, existem três problemas — disse ela, ignorando as exclamações de protesto deles. — Primeiro, estamos todos crescidos demais. E só cri-anças podem voar para a Terra do Nunca.

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— Exato! — O juiz Piuí baixou os olhos para os botões repuxados de seu colete. Com o passar dos anos, ele havia realmente crescido um bocado, em todas as direções.

— Segundo, não podemos mais voar como fa-zíamos antes — acrescentou a senhora Wendy.

— Pois é, então! — O senhor João lembrou-se da noite em que um menino vestido com uma roupa toda feita de folhas secas entrara voando em sua vida e ensinara-lhe a voar também. Lembrou-se do salto da janela aberta de seu quarto de dormir e daquele primeiro momento de suspense em que a noite o se-gurara na palma da mão. Lembrou-se de mergulhar e depois subir bem alto no céu negro, detectado pelos morcegos, pinicado pelo frio da geada, agarrado ao cabo de seu guarda-chuva... Ah, como ele era corajo-so naquele tempo! O senhor João sobressaltou-se quando a senhora Wendy deixou cair um torrão de açúcar na xícara dele com uma pinça de prata: seus pensamentos estavam soltos lá em cima ao luar.

— E, além disso, para podermos voar — es-tava dizendo a senhora Wendy —, precisamos de po-eira das fadas.

— Então, a idéia é simplesmente impossível. — O olhar de Sua Excelência Deleve pousou nos farelos de pão que haviam caído em suas calças e ele sentiu um nó na garganta. Lembrou-se da poeira das fadas. De como cintilava em sua pele como se fossem gotas d’água. Lembrou-se da sensação que desperta-va, do formigamento que lhe corria pelas veias. Mesmo depois de tantos anos, ele ainda se lembrava.

— Acho melhor não contarmos a ninguém

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que vamos — aconselhou a senhora Wendy. — Pode preocupar aqueles que amamos. E também atrair a atenção dos jornais.

Pelo jeito, não adiantava discutir com ela, de modo que os Senhores de Respeito anotaram o que ela disse em suas agendas de compromissos, sob o título

Tarefas a cumprir: - Deixar de ser adulto - Lembrar como voar - Encontrar poeira de fadas - Inventar alguma coisa para dizer à esposa

— Acho que de sábado a uma semana vai ser a

melhor data — disse a senhora Wendy. — Vai haver lua cheia nessa noite e sábado é um dia em que nin-guém precisa ir buscar as crianças no colégio. Até lá, espero também que este meu incômodo resfriado já tenha passado. Portanto, cavalheiros, ficamos com-binados para o dia 5 de junho, certo? Creio que posso contar com os senhores para tomar todas as provi-dências, não é?

Os Senhores de Respeito escreveram em suas agendas:

Sábado, 5 de junho. Ir para a Terra do Nunca.

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Depois, morderam seus lápis e esperaram que a senhora Wendy lhes dissesse o que fazer em segui-da. Wendy saberia. Ora, pois se, mesmo resfriada, ela nem precisava de uma agenda para lembrá-la quais as tarefas a realizar!

No dia seguinte, o resfriado da senhora Wendy

impediu-a de sair, mas os Senhores de Respeito en-contraram-se nos Jardins de Kensington3 munidos de redes de caçar borboletas, andando de um lado para outro. Procurando fadas.

Soprava uma brisa forte. Alguma coisa branca e esvoaçante roçou no rosto do senhor Bicudo e ele deu um grito esganiçado:

— Tem uma aqui! Ela me beijou! E todos os cavalheiros saíram atrás, agitando

as suas redes de borboletas. O vento estava aumen-tando. Outros fragmentos brancos passaram voando por eles, até o ar parecer cheio de flocos de neve, to-dos rodopiando e dançando, leves como plumas. Os Senhores de Respeito achatavam a grama, pesadões, correndo para lá e para cá, dando golpes nas fadas com as redes, de vez em quando batendo uns nos outros sem querer, resfolegando e gritando:

— Peguei uma!

3 Um dos mais importantes parques da cidade de Londres. Lá fica o palácio de Kensington, onde nasceu e viveu a rainha Vitória, até receber a notícia de que seria coroada rainha. (Ela reinou de 1819 a 1901.) Lá também está a estátua de Peter Pan, pois foi nesses jardins que, originalmente, J. M. Barrie situou a história do menino que não queria crescer. (Nota da Editora.)

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— Eu tamb... Aai! — Olhe uma aqui! Quando foram espiar dentro de suas redes de

borboletas, porém, só encontraram as penugens que transportam pelo ar as sementes dos primeiros den-tes-de-leão do verão. Não havia uma única fada no meio delas.

Procuraram durante o dia inteiro. Quando o sol se pôs e os estorninhos reuniram-se esvoaçando acima da cidade cintilante, os Meninos Perdidos es-conderam-se no meio dos arbustos dos Jardins de Kensington. As primeiras estrelas aventuraram-se no céu, seu reflexo espalhando lantejoulas na água do Serpentine4. E, súbito, o ar palpitava de tanto bater de asas!

Exultantes, os emboscados saíram de seus es-conderijos e lançaram-se para todos os lados, redes em punho, na caçada.

— Peguei uma! — Por Júpiter! — Cuidado, não as machuquem! — Uui! Preste mais atenção, meu caro! — Ora, mas isso é um bocado divertido! En-

tretanto, quando viraram as redes do avesso, o que encontraram? Mosquitos, mariposas e cupins.

— Tenho uma aqui! Decididamente! Incon-testavelmente! — gritou o senhor João, comprimindo seu chapéu-coco na cabeça para manter a cativa no interior. Os outros se reuniram em torno dele, aco-

4 Lago que fica dentro dos Jardins de Kensington. (Nota da Editora.)

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tovelando-se para ver. O chapéu foi retirado, produ-zindo um ruído de sucção; o senhor João colocou o polegar e o indicador lá dentro, pegou algo no forro de cetim e levantou-o para mostrar a eles: o corpo iridescente, purpúreo, brilhante, flexível, a-zul-turquesa de...

Uma libélula. O senhor João abriu os dedos e sete pares de

olhos desapontados acompanharam a linda criatura fazer um ziguezague no ar e retomar sua valsa na di-reção da água.

— Não acredito que haja uma única fada... — começou o doutor Cabelinho, mas os outros o der-rubaram no chão e num instante taparam-lhe a boca com as mãos.

— Calado! Não diga isso! Jamais diga isso! — ex-clamou o senhor Bicudo, horrorizado. — Não se lembra? Toda vez que alguém diz que não acredita em fadas, uma fada morre em algum lugar!

— Eu não disse que não acreditava nelas! — retrucou o doutor, alisando o terno amarrotado. — Eu só ia dizer que não acredito que haja uma única fada aqui. Esta noite. Neste parque. Minhas calças estão sujas de lama, os mosquitos morderam minhas cane-las e ainda não jantei. Será que agora não é melhor desistirmos?

Os outros Senhores de Respeito olharam ao redor para o parque na penumbra do anoitecer, para a luz fraca e distante dos postes da rua. Examinaram as solas dos sapatos, para o caso de alguém ter pisado por engano em alguma fada. Contemplaram as águas do Serpentine, para o caso de algumas daquelas es-

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trelas ali refletidas serem na realidade fadas, nadando. Sem fadas, não haveria poeira de fadas. Talvez, afinal de contas, eles não fossem mesmo voltar à Terra do Nunca.

— É melhor assim. Idéia mais absurda... — resmungou o senhor João, mas ninguém respondeu.

Sua Excelência Deleve tirou do bolso uma bolha diáfana e luzidia com todas as cores do ar-co-íris.

— Na noite passada, sonhei que estava jogan-do pólo aquático com as sereias — contou. — Isto estava em cima do meu travesseiro quando acordei.

A bolha rebentou e desapareceu. Os portões do parque estavam trancados

quando eles os alcançaram. Os Senhores de Respeito tiveram de pulá-los, e com isso o juiz Piuí rasgou seu melhor paletó de lã.

E afinal foi mesmo a senhora Wendy quem resolveu a questão, é claro. No dia seguinte, ela saiu com eles para os Jardins de Kensington, caminhando à frente do grupo, vestida com um casaco de linho e usando um esplêndido chapéu enfeitado com uma pluma.

— Mas nós já olhamos aqui ontem! — pro-testou seu irmão. — Não havia uma única fada!

— Não estamos procurando fadas — replicou a senhora Wendy. — Estamos procurando carrinhos de bebê!

Vinte anos antes, o parque estaria cheio de babás empurrando carrinhos de bebês para cima e para baixo, enchendo as crianças de bom ar puro. Mas, com o passar do tempo, as babás tinham-se

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tornado uma espécie mais rara. Havia apenas três naquele momento, empurrando carrinhos, dando comida aos patos, limpando os narizes dos bebês, apanhando chocalhos atirados na grama. Era uma cena que sempre perturbava os Senhores de Respei-to...

Um dia, Cabelinho e Piuí, Bicudo, Deleve e os Gêmeos haviam sido bebês como aqueles dos carri-nhos. Um dia, alguém os aconchegara em suas man-tas e, agasalhados e confortáveis, tinham visto o céu azul com seus grandes e deslumbrados olhos azuis, olhos de recém-nascidos. Mas caíram de seus carri-nhos.

E perderam-se. Extraviaram-se. Foram entregues ao departamento de Achados

e Perdidos e, no depósito, guardados na letra B, entre A de “aquários” e C de “críquete, bastões de”. Nin-guém apareceu para reclamá-los e, depois de mais ou menos uma semana, foram mandados pelo Correio para a Terra do Nunca. Lá, juntaram-se a todos os outros Meninos Perdidos, tendo de se arranjar sem boas maneiras e sem mães, precisando se contentar com refeições de faz-de-conta e metendo-se em uma porção de aventuras com seu chefe, Peter Pan.

Quando um carrinho de bebê passou por eles, o senhor Bicudo não se conteve e pediu:

— Oh, por favor, tome muito cuidado com esse bebê, moça! Sei que não é tão terrível assim ser um Menino Perdido, mas, de qualquer maneira, tome muito cuidado para que ele não caia do carrinho! Nem todos os Meninos Perdidos têm tanta sorte quanto nós! Nem todos são adotados por gente como o se-

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nhor e a senhora Darling, e amados, e queridos, e abençoados com tortas de creme aos domingos e uma educação universitária!

— Bem, eu nunca deixei nenhum cair! — ex-clamou a babá. — Espero que o senhor não esteja insinuando que eu possa perder um dos meus bebês, não é, meu senhor? Como se isso fosse possível! Como se eu nunca... — Mas antes que o acesso de mau humor dela se intensificasse, o bebê dentro do carrinho começou a chorar.

Enquanto eles falavam, a senhora Wendy esti-vera debruçada no carrinho, usando a pluma do seu chapéu para fazer cócegas no bebê.

— O que a senhora está fazendo, madame? — assustou-se a babá. — Esse aí é alérgico a plumas.

— Droga! — disse a senhora Wendy, irritada consigo mesma e, secretamente, com o bebê também. — Senhor Deleve, não fique aí parado! Cante!

E Sua Excelência Deleve (que, caso vocês não se lembrem, tocava clarineta num clube noturno), repentinamente, percebeu que o sucesso do plano todo dependia dele. Segurando o bebê, ele começou a cantar. — Orfeu, com seu alaúde, com seu alaúde fez as ár-vores...

Não adiantava. O bebê berrava mais alto ain-da.

— Oh, o grande duque de York tinha dez mil ho-mens...

E o bebê continuava a chorar. — Venha para o jardim, Maud, Pois a noite negra

qual um morcego já voou! — Agora vejam só o que vocês fizeram! —

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disse a babá, atordoada com a barulheira e olhando em torno à procura de um policial.

O senhor Deleve pôs um joelho no chão e cantou:

— Mamãe! Mamãe! Eu andaria um milhão de mi-lhas só por um de seus sorrisos, minha Ma-a-a-mãe!

E, de repente, o bebê começou a rir! Era um ruído parecido com o gorgolejar da

água saindo de uma jarra, e tão delicioso que a babá, alegre, bateu palmas e riu também.

— É a primeira risadinha dele, benza Deus! Em um movimento conjunto, os Senhores de

Respeito tiraram os chapéus. Até a senhora Wendy desalfinetou e tirou o seu. Então, diante da babá es-tupefata, eles jogaram o bebê de volta dentro do car-rinho e saíram em disparada pelos Jardins de Ken-sington, pulando, brincando de pegar e agitando feito doidos seus chapéus-coco pretos e seus chapéus marrons.

— Ora, ora! — disse a babá. — Este mundo está mesmo virado!

Entre canteiros de aubretia5 alaranjada, ao lado do memorial da guerra, eles o apanharam — uma coisinha minúscula e azulada de cabelo vermelho, os olhos da cor do mel — uma fada! (Ou melhor, um elfo, a versão masculina das fadas.) Como um tordo saindo do ovo, ele nascera daquela primeira risadinha do bebê que, como vocês sabem, é o que acontece com todas as fadas.

5 Planta ornamental que pertence à família do repolho e do nabo. (Nota da Editora.)

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Os Senhores de Respeito estavam cansados e sem fôlego, mas triunfantes.

Equivocadamente, a senhora Wendy batizou o elfo de Con Brio, sem saber que ele já vinha pronto, com nome e tudo.

— Sou o Pirilampo! — disse o elfo, indignado —, e estou com fome!

Assim, eles o levaram para os Salões de Chá do Serpentine, alimentaram-no com sorvete, farelos de bolo e chá frio e depois seguiram para casa levando-o no chapéu do senhor João, no alto, igual a um pe-queno potentado oriental. Ao chegarem na Praça Cadogan6, o chapéu estava ligeiramente chamuscado, mas também quase cheio pela metade de poeira de fadas.

6 Praça de Londres que fica próxima aos Jardins de Kensing-ton. (Nota da Editora.)

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Capítulo Três

A mudança de roupas — Você conhece a Sininho? — indagou o se-

nhor João. — Conheço tudo — respondeu Pirilampo. — O

que é uma Sininho? Com uma cúpula de abajur, Wendy improvi-

sou uma espécie de tenda de índio para o elfo morar, e agora ele estava ocupado arrecadando provisões, para o caso de o próximo inverno ser rigoroso.

— Ainda estamos em junho — lembrou o se-nhor Bicudo.

— Eu sinto MUITA fome — rebateu Pirilampo.

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Eles já haviam notado, pois Pirilampo àquela altura já arrancara todos os botões do sofá Chesterfi-eld7, as borrachas de três lápis, o pingente de seda do cordão da campainha e a gravata-borboleta do senhor Deleve. Ele parecia um esquilinho, pulando pela sala, farejando e lambendo tudo, à cata de comida.

— Quem é Sininho? Respondam! — repetia Piri-lampo. — As fadas e elfos morrem quando não se dá bola para eles.

Os Gêmeos explicaram que, anos antes, ti-nham todos vivido na Terra do Nunca, com Peter Pan e sua fiel auxiliar a Fada Sininho. Contaram co-mo Sininho era corajosa e, ao mesmo tempo, ranco-rosa, e maliciosa, e ciumenta, e linda e...

— Não tão linda quanto eu! — interrompeu Piri-lampo. — Ninguém é tão lindo quanto eu... nem tão faminto! — e deu tamanha dentada em uma vela que a cortou até o pavio e derrubou o toco no chão.

— Não sei como você poderia conhecer a Si-ninho, seu pilantrinha — disse Deleve —, já que nasceu ontem. Aai!

Pirilampo mordera-lhe o dedo. — É porque eu sou muito retrógrado, é por isso! Sei

todos os tipos de coisas que aconteceram antes. Sou tão retró-grado quanto uma ferroada de abelha, euzinho!

Deleve chupou a ponta do dedo mordido. — Pois acho que, para uma pessoinha tão pe-

quena, você conta mentiras extraordinariamente grandes. O elfo ruivo abriu um enorme sorriso, en- 7 Modelo de sofá da época da rainha Vitória, que se caracteri-za por ter vários botões costurados no seu encosto e assento. (Nota da Editora.)

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cantado, e fez-lhe uma profunda mesura, inclinan-do-se e executando um elegante volteio com as duas mãos. Daquele momento em diante, passou a de-monstrar grande dedicação a Deleve, só porque ele admirara o tamanho de suas mentiras.

Apesar de todas as advertências da senhora Wendy para que não tentassem voar até voltarem a ser pequenos, os Senhores de Respeito não conse-guiram resistir a uma tentativa. O juiz Piuí chegou ao extremo de agarrar Pirilampo e, como se ele fosse um sabonete, esfregar-se todo com o elfo. Depois, abriu os braços e voou igual a um pássaro!

...Melhor dizendo, igual a um grande avestruz. Ou uma daquelas emas descabeladas que bicam o pescoço das pessoas no zoológico. Piuí deslocou-se pesadamente por uns duzentos metros, batendo os braços como se fossem asas, depois ficou sem fôlego e tão incapaz de voar quanto um dodó8.

O doutor Cabelinho, magro como um galgo e em muito boa forma física, conseguiu voar até o alto de um poste de rua, mas perdeu a coragem e teve de ser resgatado com a escada comprida que se usa para entrar no forro da casa. A senhora Wendy garan-tiu-lhes, ao guardar a escada, que tudo daria certo na

8 A autora faz referência ao Raphus cucullatus, um pássaro que vivia nas Ilhas Maurício, um arquipélago na costa leste da Á-frica. Media cerca de 1 m de altura e era muito desajeitado. Por ser grande e dócil, foi muito caçado pelos portugueses, que ali chegaram em 1505. Também os animais domésticos trazidos de fora foram responsáveis por sua extinção, por destruírem os ninhos dos dodós. O último deles foi morto em 1681. (Nota da Editora.)

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noite combinada, mas nenhum deles tinha tanta cer-teza assim.

Acompanharam o passar dos dias como se fossem trens indo e vindo em uma estação. Então, sem mais nem menos, chegou o 5 de junho, e o mo-mento de embarcar nele e partir para a Terra do Nunca. Pirilampo explicara-lhes o que fazer. Era ne-cessário efetuar uma troca de roupas.

Em toda a cidade de Londres, até em locais afastados como Fotheringdene e Grimswater, senho-res respeitáveis desceram velhas malas dos seus só-tãos e tiraram lá de dentro toda a coragem que pos-suíam. Foram aos seus bancos e retiraram toda a au-dácia que tinham economizado ao longo dos anos. Verificaram o interior de todos os bolsos de todos os seus ternos e procuraram embaixo das almofadas do sofá para juntar toda a bravura que pudessem arran-jar.

E, ainda assim, parecia que não era suficiente. Compraram flores para suas esposas, brin-

quedos para seus filhos e lavaram as janelas dos seus vizinhos. Solicitaram licenças para se ausentar dos escritórios. Escreveram cartas para seus familiares mais próximos e queridos, mas rasgaram-nas logo depois, porque ADEUS é a palavra mais difícil que há para se escrever.

Quando chegou a hora do banho na casa do Primeiro Gêmeo, e enquanto seus filhos gêmeos brincavam na água, ele sorrateiramente apanhou u-mas roupas deles no chão do banheiro e saiu de fini-nho de casa.

Chegou a hora de rezar na casa ao lado e o

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Segundo Gêmeo disse aos seus filhos gêmeos idênti-cos:

— Mãos postas e olhos fechados. E surripiou um uniforme de colégio, saindo

em seguida nas pontas dos pés. Na casa do doutor em Fotheringdene, Cabeli-

nho estendeu a mão para roubar o uniforme de rugby de seu filho... mas o Cachorrinho novo chegou antes, mordeu a gola e pendurou-se nela, implacável. O animal rosnava e gania, as patinhas arranhavam o chão encerado e faziam um barulhão. O menino a-cordou — Quem está aí? —, de modo que Cabelinho não teve alternativa a não ser apanhar o cachorro junto com a camisa e sair correndo.

Chegou a hora de contar histórias na casa do senhor João, e ele leu para seus pequenos até eles dormirem, dirigiu-lhes um último olhar e saiu deva-garinho pela porta, levando consigo uma roupa de marinheiro roubada. No alto da escada, teve um so-bressalto de culpa, pois lá estava a senhora João. Ela sabia de tudo, é claro. O senhor João não deixara es-capar uma única palavra sobre a Viagem, mas mesmo assim ela sabia. As esposas sempre sabem. Agora, ela entregava a ele um lanche num embrulho, além de um par de meias limpas e uma escova de dentes. Até passara a ferro a roupa de marinheiro antes que ele a vestisse.

— Tome cuidado, meu amor — disse, beijan-do-o com carinho e acompanhando-o à porta da frente. — Dê muitas lembranças minhas a Peter Pan.

O juiz Piuí deu-se conta, com o dia já bem avançado, que ele só tinha filhas. A idéia quase o a-

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covardou. Seus dedos dirigiram-se para os vastos bi-godes, que ele acariciou como um bicho de estimação muito querido que fosse preciso deixar para trás ao mudar de casa.

O Bicudo... bem, o senhor Bicudo simples-mente não conseguiu ir. De pé ao lado dos beliches no quarto dos fundos, contemplando os rostinhos de seus filhos adormecidos, ele simplesmente não se imaginava indo a qualquer lugar sem eles — jamais. Desistiu ali e naquele momento da viagem à Terra do Nunca. Na verdade, ele até acordou as crianças para perguntar:

— Em que a Terra do Nunca pode ser melhor que vocês?

E Sua Excelência Deleve Darling? Bem, na-quele momento, ele estava sentado sozinho em seu apartamento elegante com a clarineta no colo. Quando Pirilampo ensinou a eles o segredo de voltar a ser criança, Deleve balançou a cabeça, mas não dis-se nada. Viu a data se aproximar e sonhou sonhos com a Terra do Nunca, mas não disse nada. Viu os outros se encherem de forças para a aventura, todos os dias espanando o pó da cúpula de abajur de Piri-lampo para conseguir a mágica das fadas, preparan-do-se para a partida... e ainda assim não disse nada. E lá estava ele em seu apartamento elegante, sentado com a clarineta silenciosa no colo.

Não era de seu feitio estragar a diversão dos outros. Por isso não dissera nada. E todos eles ti-nham esquecido — seus irmãos e irmã adotivos — que Deleve não tinha filhos, ninguém cujas roupas pudesse pegar emprestado, ninguém para fazê-lo vi-

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rar criança outra vez. Porque, claro, é assim que se faz. Todo mundo

sabe que quando uma pessoa veste uma fantasia ou um traje de gala, ela vira uma pessoa diferente. De-duz-se então que, se alguém vestir as roupas dos fi-lhos, volta a ter a mesma idade deles.

Dentro de guarda-roupas e de armários de vassouras, saltitando em um pé só nas ruas ilumina-das por postes de luz, esforçando-se para enfiar a ca-beça em pequenas golas e os pés em minúsculas chu-teiras de futebol; fazendo as costuras das roupas esti-carem-se até quase rebentar e tropeçando nas faixas dos roupões, deixando cair carteiras de dinheiro e canetas-tinteiro e furtando cachorrinhos, os Senhores de Respeito lutavam para entrar nas roupas de seus filhos. Vocês podem estar aí perguntando como foi possível o juiz Piuí caber em um vestido de festa com a frente toda bordada em casinha-de-abelha e calçar sapatilhas de balé. Só posso dizer que no céu brilhava uma lua redonda como um pandeiro, havia mágica no ar e que, de alguma forma, todos os colchetes das roupas se engancharam e todos os botões se abotoa-ram direitinho.

As mentes deles se encheram de pensamentos sobre a Terra do Nunca e de vontade de fugir. E, coisa mais esquisita, à medida que corriam, seus pés não evitavam mais as poças d’água do caminho mas preferiam chapinhar nelas. Os dedos das mãos deci-diram se arrastar pelas grades de ferro, os lábios re-solveram assobiar, os olhos insistiam em brilhar.

O doutor Cabelinho sentiu seu bom senso es-correr-lhe da cabeça como se fosse areia, sendo subs-

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tituído por idéias esfogueteadas, como busca-pés e estrelinhas. Cada um dos Gêmeos de repente se lem-brou quais eram as histórias de fadas prediletas do outro. O juiz Piuí descobriu que conseguia enxergar sem os óculos e, quando se balançou no trepa-trepa do parque, seus dentes não latejaram. Mas os lábios superiores pareciam estranhamente desguarnecidos, pois durante muito tempo ela (ou melhor, ele) tivera ali um vasto bigode recurvado de que agora sentia falta, tanto quanto alguém pode sentir falta de seu hamster de estimação.

Quando os Senhores de Respeito esfregaram poeira de fadas na base dos pescoços, os cabelos es-petados cortados rente ficaram sedosos sob seus de-dos — com exceção de Piuí, é claro, que deu por si com longas tranças louras e sabendo as posições de balé de Um a Cinco.

...Mas Sua Excelência Deleve não tinha filhos. De modo que ficou sentado em seu apartamento e-legante sentindo nos ombros o peso de cada um de seus trinta anos. Tirou a gravata do seu traje a rigor e foi dormir cedo, na esperança de ao menos sonhar com a Terra do Nunca.

Quanto à senhora Wendy, bem, ela escreveu uma carta para as pessoas de sua casa, explicando que fora visitar uma amiga distante e que voltaria logo. Antes de vestir a roupa que pertencia à filha Jane, ela serziu as meias da menina, apagou com uma borracha os erros que ela cometera naquele dia, tricotou um sonho feliz para enfiar debaixo do travesseiro dela e arrumou suas orações em ordem alfabética. Depois, colocou alguns objetos de primeira necessidade den-

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tro de uma cesta de palha e contorceu-se toda para entrar num vestidinho limpo de verão, enfeitado com aplicações de girassóis e dois coelhos.

— Faz sempre um calor tão abafado na Terra do Nunca! — explicou à filha adormecida.

— Extraordinário! Cabe perfeitamente em mim. Surpreendeu-se com um último espirro de seu resfriado e, mais que depressa, apanhou um lenço no bolso do vestido que acabara de tirar, guardando-o dentro de sua manguinha bufante, depois saiu furti-vamente para a varanda.

Enquanto espalhava com um pente sua cota de poeira das fadas no cabelo, listas e datas de aniversá-rio foram saindo de sua cabeça e esvaziando-a, e também se foram a política, a datilografia, os poemas e as receitas. Até seu marido tornou-se uma vaga re-cordação. A filha Jane, não, é claro. Mãe nenhuma jamais esqueceria a sua filha. De modo nenhum. Nem por um minuto.

No céu acima dos Jardins de Kensington, um bando de crianças voadoras reuniu-se, como pássaros no outono que se preparassem para migrar. Flutua-vam de costas, nadavam de peito, pegavam carona nas correntes de ar quente que saíam das chaminés da rua principal e acabaram ficando encardidas com a fumaça. Um farrapo de nevoeiro, que se esfiapava por cima do Rio Tamisa9 como um manto antiquado, fez todos tossirem.

Corujas piscavam, perplexas. O almirante 9 Rio que atravessa a cidade de Londres, ligando-a ao mar. É um dos maiores rios da Inglaterra, e já foi tematizado em vá-rias histórias, para crianças e adultos. (Nota da Editora.)

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Nelson, do alto de sua coluna10, levou a luneta ao seu único olho bom. Estátuas de homens famosos apon-tavam e pulavam de um pé para outro. (Uma estátua eqüestre chegou a dar um pinote.) Policiais em suas rondas ouviram risadas, mas procuraram em vão por alguém para prender.

— Onde está o Bicudo? — perguntou Wendy. — Não veio! — respondeu Pirilampo. — E o Deleve? — João quis saber. — Não veio! — gritou Pirilampo, fulgurante de

alegria. — Vim, sim, senhor! — E Deleve apareceu cor-

tando o ar como se fosse um golfinho, movendo as pernas e os pés juntos, o cabelo ondulado cintilando com poeira de fadas. Vestia a camisa de seu traje a rigor, e as abas da camisa passavam muito dos seus joelhos de menino de nove anos, e as mangas balan-çavam bem além dos dedos de sua mão. Segurava com firmeza a clarineta, como uma espada de um duelista.

— Eu mergulhei no pé da cama, sabiam? Não faço isso há vinte anos! E passei do chão, fui além dele!

Lembrei como era! Você pode chegar a qual-quer lugar quando toma coragem para ir até o fundo das coisas!... Para que lado vamos agora, Pirilampo?

— Como posso saber?— replicou o elfo. Mas os outros todos responderam por ele: 10 Estátua de um herói da história inglesa, o almirante Nelson. Fica no alto de uma coluna, situada no coração da cidade de Londres, na Praça Trafalgar. Do alto da coluna, o almirante contempla o Rio Tâmisa. (Nota da Editora.)

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— A segunda à direita e depois sempre em frente, até de manhã!

Quando a lua se escondeu, depois que eles se foram, a chuva caiu como pontos de exclamação.

Quanto mais para longe voavam, mais esque-ciam como era ser adulto e mais rememoravam seus tempos na Terra do Nunca. Sol! Brincadeira de pu-lar-carniça! Piqueniques!...Dentro das cabeças deles, devaneios e excitação davam cambalhotas. E todas as suas sensações estavam em efervescência, e seus músculos estavam tensos. Quase esqueceram de lem-brar por que estavam fazendo aquela viagem.

— Se os índios estiverem na trilha de guerra, eu também vou!

— Você acha que Sininho vai gostar de nos ver?

— Ah, então quer dizer que ela vai estar lã, essa tal de Sininho?

— Mai posso esperar para ver a cara de Peter quando eu lhe entregar seus presentes!

— Estou louco para ver as sereias! — Eu perguntei: essa tal de Sininho vai estar lã? As

fadas morrem quando não se dá bola para elas, vocês sabiam? — Tomara que a gente encontre novos vilões

contra quem lutar! — Você acha que também vamos encontrar

novos Meninos Perdidos? Fez-se um silêncio repentino ao pensarem na-

quilo. Claro que era mais que possível! Todos os dias caem meninos de seus carrinhos de bebê, e é sabido que as babás não costumam nem notar. Muito pro-vavelmente, Peter Pan reunira um novo bando de

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seguidores em torno de si desde o tempo de Bicudo, Cabelinho, os Gêmeos, Deleve e Piuí.

— E será que vai caber todo mundo na casa subterrânea? — raciocinou Cabelinho, ansioso.

— Será que os outros vão nos deixar entrar? — murmuraram os Gêmeos.

— É melhor deixarem, senão boto a porta a-baixo!

— Pode ser até que haja Meninas Perdidas — disse Wendy, meio inquieta. — As meninas de hoje são muito mais bobas que quando eu era bebê. — Ela não tinha muita certeza se queria que houvesse Meninas Perdidas; quando não são criadas da maneira certa, as meninas às vezes ficam tão... caseiras...

Pirilampo, o Elfo, soltando fagulhas no meio deles como um carvão incandescente, insinuou, com um prazer maldoso:

— Quem sabe, Peter Pan vai eliminar vocês se houver gente demais! É o que os Peters fazem, não é? — e os me-ninos menores ficaram brancos de medo.

— Em último caso, há sempre a Cabaninha da Wendy — tranqüilizou-os Wendy. — Se a casa sub-terrânea estiver lotada, podemos morar lá.

— Isso mesmo, e ninguém pode nos impedir! — declarou Piuí. — Nós mesmos é que construímos aquela cabaninha para a Wendy! E não se pode deixar uma Wendy fora de sua própria Cabaninha da Wendy!

Um rebanho de nuvens encarneiradas atraves-sou balindo a Alta-Estrada (a auto-estrada do céu) e causou um engarrafamento. Pirilampo meteu-se no meio delas, chamuscando umas, mordendo outras,

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até que as nuvens saíram trotando. E, quando o re-banho de flocos brancos se dispersou, lá embaixo apareceu... A TERRA DO NUNCA!

Um círculo sem perímetro, um quadrado sem ângulos, uma ilha sem limites: a Terra do Nunca. A imaginação trouxera-a do fundo do mar para a luz do dia. E os sonhos maus os tinham atraído de volta pa-ra lá: o lugar onde as crianças não crescem nunca!

Mal sabiam eles (e talvez nem sequer se im-portassem) que, nas várias casas que tinham deixado para trás, em cima de penteadeiras e de beiradas de pias de banheiro, seus relógios de pulso abandonados pararam todos naquele exato momento. Porque, quando uma criança está na Terra do Nunca, o tem-po pára.

Seus corações quase saíram pela boca. Não ha-via nenhum lugar como aquele! No mundo inteiri-nho, não existe nenhum lugar igual à Terra do Nun-ca! E lá estava, estendendo-se abaixo deles, total-mente e completamente e inteiramente e absoluta-mente...

...diferente.

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Capítulo Quatro A Única Criança

Apesar de estar voando em plena claridade da

manhã, Wendy, com seu vestidinho decotado de ve-rão, sentiu um calafrio, pois a luz do sol brilhava mais fraca e pálida do que ela se lembrava. As sombras estavam mais compridas — alguns cumes rochosos e pinheiros altos tinham três ou quatro sombras esten-dendo-se em direções diferentes. Wendy sabia que tinham agido certo ao vir: algo não ia bem na Terra do Nunca.

Ao voarem por cima da Floresta do Nunca, um oceano de árvores douradas, alaranjadas e escar-

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lates ondulava e se encrespava debaixo deles, e de vez em quando espalhava no ar um borrifo de folhas se-cas de outono. Os postes dos totens dos índios, der-rubados por guerras ou vendavais, estavam tombados em posições esquisitas, enrolados com hera e trepa-deiras. Imensos globos de visco, que é uma planta parasita, rolavam soltos pelas copas das árvores como lanternas chinesas. Tudo era lindo... mas não se escu-tava nenhum pássaro cantar.

As clareiras, onde antigamente a Liga dos Me-ninos Perdidos acendia fogueiras de acampamentos e fazia seus conselhos de guerra, não existiam mais: o mato crescera e, como um buraco no mar, as clareiras tinham-se fechado e desaparecido. Se ainda havia lo-bos à espreita, não dava para ver. Se ainda havia ín-dios em pé de guerra, não se avistavam suas trilhas.

— Como é que vamos achar a nossa casa de-baixo da terra ou a Cabana da Wendy? — disse João, manifestando em voz alta os temores de todos. Mas a preocupação foi desnecessária, pois a casinha de pa-redes amarelas e telhado vermelho foi exatamente o que viram em seguida. A fumaça da chaminé encara-colou-se no meio das crianças, que desceram por ela segurando-a como se fosse uma corda, pouco a pou-co, uma das mãos depois da outra.

A Cabana da Wendy estava equilibrada em um galho de árvore — uma árvore mais alta que todas as outras da floresta, da altura da ponta de uma torre de igreja.

— Que divertido — disse Deleve. — Tínha-mos uma árvore em nossa casa antes. Agora, a casa é que está na árvore!

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— Como é possível ter uma árvore dentro de uma casa? — perguntou João com ar de desdém.

— Ah, mas tinha, sim! Não se lembra? Na casa debaixo da terra! A Árvore do Nunca! Toda manhã, nós a serrávamos bem rente ao chão e, lá pela hora do jantar, ela já crescera do tamanho certo para servir de mesa.

De um varal estendido entre dois galhos, pen-diam uns fiapos de nuvens que tinham ficado agar-rados ali, junto com um avental que o vento esfarra-para, uma bandeira e um pé de meia solitário.

— Aquele avental é o meu! — exclamou Wendy. As crianças voadoras bateram à porta da ca-sinha; sacudiram as janelas e fizeram um enorme ala-rido junto do cano da chaminé. Mas ninguém veio abrir. Depois de uma noite inteira voando, estavam começando a ficar cansados.

— Ele nos deixou aqui fora! — reclamou Wendy. — Depois de tudo o que prometeu! E eu, que nunca mais fechei a janela de meu quarto, fosse verão ou inverno! Desde que cheguei da Terra do Nunca!

— Nem quando havia nevoeiro? — perguntou Cabelinho.

Wendy foi obrigada a admitir. — Pode ser, alguma vez em que houvesse ne-

voeiro, devo ter fechado, sim. Você sabe como o nevoeiro de Londres pode ser perigoso para os pul-mões.

— Tão perigoso quanto respirar penugem de travesseiro — confirmou Deleve. E concluíram que o dono da casa provavelmente fechara as janelas por-

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que as nuvens ali eram quase a mesma coisa que o nevoeiro de Londres.

— Entre voando pela chaminé, Pirilampo, e solte a tranca da porta — disse Piuí. E o elfo mergu-lhou pelo cano da chaminé. (Que antigamente era a cartola de João, cuja copa fora arrancada, e por onde a fumaça saía para o céu.) Eles esperaram, esperaram e esperaram um tempão. Quando, enfim, Piuí usou uma de suas tranças para limpar um pedaço de uma janela em que a sujeira se acumulara, espiou lá para dentro e viu que Pirilampo se distraíra de sua missão: estava se balançando em um cabide de madeira en-quanto comia os botões de um paletó.

— Criaturinha mais tola — disse ela. Wendy decidiu que precisariam adotar um

método diferente para entrar. — Vocês, os Meninos Perdidos, é que cons-

truíram a Cabana da Wendy — disse a eles. — Por-tanto, têm todo o direito de desmontá-la.

Assim, depois de baterem educadamente uma vez mais, puxaram com toda a força pelas estacas laterais e arrancaram a parede do fundo.

Deram de cara com um menino, a espada de-sembainhada, a cabeça inclinada para trás, a testa franzida em uma expressão feroz.

— Cuidado, Pesadelos! Vocês podem arre-bentar as muralhas de meu castelo, mas depois vou tapar as brechas com os seus cadáveres!

Era Peter Pan, e ao mesmo tempo não era. Em vez da roupa feita de folhas secas, ele vestia uma tú-nica vermelho-sangue de penas de gaio e de folhas de outono, tiradas do bordo e da videira-virgem.

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— Ora, ora, Peter — disse Wendy, entrando pela abertura. — Isso é maneira de receber seus ve-lhos amigos?

— Não tenho amigos que sejam velhos! — bradou o menino com a espada desembainhada. — Sou Meni-no e, quando as coisas são grandes, eu as corto e re-duzo às devidas proporções!

Ao perceber que Peter não a reconhecia, os olhos de Wendy começaram a arder, quase chegando às lágrimas, mas ela também levantou a cabeça.

— Deixe de ser bobo — replicou com vivaci-dade. — Você é Peter, eu sou Wendy e nós viemos... — deu tratos à bola tentando lembrar — ...porque achamos que você podia estar em apuros.

Peter olhou para ela, zombeteiro. — Como assim, “em apuros”? Dentro de um

caldeirão, prestes a ser devorado por canibais? — Bem, talvez não tanto... — Em águas infestadas de tubarões, depois de

cair de um navio? — Provavelmente não, mas... — Sendo carregado pelo céu por uma águia

gigantesca para servir de alimento para os filhotes dela, que esperavam famintos no ninho?

Era evidente que Peter gostava um bocado da idéia de estar em apuros. E também era evidente que nada daquilo de que falava estava acontecendo com ele. Wendy começou a sentir-se meio boboca, algo que sempre a aborrecia.

— Você tem rezado direitinho as suas ora-ções? — indagou ela (uma pergunta tão assustadora quanto uma espada balançando junto do nariz).

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— Ora, não seriam as dos outros que eu iria rezar! — retrucou Peter.

Então, pela primeira vez, Peter olhou direito para eles. A ponta da espada oscilou, hesitante, e um largo sorriso iluminou-lhe o rosto.

— Ah, então vocês voltaram, hein? Pensei que estivesse sonhando com vocês. Tenho sonhado mui-to com vocês ultimamente. — E acrescentou, em tom acusador:

— Vocês estavam grandes à beça nos meus so-nhos.

Os Gêmeos apressaram-se em colocar a pare-de de volta no lugar, provando que não estavam tão grandes assim e que ainda cabiam na Cabana da Wendy.

— Que sortudo você é, Peter! Deve ser sensa-cional morar aqui no alto das árvores! Foram as fadas que puseram a casa aqui em cima para você?

— Que nada — respondeu Peter. — Elas não quiseram, as danadinhas preguiçosas. Disseram para todo mundo que foram elas, mas eu fiz tudo sozinho!

(Na realidade, para deixar tudo bem claro, a Árvore do Nunca é que foi a responsável. Peter não se dava ao trabalho de cortar a Árvore do Nunca rente ao chão todas as manhãs. E assim ela foi cres-cendo, crescendo — e atravessou a casa subterrânea à procura da luz do sol. Um de seus galhos levantou a Cabana da Wendy, que ficava próxima, mais alto que todas as outras árvores do bosque.)

— Para que mesmo você disse que vieram? — Para fazer a faxina da primavera, é claro! —

respondeu Wendy, pois era muito mais fácil que ex-

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plicar. Displicentemente, Peter jogou a espada para

um canto. — Pode começar limpando os pesadelos, se

quiser — disse ele. Wendy não sabia muito bem como eram os

pesadelos de Peter, de modo que limpou as escuras teias de aranha que encontrou nos cantos do teto.

— Pronto! Agora não há mais nenhum — disse ela, acrescentando com ar despreocupado: — Nós andamos tendo pesadelos, também. Sobre a Terra do Nunca. Achamos que poderia haver qual-quer coisa errada por aqui.

Entretanto, ou Peter não sabia ou não se im-põe tava com os sonhos que vazavam da Terra do Nunca: ali, havia sonhos de sobra.

— As coisas lá fora estão muito... diferentes — observou Wendy com cautela.

Mas Peter apreciava a Terra do Nunca coberta de escarlate e dourado tanto quanto em sua roupa-gem verde do verão, e não via nada de errado naqui-lo. Wendy não o pressionou com mais comentários. Quem sabe ela estivesse enganada e não houvesse de fato nada errado.

— Você está bem mesmo, Chefe? — disse Pi-uí com carinho, tomando o pulso de Peter e a tem-peratura de sua testa.

— Caso não esteja, podemos brincar de mé-dicos e enfermeiras!

— Estou morrendo! — exclamou Peter, co-brindo o rosto com um dos braços.

Wendy deu um grito de aflição:

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— Ah, eu sabia! Eu sabia que alguma coisa não ia bem! Ah, tomara que você não esteja mesmo mor-rendo!

— Estou morrendo de tédio! — gemeu Peter. Depois, mudou de idéia e pôs-se de pé num salto. — Mas agora que imaginei que vocês estão aqui, pode-mos ter as melhores aventuras do mundo!

E soltou um cocoricó triunfante, que era emo-cionante e arrepiante e atordoante, todas as coisas ao mesmo tempo:

“Có-cori-cóóó!” E esqueceu até que um dia eles tinham ido

embora. Não notou que Piuí virara menina nem que Deleve sabia tocar clarineta. E nem que faltava o Bi-cudo.

E muito menos que faltava o Miguel, já que falamos no assunto.

— Não há ninguém mais aqui? — perguntou Wendy. — Nenhum Menino Perdido novo?... Ou Menina?

— Mandei todos embora quando quebraram as Regras — respondeu Peter prontamente. — Ou matei.

A explicação era bem improvável, mas fazia ele parecer maravilhosamente feroz. Se algum Menino Perdido tivesse conseguido chegar ao topo da Árvore do Nunca, certamente não estava por ali naquele momento. Durante anos, Peter fora a única criança — a Única e Exclusiva Criança na Floresta do Nunca, como se fosse um filho único, sem ninguém mais para lhe fazer companhia a não ser sua sombra e os

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pássaros e as estrelas. — Onde está Sininho? — perguntou Cabeli-

nho, procurando dentro de todas as gavetas. Peter limitou-se a dar de ombros e dizer que ela fugira.

Um dos visitantes, porém, atraiu a atenção de-le. Viu a cabeça do Cachorrinho saindo do bolso de Cabelinho e exclamou:

— Vocês lavaram a Naná e ela encolheu! A última vez que ele vira as crianças Darling

com um cachorro, havia sido com a Naná, uma gi-gantesca pastora terra-nova que lhes servia de babá. O Cachorrinho sabiamente preferiu não comentar que ele era o ta-ta-tataraneto da maravilhosa Naná. Limitou-se a ficar quietinho nas mãos do Menino Maravilhoso, e lambeu tanta poeira de fadas, e pen-sou tantos pensamentos agradáveis que flutuou até o teto.

— Onde está a Sininho? — perguntaram os Gêmeos, mas Peter só encolheu os ombros e res-pondeu que a transformara em um marimbondo por causa do gênio difícil dela. Ninguém acreditou na-quilo também.

Peter estendeu-lhes o punho de sua espada. — Primeiro, vocês todos têm de jurar que não

vão crescer. — E todos deram sua palavra de honra. Em seguida, Peter proclamou-os membros da Liga de Pan e acrescentou: — Amanhã, vamos sair e fazer alguma coisa perigosa e tremendamente corajosa!

Piuí entrelaçou as mãos sob o queixo e os o-lhos dela brilharam.

— Oh, isso mesmo, Peter, vamos! Vocês to-dos podem sair em uma aventura, como as dos cava-

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leiros andantes! E podemos chamá-la de A Aventura de Piuí, e aí todo mundo parte para procurar aquilo que é o meu maior desejo, e aí luta com um inimigo mortal, e aí um de vocês conquista a minha mão em casamento!

Peter olhou fixo para ela. O plano tinha méri-tos, mas não fora ele o autor. Sua boca pequena ficou tensa, com uma expressão dura. No segundo seguin-te, os lábios contraíram-se e ele deu o assobio agudo de um trem prestes a partir.

— Todos a bordo! — gritou. E, na mesma hora, a Cabana da Wendy virou

um vagão do Expresso Trans-Sigobiano, deslocan-do-se rapidamente pelo deserto de Gobi e pela estepe siberiana com um carregamento de ursos e caixas de música e um modelo exclusivo de máquina de passar roupa para a tsarina. O vagão sacolejava ao passar por frágeis pontes que atravessavam precipícios tão íngremes e altos que não se avistava o fundo. Mergu-lhava em túneis escavados nas montanhas, escuros como poços. Foi atacado por bandoleiros e salteado-res, uma vez até por Barbarruiva, o tímido corsário. Os viajantes foram perseguidos por mongóis e mo-góis cavalgando mamutes. Pararam em uma estação cujos funcionários eram fantasmas vestidos com u-niformes roxos que tentaram comer a bagagem. Be-biam Bovril, que saía da torneirinha de um samovar e, quando João pôs uma vara de pescar para fora da janela, fisgou um salmão do tamanho de um cavalo. Quando havia uma emergência (e houve um montão delas), eles se debruçavam na janela e puxavam a corda do varal para que o trem parasse. Era

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Faz-de-Conta, claro, mas tão divertido! E a mágica do Faz-de-Conta entrou em ação, e

a Terra do Nunca lançou seu feitiço. Os adultos que tinham saído de Londres cheios de boas intenções esqueceram por completo os motivos de sua vinda: eram crianças outra vez, e estavam se divertindo de-mais para se preocuparem com pesadelos ou apreen-sões ou outono na Terra do Nunca. Naquela noite, dormiram nos porta-malas feitos de redes das cabines do Expresso Trans-Sigobiano, e a trama das cordas marcou suas bochechas com riscos entrelaçados.

Mas João, sem querer, deixou solto o freio do trem na hora de dormir e quando, muito tempo de-pois, o vagão foi bater com os amortecedores dian-teiros em Vladivostinopleburgo, a Árvore do Nunca estremeceu com tanta violência que toda a terra que cobria suas raízes se soltou.

Um prato de louça caiu de uma prateleira em Grimswater. Um bebê desatou a chorar em Fothe-ringdene.

O choque acordou Wendy, mas ela continuou deitada mais um pouco assistindo Pirilampo mastigar os cordões de seus próprios sapatinhos. Pensou outra vez na fada que era amiga de Peter, a Sininho. Quan-to tempo vivem as fadas? Um tantão quanto as tarta-rugas ou só um tantinho como as borboletas? Será que as asas delas caem no outono e crescem de novo na primavera? Ou se desintegram no inverno como as casas de barro das vespas? Não, com certeza. Nem devia haver inverno na Terra do Nunca. Cochichan-do, fez a pergunta a Pirilampo:

— Quanto tempo vivem as fadas?

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E Pirilampo respondeu aos berros, sem hesitar um momento sequer e sem qualquer sombra de dú-vida:

— Claro que nós vivemos para sempre! Acordou todo mundo.

— Ah, você é um mentiroso de marca maior! — resmungou Deleve, sonolento, e Pirilampo deu um sorriso largo, inclinando-se para ele em uma pro-funda mesura que foi quase até o chão.

Durante a noite, os farrapos de nuvens no va-

ral tinham sido batidos pelo vento até se esgarçarem e voarem para longe. Em seu lugar, pendiam agora negras nuvens de temporal, estalando de tantos re-lâmpagos. Embaixo da Cabana da Wendy, a floresta se agitava e se debatia, e as folhas das árvores passa-vam rodopiando pelas janelas.

Destemido, Peter saltou pelos galhos para a-panhar gravetos, arrumou primorosamente a lenha na lareira e acendeu o fogo usando apenas centelhas da Imaginação. Então, Wendy contou histórias do mar tão sensacionais que os Gêmeos ficaram enjoados e, quando foram tomar seu imaginário copo de leite do meio-dia, sentiram gosto de rum. Lá fora, colônias inteiras de gralhas foram carregadas das copas das árvores pela ventania, mas no alto da Árvore do Nunca, sacudida pela tempestade, os Gêmeos decla-raram que estavam “prontos para navegar em ondas da altura de uma casa!”. Cabelinho disse que ele na-vegaria em ondas da altura de um morro. João disse que ele navegaria em ondas da altura de uma monta-nha. Então, todos olharam para Peter. Ele ergueu um

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punho acima da cabeça e bradou: — Pois eu navegaria em ondas da altura da

LUUUUA! E depois até o fundo do mar! Nesse momento, ouviu-se um barulho como o

de um mastro de navio se quebrando e a Cabana da Wendy deu uma guinada para um lado. A Liga de Pan escorregou pelo chão e amontoou-se no canto, for-mando uma pilha, junto com a lenha da lareira e o Cachorrinho ainda por cima. Seguraram-se uns nos outros e esforçaram-se para pensar pensamentos fe-lizes a fim de desafiar a lei da gravidade. Mas ia ser difícil, como, um por um, eles logo perceberam: pois a Árvore do Nunca inteira estava tombando, indo abaixo, despencando... CAINDO.

Durante a queda, a árvore ainda tentou desa-jeitadamente agarrar a Cabana, que com isso rodopi-ou no espaço vazio, teto para baixo, chão para cima, janelas para baixo e para cima. Galhos perfuravam suas paredes; ramos a apanhavam no ar, então no mesmo instante se quebravam e a deixavam cair mais ainda, uma caixinha giratória cheia de gente mergu-lhando na direção do solo da floresta. João teve a presença de espírito de puxar o cordão do freio de emergência...

O que não impediu que todos se estatelassem no chão.

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Capítulo Cinco

A Aventura de Piuí Graças ao temporal, um milhão de folhas caíra

no chão da floresta antes da Cabana da Wendy. A pancada lá embaixo soou como se fosse na água, mas o impacto com a água teria sido mais duro. Eles a-fundaram, afundaram, depois subiram de volta no colchão macio de gravetos, folhas e velhos ninhos de passarinhos. Era impossível verificar os danos cau-sados pela queda, pois ali embaixo, junto à vegetação rasteira, quase não havia claridade. Só a luzinha fraca e trêmula de Pirilampo, que voava zangado ao redor, aliviava o peso da escuridão que se abatia sobre eles. A Liga de Pan recompôs-se e ponderou o que fazer. Wendy examinou um por um para ver se estavam

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machucados. Só encontrou alguns arranhões e man-chas roxas, além das roupas rasgadas.

Quando topou com Peter, achou que ele fora o que mais se ferira: um filete de sangue escorria de seu nariz. Ligeira, tirou o lencinho de dentro da manga do vestido e tentou estancar o sangue, mas Peter desviou a cabeça num repelão e encarou-a com o olhar carregado, reclamando:

— Tire a mão de mim! Não quero que nin-guém ponha a mão em mim!

Foi quando ela notou que ele estava terrivel-mente emburrado.

— Olhem só o que vocês fizeram, vocês to-dos. Eu bem que disse que vocês estavam grandes demais! Agora, vejam só. Vocês despedaçaram a mi-nha casa! Não deviam ter vindo!

— Foi o temporal, Peter! — protestou Wendy; apesar de não se ter ferido na queda, agora o coração dela é que doía, magoado.

— Eu estava melhor sozinho — resmungou o Único Menino, com um jeito de filho único mimado.

A Árvore do Nunca jazia estendida no chão, suas raízes sangrando gotas de terra. A tempestade continuava a roncar ao longe.

Em diversos troncos de árvore, havia cartazes colados anunciando:

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Mas as beiradas dos cartazes estavam se en-

roscando e o papel se soltava à medida que a cola ia se dissolvendo com a chuva. O Cachorrinho latia em algum lugar, que soava como se fosse outro lugar. Aos gritos e assobios deles, só respondiam pios de coru-jas, rosnados e silvos vindos do mato: animais selva-gens rondavam pela Terra do Nunca à procura de presas, com olhos que enxergavam no escuro melhor que os deles.

— Estou ouvindo o Cachorrinho! — disse um dos Gêmeos. — Aqui embaixo de nós!

— Acho que ele encontrou a nossa velha e querida casa subterrânea! — disse o outro.

— A MINHA casa subterrânea! — corrigiu Peter, ríspido. — Só que não a uso mais.

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Seguindo o som do latido aflito do Cachorri-nho, encontraram o caminho para o círculo de co-gumelos que marcava o local da toca subterrânea de Peter Pan e percorreram com dificuldade as imedia-ções, tentando lembrar onde ficavam as entradas. Anos antes, cada um deslizava para o interior por sua própria árvore oca. Piuí encontrou a dela, mas tam-bém descobriu que não cabia mais no oco da árvore: seu corpo mudara ligeiramente de forma desde os remotos dias de Antes. Os outros tentaram encaixá-la na rampa para a descida —Ai, cuidado com meu vesti-do!— virando-a e torcendo-a — Ai, cuidado com as mi-nhas tranças! — para um lado e para o outro — Ui, não puxem meu bigode!

— Piuí, você não tem bigode nenhum! Lá embaixo, os latidos do Cachorrinho torna-

ram-se frenéticos. Algo se instalara na câmara subter-rânea: seria um texugo? Um píton, aquela cobra e-norme? Uma trufa gigante? O que quer que fosse, o Cachorrinho fazia muito mau juízo do que encontra-ra. Na realidade, ao mesmo tempo que Piuí tentava descer, o Cachorrinho estava tentando subir, de mo-do que nenhum dos dois conseguia o que queria. O Algo começou a se mexer e se movimentar por lá.

— Então, é por isso que você não mora mais aí embaixo! — disse Deleve, chegando para trás e tiri-tando de frio, com sua camisa comprida de traje a rigor e as pernas de fora.

— Não, foi porque não tive vontade! — re-torquiu Peter. — Poderia muito bem matar isso aí se quisesse, mas gostei de morar no alto das árvores... até vocês chegarem e quebrarem minha casa!

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O mau humor de Peter fez todos se sentirem culpados e desanimados. Arrastavam os pés a esmo, mexiam nos cartazes do circo pregados nas árvores, tentavam aquecer as palmas das mãos em torno de Pirilampo e relanceavam os olhos para Wendy, espe-rando ajuda.

— Será que podemos ir ao circo daqui a pou-co? — pediu João.

— Aaah, Peter, podemos? Podemos, hein? — suplicaram os Gêmeos. — E aí não ficaríamos mais na chuva!

— Pode ser que haja palhaços lá! — Detesto palhaços — disse Peter. — Não dá

para saber o que eles estão pensando. Ao redor, ouviam as árvores apertando suas

raízes no solo, estalando as juntas. Também era im-possível dizer o que as árvores estariam pensando.

— Assim que clarear — disse Wendy —, va-mos construir uma casa nova!

E no mesmo instante todos se sentiram mais animados... exceto o Menino Único. Talvez escutasse o chamado da Aventura, ou talvez tivesse se acostu-mado demais a tomar todas as decisões.

— Não, não vamos! — disse ele, jogando para o lado o lenço de Wendy manchado de sangue. — Para que ficar em casa? Vamos todos partir em uma aventura! — decidiu ele, falando como se ninguém em toda a história do mundo tivesse pronunciado antes aquelas palavras ou tivesse tido uma idéia tão espetacular.

— Ah, uma aventura, isso mesmo! — disse Piuí, extasiada. — Que idéia genial!

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— Pois é, veio sem querer, é que sou assim mesmo, tão maravilhosamente inteligente! — expli-cou Peter. — Bem, o Cavaleiro Andante que trouxer o coração de um dragão para a Princesa Piuí ganha a mão dela em casamento e eles Serão Felizes como Nunca!

— Dragão? — disse Piuí, admirada, e coçou o lábio superior.

Wendy olhou para Peter com ar severo, pen-sando que já tinham passado por perigos demais para uma noite.

— Mas está chovendo! — alegou um dos Gêmeos.

— Então, vamos ficar molhados! — replicou Peter.

— E enlameados! — exclamou Cabelinho. — E imundos! Aquilo encerrou a questão. Uma aventura e a

oportunidade de se sujarem era bom demais para não se aproveitar.

Os Gêmeos declararam que sairiam juntos em aventura e dividiriam o prêmio (já que Piuí tinha duas mãos). Deleve perguntou se poderia ganhar metade de um reino em vez da mão de Piuí em casamento. Cabelinho começou a dizer que não poderia ganhar a mão de Piuí porque já era casado, mas parou pelo meio, pois aquilo não fazia qualquer sentido e ele não imaginava de onde lhe viera aquela idéia.

Pirilampo disse que estava faminto demais pa-ra partir em uma aventura onde quer que fosse, e pôs-se a explorar os arredores em busca de castanhas para comer. Quando a cartola que servia de chaminé

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na Cabana caiu de repente do alto das árvores fazen-do uma grande barulheira, ele foi se proteger da chu-va dentro dela. Os Cavaleiros Andantes cataram ga-lhos secos para usar como espadas.

— Vão logo! — apressou-os Piuí, entusiasma-da. — Vou contar até vinte! — e virou o rosto para uma árvore, cobrindo os olhos.

Os Cavaleiros Andantes partiram com a maior dificuldade no meio das folhas secas, que lhes chega-vam à cintura, para todos os pontos da ro-sa-dos-ventos.

— Quando eu voltar — disse Peter a Wendy, em voz baixa —, vou construir uma paliçada e cha-má-la de Forte Pan. Os outros não vão poder entrar porque eles quebraram minha casa. Mas você pode, se quiser — acrescentou, como se não fizesse grande diferença para ele. — Você fica aqui com Piuí en-quanto vou para a aventura.

— Nada disso! — exaltou-se Wendy. — Também quero ir para a aventura! Não faço muita questão da mão de Piuí, mas nunca vi um dragão!

A Princesa Piuí, depois de contar mais ou menos até vinte, apanhou a cartola com Pirilampo dentro e saiu da floresta, também com a maior difi-culdade por causa das folhas acumuladas. Abrigou-se da chuva na boca de uma caverna que ficava numa cabeça-de-praia e construiu para si mesma um trono de algas marinhas e uma coroa com umas peças de metal bonitinhas que encontrou espalhadas pelo chão.

— Nomeio você Real Mentiroso Extraordiná-rio! — disse ela a Pirilampo, e ele se sentiu tão lison-

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jeado com o título que seu corpinho chamuscante fez pipocarem as algas marinhas que estavam por perto.

Veio o amanhecer e Piuí vislumbrou o reflexo cambiante, oleoso, da Lagoa. Em sua memória, ela guardara a imagem da água azul-turquesa cintilante em forma de meia-lua, rodeada por praias de areia branca. A Lagoa que via agora ondulava com esforço, pesada; parecia o flanco negro e suado de um cavalo todo estriado de espuma. A crina de algas atirada à praia jazia em meio aos pedregulhos, fervilhante de moscas. Ao longo das margens, na linha da maré alta, havia uns estranhos recipientes brancos parecidos com gaiolas de pássaros ou armadilhas para caran-guejos. Vistos de perto, percebia-se que eram peda-ços dos esqueletos das sereias, com um outro osso e uma mecha de cabelo louro aqui e ali. Piuí olhou ao redor de si, nervosa, e voltou correndo para a caver-na.

Enquanto isso, os Gêmeos encontraram um Dragão da Floresta, com braços e pernas de madeira, corpo de madeira e uma cabeleira espetada e pontuda feita de gravetos. Igualzinho a uma pilha de árvores caídas, na verdade. Eles o mataram com fogo.

Por volta do meio da manhã, Deleve avistou um Dragão de Nuvem. Enchia o céu de um lado a outro do horizonte... até que o vento se levantou de chofre e o dragão se desfez em mil pedaços.

Era quase meio-dia quando Cabelinho chegou a uma praia e encontrou um Dragão da Água. Com intervalos de segundos, o Dragão crescia para cima dele na praia, sem uma forma definida e cheirando a sal, depois recuava outra vez. Cabelinho tentou ma-

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tá-lo, mas sua lâmina penetrava direto no couro lí-quido do monstro e suas botas ficaram molhadas. Sendo assim, achou melhor sentar-se na areia e ficar jogando pedras no dragão.

Lá pelo meio da tarde, João deu de cara com um Dragão Rochoso: uma espinha dorsal cheia de protuberâncias de calcário, uma enorme cabeça de pedra inteiriça, uma cauda feita com uma cascata de pedregulhos. João deixou sua espada de madeira es-petada no pescoço dele. Um triunfo, disse consigo mesmo.

Enquanto isso, Wendy não sabia onde procu-rar um dragão. Com certeza, eles não vivem ao ar livre, pensou ela, senão as pessoas os veriam o tempo todo e tirariam fotografias. Então, achou que vira um — o ombro dele, pelo menos — uma coisa cor de sangue que se salientava por detrás de um morro. O coração dela tentou sair pela boca mas ficou entalado. Quis assobiar para chamar Peter, mas seus lábios es-tavam secos demais para soprar. Wendy fechou os olhos bem apertados. Só lembrou que não tinha fa-bricado uma espada para si quando rastejou mais para perto, de gatinhas. O dragão produzia uns estalos horrivelmente altos — decerto se tratava de um monstro molengo, balofo, com a pele solta sacole-jante... E incrivelmente grande!

Quando afinal se atreveu a abrir os olhos, Wendy caiu na gargalhada. Não era dragão coisa ne-nhuma — só uma imensa tenda de circo batida pelo vento! Dava para ler a palavra

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NOVELLO pintada em letras desbotadas no teto de lona. Cabos de navio prendiam-na ao chão. Em volta da tenda, encontravam-se várias jaulas sobre rodas, algumas vazias, outras contendo zebras ou avestruzes; um go-rila, três tigres e um cotillo, um puma, um ocapi e um palmerion. Nenhuma das portas das jaulas estava fe-chada. Pôneis com plumas presas em faixas na cabeça pastavam nas redondezas. De dentro da tenda, vi-nham acordes de piano. Intrigada, Wendy desceu e aproximou-se para espiar mais de perto. Não era um piano de verdade, mas uma pianola, lendo a música em um rolo de papel. As teclas se mexiam, apesar de não haver dedos tocando-as, e uma figura de madeira esculpida em cima da tampa regia a música com mo-vimentos espasmódicos, rangendo por falta de óleo nas articulações. Wendy estava tão ansiosa para vê-la de perto que abaixou a cabeça e entrou. Havia uma claridade amarelada no ar e o ruído do vento reboava no grande espaço vazio. Pairava ali um cheiro de go-tas para tosse e de ovelhas molhadas.

Ah, e vestígios de cheiro de leão. Wendy chegou ao centro, no chão coberto de

serragem, e então os viu. Estavam dispostos em tor-no da tenda como os números do mostrador de um relógio: doze leões sentados em cima de tinas de me-tal emborcadas.

— Ah! — disse uma voz atrás dela. — Uma espectadora. — A voz soava baixa, suave, macia co-

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mo veludo, com os sons sibilantes fluindo como o marulho da água do mar. — Bem-vinda ao Circo Novello. Eu esperava muito que viesse. — O rosna-do surdo dos leões parecia trovoada. — Sou um seu criado, madame. Faça-me o favor de permanecer imóvel, ou meus companheiros felinos podem con-fundi-la com o almoço deles.

Contra a claridade da porta, a pessoa que fala-va era uma mancha escura rodeada por um halo de luz do dia. Sua silhueta era toda arrepiada. Wendy apenas conseguia distinguir uma roupa extravagante, cujas mangas iam muito além das pontas dos dedos, cuja bainha aparecia aqui e ali junto aos debruns de suas botas sem brilho: milhares de fiapos de lã arre-bentados, enovelando-se, enredando-se, tornando imprecisos os limites entre o homem e sua sombra. Não havia como definir onde seu cabelo desgrenhado terminava e onde começava o capuz do casaco de malha de lã. As cores de ambos também se tinham desgastado. Uma ovelha emaranhada em arame far-pado, era o que aquela mixórdia de homem lembrava muito. E, no entanto, ele se movia com a graciosida-de de um gato, pousando os pés no chão um na frente do outro, como um equilibrista atravessando um desfiladeiro em cima de uma corda bamba.

— Desejei tanto que viesse — disse ele de novo. — Meu coração se rejubila com isso. Minhas criaturas e eu ficamos honrados com a sua amabili-dade.

A voz dele escorria para dentro dela como uma calda dourada em cima de um pudim fumegante. Os caracóis da cerrada cabeleira sem brilho e o capuz

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de lã encobriam-lhe o rosto, mas mesmo assim ela conseguiu divisar um par de grandes olhos claros cor de avelã a observá-la tão atentamente quanto os le-ões.

— Venha — disse ele, estendendo-lhe um braço lanudo. — Ande devagar em minha direção e não faça nenhum movimento brusco. Meus felinos ainda não comeram hoje. Acima de tudo, não... peço que perdoe a indelicadeza de um vulgar treinador de animais... procure não suar, haja o que houver. O su-or, veja bem, penetra intensamente nas narinas de um felino faminto.

Sua voz derramava-se como chocolate quente num sorvete de baunilha. Até as orelhas dos leões se reviravam para captá-la. As garras de suas patas arra-nhavam a superfície das doze tinas de metal com um ruído de panelas sendo areadas. Wendy, enquanto andava para perto do domador de leões, via como todas as costuras e beiradas e recortes do disforme casaco de malha de lã dele estavam se es-fiapando. Buracos de traças espalhavam-se pelo tecido, e cada um dos buracos também começara a se esfiapar. Ele era um miasma lanoso de pontas soltas penduradas.

— Sou a senhorita Wendy Darling — disse, estendendo o braço para um aperto de mãos (embora as mãos do homem fossem quase invisíveis). Se con-seguisse fazer amizade com o dono, quem sabe seus leões parassem de pensar nela como um almoço.

Os olhos castanho-claros estreitaram-se como se o próprio nome dela proporcionasse ao homem a maior das alegrias.

— E eu sou Novello, proprietário deste la-

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mentavelmente humilde estabelecimento. Tenho a impressão de que você vai se sair melhor em sua vida que eu me saí na minha.

Ele também estendeu o braço, e Wendy sentiu sua mão encher-se com o punho desfiado da manga excessivamente comprida do casaco de lã que o ho-mem usava.

— Diga-me, criança, o que deseja ser quando crescer?

— Eu... — Mas antes que Wendy tivesse tempo de responder, um grito de gelar o sangue nas veias dispersou seus pensamentos e molhou de suor a palma de sua mão estendida.

— Piuí! É Piuí! — exclamou ela, assustada, e saiu da tenda em disparada, deixando para trás o do-no do circo. Só pensou em salvar Piuí do perigo. A-trás de si, escutou o retinido de doze tinas de metal sendo desviradas e a voz de Novello, alta e incisiva, tentando acalmar os leões. Mas ela só fez correr.

Numa cabeça-de-praia, havia uma caverna e, de dentro da boca da caverna, saía a voz de Piuí, em um grito estridente:

— DRAAAAAAAGÃO! Cansada de esperar pela volta de seus Cavalei-

ros Andantes, Piuí tinha começado a explorar a ca-verna. A escuridão gotejava lá dentro. Lindas conchas brilhavam na água das poças do chão e as paredes eram felpudas, revestidas por um limo verde e frio. Mais no fundo, entretanto, não havia cor nem brilho nenhum — só o pinga-pinga da água, como a nota mais alta de um piano tocada sem parar. Sua cabeça

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esbarrou no teto baixo e a coroa ficou de banda em cima de uma das orelhas. Logo, teve de continuar a exploração apenas com as pontas dos dedos porque não havia mais luz nenhuma. Foi quando sua mão estendida encontrou o couro áspero e caloso, o foci-nho e a fieira que não acabava mais de dentes horri-pilantes, e então Piuí deu um berro esganiçado — DRAAAAAAAGÃO! — depois saiu correndo. Bateu de novo com a cabeça no teto baixo e, dessa vez, a coroa se fez em pedaços.

Os ecos do grito dela perderam-se ao longe. Plink plink, respondeu a escuridão, desafinada. Então, alguém agarrou seu ombro, e seus joelhos dobra-ram-se de medo quando a mão fez seu corpo girar.

— Mostre onde o dragão está e eu acabo com ele!

— disse uma voz junto ao seu ouvido. Era Peter, com uma tocha flamejante na mão.

Um a um, os outros membros da Liga de Pan foram surgindo atrás dele.

— Onde? — perguntou Peter outra vez. Piuí apontou sem dizer palavra, e a Liga pas-

sou atrás de Peter enquanto ela permanecia plantada no chão, os dedos acariciando, distraídos, o lábio su-perior. A última a chegar, Wendy deu-lhe um tapinha carinhoso e correu para alcançar os meninos.

E lá estava — a órbita de um olho, a mandí-bula escancarada, uma dentadura do comprimento do braço de um adulto.

— Para trás, homens! — gritou Pan, investin-do com sua espada e golpeando o crânio do monstro, depois recuando com um salto, na expectativa de

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vê-lo sair depressa de seu covil, pronto para atacar, de boca aberta. À claridade trêmula do fogo de suas to-chas, o monstro pareceu estremecer e se encolher... mas quando João atirou-lhe uma pedra, só se ouviu um chacoalhar de dentes. Então, Pirilampo entrou voando por uma órbita e saiu pela outra, iluminando a caveira horrorosa.

— Não hã nada aqui! — reclamou ele, exami-nando o crânio como um turista desapontado com o teto de uma catedral. O dragão estava morto.

Peter enfiou a mão pela narina do bicho e to-dos juntos o arrastaram para a claridade do dia. Era monstruosamente grande. Se todos os Meninos Per-didos deitassem ao comprido, um depois do outro, não seriam do tamanho do dragão morto, do focinho à cauda. Eles o viraram de costas e descobriram que o couro do estômago se desfizera inteiro, deixando apenas as costelas, que pareciam os degraus de uma escada, e um resto de espinha dorsal. Dali se des-prendia um cheiro de peixe podre, sereia e, estra-nhamente, de pólvora.

— Ganhei! — disse Peter. — Achei o dragão! — Muito bem! — exclamou Piuí. — Isto não é dragão coisa nenhuma — disse Piri-

lampo, ainda sentado em cima do focinho do bicho. Peter mandou-lhe um pontapé, mas ele se abaixou. — Ora, não é mesmo! Os dragões têm amígdalas à prova de fogo. Todo mundo sabe! Isto aqui é um Zacaré.

— NÃO é Zacaré, não senhor! — insistiu Piuí, que estava encantada por Peter ter conquistado a sua mão. — Não liguem para ele. Esse elfo está sempre mentindo.

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— Seja ou não seja Zacaré — disse Cabelinho, apertando o nariz —, está morto à beça.

— Não é Zacaré — balbuciou Piuí, baixinho. — Ora, ora, meninos — disse Wendy, conci-

liadora —, parem de brigar. O que interessa é que... — Não é Zacaré — resmungou Piuí uma por-

ção de vezes seguidas, emburrada. Wendy reparou que havia algo brilhante pen-

durado no cabelo de Piuí e puxou-o. Era uma mola de metal. Piuí contou como encontrara o material para fazer a coroa dentro da caverna.

Wendy sacudiu a cabeça, sensata. — Desta vez — disse ela — Pirilampo está

dizendo a verdade. Não é mesmo um Zacaré... — Eu falei! — gabou-se Peter. — É um dra-

gão! — Eu nunca digo a verdade! — protestou Piri-

lampo (o que não era verdade, claro). — ...Nem um dragão! — declarou ela, levan-

tando a mão com a mola. — É um crocodilo. Na rea-lidade, é O Crocodilo, com letra maiúscula! O que devorou nosso mais terrível inimigo. Aqui, caros Me-ninos, na coroa de Piuí, vocês estão vendo tudo o que sobrou do despertador que ele trazia dentro do estômago quando andava caçando pela Terra do Nunca, procurando, para comer mais um pedaço, o Capitão Jaime Gancho!

Bastou escutarem o nome de Gancho para um arrepio de emoção percorrer-lhes a espinha. Cabeli-nho sentiu os caracóis de seu cabelinho ficarem em pé. Pois apesar de terem presenciado o fim com seus próprios olhos — tinham visto o chefe dos piratas

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saltar para a morte dentro da bocarra de um crocodi-lo gigantesco, o Capitão Jas (a abreviatura em inglês de Jaime, que ele sempre adotava) Gancho ainda ti-nha a capacidade de assombrar seus sonhos.

Ficaram olhando fixo para a carcaça, estupe-fatos, enquanto a bocarra arreganhava os dentes para eles, convencida.

— Então, e aí, alguém conquistou a minha mão? — gemeu a Princesa Piuí, querendo muito que alguém tivesse ganhado.

— Eu encontrei um dragão de pedra! — disse João. — E esses são os piores!

— Eu encontrei um dragão de nuvem — disse D eleve.

— E eu, um dragão de água — disse Cabeli-nho, desamarrando seus sapatos molhados.

— O nosso era de madeira — disseram os Gêmeos —, e nós o matamos com fogo!

— Eu encontrei doze leões — disse Wendy, com ar modesto — mas acho que isso não conta.

Peter simplesmente chutou o Crocodilo. Uma articulação na cara se quebrou e a mandíbula superior levantou-se devagar. Tiveram até a impressão de que saía fumaça de dentro da boca, mas tratava-se apenas da neblina que vinha da Lagoa. O tempo estava mesmo esquisito: é raro alguém ser ofuscado por re-lâmpagos e sentir a neblina fazendo cócegas, tudo na mesma noite.

— Vocês todos se saíram muito bem — disse Wendy, pressentindo encrencas. — Agora, gostariam de ouvir sobre os meus leões? E sobre o Circo?

— Bom, não podemos repartir — disse Cabe-

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linho. — Não se pode repartir uma princesa. Como vocês dividiriam ela?

Peter pousou a mão em sua adaga, para a qual Piuí olhou com visível apreensão.

— Há uma porção de dias diferentes em uma semana — disse Wendy com ar animado. Talvez Piuí possa dar a mão a você na quarta-feira, Deleve, e a você na quinta-feira...

— Ainda prefiro ganhar a metade de um reino — interrompeu Deleve.

— É, mas não pode — disse João —, porque eu fiz melhor, pois matei um dragão de pedra, e eles são os piores de todos!

Os Meninos começaram a dar encontrões e empurrões uns nos outros. Até os Gêmeos brigaram porque discordavam sobre quem teria posto fogo no Dragão da Floresta.

— Vamos ouvir uma história — sugeriu Wendy, mais que depressa.

Peter saltou para cima de uma grande pedra. — Não! Vamos fazer uma GUERRA! Aquela idéia magnífica fez Pirilampo sair ro-

dopiando e dando voltas no ar todo alvoroçado, com acessos de alegria.

— Ah, uma guerra, isso mesmo! Nunca vi uma guer-ra! — e o elfo agarrou-se ao cabelo despenteado de Peter, como fogo a um estopim.

Os Gêmeos pararam de brigar. João pôs-se a limpar a areia de sua roupinha de marinheiro.

— Não — disse Wendy. — Nada disso. — Não — disse Cabelinho. — Não vamos,

não.

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— Não — disse João. — Guerra, não. Talvez fosse a umidade fria do nevoeiro. Tal-

vez fosse o fantasma de uma lembrança. Quem sabe, na distante Fotheringdene, alguém tivesse se encos-tado no memorial da guerra que fora erguido no gramado do povoado...

— Estive na guerra — disse um dos Gêmeos. — Eu também — disse o outro. — Miguel não iria gostar — disse Deleve. Pe-

ter bateu o pé, ofendido. — E quem é esse tal de Miguel? João prendeu a respiração, em suspense.

Wendy virou-se de costas. Será que Peter realmente esquecera o irmão deles? Seu maravilhoso irmão Mi-guel?

Ninguém falou nada durante um longo tempo. O único ruído era o que Pirilampo fazia, chiando e voando impaciente à volta da cabeça deles.

— Miguel Darling foi para a Grande Guerra — disse Deleve. — Ele... foi dado como perdido.

Peter olhou fixamente para eles, aqueles amo-tinados, com seus rostos brancos, cabelos molhados, olhos tristes. Então, desceu da pedra com um salto mortal despreocupado.

— Ah! Um dos Meninos Perdidos! Como querem que me lembre de todos? Foram tantos!

Ninguém tentou explicar. Sabiam que seria muito melhor para Peter Pan (e para jovens elfos to-los como Pirilampo) não saber o que era a Guerra... Além disso, algo havia tirado completamente aquele assunto de suas cabeças.

Cinco grandes ursos negros, a baba pingando

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das bocas abertas, vinham na direção deles pulando por cima dos rochedos.

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Capítulo Seis

Um homem esfiapado — Upa, ursarada! — disse uma voz profunda,

autoritária. Os ursos levantaram-se nas ancas, bambolean-

tes, rugindo, as cabeças negras rolando em cima dos grossos não-pescoços, babando e dançando em ritmo de valsa: um-dois-três; um-dois-três.

Peter Pan abriu os braços: protegeria do Mal a sua Liga ou morreria! Atrás dos ursos, do meio do nevoeiro coleante, surgiu um sexto vulto, quase tão alto, quase tão peludo e desgrenhado quanto os ani-mais. Ouviu-se um estalo seco como o de um tiro.

— Vão tomar um gole, ursolinos! — disse o Grande Novello, enrolando seu comprido chicote de couro cru.

Os ursos caíram de quatro, as garras enormes

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afundando como croques na areia macia, e encami-nharam-se para a margem em seu passo pesado para beber água.

— Cavalheiros... damas, espero que meus bi-chinhos de estimação não os tenham amedrontado.

— O medo é um estranho para mim! — de-clarou Peter, com as mãos na cintura.

— São dois estranhos que você então encontra num dia só, Peter Pan — disse o dono do circo. — O Medo e Eu.

Peter espantou-se. — Sabe meu nome? Novello aproximou-se, arrastando seus trajes

de lã desfiados, que iam apagando as marcas leves de seus próprios passos. Sua voz era ainda mais macia que a areia.

— Naturalmente que conheço você, Peter Pan. Quem não ouviu falar do Menino Maravilhoso? Do Menino das Altas Árvores? Do Vingador Deste-mido! Do Prodígio da Floresta do Nunca! A chama de sua fama ilumina a monotonia dos meus dias. Você é uma lenda!

A Liga de Pan deu um viva entusiasmado, com exceção de Wendy, que achou que tantos elogios po-deriam subir à cabeça de Peter. E acertou, porque Pan soltou um estridente cocoricó de prazer:

“Có-cori-cóóó!” Os ursos na beira d’água puseram-se abrupta-

mente de pé e balançaram-se de um pé para o outro, as garras chocalhando como talheres de metal.

— Ah, devo preveni-lo sobre os ruídos muito

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altos — aconselhou o dono do circo, em tons de voz tão doces que os ursos, farejando o ar, sentiram cheiro de mel. — Meus ursitos ficam nervosos com ruídos altos. Podem entrar em um estado de fúria descontrolada.

Cabelinho, observando os ursos com uma mistura de terror e fascinação, perguntou se eles po-diam realmente beber a água da Lagoa.

— Li em algum lugar: beber água do mar não faz a pessoa ficar doida? — acrescentou.

— Não se incomode com eles, meu rapaz. Já são todos doidos varridos.

Ao ver Wendy, o dono do circo curvou a cin-tura, inclinando profundamente o corpo.

— Eis que nos encontramos novamente, se-nhorita Wendy. Seu criado, senhorita, seu mui hu-milde criado. — E dirigiu-se novamente a Peter. — Eu poderia igualmente perguntar se é prudente que, sendo tão tarde, pessoas de tenra idade estejam ao relento. Por favor, digam-me se têm a perspectiva de camas quentes e de um jantar substancioso?

Quando as crianças responderam que não, não tinham, na mesma hora os convidou para voltar com ele ao Circo Novello.

— Nesses tempos de escassez e penúria, mui-tas de minhas jaulas encontram-se vazias. Estão lim-pas e forradas com palha macia e fresca. Consideraria uma honra...

— Não andamos com adultos — interrom-peu-o Peter, escavando a areia com o sapato.

— Ah. Muito bem, então. Mas pelo menos vi-rão ao Circo, não é? — insistiu Novello. — Trouxe

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ingressos para vocês, vejam! Não querem ingressos para o circo? Todo mundo gosta de ir ao circo! Pa-lhaços e acrobatas! Ursos, tigres, leões! Malabaristas! Escapologistas? Ilusionistas. Exímios cavaleiros! Um trapézio...!

E tirou de algum lugar um maço de ingressos escarlates, que abanou, antes de jogá-los para cima a fim de que caíssem como folhas de outono nas cabe-ças das crianças.

— Ah, sim, Peter! Um circo! Piuí não foi a única cujo rosto se iluminou

com a idéia. — E muito menos achamos conveniente dor-

mir em jaulas! — completou Peter. — ...mas obrigada mesmo assim — Wendy

acrescentou depressa. Novello não aparentou ter ficado ofendido. — Será que você nunca sonhou... será que

nenhum de vocês nunca sonhou em fazer parte de um circo? Em fugir para uma vida de emoção, risos e vivas num grande picadeiro? Imaginem só! Dançar com as sedutoras ciganas ao som dos trombones da banda! Os corações acompanhando as batidas dos cascos dos cavalos da serragem do chão! As lantejou-las das malhas dos acrobatas cintilando à luz dos ho-lofotes!

Seguiu-se uma pausa embaraçosa, durante a qual Novello fixou em uma criança depois da outra o seu olhar ávido, estranho.

O Cachorrinho foi o único que se dirigiu para ele, e com a intenção de cheirar a curiosa fiapeira que envolvia o dono do circo da cabeça aos pés. O bi-

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chinho deu um bote em um emaranhado de fios de lã que se arrastava pelo chão e no mesmo instante se enredou nele, e tanto que Cabelinho teve de acudir para procurar soltá-lo. Seus dedos embaralharam-se de modo constrangedor em algum ponto entre as botas deformadas e mosqueadas do homem. Novello baixou a cabeça e fitou-o pacientemente, com olhos da cor do mar da Inglaterra.

— Você demonstra uma grande preocupação com os animais, meu jovem. Não vê a si mesmo co-mo um veterinário, talvez? Um dia? Quando for mais velho?

— Eu... O Cachorrinho, de repente e indelicadamente,

mordeu o dono do circo, que deu um grito de dor. Isso assustou os ursos e os trouxe de volta pela praia, com suas passadas barulhentas, os focinhos negros molhados, os olhos negros brilhantes como contas. Um peixe morto balançava na boca de um deles, um caranguejo na de outro. Ficaram de pé, altos, para passar entre as crianças, elevando-se muito acima de-las, pelo menos duas vezes mais altos, grandes mantas de pêlo reluzente roçando em seus pequenos braços nus.

— Calma, minhas fúrias felpudas — sussurrou Novello. — Nada de dança esta noite. Não nos que-rem aqui.

Arrepanhando sua roupa mais junto ao corpo, virou-se para partir, a ponta de seu chicote de couro cru rastejando como uma cobra pela areia. Os ursos puseram-se de quatro e saíram trotando atrás dele.

— Quem é você? — perguntou Deleve. Ele

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era sensível a mágoas e percebia-as de longe, assim como os leões farejam suor e os ursos, o mel.

Novello virou-se. — Eu? Ah, só um viajante, um homem em vi-

agem, simplesmente — respondeu. — Mas não vou incomodá-los mais, já que não necessitam de minha pessoa nem de meus préstimos. Preciso ir agora: ali-mentar minhas feras e conter a minha decepção. Ti-nha a esperança de poder prestar algum serviço ao Me-nino Maravilhoso. Lamentavelmente, porém, a Espe-rança nada mais é que um cruel ardil que os deuses nos preparam. Boa noite, cavalheiros... e damas.

A neblina fechou-se atrás dele como as portas de uma catedral, e o único som que restou foi o sus-piro da água na mudança da maré.

Os Gêmeos abaixaram-se para pegar os in-gressos, mas Peter arrancou-os deles e rasgou todos em pedacinhos.

— Não precisamos de adultos! — disse. — Estamos muito bem assim! — e a expressão de seu rosto revelava que ele não admitiria discussão.

— Ele poderia ter-nos dado umas torradinhas com ovo e manteiga ao jantar, aquele homem em fiapos — disse Piri-lampo, imprudente, o que fez Peter dar-lhe um tapa que o atirou dentro de uma das poças d’água entre os rochedos.

— Homem em viagem — Wendy corrigiu Piri-lampo, enquanto o resgatava da poça e enxugava com a saia de seu vestido. — Não em fiapos.

— Talvez ele não seja um adulto — sugeriu Piuí. — Não dava para ver bem, não é? Podia ser como nós, só que bem grande.

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— Ou talvez o casaco de lã dele fosse com-prido demais — concordou João, balançando a ca-beça.

Mas Peter recusava-se a lhes dar ouvidos. A idéia de dormir em uma jaula (com palha seca ou não) enchia de horror a sua alma ciosa por liberdade. Pensar em animais presos em jaulas era quase tão ruim. Estarrecia-o imaginar criaturas selvagens en-cerradas atrás de grades. Tinha a impressão de que estavam engaioladas dentro dele — aqueles ursos e tigres e leões — andando de um lado para outro, en-fiando os narizes de pelúcia entre as barras de suas costelas — e aquilo o afligia tanto que ele queria abrir seu peito e soltá-los todos... Um terrível pressenti-mento tomou conta de seu coração, algo que ele não compreendeu. E não compreender alguma coisa sempre incomodava muito Peter.

— Bem, onde vamos dormir esta noite? — choramingou a Princesa Piuí.

— Peter, está sentindo cheiro de fumaça? — perguntou Wendy.

Peter levantou o rosto e suas narinas se agita-ram.

— Sinais de fumaça — disse. — Ou foguei-ras... Talvez as Tribos estejam comemorando alguma coisa.

Entretanto, um ruído diferente chegava até e-les acima do ruído do mar, como um gigante ge-mendo durante o sono e mudando de posição em um colchão de palha seca. Estralejando. Ouviam-se gritos de animais, também, de animais amedrontados, agi-tados. Era impossível afirmar se o nevoeiro torna-

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ra-se mais denso ou se havia fumaça misturada nele. Mas àquela altura a fumaça com certeza estava bas-tante densa, pois fez as crianças tossirem.

— Quanto àquele Dragão da Floresta e vocês, Gêmeos... — começou Peter. — Como foi mesmo que o mataram?

— Com fogo. Por quê? Oh. Ooh! E a Floresta do Nunca começou a refulgir,

pondo à mostra seus ossos, suas árvores mortas e tortas aqui e ali. Algo monstruoso vinha vindo atra-vés da mata, e dessa vez não era um bando de ursos nem o Expresso TransSigobiano.

Era o Fogo. Uma forma fantasmagórica, ondulante como

um vagalhão, desprendeu-se das copas das árvores e elevou-se no céu noturno, arrastando consigo uns dez estopins pendurados. Fulgia com uma luz alaran-jada, pois estava cheia de fogo. Escrita nela, enxerga-va-se claramente a palavra

NOVELLO A tenda do circo, com seus cabos de retenção

em chamas, continuou a subir até se transformar em uma bola de fogo e cair de volta no inferno que se formara embaixo.

— Oh, Gêmeos! Olhem só o que vocês fize-ram! — murmurou Piuí.

— Só matamos um dragão! — protestaram os Gêmeos. Dentro da floresta, devorada pelas labare-

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das, estavam os restos da Cabana da Wendy, da Casa Subterrânea, várias jaulas forradas de palha seca e limpa e um dono de circo vestido com uma roupa de lã toda desfiada e emaranhada. A Floresta do Nunca enchia-se dos gritos dos linces e leões, zebras e gori-las, tigres e palmerions. Choveram fagulhas do céu, como se as estrelas caíssem aos pedaços.

— Está na hora de irmos embora — disse Pe-ter quando o calor os alcançou na praia e a Lagoa começou a soltar vapor.

Mas para onde? Estavam encurralados entre a floresta incendiada e o mar. A Floresta do Nunca tornara-se um borrão. A caverna desaparecera da vis-ta. Sem que se dessem conta, a fumaça enevoada e o nevoeiro enfumaçado adensaram-se a tal ponto que as crianças mal distinguiam uma à outra.

Assim, todos se viraram de frente para a Lago-a. E, de dentro da Lagoa, como se arautos a anunci-assem, veio a visão mais fantástica de todas. Os olhos deles ardiam, mas arregalavam-se cada vez mais. Os lábios de João formularam as benditas palavras:

— Navio à vista!

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Capítulo Sete

Um certo casaco — Navio à vista! — gritou ele, pulando, exul-

tante. Através de rolos de fumaça amarela, surgia o gurupés, o mastro do bico de proa de um navio, tal e qual a espada de um duelista — en garde! Logo em seguida, apareceu a proa achatada e negra de um bri-gue que navegara por muitas aventuras, abrindo ca-minho nas ondas escuras como óleo. Um ruído de pano úmido sendo agitado falava de velas negras frouxas e pontas soltas de cabos oscilando, sinuosas como serpentes. Com um suave ranger de cascalho e areia, a quilha encostou no fundo e o navio estreme-

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ceu de ponta a ponta, zangado por ser a reles terra firme a se intrometer em seu caminho. Ao sabor da corrente, no meio do nevoeiro, o Terror dos Mares simplesmente não tinha mais mar onde navegar. Na-quele momento, a proa erguida, altiva e desdenhosa, desafiava as pequeninas ondas que saltavam e latiam em torno de seus pés a continuarem a aborrecê-la.

— Conheço esse navio! — exclamou Peter, e os outros disseram o mesmo.

Pois até os que não sabiam ler direito para de-cifrar o nome escrito na proa conseguiam distinguir a caveira e os ossos cruzados, ondulando na bandeira do topo do mastro.

— É o navio DELE! — disse Deleve com um fio de voz.

Esperaram pelo ribombar dos canhões. Pres-taram atenção para escutar o grito de “Alto, seus lambazes!” vindo do tombadilho. Mas o navio estava silencioso, exceto pelo ranger das madeiras gemendo: Encalhou! Encalhou!

Peter foi o primeiro a bordo, é claro, escalando o costado pelas cracas agarradas nele, pelas portinho-las, as aberturas por onde saem os tiros dos canhões, e chamando o resto para segui-lo.

— De que têm medo? Gancho está morto e liquidado, não é? E lá está o Crocodilo que o devo-rou!

Piuí e Deleve acompanharam-no, mas os me-ninos mais novos deixaram-se ficar para trás, lem-brando que certa vez tinham sido prisioneiros naque-le navio, que tinham sido amarrados ao mastro e condenados a andar pela prancha. Mesmo com o in-

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cêndio na floresta alastrando-se às suas costas e nada mais para respirar a não ser fumaça, foi preciso Wendy deixá-los encabulados para que se mexessem. Ela subiu atrás de Peter cantando uma canção de ma-rinheiros.

Procurou não lembrar nem a si mesma o medo que sentia ao andar pelo convés, subir as escadas do tombadilho, abrir portas de cabines e espiar lá para dentro. De vez em quando, uma figura sombria as-somava repentinamente dos aposentos abafados e escuros com um grito e um gesto rápido para pegar a espada. Então, a névoa se dissipava e lá estava Cabe-linho, ou João, ou Deleve, de pescoço esticado, espi-ando, tremendo de pavor porque eles tinham acabado de ver a figura sombria dela. Cabelinho tropeçou em um canhão; Deleve vinha andando e topou com o sino de bordo, que retiniu, lúgubre, como se anunci-asse o Dia do Juízo Final. Quando a fumaça momen-taneamente se dissipou e o luar se derramou sobre o navio, o mastro parecia tão alto que se poderia subir por ele com um abafador de velas na mão e apagar todas as estrelas.

Tudo estava exatamente como na noite de ah-tanto-tempo-atrás em que Peter Pan e o vil pirata Capitão Gancho haviam lutado até a morte para de-cidir quem ficaria com Wendy para lhe servir de mãe. Desde então, aranhas haviam tecido suas teias entre os vãos da roda do leme. A ferrugem prendera as bo-las de canhão em seus suportes. Ratos tinham nasci-do ali, criado seus filhos, envelhecido e se mudado para celeiros no campo. As gaivotas tinham tingido de branco as velas e a chuva as lavara e deixara negras

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outra vez. Mas nenhum sapato de sola de corda nem bota de cano longo pisara o tombadilho superior du-rante vinte anos. Nenhuma canção soara no castelo de proa; nenhum contramestre soprara mais seu apito a bordo do Terror dos Mares. Era um navio-fantasma num oceano de miasmas. Mofado, molhado, morto.

Mas para aventureiros desabrigados que preci-savam fugir da praia — tarde da noite e sem ter onde dormir —, era um sonho que virava realidade. Ainda havia redes penduradas nas anteparas. Havia bolachas de bordo nos barris de biscoitos e pudins de Natal feitos de ameixa, conservados dentro de barris de conhaque, e água fresca da chuva nas barricas de á-gua. Havia botas dentro de arcas individuais e tam-bém vários sacos de marinheiro marcados com no-mes: Barrica, Metido a Besta, Cecco, Jukes...

— Quanto tempo você acha que os piratas vi-vem? — perguntou Cabelinho.

E havia um baú de bordo. Wendy arejou o castelo de proa do mesmo

jeito como dava suas opiniões, ou seja, apenas du-rante o tempo necessário, e depois ajeitou os Meni-nos em suas redes e colocou-as para balançar.

Havia mapas — as cartas náuticas — no cama-rim de navegação, bandeiras de sinalização e capas de chuva, um telescópio para se enxergar ao longe e uma bússola para se orientar. Havia uma chaleira e choco-late em pó e algo branco em barriletes que serviria como farinha de trigo — ou talco, em caso de neces-sidade.

E havia o baú de bordo. J.G. estava escrito na tampa, que se abria

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como a de um guarda-louça e dentro tinha gavetas para meias, golas de renda e medalhas. Havia uma luneta de bronze tão pesada quanto uma espingarda. Havia um outro instrumento de bronze com peças corrediças e calibradores e botões serrilhados, de uti-lidade desconhecida. Havia uma sobrecasaca de bro-cado vermelho e, enrolada em um canto como uma serpente pálida, uma tira branca de pano para usar ao pescoço como gravata. Peter Pan vestiu a sobrecasa-ca, admirou sua imagem no espelho manchado da cabine, depois embolsou a luneta e subiu ao mastro principal até o cesto de gávea. Fazendo estalar a gra-vata como se fosse um chicote, ele jogou a cabeça para trás e cocoricou tão alto que as estrelas chega-ram a piscar.

“Có-cori-cóóó!” — Agora serei o Capitão Peter Pan, e vou na-

vegar pelos sete mares! — gritou ele, espantando um albatroz que estava chocando em um ninho no mas-tro da mezena.

De volta ao convés, Wendy teve de dar o nó da gravata para ele: nunca usara uma gravata de ho-mem em seu pescoço antes.

— Acho que você vai descobrir que há sete mares, mas apenas cinco oceanos — disse ela, en-quanto dava o nó.

Peter afundou as mãos nos bolsos fundos do casaco de brocado vermelho. Havia furos no forro por onde moedas espanholas de prata passariam fa-cilmente; aquele devia ser o segundo melhor casaco de Gancho. Ora, claro que era! O melhor fora parar,

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junto com seu dono, no fundo da garganta do Cro-codilo.

— Fique quieto, não se mexa — disse Wendy, severa (porque amarrar a gravata de um cavalheiro leva tempo e exige habilidade).

Peter, porém, tinha encontrado algo mais em seu bolso além de furos. Sentiu esfacelar-se entre seus dedos parte de um pergaminho macio, da melhor qualidade, com o qual são feitos os mapas.

— Olhe! Veja o que encontrei! — exclamou, sacudindo o mapa acima da cabeça. — Um mapa de tesouro! E aqui está o lugar onde Gancho empilhava seu tesouro!

Em uma paisagem de pergaminho cor de cre-me, havia florestas e colinas, faróis e montanhas. E ali, realmente, como se tivesse sido feito por um pro-fessor zangado, havia um enorme e negro X cortando a montanha mais alta de todas. Abaixo, fora rabisca-do à tinta: “Monte do Nunca”.

— Içar a amarra da âncora com o cabrestante e guarnecer as vergas! — ordenou Peter. — Preparar o navio! — e se ele se surpreendeu com palavras tão marinheiras em sua boca, não o demonstrou.

Cabeças apareceram em todas as escotilhas. — O quê? Por quê? Aonde vamos? — Sim — repetiu Wendy, irritada —, aonde

vamos? Vai haver muito o que arrumar depois do incêndio.

— Vamos partir em uma viagem de descober-ta!

— bradou Peter. — Vamos sair à procura de um tesouro!

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— Uma caça ao tesouro! — gritaram todos. — Uma caça ao tesouro!

Uma caça ao tesouro por águas inexploradas, ao redor da ilha e para desembarcar em territórios desconhecidos — por caminhos nunca trilhados da Terra do Nunca e em meio aos insondáveis perigos da Terra-do-Nunca-Estive-Lá! Qualquer outro pen-samento que não fosse esse, qualquer outro plano além desse, apagou-se por completo da mente dos companheiros de Pan.

Até o oceano pressentiu a onda de empolgação — TESOURO! — pois afluiu abundantemen-

te para a baía. A maré subiu muito mais depressa que nos dias sem importância. Fez flutuar o Terror dos Mares de novo e depois girar, de modo que sua proa — e seu gurupés — apontaram para o mar: en garde! A fiel tripulação de Peter empoleirou-se toda no cor-dame, esperando que, dali de cima, conseguisse ver além do horizonte. Fagulhas da floresta em chamas enxamearam ao redor de suas cabeças e roçaram a lona das velas. No momento exato, os viajantes dei-xaram para trás a Baía dos Dragões e navegaram para dentro da noite. Ao cruzarem a barra e sentirem no rosto os borrifos da água salgada, até o navio pareceu tomado pelo esplendor do empreendimento, pois à meia-noite o sino de bordo tocou oito vezes. E não havia ninguém por perto.

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Capítulo Oito Todos ao mar

O Terror dos Mares, depois de tanto tempo sem

uma tripulação, obedecia animadamente ao mais leve toque no timão. Peter ficou tão bonito com seu ca-saco escarlate (depois que as mangas foram encurta-das) que a Liga de Pan seria capaz até de andar sobre a água para agradá-lo. Em alguns pontos do litoral, ele os levou a terra para se abastecerem de fruta-pão, e também de nozes-manteiga e favos de mel para comer junto. Armava toldos feitos de velas do navio para que se abrigassem da chuva. Concedeu-lhes postos: Contra-Almirante, Almirante-A-Favor, Pri-meiro Lorde do Almirantado, Outro Primeiro Lorde do Almirantado, Melhor-Imediato-Não-Há, Contra-

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mestre do Convés, Contramestre dos Mastros e Guardião do Cesto da Gávea. E disse a eles:

— Serei fiel a vocês para sempre e darei minha vida por vocês se fizerem parte da minha Companhia de Exploradores!

E eles teriam jurado sobre o punho de suas espadas se tivessem espadas que prestassem.

Às vezes, o tom enfurecido de suas ordens pegava-os de surpresa, mas valia a pena ser um membro daquela tripulação feliz. A habilidade dele para governar o navio impressionava-os. Os nomes de obscuros cabos e peças do navio ocorriam-lhe instantaneamente. Sabia até praguejar como um ma-rinheiro.

— Já chega, sim, por favor — disse Wendy. Por horas a fio, permanecia sentado diante da

mesa de mapas no camarote particular de Gancho, na popa do navio, e escrevia no diário de bordo usando uma pena de corvo, que mergulhava em um jarro de porcelana cheio de tinta vermelho-sangue. Como nunca aprendera a ler nem a escrever, enchia as pági-nas com desenhos em vez de palavras, registrando os acontecimentos do dia.

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Então, voltava a examinar com atenção o ma-pa do tesouro de Gancho, perguntando a si mesmo o que teria levado o patife a se afastar tanto do mar carregando uma pesada arca de tesouro, especulando que butim seria aquele que Gancho tivera tanto tra-balho para esconder. Que dificuldades iriam enfrentar os Exploradores que fossem procurá-lo?

Peter mudou o nome do brigue, evidentemen-te — para Galo dos Mares — e recusou-se a navegar sob a bandeira do pirata.

— Não sou um bandido desprezível para has-tear esse estandarte com a cavei-ra-e-dois-ossos-cruzados! — disse a Wendy. — Fa-ça-me uma bandeira, menina!

— Qual é a palavrinha sem a qual não se faz nada? — perguntou Wendy, que era rigorosa quando se tratava de boas maneiras.

Peter deu tratos à bola. Como não tivera mãe para ensinar-lhe a ser educado, não tinha a menor idéia de que palavrinha podia ser aquela.

— Botão? — arriscou. — Dedal? Bandeira? Wendy sorriu, deu-lhe um beijo ligeiro no rosto e foi fazer a bandeira com seu vestido de verão e um ves-tido para si com a bandeira dos piratas. Assim, foi sob o emblema do girassol-e-dois-coelhos que o Galo dos Mares atravessou os Canais de Ziguezague e os Estreitos Vaiquedá para chegar ao Mar das Mil Ilhas. Peixes-voadores saltavam por cima do navio e gaivo-tas mergulhavam por baixo dele, voltando à tona com os bicos cheios de peixe miúdo.

As Mil Ilhas foram aparecendo em todas as suas formas e tamanhos. Havia rochedos que só ser-

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viam para abandonar um marinheiro rebelde; ilhas desertas com uma única palmeira e um pouco de pa-lha de coqueiro; ilhas com manguezais e cheias de papagaios barulhentos; arquipélagos de coral verme-lho e archipe-louses com belos gramados verdes. Havia atóis vulcânicos extintos e ilhas com vulcões nada extintos que fumegavam e estrondeavam e lançavam pedaços de rocha derretida a distância no mar. Havia ilhas com formato de tartaruga e outras com formato de ilhas mesmo, mas repletas de tartarugas. Todas elas Peter encontrou assinaladas nos mapas, assim como os faróis e promontórios, redemoinhos e estu-ários. Em trechos sombreados marcados com as pa-lavras “Águas Piscosas”, bastava balançar um ímã junto ao costado do navio e apanhava-se uma lata de sardinhas ou de espadilhas. Havia restos de naufrá-gios e aldeias submersas cujos sinos de igrejas toca-vam quando o mar estava bravo...

Peter irritava-se quando as ilhas que passavam pelas janelas de batente — iguais às de uma casa, e não escotilhas comuns de navio — de sua cabine não se pareciam nem um pouco com as do mapa. Os de-senhistas dos mapas haviam burramente desenhado tudo como se estivessem olhando de cima: muito bom para quem viajasse de balão pelo ar, mas muito confuso para um capitão de navio. Deveriam ter mostrado como cada ilha aparecia vista de lado, através de uma luneta de bronze.

Ele sabia que sem dúvida haveria outras coisas pela frente — coisas não assinaladas nos mapas, co-mo ondulações causadas pela maré, baleias e trombas d’água — que constituíam perigo de vida. Mas tudo

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bem. A exploração era mesmo uma tarefa para he-róis. Peter acariciava a gravata branca em torno de seu pescoço e fechava os olhos, cansados de tanto ler mapas. Pintas coloridas expandiam-se dentro de suas pálpebras e convertiam-se em estranhas paisagens e vistas: amplos gramados verdes, remadores em um rio ensolarado, um prédio esbranquiçado que parecia um palácio, com janelas altas e estreitas com vidros coloridos... Não existiam lugares assim na Terra do Nunca — pelo menos, que ele tivesse visto. Que ma-ravilha, então, ter aquelas imagens dentro da cabeça!

— Navio à vista! Peter largou sua pena e a tinta vermelha res-

pingou no Mar das Mil Ilhas. Peter subiu correndo para o convés.

— Navio à vista!— avisou Cabelinho de novo, do alto do cesto da gávea.

— Não é apenas um navio, meu caro — disse Deleve. — É um navio a vapor.

Pela luneta de bronze de Gancho, Peter avis-tou um pequeno navio acinzentado como o aço da armadura de um cavaleiro. Cheio de ferrugem, que parecia sangue coagulado, vinha na direção deles bu-fando e sacolejando e repenicando sem parar, dentro de uma nuvem de fumaça suja que saía de sua cha-miné. Uma boca aberta cheia de dentes fora pintada na proa, e tinha-se a impressão de que o naviozinho vinha mastigando seu caminho pela água. Wendy si-nalizou com as bandeiras:

A-M-I-G-O O-U I-N-I-M-I-G-O? Os Meninos assistiam admirados os braços es-

ticados de Wendy movimentando-se como os pon-

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teiros de um relógio. Infelizmente, ninguém na tripu-lação do navio a vapor sabia ler os sinais das bandei-ras. E continuavam seguindo em frente, a toda velo-cidade. Nem com tanta velocidade assim, mas como o SS Tubarão mantinha o curso para abalroar o Galo dos Mares a meia-nau, não havia tempo a perder. Não havia tempo para carregar o canhão com pólvora (ou farinha de trigo). Não havia tempo para vasculhar o navio à procura de mosquetes.

— Cambar para bombordo! — gritou Peter. A tripulação olhou para ele piscando, apateta-

da. Estavam muito impressionados, mas não tinham a menor noção do que aquilo significava: Peter devia ter encontrado algum livro de frases de alto-mar no baú de bordo de Gancho.

— Rumem para aquele lado de lá, seus palermas! — berrou ele.

João girou a roda do leme. O Galo dos Mares adernou e fez a volta. O sino de bordo tocou. As ve-las se agitaram e ondularam. Os cabos se retesaram com um zunido. O Cachorrinho escorregou pelo convés. A proa do Galo dos Mares girou até ficar a-pontando quase na mesma direção que a do SS Tuba-rão. Em vez de serem cortados ao meio por uma lâ-mina de aço, talvez conseguissem desviar-se de seu caminho ou correr mais depressa que ele.

Vã esperança. As velas encheram-se de vento; o Galo dos Mares balançou e foi jogado de um lado para outro na água. E lá vinha sem parar o SS Tuba-rão, agora tão perto que as crianças enxergavam a bandeira de piratas na ponta do mastro e a tripulação preparando-se para a abordagem. Era uma visão a-

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larmante, pois esses piratas, apesar de baixinhos, es-tavam todos pintados para a guerra e armados com machadinhas, arcos e flechas e facões de mato de lâ-mina longa.

— Os índios peles-vermelhas de Metido a Besta! — murmurou Peter.

A proa de aço com sua arcada dentária pintada não abriu ao meio o casco do Galo dos Mares. Abal-roou-o na popa, espatifando as janelas da cabine de

Peter e sacudindo o navio de popa a proa. In-capaz de resistir, o grande brigue foi empurrado pelo navio a vapor para diante como se fosse um carrinho de criança empurrado por uma babá. O Capitão do vapor surgiu da ponte de comando, carregado em uma cadeira giratória forrada de couro, destinada ao capitão do navio, transportado no alto por quatro crianças guerreiras. Tratava-se nada mais nada menos que Metido a Besta: primeiro imediato do Capitão Jas Gancho nos dias longínquos do passado, antes da grande vitória de Pan sobre o capitão e sua abominá-vel tripulação!

— E agora, meninos, o que me dizem disso? — perguntou Metido a Besta, a fisionomia triunfante franzindo-se toda como um pedaço de couro velho.

— Apresentem-se para essa gente distinta. Aliás, não eram todos meninos. A metade era

de meninas, com longos cabelos sedosos e túnicas de pele de gamo mais limpas. Mas todos estavam arma-dos. Com a corda de seus arcos esticada até o fim, eles fizeram uma reverência, curvando o corpo para a frente ou dobrando levemente os joelhos, piscaram com seus grandes olhos escuros para a tripulação do

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Galo dos Mares e gritaram: — Olá. Muito agradecidos. Como têm passa-

do? Muito prazer. Façam a gentileza de deixar cair aqui perto de nós os seus pertences que estamos roubando e depois se deitem com o rosto para baixo no convés, senão, infelizmente, teremos de cortar suas goelas e alimentar os peixes com as suas pessoas. Lamentamos muito. Por favor, não peçam que te-nhamos misericórdia para não ficarem ofendidos com uma recusa. Muito gratos. O tempo tem estado de fato bastante agradável.

Capitão Metido a Besta aprovou balançando a cabeça e deu um giro completo em sua cadeira.

— Muito bem, marujos, mas vocês esquece-ram de falar sobre os escalpos deles. Devem sempre mencionar o assunto dos escalpos.

Subitamente, ele pareceu reconhecer o navio. Seu olhar então caiu em Peter — ou melhor, no ca-saco de Peter —, e nem a pele queimada por uma vida inteira ao sol conseguiu esconder a palidez que se espalhou pelo seu rosto.

Enquanto isso, o vapor empurrava o Galo dos Mares pela água como se fosse um carrinho de mão. Os Meninos viam agora que o nome lambuzado com tinta na proa do navio a vapor não era SS Tubarão, mas sim SS Metidão. O casco de madeira estalava e rangia. As balas de canhão caíam de seus suportes e rolavam pelo convés, fazendo a tripulação e o Ca-chorrinho pularem para sair de seu caminho. As faces de Peter estavam rubras de humilhação.

— Virou Capitão agora, hein, Metido a Besta! Você, que nunca passou de um pano sujo para limpar

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o convés de Jas Gancho! Um ou dois dos Exploradores já haviam dei-

tado com o rosto para baixo. Ao ouvirem Peter rir na cara de seu atacante, levantaram-se outra vez.

— Ouvi dizer que você tinha sido capturado pelos índios peles-vermelhas, Metido a Besta! Depois que derrotei vocês na Grande Batalha, não foi? Soube que você foi incumbido de tomar conta dos bebês-índios! Que destino terrível para um homem que se dizia pirata! — Peter carregou as palavras com uma grande dose de desprezo, da mesma forma como teria carre-gado um mosquete com pólvora.

O Capitão Metido a Besta deu dois rodopios seguidos em sua cadeira giratória. A cor voltara às suas faces.

— Macacos me mordam! Se não é o danado do cocoricó! Por um momento, achei que fosse o... Ora, ora, não é que a vingança é doce mesmo, como se diz por aí! Destino terrível, você disse? Nem me fale! Pior que a morte, foi o que pensei na época. O-brigado a tomar conta de um monte de bebês e de pirralhos? Uma vergonha, uma situação degradante prum homem com a minha vocação! Mas até que tirei bom proveito dela, não vê? Transformei em vanta-gem pra mim. Deu pra notar o trabalho que fiz com eles, com as minhas indiazinhas e meus pequenos bravos? Nem na sala de visitas do rei da Inglaterra ‘cê vai encontrar boas maneiras assim. E ensinei um ofí-cio a eles, também, o que a maioria dos professores nem faz nas escolas. Ensinei a eles tudo o que apren-di. Transformei eles em piratas, todos eles, sem exce-ção. Alguns têm um bocado de talento, ‘cê nem ima-

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gina! São meu orgulho, esses pestinhas, cortam uma garganta igual a gente grande! São o orgulho da mi-nha vida. Qual é a carga que ‘cê traz aí, ô cocoricó? Diga logo, porque agora a sua carga vai ser minha!

Como Peter recusou-se a responder, Metido a Besta mandou que uns dez de seus pequenos corta-dores de gargantas subissem a bordo do Galo dos Ma-res para saquear o navio.

— E tragam meu velho saco de marinheiro que está no castelo de proa! — acrescentou. — O que tem meu nome escrito bem grande em cima.

Quando a Liga bravamente sacou suas espadas de madeira para defender o navio, Metido a Besta caiu na gargalhada, e riu tanto que quase caiu da ca-deira.

— O quê? Será que as suas mamãezinhas não deixam vocês brincarem com espadas de verdade?

Nem Peter, que sempre carregava uma adaga de verdade no cinto, podia desafiar as vinte flechas apontadas para a sua cabeça.

Os piratas pintados para a guerra saltaram a-gilmente a bordo pelo local onde a proa do SS Meti-dão estava encravada na popa espatifada do Galo dos Mares. No porão, como só encontraram teias de ara-nha e bolachas de navio, eles reuniram os Darlings e os empacotaram nos velhos e fedorentos sacos de marinheiro que estavam no castelo de proa, amar-rando-lhes os cordões em torno dos pescoços.

— Vou obter um bom preço por eles como escravos! — gabou-se Metido a Besta, com ar de maldosa satisfação.

Os guerreiros foram muito educados e suas

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mãos pequenas eram macias e bem lavadas. Mas roubaram o guarda-chuva e o canivete de João e, en-quanto os amarravam, discutiam se o Cachorrinho ficaria mais gostoso se o cozinhassem com gengibre, com mariscos ou com molho de piripiri. Nenhum deles sequer ousou colocar as mãos em Peter Pan, que segurava o punho de sua adaga com ar de desafi-o. Mas trabalharam ao redor dele, ignorando suas pragas de gelar o sangue e sua promessa de “fazer Metido a Besta pagar por isso”.

Enquanto isso, o naviozinho a vapor resfole-gava e espoucava e se esfalfava, empurrando o Galo dos Mares como se fosse um carrinho de chá num da-queles enormes restaurantes tradicionais de Londres. Pelos barulhos que produzia, tinha-se a impressão de que o brigue poderia morrer de vergonha a qualquer minuto, partir-se ao meio e ir para o fundo do mar. Depois que Cabelinho desceu arrastado do cesto da gávea e foi enfiado dentro de um saco de marinheiro, não restou ninguém de vigia para avisar sobre a apro-ximação de recifes ou redemoinhos. Sem suas cartas náuticas diante de si, Peter não tinha meios de saber o que havia à frente. A qualquer momento, podiam encalhar — ou alcançar o horizonte e despencar pela beirada do mundo abaixo! A única coisa que o con-solava era pensar que o Galo dos Mares arrastaria junto o SS Metidão para as profundezas do abismo.

— Vire seus bolsos para fora! — disse Metido a Besta para Peter.

(E pôr o mapa do tesouro de Gancho nas mãos gananciosas de um pirata ordinário?)

— Nunca!

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— Vire logo seus bolsos para fora, cocoricó, ou mando meus cortadores de gargantas flecharem você todinho e depois eu mesmo vou aí dar uma o-lhada no que você está escondendo dentro deles!

Wendy viu o menino com a roupa de penas de gaio vermelhas e a sobrecasaca escarlate olhar de sos-laio para a amurada do navio. Percebeu na hora que ele preferia saltar para a morte a entregar seu mapa do tesouro para Metido a Besta.

— Não faça isso, Peter! — gritou ela. Com um gesto paternal, Metido a Besta colo-

cou a mão no ombro de uma jovem índia, cujo arco estava retesado, pronto para atirar.

— Quando eu mandar, marujo... atire na coxa dele — disse, e a índia mirou o alvo com cuidado. — Vamos ver se uma flecha não fura esse orgulho todo como se fosse um balão!

Ora, se Peter tivesse seus mapas naquele ins-tante à sua frente, teria visto que o Mar das Mil Ilhas ganhara recentemente um pequeno acréscimo. Cinco pequeninas ilhas tinham surgido a bombordo e, o que era muito incomum em se tratando de ilhas, pareciam estar avançando na direção deles. Além do mais, subi-am e desciam na ondulação da água, singrando as ondas, movendo-se contra a correnteza. Quando Me-tido a Besta as viu também, ficou estupefato. A te-mida ordem “Atire” ficou em suspenso em sua boca, sem ser pronunciada, enquanto ele acompanhava com os olhos a flotilha de pequenas elevações desli-zar para cada vez mais perto.

Naquele exato momento, os velhos motores do navio a vapor, no esforço de empurrar o Galo dos

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Mares, não agüentaram mais e explodiram. A chaminé cuspiu um pouco de fuligem negra para cima e depois parou de soltar fumaça. O nauseante avanço tor-nou-se mais lento, e por fim os dois navios ficaram ao sabor das vagas. As cinco ilhas os alcançaram e acomodaram-se ao redor. Eram viçosas, felpudas de tantas árvores, de tanta alfafa e capim-dos-pampas, e aparentemente presas umas às outras por metros e metros de cordas esfiapadas. Teriam habitantes, a-quelas balouçantes extensões de terra?

Ah, sim, senhores, tinham. Apareceram croques de atracação que segura-

ram a amurada do navio como se fossem garras gi-gantescas. Em seguida, vieram... bem... garras gigan-tescas. Os índios peles-vermelhas foram os que viram os tigres primeiro. As panteras saltaram mais ligeiro para bordo, mas tinham o pêlo tão negro que eram quase invisíveis. Os ursos moviam-se devagar, mas também era impossível detê-los, e eles apoiavam as enormes barrigas peludas em cima da amurada para em seguida se deixarem cair pesadamente no convés como sacos de açúcar mascavo. Os babuínos vinham voando pelo cordame do navio, mão-depois-punho-depois-cauda. Os cascos dos pal-merions batiam com um ruído oco nas tábuas do con-vés.

Em circunstâncias normais, ninguém duvidaria que os antigos bebês de Metido a Besta fossem mara-vilhosos como arqueiros ou cortadores de gargantas. Mas diante daquela chusma de panteras, daquele magote de leões, daquela batelada de macacos e do mundaréu de ursos, as mãozinhas macias deles tre-

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meram e os arcos escorregaram nos dedos suados. Fugiram correndo para baixo do convés principal. O grupo que estava a bordo do Galo dos Mares para fazer a pilhagem pulou de volta para a proa do SS Metidão, derrubando seu capitão-babá da cadeira giratória para dentro do paiol de tintas. Tentaram soltar as embar-cações uma da outra, mas a proa do navio a vapor estava cravada muito fundo.

As cinco ilhas encostaram levemente no Galo dos Mares suas defensas feitas de seringueiras, as ár-vores da borracha. Quatro das cinco ilhas estavam repletas de animais de espécies exóticas. Na quinta, encontrava-se apenas uma espécie de animal. Uma criatura solitária, de duas pernas.

— Encontrou dificuldades, senhor? Que sorte eu estar passando — disse O Grande Novello.

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Capítulo Nove Justa partilha

Peter Pan sacou sua adaga e cortou os cordões

dos sete sacos de marinheiros. A Liga de Pan estava livre. A primeira preocupação dos meninos foi ficar o mais longe possível dos animais selvagens que anda-vam pelo navio, rugindo, investindo contra tudo e pingando baba no convés.

— Oh, por favor! — disse Novello. — Não liguem para meus dentuços. Eles sabem qual é o seu lugar e raramente comem entre as refeições.

E estalou seu chicote de mestre de cerimônias do circo. Os animais encolheram-se, interromperam o que estavam fazendo, pularam por cima da amura-da e voltaram nadando para suas diversas ilhas flutu-antes. Exceto os ursos, que subiram a bordo do SS Metidão, sentaram-se ao redor da escotilha do castelo da proa para enfiar as patas imensas por ela, como se

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tentassem apanhar peixes por um buraco no gelo. Ouviam-se os indiozinhos lá dentro gritando e cho-ramingando, chamando suas mães. Peter Pan segura-va firme a adaga.

— Obrigada, senhor Novello! — disse Wendy. — O senhor nos salvou!

— Foi um prazer, senhorita — respondeu Novello, inclinando-se. Seus amplos trajes estavam chamuscados e pairava em torno dele um odor de lã queimada. — Tinha grandes esperanças de que nos-sos caminhos se cruzassem novamente.

Peter, minúsculo ao lado do dono do circo, recuou ao ouvir isso.

— Por quê? — perguntou ele. — Houve um incêndio na Floresta do Nun-

ca... que aliás vocês devem ter visto enquanto se a-fastavam no navio, não foi mesmo? (Os Gêmeos co-briram as bocas com as mãos, apavorados, cheios de culpa: será que Novello iria fazê-los pagar pelo preju-ízo, por terem queimado seu circo? Teria vindo atrás deles planejando vingar-se, castigá-los?) Meus meios de subsistência foram totalmente destruídos com a-quele incêndio. Tudo se foi. Tenda, jaulas, auxiliares... Portanto, encontro-me sem uma profissão, sem re-cursos para ganhar meu pão de cada dia. (Os Gêmeos miaram de pânico e amargo remorso e tentaram es-corregar para baixo da lona encerada de um escaler para se esconder. O Grande Novello interceptou-os, envolvendo cada menino em uma de suas mangas esfarrapadas, trazendo as cabeças deles para junto de seu próprio corpo com um puxão firme.) Sendo as-sim, procuro emprego. Precisamos trabalhar por

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nossa travessia nesta viagem pela Vida, não concor-da?

— Trabalho é coisa de gente grande! — repli-cou Peter, que não concordava nem um pouco.

Novello abanou a ponta desfiada da manga e deixou-a cair.

— Ah, sim. Claro. Já ia esquecendo. Vocês a-qui fizeram da Infância a sua profissão. Lamentavel-mente, eu preferi perder o barco, no que se refere a ser menino. Ergo, tenho de seguir uma outra linha de conduta. — Dentro da sombra lanosa do capuz de seu casaco, os claros olhos castanhos de Novello fe-charam-se por um momento. — Então, espero... a-trevo-me a esperar?... que me permita servir, de al-guma humilde forma, o maravilhoso Peter Pan.

Peter ficou genuinamente perplexo. — Eu? Novello inclinou-se até tocar as pontas das

botas de Peter com os fiapos de suas mangas. — Como seu mordomo, talvez? Ou seu criado

pessoal? Ou seu copeiro? Não peço pagamento al-gum, senhor! Só meu sustento, senhor! A honra de servi-lo já será mais que um pagamento para mim. Só desejo ser útil, senhor! Diga que me perdoa o pecado de ter crescido, senhor! — Os ombros dobraram-se para a frente, a cabeça descaiu. Até um carneiro morto teria parecido arrogante em comparação com o Grande Novello quando ele se abaixou com um joelho no chão na frente de Peter Pan. — Deixe-me servi-lo de todas as maneiras que eu puder!

Por um instante, Peter não conseguiu pensar no que deveria dizer.

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— Como devo chamá-lo? Grande ou Senhor? — perguntou Peter, desconcertado.

— Dispensemos as formalidades, meu senhor — disse o Homem Esfiapado. — E de que maneira poderia eu reivindicar o título de Grande estando di-ante da sua pessoa? Minha mãe chamou-me de... — Levou um momento para se lembrar de seu primeiro nome. — Minha mãe deu-me o nome de Crichton, porém, como a maioria das coisas dadas pelas mães, não valeu muito a pena. Novello será suficiente, meu senhor.

— Ótimo — disse Pan. — .. .Mas vamos ser Exploradores, sabe? E é minha obrigação preveni-lo: pode ser perigoso. A coragem é tudo.

— Tirou as palavras de minha boca! — disse o Homem Esfiapado com tamanha intensidade que o mercúrio do barômetro do navio desceu depressa. — A coragem, sem dúvida nenhuma, é mesmo tudo.

A essa altura, Metido a Besta, com muito es-forço, saiu sorrateiramente do paiol de tintas e espiou por cima da amurada, nervoso. Ao vê-lo, Peter gritou, com voz cortante:

— Qual é a carga que você traz aí, Metido a Besta? Diga logo, porque a sua carga agora vai ser minha!

O pirata deu uma risada desdenhosa, desafia-dora.

— Não digo! Não digo e não digo! Quando Peter avançou para ele, porém, com a

adaga na mão, o covarde sacudiu os dedos tatuados na frente do peito e confessou:

— Peles prateadas, é isso! Não me mate, Pan!

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Peles prateadas! Peles prateadas. Palavras macias, lustrosas. Pa-

lavras cheias de romantismo. Peter balançou a cabeça, sério, solene, e virou

o rosto só um pouquinho na direção de Wendy. Wendy virou o rosto para João, João cochichou atrás da mão para Deleve:

— O que é uma pele prateada? Deleve pensou que poderia ser uma pele de

arminho; João pensou que fosse uma casca fininha de noz-moscada. Wendy pensou na barracuda, o peixe mais prateado do mar. Os Gêmeos acharam que fos-se uma palavra usada pelos piratas para designar as moedas de prata; Piuí imaginou que fosse um raio de luar colhido por uma foice. Cabelinho pensou em escravas louras.

— O senhor está rico mesmo — disse Novello, apertando os olhos, cheio de alegria. — Peles pratea-das, hein?

Portanto, ninguém confessou que realmente não sabia de que se tratava, porque não queriam pas-sar por burros na frente de um adulto, sobretudo sendo este um mordomo.

— A questão é, meu senhor, como vai partilhar o saque? Tradicionalmente (creio eu), o capitão fica com a metade e divide o resto entre a tripulação.

E foi assim que começou: a Guerra da Pele Prateada, a Peleja da Justa Partilha. Antes da chegada de Novello, eles dividiam tudo igualmente. Era assim que a Liga de Pan funcionava: igual para todos. Ago-ra, porém, Novello dissera-lhes como é que se faziam essas coisas.

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De modo que Peter quis a metade. Piuí declarou que, sendo princesa, deveria

também ganhar uma metade. Wendy observou que, se iam começar a fazer

comparações, ela era a mais velha e deveria também receber uma metade.

Novello interveio: — Claro que há uma outra maneira de dividir a

pilhagem, que é de acordo com a hierarquia. Nesse ponto, o Primeiro Lorde do Almiranta-

do disse que ele deveria então ficar com o dobro do que cabia ao Último Lorde do Almirantado; o Con-tramestre dos Mastros lançou um sorriso debochado para o Contramestre do Convés e um chutou as ca-nelas do outro. O Cachorrinho mordeu o Me-lhor-Imediato-Que-Há.

Pirilampo anunciou que iria lá dentro contar as peles prateadas.

João disse que deveriam resolver a questão jo-gando cara ou coroa: quando a moeda deu cara e ele disse “Cara!”, alegou que tinha ganhado a carga toda.

Piuí disse que os Gêmeos só contavam como um membro da tripulação porque não tinham nomes diferentes. Teriam de dividir entre si a cota deles.

Os Gêmeos mandaram Piuí plantar batatas. Cabelinho argumentou que, rigorosamente fa-

lando, Peter não era o capitão do Galo dos Mares: ele apenas se apossara do título e dos alojamentos do Capitão.

Peter replicou que, se jogassem Cabelinho no mar, sobrariam mais peles prateadas para todos.

Em resumo, disseram coisas que nunca deve-

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riam ter sido ditas — coisas terríveis. Wendy disse a Peter que ele era um bebê mimado e que não salvara o navio coisa nenhuma. Peter disse a Wendy que me-ninas não contavam como tripulação porque não ser-viam para nada. Piuí tentou dar um soco no nariz de Peter por causa disso, mas errou o alvo.

Peter então encheu-se de empáfia e comuni-cou:

— Sou eu quem vai decidir como as peles pra-teadas vão ser divididas!

Deleve disse que Peter era tão burro que nem saberia dividir uma bolacha de bordo entre dois ratos.

Dentro em pouco, ninguém estava mais fa-lando com ninguém. Sentaram-se, amuados, em dife-rentes cantos do navio, furiosos, de cara fechada e sentindo-se injustiçados. João, mirando Peter, fez rolar uma bala de canhão pelo convés, mas ela passou por cima da mão de Deleve e machucou-a para valer. Cabelinho recusou-se a voltar para o cesto da gávea como sentinela porque achava que iriam tapeá-lo para não lhe dar a sua justa parte assim que virasse as cos-tas. Peter retorquiu que, nesse caso, Cabelinho seria pendurado no lais da verga como amotinado. Os in-sultos foram piorando cada vez mais. Pediram a No-vello que servisse de árbitro. Mas ele ronronou, com aquele seu jeito macio de gato, que aquela “não era a sua função”, acrescentando, com leve ar zombeteiro, que nada impediria que devolvessem o saque a Meti-do a Besta.

Pan, engasgado de tanta raiva, puxou a gravata branca que apertava desconfortavelmente as veias dilatadas de seu pescoço. Chamou Novello de tolo.

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Chamou a Liga de “bando de amotinados” e “cambada de salteadores” — “larápios” e “fominhas” e “sanguessugas”; “cracas desprezíveis” e “escória do mar”. Ameaçou abandonar Piuí e Cabelinho na pró-xima ilha deserta ou jogá-los aos tubarões. Foi tama-nha a enxurrada de ofensas que jorrou de sua boca, na realidade, que ele teve de fechar os olhos com re-ceio de que estes estourassem. E quando os abriu novamente, todos estavam pasmos olhando fixo para ele. De onde viera aquela explosão? Quem guardara aquela saraivada de palavras dentro da cabeça dele?

Foi quando Metido a Besta tentou escapulir descendo pela corrente da âncora.

Novello apanhou-o de volta, puxando-o de novo para bordo pela parte de trás da gola da camisa. (As mãos escondidas pelas mangas balouçantes niti-damente possuíam a força do aço.)

— Abra as escotilhas do porão e entregue sua carga! — rugiu Peter na cara de Metido a Besta.

Depois dos anos passados ensinando boas maneiras aos indiozinhos peles-vermelhas, Metido a Besta disse sem pensar:

— Ora, ora, filho. Qual é a palavrinha sem a qual nada se faz?

Outra vez aquela pergunta infernal! Peter es-quadrinhou sua cabeça à procura da palavrinha má-gica. Mas só encontrou mais e mais estoques de mau humor.

— Não sei!É “chicote”? Ou “prancha”? Ou “afo-gar”?

Metido a Besta estava tão apavorado que abriu o porão de carga sem ao menos usar ferramentas. De

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lá saiu Pirilampo (que conseguira entrar com facili-dade, mas estava tendo muito mais problemas para sair). O elfo estava tão empanturrado de comida que aterrissou aos pés de Peter com um baque surdo, i-gual a uma bola de críquete.

— Então, meu espiãozinho de confiança? O que são afinal essas tais peles prateadas?

O elfo arrotou. — Cebolas! — declarou ele. — Ceboli-

nhas-brancas! — Cebolas?! Pirilampo arrotou de novo. — Havia sete mil, duzentas e oitenta e quatro cebolas.

Eu contei — disse ele, orgulhoso — enquanto comia. — Guardem esse elfo no porão! — ordenou

Pan. — Ele comeu o nosso espólio de guerra! — e seus lábios curvaram-se mostrando os dentes alvos em um rosnado tão feroz que até um tubarão ficaria encabulado.

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Capítulo Dez

O Rochedo MagNeto O Homem Esfiapado só comia ovos. Devora-

va-os crus, na própria casca ou, no mais das vezes, engolia-os inteiros. Entre as criaturas que povoavam as ilhas flutuantes, havia lagartos, cobras e tartarugas, que botavam ovos macios, borrachudos, e Novello sempre trazia alguns consigo, escondidos nos forros lanudos de seus bolsos de lã. A presença desses ovos, fosse na roupa ou no hálito dele, dava ao homem seu cheiro característico.

Novello mostrou-se maravilhosamente presta-tivo no navio, cozinhando as refeições, lendo as pre-visões do tempo, marcando o rumo na bússola, po-lindo os metais. Botou os índios para costurar e eles transformaram seus cobertores em casacos quentes para a Liga. Sabia vários jogos de cartas e conhecia a arte de dar nós, além das mais sangrentas histórias de piratas que você já ouviu na sua vida. Tirou o badalo

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do sino do navio para que não os incomodasse no meio da noite ao bater os quartos de ronda (o que o sino ainda fazia por conta própria). E na hora da ses-ta, ele balançava as crianças em suas redes até elas dormirem. O próprio Novello parecia nunca dormir, nem de dia nem de noite.

Era mais atencioso ainda com Peter, dando brilho em suas botas, tirando o pó de seu camarote — e até penteando o cabelo do menino, que a cada dia crescia um pouco mais, escurecia um pouco mais. Sem dúvida que era divertido pedir: “Vá buscar isso, Novello! Faça isso para mim, Novello, ande logo!”

O bom Novello ofereceu-se para soltar o 55 Metidão e abandoná-lo à deriva, mas tratava-se da primeira presa de guerra de Peter e ele queria man-tê-la. Assim, eles o traziam a reboque puxado por uma corrente de aço, enquanto o Capitão Metido a Besta e sua tripulação continuavam trancados no castelo de proa com os ursos tomando conta deles. As ilhas flutuantes surgiam e desapareciam inespera-damente na bruma do mar, algumas vezes visíveis, outras bastante esquecidas.

— O que você vai fazer com o Inimigo, Peter? — perguntou Wendy. — Porque, se não for aban-doná-los à deriva, vou ter de preparar um lanche para eles.

— Vamos vendê-los como escravos ou as-sá-los no espeto para o jantar!

Ninguém acreditava, mas Peter soava maravi-lhosamente resoluto quando falava assim. Ainda por cima, fazia uma figura tão bonita com o chapéu de três pontas e as botas longas que encontrara no fun-

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do do baú de bordo de Gancho que ninguém estra-nhava ouvi-lo falar como um pirata, além de parecer um pirata.

Mas ele tirou o casaco escarlate em uma ou outra ocasião. Por exemplo, na vez em que mergu-lhou para lutar duelos com os peixes-espadas, ven-ceu-os e conquistou-lhes as espadas para que sua Companhia nunca mais fosse apanhada sem armas. Também disputou ossos com os peixes-cachorros para poder alimentar o Cachorrinho. Felizmente, seu mau humor parecia dissolver-se quando estava dentro d’água.

Como todas as peles prateadas haviam sido comidas, não havia mais motivo para brigas. As o-fensas ditas não podiam ser apagadas, mas deu para dobrá-las bem pequenininhas e guardá-las no fundo dos bolsos.

Peter desenrolou o mapa do tesouro para to-dos verem, e eles se reuniram em torno para estudar a superfície da Terra do Nunca. No interior, longe da Costa Lalonge e da Charneca Grená, do Labirinto dos Lamentos, do Cemitério dos Elefantes e Deserto da Bocasseca... havia um amplo espaço vazio assina-lado com a legenda “TERRITÓRIO DESCONHECIDO”. O Monte do Nunca ficava bem no centro desse es-paço, com nuvens iguais às de histórias em quadri-nhos pintadas em torno de seu cume, mas todas as trilhas, caminhos e cursos d’água diminuíam gradu-almente até sumir dentro do Território Desconheci-do. Não havia nenhum ponto de referência marcado, nada.

— Vamos mapeá-lo à medida que avançarmos!

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— disse Peter. — E vamos descobrir a nascente do Rio

Nunca-nunquinha! — E vamos encontrar novos animais! — Vamos recolher amostras de rochas! — O senhor pode inclusive dar nome a lagos e

montanhas, meu senhor — sugeriu Novello, servindo o chá da tarde.

Os Exploradores encantaram-se tanto com a idéia que no mesmo instante a colocaram em prática, mesmo sem ter descoberto ainda os pontos de refe-rência.

— O primeiro sou eu a dar nome à primeira montanha que aparecer!

— Cataratas João Darling! — Estreito Deleve! — Pico Dois Irmãos Gêmeos! — Com todo o respeito, senhor — ronronou

Novello, segurando o casaco escarlate para Peter en-fiar dentro os braços molhados —, mas essa área foi equivocadamente designada como “desconhecida”. Esse Capitão Gavião que os ouvi mencionar...

— Gancho — corrigiu Peter. — Jas Gancho. — Perdão. Esse Capitão Gancho deve ter estado

lã para esconder sua arca do tesouro. Não deveria então se chamar “Território de Gancho”?

— De “Peter Pan”! — exclamou ele, em seu tom autoritário de Filho Único Mimado, fazendo um círculo em torno de toda a Terra do Nunca com sua pena negra de corvo. — É MEU! E o tesouro também! — gritou, respingando tinta vermelha na camisa fina de Deleve.

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Fez-se um silêncio constrangido. — Nosso. Acho que o Capitão quis dizer “nos-

so” — disse Wendy. — Não foi, Peter? Peter repuxou a gravata branca que lhe aper-

tava o pescoço e tossiu. Suas faces estavam muito coradas.

— Sirva-me um golinho de alcaçuz-indiano — ordenou ele. — A fumaça daquele barco fedorento de Metido a Besta embrulhou meu estômago.

— Qual é a palavrinha sem a qual nada se faz? — disse Piuí sem pensar. Mas Peter lançou-lhe um olhar tão feroz, gri-

tando: “Semolina! Ruibarbo! Tapioca! Que importa qual é a palavra?!” que ela imediatamente foi preparar o chá.

Que nunca foi servido. Assim que Piuí encheu o bule, o Galo dos Mares balançou de proa a popa, deu uma guinada e desandou a oscilar para a frente e para trás. O pequeno navio a vapor começou a arrastá-lo mar afora, mesmo sem ter ninguém na ponte de co-mando, sem ter fogo em suas caldeiras nem fumaça em suas chaminés!

Na verdade, o SS Metidão também estava sendo arrastado na água — não por outro navio, mas por alguma força invisível que o puxava pela quilha. Mu-dou de posição com o Galo dos Mares e seguiu de ré na direção norte, a popa na frente e a proa atrás, carre-gando consigo o brigue, cujas velas se inflaram ao contrário. As crianças só puderam segurar-se nos ar-tefatos e acessórios do navio, desatinadas, tentando adivinhar:

— São as sereias!

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— É uma baleia! — É um sortilégio das fadas! O Homem Esfiapado desceu com agilidade as

escadas e entrou sem cerimônia no camarote particu-lar de Peter, dirigindo-se depressa para a mesa do mapa. Os punhos das mangas sujas de lã deixaram manchas circulares no pergaminho enquanto ele o examinava procurando informações. Então, deram um soco em um trecho sombreado onde se lia “Á-REA PERIGOSA”.

— O Rochedo MagNeto! — disse ele. — Está atraindo o navio!

— É mágica? — perguntou Deleve. — Não, é magnetismo — respondeu Novello.

Dentro em pouco, já conseguiam avistá-lo pela luneta de bronze: o Rochedo MagNeto, um pináculo ferro-so de rocha vermelha que parecia uma ponta de torre de igreja. O casco de aço do naviozinho a vapor cor-ria cada vez mais depressa para ele como se fosse uma mariposa atraída pelo fogo. A corrente entre os dois navios esticou-se de tal modo que não havia meio de soltá-la.

— Ursaria, rápido! Era outra vez a voz do dono do circo, alta,

penetrante, cheia de autoridade. Os ursos saltaram na água. Os índios saíram todos para o convés, choran-do, gritando esganiçados e vestindo apressados os coletes salva-vidas de cortiça. Não havia mais neces-sidade de usar a luneta. O Rochedo MagNeto agi-gantava-se diante deles, com o mar espumando e fervendo ao redor. Os cascos dos navios rasparam em rochas tão duras que todas as cracas foram arran-

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cadas. A Liga de Pan agarrou-se à amurada — exceto Cabelinho, que foi projetado para fora do cesto da gávea, para o mar.

— Lançar a linha de hodômetro! — gritou Peter Pan, e todos olharam para ele sem compreen-der, todos menos Novello, que correu para a popa e lançou na água um cabo cheio de nós para Cabelinho, que ia se afogando na esteira agitada do navio. Cabe-linho agarrou-se a ele e foi rebocado, roçando os de-dos dos pés nas rochas, cortantes como navalhas.

O SS Metidão encalhou fazendo mais barulho que uma banda de instrumentos de metal caindo de um bonde. O brigue, que vinha sendo arrastado atrás, foi apanhado pelo giro das correntezas ao redor do rochedo e sacolejou com tamanha violência que o cabo de reboque, apesar de ser feito de metal duro, rebentou como se fosse uma guirlanda de papel.

— Agora, vamos flutuar livremente! — garan-tiu João. — O Galo dos Mares é de madeira! Só o metal é magnético!

De fato, o Galo dos Mares era de madeira: de que modo então o magnetismo do Rochedo MagNe-to poderia afetá-lo?

Eles não tardaram a descobrir. Os pregos de ferro que prendiam cada nervura

à quilha, cada tábua a cada nervura, cada verga ao mastro foram puxados pela força do magnetismo. Como ferrões de vespa arrancados da pele, todos os pregos e cunhos soltaram-se do madeirame e o ele-gante brigue começou a desintegrar-se em torno de-les.

— Ele está acabado!— exclamou Novello, cain-

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do de joelhos, tomado de medo ou tristeza. — Voem! — gritou Peter. João apoderou-se da cartola de Pirilampo, que

continha sua caspa de poeira de fadas. A Liga de Pan mergulhou as mãos dentro dela. Para que a mágica funcionasse, contudo, eles ainda teriam de pensar pensamentos felizes, o que era um bocado difícil de fazer enquanto os mastros tombavam — um! dois! — e o casco se descascava inteiro tal e qual uma la-ranja.

— Pensem no tesouro! — gritou Peter. E, sabe-se lá como, todos concentraram suas mentes no Monte do Nunca e, um por um, ergueram-se desajeitada-mente no ar.

Peter, é claro, deslocava-se com a facilidade de uma andorinha de verão. Deslizou rente às cristas das ondas até onde Cabelinho se debatia no mar e, esfre-gando um punhado de poeira das fadas no cabelinho molhado de Cabelinho, içou-o para fora da água pela gola de sua camisa do uniforme de rugby. Cabelinho (e o Cachorrinho aninhado em seu bolso) ficaram tão felizes por não estarem mais se afogando que rapi-damente ganharam altura e juntaram-se aos outros no céu, acima do Rochedo MagNeto.

Lá embaixo, o Galo dos Mares foi a pique, dei-xando apenas um rastro de tábuas boiando na água. A figura alta de Novello, equilibrando-se nos destro-ços, saltava de um mastro para uma prancha, de um barril para um balaústre. Finalmente, ele se atirou so-bre um baú de bordo, que subiu à tona balouçando. Com a agitação das ondas que batiam, brancas, e a espuma que vinha do Rochedo MagNeto, o vulto

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vestido de lã logo se encharcou todo — parecia uma meada de algas velhas presas à tampa do baú sacudi-do pelas águas. Sendo um homem adulto (ou um ca-saco de lã muito comprido), Novello não podia, é claro, voar.

Wendy deixou escapar um soluço repentino ao lembrar-se de alguém mais. Pirilampo, preso por ter devorado gulosamente todas as cebolas, afundara junto com o navio!

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Capítulo Onze

O Recife Ao Remorso e o Labirinto das Bruxas

Pirilampo voltou de chofre à superfície como

uma bóia de navio, seu cabelo alaranjado mais bri-lhante que o Rochedo MagNeto, que era cor de ferro vermelho-escuro. A barriguinha dele ainda estava es-tufada de tantas cebolas-brancas e o frio endurecera seus dedos pontudos. Você ou eu teríamos ficado com a pele azulada se caíssemos no mar gelado, mas Pirilampo, depois que Peter o apanhou, estava des-botado, igual a uma meia lavada muitas vezes. O mau gênio, porém, continuava tão quente como antes, e sua poeira mágica secou em cima dele formando uma espécie de cobertura de açúcar de confeiteiro. Saiu voando em rompantes, indo e vindo em arrancadas, fazendo ziguezagues, chiando, até Peter repreendê-lo:

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— Pare de se exibir, elfo, ou vou me zangar com você!

O sol e a lua estavam ambos no céu, com uma porção de estrelas vespertinas e tendo como acom-panhamento uma salada de nuvens. Era imprescindí-vel encontrarem terra firme! Mas para que lado voar? A bússola na Terra do Nunca tem tantas agulhas quanto um porco-espinho assustado.

— Ainda tem o mapa, Capitão? — perguntou João.

Peter em resposta brandiu o rolo de pergami-nho, mas, quando tentou abri-lo no ar, o vento quase o arrancou de suas mãos. De modo que eles sim-plesmente continuaram voando e, à medida que os pensamentos ansiosos tomavam o lugar dos felizes, foram baixando cada vez mais. Salpicos das ondas do mar começaram a molhar seus rostos e remover a poeira de fadas de sua pele.

Quando as coisas iam ficando pretas para a Companhia de Exploradores, eles avistaram terra.

Um promontório comprido e rochoso apon-tava para o mar como um dedo de bruxa, terminando em um aglomerado de rochedos e em um recife ba-tido pela espuma. Havia relva-do-olimpo, com suas flores rosadas, crescendo em todas as fendas, e cor-morões levantaram vôo grasnando, espantados, quando os Exploradores pousaram. Fato estranho, na beira do mar, a areia estava coalhada de restos enfer-rujados de centenas de carrinhos de bebê de todos os tipos. Atracado como um barco a remo, na extremi-dade oposta da ponta de terra, encontrava-se um an-tigo baú de bordo com as iniciais J.G. marcadas na

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tampa. Ah, e cinco ilhotas balouçavam ao sabor das ondas, ancoradas ao largo, mais além.

Uma figura alta estava de pé no recife, a silhu-eta desenhando-se de encontro ao céu. Rodeava-o um halo de fios coleantes que se contorciam ao ven-to: poderia bem ser a Górgona, a Medusa, esperando para transformar alguém em pedra com um olhar. Mas não era.

— Bem-vindo ao Recife do Remorso, senhor — disse a figura.

Peter estava de novo lutando com o mapa sob o vento tempestuoso.

— Segure este mapa esticado para mim, No-vello — disse ele, com toda, a calma, como se sou-besse o tempo todo que seu criado chegaria lá antes dele. E Novello apressou-se em atendê-lo, abrindo o pergaminho de um só golpe da mão.

Foi Novello quem explicou sobre os carrinhos de criança:

— Essas carcaças emboloradas e enferrujadas que vêem à sua frente são tudo o que sobrou de cen-tenas de histórias tristes. Esses são os carrinhos de criança que um dia foram empurrados para cima e para baixo em parques, alamedas e ruas de cidades por babás de meninos. São os carrinhos que elas es-tacionavam à sombra das árvores enquanto tiravam um cochilo; ou deixavam abandonados enquanto da-vam um pulinho no Correio para comprar um selo; ou quando iam ao encontro de seus namorados. Es-ses são os carrinhos de bebê que se soltaram das mãos delas porque o freio não estava puxado e des-ceram ladeira abaixo. Em resumo, são os carrinhos de

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onde os bebês caíram e desde então nunca mais fo-ram encontrados. São os carrinhos que transforma-ram bebês meninos em Meninos Perdidos e os fize-ram iniciar sua longa jornada para a Terra do Nunca.

— Como sabe tudo isso? — perguntou Wendy. O mordomo encolheu os ombros fiapentos.

— Sou um homem viajado, senhorita. Os via-jantes andam por toda parte. E escutam coisas. Boa-tos. Histórias. Posso continuar? Esses são os carri-nhos que as babás reviraram freneticamente quando se deram conta de que os meninos haviam sumido, e jogaram no chão cobertas, brinquedos, chocalhos, sapatinhos de tricô, arquejaram e exclamaram “oh!”, “ai”, “ah, não!”. Esses carrinhos vazios foram tudo o que restou a essas desgraçadas depois que os pais zangados as despediram e mandaram embora, sem uma referência nem uma palavra de perdão. Esses são os carrinhos de criança que as babás reformaram e que se tornaram pequenos barcos, nos quais elas seguiram remando pelo mar, determinadas a procurar no mundo inteiro até encontrarem aqueles bebês. Ao ouvir contar que Meninos Perdidos eram enviados para a Terra do Nunca, elas atravessaram os cinco oceanos em suas embarcações e por fim vieram cho-rar no Recife do Remorso.

No final do relato, uma única pergunta ficou pairando no ar, não formulada. Cinco Meninos Per-didos sentiram uma dolorosa necessidade de fazer essa pergunta mas nenhum teve coragem. Wendy perguntou por eles:

— E algum Menino Perdido foi encontrado por essas babás, senhor Novello?

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— Esperemos que não, senhorita! Tomara que não! Pois imagine a amargura e a raiva que impregna-ram o coração dessas mulheres! Despedidas! Coloca-das porta afora, sem esperança de outro emprego! Praticamente arruinadas! E tudo por quê? Por causa do pequeno erro de perder uma criança! Não, não! Essas senhoras não vieram com a intenção de reaver os meninos que tinham perdido. O quê? Elas culpa-ram OS bebês por todos os seus infortúnios e sofri-mentos.

A água salgada lavou toda a doçura de caráter delas. Ficaram meio loucas de tanto beber água do mar... e estavam... estão... decididas a se vingar.

Os Meninos Perdidos engoliram em seco e empalideceram. Peter fez um gesto despreocupado com as mãos.

— Mas eram gente grande, não eram? Então não podiam entrar na Terra do Nunca, certo?

E todos se sentiram tão aliviados que resolve-ram não levar em conta todos os piratas, índios e donos de circo adultos que sabiam existir na Terra do Nunca.

Galgando com dificuldade o estreito promon-tório, escorregando em algas viscosas e afugentando um par de focas, a Companhia de Exploradores se-guiu para o interior rumo às charnecas roxas e ma-chucadas que iam inchando aos poucos conforme eles se aproximavam. Bem distante, divisavam o vulto minúsculo do Monte do Nunca, objetivo de sua via-gem.

O engenhoso Novello, desde que chegara ao Recife do Remorso montado no baú de bordo, não

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perdera seu tempo. Enquanto esperava a chegada das crianças, tirara as rodas de dois carrinhos de criança e fixara-as no baú, de modo que agora podia puxá-lo, aos solavancos, atrás de si. Recorria ao baú para con-seguir objetos úteis, tais como fósforos, um baralho, chá, tinta de escrever e uma pena, pedaços de bar-bante. Embora as ilhas flutuantes tivessem ficado muito para trás na baía, junto com os animais do Circo

Novello, ele parecia ter um estoque inesgotável dos ovos borrachudos que comia de manhã à noite.

As crianças comiam, como sempre, a comida que a imaginação de Peter fazia surgir (se bem que Novello tivesse providenciado um saleiro de prata, manchado e sem brilho, mas cheio de sal para dar sabor às suas refeições). Surpreendentemente, os pensamentos de Peter pareciam estar sempre volta-dos para peixes e frutos do mar, e assim comiam i-maginários rodovalhos e lagostas, enguias em geléia e casquinha de siri. (Piuí chegou a desenvolver uma irritação de pele imaginária porque era alérgica a ma-riscos.)

O solo macio da suave charneca arroxeada que rangia sob os passos deles tornou-se mais seco con-forme eles prosseguiam. Em vez de musgo e urzes, logo nada mais havia a não ser cactos eriçados cra-vados na poeira seca do chão, onde se entrançavam lianas espinhentas de roseira-brava e sarça, que os faziam tropeçar. Era impossível sentar para descan-sar, que dirá estender-se ao comprido para dormir: seria o mesmo que deitar em cima de uma almofada de alfinetes ou de uma caixa de pregos. As crianças

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revezavam-se para irem sentadas na tampa recurvada do baú.

Presos nos espinhos e pendurados em todos os galhos de roseira-brava, viam-se farrapos de tecido — brim azul, algodão listrado, organdi desbotado ou pedaços de renda branca da bainha de alguma anágua.

Logo os Exploradores descobriram a razão. Quando chegaram ao Labirinto.

Uma imensidão de arenito encrespado, colo-rido com todas as tonalidades de azul e cinzento e de um triste tom de verde-cipreste, fora trabalhada pelo vento ou pela chuva e convertera-se em um labirinto semelhante a um favo de mel, com inúmeros corre-dores e passagens. A céu aberto, estendia-se em espi-rais e curvas sinuosas até onde a vista alcançava, cru-zando-se e entrecruzando-se, de tal maneira que uma pessoa poderia perambular para qualquer lado e en-contrar somente mais um corredor para subir ou mais uma descida em forma de calha por onde deslizar até embaixo. E no meio desses cones, arcadas e canais de pedra listrada como pirulitos de açúcar, uma quanti-dade incontável de mulheres circulava apressada-mente para cima e para baixo, chamando e chaman-do:

— Henrique! — Jorge! — Inácio! — Jacques! Em suas mãos nervosas, seguravam lenços ou

brinquedos pequenos ou pontas de cobertores. Tal-vez, quem sabe, não tivessem sido nem o vento nem a chuva que haviam escavado a rocha macia, mas sim os passos aflitos daquelas mulheres calçadas com bo-tinas de abotoar e sapatos confortáveis, ou o roçar de

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suas saias compridas antiquadas, enquanto percorri-am o Labirinto das...

— Bruxas! Cuidado! — sibilou Peter, e as cri-anças todas recuaram com um pulo.

— Não parecem ser bruxas — observou Piuí com ar de dúvida. — Onde estão seus chapéus pon-tudos?

— Gente grande na Terra do Nunca? O que mais podem ser? — replicou Pan.

— Vossa Senhoria está correto, receio dizer — sussurrou Novello. — Aqui é o Labirinto das Bruxas. Em nenhuma circunstância, permitam que elas os vejam, toquem em vocês ou até lancem seus feitiços em voz alta para que entrem por suas orelhas. Essas são as mulheres de quem lhes falei.

— As babás? — Precisamente. Foi a este lugar que chega-

ram ao término de suas viagens. O fracasso e o mau humor envenenaram seus espíritos e transforma-ram-nas em bruxas. Foi com suas mágicas que con-seguiram penetrar na Terra do Nunca. Mas agora, quando vêem uma criança, qualquer criança, elas a agarram e logo lhe dão um banho; trocam suas meias e alimentam-nas com mingau de semolina; obri-gam-na a decorar a tabuada e ir para a cama quando ainda está dia claro. É provável até que a beijem. — Os meninos fizeram caretas, encolheram os pescoços inclinando as cabeças até os ombros, estremeceram. E, quase como se acabasse de lhe ocorrer, Novello acrescentou. — Depois assam a criança e a devoram.

— Acho que o lugar tinha um nome diferente no mapa — disse Wendy, pensativa. — O Labirinto

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de... alguma outra coisa. Mas Peter (ainda sorrindo, radiante por ser

chamado de “Vossa Senhoria”) desenrolou o mapa para conferir e assegurou-lhe que, sim, sim, era isso mesmo, ali era o Labirinto das Bruxas. (Lembre-se, porém, que ele não sabia ler.)

— Edgar! — Edmundo! — Paulo! — Jaiminho! As bruxas continuavam seus chamados angus-

tiantes. De vez em quando, ouvia-se que farejavam o ar — indiscutivelmente, farejavam — como se qui-sessem achar o rastro de suas presas.

Rastejando, ralando joelhos e pulsos no arenito áspero, os Exploradores avançavam devagar. Em poucos minutos, estavam irremediavelmente perdidos — não sabiam mais de onde tinham vindo nem como sair dali. Algumas das calhas eram becos sem saída. Outras ficavam tão estreitas que nem os ombros mais esguios passariam. Outras faziam tantas voltas e cur-vas que as crianças perdiam totalmente o senso de direção. João desenhou um J na pedra com a ponta de sua espada de peixe-espada e, em uma hora, eles passaram pela mesma marca quatro vezes seguidas. As rodas dos carrinhos adaptadas ao baú de bordo, enferrujadas e sem lubrificação, rangiam sem parar, enquanto o seu conteúdo se deslocava de um lado para outro e trepidava conforme o baú os seguia, sa-colejante. Mas as bruxas faziam tanto barulho...

— Shinji! — Pierre!

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— Ivan! — Ali! ...que não havia possibilidade de escutarem. De

trás e da frente, de cima e de baixo, da direita e da esquerda, vinham os gritos das babás procurando as crianças:

— Percival! — Richard! — Billy! — Rudyard! As pedras também exalavam um cheiro estra-

nho, que trazia consigo a sensação dolorosa das lá-grimas. Foi Deleve quem começou a chorar primeiro, grandes lágrimas que pingavam nas costas de suas mãos enquanto ele rastejava. O Labirinto estava en-charcado de tristeza, e tristeza é tão contagiosa quanto gripe.

— Florizel? Em seu caminho, diretamente à sua frente,

uma das bruxas repetia sua cantilena, a barra da saia esfarrapada, sapatilhas de dança gastas, mas com jóias ainda cintilando em torno do pescoço. Uma pluma de avestruz suja e molhada caía-lhe sobre o rosto e ela a afastava para o lado afim de enxergá-los melhor.

— É você, Florry? É você? Peter tentou rastejar para trás, mas chocou-se

com Cabelinho. A bruxa gritou o nome várias vezes seguidas, tão alto que João tapou os ouvidos com as mãos. Outras bruxas acorreram, atraídas pelo baru-lho:

— Crianças? Há crianças aí? — Crianças!

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Dezenas delas empurravam-se, acotovela-vam-se para espiar, perdiam os sapatos no atropelo sem perceber, deixavam cair brinquedos e chocalhos na pressa. Seus lamentos esganiçados de sinistras cri-aturas sobrenaturais ecoavam de um lado para outro. Estenderam os braços, colocaram as mãos em concha e levantaram os rostos para o céu, dizendo:

— Por favor! Por favor! Que seja ele! Os Exploradores puseram-se de pé num salto

e correram, esquivando-se de uma e de outra, as ca-beças abaixadas, escorregando sentados pelas calhas abaixo e pulando de um corredor para outro por ci-ma das saliências que os dividiam. Puxado por No-vello, o baú de bordo ia quicando, aos trancos e bar-rancos, derrubando bruxas, esbarrando e jogando no chão as xícaras e mamadeiras que elas traziam nas mãos. Aquelas mesmas mãos tentavam agarrar o mordomo, puxando e se embaraçando nas roupas de lã dele como se fossem rasgá-lo ao meio:

— Wilfred? — Matela? — François? — Roald? Cego pelas lágrimas, Deleve deu de cara com

outra — uma mulher de olhos fundos, e tão linda que o sangue dele pareceu virar uma triste canção de blues, e seu coração doeu. Por um momento, ela segurou o rosto dele entre as mãos e os dois se miraram. Havia um Labirinto também nas íris verdes dos olhos dela... Então, Deleve desprendeu-se e correu como se o chão o queimasse.

No bolso do casaco escarlate, a bússola batia

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de encontro à perna de Peter. Ele a tirou do bolso (mesmo a bússola tendo tantas agulhas quanto um porco-espinho assustado) e calculou para onde deve-riam correr. O problema é que havia bruxas demais. Por cima e por baixo, pela direita e pela esquerda, pela frente e por trás, elas fecharam o cerco:

— Klaus! — Johann! — Ai De! — Pedro! Deleve parou de correr. Encostou-se em uma

saliência de pedra rosada, cor de pôr-do-sol, engo-lindo o ar, engolindo o medo. Aí, quando as bruxas voaram para cima dele, as roupas agitando-se como asas de grandes pássaros, uma multidão dando gritos estridentes, ele sacou sua clarineta e começou a tocar.

As notas musicais soluçaram através do Labi-rinto. Era uma canção triste, perturbadora, persisten-te, mas teve o efeito de um tiro de metralha dispara-do de um canhão à queima-roupa. As bruxas pararam de repente em seus caminhos, as mãos sobre os co-rações. Deleve tocou e tocou — a mesma canção vá-rias vezes seguidas. No meio das mulheres, ergueu-se uma voz com sotaque escocês, uma única voz, can-tando a letra:

Não vais mais querer voltar? Não vais mais querer voltar? Mais amado jamais serás. Não vais mais querer vol-tar?

Imagino que você não chore nunca ou nunca tenha tentado tocar uma clarineta chorando, por isso eu lhe digo: nessa hora, seus lábios não se mantêm na posição certa e seu nariz fica pingando o tempo todo.

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Foi um bocado difícil tocar — mais difícil que nunca. Ainda assim, Deleve conseguiu tocar dezesseis ver-sos, enquanto as bruxas meneavam o corpo e a cabe-ça na frente dele como se fossem salgueiros-chorões e as palavras ecoavam ao redor. Tal e qual Horácio defendendo a ponte, ou como Roland em Ronceval-les, Deleve tocou clarineta enquanto seus amigos fu-giam para um lugar seguro. Somente quando os olhos de todas as mulheres estavam fechados em um êxtase de sofrimento e seus companheiros Exploradores tinham escapulido é que ele debandou, e correndo!

A Companhia inteira saiu correndo, o arenito listrado e macio terminou e começou o capim, e ain-da assim eles continuaram correndo. Correram até chegarem às árvores, e as árvores levantaram seus galhos em um gesto de rendição: Parem! Correram até seus pulmões ficarem pendurados dentro deles como morcegos mortos no interior de cavernas. Então, ar-quejantes, arfantes, caindo de joelhos no chão e a-tordoados pelo barulho ensurdecedor das batidas a-celeradas de seus corações, esperaram que Deleve os alcançasse e receberam-no com entusiasmo:

— Você foi maravilhoso! — Tão esperto! — Sensacional! — É difícil aprender a tocar? A Companhia de Exploradores reuniu-se em

torno de Deleve, elogiando-o e cumprimentando-o. (Pirilampo ficou com tanto ciúme que mordeu o Ca-chorrinho.)

— Foi extraordinário, de fato — concordou Novello, apanhando o que era necessário para o chá

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da tarde dentro do baú de bordo. — Devo felicitá-lo, jovem senhor, pelo seu talento musical.

Deleve corou intensamente. — Elas pareciam mais tristes que zangadas —

disse ele (pois era sensível às emoções das outras pessoas) —, aquelas senhoras: tem certeza de que queriam mesmo nos devorar?

— Algumas podem ser vegetarianas — disse Novello mais que depressa, e depois o levou para um lado para apertar-lhe a mão. (O que fez a mão de Deleve ficar cheia de fiapos de lã amassada.) — Foi somente graças a Vossa Senhoria que escapamos! Quanta habilidade, quanta arte! É um verdadeiro ma-estro! Imagino que seja isso o que deseja, não é? Quando crescer? Ser um músico?

As orelhas de Deleve ainda estavam vermelhas de tantos elogios.

— Eu? — disse ele, meio incrédulo, procu-rando enxergar melhor o rosto de Novello para ver se ele estava brincando. Mas os olhos castanho-claros fixos nos dele tinham uma expressão sincera e inten-sa, enquanto a manga do casaco se desfiava sem pa-rar. Meadas inteiras de lã enchiam as mãos de Deleve.

E, súbito, ele viu uma cena em sua mente, como reflexos em uma Sala de Espelhos: ele próprio como homem adulto e milhares de canções guarda-das dentro de sua cabeça, como pombos dentro da cartola de um mágico; ele próprio, tocando clarineta sem errar uma nota sequer; diante de si, uma porção de rostos sorrindo de prazer enquanto, de lábios franzidos e olhos fechados, ele soprava sua música para o mundo como bolhas de sabão.

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— Oh, sim! — exclamou Deleve. — Eu adora-ria ser músico quando crescer!

— Então, quem vai poder evitar? — disse o Homem Esfiapado, e seus olhos cintilaram de prazer antes de se afastar.

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Capítulo Doze Outra partilha

Ele nunca dormia. Wendy (que à noite ajeitava

as cobertas de todos os outros e de manhã escuta-va-os contar o que haviam sonhado) não podia deixar de reparar: o Homem Esfiapado jamais dormia real-mente, e passava a noite inteira remendando sua roupa fiapenta. Era tão competente com uma agulha e um fio de lã que o fazia com uma só mão. En-quanto trabalhava, seus olhos esquadrinhavam a es-curidão e sua cabeça se inclinava para um lado e para outro à escuta de... de quê? Do perigo? Devia estar de sentinela para protegê-los de algum perigo, mas Wendy preferia não perguntar que perigo seria aque-

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le. Os Exploradores presenciaram um

sem-número de maravilhas nos dias que se seguiram. Viram colinas que subiam e desciam, como se respi-rassem. Viram rios que fluíam morro acima, flores que abriam suas co-rolas e cantavam, árvores que capturavam pássaros no céu e os comiam, pedregu-lhos que boiavam como se fossem rolhas de cortiça. João pisou em uma miragem e afundou nela até a cintura, enquanto Piuí conseguiu atravessar um rio usando apenas os peixes como apoio para os pés. Uma vez, chegou até a chover castanhas — e não havia nenhum castanheiro à vista.

— O que aconteceu com o verão? — pergun-tou Deleve, lembrando-se vagamente de verões mais ensolarados.

Mas Pan limitou-se a dar de ombros como se não tivesse notado.

— Acho que ele deve ter se perdido por aí — respondeu.

Para passar o tempo, discutiam o que encon-trariam quando, finalmente, alcançassem o Monte do Nunca e a arca do tesouro escondida lá. Na opinião dos Gêmeos, seriam dobrões de ouro e moedas es-panholas de prata. Na Terra do Nunca, porém, os arco-íris fincam os dois pés no chão, de modo que, quando o tempo está bom, não há nada mais fácil do que ir até o fim de algum arco-íris e cavar ali para pe-gar seu pote de ouro, se é isso o que você quer mes-mo. Conseqüentemente, moedas de ouro não são nada de tão maravilhoso assim (a não ser aquelas que têm chocolate dentro).

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Piuí achava que haveria coroas e tiaras, colares de diamantes e relógios de bolso feitos de ouro.

— São o tipo de coisa que Gancho deve ter roubado de pobres princesas e sultanas indefesas que caíram em suas mãos implacáveis! — disse ela.

Pirilampo pensou em sorvetes de limão. O Cachorrinho esperava que houvesse costeletas de carneiro. Wendy pensou em peças inteiras de seda indiana, livros com gravuras pintadas à mão e valio-sos ovos de Fabergé11 vindos da Rússia.

— Fabergés não botam ovos — disse Peter com um risinho de desdém, embora não revelasse o que ele esperava encontrar dentro da arca. Novello, passando o pente devagar pelo cabelo de Peter, enro-lando seus cachos lustrosos em torno de um lápis, não disse nada.

— O que o senhor desejaria encontrar, senhor Novello? — perguntou Wendy.

O pente parou no alto. As sobrancelhas fran-ziram-se de tal forma que uma terrível dor de cabeça parecia estar se desencadeando por trás dos olhos do criado.

— Nada posso desejar, senhorita — respon-deu Novello. — Assim como não posso sonhar. Tanto para um quanto para o outro, o homem preci-sa dormir. E eu não durmo, como sabe.

— ...depende do que Gancho apreciava mais 11 Nome que se dá a enfeites em forma de ovo, feitos de vidro ou de algum material precioso. Receberam esse nome porque foram criados para a família real russa por um joalheiro do Czar (imperador russo), chamado Fabergé. Peter Pan pensa que Fabergé é o nome de um animal.

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que tudo no mundo — disse Deleve, que nesse meio tempo vinha seguindo uma linha de raciocínio pró-pria.

— Porque um tesouro é isso, não é? A coisa que, no mundo inteiro, você mais quer ter e guardar para si?

Ao que Pirilampo comentou, com sua vozinha esganiçada:

— Os olhos arrancados dos seus inimigos! — o que fez todos jogarem coisas nele. — Que foi? — protes-tou ele.

— Imagino que os piratas comam os olhos dos inimigos em vez de sorvete de limão! Aliás, o que vamos ter para o jan-tar?

Novello apanhou a toalha de mesa e esten-deu-a no chão, com o saleiro no meio. Todos se sen-taram ao redor, de pernas cruzadas, e Peter começou a imaginar algo para comerem.

— O que temos hoje no cardápio, Capitão? — perguntou João, batendo de leve com a mão na toa-lha amassada de linho branco.

A testa de Peter franziu-se e suas sobrancelhas viraram para cima, iguais a pequeninas asas de anjo.

— Esqueci — disse ele. — Não estou com fome. Podem comer a minha parte se quiserem.

Todos estenderam as mãos para apanhar a comida imaginária. Pairava no ar um cheiro leve de couve-flor e alfena. Cabelinho achou que seus dedos tinham roçado em um repolho ou em uma colher, mas ninguém conseguiu de fato pegar sua porção de comida. Deleve, que estava tendo dificuldades para acomodar suas pernas compridas sob o corpo, fez

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um movimento desajeitado com a mão e derrubou o saleiro.

— Por Kraken e Krakatoa! — berrou Peter Pan, pondo-se de pé em um salto. — Encham de pedras as botas desse sujeito e joguem-no aos tubarões!

A Liga olhou para ele, atônita. Peter lan-çou-lhes um olhar fulminante de volta.

— Vocês não viram? O que houve, estão todos cegos? O idiota desastrado derramou o sal! Será que está querendo atrair má sorte para todos nós? Por todas as hastes do meu enfrechate, estou com vontade de marcá-lo a ferro ou abando-ná-lo em uma ilha deserta agora mesmo!

Todos os olhos se voltaram para Deleve, que enrubesceu, colocou o saleiro de pé outra vez e pediu desculpas.

— Não sabia que você era supersticioso, Peter — disse Wendy, preocupada com as veias arroxeadas salientes que latejavam no pequeno pescoço branco de Peter.

— Certa vez, vi cinco gatos pretos... — co-meçou Piuí, mas não foi adiante, incapaz de lembrar se gatos pretos traziam boa ou má sorte.

— Um para tristeza, dois para alegria... — recitou um dos Gêmeos.

— Não, isso tem a ver com corvos — corrigiu o irmão. — Ou com bebês.

O silêncio tomou conta da refeição, que ter-minou logo, porque as refeições não duram muito quando não há o que comer. Quando se puseram a caminho de novo, Deleve foi despachado para o fim da fila. Ninguém queria comentar que não tinham jantado porque o Líder podia perder a paciência outra

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vez. Novello sacudiu o sal da toalha, dobrou-a e guardou-a de volta no baú de bordo, primeiro expul-sando Pirilampo, que adormecera dentro da gaveta de meias. O Cachorrinho perambulava à procura de ali-mento mais substancial que o nada da refeição ima-ginária.

Ainda trêmulo, como um gato no qual alguém pisou, Deleve seguia bem atrás do resto. Alegrou-se quando Pirilampo veio pousar em seu ombro. Piri-lampo não se importava que Deleve tivesse ficado desengonçado de uma hora para outra; era apegado ao menino que o chamara de “mentiroso de marca maior” e que produzia as notas musicais de Dó a Si.

— Quando você ficar maior vai saber tocar mais notas além dessas? — perguntou Pirilampo.

— Não — respondeu Deleve. — Você vai ter de se contentar só com essas.

Não havia nada de que Pirilampo gostasse mais que ir atrás das notas que saíam da clarineta de Deleve — para comê-las como se fossem pedaços de chocolate, lá em cima, no ar. As melhores eram as breves — gordas e redondas, cremosas por dentro. As fusas eram efervescentes, mas ele precisava de muitas para encher a boca. As sustenidas eram ácidas como limões e as bemóis desciam pela garganta co-mo fatias de pepino cortadas bem fininhas. Deleve ria ao ver o elfo mordê-las e fazê-las estourar na boca: distraía-o do choque de ter ouvido Peter gritar com ele.

— Mais música! Mais música! — pedia Pirilampo. — Qual é a palavrinha? — dizia Deleve, que

sabia da importância de se ter boas maneiras.

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— Sei lá — respondia Pirilampo, que não sabia mesmo.

Quanto mais alta a nota, mais alto Pirilampo tinha de voar para estourá-la.

— O que você está vendo daí de cima? — perguntou Deleve, quando o elfo subiu atrás de um Sol altíssimo.

— Oooh... Longe, longe! O Monte Etna e o Rio Pó! — gritou Pirilampo. — Mais alto! Mais alto!

— Mentiroso! — gritou Deleve, e tocou uma escala mais alta. — Pirilampo voou mais alto... — E agora, o que está vendo?

— Oooh... Além do horizonte! Constantinopla e Timbuktu! Mais alto! Mais alto!

— Mentiroso! — disse Deleve, sorrindo, e, depois de tocar a nota mais alta na clarineta, deixou-a de lado e começou a assobiar. — E agora, está vendo o quê?

— Oooh... Estou vendo o passado! Os astecas e os vi-quingues! — gritou Pirilampo, com a boca cheia de semínimas. — Mais alto! Mais alto!

— Mentiroso! — disse Deleve dando uma ri-sada, e assobiou outra vez, em um tom ainda mais agudo.

— Pare com esse assobio, seu lambaz! Súbito, viu Peter Pan postado diante dele, as

faces rubras, os olhos muito abertos. — Está querendo atrair a Sorte Malfazeja? O cabelo da nuca de Deleve arrepiou-se de

terror. — Desculpe, Capitão — sussurrou ele. — Não sabe que traz má sorte assobiar a bordo!?

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— Mas não estamos... — murmurou Deleve, suas palavras fugindo-lhe perante a ira de Peter.

— Oooh! Vejo uns tocaieiros, vejo uns emboscados! — flauteou Pirilampo muito acima das cabeças deles.

— Matantes no matagal! — Mas ninguém deu importância para ele, claro, porque estava sempre mentindo.

— Fadas e elfos morrem quando as pessoas não ligam para eles!

— queixou-se. Peter plantou as duas mãos abertas no peito de

Deleve e deu-lhe um empurrão, fazendo-o cair de costas.

— Ande mais atrás ainda, ouviu? Fique longe com a sua má sorte!

Os outros Exploradores entreolharam-se. A boca de Piuí tremia e seus dedos, sem que ela se des-se conta, acariciavam o lábio superior. Novello apa-rentemente não escutara o tumulto e prosseguia, a cabeça abaixada, entrando em um bosque com o baú a reboque. Os outros seguiram-no em fila de um, porque a trilha era estreita. Wendy caminhava atrás de Peter, observando o vaivém das abas do casaco escarlate e como o cabelo comprido e encaracolado dele balançava lindamente em cima da gola.

— Você está meio diferente mesmo, Peter — comentou ela. — Para ser franca, quase não o reco-nheci ainda há pouco.

— E daí? — disse Peter. — Essa aventura está tão aborrecida! Não tivemos uma única batalha desde que desembarcamos!

Aí ele tossiu e enxugou a testa no lenço em-

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prestado de Wendy, mas nem se virou para olhar para ela, nem uma vez ao menos.

Os verdes bosques frondosos deram lugar a florestas de pinheiros sem vida. Depois do pôr-do-sol, quando se sentaram para jantar, Peter anunciou que não haveria comida para Deleve por-que ele tinha assobiado, e assobiar atraía má sorte (o que fez Wendy prontamente resolver que daria todo o seu jantar para Deleve). O resto da expedição es-perava com a boca aguando, e uns queriam que hou-vesse bolo de limão, outros queriam salsichas...

Mas a verdade é que não houve comida para ninguém. Nada apareceu em cima da toalha branca.

Várias vezes seguidas, Peter tentou imaginar a comida. Quando o Apfelstrudel não veio, ele tentou imaginar frutas e legumes simples. Mas apesar de to-dos os membros da Liga tatearem em torno e além de seus pratos, batendo ansiosos com as mãos na toalha, não sentiram laranjas invisíveis, nem aipo, nem ce-nouras, nem mesmo couve.

— Os passarinhos devem ter comido tudo dentro de minha cabeça — disse Peter, alarmado. — Ou fadas gulosas. Ou então isso é aquela má sorte que Deleve atraiu para nós derramando o sal e asso-biando.

Quem quer que fosse o culpado, o fato é que o dom mágico de Peter desaparecera, assim como um livro roubado de uma biblioteca, e a Liga foi dormir com fome — tanta fome que ninguém conseguia dormir. A lua parecia um queijo holandês redondo e as estrelas eram farelos de pão. O zumbido dos inse-tos soava igual a uma panela de sopa fervendo, o ba-

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rulhinho da chuva lembrava o dos cascos do cavalo do leiteiro. Os estômagos deles roncavam. Estavam tão famintos que chegaram a pensar com vontade nos ovos borrachudos de Novello e cogitar se pode-riam convencer o criado a partilhá-los com eles...

— Ainda há, é claro, bolachas de navio no baú de bordo — disse sua voz profunda a aveludada de dentro da escuridão.

Em segundos, estavam todos em torno do baú de bordo fazendo grande alarido, procurando os bis-coitos à luz dos vaga-lumes e tentando se lembrar como dividir trinta e três bolachas entre oito bocas esfaimadas.

— Quando as encontrarmos, temos de fazer com que durem! — aconselhou Wendy, muito sensa-ta. — Ninguém pode comer sua cota toda de uma vez.

Reviraram tudo, livros e botas impermeáveis, um chapéu sudoeste (aquele chapéu com a aba mais comprida atrás, que os marinheiros usam durante temporais e ventanias fortes), um colete salva-vidas, tinteiros e penas, cartas náuticas e bússolas. Entre-tanto, só encontraram no fundo as embalagens vazias dos três pacotes de bolachas e um pouco de pó de cupim.

— P-I-R-I-L-A-M-P-O! O elfo tinha comido todas as bolachas, até a

última. A fome tornou-se uma ameaça tão grande

quanto o ataque de uma matilha de lobos, pois o dom de Peter se fora, assim como todos os suprimentos deles. Quando Pirilampo esgueirou-se para dentro do

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baú de bordo e serviu-se dos últimos alimentos, cau-sou tanto mal quanto se tivesse envenenado o chá ou queimado as roupas de frio de todos. Olhavam para a paisagem que os rodeava e agora a achavam hostil, a natureza não mais lhes abria os braços convidando-os a partilhar suas maravilhas. Não passava de uma des-pensa, vasta, ameaçadora e VAZIA.

Sabe qual é o pior defeito das fadas e elfos? Eles nunca dizem “desculpe”. As mesmas boquinhas que engolem tão ligeiro notas musicais, biscoitos, botões, castanhas e cebolas simplesmente não con-seguem enfiar os dentes nas palavras “por favor” e “desculpe”. Assim, quando Peter mandou a gulosa cri-aturinha comparecer à sua presença e perguntou o que Pirilampo tinha a dizer em defesa própria, o pe-quenino esganado apenas encolheu os ombros e dis-se:

— Eu estava com fome! — como se isso expli-casse tudo.

Peter sacou a espada. — Oh, Peter, não! E desenhou uma janela no ar — uma janela

completa com vidraças, peitoril e tranca. Então, ele a abriu e enxotou Pirilampo como um mosquito que tivesse entrado em casa no verão.

— Estou botando você para fora, seu pesti-nha, por ter se apropriado de mais que lhe cabia em uma partilha justa!

A janela se fechou: todos ouviram o estalido do trinco. Do outro lado, Pirilampo gritou:

— Fadas e elfos morrem quando não se liga para eles, sabiam?

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Mas todos foram proibidos de responder. A fome roncava dentro de oito pequenos estômagos. Enrolaram-se em seus casacos feitos de cobertor de índio e dormiram, na esperança de sonhar com co-mida.

De manhã, ao acordarem, encontraram a toa-lha de mesa estendida em cima de uma camada de agulhas de pinheiro e Peter sentado de pernas cruza-das ao lado. Tirara seu casaco vermelho para usar como almofada. À sua frente, estavam dispostos oito pratos pelos quais ele dividia bagas silvestres — a-moras, framboesas e outras semelhantes — em por-ções iguais.

— Uma para você. Uma para ele. Uma para e-la. Duas para os Gêmeos. Uma para... — Ao ver que o observavam, ergueu um punhado de frutinhas ver-melhas, fazendo-lhes uma saudação. — Partilha de comida! — disse, dando uma risada.

— Onde você...? — Wendy começou a per-guntar, perplexa.

— Voei por aí ao luar! Segui as corujas e a-companhei de perto os morcegos. Onde a abelha sur-ripia, também eu surripiei. Ah, a esperteza de Pan!

Ainda havia um pouco de luar em seu rosto; uma palidez prateada, enluarada.

— Creio que se pode dizer que Sua Excelência o Menino Maravilhoso salvou o dia — declarou No-vello, curvando-se reverentemente e ajudando Peter a vestir outra vez o casaco escarlate.

Encantados, os Gêmeos começaram a bater palmas e o resto dos Darlings juntou-se a eles.

As frutinhas eram escarlates e duras como pe-

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dras. Uma podia ter gosto de cereja e a seguinte, de tomate ou de presunto defumado. Novello salpi-cou-as generosamente com sal. Para amaciar as se-mentes, segundo ele. Peter Pan mal se lembrou de comer sua porção, estava ocupado demais saborean-do as palavras “Sua Excelência o Menino Maravilho-so”.

Mais tarde, quando passavam por um denso e sombrio bosque de pinheiros, o Menino Maravilhoso apontou para o lugar onde colhera as frutinhas, junto aos galhos mais altos: os Gêmeos correram até lá pa-ra pular e tentar colher mais, mas eram pequenos demais para alcançá-los. Wendy não conseguiu, nem Piuí. Nem mesmo Cabelinho, para falar a verdade. Enquanto Peter erguia-se do chão sem o menor es-forço a fim de colher mais algumas para a viagem, os outros cerravam os punhos, dobravam os joelhos e tentavam a todo custo evocar pensamentos felizes. Um chuvisco frio e a falta de poeira de fadas dificul-taram tudo. Deleve, ansioso para ser útil e sair da lista negra de Peter, veio depressa da retaguarda, ficou nas pontas dos pés, espichou o corpo o máximo possível e colheu três punhados de frutas escarlates.

— Apaguem o nome desse menino e o abandonem à deriva!

Pernas afastadas, os pés apoiados em um galho alto, uma das mãos na espada, Peter Pan apontava um dedo condenatório para Deleve, pronunciando as palavras que todo Menino Perdido teme ouvir.

— Que ele seja banido como traidor e vira-casaca! Expulsem-no para a Terra de Lugar Nenhum! Que ninguém jamais fale com ele outra vez!

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— Oh, Peter! — exclamou Wendy, estenden-do a mão para o deter, mas não era possível tocar em Pan, empoleirado no galho como uma águia terrível visando sua presa. Ela teve de inclinar a cabeça para trás e a chuva caiu em seus olhos. — Oh, Peter! O que foi que ele fez de mal? Só apanhou umas...

Pan desceu voando, rápido como uma ave de rapina, aterrorizante, um verdadeiro gavião. Arrancou a espada de peixe-espada do cinto de Deleve e par-tiu-a ao meio em cima do próprio joelho.

— Não está vendo! Ele quebrou o juramento! Esse aí, esse inimigo grande e comprido, dissimulado e traiçoeiro!

E voltou a ficar cara a cara com Deleve como antes, só que agora seu nariz chegava apenas à altura do primeiro botão da camisa de Deleve.

Talvez fosse algum feitiço daquela bruxa, que segurara o rosto de Deleve entre suas mãos. Talvez tenha sido por causa do estratagema que ele usou pa-ra entrar na Terra do Nunca (mergulhando do pé de sua cama). Talvez a culpa fosse do Tempo, que ron-dou pela Terra do Nunca transformando o verde das folhagens de verão em vermelho e laranja, e que fazia o sino do navio bater. Ou talvez ele fosse mesmo um traidor. Qualquer que fosse a causa, Deleve

Darling estava crescendo — era inegável. A cabe-ça e os ombros já ultrapassavam a cabeça de Peter e ele alcançara as frutinhas que ninguém conseguia al-cançar do chão.

Peter puxou a espada. — Oh, por favor, Capitão, não! E, com a ponta da lâmina da espada, desenhou

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no ar uma enorme porta com grade levadiça, com-pleta com a corda, a roda para suspendê-la e os temí-veis ferros pontiagudos na extremidade inferior. En-tão, Peter levantou a pesada grade de ferro e, apon-tando a espada para ele, fez Deleve ir recuando e passar pela porta de costas, depois baixou a grade outra vez, isolando-o.

— Vocês todos juraram não crescer — disse Peter, afrontando qualquer um que pretendesse obje-tar. — Essa é a única Regra aqui. E Deleve a des-cumpriu.

Quem poderia discutir? Mais uma vez, os Ex-ploradores seguiram um atrás do outro, em fila indi-ana, e recomeçaram sua longa caminhada rumo ao Monte do Nunca.

Espiando por cima do ombro para onde De-leve ficara, imóvel na chuva, Wendy notou que a ca-misa dele agora mal lhe chegava aos joelhos e que a clarineta em sua mão parecia menor que antes.

A distância ajudava. Quanto mais se afastavam, menor ele ficava, aquela figura patética no caminho. Quase dava para confundi-lo com um menino pe-queno perdido na chuva.

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Capítulo Treze De que lado?

Uma canção envolvente, enternecedora, vinha

flutuando até eles trazida pela brisa. A primeira coisa que ouviam toda manhã e a última, toda noite, era o som da clarineta de Deleve, que lhes chegava de seu exílio. Ninguém esperara que isso fosse acontecer. Compreendiam que Deleve agira mal por ter crescido e queriam tirá-lo de suas cabeças, como Peter lhes determinara. Mas é difícil esquecer alguém quando essa pessoa ainda pode ser ouvida.

O percurso ia se tornando difícil. As florestas de pinheiros tinham ficado para trás, agora só havia troncos — uma paisagem de galhos nus, tão sem vida e sem folhas quanto os mastros de um navio enca-lhado em um banco de areia. O autor do mapa cha-

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mara esse lugar de Deserto da Bocasseca, e errara redondamente. Pois não era o deserto que tinha a boca seca, mas qualquer um que viajasse por ele. Não ha-via nenhum lago nem rio onde beber água e, com o sal de seus jantares, a Companhia de Exploradores estava bastante sedenta. Peter saíra na frente para fa-zer o reconhecimento do terreno em busca de algum regato ou riacho. Outra vez, a música de Deleve veio pelo vento até eles.

— O que vai acontecer com ele? — perguntou Wendy.

Ela estava apenas pensando em voz alta, mas Novello, que limpava as botas de Pan, levantou a ca-beça e respondeu.

— Certamente vai se tornar um dos Desen-gunços, senhorita, e viver sem regras nem educação, como um rebelde, e comer vingança fria ao jantar.

— Eca! — disse um dos Gêmeos. — Isso é igual a pudim de arroz?

Novello cuspiu no couro, à falta de graxa de sapatos, e pôs-se a dar brilho nas botas usando uma das pontas de seu casaco disforme.

— Não exatamente, senhor Darling. Nunca ouviu o ditado: A vingança é um prato que se come frio?...

Claro que há também a possibilidade de as Bruxas o apanharem primeiro.

— Quem são os Desengunços? — indagou João, receando por um momento que Deleve pudesse se divertir mais com eles do que com os Explorado-res.

— Os Desengunços? — Novello parecia sur-preso com a ignorância deles. — Achei que Sua Al-

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teza Suprema já lhes contara sobre eles há muito tempo. (Como Peter teria adorado ser chamado de “Sua Alteza Suprema” se estivesse presente.) — Os Desengunços. Os Meninos Compridos. Os Meninos Perdidos Compridos. São os que Peter Pan baniu por terem quebrado a Regra. Por terem crescido. Ele os mandou embora e agora eles vagueiam por lugares agrestes, vivendo de banditismo e de arruaças. Cruéis até a alma.

— Ninguém é inteiramente mau — disse Wendy depressa, sabendo que Deleve nunca seria assim.

Na voz do criado não havia nenhum traço de agressividade. Falava com a suavidade e a mansidão de um carneirinho.

— Por que lhes restaria alguma doçura ainda, senhorita? Pense bem. Menosprezados e abandona-dos por suas mães, eles são despachados para a Terra do Nunca com o coração partido. Mas — oh, bendi-to alívio! — são acolhidos no aconchego da casa subterrânea, passam a fazer parte de um mundo onde têm amigos e divertimentos. Não estão mais sozi-nhos! A vida é perfeita! Então, um dia, seus pulsos se alargam e arrebentam os punhos das roupas; suas calças ficam curtas demais. E, por causa desse peca-do, perdem seu lugar no Paraíso. São banidos — ex-pulsos porta afora como uma garrafa de leite vazia — desprezados e rejeitados — e dessa vez por seu melhor amigo.

Os membros da Liga encolheram-se, assusta-dos, prendendo bruscamente a respiração. Dito as-sim, aquilo tudo parecia tão... desumano.

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— Não podem ir para casa porque são adultos, e adultos (como sabem) não podem voar. Portanto, estão presos na Terra do Nunca, mas sem nenhuma das alegrias e benefícios que deveriam ter por estarem aqui. Seus corações apodrecem, como maçãs deixadas tempo demais nas árvores; o Ódio e o Rancor pene-tram-nos profundamente como as lagartas nas frutas. Pense bem. O amor se aprende no colo das nossas mães — disse Novello, com voz ronronante —, e a traição aprende-se quando elas se cansam de nós e suas saias farfalham a distância enquanto se afastam. Se, além disso, os amigos também nos dão as costas, então! Por que não o banditismo? Por que não sair por aí cortando gargantas? Por que não seguir uma vida de crimes? O desespero mata o coração de um menino. — Levantou as botas que estava polindo, um braço dentro de cada pé, para admirar o couro brilhante. — Não. Já domestiquei ursos e já domes-tiquei leões, senhorita. Utilizando uma combinação de amor e medo, domestiquei toda espécie de animal. Mas não há como domesticar os Desengunços. Nada lhes resta para temer e, sabiamente, aprenderam a nunca mais amar.

Com as botas polidas pousadas no chão no meio deles, parecia que Pan estava ali, só que invisí-vel. O dono do circo inclinou-se profundamente, em uma saudação extravagante às botas vazias.

— Enfim! O senhor Deleve quebrou a Regra de Ouro e o senhor Deleve pagou o preço por isso. Que opção tinha o Menino Maravilhoso? Tal é a Lei de Pan.

O som da clarineta de Deleve adejou por cima

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de suas cabeças como uma andorinha, e todos menos Novello abaixaram as cabeças, para evitar que se en-redasse em seus cabelos.

Daquele mesmo céu, Peter voltou, cada um de seus pés deslizando para dentro de sua bota brilhante como uma faca na bainha. Trazia notícias de uma cachoeira adiante e a Companhia de Exploradores, morta de sede, levantou-se de um pulo só e seguiu às pressas para lá.

A cachoeira se bastava: nenhum rio fluía para ela nem a partir dela — consistia unicamente em uma queda d’água revestindo uma parede de rocha tão alta quanto a Árvore do Nunca e lisa como vidro. As cri-anças aproximaram-se o mais que se atreveram, com a boca bem aberta, deixando o borrifo gelado des-cer-lhes pela garganta. Delicioso.

Branca e leve como fumaça, a névoa os envol-via, prateando-lhes os cabelos com suas gotículas. Quando o sol passou através da água e brilhou na névoa em turbilhão, surgiram também os arco-íris. E quando, bem acima de suas cabeças, formou-se uma nuvem palpitante e cintilante de cores, eles deixaram escapar exclamações deslumbradas com a Beleza perfeita da cena.

Não que a Beleza ocupe um lugar de destaque na lista de desejos de uma criança. Ela não gastaria seu dinheirinho para comprá-la. Não rasparia o fundo do prato se ela fosse servida ao jantar. Na realidade, na maior parte do tempo, a Beleza não é mencionada nem sequer lembrada momentaneamente pelas cri-anças. Mas aquela visão em especial fascinou os Ex-ploradores com um raro encantamento, e eles ficaram

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contemplando embevecidos o caleidoscópio de lilás, azul, malva e roxo formado pelos arco-íris. O que foi mesmo que aquele homem escritor disse? Às vezes, a Beleza transborda, e então os espíritos viajam12.

Um por um, os diferentes salpicos de cores separaram-se e desceram flutuando, como pétalas de rosas no fim do verão. Roçaram os rostos levantados das crianças; pousaram em seus ombros. Mais e mais caíram: uma neve levíssima de flocos de cores. Como a própria neve, ela os hipnotizou — um estonteante redemoinho de boniteza caindo sobre eles. Em vez da névoa da cachoeira, sentiam apenas o toque suave de milhares e milhares de fragmentos aveludados de lindeza. Acumularam-se em seus cabelos, encheram seus bolsos e suas orelhas; puxaram suas roupas. Pu-xaram?

— Fadas! — gritou Piuí deliciada. — Milhares de fadas!

E, de repente, a neve transformou-se em tem-pestade. O prazer virou desconforto e, igualmente depressa, o desconforto virou medo. A nevasca de minúsculos corpos não dava mostras de querer ces-sar. Logo, as crianças viram seus pés, seus joelhos cobertos de montes de fadas, e não conseguiam dar mais um passo. Suas mãos, cobertas com grossas crostas de magia das fadas, pesavam tanto que não podiam levantá-las. As tranças amarelas de Piuí pare-ciam espigas de milho infestadas de gafanhotos. O peso prendia as crianças no chão, empurrava-as para 12 Trecho de Coragem, texto comovente do discurso que J. M. Barrie escreveu e leu ao tomar posse do cargo de reitor da Universidade de Edimburgo, em 1922. (Nota da Edilora.)

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baixo, comprimia-as. As que ainda se mantinham de pé lutavam para se manter eretas, pois quem perdia o equilíbrio era instantaneamente esmagado — enter-rado — sob uma tonelada de fadas. Um a um, porém, todos caíram, e foram aos poucos sufocados por um tapete — um colchão — um monte de feno de fadi-nhas ardilosas. Imobilizados no solo, só escutavam os estalidos de milhões de diminutas asinhas, o sibilar e zumbir de milhões de vozinhas perversas:

De que lado? De que lado? De que lado você está? Do Azul ou do Vermelho? Diga logo, seu fedelho, Do Azul ou do Vermelho?

— Foi aquele pestinha comedor de cebolas que mandou vocês virem nos atacar? — disse Peter Pan com grunhidos.

Mas dava para notar que não se tratava de ne-nhuma brincadeira de mau gosto nem de uma tra-vessura maldosa. Os Exploradores tinham ido parar no meio de uma guerra já em andamento. As Fadas começaram a beliscar e chutar todo mundo. Os Gê-meos (lembrando o apetite de Pirilampo) pensaram que estavam sendo devorados e desataram a chorar. E as vozinhas juntas vibravam no meio deles, como um coral de abelhas, repetindo:

Mostre a cor da sua bandeira. Ou é Azul, ou Verme-lha, Cor do céu ou cor de telha, Senão, é morte certeira.

Pelo jeito, o mundo das fadas dividira-se em dois e desencadeara-se uma guerra feroz entre dois grandes exércitos — o Vermelho e o Azul. Wendy espremeu os miolos para tentar descobrir a razão da briga, qual seria o significado das cores. Lembrou-se que as fadas meninas eram tradicionalmente brancas;

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os meninos — ou elfos — costumavam ser lilases; e aqueles que eram bobocas demais para se decidir eram azuis. Mas aquela não podia ser uma guerra de sexos: havia fadas e elfos no enxame de atacantes. E que situação tão injusta: ter de escolher um lado sem saber o que cada um representava!

Diga se está frio ou quente, Se é contra ou a favor, e, urgente, Se é Azul ou se é Vermelho. Ou verá a Morte no espelho. Seus captores recitavam monotonamente os

versos, sem qualquer animação. Deviam ter repetido a cantilena tantas vezes que nem percebiam mais o que diziam. Mesmo assim, as palavras eram arrepian-tes.

— Não estamos de lado nenhum! — resmun-gou Cabelinho, quase sem conseguir respirar. — Somos iguais aos suíços!

— Suíços? — arquejou João, que era muito patriota. — Nós somos ingleses! Se o pé de Cabeli-nho estivesse solto, talvez ele tivesse chutado João. De qualquer maneira, as fadas não davam a mínima para a neutralidade.

Diga se é amigo ou inimigo Ou vai ser grande o castigo. Está na hora de escolher A cor. E viver ou morrer. Wendy tentou dizer às fadas: — Nossa bandeira é a do giras-

sol-e-dois-coelhos! — Ela queria explicar: — Somos Exploradores! Não estamos em guerra com ninguém! — Mas havia fadas em sua boca e um batalhão de

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fadas fazendo rombos em suas costelas. Além disso, as fadas aparentemente só aceitariam como resposta “Vermelho” ou “Azul”.

E se as crianças tentassem adivinhar e adivi-nhassem errado, seria a última palavra que pronunci-ariam na vida.

De que cor, e de que lado? Do Azul ou do Encarnado? Mostre a bandeira, safado! Se não, você está CONDENADO. — Como podemos mostrar a bandeira com

vocês em cima de nós! — enfureceu-se Peter. É pos-sível que o enxame tenha abrandado a pressão sobre ele, ou talvez o Menino-Primeiro-e-Único estivesse tão furiosamente determinado que abriu caminho à força até a superfície. Lá estava ele, afinal, ao pé da cachoeira, muito altivo e aprumado, apesar das fadas agarradas como pragas à sua gravata branca.

— Nós navegamos sob o emblema da Cavei-ra-e-Ossos-Cruzados! — declarou ele. — É a nossa ban-deira!

— Peter, não! Não é verdade! — Wendy ficou tão estarrecida que também se libertou do mar de fadas.

Ela o encarou e, por um instante, parecia que as palavras tinham surpreendido Peter tanto quanto ela. Por sorte, “caveira-e-ossos-cruzados” nada signi-ficavam para as fadas recitadoras: elas não sabiam de que cor era uma bandeira de piratas. Além do mais, a paciência delas estava chegando ao fim.

Digam: Azul ou Vermelho! Ou morrem todos vocês.

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Vamos contar até três Este é o último conselho! UM... Subitamente, um halo de luz explodiu ao redor

da figura frágil de Peter. Depois, ele desapareceu in-teiramente. Peter entrara de costas na queda d’água. Wendy estava ao mesmo tempo empolgada e desola-da — empolgada porque o Capitão escapara, desola-da porque ele deixara seus amigos à mercê das fadas.

— DOIS! Não havia outro jeito. Teriam de arriscar —

dizer Azul e torcer para não estar nas mãos dos Ver-melhos — ou Vermelho e rezar para não estar entre os Azuis. Todos os membros da Liga de Pan pensa-ram nas cores e tentaram decidir. Não acharam que valesse a pena morrer nem pelo azul nem pelo ver-melho.

— ARCO-ÍRIS! De trás da cortina de água, do meio da espuma

barulhenta da cachoeira, surgiu Peter Pan. Em sua mão, ondulava um dos arco-íris feitos de sol e névoa.

— Aqui está nossa bandeira! Agora, que nos julguem por nossa bandeira, seus diabretes, e nos matem ou nos soltem de uma vez!

O exército de fadas desconcertou-se, todo confuso. Olhavam para a bandeira tecida de sol e névoa e viam azul e vermelho em proporções iguais — bem como uma porção de outras cores. A pressão dos corpos minúsculos diminuiu à medida que a gra-vidade fádica se impôs. (As fadas sempre caem para cima.) Tinham um ar de quem acha que foi meio ta-peado, pois Peter estragara sua diversão: os exércitos gostam mais de matar do que de fazer amigos novos.

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Também olhavam com inveja para a bandeira de ar-co-íris, quase como se a preferissem à Vermelha ou à Azul. Então, formando um redemoinho de tornado com seus corpos coruscantes, subiram rodopiando em direção ao céu.

Wendy teve vontade de gritar para elas: Parem! Vocês nunca brigavam antes! O que estão pensando? Mas a nuvem lilás e malva e anil, e azul e roxo e branco gi-rou para cima, finalmente se espalhando como arroz lançado em casamentos. Ou como fragmentos de uma bomba explodindo.

— Essas fadas idiotas com suas bandeiras idi-otas! — protestou João.

Os menores, porém, estavam admirando seu Capitão e saudando sua maravilhosa bandeira de ar-co-íris. Peter encaixara-a em um mastro. Agora, o tecido de névoa-e-sol ondulava acima de suas cabeças e Peter deu a ordem:

— Em forma, meus marinheiros! Quem quer ir para o Monte do Nunca buscar uma arca cheia de tesouros?

A montanha estava tão próxima que enchia o horizonte inteiro. Viam claramente sua capa branca de neve, seus flancos marcados pelos deslizamentos de rochas. Era inacreditavelmente alta.

Durante uma hora, percorreram o campo de batalha das fadas, o chão coalhado de milhares de asas rasgadas, as teias de aranhas cobertas de poeira mágica. Corvos gordos, negros, saltitavam por ali, luzidios e mal-intencionados.

— Quanto tempo faz que as fadas vêm bri-gando entre si? — perguntou Wendy, atenta aos lu-

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gares onde pisava, segurando a parte de trás do casa-co de Peter. Ele agitava a bandeira de um lado para outro só pelo prazer de ver os corvos levantarem vô-o. — Peter! Por que essa luta entre os Vermelhos e os Azuis?

Ele deu uma risada e saltou por cima de uma pilha de atiradeiras de fadas feitas com os ossinhos da sorte — aqueles que parecem um Y — de pássaros pequeninos, como as cambaxirras.

— Ora, para escolher sua cor favorita, é claro! Para saber qual é a melhor.

O baú de bordo, engastado nas molas das ro-das de carrinhos de bebê, rangia e chacoalhava con-forme Novello o puxava pelo esburacado campo de batalha.

— As fadas viajam — observou ele. — Pegam as coisas no ar. Lembranças. Resfriados. Idéias. Acho provável que essa Guerra delas venha de alguma idéia que trouxeram do estrangeiro... como os ratos negros foram os mensageiros da Peste! — Depois, um pen-samento fugaz o fez sorrir e ele murmurou, a voz em tons sedosos. — Ou talvez as fadas tenham deixado abertas à noite as janelas da Terra do Nunca. E a Guerra entrou por elas.

O Homem em Fiapos parou de falar e pôs-se à escuta, a cabeça encapuzada inclinando-se para uma direção, depois para outra, como fazia com freqüên-cia. Explicou que apreciava muito o canto dos pássa-ros e que estava escutando os rouxinóis. No entanto, Wendy não escutou nada — nem rouxinóis, nem a clarineta de Deleve.

Só o crocitar dos corvos roliços.

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Capítulo Catorze Acabou a graça

No sopé do Monte do Nunca, havia charcos e

lodaçais escarlates, de aparência tão inocente quanto um tapete de sala de visitas, mas profundos e mortais como túmulos. A Companhia de Exploradores tinha de dar cada passo com a maior atenção, para não se desviar do caminho e arriscar-se a afundar na areia movediça, o que deixaria somente borbulhas de gás dos pântanos como único testemunho da Aventura de Pan.

Entre os pântanos, crescia uma vegetação de manguezal e mandrágoras, saca-rolhas-de-cortiça e pata-de-lebre, dente-de-cão e escovinha-de-gato, além de madeiras das quais escorria uma resina cor de âm-

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bar. Comida, não havia nenhuma, a não ser as fruti-nhas silvestres que tinham colhido antes e trazido consigo. Novello as distribuía igualmente pelos pra-tos dos Exploradores na hora das refeições, sem guardar nenhuma para si.

A única dificuldade é que as frutinhas provo-cavam sonhos, e o único problema com relação aos sonhos é que não se pode escolher o que se vai so-nhar. Eles chegam como as mudanças do tempo, so-prados do norte ou do sul, do passado ou do futuro, de lugares sombrios ou luminosos. Os sonhos flu-tuam sete oitavos debaixo d’água.

Piuí sonhou que era um homem usando calças de lã macia, um roupão vermelho e enormes bigo-dões — o que era muito inquietante.

Wendy sonhou com uma menininha chamada Jane dormindo em um quarto que o luar clareava. A menina sonhava Wendy e Wendy sonhava a menina e, quando os olhos adormecidos das duas se encon-traram, a criança sentou-se na cama e chorou, cha-mando: “Mamãe!”. Isso agitou o sangue no coração de Wendy como a borra dentro de uma garrafa de vinho do Porto.

Os Gêmeos sonharam os sonhos um do outro, o que foi ótimo.

João sonhou com seu irmão Miguel e acordou chorando. Cabelinho sonhou com Deleve, que o chamava e dizia para ter cuidado, mas o sonho se re-solveu antes que ele pudesse descobrir o porquê.

E Peter, então! Peter teve um sonho maravi-lhoso com um lugar onde ele nunca estivera, um lu-gar fervilhante de meninos, todos mais velhos que

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ele, todos estranhos, jogando jogos que ele nunca jogara, muitos meninos juntos em prédios que ele nunca vira. Ele estava remando um esquife na água iluminada pelo sol, e suas pernas eram curtas e não alcançavam os suportes para os pés. Estava vestido de branco, arremessando uma bola colocada sobre três varetas de madeira presas ao chão, e sabia que algo crucial dependia daquilo13. Teve de cantar uma canção que não conhecia em uma língua que não compreendia.

E estava tão FELIZ e tão AFLITO e tão ES-PERANÇOSO porque, logo depois da curva do rio, bem no alto da grande escadaria, logo depois de A-gar, ou do Rio Jordan ou do Jardim de Luxmoore ou de Fellows’ Eyot — que lugares seriam aqueles e como ele sabia seus nomes? — ele encontraria o te-souro, todo o maravilhoso...

Foram acordados pelo som da clarineta de Deleve. Era a mesma canção que ele tocara para as bruxas, no Labirinto:

Mais amado jamais serás. Não vais mais querer vol-tar?

E as crianças gritaram para ele ir embora, mas Deleve continuou tocando.

Tinham acampado à noite, sem ter noção de como estavam próximos da montanha. Agora, à luz do amanhecer, ela se erguia acima deles, maior do que o mundo, com a cabeça nas nuvens e os pés en-terrados no chão a uma profundidade equivalente à 13 A autora refere-se ao críquete, jogo popular na Inglaterra, que se parece com o “taco”, jogado pelas crianças brasileiras. (Nota da Editora.)

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altura de um edifício de catorze andares. O Monte do Nunca estendia-se para cima e para longe: penhascos de granito e precipícios de mármore, plataformas sa-lientes de pedra-pomes e declives de pedrinhas soltas de ardósia. Tinha o formato de um daqueles bolinhos que são assados em fôrmas semelhantes a xícaras, com encostas íngremes terminando num topo arre-dondado de glacê branco. As geleiras tinham cortado sulcos atabalhoados em volta da montanha. Os raios tinham queimado a superfície, deixando-a nua. Os trovões ribombavam por suas ravinas. E o Monte do Nunca era tão vasto que fazia o vento voltar, assim como a terra seca faz com o mar.

— Oh, Peter! — exclamou Piuí. — Por que você não voa até o alto e traz o tesouro?

— Preguiçosa, mulher à-toa, amotinada! — berrou Peter, assustando Piuí de tal maneira que ela correu para Wendy e pediu um abraço. — O que são vocês:

Exploradores ou uns poltrões, uns ratos de embornal que nasceram com a cauda na boca? Lide-rar vocês é como arrastar uma âncora! Vocês são uma carga de leite azedo! São um desperdício de rações, é isso o que vocês são!

— Que rações? — perguntou o Primeiro Gê-meo, lembrando-se de sua fome.

Seu irmão tentou fazê-lo se calar, mas era tarde demais. Pan transferiu seus insultos de Piuí para o Primeiro Gêmeo e depois para cada um dos demais, dizendo-lhes que eram vira-casacas e choramingões, amotinados e marinheiros de meia-tigela.

— Eles estão só cansados, Peter — disse

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Wendy com brandura. — Cansados e famintos. Será que não podemos...

— E você, quem é, a advogada dos marinhei-ros? Então é você quem os está virando contra mim, não é? Meninas! Para que servem a não ser para cres-cerem e virarem mães, e todo mundo sabe muito bem o que são as mães!

Wendy, boquiaberta, prendeu a respiração. As faces de Peter estavam esbraseadas, muito rubras, e ele torcia com violência as abas de sua sobrecasaca, suando de raiva, quase em pânico, querendo tirá-la.

— O casaco, Novello! Novello adiantou-se prontamente, mas só para tentar persuadi-lo a vestir de novo o casaco escarlate.

— O ar está frio, milorde. Rogo-lhe que se mantenha aquecido. — Peter arrancou fora o casaco e jogou-o em cima dele.

Ao redor da base da montanha, araucá-rias-do-chile, que são árvores colossais, escuras e re-curvadas, achatavam-se de encontro a paredões ro-chosos verticais, como malfeitores encurralados com as costas na parede. Grandes ninhos de vespas ba-lançavam-se na curva de cada galho. Ligeiro, Peter afastou-se da Companhia de Exploradores e come-çou a subir nas árvores com movimentos ágeis, alter-nando as mãos, exibindo-se com pulos e saltos mor-tais para mostrar como era simples, mesmo para a-queles com muito pouca quantidade de poeira das fadas, para voar. Os Darlings hesitavam, intimidados pela montanha monstruosa.

Novello abriu o baú de bordo, dobrou e guar-dou a sobrecasaca. Pela maneira como a manuseava,

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via-se logo a terna admiração que sentia por seu do-no. Tirou também de lá quatro braças de corda: a-marrou uma ponta na alça e outra em seu cinto. E pôs-se a escalar a montanha com obstinação.

— Recomendo que se apressem, esploratori pic-coli14 — confidenciou-lhes mansamente, a voz quase inaudível depois da ferocidade do Capitão Pan. — Há Desengunços nos arredores.

Foi o que bastou. Os Exploradores ajustaram bem ao corpo seus casacos de cobertores e subiram desajeitadamente nas árvores, como muitos mari-nheiros de uma vez indo pelo cordame para o cesto da gávea, cercados de estrelas.

A subida era exaustiva. Galhos finos parti-am-se sob seus pés. Agulhas de pinheiros os espeta-vam. A casca das árvores soltava-se em seus dedos e o cheiro de resina deixava-os tontos. Pior de tudo, a resina escorria pelas árvores e exasperava-os de tão pegajosa que era, grudando entre seus dedos como se fosse uma pele e colando seus joelhos um no outro. As agulhas dos pinheiros — que são as folhas dessas árvores, com formato de pequenas agulhas verdes — grudavam-se em seus braços e pernas e cabelos, e todos ficaram parecendo criaturas peludas arrepiadas. A princípio, só vespas solitárias passavam por eles, curiosas, estabanadas, esbarrando nos rostos das cri-anças, zumbindo em seus ouvidos. Ao sacudirem uma árvore, entretanto, os meninos deslocaram um vespeiro da fenda onde se encontrava e centenas de vespas precipitaram-se de dentro, reunindo-se em

14 “Pequenos exploradores”, em italiano. (Nota da Editora.)

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torno deles como uma nuvem, atraídas pelos rostos melados, agarrando-se às palmas das mãos deles.

— Aiaiai! Uma vespa me mordeu! E vieram também meigas — aqueles mosqui-

tos de pernas enormes que parecem aranhas — e mutucas, e moscas varejeiras e joaninhas. As sombras das crianças agarravam-se e aderiam depressa à resina escorrida, detendo-os bruscamente, ameaçando em-baraçar seus pés em sua escuridão.

Cabelinho cometeu o erro de olhar para baixo e viu que, com a distância, a terra encolhera e estava reduzida a um jardim em miniatura. João fez a tolice de olhar para cima e viu que estavam chegando ao topo das árvores, e que depois delas só havia pedra cinzenta e neve.

Arrastaram-se para uma estreita saliência de rocha e deitaram-se ali, com os narizes na beirada, cansados demais para fechar os olhos. Desse jeito, viram o Homem Desfiado fazer sua lenta escalada.

Entre os galhos das árvores, seu enovelado de roupas ficaria agarrado em cada graveto e farpa e ele teria se esfiapado até os ossos. Portanto, ele deixou de lado a araucária e preferiu escalar a rocha lisa — não com agilidade e rapidez mas com uma determi-nação imperturbável — firmar o pé, equilibrar-se, puxar o corpo. O pesado baú de bordo, pendurado na parte de trás de seu cinto, oscilava como um pêndulo de reló-gio: tique-taque, tique-taque. Quando alcançou o pouso onde as crianças se encontravam, ele se deitou com cuidado extremo ao longo da estreita prateleira rochosa. Wendy teve o curioso impulso de estender a mão e tocar aquele estranho pêlo de lã que o revestia.

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Sentiu cheiro de ovos de cobra, gotas para tosse e leão.

— Acha que os Desengunços virão atrás de nós, senhor Novello? — perguntou ela.

— Não, senhorita. Acredito que não. — E será que vai ter comida? — perguntou o

Segundo Gêmeo. — Certamente. Ovos de águia. Pepinos das

montanhas. E maná. — Maná? — Maná pode ser bom ou ruim. Cuidado com

o que comerem. O maná faz o homem, mas só o bom.

— Como o senhor sabe essas coisas, senhor Novello? — perguntou Cabelinho.

Novello pôs-se a içar o baú de bordo, puxando a corda pausadamente, uma das mãos seguindo-se à outra. Dava para ouvir os dentes cerrados dele ran-gerem com o esforço.

— Ah. Sou um viajante, pequeño marqués15. Es-cuto um pouco aqui, um pouco ali.

As vespas que restavam desceram e sumiram, como nadadores que percebem que foram longe de-mais.

Clipe. Clipe. Pedregulhos começaram a bater nos galhos das árvores e atingir a plataforma rochosa. Logo, alguns atingiam os Exploradores — aai! ui! — e eles se deram conta de que estavam sendo atacados por algo maior do que simples vespas. Enormes pás-saros cinzentos com pernas descarnadas e garras pa-

15 “Pequeno marquês”, em espanhol. (Nota da Editora.)

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recendo pinças de pegar gelo voavam em círculos acima, lançando pedras para expulsar os invasores. Aquela saliência era o poleiro noturno das aves e elas pretendiam que continuasse sendo só delas. As pe-drinhas caíam com um ruído de chuva de granizo. Soprou um vento frio.

Piuí fungou alto e expressou com palavras o que todos estavam sentindo:

— Isso não tem mais graça nenhuma. Às vezes, uma brincadeira domina a pessoa

que pensou nela. Na Terra do Nunca, isso sempre acontece, e a brincadeira deixa de ser uma brincadei-ra: passa a ser real — o que é maravilhoso, e faz o cérebro da gente girar e ziguezaguear por trás dos nossos olhos, e lança umas ondinhas de calor no nosso estômago e faz a saliva secar dentro da nossa boca; e todos os pássaros se transformam em harpias ferozes, todos os troncos viram canhões possantes, e todas as cortinas viram fantasmas e todos os barulhos vêm dos monstros... É o melhor dos momentos, e a gente sabe que vai se lembrar daquilo para sempre.

Mas que dá medo, ah, isso dá! Peter Pan pôs-se de joelhos, a camisa branca

ondulando no corpo, o comprido cabelo escuro todo em pé por causa do vento. Havia o sorriso mais lindo em seu rosto.

— Meus amigos... meus irmãos... viemos a-qui...

— E irmãs! — interrompeu Piuí, impaciente. — E irmãs, claro. Viemos aqui para ser Ex-

ploradores. Para ser caçadores de tesouro. Não é? E o que pensamos? Que seria fácil? Que seria seguro?

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Olhem para lá! Olhem! — E eles olharam para onde ele apontava, para a paisagem que tinham atravessa-do, viçosa e verde a distância, árida e acidentada nas proximidades; uma região selvagem sem trilhas nem caminhos, difícil e custosa de percorrer. — Será que achamos que os caminhos fossem muito trilhados e marcados? Não. Mas nós chegamos assim mesmo! Será que pensamos que todo mundo costumasse vir aqui com freqüência? Não, aqui só vem gente como nós! Queríamos coisinhas fáceis? Passeios pelo par-que?

Olhavam para ele, fascinados. Peter Pan, com os punhos erguidos acima da cabeça, segurando o vento nos dentes alvos, os ossos dos ombros pare-cendo duas asas sobre seu coração. Na pele dos pu-nhos dele, riscos brancos de cicatrizes, onde farpas minúsculas de metal tinham voado das lâminas de duas espadas durante a sua luta de morte com Jas Gancho. Ele era magnífico.

— Mas não somos todos como você, Peter! — exclamou Cabelinho. — Às vezes ficamos cansados... e sentimos medo.

— E se o tesouro não valer a pena, depois de tudo isso? — argumentou João.

— Então não seria um tesouro — murmurou Novello, com lógica indiscutível.

— Nem todos podem ser ricos — prosseguiu Peter. — Nem todos podem ser fortes ou inteligen-tes. Nem todos podem ser bonitos. Mas todos pode-mos ser corajosos! Se dissermos a nós mesmos que somos capazes; se dissermos ao nosso coração: “Pare de pular!”; se nos comportarmos como heróis... todos

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podemos ser corajosos! Todos podemos olhar o Pe-rigo de frente e ficar contentes por encontrá-lo, e sa-car nossas espadas e dizer: “Prepare-se, Perigo! Você não me assusta!”. A coragem está à disposição de quem quiser, não se necessita de dinheiro para com-prá-la. Não é preciso ir à escola para aprender a ter coragem! A coragem é que é importante! Todo o resto se resolve quando se tem coragem!

Pouco antes, naquele mesmo dia, ninguém te-ria dado mais um passo pelo menino que os chamara de ratos e de amotinados, que ameaçara abandoná-los e cortar suas rações. Agora, se Peter Pan pedisse, qualquer um deles teria andado dali para cima das asas de um avião em pleno vôo ou mergulhado do trampolim mais alto dentro de um copo de leite. Limparam as agulhas de pinheiro do corpo, arranca-ram com os dentes os ferrões das vespas cravados na pele e prepararam-se para escalar a encosta rochosa até o alto.

Novello gentilmente apanhou uma faca e cor-tou fora as sombras pegajosas dos Darlings.

— Agora elas não vão mais ficar presas en-quanto vocês sobem — e guardou as sombras dentro do baú de bordo, como precaução. O Cachorrinho deve ter pensado que o corte doía, porque avançou para Novello e enfiou os dentinhos afiados na roupa dele, puxando-a com toda a força. Arrancou novelos inteiros de lã e a roupa desfiou-se mais, expondo um pé de bota estranhamente encalombado, manchado, gasto. O dono do circo, rápido como um raio, agar-rou o Cachorrinho pela garganta e segurou-o bem junto do rosto. As crianças temeram por ele — acha-

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ram que Novello estivesse prestes a morder seu fo-cinho e arremessá-lo montanha abaixo. Mas o ho-mem apenas olhou dentro dos olhinhos salientes do bicho e sussurrou umas poucas palavras com voz doce. Perguntou:

— Animal, você tem um mínimo de vontade de um dia crescer e ser um Cachorrão?

O Cachorrinho levou a pergunta a sério e pa-rou de mordê-lo. Foi uma cena bastante reveladora dos poderes de Novello como treinador de animais.

Ele também convenceu Peter a vestir de novo a sobrecasaca escarlate.

— É a cor da bravura, meu senhor; vai enco-rajar os outros.

Em seguida, amolou sua faca em uma pedra e preparou-se para cortar a grudenta e esfarrapada mancha escura em torno dos pés de Peter.

— Quero ficar com a minha sombra! — disse Peter com rispidez, batendo com o pé na faca de Novello.

O criado recolheu depressa a mão pisada junto ao corpo mas não protestou. Seria preciso ter um bocado de coragem para enfrentar aquele Menino.

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Capítulo Quinze

Terra de Lugar Nenhum Deleve fora banido para a Terra de Lugar Ne-

nhum, onde ninguém lhe dirigiria uma palavra sequer. Claro que Pirilampo fora banido para lá também, portanto não havia nada que o impedisse de fazê-lo.

— Nós detestamos aquela gente, não é? — disse o elfo, que agora cismara de chamá-lo (agora que ele estava mais alto) de senhor “Mais-Deleve-Ainda”.

— Hmm — disse Deleve, meio em dúvida. Nunca fora muito do seu feitio detestar as pessoas e, agora que estava maior, não lhe parecia uma coisa muito digna: detestar alguém menor do que ele. Os dois estavam sentados no sopé do Monte do Nunca, mastigando favos de mel vazios que a mão leve do elfo surripiara das árvores.

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— Gostaríamos de cortar eles todos em pedacinhos, como gravetos, e fazer uma fogueira, não é?— provocou Pirilampo.

— Acho que não — respondeu Deleve, que, contudo, teria apreciado uma boa fogueira: estava ficando muito frio. Os favos de mel não tinham che-gado nem para disfarçar a sua fome. Pirilampo con-seguia sobreviver comendo notas musicais, mas De-leve (se ele não fosse Deleve e mais doce do que um cordeirinho) teria de bom grado matado alguém por um sanduíche de camarão.

— Tenho a impressão de que jamais vamos ver qual é o tesouro que está dentro da arca de Gan-cho. O que você gostaria que fosse, Pirilampo?

— Os olhos dos inimigos com calda de sorvete de li-mão! — respondeu Pirilampo, mais que depressa (embora pudesse estar mentindo, é claro).

Estranhamente, quanto mais alto Deleve fica-va, mais lembranças remotas lhe vinham à cabeça, e assim conseguia recordar outra vez a Praça Cadogan, os Jardins de Kensington — e até, de muito tempo atrás, um professor de piano que prendia penas de escrever sob seus pulsos para mantê-los arqueados. (Foi por isso que ele resolveu aprender clarineta.) Mais-Deleve-Ainda lembrou até a primeira vez que estivera na Terra do Nunca...

— Conte uma história — pediu Pirilampo. — Por quê? Você come histórias também? — Só os ohs e ahs e es e os. Os quês são duros de-

mais e os zês são muito azedos, e as letras que têm pontinhos, como os is e os jotas, entram nos dentes; os esses às vezes escorrem para a nossa roupa e fazem cócegas. Ah, e também

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quero que a história tenha um final feliz, senhor Mais-Deleve-Ainda, se não eu fico com dor.

Então, Deleve colocou o agradável calorzinho de Pirilampo no bolso de sua camisa — Ah, e faça o favor de botar uma fada nessa história! — e contou a ele a história que estava passando em sua cabeça naquele momento.

— Certa vez, os piratas encontraram a casa subterrânea de Peter Pan e ficaram de tocaia; e cap-turaram todos nós, os Meninos Perdidos, um por um, à medida que subíamos pelo nosso tronco oco de árvore para sair; também pegaram Wendy, Miguel e João. Mas não conseguiram pegar Pan porque ele es-tava dormindo profundamente dentro da casa e não saiu. Aí, o covarde Jas Gancho apanhou um vidro de veneno (ele nunca saía sem levar um) e pingou umas gotas no remédio de Peter para que ele MORRESSE quando o tomasse ao acordar!

— Estou ficando com uma dor— preveniu Piri-lampo.

— ...Mas a fada Sininho, que era leal, sincera e corajosa, viu o que aconteceu e logo decidiu o que deveria fazer!

— Ela era esperta, então, essa tal de Sininho? — Simplesmente brilhante. Não interrompa. — E bonita? — Daquelas bem clarinhas, com cinturinha fi-

na de vespa. Posso continuar? — E era fada feminina? — Muito. Quer ou não quer que eu conte essa

história? — E era mentirosa?

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— Uma vez, ela disse que Wendy era um pás-saro e que Peter queria que atirássemos nela para matar.

A mentira era tão grande que silenciou Piri-lampo.

— Peter acordou e já ia bebendo o veneno quando Sininho correu e bebeu antes dele, e aí...

— Ui! Ai! Ui! Por que você foi me contar isso? Ai, estou com uma dor horrível! Ah, como detesto histórias!

— ...e Sininho quase morreu, e só não morreu porque era muito amada, e aí Peter saiu correndo a-trás de Gancho e entrou sorrateiramente a bordo do Terror dos Mares e soltou todos nós, que estávamos prisioneiros dele, e lutou com Gancho, e dava esto-cadas, e aparava golpes, e investia — ráá! ráá! ráá! To-me esta, e mais esta! — e o encurralou contra a amurada do navio, e o fez cair por cima da amurada ...tique, tique, tique... direto dentro da boca do Crocodilo!

...dilof ... dilo!... dilo! Como a cauda do malvado réptil, o final da história rabeou para lá e para cá nas faces rochosas do Monte do Nunca: um eco de ma-ravilhosa ameaça.

— Uaauuu! — Pirilampo estava tão excitado que chamuscou o bolso da camisa de Deleve. — Xô para Gancho e ele que vá parar no fundo do mar!

— Não acho que seja certo tripudiar sobre um homem que você nem conheceu — repreendeu-o Deleve, com ar sisudo.

— Por que não? Gancho não merecia? Não era um vilão e um patife e um estafermo e um tinhoso que não servia para nada?

Deleve teve de admitir que Gancho era aquilo

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tudo. — E falava alto demais, segundo me lembro —

disse ele, franzindo a testa. — Gritava com seus ho-mens o tempo todo, e os ameaçava e se pavoneava e se vangloriava, e pensava que ele era o supra-sumo, e que não havia quem se comparasse com ele em toda a Terra do Nunca.

Uma vozinha disse: — Quer dizer, igualzinho ao Peter? — Quieto, Pirilampo! Você não sabe o que

está falando! O elfo pôs a cabeça para fora, meio nervoso, a

boca um pequeno e redondo O de surpresa. — Mas eu não disse nada, senhor

Mais-Deleve-Ainda. E Deleve teve de admitir: a voz não viera do

bolso de sua camisa, mas de dentro de seu próprio coração: uma vozinha traiçoeira e rebelde que ainda lhe dizia, uma porção de vezes seguidas: Peter Pan começara a comportar-se exatamente igual ao Capitão Gancho.

O sol se pôs como um fatiador de presunto, e a noite chegou tão escura quanto um pudim de a-meixas-pretas. Ou assim parecia a um menino que ficou sem jantar. Os pensamentos de Mais-Deleve-Ainda eram ainda mais negros enquanto ele tentava dormir, deitado com os olhos bem fecha-dos. Pois ele descobrira algo de fato terrível: uma i-déia que não lhe saía da cabeça, como fagulhas quei-mando-lhe a testa.

— Sabe aquelas outras pessoas que eu avistei lá de cima quando estávamos brincando? — disse Pirilampo no

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escuro, em um cochicho alto demais. — Vá dormir, Pirilampo. — Mas eu falei a você sobre elas, lembra? — Quais, os astecas e incas? — Não. Os outros. Os tocaieiros, os emboscados. Os

Matantes no matagal. Lembra? — Não — disse Deleve com firmeza. Ele que-

ria ir dormir em um lugar onde não houvesse corren-tes frias de ar, sem idéias dolorosas caindo como fa-gulhas em sua testa.

— Você conta mentiras que é uma beleza, meu caro — disse ele, não querendo ser desagradável —, mas deixe para contá-las amanhã de manhã, por fa-vor.

Infelizmente, Pirilampo não estava mentindo. E as fagulhas que caíam na testa de Deleve

eram tão reais quanto o pé que agora se apoiava em cima de seu quadril, a mão que agora lhe apertava a garganta. Abriu os olhos e deu com uns vinte jovens brutamontes brandindo porretes e tochas acesas fei-tas de junco.

— Vamos enfiar ele num espeto, assar e co-mer! — disse um.

Deleve estendeu a mão para sua clarineta, do mesmo jeito que uma mãe procuraria pegar um filho. Mas os garotos a confundiram com uma arma e chu-taram-na para uma poça de lama. Chutaram Deleve também.

— Você é da Liga. É um dos dele. A gente viu você com ele.

Uma onda de orgulho tomou conta de Deleve antes que se lembrasse: ele não estava mais na Liga de

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Pan; era só um menino cujas pernas e braços tinham crescido demais e que fora banido.

— Vocês não deveriam estar falando comigo — disse ele. — Fui mandado para a Terra de Lugar Nenhum. (Deleve, nada sabendo a respeito dos De-sengunços, ainda não percebera o perigo que corria.)

— Falar com você? Hum — grunhiu um rapaz enorme com os lóbulos das orelhas rasgados. — A gente só quer matar você.

Uma fada ou um elfo que contasse com os ohs e ahs e es e os dos Desengunços para sobreviver logo morreria de fome, pois, tendo se transformado em rapazes, eles quase não falavam coisa nenhuma. Na-quele momento, estavam convencidos de que tinham capturado um membro do grupo de Pan, e um brilho criminoso acendera-se em seus olhos. Viviam espe-rando pelo dia em que armariam uma emboscada e atacariam o próprio Peter Pan, para se vingar por te-rem crescido e ele os ter banido. Nesse meio tempo, podiam muito bem se contentar em matar um dos integrantes da sua Liga de Exploradores. Novello fa-lara a verdade ao afirmar que eles eram piores que piratas, menos domáveis que ursos e absolutamente impiedosos.

— Onde está Pan? Diga ou morra! — ordenou o Desengunço mais velho.

No mesmo instante, Pirilampo pulou de den-tro do bolso da camisa de Deleve e comeu a cera do ouvido de um dos Desengunços.

— Peter Pan? Peter Pan? Nós o detestamos, não é, senhor Mais-Deleve-Ainda?

— Ele subiu a montanha — disse Deleve, não

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vendo mal nenhum em contar para eles. — Foi buscar nosso tesouro! — disse Pirilampo

com sua voz de flautinha, achando que a ocasião pe-dia uma bela mentira. — Nós o mandamos ir.

— Tesouro? (A palavra tem mágica em si, não importa o quanto você tenha crescido.)

— Estamos querendo cortá-los todos em pedacinhos, como gravetos, para fazer uma fogueira — sugeriu Piri-lampo, entusiasmado.

E assim, de alguma forma, os Desengunços presumiram que Deleve e Cia. estavam seguindo a pista de Peter Pan e tão empenhados em matá-lo quanto eles próprios. Também tiveram notícia do tesouro e gostaram da informação. Sentaram-se no chão cruzando as pernas compridas e desengonçadas, tomando cuidado para não roçar os braços nus em quem estava ao lado. (Deleve achou que sentiriam menos frio se ficassem bem juntos, mas ele ainda era novo nesse negócio de adolescência.) Uma a uma, suas tochas se extinguiram.

Durante algum tempo, ficaram sentados em silêncio, até que Deleve não agüentou mais e fez a pergunta que o afligia:

— Por que vocês cresceram? Vocês sabem? Eles encolheram os grandes ombros ossudos.

— Pan nos envenenou, claro. — Envenenou todo mundo. — Envenenou tudo. — Ora, não acho que... — começou Deleve. Mas os Meninos Perdidos Compridos foram

categóricos. Durante os anos agrestes e desconfortá-veis de seu exílio, todos tinham passado a acreditar

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nesta versão da história: Uma vez, no início do fim, quando era sempre

verão, Peter Pan pegou um vidro de veneno e entor-nou-o na Lagoa. Primeiro, morreram os moluscos, depois as sereias. As ondas cor de turquesa cresceram — cresceram muito —, ficaram cinzentas e, em se-guida, de cabelos brancos de espuma. Na terra firme, as árvores do verão enrubesceram e soltaram suas folhas. O veneno desbotou a cor do sol, infiltrou-se na seiva das flores e calou o canto dos pássaros. O tempo avançou, num lugar onde jamais deveria a-vançar. Até os fenômenos do clima tornaram-se mai-ores: as brisas viraram grandes vendavais, derrubando árvores e os postes dos totens dos índios. No céu, as nuvens chamadas de rabo-de-galo, finas e esgarçadas, transformaram-se em nuvens volumosas, desajeita-das, carregadas de raios e trovões. As fadas, irritadas pela eletricidade do ar, entraram em guerra umas com as outras.

— E ele nos envenenou também, quando não estávamos olhando, e nos fez crescer, depois nos ex-pulsou porque tínhamos crescido e mandou-nos para a Terra de Lugar Nenhum, como fez com você.

A frase ainda soava mais triste por ser a mais longa que um Desengunço jamais falara.

Deleve engoliu em seco. — Quem contou isso tudo a vocês? Outra vez o encolher de ombros. Outra vez os

lábios juntos fazendo bico, os olhos desviando-se atrás das pálpebras entrefechadas. Os dedos deles escavavam o chão, arrancando pedrinhas que arre-messavam na montanha, como se fosse no próprio

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Peter Pan. — Uma pessoa. Cada um disse algo semelhante. — Um homem. — Um viajante que encontrei. — Me deu um emprego durante um tempo. — A mim também. Até haver o incêndio. — Um homem viajado. Algo frio beijou o rosto de Deleve. Um floco

de neve. Algo mais frio que a neve enchia seu cora-ção. Quando se pôs de pé, uma das costuras de seu casaco de cobertor, agora pequeno demais, de man-gas tão curtas que nem lhe chegavam aos cotovelos, não resistiu à pressão e arrebentou. Sentia-se tonto, fosse por causa dos torvelinhos da neve ao redor de sua cabeça, fosse por causa do medo que lhe apertava o coração.

— Preciso subir a montanha — disse. — Será que alguém pode me mostrar o caminho?

— Para matar Pan? — disse um deles, apoi-ando-se todo animado nos cotovelos.

— Mmmm — disse Deleve. — Onde devo começar a escalada?

Mesmo para os temíveis Desengunços, porém, a montanha estava além dos limites, um lugar de pe-rigos inimagináveis. Nunca tinham ousado colocar os pés lá.

— É então um lugar assim tão medonho, esse Monte do Nunca? — disse Deleve, tremendo, apesar de sua determinação.

— Você disse que há um tesouro lá em cima — disse um dos rapazes através da barba rala, que

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parecia uma mancha suja. — Acha que ainda estaria lá se alguém tivesse conseguido subir e sobreviver?

— Monte do Nunca? — disse outro, falando para si mesmo em voz alta. — É assim que ele o chama? Todo mundo o chama por um nome dife-rente.

Todo mundo o chamava de Ponto Sem Re-torno.

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Capítulo Dezesseis

Sombras no baú É bem verdade que, sem as sombras, os Ex-

ploradores sentiam-se de alma leve, felizes, no início: mesmo quando a neve começou a cair e pequenas avalanches de pedrinhas soltas cortaram seus joelhos. Logo estariam no topo da montanha, e o tesouro de Gancho seria deles. Que tesouro seria esse? Seda tramada com fios de ouro ou Delícia Turca? Pistolas de prata ou arreios de cavalo em couro marroquino vermelho? As coroas de dezesseis potentados orien-tais? As chaves de um palácio de vidro?

— Livros de histórias? — perguntava Wendy a seus botões.

— Vocês se lembram — disse Piuí alegremen-te — como Mamãe costumava nos chamar de seu mais precioso tesouro?

— E Papai dizia que ele deveria nos guardar em seu banco porque valíamos mais do que todo o dinheiro do mundo!

Wendy olhou de soslaio para Peter, sabendo o

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quanto ele detestava aquele tipo de conversa sobre mães. Sempre que eram mencionadas, ele baixava os olhos para os dedos de suas mãos e os flexionava. Certa vez, aqueles dedos tinham puxado, puxado, puxado uma fria maçaneta de bronze, batido na vi-draça de uma janela, tentado em vão arrombar uma tranca. Apenas uma vez, com saudade de casa, Peter voara da Terra do Nunca até lá e encontrara a janela do quarto de dormir fechada. Nunca perdoara sua mãe por tê-la fechado.

Felizmente, porém, Peter não estava escutan-do. Estava ocupado demais escalando a montanha, içando o corpo mais para cima somente com a força dos braços. De vez em quando, seus pés flutuavam no ar, como um mergulhador que explora um recife, mas não era o que se poderia chamar de vôo — não vôo de verdade —, e as coitadas de suas mãos esta-vam todas cortadas e sangrando. Por fim, exausto, deu um gemido e foi descansar com o rosto virado para baixo sobre a rocha fria, a mão fazendo gestos pouco firmes por cima do ombro, tentando pegar a bainha de sua própria sombra. Toda a sua força pare-cia estar se esgotando.

— Você disse que seria mais fácil sem a minha sombra, Novello?

— Muito mais, bellissimo generalissimo. É um fato conhecido: nesta altitude, as sombras dobram de pe-so.

— Corte-a, então! Livre-me dela! É um abor-recimento, pesa em meus ombros e jamais gostei de-la!

Com um movimento ágil, um gesto fácil, com

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uma lâmina que nem era visível dentro da manga de seu casaco de malha, Novello cortou fora a sombra de Peter. Enquanto a dobrava meticulosamente em quatro e colocava com delicadeza dentro do baú de bordo, ele manifestava em voz baixa e monótona su-as próprias opiniões a respeito da questão das mães. (Novello parecia igualmente fazer um mau juízo da raça.)

— Estamos todos muito melhor sem elas. A-final de contas, para que serve a mãe a não ser para fazer fracassar a vida de um sujeito? Ah, em seu ves-tido de listras com a saia drapeada atrás e seu pescoço elegante de cisne, ela pode atrair os olhares invejosos dos colegas de um menino. Pode impressionar bas-tante tomando uma taça de champanhe no gramado da casa do diretor da escola. Mas quando a grama está úmida demais para ela se sentar e assistir ao me-nino jogar na quadra de fives, ou ser o primeiro reba-tedor em campo num jogo de críquete, ou jogar co-mo “homem-voador”; ou a margem do rio ao lado do Raft é lamacenta demais para as botinas dela, e por isso não pode assistir ao menino passar emperti-gado e orgulhoso no Dreadnought durante o desfile de barcos, a importante Procession anual; e quando no Wall Day, um jogo de futebol tão especial, ela está ocupada demais com suas costureiras — ou ri, a-chando muita graça ao saber que o menino se saiu mal no jogo e acabou na loja de doces Rowlands em vez de seguir para o Schoolyard, o antigo pátio cen-tral; e quando ela não o estimula desejando boa sorte na competição de florete... bem, desse jeito, um su-jeito se desmancha, não é verdade? Ou quando, nos

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Discursos de Junho, um rapaz em cima da tribuna procura a mãe na platéia, já com as palavras de Oví-dio na boca, decoradas com o maior sacrifício, pres-tes a recitá-las perante todos os alunos mais velhos, e não a encontra... e até isso talvez seja melhor, porém, que a ocasião em que, numa rara visita, ela louva a Matemática e desdenha as coisas em que seu filho se sobressai, tais como lutar boxe e caçar com cães bea-gles, e só pergunta sobre declinações, Gramática e Francês, e o que ele aprendeu sobre os etruscos. Não, posso garantir, as mães preferem ter um filho que não reme nem jogue críquete, mas seja bom em aná-lises e conjugações a um filho rebatedor, que acerta quatro de seis arremessos válidos no clube de críque-te para menores de catorze anos, o Three-penny, ou boléia um maiden no campo Sixpenny! E quando, fi-nalmente, apesar da falta de incentivo, as metas estão prestes a ser atingidas e o destino coloca um bastão de bedel da cobiçada sociedade Pop na mão dele, e as nuvens vão se abrir e derramar suas glórias na cabeça de um menino, e mostrar-lhe o que há de melhor, e premiá-lo com uma prova concreta, prateada e bri-lhante de sua superioridade... como é possível supor-tar que ela o tire desse lugar para economizar a despesa com mosquetes e equipamento de remo e mensalidades escolares? E faça uma cena e se irrite e bata o pé, impaciente, e ponha de lado as fitas e condecorações dele enquanto o pobre desgraçado faz suas malas, atormentado pelo som que entra pela janela aberta do bastão de críque-te batendo na bola, o abençoado som do “salgueiro no couro”, dos vivas aos participantes das corridas, do entrechoque das lâminas dos floretes, do sibilar

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dos dardos sendo lançados, e sabe-se lá do que mais...? Arre! Mundos perderam-se por causa da in-sensibilidade das mães, mundos inteiros, creiam! Mundos inteiros!

O murmúrio monótono transformara-se num rugido. Quando afinal o silêncio deles chamou a a-tenção de Novello, ele levantou a cabeça e deu com todos os Exploradores olhando fixo para ele.

— Que língua ele está falando? — perguntou João. — Será algum dialeto esquimó?

Mas Wendy aproximou-se de Novello, aga-chado ao lado do baú de bordo, arrumando e rear-rumando seu conteúdo até pôr tudo em perfeita or-dem. Ela pousou a mão no ombro dele, que arfava, e sentiu um tremor sob a aspereza sebenta da lã embo-lada.

— Acaso é um dos Meninos Perdidos, caro senhor?

— Certamente que não! — Novello pôs-se de pé num salto com graciosidade surpreendente. — De jeito nenhum, senhorita! Não! Não, não. Não sou. Com certeza que não!

— Alguém viu o Cachorrinho? — perguntou Cabelinho.

Assim que acordaram na manhã seguinte, as

crianças olharam de soslaio para seus punhos e per-nas, nervosos, para ver se não tinham crescido como brotos de feijão durante a noite. Como Deleve. Por mais dura que fosse sua viagem, qualquer dureza era preferível a ser jogado pelo Monte do Nunca abaixo, expulso por ter crescido. Como Deleve. Por que a-

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contecera aquilo com Deleve e não com eles? A pior parte, a mais preocupante, era Não Saber. Eles con-cluíram que devia ser, era quase certo que fosse, porque Deleve estava vestido com roupa de adulto quando chegou à Terra do Nunca.

As roupas são grande parte do que uma pessoa é, afinal de contas.

Em seu percurso até o topo da montanha, pre-cisavam subir por chaminés de rocha e atravessar a-restas cobertas de neve. Escalavam declives de már-more escorregadio só para deslizar de volta para bai-xo, empurrando os outros e formando uma pilha de gente dolorida e sem fôlego, e ter de recomeçar a es-calada. Feixes de ferro, carvão e fósseis uniam os ro-chedos. Ravinas separavam-nos novamente, de modo que os Exploradores volta e meia iam dar na beira de um precipício, olhando para um vazio insondável.

— Será que alguém viu para onde foi o Cachor-rinho? — perguntou Cabelinho outra vez, e outra vez eles o procuraram e procuraram sem encontrar. E outra vez chamaram:

— Cachorrinho! Venha, Cachorrinho! Mas os pingentes de gelo que se avolumavam

acima de suas cabeças estalavam e rangiam e balan-çavam como se fossem cair com qualquer vibração.

— Ele vai estar esperando por nós lá embaixo, quando descermos de volta — dizia Wendy com voz animada para que os menores não chorassem, mas mordia o lábio, apreensiva, quando lembrava das fendas e dos deslizamentos de pedras, as vespas e as árvores cheias de resina pegajosa. O Monte do Nunca não era lugar para um filhotinho de cachorro tão pe-

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quenino. As mudanças que haviam alterado as florestas

e as colinas da Terra do Nunca tinham afetado tam-bém o Monte do Nunca. Antes, fontes de água doce lançavam do alto véus resplandecentes de névoa branca, que palpitavam sobre tapeçarias de flores sil-vestres e ninhos de passarinhos. Agora, o gelo se acumulava desde o coração da montanha, partindo-a e derramando as geleiras pelas vertentes abaixo, igual a uma lava cinzenta e suja. Como se fossem tratores, as geleiras empurravam pedras enormes e arredon-dadas que iam formar torres rochosas oscilantes. Ao se aproximarem de uma dessas geleiras, os Explora-dores sentiram um grande frio repentino: era uma parede de gelo, tão sólida que poderiam ter desenha-do nela se tivessem lápis à mão.

— Como será que algum dia vamos nos aque-cer outra vez? — perguntou o Primeiro Gêmeo, ba-tendo os dentes de frio.

— Com chá quente e bolinhos — respondeu o Segundo Gêmeo —, quando descermos.

— Como será que vamos descer? — pergun-tou Piuí.

— Devagar e com firmeza — disse Peter com uma risada descuidada —, ou bem depressa, se você escorregar!

Aqui e ali, uma camada de neve branca como açúcar polvilhado cobria o gelo cinzento e sujo, es-condendo enormes rachaduras que ameaçavam engo-lir viajantes imprudentes. Serpenteava como uma au-to-estrada na direção do pico da montanha, e Peter enveredou por ela sem ao menos olhar para trás, e os

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outros sentiram-se obrigados a segui-lo. Mas a fria-gem entrou por seus sapatos e gelou suas pernas, os ossos das coxas, os quadris, as espinhas, os ossos dos ombros. Novello amarrou-os uns aos outros com a corda, como montanhistas de verdade, mas Peter não quis, recusou-se a ser amarrado.

— Pensem apenas no tesouro que está no to-po!

— dizia, e ao respirar ele parecia um dragão, soltando fumaça pela boca.— Pensem apenas no meu tesouro!

— A voz alta provocou um deslizamento de neve, que veio sussurrante da encosta da montanha e varreu os pés deles, apagando suas pegadas.

De repente, todos estacaram. Por cima de um desfiladeiro, a geleira reduzia-se a uma tira estreita de gelo, como uma ponte de vidro barato, cheio de ra-chaduras. Era tão escorregadia que os Darlings puse-ram-se de quatro para atravessá-la. Era tão fina que dava para ver através dela a Morte Certa lá embaixo.

— Isso é mesmo uma aventura? — perguntou Piuí. — Alguém pode até morrer!

Peter deu um largo sorriso selvagem, equili-brou-se nas pernas... e passou andando pela estreita ponte de gelo, gritando:

— Se é mesmo uma aventura, Piuí? Claro! Com a minha assinatura! Ser ou não ser uma aventura, eis a questão. — Os outros pararam, boquiabertos. — Venham, andem, vocês todos! A coragem ê que importa. Tudo o mais se resolve se hã coragem!

Faltavam poucos passos para ele alcançar o outro lado quando olhou para baixo e ali, no gelo

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reluzente, enxergou algo que interrompeu sua cami-nhada e abalou sua coragem. Peter deu um grito tão terrível que todas as aves de rapina que habitavam a montanha abandonaram-na para sempre, nunca mais voltaram. Durante o espaço de tempo de algumas batidas de seu coração, desencadeou-se um pande-mônio dentro dele. Então, insensato, tentou correr. As solas de suas botas derraparam, seus braços subi-ram e ele caiu de cabeça... da beirada da ponte de ge-lo.

Novello também gritou, largou a corda que segurava e veio, como um atleta dando um salto tri-plo — saltar — um — pisar — dois — pular — três — Estou indo, meu senhor! — até onde Peter estava pen-durado, os dedos agarrados nos pingentes de gelo debaixo da ponte. O peso de Novello abriu um bu-raco na ponte, através do qual ele caiu de pé, salvan-do-se apenas de mergulhar para a morte pelos braços abertos em toda a sua extensão e pela largura de seus grandes ombros lanudos.

— Agarre as minhas pernas, menino! — ele disse a Peter. — Agarre firme!

— Eu o vi! — a voz de Peter veio de debaixo da ponte. — Vi Gancho!

O corpo de Novello, seguro pelo gelo, contor-cia-se de frio.

— A lembrança dele, talvez. Sua imagem, im-pressa no ar.

— Não, não! — A vozinha estava cheia de pâ-nico e perplexidade. — Vi meu reflexo no gelo e e-ra...

Os pingentes de gelo na palma da mão de Pe-

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ter derretiam-se, logo se quebrariam. Faltava pouco para que ele caísse no despenhadeiro. Mas a lem-brança daquele reflexo perturbava-o quase com a mesma intensidade. Porque o gelo é um verdadeiro espelho. Nele, Peter vira os longos cachos que No-vello enrolara em seu cabelo, vira sua pele mais escu-ra, queimada pelo sol, vira o casaco vermelho e as botas compridas até a coxa.

— Segure as minhas pernas, senhor! Vou pu-xá-lo para cima.

— Não consigo voar. Por quê, Novello? Por que não consigo voar?

O dono do circo começou a escorregar e pro-curou ancorar-se em algum ponto — o que fez como uma lâmina que rangeu ao ser enterrada no gelo — e manteve-se firme. Peter Pan transferiu seu peso dos pingentes de gelo para as pernas de Novello.

— Segure bem, senhor, ou pode arrancar mi-nhas botas e cair do mesmo jeito!

Pan pesava menos que um travesseiro de plu-mas, mas ainda assim Novello precisou fazer um es-forço titânico para puxar o próprio corpo, as pernas, as botas e Peter através do buraco e para dentro do círculo de seus braços, em segurança, afinal.

— Por que não consigo voar, Novello? Por quê?

— Tudo a seu tempo, senhor — ronronou Novello, tranqüilizando-o.

Os dedos de Peter afundaram profundamente na camada de lã que o revestia quando tentava se a-fastar de seu criado.

— Não me toque! Não posso ser tocado! Vol-

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te e pegue aquele baú de bordo, criado! — mas seus dedos tinham ficado presos nos fios.

Com cuidado, com muito cuidado, Novello desvencilhou os dedos gelados de Peter de seu ema-ranhado de lã e friccionou-os para reaquecê-los. Sua voz não passava de um sussurro, mas impregnado de persuasão.

— E de que se trata exatamente esse Tesouro que buscamos com tanto empenho, senhor?

Pan olhou para o topo da montanha. Tinham pela frente mais umas poucas horas de subida, mas Peter já sabia o que continha a arca do tesouro guar-dada lá. Desconhecia como essa informação fora pa-rar dentro de sua cabeça, entretanto lá estava ela, com recordações de um lugar onde ele nunca estivera e um contentamento que ele não conseguia refrear.

— Não sei como se chamam, mas são coisas tão brilhantes e belas, e há TANTO tempo que dese-jo tê-las!

Novello deixou escapar um suspiro enlevado. Com quatro braças de corda e infinita cautela, con-venceu os outros Exploradores a cruzarem a ponte de gelo e depois puxou também o baú de bordo, em suas trepidantes rodas de carrinho de criança. Assim que essas rodas chegaram ao local onde Peter caíra e fora puxado para cima, ouviu-se um Crac! alto e a ponte de gelo inteira desintegrou-se, caindo no abis-mo. O baú de bordo caiu também e quase leva No-vello junto, mas, com um rugido gutural, entrecorta-do, ele agüentou o tranco e manteve a corda firme na mão, salvando tanto o baú quanto a si mesmo da destruição na queda.

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Os Darlings todos correram para ajudá-lo, e juntos içaram o peso morto do baú, que balançava e se enroscava em sua corda como um homem enfor-cado. Encontraram Novello rindo sozinho — sem parar —, uma risada esquisita, como se caçoasse de si mesmo, que soava como água entrando borbulhante no fundo de um barco.

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Capítulo Dezessete

Não sou eu Na Terra do Nunca, uma arca de tesouro con-

tém sempre o maior desejo daquele que a procura, a coisa que essa pessoa quer mais que tudo no mundo. Os que haviam desejado dobrões de ouro e moedas espanholas de prata, os que haviam pensado em tia-ras, colares e relógios de bolso; os que esperavam que houvesse dentro da arca livros de histórias e ovos de Fabergé, agora não queriam mais nada disso. Tudo o que queriam era uma lareira acesa e uma refeição quente, um edredom de plumas e uma caneca fume-gante de Bovril. É verdade que Cabelinho desejava demais não ter perdido o Cachorrinho, mas bem de-pressa “despensou” aquele desejo; um Cachorrinho trancado numa arca de tesouro não era um pensa-mento muito agradável.

Mas não fazia diferença o que eles desejassem. Todos sabiam que Peter desejaria melhor do que qualquer um e que era ele quem decidiria o que en-

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contrariam quando finalmente levantassem a tampa da arca do tesouro de Gancho.

Seguiram cantando para se estimularem a per-correr o pequeno trecho de caminho que restava, e a bandeira de arco-íris flutuava bravamente acima de suas cabeças.

Para o alto vamos nós, para o topo sem parar, Vamos direto pra cima, e a montanha conquistar! Desde a primeira letrinha até o ponto final, Desde a saída animada à chegada triunfal, O tempo todo sonhamos nosso tesouro encontrar! Vamos em frente, valentes, atrás de nosso ideal, Nada pode nos deter, seja incêndio ou vendaval, Piratas, bruxas malvadas ou rochedo de metal, Vasto deserto escaldante ou o frio glacial, Nós seguimos adiante, nosso sonho é sem igual! Para o alto vamos nós, para o topo sem parar, Vamos direto pra cima, e a montanha conquistar! Já lutamos com dragões e com ursos colossais, Com índios, fadas perversas e ondas descomunais, Mas somos Exploradores e heróis sensacionais, E cá estamos, vivinhos, como podem constatar. — Só que não lutamos com dragões nem com

ursos... não de verdade — disse o Primeiro Gêmeo. — Mas poderíamos! — argumentou o Segun-

do. E nós vamos lá pra cima, a montanha conquistar! Sempre avante, bem contentes, nessa aventura genial, Nada pode nos deter, medo, neve ou temporal, Nós seguimos adiante, nosso sonho é sem igual! E lá estavam, antes que se dessem conta, sem

ter mais para onde subir. Os lados da montanha des-

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ciam ao redor deles como as dobras do manto de um rei, e suas cabeças estavam coroadas de nuvens.

Do alto do Monte do Nunca, pode-se enxergar Além da Imaginação: acima de todos os obstáculos, acima das cabeças de todos os mais velhos e mais altos; olhando para trás, pode-se lembrar o que se quiser e até onde se quiser; e, para a frente, pode-se ver longe, até onde se pretender ir em seguida. Dá para reconhecer em que trecho do percurso se tomou o caminho errado e o quanto de estrada já se percor-reu. Pode-se olhar os inimigos de cima e superar os medos. O mundo inteiro levanta os olhos com admi-ração para uma criança que está no topo do Monte do Nunca! No píncaro da montanha nevada, os Ex-ploradores contemplavam a ilha inteira, indicando um para o outro os pontos de referência. Avistavam a distante Floresta do Nunca, carbonizada e ainda fu-macenta. Viam a Lagoa amarelada e o estreito que desembocava no oceano bravio. O trajeto que havi-am percorrido a bordo do Galo dos Mares estava ainda escrito no oceano: uma esteira branca de espuma que dava uma porção de voltas e terminava nos destroços de um naufrágio junto ao Rochedo MagNeto. Divi-savam o Recife do Remorso e o aglomerado de ro-chas listradas que escondia o Labirinto das Bruxas.

— Oh, olhe, Peter! Olhe! — exclamou Wendy. — Lá estão as árvores onde você encontrou as fruti-nhas vermelhas para comermos naquela manhã!

Mas Peter não estava interessado na vista. Es-quadrinhava o topo da montanha com os olhos à procura do Tesouro, chutando nuvens de neve, res-mungando de cansaço, frio e frustração. O mapa do

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tesouro, agitado pelo vento, despedaçava-se em suas mãos.

— Onde está? Onde está? — murmurava ele repetidamente.

Desde a lenta transição de verão para inverno pela qual a Terra do Nunca passara, a neve se acu-mulara no Monte do Nunca em pontos onde antes nunca existira. Camadas altas e macias de neve havi-am arredondado o topo rochoso, que se transformara numa cúpula branca sob a qual se escondia o Tesou-ro prometido no mapa.

— Posso ajudá-lo a olhar, meu senhor? — o-fereceu-se Novello, sempre mais lento do que as cri-anças, e que só agora se aproximava do topo.

— NÃO! Você não pode subir aqui! — gritou Peter em resposta. — Este lugar é MEU! Você não pode vir aqui!

— Não — disse o dono do circo, como se isso fosse uma verdade indiscutível. — Não, eu sei. — E contentou-se em observar a paisagem que se estendia embaixo, concentrado, olhando, olhando, mas tam-bém virando a cabeça de lado para ouvir.

Pan cavou a neve com sua espada de pei-xe-espada até a serrilha se gastar e a lâmina ficar lisa.

— Frio! — disse Novello, o que era nada mais que a pura verdade.

Peter usou em seguida um pedaço de ardósia para cavar como se fosse uma pá, e atirou tanta neve para cima que ficou de cabelos brancos.

— Morno — disse Novello... o que era um absurdo naquelas circunstâncias.

Peter cavou com as mãos nuas porque elas já

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estavam frias demais para sentir a dor causada pelo frio.

— Mais quente — disse Novello, de seu pouso mais abaixo.

Então, ouviu-se um ruído oco e Peter sentiu uma superfície dura e lisa que não arranhava os nós de seus dedos, então viu um risco vermelho sob a neve. Tinha encontrado o Tesouro!

Havia um enorme cadeado, mas Wendy veio ajudar, os dois juntos seguraram no punho da espada — ah, e como as mãos de Peter estavam geladas! — e forçaram a alça do cadeado até abri-la. E Peter ficou de pé em cima da tampa abaulada, ergueu os dois punhos no ar, lançou para trás a cabeça de cachos escuros e brilhantes e deu um cocoricó:

“Aaaalto!!” O som que se ouviu foi uma espécie de mistu-

ra de piado de cotovia com pio de gavião. Um berro de triunfo e um grito de guerra e de vingança. Meio voz de coroinha de igreja e meio de delinqüente. O que quer que fosse, não era um cocoricó, e terminou em uma tosse rouca.

— Quente! — sussurrou Novello, e fechou os olhos em um êxtase de felicidade.

A tampa se abriu e ao mesmo tempo se de-sencadeou o vento, e uma coluna espiralada de neve subiu e redemoinhou, espalhando-se por toda parte. Mesmo os que achavam estar cansados demais e com frio demais para se importar com o que a arca pu-desse conter deram por si desejando, e desejando, e desejando que dentro dela encontrassem o que seu

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coração sonhava. — O QUÊ?! — Peter soltou um grito angus-

tiado e mergulhou as mãos dentro da arca do tesouro, atirando fora gravetos, capim seco e turfa.

O Primeiro Gêmeo desejara calor, portanto, ali estava o combustível para fazer uma fogueira.

Peter pôs as mãos na cabeça, desesperado, e suas mãos apareceram cobertas de um pó brilhante que não era neve. Wendy desejara poeira de fadas para que pudessem voar de volta para casa, portanto lá estava a poeira de fadas.

Havia folhas desidratadas de chá e massa de pão, espaguete frio e pudim de sagu — tudo solto misturado ao resto —, pois fora o que os Gêmeos tinham desejado comer quando estavam com fome.

Havia as coisas que se costumam encontrar em arcas de tesouro — dobrões de ouro e sacos de dia-mantes, porque João Darling não conseguia imaginar uma arca de tesouro que contivesse algo diferente. E a tiara de Piuí estava lá, afinal, além de alguns metros de seda indiana.

— Cachorrinho, Cachorrinho, Cachorrinho! — pensou Cabelinho, mas era tarde para desejar que o animal estivesse dentro da arca do tesouro de Gancho. Cabelinho sentia-se culpado. Naquele mo-mento, em algum lugar, um Cachorrinho pequenini-nho estava perambulando pelas tristes geleiras, e por caminhos perigosos, acidentados, cobertos de seixos soltos e cascalho, perdido, só porque ele não tinha desejado com mais antecedência.

Até o Cachorrinho (onde quer que ele estives-se) devia saber desejar melhor que Cabelinho, porque

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havia um suculento osso com tutano preso na dobra-diça da arca. Só não havia nenhum Cachorrinho para comê-lo.

Mas, ainda que todos esperassem encontrar algo de maravilhoso dentro da arca, ninguém conse-guiu compreender por que SININHO estava lá!

Em um canto da tampa, enrolada em um ca-sulo de fios diáfanos de teia de aranha, emergindo como uma borboleta em sua crisálida, uma linda e lânguida fada, pouco maior que a mão de uma crian-ça, espreguiçou-se para despertar, reclamando sono-lenta que alguém deixara uma janela aberta.

— Como pode uma pessoa dormir com uma corrente de ar dessas? — Piscou uma vez, depois outra. — Peter? É você, Peter Pan?

Os Darlings estavam encantados. Reveza-ram-se para segurar a fada na palma da mão.

— Pensamos que você, com essa idade, já es-tivesse morta! — disse Piuí (o que Wendy achou que era uma certa falta de tato).

— E eu estava mesmo — disse Sininho —, ou hi-bernando, é difícil saber a diferença entre uma coisa e outra. — Depois, reclamou que as mãos deles estavam frias demais para se sentar, e que Peter não estava ligando para ela. — As fadas morrem quando não se dã bola para elas, como você sabe!

— Peter, olhe! — exclamou Wendy. — É Si-ninho! Foi você quem desejou que ela estivesse aqui? É ela o seu tesouro?

Wendy teve uma sensação muito estranha ao pensar naquilo. Mas, afinal de contas, era muito no-bre da parte de Peter dar mais valor a uma amiga que

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ao ouro, à prata e aos sanduíches de mel. Peter, no entanto, continuava a escarafunchar

a arca do tesouro, pondo de lado um livro de histó-rias, quebrando um ovo pintado.

Sininho olhou outra vez para ele. — Aah... — disse ela, sonolenta. — Pensei que

fosse Peter Pan, mas não é ele. É o Outro. — E voltou a dormir.

E ali, enfim, enchendo a metade da arca, en-contrava-se O Verdadeiro Tesouro — aquele pelo qual haviam arriscado tudo, o que os tinha levado até lá, até o Ponto Sem Retorno. Peter retirou as peças com delicadeza: uma taça, um troféu, um bastão, uma estatueta, uma cartola, uma placa com o formato de um escudo de cavaleiro, um boné contornado com listras horizontais em vermelho e branco, um remo pintado de azul e verde na extremidade achatada, que ele levou amorosamente ao peito.

Wendy apanhou um troféu em cuja base esta-vam gravados cinqüenta nomes e as palavras TAÇA SPENCER PARA RIFLE, 1894.

— É tudo muito bonito, Peter, mas por quê? Peter não respondeu, apanhou outro e examinou-o, um cálice de prata brilhante.

Cabelinho estava reunindo os gravetos para fazer fogo. A cada momento, a vista da montanha ia-se dissolvendo para o norte, sul, leste e oeste, lam-bida por línguas de neve voadora. Aproximava-se uma tempestade de neve. João chamou Novello, pe-dindo-lhe para trazer fósforos para acender o fogo.

E Peter tinha os olhos presos na taça em suas mãos, o corpo sacudido dos pés à cabeça por arrepi-

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os. Sua expressão embevecida transformara-se em máscara de horror ao ver, encarando-o, seu próprio reflexo. A mesma imagem que vira na ponte de gelo. Estendendo a mão para o lado, Peter segurou a mão de Wendy.

— Não sou eu — sussurrou ele. — Wendy... Não sou eu.

Nesse momento, a figura do criado de Peter apareceu no pico da montanha. Com o tempo ruim que fazia, parecia uma ocasião esquisita para ele em-purrar o capuz para trás. Só as rajadas de vento e ne-ve escondiam agora seus traços.

— Ah! Venha aqui, Novello! — chamou João. — Traga um fósforo, por favor!

Novello aparentemente não o ouviu, embora tivesse ouvido Peter muito bem.

— Não é você, foi o que disse? É verdade! Ora, se é! Você deixou de ser você nas últimas dez léguas. — De novo, deu aquela risada, como o som da maré subindo e inundando a praia. — Não é você, não. Porque você se tornou Gancho. Capitão Gan-cho. Capitão Jas Gancho, o flagelo da Terra do Nun-ca!

Só de ouvir o nome, foi como se um gancho de aço se cravasse no peito deles. Novello encami-nhou-se para a arca do tesouro, pegou com delicade-za uma das taças, encostou-a na face e beijou-a, de-vagar e com carinho. Aproveitou a oportunidade para empurrar Peter com a sola de sua bota.

— Aqui está a prova — disse ele, abraçando o troféu. — Contemplem o tesouro: o mesmo tesouro que o Capitão Gancho deixou aqui tantos anos atrás!

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Há algum brinquedo de menino aqui? Não. Têm algo a ver com o Cocoricó? Não! Somente Gancho, com sua vontade de ferro, sua alma dura como pedra, sua determinação fria como aço poderia encontrar o te-souro que escondeu aqui mesmo! Veja só como ar-rumei você, como o vesti e penteei para o papel, ga-roto! Veja como o preparei para este momento! Co-mo o induzi a desejar os desejos certos para poder encontrar o tesouro certo! Mas, ah, como você me facilitou essa tarefa! Como a tornou ridiculamente fácil! Que grande serviço você me prestou, Pan, e de livre e espontânea vontade! Quanta consideração vo-cê me demonstrou no dia em que vestiu o meu se-gundo melhor casaco!

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Capítulo Dezoito

Morto! — GANCHO! O dono do circo hesitou e estremeceu do fo-

cinho à cauda, como um cachorro que molhou as orelhas.

— Fui, outrora, não sou mais — disse. — Sou o homem que um dia foi Gancho. Olhem para lá, se quiserem ver Gancho! — E apontou para Peter Pan com o gancho de ferro que tinha no lugar da mão direita. — Vejam como está bem vestido com o ca-saco vermelho! Vejam como o cabelo lhe cai em ca-chos sobre os ombros! Vocês, mais que qualquer um, deveriam saber: quando se veste a roupa de alguém,

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você se torna aquela pessoa! Os dedos gelados de Peter tatearam nos bo-

tões da sobrecasaca vermelha (o segundo melhor ca-saco de Gancho) e ele tirou os braços de dentro das mangas. Apesar da gélida ventania que envolvia a montanha em espirais de frio, cortantes como arame farpado, o casaco caiu no chão atrás dele e o vento agitou a túnica fina em torno de seu corpo.

Novello riu. — Você pode tirar o casaco, mas não o que o

casaco fez com você, o homem que se tornou! Nin-guém a não ser um aluno de Eton16 pode desatar a velha gravata da escola! — E era verdade que, por mais que Peter puxasse a gravata branca que trazia ao pescoço, não conseguia fazer o nó deslizar. — Com que boa vontade você me deixou pentear a imagina-ção para fora de sua cabeça! Com que presteza dei-xou-me ajudá-lo a vestir de novo o casaco cada vez que se gastava sua mágica escarlate... mas vejo que seus amigos duvidam de mim, Pan! Conte a eles, en-tão! Conte! Conte a eles como você sonhou os so-nhos de Gancho, como lembrou as lembranças de Gancho. Como sentiu suas decepções de menino, como cedeu aos seus humores! — E pôs-se a guardar taças e troféus, bonés e fitas dentro dos bolsos i-mensos de sua roupa estranha. — Você se transfor- 16 Eton College: nome de uma escola tradicional inglesa, ape-nas para meninos, fundada em 1440 pelo Rei Henrique VI. Destinava-se a atender originalmente apenas nobres ou os filhos da elite da cidade, os “oppidan”, que pudessem pagar a alta mensalidade. O personagem Gancho teria estudado em Eton. (Nota da Editora.)

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mou em Jaime Gancho, e a prova está aqui! Estas são as coisas que ele mais ama, e só VOCÊ podia desejar que estivessem aqui! Por isso é que eu precisava de você.

— Não! Não! Sou Pan! — protestou Peter, ar-rancando as lustrosas botas de couro. — Sempre se-rei criança e não há ninguém como eu! Sou a Úni-ca-e-Exclusiva-Criança!

O Homem Esfiapado bufou, desdenhoso. — Chame a si mesmo do que quiser, mosqui-

to. Seu verão acabou e o inverno está aí. Os pequenos, com frio demais e sem entender

bem o que estava acontecendo, abraçavam-se para se aquecerem.

— Podemos voar para casa agora, Wendy? Para algum lugar quente?

Wendy sacudiu a cabeça com ar enérgico e foi de um para outro esfregando punhados de poeira de fadas nos cabelos deles.

Novello ficou olhando. Quando ela terminou, ele perguntou em um tom de voz muito doce:

— Como? Sem as suas sombras? Impossível, sinto muito, stupidi bambini17. Vocês podem ter poeira de fadas à vontade. Podem ter pensamentos alegres (o que duvido muito). Mas sem sombra ninguém pode voar. Por que acham que eu as tirei?

Enfiou a mão dentro do baú de bordo e le-vantou as sombras, todas muito bem enroladinhas como se fossem cortinas de rolo, frágeis e endureci-das pelo frio. Os Gêmeos aproximaram-se com as

17 “Meninos tolos”, em italiano. (Nota da Editora.)

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mãos estendidas, mas ele, provocando-os, ergueu os rolinhos acima de suas cabeças.

— Quer dizer que vai manter nossas próprias sombras como reféns? — perguntou Peter.

— Céus, não, mosquinha. Não mantenho ca-tivos. Tenho horror de prisões. Pergunte a qualquer um dos meus animais. Vou libertar suas sombras para que sigam seu caminho!

Gancho então abriu sua única mão e largou as sombras — nos dentes aguçados do vento. As silhu-etas de seis crianças saíram dançando acima do abis-mo, revirando-se, batendo, enrolando-se em uma só bola encardida. Cada um dos Exploradores sentiu uma dor aguda quando sua sombra rasgou-se em far-rapos com a força da ventania.

— Gancho, você é um canalha, um patife. Só o diabo é capaz de roubar a sombra de uma pessoa!

Novello fez um gesto de pouco caso com uma das mangas.

— Caso vocês vivam muito, o que é bastante improvável, elas crescerão de novo. Cada vez que um homem sofre, sua sombra aumenta. Não notaram como arrasto atrás de mim uma sombra que parece um vazamento da fábrica Quink de tintas de escre-ver?... Mas, é claro, vocês ainda não escutaram a mi-nha triste história, não é? Ah, deveriam, deveriam! Sei que crianças adoram ouvir histórias! Então, dei-xem-me contá-la. A história do Capitão Jaime Gan-cho, está bem? Um homem que antigamente eu apre-ciava com entusiasmo, devo confessar. Um homem com força e vitalidade para galgar qualquer monta-nha, caçar qualquer tesouro... Prestem muita atenção.

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E começou a contar a história de sua vida. — Era uma vez um menino, Jas Gancho. (Por

que as crianças acham tão difícil acreditar que os a-dultos um dia foram pequenos?) Ele era uma criança exatamente como vocês... só que melhor! Ele se desta-cava! Citem qualquer esporte, e Jaime Gancho o do-minava. Nas quadras de esportes do Colégio Eton, ele poderia ter deixado escrito seu nome em letras tão grandes que seriam vistas das constelações do Espaço Cósmico! O latim que se danasse. A matemática que fosse para o inferno. As línguas estrangeiras que con-tinuassem sendo um mistério. Gancho era um espor-tista! Vencer era tudo para ele. Bastaria ver seu nome nas taças de esportes da sala de troféus de Eton e seu coração se encheria de felicidade para sempre! Assim como você, Pan, desistiu de tudo para não crescer nunca, eu... arre!... ele, Gancho... desistiu de tudo para ser o melhor, o mais rápido,

O mais forte, o mais alto, o que estava em melhor forma física... Por Júpiter, como eu me man-tinha nos trinques!

O vento norte uivava ao redor do Monte do Nunca. Sempre que Novello fazia uma pausa, o vento o substituía, intimidando as crianças.

— Mas mães são sempre mães. E as mães pre-cisam pagar as contas de suas costureiras antes de pagar outras bobagens tais como mensalidades escolares. Assim, os sonhos de Jaime Gancho terminaram com o fútil farfalhar de uma saia de tafetá. Minha... a mãe dele chegou no Dia dos Esportes para tirá-lo da es-cola. Os outros meninos estavam competindo por prêmios que, mais um dia, seriam dele; por honrarias

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e louros que seriam... — Ele se calou, imaginando a mão do Diretor estendida para ele, escutando os vi-vas dos meninos da School House, os internos que moram na casa do Diretor... Levantou a cabeça; a-prumou os ombros. Mas a Decepção golpeou-o de novo, igual a uma cólica de estômago.

— Como Gancho não podia vencê-los de forma justa e honesta, esvaziou a sala de troféus e levou consigo todos os prêmios esportivos. Seu Te-souro. Seus objetos do desejo.

Os Exploradores perderam o fôlego, boquia-bertos:

— Você roubou as taças da sua escola? Novello apanhou um lenço cheio de furos e manchas de ácido e assoou o nariz.

— Não foi uma atitude de bom-tom, tenho de admitir, mas se mães são sempre mães, então meni-nos também são sempre meninos. Ou piratas, no meu caso. Assim começou a vida de crimes de Jaime Gancho. Na viagem de volta para casa, ele decidiu: cortaria seus laços com o país e a família e iria para a Terra do Nunca — este único lugar do mundo onde um menino pode dar a forma que quiser a seu desti-no! Veio de avião. Aqui, neste lugar, o avião caiu. Neste lugar, ele deixou seu Tesouro e arrastou sua carcaça para baixo, para a Lagoa, para uma vida de cobiça e pilhagem. Mas seu coração permaneceu aqui em cima, e sempre planejou voltar um dia para reen-contrá-lo. E era o que eu teria feito! Teria... Se não fosse o Pan a atrapalhar tudo!

— Esse verme na carne. Essa espinha de peixe na goela. Essa malária no sangue! Primeiro, ele tirou a

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minha mão direita... quer dizer, a mão de Gancho, a mão de jogar boliche, a mão de girar a roda do leme do barco, a mão de remar e esgrimir e... Mas deixe-mos isso para lá. Depois, ele confinou Gancho à bar-riga de um crocodilo! Rá! Acham que esta montanha é um lugar horrível para morrer? Deviam experimen-tar viver dentro de um crocodilo de água salgada! Um túmulo sem luz, sem ar, inundado de fluidos digesti-vos; com um relógio desmantelado e sem corda enta-lado nas costas e quase sem espaço para se virar. Que sepultura pode ser pior? Ele sobrevivia dos ovos do Crocodilo, que era fêmea. (Sabiam que era uma fê-mea?) Oh, como Gancho se familiarizou com a ana-tomia interna de um crocodilo-fêmea de água salgada! Todos os dias, o ácido estomacal o queimava e o mau cheiro o sufocava... Mas eu me recusei... Gancho recu-sou-se a cair morto e sair do jogo. Seus dias de grandes caçadas, de muitas presas abatidas, tinham ficado pa-ra trás; deitado ali, passando por sua metamorfose, Gancho pensava apenas em vingança!

— Que começou ali mesmo, espontânea, sem que fosse necessário levantar um dedo. Pois o frasco de veneno que ele conservava sempre no bolso da camisa, rachou e vazou e soltou seu veneno no Cro-codilo, na Lagoa, na... — O amplo gesto do gancho na ponta de seu braço estendido abrangeu toda a paisagem de inverno que rodeava o Monte do Nunca. — Enfim, quando o animal morreu envenenado, ele abriu caminho com seu gancho para sair de dentro da barriga da criatura. E fez para si um par de botas com o que restou da pele. Eu não aceitaria — droga! — ele não aceitaria que a morte o derrotasse, como vêem!

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— Mas o homem que se esgueirou para a cla-ridade do dia não era Gancho. Era o que restava dele, um homem digerido. Fora-se o casaco escarlate, as calças compridas, o cabelo brilhante. O orgulho. Tu-do se desintegrara — carne, cabelo, casaco, cor e al-ma, na bílis do Crocodilo. E o sono — ah, que ago-nia! — a dádiva do sono também se fora! Tudo o que emergiu foi isso... essa MOLEZA de homem! Uma coisa parecida com uma esponja. Uma coisa que pa-rece uma coisa morta. De minha exuberante desen-voltura até a minha roupa de baixo, tudo se frisara e encrespara em um amontoado de lã! A Ganchonice de Gancho fora corroída e só restava Novello, o Homem Esfiapado! Até meu velho e querido navio apresentou-se a você, Pan, em vez de vir a mim! Por mais que tentasse, não fui capaz de fazê-lo sair da Lagoa — não consegui atraí-lo para mim, pois eu não tinha mais nenhum magnetismo! O ferro de minha alma enferrujara-se todo, sabem, durante a minha permanência na salmoura de águas sujas da barriga do Crocodilo!

— Senti um certo consolo quando verifiquei que o mundo também mudara durante o meu aprisio-namento: como o meu vidrinho de veneno agira da pior maneira possível na Terra do Nunca, infiltran-do-se pela Floresta do Nunca e pelos pântanos; comprimindo os meses de verão como uma câimbra até o próprio ano se dobrar de dor!

— Não restara muita coisa de Gancho, como disse, neste miserável animal peludo, nesta chinchila que estão vendo. Somente uma triste obsessão, a do anseio. Só o antigo e profundo anseio de recuperar

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seu Tesouro, de ir buscá-lo no lugar remoto em que o deixara. E havia a considerar a maior ironia de todas nesta infernal Divina Comédia: Eu não possuía mais a capacidade de desejar!

— Assim como não conseguia dormir, tam-bém não conseguia desejar. Só a vontade de ferro de Jaime Gancho seria capaz de abrir aquela Arca do Tesouro e encontrar o meu... dele... nosso... ora, com seiscentos milhões de agulhas, novelos e carretéis! — o Te-souro enterrado aqui.

— E aí, vejam só como encontrei um suplente para mim. Um representante. Um substituto. O único na Terra do Nunca cuja força de vontade se igualava à de Jaime Gancho. E você não me agradece? Ah, o que eu não daria para me parecer de novo com Gan-cho, para me pavonear como Gancho, para fazer alari-do e aterrorizar como Gancho! Você devia estar agra-decido, Pan! Pense como o fiz avançar, com avidez e lisonja — como esgotei o Pan de dentro de você e troquei-o por cólera e tirania. Veja como, apenas com um casaco, uma gravata e botas, transformei você, um garoto mirrado, de uma simples criança no maior pirata de todos, no Capitão Jaime Gancho!

— NÃO! Não, não, eu sou Pan! — disse Pe-ter. — Vou ser sempre criança e ninguém no mundo inteiro jamais será igual a mim! E você, Gancho, será sempre meu inimigo declarado e não vou descansar enquanto...

— Tolice. Você é só fogo e fúria, rapaz. — Novello abanou a mão com indiferença, como se es-pantasse uma mosca. — Agora que perdeu, deveria cultivar a paciência. Como eu. Uma temporada den-

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tro de um anfíbio de água salgada acalmaria você, permita que lhe recomende... Mas chega de rancores. Dê-me sua mão. Você se prestou bem ao seu objeti-vo, pequeno Capitão. Já tenho o que vim buscar aqui. Apertemos as mãos e vamos fazer as pazes.

E ele de fato estendeu sua única mão, dentro da manga excessivamente comprida, para ajudar Peter a se pôr de pé. Peter atacou-o violentamente com a espada, mas a lâmina denteada apenas se emaranhou na lã da manga e a mão dentro dessa manga agarrou a mão dele com uma força extraordinária.

— Como é feroz! O que você teria sido, fico imaginando, se tivesse chegado à idade adulta, se não tivesse optado pela eterna infância. Teria sido um pirata como eu?

— Nunca! — Não? Um piloto, então. Ou um ator, indo

dez vezes à frente do palco depois das peças para re-ceber o aplauso de seus fãs devotados! Um homem de posição, não duvido! Um herói... Ah, espere aí, já sei! Claro! Um explorador! Que descobriria novas ter-ras, e seu nome seria escrito em letras de ouro nos mapas dos treze continentes!

Na mão de Peter, os fiapos oleosos de lã co-meçaram a desprender-se, desemaranhar-se, desen-redar-se. O entorpecimento do frio, as rajadas verti-ginosas de vento e neve, as palavras que Novello sal-picava em cima dele como pitadas de sal, tudo isso fazia Peter pensar mais lentamente. As palavras vi-nham junto com imagens, presas nelas como etique-tas de presentes balançando, e ele realmente quase conseguia enxergar como seria sua vida se fosse...

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— O que, então, o quê? — Gancho o pres-sionava, sorrindo um sorriso largo, sorrindo o tempo todo. — Não, não seria um explorador. Seria alguma coisa mais fácil? Algo que não o sobrecarregasse tan-to?

Peter empertigou-se todo. Novello pensava que ele não estava à altura de ser um explorador? Que absurdo! Ora, Peter quase podia imaginar...

— Não responda a ele! Uma figura subiu aos tropeções para o pico —

um rapaz que ninguém reconheceu — até verem as pontas de sua camisa de traje a rigor flutuando por baixo de seu casaquinho apertado.

— Deleve! — Não responda a ele, Peter! — gritou Deleve,

apontando sua clarineta para o Homem Esfiapado. Wendy correu para perto de Deleve. Sentiu-se

um tanto embaraçada com o tamanho dele, mas não se conteve e abraçou-o.

— Ah, você acabou não virando um Desen-gunço afinal! Você nos seguiu! Como deve estar sen-tindo frio nas pernas, coitado! Se soubesse, teria feito um casaco maior para você!

— Não responda a ele, Peter! — repetiu Deleve, sem tirar os olhos de Novello nem por um instante.

— Ele me fez a mesma pergunta: — O que você quer ser quando crescer? — e a lã se desfez em minha mão, e naquele momento... naquele exato momento, comecei a crescer. Eu descobri tudo, ouviu, Homem Fiapento?

Novello deu sua risada estranha, submersa, embora estivesse visivelmente irritado.

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— Deleve-levemente-mais-esperto agora, pelo que vejo.

Peter Pan levantou os olhos para Gancho, in-crédulo.

— Você iria me fazer crescer? Fingindo me dar um aperto de mão?

Gancho rebateu a acusação encolhendo os ombros com garbo.

— Eu, não. Você mesmo. No momento em que uma criança responde à pergunta: “O que você quer ser quando crescer?” já está a meio caminho de ser um adulto. Traiu a infância e Olhou à Frente. Juntou-se à categoria daqueles empregados de escritório, ajudan-tes de cozinha e empacotadores de lojas que exami-nam as colunas de empregos nos jornais.

— Apertou mais ainda a mão de Peter e le-vantou o menino inteiro até bem perto de seu rosto. Era um rosto terrível, marcado pelo sofrimento, pelo pesar, por suco gástrico de crocodilo e por ódio. — Diga-me que você pensou mesmo à frente quando perguntei! Diga que se imaginou crescido, remando sua canoa pelo rio Amazonas acima, ou puxando o seu trenó pelos bancos de gelo rumo ao Sul de Ver-dade! Maldição, Deleve! Mais um pouco e eu teria feito o que nenhum pai ou mãe poderia fazer: teria roubado a infância do menino Pan!

Deleve ainda estava apontando um dedo acu-sador para Gancho. E ainda vociferava:

— Esse homem disse aos Desengunços que você os envenenou, Peter, e os fez crescer, mas eu digo que foi ele! Foi ele que os envenenou!

— Ele envenenou toda a Terra do Nunca! —

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rosnou Peter. Seu rosto e o do pirata estavam tão próximos que os narizes se tocavam. — Eu devia retalhá-lo até os ossos, vilão!

— E não encontraria nada lá a não ser meu ódio por você, Peter Pan — replicou Novello, e ati-rou-o no chão.

Durante esse tempo todo, os Gêmeos tinham corrido para lá e para cá tirando gravetos da Arca do Tesouro para fazer uma fogueira. Assim que empi-lhavam duas braçadas de lenha, a ventania as espa-lhava. (A tempestade de neve piorava a cada minuto, açoitando o cume da montanha com golpes de neve.) Deleve foi socorrê-los, prendendo a madeira do lugar com os sacos de ouro e rolos de seda que também estavam dentro da Arca do Tesouro.

— Estou tão contente por você não ter virado bandido, Deleve! — disse o Primeiro Gêmeo com uma fungadela.

— E nem ter se esquecido de nós, Deleve! — disse o Segundo.

O que mais Deleve poderia ter feito, porém, sabendo do perigo que corriam? Que alternativa a não ser seguir suas pegadas todo o caminho desde o Ponto sem Retorno? Deleve agora era adulto, e em-bora crescer seja uma praga e uma chateação, os a-dultos têm um grande mérito: eles não conseguem deixar de zelar e continuar zelando pelas crianças.

Portanto, Deleve ajudou os Gêmeos a preparar a fogueira que poderia salvar seus amigos da morte por congelamento no alto do Monte do Nunca. João correu para o baú de bordo para pegar fósforos, mas Novello bateu com a ponta da bota na tampa, fe-

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chando-a com um estrondo, e deu-lhe um empurrão com o pé, o que a fez rolar até a beirada do precipí-cio.

— Dê-me um fósforo, pirata — exigiu João. — Não fale com ele! — ordenou Peter, com

voz áspera. — Eu o bani para a Terra de Lugar Ne-nhum e ninguém pode mais falar com ele. Vou acen-der o fogo como sempre fiz na lareira da Cabana da Wendy! Com a Imaginação!

Entretanto, apesar de se esforçar, de fazer de tudo, apesar de bater com a cabeça no chão e puxar desesperadamente com os dedos os cabelos brilho-sos, Peter não conseguiu imaginar fogo, assim como não conseguira imaginar as refeições deles. Novello tinha tirado com o pente a Imaginação para fora das pontas do cabelo dele, vejam só.

Os Gêmeos tinham certeza de que seriam ca-pazes de fazer fogo. Afinal de contas, não tinham incendiado a Floresta do Nunca para matar o dragão de madeira? Mas Novello deu sua risada sem alegria.

— Rá! Acham mesmo que foram vocês, Dop-pel-kinder 18 ? Fui eu quem incendiou a Floresta do Nunca! Soltei meus bichos. Despedi meus emprega-dos do circo (Desengunços, todos eles). Botei fogo em minha linda tenda... queimei minhas pontes. Pois assim que vi a menina Wendy, soube que minha es-pera terminara. Chegara a hora da vingança. O que é um circo em comparação com a doce vingança?

O ar enchera-se de flocos de neve — como se um travesseiro de plumas tivesse arrebentado. Sem o

18 “Meninos duplicados”, em alemão. (Nota da Editora.)

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casaco vermelho, Peter tiritava de frio e lutava para tirar a gravata branca de seu pescoço.

— Um fósforo, Novello. Vamos acender essa fogueira e conversar depois! — pediu Cabelinho.

— Um fósforo, Novello. Depressa! — insistiu Piuí.

— Não está sentindo frio também? — Qual é a palavrinha sem a qual nada se faz? — disse o Homem Desfiado, a voz alta e

zombeteira. Os Exploradores sentiram vontade de man-

dá-lo para a Terra de Lugar Nenhum e nunca mais terem de falar com ele.

— Por favor — disse Wendy, friamente. — Por favor — disse Cabelinho. — Por favor — disse João. Novello deu um puxão na corda e trouxe o

baú de bordo sobre rodas de volta a seus pés como um animal de estimação disciplinado. Abriu a tampa e tirou de dentro do baú uma caixa de fósforos, sacu-dindo-a devagar: um som igual ao de um chocalho de bebê. Só restava um fósforo.

— Digam-me outra vez. Qual é a palavrinha? — Por favor — disse Piuí. — Por favor — disseram os Gêmeos em coro.

(Ah! Agora entendi! — disse Peter para si mesmo, tendo resolvido o enigma.)

— POR FAVOR! — pediram todos, menos Peter.

— ERRADO — disse Novello, riscando o fósforo no queixo áspero, sem barbear. O clarão ilu-minou seu rosto. Era um rosto lamentável, marcado

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pelo tempo passado dentro do Crocodilo, marcado pelo tempo passado onde o tempo não deveria pas-sar. Só a aristocrática inclinação da cabeça e o ardor dos olhos castanhos desbotados provavam que o i-nimigo mortal de Peter Pan, o Capitão Jaime Gan-cho, ainda vivia dentro dele.

— Deixem-me pensar agora. Qual é mesmo a tal palavrinha? Ah, sim. Agora me lembro...

Então, ele soprou o fósforo e disse: — MORRAM!

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Capítulo Dezenove

Queimado O vento golpeava a montanha com violência.

A tampa da arca escarlate do Tesouro, ainda meio enterrada na neve, batia impelida pelas rajadas, a-brindo e fechando, abrindo e fechando. Mas o velho e surrado baú de bordo que Novello empurrara por toda aquela distância em cima das rodas com molas, esse o vento sacudiu, e balançou, e empurrou como se fosse um carrinho de criança desgovernado. O baú rolou pela borda do precipício, descreveu uma curva no espaço e caiu, caiu espalhando saleiro, louça, ma-pas, ferramentas e barbantes. Nem o ouviram bater no chão lá embaixo; a tempestade de neve caía com força sobre eles, cobrindo-os de pedaços de gelo, enchendo de neve suas orelhas e olhos e mãos.

— Agora você também vai morrer, Gancho! — exclamou Peter Pan.

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O pirata do circo deu de ombros. — Pode ser. Não tem importância. Fiz o que

pretendia fazer. Tenho o meu Tesouro. O que mais me resta?

— E está feliz com seu “Tesouro”? — per-guntou Wendy, enérgica (porque as mães sempre fa-zem questão de mostrar que a maldade não traz ale-gria, que o crime não compensa, que os ladrões não prosperam).

Uma dolorosa confusão perturbou o rosto marcado de Novello.

— Como posso saber? — perguntou, pegando a Taça da Maratona e acariciando suavemente seu nome, agora magicamente gravado na base. — A feli-cidade é um prato de que nunca provei antes. Mas há realmente dentro de mim uma sensação curiosa que me lembra bolo de chocolate. E fogos de artifício. E a música do senhor Elgar.

Wendy desconfiava seriamente que aquilo tudo era mesmo Felicidade, mas não disse nada para não incentivar o mau caráter de Gancho.

João ocupou-se em esfregar dois gravetos para tentar obter uma fagulha. Mas até os gravetos esta-vam tiritando de frio. Cabelinho tentou construir um iglu com a neve, onde pudessem se abrigar até a ne-vasca passar. Mas os iglus não são feitos de neve sol-ta. Piuí sugeriu que cantassem para não perder o â-nimo, porque é isso que os heróis fazem quando as coisas ficam pretas.

Aí, Novello deu a risada mais esquisita e ele próprio começou a cantar:

Tempo alegre pra remar, Brisa da ceifa do feno a so-

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prar, A pá do remo virando, À sombra das árvores... Era uma canção de Eton. Peter — apesar de

não querer ser um menino de Eton, não querer saber a letra da canção, não pôde resistir. E cantou como se estivesse dando tiros de canhão no pirata, e que cada palavra pudesse abrir um furo nele.

Em Rugby, podem ser mais inteligentes; Em Harrow, podem remar mais vezes. Mas nós remaremos pra sempre Fir-mes do voga à proa...

A nevasca arrancava fios de cabelo de suas ca-beças. Rasgava as costuras de seus casacos de cober-tor. Arremessava neve em seus rostos e lançava ava-lanches montanha abaixo, que se precipitavam com estrondo ensurdecedor. A saliva congelava em suas bocas.

As palavras da canção chacoalhavam dentro delas como cubos de gelo. Se não estivessem de bra-ços dados e apertados uns contra os outros, o vento os teria empurrado do alto do Monte do Nunca para o vazio do céu.

E nada na vida vai romper A corrente que agora nos rodeia. E nada na vida vai romper A corrente que agora nos rodeia. Se vocês acham que Sininho foi socorrê-los,

devo informar-lhes que se enganaram. O desejo trouxera Sininho de volta de um lugar para lá de Es-tranho, e as asas dela ainda estavam pesadas, cheias do visgo da Improbabilidade. Sininho aconchegara-se para voltar a dormir dentro da arca escarlate do Te-souro.

— Que frio... — disse ela, cochilando. — Que

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barulheira... ...E a juventude ainda estará em nossos rostos Quando dermos vivas para uma equipe de Eton. ...E a juventude ainda estará em nossos rostos Quando... As palavras perderam-se no espaço, como se

fugissem para o grande silêncio que os aguardava. O Monte do Nunca caíra nas garras do inverno, e essas garras iriam sacudi-los até a morte.

Súbito, como uma vespa voando para uma mesa de piquenique, algo passou correndo pelos Ex-ploradores, e não era um floco de neve. Fulgurante como um carvão em brasa, pousou na argola do ca-deado da arca do Tesouro.

— PIRILAMPO! Na Terra do Nunca, uma arca de Tesouro

contém o maior desejo daquele que procura o dito Tesouro e, sem que ninguém soubesse, havia sido Pirilampo quem desejara Sininho.

Desde aquela primeira referência que desper-tou seu interesse — Você conhece a Sininho? —, a ima-gem que fazia dela não saía da cabeça de Pirilampo, reluzindo na pequena e escura cápsula de sementes que era o seu craniozinho de elfo. Tudo o que escu-tava sobre a fadazinha dava-lhe vontade de conhe-cê-la mais. Importunava Deleve com perguntas in-cessantes e chegara à conclusão de que Sininho — que se dispusera a tomar veneno e contava mentiras maiores do que albatrozes —, era maravilhosa demais para estar morta. Agora, ao ver Sininho, sua cobertu-ra açucarada de poeira de fadas brilhou com o calor do Amor-à-Primeira-Vista. E foi tanto que chegou a

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derreter o verniz da arca. Sininho abriu os olhos, mas pelo jeito achou

que Pirilampo fosse parte de um sonho, porque se limitou a dar um sorrisinho de quem se desculpa e disse:

— Tanto frio... Frio demais. Tenho de ir agora. E então uma onda de neve turbulenta levan-

tou-se entre ambos como um exército de fadas com ciúmes.

— As fadas morrem quando as outras fadas não li-gam para elas — reclamou Pirilampo, mas ela não lhe deu atenção. Depois de mais uns instantes, Pirilampo anunciou, solene:

— Eu é que não vou acender porcaria de fogueira ne-nhuma. NÃO VOU. EU ME RECUSO. NÃO VOU MESMO!

(Bom, vocês têm de lembrar: o que ele sabia fazer melhor era mentir.) E mergulhou como uma gota de ouro derretido na lenha empilhada.

— Oh, Pirilampo, não! — gritou Wendy. — Você vai se queimar todo! — gritou Piuí. — Ah, meu querido idiota! — gritou Deleve. Sob o peso da neve, a pilha de lenha da fo-

gueira cedera e se espalhara. A essa altura, parecia impossível que qualquer coisa pudesse acendê-la. Mas Pirilampo conseguiu. Gradualmente, os gravetos passaram de brancos a marrons, depois de marrons a alaranjados e então, com um estalar cacarejante, as chamas ergueram-se, vivas, fortes, atiçadas pelo vento uivante em um resplandescente fogaréu. O calor do corpo de Pirilampo acendera a fogueira, e o Monte do Nunca ostentava em seu topo uma chama triunfal,

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visível de todos os pontos da ilha. Algumas labaredas queimavam com a mesma

cor de Pirilampo. As cinzas que voavam para o alto pareciam pequenas asas carbonizadas. A Companhia desviou os olhos e cobriu o rosto com as mãos, pre-ferindo não ver o que acontecera com o pequenino elfo corajoso... todos, menos Peter. Chegou tão perto do fogo que as chamas o rodearam como um halo e suas sobrancelhas foram chamuscadas; e ele se incli-nou para enxergar melhor, e espiou, e chamou, e re-mexeu o fogo com sua espada de peixe-espada, ten-tando salvar Pirilampo de seu flamejante fim. A es-pada desfez-se em pedaços com o calor.

— Cuidado, Peter! — alertou-o Wendy ao ver as brasas espalharem-se por cima dos pés dele.

— Jurei que permaneceria fiel a vocês o tempo todo, que não os abandonaria! — respondeu ele. — Mas, ah, que elfo, esse!

— Que mentiroso de marca maior! — con-cordou João, admirado.

— Igual a Sininho nos velhos tempos! — disse Cabelinho.

Então, Sininho acordou de vez e de verdade. Algo emocionante estava acontecendo. Vidas esta-vam em jogo. Havia gente se lembrando dela com afeto... além disso, outra fada estava recebendo toda a atenção das pessoas. Era o bastante.

— Espere aí, rapaz! Sininho disparou para o fogo na intenção de

seguir Pirilampo, mas a sonolência tornara seus mo-vimentos menos ligeiros e a mão de Peter foi mais rápida, apanhando-a no ar, segurando-a com firmeza.

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— Já tivemos perdas demais para um dia — disse ele, com voz rouca.

Enquanto isso, algo extraordinário acontecia. Pois, para começo de conversa, não havia muitos gravetos, nem turfa, nem tanto capim seco assim dentro da arca. Além do Tesouro de Gancho, dos ossos para cachorro, da seda, do sagu e do ouro, res-tara muito pouco para os Gêmeos usarem como combustível. A fogueira que montaram era muito pequena. E, no entanto, o fogo subia mais alto e bri-lhante que o de qualquer fogueira acesa na noite da Armada Espanhola19. Sinal de que combustível má-gico devia ser mais potente.

As crianças conseguiram assar a massa de pão e cozinhar o espaguete, derreteram neve e prepara-ram um galão de chá. Enviaram sinais de fumaça pe-dindo socorro (embora a nevasca fizesse de tudo para desmanchá-los). Por fim, a fumaça envolveu os flo-cos de neve em seu cachecol e levou-os embora. Ao sentir o calor em seu topo, a montanha teve recor-dações da infância. (Havia sido um vulcão antiga-mente, não se esqueçam.) Ao contrário de Peter ou Gancho, talvez a montanha só tivesse boas recorda-ções de seus tempos passados, porque lembrar deles a fez sorrir.

Ah, sei que não é comum — pode ser que nunca tenha acontecido antes ou desde então — mas 19 A autora se refere a um episódio da história da Inglaterra, em 1588, quando a Marinha inglesa venceu a chamada “In-vencível Armada” espanhola enviando navios-fogo (navios não tripulados, que carregam combustível) que fizeram explo-dir a maior parte dos navios inimigos. (Nota da Editora.)

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a montanha sorriu; não há outra palavra para descre-ver o que houve. Todas as suas quebradas se emen-daram. Ela flexionou os músculos de suas quatro fa-ces — norte, sul, leste e oeste — e as geleiras se ra-charam e as pontes de gelo se partiram e a neve não conseguiu mantê-la sob seu domínio. As árvores a-pareceram, espantadas, e sacudiram a neve que cobria seus cabelos. A relva cresceu, primeiro curtinha como a barba rala de um adolescente, depois farta como as barbas de um vovô. As cachoeiras descongelaram-se, jorrando água aos borbotões e surpreendendo as flo-res, que então se abriram.

No topo do Monte do Nunca, caça e caçador, vilão e herói, criança, adulto e fada estavam postados em círculo, mão, joelho ou asa encostados, encaran-do-se como animais dentro de um poço. Viram a tempestade de neve ser soprada para longe e sumir a distância na direção do mar, até ficar do tamanho do avental de Wendy que voara do varal. As labaredas da fogueira enfim se extinguiram.

— Tenho de ir procurar aquele bobão, acho eu — disse Sininho com um suspiro de cansaço extremo (apesar de suas asas estarem palpitantes, com uma dezena de cores muito vivas, revelando a sua excita-ção). Tanto se contorceu que se soltou da mão de Peter e voou direto para as cinzas fumegantes da fo-gueira, desaparecendo no mesmo instante com um chiado e um estalido. Duas fadas pequeninas não produzem muita claridade, mas o lugar pareceu mais escuro sem elas.

— Temos de lutar, você e eu — disse Peter para o Homem dos Fiapos.

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— Com quê? — caçoou Novello dando-lhe as costas. — Escolha as suas armas-não-existentes. A-lém do mais, somos ambos oppidans, alunos de Eton. Não é de bom-tom fazermos um rififi, muito menos na frente das damas. — E saudou Wendy e Piuí, a ponta dos dedos tocando a linha do cabelo frisado, depois se afastou dando um pulinho satisfeito, com suas botas de pele de crocodilo.

Peter precipitou-se atrás dele: — Vamos acabar com isso aqui e agora, seu covarde! E sentiu o gancho de ferro roçar em seu rosto

quando Novello virou-se e o manteve afastado. — Acha mesmo que é você quem decide,

formiga? — sibilou Novello. — Nunca jogou um jogo chamado “Conseqüências”?

Arrebatando de Peter o mapa esfarrapado do Tesouro, ele fingiu escrever, com o gancho em vez de uma pena.

Era uma vez: Um menino chamado Pan. Em um lugar chamado: Terra do Nunca Que encontrou um: pirata chamado Jas Gancho E eles lutaram até a morte E em Conseqüência disso... — Jaime Gancho virou comida de crocodilo! —

completou Peter, triunfante. — Ah, sim! — rebateu Gancho. — Mas toda

conseqüência acarreta outras conseqüências, meu ca-ro! Tudo o que se faz acaba voltando para nos as-sombrar, nos obcecar: cada inimigo que você lança aos crocodilos, cada menino que você manda embo-ra. Será que pensa mesmo que vai algum dia rever a Floresta do Nunca, agora que arranquei suas asinhas?

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Você já me colocou dentro de um caixão uma vez: no meu caixão-crocodilo. Acha mesmo que pode matar um homem que voltou da morte? Leia seus livros de histórias... Ah! Já ia esquecendo: você não sabe ler, não é, ignoramus minimus20? Tenho de ensinar-lhe, en-tão: não constitui grande proeza um explorador al-cançar seu objetivo. A viagem de volta para casa é que acaba com ele. O relógio quebrado está tiquetaque-ando. Prepare-se para enfrentar as Conseqüências de seus atos passados! Não preciso matar você, cocori-có: vou deixar essa tarefa para a Terra do Nunca!”

20 “Ignorante sem importância”, em latim. (Nota da Editora.)

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Capítulo Vinte

Má sorte A fogueira transformara-se em um negro a-

montoado de carvão. Os Gêmeos tiraram dois peda-ços de lá, desenharam um retrato de Novello na ro-cha e jogaram pedras nele. Wendy, que vinha obser-vando o rosto de Peter desde que o pirata se fora, apanhou outro pedaço e escreveu em letras grandes no ponto mais alto e saliente do rochedo:

Monte de Pan — E então? Gostou? — perguntou ela, orgu-

lhosa, recuando e limpando as mãos em seu vestido feito de bandeira de pirata.

— De quê? — disse ele, sem compreender, pois não sabia ler.

Wendy então desenhou um galo com o bico aberto, gritando:

“CÓ-CORI-CÓÓÓ!” E Peter compreendeu e sorriu. Um sorriso

fraco, esgotado. Seus dedos ainda estavam engan-

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chados na gravata branca de Eton, que lhe rodeava o pescoço como um nó de forca.

João, que também queria desenhar na rocha, puxou dos restos da fogueira mais um graveto ene-grecido... e encontrou um elfo sentadinho na ponta, sujo de preto da cabeça aos pés. Igual a um pingo de tinta.

— Pirilampo! Você está vivo! — Naturalmente — disse o pingo de tinta. Todos o rodearam, muito animados, e Piuí

preparou uma pequenina banheira com uma xícara de chá frio.

Assim que o elfo afundou e desapareceu, fa-zendo o chá ficar preto de fuligem, outra voz atrás deles disse:

— Não acreditem em uma só palavra do que ele fala. Ele é TÃO mentiroso, esse menino!

E uma Sininho igualmente suja saiu com uma certa dificuldade dos restos da fogueira, tirando Piri-lampo com maus modos de dentro da xícara.

— Primeiro as damas — disse ela, e mergulhou no chá.

Todos tiveram de fechar os olhos enquanto ela se lavava.

— Quer dizer que as fadas são realmente à prova de fogo — observou João, que possuía uma curiosidade científica a respeito dessas coisas.

— Só às quartas-feiras — afirmou Pirilampo, ca-tegórico.

— Acho que hoje é sexta-feira — disse Cabe-linho.

— Oh, céus. Então devo estar morto — concluiu

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Pirilampo. A partir daí, Sininho e Pirilampo só falavam

um com o outro, porque estavam muito apaixonados. Pareciam não ouvir nada do que se dizia a eles: não se interessaram quando os outros juntaram os objetos espalhados e o tesouro, nem quando levantaram o estandarte do arco-íris, nem quando esquadrinharam a ilha pela luneta de bronze de Gancho.

— Venham, então, se é que vêm mesmo! — chamou Peter. Mas os dois pequeninos seres mágicos não lhe deram ouvidos.

— As pessoas morrem quando as fadas não ligam para elas! — provocou-os Deleve.

Os dois namorados apenas pularam para den-tro da arca do tesouro e fecharam a tampa batendo-a com toda a força. Quando Cabelinho a abriu, não havia ninguém nem nada mais no interior. Nem ao menos pudim de sagu frio.

Descer deveria ter sido fácil. O frio não estava

mais tão intenso. A montanha não estava mais tão escorregadia. Mais abaixo, o ar não estava tão rare-feito. Aqui e ali, encontravam destroços do baú de bordo: uma roda de carrinho, uma pinça para pegar açúcar em pedra, uma caixa de fósforos vazia. Entre-tanto, a cada declive e cada paredão de rocha e perigo que ultrapassavam, Peter ia ficando mais pálido, lento e esgotado. Deu tantos puxões na gravata de Eton que seu pescoço ficou marcado de vermelho vivo. Tropeçava, dava passos em falso e caía, e cada vez demorava mais para se levantar.

— Vamos acampar aqui, Capitão — sugeriu

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Deleve quando alcançaram uma saliência rochosa coberta de relva.

Mas Peter não falou com ele, o que o fez de-duzir que ainda se encontrava banido na Terra de Lugar Nenhum. Os outros sentaram-se ali mesmo, exaustos, mas Peter seguiu adiante, com a cabeça baixa, os ombros curvados, as mãos apertando as costelas.

— Não ando por aí com gente grande — murmurou. — Gente grande não é confiável.

A voz, porém, tinha um tom mais de derrota que de desafio. E ele se apoiou no penhasco e tossiu, tossiu, tossiu, até suas pernas se dobrarem; tossiu, tossiu, tossiu, até se ajoelhar; tossiu, tossiu, tossiu, até a testa encostar na relva; tossiu, tossiu, tossiu, até cair de lado no chão... e desaparecer inteiramente da margem da saliência rochosa.

Mais abaixo, na descida da montanha, o Capi-tão Jas Gancho — ou Novello, se preferirem — sen-tara-se com suas pernas compridas em torno de um ninho de pássaros de onde tirava um ovo de cada vez, furava-o com seu gancho e bebia o conteúdo. Pela primeira vez na vida, estava achando difícil não assobiar de puro contentamento (apesar de todo mundo saber que assobiar provoca um azar danado).

Arrancou uma folha de capim e, prendendo-a entre dois dedos de sua única mão, soprou, produ-zindo uma nota semelhante a um grasnido de pato. O mato na planície lá embaixo agitou-se em redemoi-nhos. Novello sorriu ao ver o que acontecia.

Foi quando, sem aviso, um menino desceu deslizando pela escarpa atrás dele e empurrou-o de

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seu pouso. Pensando que estivesse sendo atacado, ele se pôs de pé num salto, um ovo de pássaro ainda empalado no gancho. Mas o menino só se encaixou em seus tornozelos, dobrado ao meio como um ca-nivete, e lá permaneceu como se estivesse morto, as pálpebras entreabertas.

Antes que Gancho tivesse tempo de reconhe-cer Peter e levantar o gancho para empalá-lo também como uma casca de ovo, mais crianças desceram es-corregando pelo penhasco, jogando nele uma chuva de terra e de pedregulhos, todos gritando ao mesmo tempo como fanáticos:

— Deixe ele! — Largue ele! — Não ponha a mão nele! — Ninguém pode tocar nele! — Vou tratar de você, Peter! — gritou Piuí, e

correu para junto de Peter. — Eu cuido de você! João correu também, mas para atacar Gancho,

a espada desembainhada. — Isso é coisa sua, seu bandido! — Eu... — começou o pirata, surpreso demais

para revidar ou se alegrar com a situação. Os Exploradores caíram de joelhos ao redor

de seu Líder. — Talvez ele esteja com pneu-mania — disse

Piuí —, por ter ficado só de camisa durante a tem-pestade de neve.

Piuí tentou cobrir Peter com a sobrecasaca es-carlate, mas Wendy deu um grito de horror, acorreu e tirou-a de cima dele, jogando-a para Gancho.

— Você o matou, foi você! — berrou ela.

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— Eu? — disse Gancho. Piuí colocou a mão na testa de Peter para ver

se ele estava com febre, tomou-lhe o pulso, acari-ciou-lhe o cabelo e encostou a cabeça em seu peito para escutar se o coração ainda batia. Depois, sen-tou-se e declarou, soluçante...

— Peter morreu! Um tremor que percorreu então a Terra do

Nunca fez o horizonte empenar e os reflexos saírem de dentro de todos os lagos, laguinhos e lagoas.

A Liga de Pan cobriu-o com a bandeira de ar-co-íris. No meio do terrível silêncio que se seguiu, as acusações vieram à baila outra vez.

— Ele morreu de tanto sentir frio — disse o Segundo Gêmeo.

— Melhor assim do que ser igual a você! — exclamou João, dando uma espetadela com a ponta da espada de peixe-espada no rosto de Gancho.

— Não! Foi aquela gravata no pescoço dele. Sufocou-o, tirou-lhe o ar e a vida! — replicou Wendy.

— A sua gravata! — rosnou João, e deu outra espetadela em Gancho com a ponta da espada, dessa vez na garganta coberta de lã.

— Ou então foi porque você o fez pensar no que seria quando crescesse e isso partiu o coração dele! — deduziu Deleve.

— Tudo culpa sua! — acusou João, espetando Gancho no peito.

— Ou pode ser que ele detestasse tanto ser Gancho que resolveu morrer de propósito! — suge-riu o Primeiro Gêmeo.

— Está contente, agora? — disse João, espe-

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tando a fivela do cinto de Gancho. — Ou quem sabe Gancho o tenha envenena-

do com o sal — disse Cabelinho —, ou com o pente, ou a graxa de sapatos, ou o chá, ou as frutinhas ver-melhas, ou... ou...

— ...como ele envenenou a Terra do Nunca inteira! — esbravejou João.

Gancho espertamente se desviou para o lado a fim de evitar o golpe seguinte da espada de João.

— Ele ainda não está morto, seus patetas — disse ele, entre os dentes semicerrados, irritado, e apontou para o pequeno corpo no chão.

A ondulação não era maior que a da superfície de um rio quando um lúcio, aquele grande peixe, passa nadando no fundo, mas a bandeira de arco-íris de fato ondulava por causa de algum movimento de-baixo dela.

— Não graças a você! — exclamou João, e espetou-o novamente.

Gancho arfou, exasperado, chutou com a bota de crocodilo a lâmina da espada e quebrou-a em uma porção de pedaços.

— Não o envenenei nem estrangulei nem enganei para levá-lo à morte! — protestou Gancho, contor-cendo-se de irritação. — Não viram como o protegi dos perigos e dificuldades? Não fui eu quem o ar-rancou da morte certa na ponte de gelo? Admito que não tenha sido por um afeto dos mais profundos, mas eu o fiz. Não compreendem? Eu precisava do fe-delho! Para o meu plano grandioso! Com que propó-sito iria fazê-lo adoecer? Pois se contava com ele para recuperar meu Tesouro! Ele era mais Gancho do que

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eu: acham que eu teria envenenado a minha própria imagem? Não estavam lá quando os abandonei aos caprichos da Ilha? Quando a deixei para que a terra e o tempo matassem vocês todos? Se algum dia eu le-vantar a mão para acabar com Peter Pan, será esta aqui! — e brandiu o gancho, primeiro junto ao rosto de João, depois por cima do menino Pan. Quando se preparou para golpear a garganta de Peter, as crianças gritaram todas juntas, pensando que iriam presenciar um crime a sangue frio, e Deleve chamou Gancho de “covarde e assassino”. Mas o gancho atingiu apenas o tecido da gravata branca no pescoço de Peter e er-gueu o menino até o alcance da mão boa de Gancho.

No tempo do estalar de dois dedos, o laço branco foi desatado e Peter caiu de costas, batendo com a cabeça no chão, mas sem ter sido assassinado.

— Está satisfeita agora, madame? — disse Gancho a Wendy, e sentou-se de novo, curvado, de costas para o grupo.

Piuí ajoelhou-se e cochichou ao ouvido de Pe-ter:

— Estamos brincando de médicos e enfer-meiras, Peter? Ah, por favor, diga que sim! Sou sua enfermeira e você é o paciente, e agora você precisa melhorar e ficar agradecido a mim para todo o sem-pre!

Mas o menino caído no chão nem se mexeu. Quando ela lhe deu um remédio de faz-de-conta, ele não o engoliu e o remédio escorreu-lhe pelo canto da boca. A pele dele estava pegajosa e a respiração ar-quejante. Piuí sussurrou:

— Você não está brincando direito, Peter. Não

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está mesmo. O Primeiro Gêmeo fez uma trouxa com o ca-

saco vermelho abandonado e abraçou-o, como se fosse o próprio Peter.

Assim, o bando de Exploradores mais uma vez formou um círculo na encosta do Monte do Nunca, agora não mais assolado pela neve, mas pela dramá-tica possibilidade de que o menino caído no chão es-tivesse morrendo ou pudesse morrer, e eles não ti-nham a menor idéia da causa nem de como evitar que isso acontecesse.

Havia duas luas naquela noite. Ao lado da lua da meia-noite, cheia de olheiras de preocupação, sur-giu seu oscilante reflexo, que se erguera do mar em busca de companhia e de consolo. Seus dois rostos brancos ansiosos dirigiam os olhares para as encostas do Monte do Nunca, oferecendo bandagens de raios de luar.

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Capítulo Vinte e Um

Maioridade Relembrando as palavras de Peter, eles man-

daram Gancho para a Terra de Lugar Nenhum, recu-sando-se a falar uma só palavra com ele e fingindo que ele não existia mais. Mas ele permaneceu no mesmo lugar, curvado sobre si mesmo, os olhos tre-meluzindo na escuridão, sem dormir, como de cos-tume. Seria para presenciar a morte de seu inimigo declarado, ou porque estava escuro demais para des-cer a montanha, ou simplesmente porque ele gostava de ser do contra?

— Vá embora — disse João. — Você foi ba-nido. Faz parte das regras. Você tem de ir embora.

— Regras de quem? — retrucou Gancho. — Vão vocês. Cheguei aqui primeiro.

— O que é, está esperando que Peter morra? — disse Wendy.

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— Pode ser. — Só os maus esportistas não cumprem as re-

gras. — João ruminava, muito emburrado, e jurara nunca mais falar com o homem — até que uma per-gunta entrou em sua cabeça exigindo resposta. — Aliás, não acredito em nada do que você contou. Pensei que fosse um pirata antes de vir para cá, não um colegial. Que tivesse sido contramestre de Barba Negra: o pirata mais sanguinário que já percorreu os Sete Mares. Foi o que ouvi dizer.

— Hum! Mentiras. Calúnias espalhadas por meus inimigos. Nunca estive sob as ordens de nin-guém). Por que cargas d’água eu, Gancho, seria subor-dinado a um rato de navio sem classe nenhuma, que não sabia nem contar até cinco? Duvido que Barba Negra sequer fosse capaz de soletrar a palavra Eton, que dirá usar a velha gravata da escola. Eu não a-güentaria alguém como ele a bordo de um navio meu nem para raspar a tinta do madeirame.

— E por onde andam agora os seus desprezí-veis companheiros de pirataria? — perguntou João, tentando parecer altivo e desdenhoso, embora secre-tamente ele apenas desejasse saber. (João gostaria muito de ser pirata, mas só se não tivesse que roubar nem matar ninguém.)

— Mandei-os fazer a parte deles na Guerra — disse Gancho. — Como é o dever de todo homem. No início, mandavam-me cartões-postais. Da Bélgica e da França. Depois, acho que me esqueceram. Os postais pararam de chegar. Imagino que estivessem se divertindo demais, que estivessem ocupados demais, esbanjando pilhagens e despojos de guerra. Gastando

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o produto dos saques em bolos e bonitas mulheres francesas. Sem nenhuma disposição para voltar para a labuta enfadonha e cansativa a bordo do Terror dos Mares.

Wendy balançou a cabeça. — Também gosto de imaginar o mesmo —

disse ela — todas as vezes que penso em meu irmão Miguel. — Os olhos deles se encontraram por uma fração de segundo, durante a qual um compreendeu o outro perfeitamente.

— Vejo que você, no entanto, não foi para a Guerra — disse João com sarcasmo.

O pirata fulminou-o com um olhar homicida e disse, a voz num sussurro enrouquecido, tão baixo e frio como um rio subterrâneo:

— Graças àquele ali, fui considerado INCA-PACITADO PARA O DEVER!

— Silêncio! — pediu a Enfermeira Piuí, agita-da, amedrontada. — Deveríamos deixar Peter dor-mir. O sono faz bem às pessoas. O sono faz maravi-lhas.

Gancho, que havia vinte anos não dormia, deu uma risada curta e amarga e virou-lhes as costas, amontoando sua lã em torno de si.

Súbito, Cabelinho levantou-se bruscamente. — Peter precisa é de um médico! — afirmou

ele, desesperado. — Um médico de verdade! Todos olharam de seu pouso no alto da mon-

tanha para a imensa selva e a selvagem imensidão da Terra do Nunca e perguntaram-se: como arranjar um médico naquele caos desgrenhado? Médicos são ge-rados em lagos de anti-séptico e em planícies de linó-

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leo limpo ou de lençóis engomados. A Terra do Nunca não é seu habitat natural. E no entanto Cabe-linho já sabia onde encontrar um; via-se logo por causa dos seus maxilares apertados. Ele respirou fundo e dirigiu-se para onde o pirata estava sentado, curvado sob sua pelagem.

— Pergunte — disse ele, mergulhando os de-dos de ambas as mãos na manga de Novello. — Fa-ça-me a pergunta agora.

Deleve deu um pulo. — Não, Cabelinho, isso não! — Faça-me a pergunta, Novello. Seguiu-se um murmúrio confuso de apreensão

e de perguntas dos outros, que não compreendiam o que se passava.

Gancho fez cara feia para Cabelinho e tentou soltar-se, mas Cabelinho não o largava, obstinado como um cachorro terrier.

— Pergunte-me, Gancho. Pergunte-me o que quero ser quando crescer.

— Mas, Cabelinho...! — protestou Deleve, tentando afastá-lo de lá. — Pense no que está fazen-do! Quer ser como eu, adulto como eu? Que nunca mais vou poder voltar para casa? Só me resta ser um Desengunço. Você quer ser um Desengunço tam-bém, Cabelinho?

Cabelinho engoliu em seco e começou a puxar o emaranhado da lã engordurada que era ao mesmo tempo a manga e o braço do pirata. O rosto de No-vello contorceu-se de dor, e ele disse:

— Escute o seu amigo, menino Cabelinho. Se o cocoricó sobreviver, acha que ele vai-lhe demons-

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trar sua gratidão? Vai mandá-lo embora, como fez com todos os outros. Não vai tolerar a presença de adultos em sua Companhia. — Os olhos do homem estavam líquidos com o negrume da meia-noite, e em vez de ter estrelas refletidas neles, havia centelhas e cacos de casca de ovo.

— O pirralho está morrendo, senhor Cabeli-nho. Nada pode salvar Pan agora... Ah, mas quem sou eu para dissuadi-lo de seguir o destino que esco-lheu? Então me diga, menino Cabelinho: o que você quer ser quando...

— Médico! — interrompeu Cabelinho, afun-dando os dedos nos fios de lã quase até o osso do braço de Gancho.

O tecido estava tão embebido de veneno que neutralizou a mágica da juventude existente na Terra do Nunca e deixou o Tempo infiltrar-se pelos poros da pele macia de Cabelinho. Conforme suas mãos fechadas iam-se enchendo de lã esfiapada, ele sentia os cintilantes busca-pés e estrelinhas extinguirem-se dentro de sua cabeça e serem substituídos pelo brilho fosco da sensatez e da sabedoria. Seu nariz percebia o cheiro de clorofórmio e de linimento. Jalecos brancos desfilavam por sua imaginação como fantasmas en-gomados. Em seus bolsos, sacolejavam seringas hi-podérmicas, termômetros e espátulas. Cabelinho que-ria tanto ser médico que cresceu e ficou alto na mes-ma hora, desfazendo-se de seu casaco de cobertor e até de sua farta cabeleira crespa. As dores do cresci-mento eram alarmantes, mas ele manteve a mão firme em Novello.

E, quanto mais crescia, mais se lembrava de ter

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sido um médico — afinal, ele havia sido médico antes — em Fotheringdene, antes da aventura que os trou-xera ao Monte do Nunca. Lembrou o tempo de es-tudos na escola de Medicina, de sua temporada no Hospital Municipal de Fotheringdene. E, durante esse tempo todo, suas mãos enchiam-se da lã que era si-multaneamente o braço e a roupa de Novello. Deixou à vista o gancho de ferro e as cicatrizes das feridas causadas pelo crocodilo. Novello pôs-se de pé com um berro medonho, mas viu que não era mais alto que o doutor Cabelinho Darling DM MCRC.

— Sinto muito se o machuquei, senhor — disse Cabelinho — agora que ele era médico, lamen-tava causar dor em quem quer que fosse —, e esva-ziou as mãos da lã amarfanhada, que se espalhou pelo chão em torno das botas de pele de crocodilo do pi-rata.

Instintivamente, as crianças afastaram-se de Cabelinho. (Médicos são quase tão apavorantes quanto piratas, com suas mãos frias e sua caligrafia perigosa. E só vão visitar as pessoas quando elas es-tão se sentindo mal demais para ficarem amigas de-les.)

Tirando um estetoscópio do bolso, doutor Cabelinho ajoelhou-se ao lado de Peter e escutou as batidas incertas e alvoroçadas de seu coração. Era o som da guerra interna na Terra das Fadas. Era o som da Eterna Juventude morrendo, morrendo, morren-do.

Mas ele também ouviu claramente algo mais. Partiu a ponta de sua própria espada de peixe-espada (como lhe parecia pequenina agora, em suas mão

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grandes e frias), abriu com ela um buraco logo acima do coração de Peter e, usando a pinça de pegar cubos de açúcar, puxou para fora um pedaço de algo cin-zento, fino, esfarrapado e sujo de fuligem.

— Acredito que seja esta a origem do proble-ma — declarou ele.

Quando ainda estava em casa, na Praça Cado-gan, ao espirrar o último espirro de seu resfriado, Wendy apanhara um lenço e o enfiara dentro da manga — um lenço de uma mulher adulta enfiado na manga de um vestido decotado de uma menina. E, dentro do lenço, sem que ela soubesse, havia um peda-cinho do nevoeiro de Londres!

Na Floresta do Nunca, quando Peter enxugou o sangue de seu rosto com o lenço dela, inalou aquele farrapo de nevoeiro, que se foi enrolando no coração dele, comprimindo-o mais a cada dia.

Nem o incêndio da Floresta do Nunca, nem o toque das Bruxas, nem o peso esmagador das fadas hostis haviam dado cabo de Peter Pan; muito menos a fome e o frio; não fora o sal de Novello nem suas palavras tentadoras o que estava matando Peter; nem mesmo seu vidrinho de veneno — que afetara toda a Terra do Nunca — conseguira levar Peter Pan à beira da morte. Só um farrapo do nevoeiro de Londres conseguira.

Doutor Cabelinho custou a se levantar, como só acontece com os adultos.

— Venha, Deleve. Está na hora de irmos — disse. Com seu bisturi de cirurgião, cortou no ar sua própria porta e passou por ela, banido.

— Aonde vocês vão? — perguntou Gancho,

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ainda segurando um dos braços, esfiapado até o osso. — Quebrei a Regra e cresci — explicou Cabe-

linho serenamente. — E, ao contrário de certas pessoas, sei como me comportar de acordo com as regras...

Receito-lhe sono para esse braço, Novello. Como diz a Enfermeira Piuí, o Sono cura tudo. O Sono e o Tempo.

Dito isso, ele se foi, levando Deleve consigo, e desceram escorregando, desajeitados e barulhentos, a encosta da montanha iluminada pela luz das duas lu-as.

Peter Pan suspirou fundo, depois respirou mais fundo ainda e em seguida sentou-se. Pousou a pequenina mão no peito, sentiu a vida pulsando em suas veias, jogou a cabeça para trás e deu um cocori-có:

“Có-cori-cóóó!” Peter Pan saudável outra vez era uma coisa

maravilhosa de se ver. Dava saltos mortais, andava com as mãos no chão e saltava de uma rocha para outra com a agilidade e a segurança de um cabrito montes. Na verdade (não sendo mais um pirata nem supersticioso a respeito de assobios), ele assobiou para chamar todas as camurças — que são animais semelhantes às cabras e cabritos — do local e fez seus amigos montarem nelas, para que descessem em um galope macio e agradável os declives e precipícios do Monte do Nunca rumo à desoladora planície lá

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embaixo. Nem Humpty Dumpty21, ao pular de seu muro, divertiu-se tanto quanto eles. Novello ficou para trás, mutilado, esquecido e lento como uma preguiça em comparação à Liga de Pan.

Ninguém mais teria confundido Peter com um vaidoso capitão-pirata. Os cachos lustrosos que No-vello penteara e arranjara com esmero logo se desfi-zeram, descabelados, formando uma desordem exu-berante que se iluminava ao sol. As borboletas faziam enorme algazarra em torno das cores vivas de sua túnica e traziam pólen nas asas, o que o fazia espirrar.

— Toda vez que espirro — gabava-se —, os astrólogos na China avistam um novo planeta, colo-rido como uma bolha de sabão! — Ia assoar o nariz e, quando Wendy tirou-lhe o lenço da mão, limi-tou-se a dar uma risada e limpar o nariz na manga da roupa. Depois, inventou uma canção grosseira sobre babuínos, que todos cantaram a plenos pulmões du-rante todo o percurso de descida até as araucá-rias-do-chile que rodeavam a base da montanha.

Menos Wendy, porém. Apertou o lenço nas duas mãos e irrompeu a chorar, inconsolável. Os ou-tros pararam de cantar — bum-ti-bu-ba-buu-uu-buuínoos! — para olhar para ela.

— Foi tudo culpa minha! — gemia Wendy. — Poderia ter matado Peter, e tudo por causa de um

21 Personagem das Nursery rhymes (versos infantis) inglesas, cujo corpo tem a forma de um ovo. Nos versos do folclore infantil, ele aparece em cima de um muro. Humpty Dumpty está presente também em Alice no País das Maravilhas. (Nota da Editora.)

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espirro bobo! Mas Peter não se aborrecia com o que “pode-

ria” nem com o “e se”. Não o incomodava sequer não ter Tesouro nenhum para mostrar depois da a-ventura no Monte do Nunca; a caça ao tesouro é sempre mais divertida do que propriamente encontrar o tesouro.

Afinal, o que ele poderia querer mais além do que já possuía: amigos, liberdade, aventura e juven-tude? Wendy, mesmo assim, lavou o lenço (temendo que tivesse restado nele algum resquício do nevoeiro londrino) em um pequeno riacho de água gelada que descia da geleira derretida, depois prendeu-o em seu casaco para secar.

E porque o lenço pertencera antes a uma Wendy Darling adulta, ela começou a lembrar coisas. Lembrou-se da Praça Cadogan, de uma menininha chamada Jane, lembrou-se de contas do armazém e dos dias de lavar roupa, de um trabalho no comitê e de um marido, de hora marcada no dentista, de botar as latas de lixo para fora nas terças-feiras. E da mes-ma forma que os sonhos sobre a Terra do Nunca ti-nham perturbado sua paz de espírito quando estava em Londres, sonhos sobre estar em casa começaram a pairar em torno dela, assim como as borboletas pairavam em torno de Peter.

Borboletas e vespas! A descida pelas araucárias foi tão desagradável

quanto fora a subida. Os insetos os picavam, a resina grudava seus dedos e joelhos uns nos outros, as pi-nhas espetavam-nos e os galhos finos quebravam sob seu peso.

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Inesperadamente, com um som que parecia o de uma banshee — uma bruxa horrível, mensageira da morte — ululando e pipilando, guinchando e gritan-do, as árvores desandaram a sacudir, a se curvar, a se debater, fazendo cair os ninhos de vespas e as pinhas aos trambolhões. As crianças agarraram-se aos galhos o mais que puderam, até que Peter precipitou-se ou-sadamente no espaço e os outros todos acabaram soltando as mãos e caindo no meio das árvores.

Os galhos mais baixos não demonstraram ne-nhum interesse em apanhá-los — somente as redes esticadas pelos Desengunços, que estavam à espreita havia dias.

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Capítulo Vinte e Dois

Conseqüências Afinal, eles o pegaram, aqueles meninos que

tinham descumprido a Regra e crescido; aqueles me-ninos que Peter banira para a Terra de Lugar Ne-nhum e que o detestavam por causa disso com um rancor mortal.

Os Desengunços amarraram seus prisioneiros nos troncos das araucárias e passaram a manhã ati-rando pinhas neles para se divertir. Enquanto isso, discutiam o que fariam com Peter Pan; de que forma o matariam.

— Enforca ele! — Num tem corda. — Dá um tiro nele! — Num tem revólver. — Corta a cabeça dele, então! — Ou enterra ele vivo. — Bate nele com uma pedra. — Ou larga ele no escuro.

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— Façam qualquer coisa, menos me jogar num canteiro de roseira-brava! — disse Peter, com um lampejo de sorriso. Wendy contara-lhe certa vez a história de Mano Coelho e como ele se saíra de uma enrascada exatamente igual àquela.

Mas os Desengunços não caíram no ardil. Também conheciam a história de Mano Coelho, que o próprio Peter lhes contara quando, sentados a seus pés, eram todos pequenos e felizes Meninos Perdi-dos.

— Façam ele andar pela prancha! — sugeriram os Gêmeos, achando que os Desengunços podiam esquecer que estavam em terra firme e não a bordo de nenhum navio, e depois achariam que ele se afo-gara.

Mas os Desengunços também não caíram nes-sa armadilha.

— Matem ele de medo de alguma coisa! — ar-riscou João, sabendo que Peter era corajoso demais e que isso também não daria certo.

Mas os Desengunços não se deixaram enganar. — Soltem-nos e prometo ser mãe de todos

vocês — disse Wendy. E dessa vez não era uma cila-da, mas sim uma proposta sincera e franca inspirada pela bondade do coração dela. Surpreendentemente, porém, os Desengunços não queriam ter mãe. Cheios de raiva e decepção, achavam que as mães eram qua-se tão ruins quanto Peter Pan.

— O pântano vai resolver isso — disse o mais velho, e os demais concordaram.

— Num sobra nada depois. — Joga o bando todo no pântano.

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Nenhuma palavra no mundo abrandaria essa sentença de morte: os Desengunços iam jogar Peter e seus amigos na areia movediça.

— Exigimos um julgamento! — disse Piuí (que um dia fora um juiz da Suprema Corte, não se esqueçam).

Naquele lugar, porém, não existia justiça nem eqüidade. Os Desengunços tinham-se armado com galhos arrancados das árvores de sa-ca-rolhas-de-cortiça e pata-de-lebre; e agora iam le-vando as crianças para o local de execução.

Que não ficava longe. De cada lado da trilha de solo mole como esponja, o pântano suspirava e borbulhava, sugava e suspirava suavemente: um ta-pete de musgo carmesim desenrolava-se para receber os incautos e os condenados. As elevações do Monte do Nunca ainda se agigantavam diante deles, escon-dendo o céu do leste. Os Desengunços se apossaram de tudo o que estava nos bolsos das crianças, amas-saram a bandeira de arco-íris com as mãos encardidas e depois levaram as vítimas aos empurrões para o pântano vermelho.

— Dêem-me uma espada e lutarei sozinho contra todos vocês! — desafiou-os Peter. — Ou são covardes demais para isso?

Mas não adiantava apelar para o valor ou o orgulho dos Desengunços. Todas as noções de no-breza de caráter tinham morrido dentro deles no dia em que haviam sido banidos. O encanto da meninice os abandonara, não por culpa deles, e deixara-os corpulentos, empavonados, ossudos; por que deve-riam ligar para honra e jogo limpo? No caminho, iam

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cutucando as costas de seus prisioneiros, forçando-os a seguir para o atoleiro.

— Quem vai primeiro? — perguntou o mais magricelo quando chegaram à margem.

— Eu — respondeu Peter. — Sempre. — E empinou o peito, inclinou a cabeça para trás e deu uma passada comprida para cima da areia movediça. Depois de sua doença, estava tão leve que seu peso quase nem marcou a superfície. — Vocês têm de me conceder um último desejo — disse, virando-se para seus assassinos. — Peço que soltem meus amigos. Eles nunca lhes fizeram mal.

Os Desengunços encolheram os ombros an-gulosos até as orelhonas desproporcionais.

— Quem for amigo seu... — disse o mais ar-ticulado, sem se incomodar em terminar a frase. — E aqui não concedemos desejos. Isso é coisa de fadas.

O solo gelatinoso sugou com atenção os pe-queninos pés descalços de Peter, resolveu que o gos-to deles era bom e fechou-se sobre seus dedos e cal-canhares.

— Conseqüências! Não lhe disse? — ouviu-se uma voz vinda do alto. E lá, na saliência de rocha, acima das araucárias, a figura disforme de Novello apontava para Peter o gancho de ferro que lhe servia de mão. — O que foi que lhe disse, cocoricó? Toda ação tem suas con-seqüências!

A lama vermelha engoliu Peter até os tornoze-los. Ele estendeu bem os braços para manter o equi-líbrio. Um dos Desengunços empurrou João também para o tapete vermelho de lama e Wendy depois dele, às cotoveladas.

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Não havia medo no rosto de Peter, somente uma triste perplexidade, por constatar como os De-sengunços sentiam-se injustiçados.

— Vocês todos juraram obedecer à Regra e não crescer. Por que então cresceram, se não queriam ser banidos?

— A gente fomos envenenado, né? — disse o mais grosseirão. — Envenenados por um chefe muito sujo, danado de falso.

E tentou dar um golpe na cabeça de Pan com seu galho, mas errou. A expressão no rosto de Peter, de mágoa e reprovação, teria amolecido o coração mais duro... se os Desengunços tivessem algum cora-ção para amolecer.

— Peter não traiu vocês! — exclamou Wendy. — Lá está o homem que traiu vocês! — E apontou para Gancho no alto. — Foi ele que fez vocês cresce-rem! Se não fosse Gancho, vocês teriam continuado crianças para sempre, como Peter! E poderiam voar, e ir e vir à vontade, e visitar suas mães, e cumprir suas promessas, e sair à procura de tesouros seis vezes por semana! — Ela deixou escapar um gritinho involun-tário de repulsa quando a papa vermelha alcançou a bainha de seu vestido. Peter já afundara até a cintura e mantinha os braços levantados para não sujar as mãos de lama.

— Gancho? — O nome confundiu os De-sengunços. — Capitão Gancho? — Lembrava-lhes o tempo passado na Cabana da Wendy e as histórias que escutavam sobre o pirata malvado, que fora co-mido por um crocodilo muito antes do seu nasci-mento. — Aquele não é o Gancho, não. É o homem

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do circo! — ...o viajante. — ...muito viajado. — ...o esfiapado. Todos conheciam o homem da montanha, não

como Jas Gancho, mas como alguém que tinham encontrado em suas idas e vindas.

— Wendy tem razão. Foi ele quem envenenou a Terra do Nunca! — berrou Peter, já com o peito dentro da lama. — Conte a eles, Gancho! Conte co-mo o vidro que você trazia no bolso da camisa dei-xou o veneno vazar e matou o Crocodilo! E envene-nou a Lagoa! E Deixou o Tempo entrar, e transfor-mou meus Meninos Perdidos em Desengunços!

Gancho deu uma risada e fez uma última me-sura para Peter — não mais o cumprimento servil de um criado, mas o floreio arrogante de um vitorioso que agradece aos vivas.

Cada um dos Desengunços lembrava-se bem de ter encontrado o Homem em Fiapos. Alguns se lembravam da sensação da lã engordurada em suas mãos, e de ter respondido à pergunta: “O que você quer ser quando crescer, menino?”. Até aquele momento, ne-nhum deles sabia que encontrara o famigerado Capi-tão Jaime Gancho.

O Capitão Jaime Gancho viu os Desengunços largarem seus galhos e, como uma mudança de maré, partirem em sua direção. Corriam emitindo um rugi-do surdo, naquele rompante crescente de ódio que os caracterizava.

— Gancho! Gancho! Gancho! Gancho! — repetiam ritmadamente.

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Alcançaram a base do penhasco. Começaram a subir nas árvores. Em minutos, chegariam à saliência de rocha em que ele se encontrava. Gancho levou os dedos da mão esquerda à boca... e soprou.

Produziu um ruído esquisito, como um gras-nido, que fez os Desengunços interromperem por um momento sua subida, a areia movediça interromper por um segundo sua ávida sucção. As samambaias e as urzes da planície agitaram-se em torvelinhos farfa-lhantes e, ao olhar para baixo, os Desengunços esta-caram, embasbacados. Pois doze leões e uma família de ursos, três tigres e um cotillo, pôneis, um puma e um palmerion aproximavam-se, atendendo ao chama-do de seu dono. O instinto guiava os animais pelos percursos mais seguros através dos charcos; a lealda-de incitava-os a cumprir o seu dever: salvar O Gran-de Novello do perigo e destroçar seus inimigos.

Os Desengunços dispersaram-se — cada um por si — deixando cair o produto de sua pilhagem, jogando longe o estandarte de arco-íris. Como uma explosão de fogos de artifício, cinco minutos depois estavam invisíveis. Alguns dos animais os persegui-ram, outros pararam, farejando o ar; outros ainda se puseram a andar a esmo, procurando uma forma de chegar ao seu dono, ao que os chamara. Os ursos desviaram-se de seu objetivo ao dar com as colméias nas árvores.

Nesse meio tempo, João afundara até os joe-lhos na lama, Wendy até a cintura, mas o queixo de Peter já estava mergulhado na lama que o sugava. Os Gêmeos pegaram depressa um dos galhos que os Desengunços tinham deixado cair e estenderam-no

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para ele o máximo que puderam. Mas na mesma ho-ra, diante de seus olhos, Peter inalou o ar pela última vez e afundou; nada mais restou a não ser duas mãos muito claras despontando como funcho que tivesse crescido no musgo vermelho e acetinado. E o galho não as alcançava!

— PETER! — Passem para mim aquele outro galho ali —

disse João — e afastem-se da margem! Mas o galho de João também não chegava até

onde Peter estava. — Dêem um para mim também! — pediu

Wendy — E fique parado, João, para não afundar mais depressa ainda!

Os Gêmeos jogaram um galho para João, que o passou para Wendy, e ela espichou os braços segu-rando-o até onde conseguiu.

Ao tocar a madeira áspera, as mãos brancas fecharam-se nela. Então Wendy puxou Peter, e João puxou Wendy, e os Gêmeos puxaram João e, lenta-mente, lentamente, penas vermelhas de gaio, folhas cor de cobre, lama marrom e vivos olhos azuis surgi-ram à luz do dia.

Como a primavera depois do inverno. Tal e qual a história do Nabo Gigante, eles ar-

rastaram Peter (e um ao outro) para o chão firme. O grupo de amigos salvara-se em conjunto do abraço fatal da areia movediça.

Arquejando, tossindo, cuspindo e reclamando da lama dentro de suas calças, lá estavam eles deita-dos em terreno sólido, com uma aparência muito se-melhante à dos galhos caídos a seu lado, rindo para o

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céu. E que beleza de céu! Com pedaços esgarçados de nuvens e pinceladas de arco-íris.

Então, em seu campo de visão, contra aquele lindo céu, intrometeu-se um botão de couro, não, um nariz de urso. E seus ouvidos cheios de lama ouviram o grunhido gutural de leões discutindo sobre sua pró-xima refeição. E seus rostos sentiram o bafo quente de um sortimento variado de vinte feras fechando o cerco para a matança.

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Capítulo Vinte e Três

O casaco vermelho Se o Tempo parasse de verdade na Terra do

Nunca, nada daquilo teria acontecido. A boca aberta de um leão jamais se fecharia para a mordida. Um urso faminto ficaria imóvel, como um bicho empa-lhado de museu.

Mas o Tempo nunca ficava tão parado assim na Terra do Nunca, nem Antes. Coisas acontecem o tempo todo na Terra do Nunca, algumas são maravi-lhosas e outras são absolutamente fatais.

Dois segundos mais e eles virariam comida de gato. Dois minutos mais e eles seriam só ossos. Es-tavam em desvantagem numérica. Bastaria um dos

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ursos sozinho para colocá-los todos juntos em des-vantagem numérica, mas havia cinco deles, saltitando em ritmo de dança, 1-2-3. 1-2-3, como faziam anti-gamente no picadeiro. O hálito quente dos leões cheirava a coelho morto, e havia ossos de pássaros presos entre os dentes dos palmerions, aguçados como alfinetes. Os pôneis do circo, com tocos carboniza-dos de plumas ainda presos nas faixas de suas cabe-ças, trotavam em círculo ao redor das crianças: não havia como fugir.

Wendy fingiu que eram pesadelos e que iriam embora a qualquer momento.

Os Gêmeos pensaram em mães e como uma delas podia muito bem aparecer naquele exato mo-mento e encerrar a brincadeira.

João pensou em uma pistola que encontrara certa vez debaixo de seu travesseiro — certa vez, muito tempo atrás, quando ele era adulto — e o que faria se ao menos tivesse trazido aquela pistola...

Mas o Primeiro Gêmeo pensou no casaco vermelho. Ele o trouxera ao descer a montanha, as mangas amarradas em sua cintura. Livrou-se dele, arremessou-o para o ar, e o casaco rasgou-se com o golpe das patas de um urso, nas quais ficou preso e onde foi carregado no alto enquanto a fera o sacudia para tentar soltá-lo. Os leões, excitados pelo movi-mento, saltaram para a nova presa, a saliva espalhan-do-se como chuva. A cor vermelha nada significava para eles, já que todos esses animais são incapazes de distinguir cores, mas o casaco sacudido frenetica-mente e o reflexo do sol nos botões de metal os ins-tigaram e agitaram. As patas pisoteavam as crianças

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deitadas no chão enquanto as feras do circo disputa-vam o casaco vermelho.

Para Peter, todavia, a cor vermelha significava muito. Peter estivera olhando para o céu, e agora o Vermelho significava tanto que ele gritou a plenos pulmões: VERMELHO! VERMELHO! VERME-LHO! VERMELHO! ESTÃO VENDO? VER-MELHO!

Do céu, caíram certos flocos coloridos que todos já tinham visto uma vez. Confete de fadas. Aos montinhos, aos montes, aos montões, às montanhas, às cordilheiras.

Enquanto os animais olhavam para cima, sur-presos, e batiam com as patas na estranha chuvarada de boniteza, as crianças escapuliram para se esconder no meio dos caniços e juncos do pântano. Assim, quando o exército Azul das fadas se lançou para valer sobre o casaco vermelho, atingiu apenas os animais. Garras e dentes de nada lhes valeram contra tamanha investida. As bocarras escancaradas logo se entupi-ram de fadinhas que espetavam; as patas logo ficaram presas ao chão. Leões e ursos, cotillos, tigres e os ou-tros bichos foram enterrados sob uma camada tão alta de fadas brigonas que não se via nem um bigode, cauda ou orelha à mostra.

— Saiam! Soltem todos eles! Aos trancos e barrancos, pulando, cambale-

ando, escorregando e afinal caindo o resto do cami-nho, Novello desceu do íngreme rochedo na base do Monte do Nunca. Em questão de instantes, alcançou o chão (embora as araucárias tivessem cobrado o seu tributo) e correu para o local da batalha.

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— Soltem-nos! Tire-os daí, Pan! Ajude meus bichos! Tal e qual um enxame de gafanhotos, as fadas formavam uma espécie de rede em cima dos animais, uma rede que tremeluzia, se mexia e crepitava. Aque-las eram fadas da facção Azul, que acreditavam ter obtido uma grande vitória sobre as forças da Verme-lha. Pensavam como uma só mente — as formigas de um formigueiro pensam como se tivessem um único cérebro. E sua mente única dizia-lhes para não saírem do lugar enquanto não se extinguisse a vida da opo-sição Vermelha.

Novello correu todo o caminho, brandindo o remo que fazia parte de seu Tesouro. As árvores, as de saca-rolhas-de-cortiça em especial, procuravam agarrá-lo quando ele passava, como se dissessem: Tarde demais, tarde demais.

— Saiam de cima deles, suas pragas! Assim e-les não podem respirar!

E pôs-se a cavar fadas usando o remo azul e verde como se fosse uma pá, jogando para cima seus corpos minúsculos. Um pai que tivesse filhos soter-rados debaixo de escombros não teria cavado com mais desvario. Mas de nada adiantava o esforço: as-sim que as fadas subiam no ar, mergulhavam de volta para a massa no chão.

— Ajude-me, Pan! Não fique aí parado! Não está ouvindo eles chorarem? Estão com medo! Estão sufocados! Não podem se mexer!

E a respiração saía-lhe com dificuldade da garganta, arquejante, como se estivesse outra vez dentro do Crocodilo e ele próprio sufocando.

— Ajude-me a soltá-los, Pan! Dê uma mão

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aqui, seu moleque preguiçoso! — Para eles nos devorarem? Ficou maluco?

Peter assumiu a sua pose favorita, com os pés afas-tados, as mãos nos quadris, cheio de desafiadora ju-ventude.

— São animais! Não os aticei contra vocês! Eles seguem seus instintos! Não há maldade neles! Não são como esses... esses... insetos! Calma, ursarada, estou indo! Sosseguem, bichanos, Novello está aqui... O que está esperando, Pan?

Peter inclinou a cabeça para um lado e deu um sorriso cintilante.

— Qual é a palavrinha sem a qual nada se faz? — indagou, com um prazer maldoso.

Novello enrijeceu-se. Aprumou o corpo e dis-se:

— E pensar que permiti que você usasse a gravata da minha escola nesse seu pescoço indigno. Quando era seu criado, devia tê-la apertado bem mais... muito mais!

Peter levantou uma das mãos, e os dedos ace-navam para que Gancho lhe desse a resposta certa.

— Qual é a palavrinha? Novello olhou fixo para ele. — Estou vendo agora por que o pântano cus-

piu você fora — disse. Mas Peter repetiu a cantilena, decidido a fazer

Gancho dizer “por favor” pela primeira vez em sua vida execrável.

— Qual a palavrinha... — PENA! — rugiu Novello, e os horizontes

da Terra do Nunca zuniram como a corda tensa de

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um arco, e o Norte e o Sul trocaram de lado. Então Wendy correu e pegou a bandeira de

arco-íris amarrotada que os Desengunços tinham deixado cair. Fez sumirem as dobras e amassados com uma sacudidela vigorosa e barulhenta que fez os meninos pularem de susto, depois foi estendê-la em cima do monte de fadas como se fosse uma toalha de mesa.

— Pronto! Eis aí uma nova bandeira para vo-cês, fadas! A mais linda da Terra do Nunca! Agora, vão embora, aborrecer alguém que seja do tamanho de vocês!

Deslumbradas e distraídas por algo tão bri-lhante, as fadas caíram todas para o céu, levando a bandeira consigo, dividindo entre elas as cores do arco-íris

— “Vou ficar com esta. — Eu quero aquela ali!” — enquanto se afastavam para ir guerrear com alguém de seu tamanho, em vez de cinqüenta vezes maior.

— Peter... como você sabia que aquele era o Exército Azul? — cochichou João.

— Sorte! Adivinhei certo! — Peter estava ra-diante. Os animais do circo de Novello pareciam mais achatados que aquelas figuras de papel para re-cortar. Estavam prostrados no chão, de olhos vidra-dos, corpos embolados, as pernas retorcidas nas mais estranhas posições, caudas enroscadas, bigodes mor-discados pelas fadas cruéis. Novello pôs-se de joelhos afagando flancos, endireitando patas frágeis, murmu-rando palavras de estímulo para seus animais. Dete-ve-se apenas para fulminar Peter com olhos ardentes, da cor da turfa em brasa.

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— Agora eu vou lutar com você, Pan — disse ele.

— Agora eu vou lutar com você. — Estou preparado, Gancho. Um a um, os animais levantaram-se nas pernas

bambas, gemendo e ganindo, alguns tocando o pu-nho de Novello com uma pata, lembrando-se de al-gum truque do circo que no passado os fizera ganhar alguma gulodice. E partiram cambaleantes para lam-ber as próprias feridas, fundindo-se com o amarelo dos vespeiros caídos das araucárias, com o castanho da terra árida e sem relva. As samambaias e urzes da grande planície farfalharam, agitaram-se em torveli-nhos e eles desapareceram.

Não restou nenhum animal à sombra do Monte do Nunca.

E Novello avançou para Peter, desenredando o gancho da fiaparia de sua manga direita. Parecia não ver as outras crianças, e aproximou-se de Peter devagar, ameaçador, como um corsário que vai tomar um navio carregado com um tesouro.

— Prepare-se, garoto! Ele era um perfeito Desengunço. — Não tenho espada, pirata. — Então, desta vez, a vantagem é minha. Da

última vez em que lutamos, você tinha o poder de voar. O que sempre achei que não estava muito de acordo com as regras, aliás... Prepare-se, repito!

Se vocês acham que ele escorregou e foi engo-lido pelo pântano, estão muito enganados.

Se acham que as fadas voltaram, ou que João descobriu que tinha afinal trazido mesmo aquela pis-

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tola, ou que Deleve e Cabelinho apareceram, ou que Piuí chamou a polícia, então é porque ainda não compreenderam como a Terra do Nunca pode ser um lugar terrível.

— Conseqüências! — disse Gancho, com um golpe rápido para acertar a cabeça de Peter. — Todos os atos têm Conseqüências, sabia?

Peter abaixou-se depressa e avançou desvian-do-se, saltou e protegeu-se atrás das árvores de corti-ça; mas Novello veio atrás dele brandindo uma adaga na mão esquerda e dando golpes com a direita. Voa-ram penas de gaio como gotas de sangue quando o gancho rasgou a túnica de Peter. Os pés descalços de Peter machucavam-se nas asperezas das pedras do chão: apanhou pedras e jogou-as em Novello, mas elas só levantavam poeira da pelagem desgrenhada, e uma produziu um ruído de ovo quebrado. Peter deu estalidos com a língua para imitar o tique-taque de relógio, mas os crocodilos não mais assustavam Gancho — só o irritavam. A roupa de Peter ficou presa em um galho torto que o segurou, como um fruto pronto para ser colhido. Gancho parou um momento para saborear a visão de seu inimigo deba-tendo-se em vão, sem ter mais como se salvar. De-pois, ponderou em que parte macia do corpo de Pe-ter ele iria desferir o golpe mortal.

Oh. Eu disse a vocês que não havia restado ne-

nhum animal à sombra do Monte do Nunca? Ne-nhum animal do circo, eu disse. Havia um que veio le-vantar a pata junto a uma das árvores. Como tudo o mais na Terra do Nunca, esse animal estava um pou-

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co... mudado. Em conseqüência de se ter emaranha-do na fiapagem de Novello, o Cachorrinho pequeni-ninho crescera desde que caíra da montanha. E quando um filhote da raça terra-nova cresce, a altera-ção é considerável. E lá veio ele: um cão da metade da altura de um cavalo, impetuoso como sempre, só que trinta vezes maior. O Cachorrinho agora estava tão grande quanto sua bisavó, Naná, a Ba-bá-Cachorra, e sua dedicação era em tudo igualmente enorme. Lançou-se em defesa de Peter com dentes e garras, latidos e rosnados, e não soltou sua presa — emaranhou-se e não podia soltar —, e puxou, e lutou, e arranhou e mordeu até deixar Gancho igual a uma mecha de cabelos de sereia morta na margem de uma Lagoa envenenada.

João juntou o Tesouro espalhado entre o pân-tano vermelho e as árvores: taças, troféus, bonés. Olhou em volta procurando algo onde carregar aqui-lo tudo e deu com o casaco vermelho jogado no chão, todo rasgado.

— Deixe isso aí — disse Pan, generoso na vi-tória. — Não é o tipo de Tesouro de que gosto. Não preciso de nada disso. E era verdade, porque o me-nino com a túnica de folhas e os pés descalços sujos de lama não se parecia nem um pouco com o Capitão Jaime Gancho. — Deixe tudo aí.

A Enfermeira Piuí teria gostado de praticar, enfaixando o ferido ou improvisando uma tipóia, mas não teve coragem de chegar perto do homem des-manchado no chão. De modo que foi Wendy quem afinal se aproximou e se agachou ao lado de Novello. Ela já costurara pegadores de panelas. Já costurara

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panos de bandeja e aventais. Certa vez, até costurara a sombra de um menino, que se desprendera dele. Mas suas habilidades com linha e agulha não a capa-citavam para aquele tipo de remendo em especial.

— O senhor está morrendo, senhor Novello? — perguntou ela.

— Receio, senhora, que eu esteja... desfeito, sim. Agradeço-lhe por salvar meus animais.

— Foi um pouco por culpa nossa que eles fo-ram esmagados.

Ela enfiou o remo azul e verde debaixo do braço dele, como se fosse uma bolsa de água quente, e empilhou os troféus e taças, formando uma bri-lhante pirâmide prateada onde ele pudesse vê-los ao morrer.

— Alguns estão bastante amassados, sinto muito.

— O valor deles não tem a ver com o estado em que se encontram, madame — seus olhos pousa-ram nos objetos com uma alegria inefável. — Sabe, pode ser que eu os devolva se me convidarem a falar outra vez para A Escola no Dia dos Discursos.

— Seria um Dia dos Discursos muito interes-sante, senhor Novello.

— Gancho! Meu nome é Gancho, madame. Capitão Jaime Gancho.

Wendy lembrou-lhe o conselho do doutor Cabe-linho:

— O sono é um grande remédio, sabia? O se-nhor devia dormir.

Por um segundo, um lampejo de amargo res-sentimento passou pelos olhos de Gancho.

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— Madame, faz vinte anos que não durmo. Desde o Crocodilo!

— Imagino que deva ser porque não teve nin-guém para lhe dar um beijo de boa-noite. Desde o Crocodilo, em todo caso.

O grande emaranhado disperso que era Jaime Gancho contorceu-se como uma velha rede de pesca apanhada pela maré-cheia. A voz soava fraca, mas não havia como negar a força dos sentimentos que o inspirava.

— Senhora, nunca tive ninguém para me dar um beijo de boa-noite! Minha mãe não era esse tipo de mãe... De qualquer maneira, seria vulgar, piegas, sentimental e... não muito viril.

Wendy balançou a cabeça, concordando, e deu-lhe uma palmadinha na mão.

— Mas vale a pena tentar? — Vale a pena tentar — admitiu o Capitão

Gancho. Assim, apesar de ser ele o pirata mais san-guinário de todos os Sete Mares e detestar seu amigo Peter Pan mais que a própria Morte, Wendy incli-nou-se e beijou a face de Gancho, depois o cobriu com os frangalhos da sobrecasaca vermelha.

— Boa noite, Jaime — disse ela, com sua voz mais maternal. — Bons sonhos.

E deixou-o sozinho, sabendo que a Morte logo chegaria para acalentá-lo em seus braços bondosos e indulgentes.

Peter assistiu a tudo e ficou furioso — de fato furioso, o que causava espanto, considerando-se que não estava mais usando a sobrecasaca vermelha. Suas faces inflamaram-se e ele chamou Wendy de traidora.

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— Gancho é o Inimigo! Se você é gentil com meus inimigos, deve ser minha inimiga também!

E fez o gesto de pegar sua espada. Ele não ti-nha espada, é claro; olhou para os outros, mas eles também não tinham mais espadas, porque os De-sengunços tinham tirado todas. Além disso, ninguém iria emprestar uma espada a Peter para ele matar Wendy. Infelizmente, isso não o deteve. A cada hora que passava, voltava-lhe mais um pouco do poder da Imaginação. Portanto, ele simplesmente desembai-nhou uma espada imaginária e usou-a

— Oh, Peter, não! — para cortar uma porta no ar.

— Janelas francesas para mim, por favor! — disse Wendy, com ar desafiador, e Peter, desconcer-tado, transformou a porta num par de janelas france-sas.

— Wendy Darling, você está sendo banida para a Terra de Lugar Nenhum por prestar socorro ao inimigo! Vá agora!

— Os batentes das portas não estão retos — disse Wendy, e cruzou os braços.

João adiantou-se, pressuroso, e abriu as portas, não porque quisesse ver sua irmã banida, mas porque fora bem educado e sabia que se deve abrir uma por-ta para uma dama. Os rostos dos Gêmeos revelavam seu intenso sofrimento. Wendy agradeceu polida-mente ao irmão e passou pelas janelas francesas de cabeça erguida.

Peter Pan contava que ela fosse pedir perdão e dizer a palavrinha-sem-a-qual-nada-se-faz. Mas agora ela estava do lado de fora, na Terra de Lugar Ne-

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nhum, e nem dissera “Desculpe!”. Tentou guardar desajeitadamente na bainha sua espada imaginária e deixou-a cair em cima do pé. E, como não conseguiu pensar em mais nada para fazer naquele momento, fechou as janelas e puxou os trincos, o de cima e o de baixo. Piuí explodiu numa grande choradeira.

Wendy não aparentava estar sendo muito cas-tigada. Nem muito banida, parada de braços cruzados do outro lado das portas.

— Afastem-se, por favor — disse ela, incisiva, e os meninos recuaram prontamente — até Peter Pan. Então, Wendy abaixou-se, pegou uma grande pedra imaginária e arremessou-a nas imaginárias ja-nelas francesas. Ouviu-se uma tremenda barulheira de vidro quebrado. — Asneira e baboseira! — disse ela, passando por cima dos destroços das vidraças, trin-cos e fechaduras, tomando cuidado para não rasgar seu vestido feito de bandeira pirata nas pontas que-bradas. — Peter, você às vezes é tão boboca!

João nunca ouvira sua irmã dizer nem “asnei-ra” nem “baboseira”, muito menos as duas palavras ao mesmo tempo. Pasmo, boquiaberto, ele limpou um pedacinho de vidro imaginário do cabelo dela.

Wendy saiu na frente, enérgica, pela trilha es-treita que deixava para trás a sombra do Monte do Nunca, e os outros a seguiram andando no mesmo ritmo.

— Será que você fez bem, mana? — cochi-chou o Primeiro Gêmeo, que precisava trotar para acompanhá-la.

— Sem problemas — disse Wendy. — Dobrei os joelhos e mantive as costas retas. Costumo tomar

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muito cuidado quando levanto pedras grandes. E não se falou mais nisso. No dia seguinte, Peter Pan já se esquecera

completamente da briga. Ele sempre esquecia direi-tinho as coisas que não queria lembrar.

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Capítulo Vinte e Quatro

Juntos outra vez Como não tinha o poder de voar nem dispu-

nha de um navio para navegar, a Companhia de Pan sabia que precisaria atravessar a ilha a pé para alcan-çar de novo a Floresta do Nunca.

Sem o vôo, sem a poeira de fadas e a compa-nhia de metade da Companhia, parecia mesmo que teriam um longo caminho a percorrer. À espreita, havia Desengunços e ferozes animais feridos, fadas hostis e harpias vorazes, desertos sedentos e piratas de segundo escalão, bruxas, dragões, pântanos e la-maçais imprevisíveis.

Subiam com dificuldade uma colina das mais cansativas, esperando encontrar embaixo a vastidão

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árida do Deserto da Bocasseca, quando o céu adiante ficou amarelo-ocre com a poeira voando. Uma tem-pestade de areia, pensaram. Então, chegaram ao alto da colina e, diante de seus olhos, descortinou-se uma visão que nenhum deles jamais esqueceria. Lá em-baixo, fluindo em grande número pela chapa quente das areias visionárias do deserto, vinham todos os bisões e cavalos selvagens e travois arrastando a carga e índias e cães bravos e pássaros-do-trovão e tambo-res e crianças índias e cocares de guerra e cachimbos da paz e tranças de cabelos e bastões de guerra enfei-tados e mocassins e arcos e flechas que compunham as Tribos das Oito Nações.

Os sinais de fumaça enviados por Peter do alto do Monte do Nunca não se tinham desmanchado completamente. Agora, tribos vindas do norte, sul, leste, oeste e do outro lugar aproximavam-se com um estrugir de trovoada pelo Deserto da Bocasseca o mais rápido que seus cavalos selvagens e bisões po-diam levá-los. Ao avistarem Peter Pan e seus com-panheiros Exploradores, começaram a bater em seus escudos e em seus tambores e em seus filhos e assim por diante, produzindo um coro triunfal de saudação.

As Tribos ofereceram uma potlatch para a Liga: uma festança que consistia em comer, beber e dar de presente aos homenageados a maior parte de seus pertences. Deram muitas coisas para Peter, Wendy, Piuí, os Gêmeos e João (que ficou numa empolgação além da conta). Infelizmente, porém, por não terem nada com que retribuir, as crianças tiveram de dar de volta aos índios os presentes que tinham acabado de receber.

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No banquete que se seguiu, uma linda Princesa veio pintar os rostos deles com as tintas da guerra, comunicando-lhes que daí em diante seriam mem-bros honorários das Oito Nações.

— Olá, Lírio Selvagem — disse Peter. Mas a Princesa olhou para ele com uma cara estranha e dis-se que se chamava Princesa Agapanto.

— Ah, nunca me lembro dos nomes das pes-soas — justificou-se Peter. — Nem dos rostos.

— O que houve com vocês, Gêmeos? — per-guntou Piuí. — Só porque tiveram de devolver aque-las facas Bowie...

Mas os Gêmeos não estavam chorando por causa das facas Bowie. É que acabavam de se lembrar que um dia tinham tomado um ônibus em Putney, adormecido e acordado ambos usando pintura de guerra.

— Será que vamos ver Putney de novo, Wendy? — perguntaram.

Wendy respondeu com o ar mais prático e efi-ciente que conseguiu:

— Vamos ter de esperar as fadas acabarem de brigar e nossas sombras crescerem outra vez. Vejam só: as suas já estão começando a aparecer.

Os Gêmeos se animaram — e aí, é claro, suas sombras pararam de crescer, o que de certa forma anulou os esforços de Wendy para animá-los.

Viajaram no meio de uma nuvem de pó, com uma escolta de oito Nações (sem falar nos bisões), e atravessaram o Cemitério dos Elefantes, cruzaram o Passo de Tango, as ruínas primitivas da Cidade do Nunca e os Bosques Acadêmicos. Se havia Desen-

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gunços ou leões de tocaia, os bisões e travois os a-chataram na passagem, porque de repente o horizon-te surgiu viçoso e verdejante com as árvores da Flo-resta do Nunca, e as Tribos logo disseram adeus e deslocaram-se em oito direções diferentes — para suas tendas cônicas, cabanas navajos, kivas ou casas compridas comunais iroquesas, casas redondas ceri-moniais, bivaques ou paliçadas; e alguns para dormir ao ar livre sob o céu estrelado.

— Onde vamos dormir esta noite? — per-guntou Piuí.

A Árvore do Nunca ainda se encontrava onde caíra, derrubada pela tempestade, como se alguém tivesse riscado um traço gigantesco anulando alguma coisa. Todas as suas folhas tinham sido queimadas pelo incêndio. O caminho percorrido para chegarem em casa fora longo, e eles quase esqueceram que a casa não estava no lugar de onde tinham partido.

— Amanhã, podemos todos começar a cons-truir o Forte Pan — anunciou Peter, sem, contudo, responder direito onde iriam dormir.

No final, foi mesmo o Cachorrinho que serviu de cama. Deitou-se de lado e os Exploradores ani-nharam-se entre as suas patas da frente e de trás, no meio do pêlo comprido. O Cachorrinho não era grande coisa como babá — lambeu-os um pouco an-tes de dormir, mas esqueceu a escovação dos dentes e as orações da noite.

Secretamente, sentia falta de Deleve, de Cabe-linho e daquele interessante homem mastigável que cheirava a ovo, gotas para a tosse e medo. Enquanto a Companhia de Pan contemplava as estrelas, Wendy

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contou-lhes uma história de fadas sobre um passari-nho branco nos Jardins de Kensington. Uma brisa morna soprou pela Floresta do Nunca.

Repentinamente, sem aviso e com um rebuliço que fez todo mundo rolar para cima de todo mundo, o Cachorrinho se levantou. Dirigiu-se com seu andar pachorrento para o meio das árvores e só parou quando encontrou a antiga casa subterrânea de Peter. Aí, começou a cavar.

Ora, o Cachorrinho, quando não passava de um cachorro pequeno, caiu certa vez dentro da casa subterrânea e, naquela ocasião, só pensou em sair dali o mais rápido possível. Agora, porém, que media um metro e vinte de altura, tornara-se mais ambicioso. Ouvia e sentia o cheiro do Algo lá embaixo e estava determinado a entrar no velho abrigo. No momento em que os Exploradores chegaram no lugar, o Ca-chorrinho já havia cavado um buraco tão grande que daria para enterrar a arca do Tesouro nele. João aler-tou:

— Cuidado, Cachorrinho, você vai cair pelo te...

— R o

u ff! — disse o Cachorrinho (ou al-

guma coisa parecida) e caiu abruptamente na casa subterrânea onde Peter havia morado antigamente com seus Meninos Perdidos. Agora, o Algo teria de aparecer, fosse ele um texugo, o Slaggoth ou uma trufa gigante, e os viajantes exaustos, petrificados, aguardavam uma visão terrível.

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Diversas coisas, na verdade, surgiram do bu-raco no teto da casa subterrânea, umas mais depressa que outras:

- luz de vela, - latidos, - música (logo interrompida), - ganidos assustados, - barulho de móveis sendo quebrados, - Cachorrinho resfolegando, - ausência de luz de vela, - aquele ruído característico que as pessoas fa-

zem quando o pescoço delas é lambido no escuro; - em seguida, uma bandeira branca de rendição

(que na realidade era cor-de-rosa e estava amarrada em uma bengala, mas era o único lenço disponível e é difícil distinguir o rosa do branco no escuro).

- então, Mais-Deleve-Ainda - e doutor Cabelinho, DM MCRC, - e Barrica, Primeiro Imediato de Gancho, o

mais sanguinário pirata que já navegou pelos Sete Mares.

— Muito bem, Cabelinho! Muito bem, Deleve! Ele é seu prisioneiro? Vocês o prenderam, é? Luta-ram com ele sem arma nenhuma, de mãos vazias? — perguntou João, partindo a bandeira cor-de-rosa de Barrica em cima do joelho.

— Claro que não — disse Deleve, pondo a mesa de volta no lugar. — Ele preparou um chá ex-celente para nós. Pelo jeito, há anos o senhor Barrica está morando aqui. Arrumou tudo e a casa ficou muito aconchegante.

— Então, quer dizer que agora é um esconde-

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rijo de bandidos? — perguntou João, esfregando o joelho.

— Acho que é mais uma casa de aposentado — opinou o doutor Cabelinho.

Ninguém pensou duas vezes sobre falar ou não com Deleve ou Cabelinho, apesar de eles serem grandes. (Isso talvez tivesse algo a ver com as janelas francesas quebradas.) Quanto a Barrica, ia de um lado para outro, ocupado e diligente, reacendendo velas e juntando as cadeiras para todos se sentarem.

— Pensei que Gancho tivesse mandado você servir na Grande Guerra — disse Piuí a ele.

— Eu e mais os outros todos, mandou, sim. Os outros... se perderam. E fiquei só eu. Aí, viajei por lá dando palestras sobre a vida a bordo do Terror dos Mares e como Barrica era o único homem que Jaime Gancho temia.

— Acho que cheguei a ver um cartaz a respei-to — disse Cabelinho.

— É verdade, senhor Barrica? Que Jaime Gancho tinha medo do senhor?

— Céus, claro que não, garoto! O que a ver-dade tem a ver com o show business? Mas a gente tem de se arranjar pra viver. No fim, também fui ficando com medo... Que Gancho ouvisse falar e saísse atrás de mim e cortasse a minha língua mentirosa, ou algo assim. Fui um moleirão, admito, mas costumava so-nhar com ele se esgueirando para fora daquele Cro-codilo e vindo me perseguir, o gancho reluzindo e ele dizendo meu nome com a boca bem torcida: Barrica-aa! (Os Exploradores se entreolharam, mas ninguém deu a má notícia a Barrica: que seus sonhos não esta-

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vam muito longe da verdade.) — Me deu um chilique, mandei às favas o cir-

cuito de palestras e fui vender produtos de limpeza doméstica de porta em porta. Esfregões. Esponjas Panos de chão, coisas assim. (A casa subterrânea de fato parecia muito limpa e arrumada, além de bem abastecida de esponjas, panos de chão, esfregões e coisas assim.) ...Mas sentia falta deste lugar. Isto é, da Terra do Nunca. — Olhou em torno como se a Terra do Nunca inteira estivesse contida dentro da peque-nina toca de paredes de terra onde ele morava. — Por isso, surripiei um carrinho de criança e voltei pa-ra cá navegando nele.

— Como, se não é uma criança! — exclamou João, impressionado.

— Não, mas havia uma escassez de piratas a-qui, graças a vocês, de modo que consegui uma per-missão... Seria capaz de matar por moedas de choco-late: calculo que isso faça de mim quase um Menino Perdido.

— Mas você não trabalha mais como pirata? — Não... Até que tentei, mas não tinha mais

cabeça para isso, sei lá. Não sem um Capitão, sem um navio. Metido a Besta aparece aqui de vez em quando para tomar rum com bolinhos. Contamos umas loro-tas um para o outro. De modo geral, não sinto falta de tanta coisa... apesar de gostar um bocado de talco, e isso não se encontra para comprar aqui na Terra do Nunca. Não com dinheiro de verdade. Bem, nem com dinheiro de chocolate, o que é de espantar!

— Havia um pouco a bordo do Terror dos Ma-res — disse Wendy.

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— Aquilo era pólvora, mocinha. Não é a mesma coisa... Pensando bem, tenho levado uma vi-dinha calma, desde que cheguei aqui. Isto é, até esta noite. O que esse cachorro horrível de vocês está fa-zendo agora? Não faço meus paninhos de crochê pa-ra um cachorro vir destruí-los! — As crianças tiraram o pano de crochê da boca do Cachorrinho, que o desmanchava com os dentes, lembrando-se do ho-mem mastigável que cheirava a medo. — O senhor Cabelinho e o senhor Deleve estavam me contando alguns momentos emocionantes por que passaram na vinda para cá. Continuem, cavalheiros, por favor!

E assim, apesar da interrupção causada pela queda do teto e da chegada inesperada de Peter Pan & Cia., Cabelinho e Deleve retomaram a sua história.

— Voltávamos do Monte do Nunca, seguindo na direção do recife e pensando em construir uma balsa ou fazer algum sinal para um navio de passa-gem, não sei ao certo. Ouvimos um barulho de gente correndo e gritando atrás de nós. De início, pensei que estivéssemos sendo perseguidos, mas eles passa-ram por nós em disparada, como uns possessos — eram Desengunços! — e berrando que leões iam pe-gá-los, e os ursos! Naturalmente, saímos correndo também, mas esses garotos devem ter mais prática que nós em serem perseguidos, porque logo ficamos na retaguarda. Eles corriam a toda, feito loucos, sem ligar para onde iam, não é, Deleve?

— Gritamos para avisar quando vimos onde eles iriam parar. Mas estavam concentrados demais em correr... direto para o Labirinto das Bruxas!

— Nem vimos os leões, não foi, Deleve?

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— Não, mas vimos as Bruxas! — Elas caíram em cima dos Desengunços em

um piscar de olhos. Foi horrível! — As mulheres levantavam aqueles rapazes

crescidos do chão... e os apertavam tanto que eles paravam de se debater no mesmo instante! E nós nos escondemos, não foi, Deleve?

— Deveríamos ter tentado salvá-los. Mas nos escondemos. Eu poderia ter tocado minha clarineta, mas nem tive fôlego para isso.

— E aí nos escondemos. — Pois é. Piuí não agüentou esperar: — E as Bruxas COMERAM mesmo os De-

sengunços? Os dois demoraram a responder. Esta-vam revendo na memória a cena horripilante que se desenrolara no Labirinto das Bruxas, em que um por um dos Desengunços fora capturado. Não podiam esquecer os estridentes gritos de triunfo das mulhe-res, que mergulhavam os rostos nos pescoços, narizes ou orelhas (difícil saber à distância) e a maneira como cada prisioneiro gradualmente parava de lutar e se entregava sem resistência, o corpo mole, nas mãos de suas captoras. Deleve e Cabelinho cobriram os rostos com as mãos e balançaram o corpo, angustiados, ar-rependidos por não terem feito mais para ajudar.

Barrica, enquanto isso, comia um muffín, um daqueles bolinhos ingleses.

— Pobres coitados — comentou ele, a boca alegremente cheia. — Agora, imagino que vão ter de se submeter a tudo: banhos, cortes de cabelo, beijos; musiquinhas para dormir cantadas por gente mais

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desafinada que um piano velho. Todas aquelas mo-chilas escolares, e fricções no peito para curar resfri-ados e calções de banho feitos de lã, e tias velhas. E tapioca!... mas não entendo por que vocês as chamam de “Bruxas”. Aquelas mulheres não são Bruxas. — Ele remexeu numa caixa de lápis procurando um tu-binho de alcaçuz, que limpou com um limpador de cachimbo antes de sugá-lo como se fosse mesmo um cachimbo. Só então notou que os outros o olhavam fixo. — O que foi?

— Mas o lugar se chama Labirinto das Bruxas. É claro que são Bruxas! — disse Piuí.

Barrica deu um risinho de desdém. — Quem contou isso a vocês? — O Capitão G... — O senhor Novello, dono do circo, foi quem

nos contou! — disse João, interrompendo Piuí. E repetiu a triste história das babás despedidas, postas para fora das casas, loucas de ódio e querendo vin-gar-se das crianças na Terra do Nunca. — Labirinto das Bruxas, era como o chamava. Talvez o senhor se refira a outro lugar.

Barrica mordeu a ponta de seu cachimbo de alcaçuz e mastigou-o até sua saliva ficar preta.

— Lá existem rochas listradas todas escavadas pela água? Fica perto do Recife do Remorso? O seu amigo senhor Novello não entende nada de Bruxas. Não sabe a diferença entre pança e pinça. Aquele é o Labirinto dos Lamentos! Que história é essa de ba-bás? Conversa fiada! Nenhuma criada iria enfrentar a fúria do mar em um carrinho de criança aberto, nem por ódio nem por outra coisa qualquer! Ora, ora!

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Aquelas senhoras são as Inconsoláveis! Ninguém mais se arriscaria numa viagem assim. Elas fazem o que têm de fazer. É o instinto, não conseguem se controlar. Fariam qualquer coisa. Mães são assim mesmo.

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Capítulo Vinte e Cinco

As Inconsoláveis Encontravam-se novamente em terreno ele-

vado, o mar uma cintilação distante, a relva rala transformando-se em rocha nua sob seus pés. O La-birinto dos Lamentos e suas rochas em camadas lis-tradas, com cristas em ângulos agudos como se fos-sem cotovelos, estendia-se diretamente à frente, e de lá vinham sons tristes e uma estranha mistura de ve-lhos perfumes.

— Isso é perigoso — disse Peter Pan.

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Wendy pousou a mão em sua manga, mas ele se desprendeu, dizendo:

— Ninguém pode tocar em mim. — Mas Deleve e Cabelinho têm de ir para casa

— disse Wendy pela qüinquagésima vez. — São grandes demais para morar em Forte Pan, e não têm o menor jeito para serem Desengunços. Nem piratas. Nem índios peles-vermelhas.

Aquela era a sua única Saída, sua Saída de E-mergência da Terra do Nunca: o Labirinto. Naquele lugar, as mães dos Meninos Perdidos passavam anos procurando os bebês que tinham perdido um dia. Nem todos os casos podiam ser atribuídos à negli-gência das babás. (Muitos pais não dispõem de re-cursos para pagar uma babá.) Mesmo quando são os pais que cuidam deles, muitos bebês se perdem — caem dos carrinhos, são jogados fora junto com a água do banho ou são postos para fora de casa em vez do gato. Enganos acontecem até nas casas mais bem organizadas.

E, quando acontecem, o resultado é sempre o mesmo. Em algum lugar, a mãe faz a mala, empurra o carrinho vazio até o cais do porto local — seja Grimsby, Marselha ou Valparaíso — e faz-se ao mar. Mantendo uma bóia vermelha na proa e uma verde na popa, ela sai à procura de seu menino em um lugar desgastado por milhões de lágrimas. Sem a mágica para entrar pela Terra do Nunca, ela termina aqui, no Labirinto dos Lamentos, e vive dia após dia alimen-tando-se de sanduíches de ovo com agrião e da espe-rança de que seu menininho um dia vá aparecer asso-biando na próxima curva do Labirinto.

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Os Desengunços, quando desembocaram sem querer dentro do Labirinto, foram disputados como pechinchas em uma liquidação. Mulheres descabela-das com olhares desvairados agarraram-nos e exami-naram seus rostos procurando traços de família, e seus corpos em busca de marcas de nascença. Jovens que sempre se esforçavam para sequer se encostarem uns nos outros foram afagados, beijados, abraçados — banhados de lágrimas e limpos com lenços ren-dados. O que Deleve e Cabelinho presenciaram não foi um massacre. Foi um reencontro!

Entre os Desengunços, umas dez mulheres ti-nham encontrado o que procuravam, e deixaram a Terra do Nunca com seus filhos troncudos e trom-budos. Já ao entrar em seus carrinhos de longo curso — todos preparados para navegar em alto-mar — no Recife do Remorso, as mães começavam a dar poli-mento nos filhos, das boas maneiras às roupas esco-vadas.

E, fiquem sabendo, toda mãe que procura seu Menino Perdido até o encontrar é capaz de voltar para casa sem se perder. A viagem pode ser longa e perigosa, petroleiros e luxuosos navios de turismo às vezes as atropelam nas rotas marítimas, mas seu ins-tinto de regresso para o lar é tão forte quanto o dos gansos canadenses ou o dos pombos-correio. A casa envia-lhes sinais tal e qual um farol aceso do alto de um penhasco distante. São quase compelidas a chegar lá. Agora era a vez de Deleve e Cabelinho entrarem no Labirinto, e nenhum dos terrores que tinham en-frentado em sua aventura ao Monte do Nunca se comparava com o medo e a tremedeira que sentiam

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naquele momento. Sendo adultos — Deleve um ra-paz de dezoito anos, Cabelinho um médico formado —, não podiam demonstrar seu medo, é claro, e ali-savam o cabelo, ajeitavam as golas e davam brilho nos bicos dos sapatos esfregando-os na parte de trás das pernas das calças. (O que era difícil para Deleve, que estava descalço e sem calças. Mas pelo menos sua camisa servia; ao contrário do suéter que Barrica ti-nha tricotado para Cabelinho durante a viagem da Floresta do Nunca para lá.)

— Mas nós já temos mãe! — protestou Deleve mais uma vez. — A senhora Darling nos adotou!

— Sim, meu querido, mas antes que Mamãe os adotasse, você e todos os Meninos Perdidos tinham suas próprias mães... em algum lugar.

— A minha não vai estar aqui — disse Cabe-linho, melancólico. — Ela não iria sair à minha pro-cura. Não viria tão longe.

— Viria, sim — disse Wendy, pondo-se nas pontas dos pés para dar um beijo no queixo dele.

— Mesmo que ela não tenha vindo — argu-mentou Piuí sem pensar —, uma dessas mulheres provavelmente vai pensar que você é filho dela e le-vá-lo para casa.

— Está bem, então — conformou-se Cabeli-nho.

— É isso, então — concordou Deleve. — Até Londres — despediu-se João. — Até Londres — disse Cabelinho. — Boa viagem — desejou Wendy. — Dê

lembranças nossas a Bicudo. — Não se afoguem — disse Piuí, derramando

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uma ou duas lágrimas. Peter deu-lhes as costas e recusou-se a apertar

as mãos deles. Não compreendia como alguém podia querer ir embora da Terra do Nunca. Oferecera-se para tentar fingir que Deleve e Cabelinho tinham vol-tado a um tamanho tolerável, mas eles haviam prefe-rido ir para aquele lugar. Peter mal podia esperar para voltar à Floresta do Nunca. Havia brincadeiras à sua espera. Pilhas de aventuras. Um forte a ser construí-do.

— Vão logo — disse ele. — Se têm de ir, vão de uma vez.

Cabelinho e Mais-Deleve-Ainda bem que gos-tariam de ajudar a construir o Forte Pan. Mas a lem-brança das esposas, do trabalho, de Bicudo e dos ô-nibus de Londres estava efetuando sua mágica nos dois rapazes. Endireitaram os ombros e seguiram em direção ao Labirinto. Cabelinho só se virou uma vez:

— Eu era tão pequeno quando me perderam. Como minha mãe vai me reconhecer? — perguntou, e por um momento pareceu um menino menor que todos os outros ali.

— Ela vai reconhecer você, não se preocupe — disse Wendy. — Com certeza.

Deleve levou a clarineta aos lábios e começou a tocar. Cabelinho foi na frente. Seus amigos ansiosos desceram a colina todos juntos atrás deles para ver o que ia acontecer.

Mulheres atormentadas por anos de desgostos e angústias ergueram as cabeças ao ouvir a música. Piscaram, confusas, ao verem um jovem e um ho-mem adulto, pois pensavam ser aquele um lugar só

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de crianças, e eram as crianças que ocupavam todos os seus pensamentos. Não caíram em cima de Cabe-linho, porque ninguém poderia imaginar... ninguém estava esperando... uma pessoa assim. Ele distribuiu apertos de mão. As mulheres se ajeitaram e prende-ram mechas soltas de cabelo, umas até ensaiaram uma mesura. Acalmadas pela música e apanhadas de surpresa, deixaram Cabelinho falar, e as crianças, de longe, viam-no explicando, descrevendo, apontando para a direção de onde viera.

A certa altura, ele deve ter mencionado seu nome, pois através da aglomeração cada vez maior de mães veio uma mulher, investindo como um cavalo nadando em águas profundas, esticando o pescoço ou abaixando a cabeça para ao menos entrevê-lo, a-brindo caminho. Tranças que por trinta anos tinham se mantido meticulosamente enroladas soltaram-se e ela colidiu de frente com Cabelinho. A Liga de Pan fechou os olhos... e quando os reabriu, Cabelinho ajudava sua mãe a prender o cabelo.

Deleve levantou os olhos de uma mudança de tom especialmente difícil na clarineta e deu com uma mulher magra, com dedos magros e compridos e um rosto magro de artista olhando para ele.

— Você não levou isto, meu querido — disse ela —, quando se perdeu. — E mostrou-lhe um cho-calho de bebê com sininhos nas duas pontas.

Nesse instante, as canções de Deleve — as que ele guardava na cabeça, as que havia na clarineta e as que existiam em seu coração — todas se afinaram em Dó Maior.

Foi aí que os Gêmeos se distanciaram um

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pouco dos outros, chegaram perto demais do Labi-rinto e escutaram alguém chamando:

— Marmaduque? Bínqui? Se vocês pensaram que os dois irmãos real-

mente se chamavam Primeiro Gêmeo e Segundo Gêmeo desde que nasceram, é possível que tomem um susto. Mas não. Juro, eles foram perdidos quando eram tão pequenos que seus nomes não passavam de uma lembrança apagada. No entanto, quando sua mãe — as mãos ainda sujas de massa, o cabelo em-poeirado de farinha — veio correndo e olhando e piscando e chorando e rindo e precipitando-se para eles — Marmaduque? Bínqui? — eles se lembraram muito bem. Marmaduque e Bínqui. Ah, bem. Todo mundo comete erros. Felizmente, os Gêmeos gosta-ram dos nomes como ninguém mais poderia gostar, e consideraram-se os meninos mais sortudos do mun-do. Porque agora eles tinham duas mães! A senhora Darling sempre seria a mãe de verdade, porque ela os adotara quando eram Meninos Perdidos, e os criara, e os deixara lamber a tigela do bolo, e dar banho no cachorro com xampu, e ir dormir com pintura de guerra no rosto e viajar no andar de cima dos ôni-bus... Mas ali estava uma NOVA mãe de muito tem-po atrás — a que lhes dera os dois melhores nomes do mundo. Wendy virou-se para Piuí.

— Você também poderia ir para casa desse mesmo jeito, sabia, Princesa?

Piuí sacudiu a cabeça, determinada. — Não vou embora nunca! — declarou. —

Vou ficar aqui para sempre e brincar de casamento com Peter!

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Uma raposa dentro de um galinheiro não teria causado maior tumulto. Wendy olhou para Peter, Pe-ter olhou para Wendy, e havia pânico de verdade nos olhos dele.

— Piuí! Você sabe muito bem que tem uma família esperando por você em Grimswater — aler-tou João. Mas, lamentavelmente, Piuí esquecera-se por completo de Grimswater, do Clube dos Cava-lheiros e que era um juiz da Suprema Corte.

— Vou ser Piuí Pan, e Peter vai colher flores para mim, e levantar os pés quando eu varrer o chão, e vou dizer aos pequenos: “Você vai ver só quando seu pai chegar em casa!”

Por alguma razão -— não sei qual — Wendy escolheu esse exato momento para irromper pelo La-birinto adentro gritando:

— Piuí! Tem uma Piuí aqui! Alguém perdeu uma Piuí?

Um homem com o rosto da cor de couro marroquim, usando uma peruca toda cacheada de advogado e trazendo um livro imenso debaixo do braço, saiu de trás de uma pedra. Sacudiu um dedo em riste para ela, severo:

— Não seja ridícula, mocinha! — disse, estu-dando Wendy de cima a baixo. — Está tentando se fazer passar por meu filho Piuí? Absurdo! Despauté-rio! — Entretanto, quando ia abrindo o livro para ver qual a lei que Wendy infringira, avistou a Princesa Piuí, amarrando as fitas de cetim de suas sapatilhas de balé e praticando seu plié. — Arrá! Aí está você, filho — disse, rabugento, sem duvidar um segundo. — Já estava na hora! — E então, em um rompante de ale-

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gria incontrolável, tirou sua peruca de juiz, jogou-a para cima e dançou ali mesmo uns passinhos Salti-tantes de uma giga.

— Pais, também — murmurou Barrica. — Quem diria!

Sentada nos ombros do pai e usando a peruca dele, Piuí se foi sem ao menos espiar para trás.

Wendy olhou para Peter, Peter olhou para Wendy, e havia um grande MUITO OBRIGADO escrito nos olhos dele.

— Podemos ir também, Mana? — perguntou João, contagiado por toda aquela felicidade. Uma es-tranha forma de contágio, que fazia seu pescoço doer embaixo do queixo, como se tivesse caxumba. Co-meçou a olhar para um e outro lado, em busca de uma mãe que o escolhesse.

Wendy também sentia o coração apertado pela vontade de ir para casa ver sua filha Jane. Mas sabia que aquela não era a sua Saída de Emergência da Ter-ra do Nunca.

— Não há ninguém aqui à nossa procura, Jo-ão. Nunca fomos Perdidos, lembra? Voamos para a Terra do Nunca por nossa própria vontade, e volta-mos para casa antes que nossa mãe atravessasse o mar para vir nos procurar.

Reparou, porém, que João continuava procu-rando com os olhos, ainda imaginando como seria a vida com outra mãe, uma mãe diferente, aquela com o cabelo louro, por exemplo, ou aquela de cabelos vermelhos.

— Vamos ficar aqui, João, até nossas sombras crescerem outra vez... e as fadas deixarem de ser idi-

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otas e podermos pedir poeira de fadas a elas... e o Forte Pan ser construído.

— Ótimo — disse Peter, com ar decidido. — Não me importo que vocês fiquem. Vocês sabem brincar direito.

— Nada que os impeça de vir comigo! — dis-se Barrica, entrando na conversa e aproximando-se com suas pernas arqueadas de marinheiro. — Estou precisado de uma tripulação para a viagem de volta para casa! Acho que vou fazer uma visita ao nosso velho país, agora que tenho uma mãe a bordo para me dar sorte.

Baixinho como era, Barrica conseguira arranjar alguém ainda menor que ele para lhe dar o braço: uma senhora idosa minúscula, de cabelos brancos como neve e um sorriso angelical.

Wendy bateu palmas de alegria. — Ah, que maravilha! Essa é sua mãe, Barrica?

Barrica falou escondendo a boca com a mão. — Que nada. Surripiei ela também... Mas ela

não enxerga quase nada, por isso jamais vai notar. E está bem contente comigo... Então, quem mais vai, hein? Animem-se! Todos a bordo do Pato dos Mares, rumo ao Serpentine, com escala em Kirriemuir!

Todos os carrinhos de bebê que enlanguesci-am de tristeza nas pedras do Recife do Remorso fo-ram amarrados uns aos outros e formaram uma i-mensa balsa. Como ovos naquelas caixas de ovos dos mercados, todos os que iam para casa se espremeram dentro dos compartimentos ocos. Até o Cachorrinho. E todos couberam.

Encontrar lugar para tanta felicidade era o ú-

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nico problema. Wendy foi a última a ficar na praia. — Venha conosco, Peter! — exclamou ela de re-

pente, segurando-lhe a mão. — Ah, por favor, venha conosco! Conheço um lugar onde se pode encontrar fadas! E, quando sua sombra crescer de novo, você pode voar de volta para cá e...

Com um gesto brusco, Peter soltou a mão. — Não ando por aí com gente grande — res-

mungou, dando as costas ao bom navio Pato dos Ma-res.

Wendy pegou a outra mão dele e puxou-o para um lado.

— Tenho um cochicho para você — disse ela. — Isso é igual a um dedal? De certa forma, era. Fez o cabelo de Peter se

arrepiar e ele sentir cócegas no pescoço, e ele queria — e não queria — afastar a cabeça enquanto

Wendy cochichava em seu ouvido. — Andei pensando... — cochichou ela. — Você não quer brincar de Casamento, quer? — esganiçou-se Peter, num pânico escancara-

do. Wendy fez uma cara desolada. — Peter, vamos supor que a sua mãe... O rosto de Peter fechou-se como as cortinas

de uma janela. — Não. — Mas, Peter! Suponha que ela seja igual a to-

das essas aí: que ainda espera ver você um dia! Talvez ela até...

Mas a boca delicada de Peter endureceu em

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uma linha reta e ele pôs os dedos nos ouvidos. Uma vez, voara para casa e encontrara a janela de seu quarto fechada e trancada. E um outro menino dor-mindo em sua cama. Recusava-se a escutar qualquer coisa boa a respeito de mães.

Os carrinhos de bebê, livres das rochas, senti-ram o puxão muito distante do Rochedo MagNeto, e o Pato dos Mares começou a mover-se para o mar. Jo-ão e Cabelinho e Deleve e Barrica, todos gritaram para Wendy:

— Venha, venha para bordo depressa! Não fique para trás!

Por um instante, ela achou que não poderia deixá-lo — seu amiguinho Peter, tão selvagem e frágil e lindo como uma folha de outono soprada pelo vento. Achou que não agüentaria perder todas as brincadeiras que os esperavam, todas as aventuras que se estavam empilhando. Deu-se conta de que nem sabia onde iria ser construído o Forte Pan — no alto das árvores, projetando-se dos penhascos íngre-mes ou sobre estacas dentro da água da Lagoa.

No fundo de seu coração, porém, a menina Wendy era uma pessoa adulta (da mesma forma que todos os adultos, no fundo, são crianças). O amor por sua família a estava puxando para casa, tal e qual fazia o distante Rochedo MagNeto. Quando parecia que o espaço entre a balsa e as pedras ficara grande demais até para o salto de um acrobata de circo, Wendy Darling pulou do Recife do Remorso e caiu ao lado de seu irmão, a bordo do bom navio Pato dos Mares.

Sob o comando de Barrica, todas as capotas

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dos carrinhos foram levantadas para pegar o vento, e a balsa atravessou as ondas rumo à barra. Ocor-reu-lhe subitamente mais uma idéia, e Wendy levan-tou-se com um movimento abrupto, fazendo a balsa balançar e os passageiros se assustarem. Wendy gri-tou para o menino na praia:

— Acho que sua mãe só fechou a janela para não deixar entrar o NEVOEIRO!

Ela viu Peter levantar as mãos para cobrir as orelhas, mas não deu tempo. Seus dedos curvaram-se, as mãos fecharam-se com força, como se ele tivesse apanhado no ar as palavras dela — apanhado e escu-tado, gostando ou não. Wendy acenou e continuou acenando até os reflexos ofuscantes da água turvarem sua vista.

Peter acompanhou com o olhar a balsa nave-gar para a barra — acompanhou-a até ela desaparecer em meio aos reflexos ofuscantes da água. Quando se virou, com um saltito e um pulo, para iniciar sua lon-ga caminhada de volta à Floresta do Nunca, surpre-endeu-se ao dar com um pedacinho de sombra re-cém-crescida abrindo-se como um babado em torno de seus pés. Não havia tempo para se perguntar que tristezas teriam-na feito crescer outra vez. As brinca-deiras o esperavam. E pilhas cada vez maiores de a-venturas.

Enquanto isso, não muito longe dali, um velho inimigo seu estava deitado no chão. E tão imóvel que qualquer um acharia que tinha morrido.

Apesar de seus ferimentos, porém, Novello não morrera. Pela primeira vez em vinte anos, com seu segundo melhor casaco servindo-lhe de cobertor

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e o beijo de Wendy no rosto, Novello dormiu — um sono mais profundo que a Lagoa. O sono cura tudo, é o que as pessoas vivem dizendo.

Sonhou com rochas em camadas listradas com cristas em ângulos agudos como se fossem cotovelos, escavadas em forma de calhas por um milhão de lá-grimas e, no alto de uma dessas cristas, havia uma mulher, com uma saia de listras em farrapos drapeada atrás e um longo e elegante pescoço de cisne. Tendo sido bela um dia, agora parecia uma estátua de praça pública desgastada pelo vento e pelo mau tempo. E tinha um rosto triste, muito triste, e os olhos vaga-vam de um lado para outro, à procura de algo ou de alguém. Com uma voz de cristal, ela chamava sem parar:

— Jaime! Jaime? Onde está você, Jaime? Novello dormia. O sono cura tudo; as pessoas

não estão mentindo quando o dizem. Novello dormi-a. E sua pelagem gordurenta, esfrangalhada por cão, doutor e espinhos de árvores... se refez. A lã desfiada, esfiapada e sem cor recompôs-se em carne e pano e cabelo. Os cachos brilhantes voltaram. As cicatrizes alisaram-se. Até a cor dos olhos dele percorreu o es-pectro das cores e passou do castanho-escuro para um azul muito vivo.

O que, ao contrário, se desfez foi o nome macio que ele havia escolhido: Novello — expondo a dure-za aguçada do nome antigo: Gancho.

Vinte dias depois, quando o homem acordou, foi Jaime Gancho quem se sentou e amaldiçoou a dureza do chão; foi Jaime Gancho quem apertou ao peito a Taça da Escola num fervoroso êxtase; foi

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Jaime Gancho quem se norteou pela bússola de metal que era o seu próprio coração; foi Jaime Gancho quem enfiou os braços nas mangas da sobrecasaca escarlate.

A roupa ficou bem nele. E ele ficou sendo a roupa. Roupas costumam ter esse poder. Mas quando Gancho viu de relance suas botas

sem brilho feitas de pele de crocodilo, o Passado voltou: um pesadelo relembrado.

— Prepare-se, cocoricó! — As palavras saí-ram-lhe com o calor de uma fornalha acesa. — Será doce a vingança, e fria, quando nos reencontrarmos um dia. Prepare-se, Peter Pan!

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Epílogo

Vocês acertaram em cheio. Houve muito o que

explicar na volta para casa. Imaginem a surpresa da mãe dos Gêmeos quando ambos lhe deram a mão, cada um de um lado, e levaram-na para casa em Chertsey. Imaginem o espanto dela quando eles pe-garam a chave da porta da frente e entraram, dizendo:

— Olá, Papai chegou! Imaginem o que ela disse quando os viu troca-

rem de roupa com os filhos pequenos e crescerem — Valha-me, Deus! —, voltando a ser homens adultos.

Os filhos deles também tinham algo a dizer sobre o assunto:

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— Você levou meu uniforme da escola! Deu a maior confusão!

— Devia ter levado meu pijaminha verde em vez do vermelo! O vermelo é o meu perdileto!

— Minhas sapatilhas de balé estão sujas de la-ma?! — (Isso foi na casa de Piuí.)

— Esta é a minha melhor camisa de rugby! — (Na casa de Cabelinho.) — E:

— Ah, Papai! Você fez o Cachorrinho crescer! Na casa de Bicudo, ele pôs os filhos no colo e disse para os visitantes:

— Contem para nós, contem tudo o que acon-teceu lá.

Vocês podem pensar que as mães do Labirinto se sentiram lesadas ao verem seus Meninos Perdidos crescerem de repente e surgirem como homens for-mados, mas não, isso não aconteceu. É muito melhor reencontrar um Filho Perdido, seja de que idade for, do que jamais reencontrá-lo.

Deleve, que não tinha mulher nem filhos para quem voltar, permaneceu como estava: com dezoito anos. Nem ao menos contou à sua mãe da Terra do Nunca que era um baronete, para não se arriscar a vê-la comprar um livro de etiqueta e obrigá-lo a se comportar de acordo. Apenas uma vez, deu uma fu-gidinha àquele clube de jazz para tocar clarineta. Quando as luzes se apagaram, porém, e o holofote brilhou em cima dele, descobriu que não podia mais tocar blues porque estava feliz demais. E foi tocar cla-rineta em uma orquestra de dança.

Quanto a Wendy e João, eles juntaram todos os refugos daqueles sonhos perturbadores — os

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chapéus e flechas e sabres e pistolas e ganchos — e deram tudo para o Barrica, que abriu uma loja em Kensington para vender suvenires da Terra do Nun-ca. Claro que ninguém acreditava que o lugar existisse — exceto as crianças que compravam os suvenires.

E, ao longo do tempo, Wendy contou tudo a Jane, naturalmente. Uma lembrança aqui, uma aven-tura ali. Jane pensava que estava escutando histórias que as mães contam para os filhos na hora de dormir; quando as recontava para Wendy, a menina mudava pedaços de que não gostava e acrescentava coisas que não tinham acontecido; Wendy nada dizia. Achava lindo escutar aquelas palavras reboando pelo quarto outra vez: “Terra do Nunca”, “Peter” e “Co-có-ró-cocó-róó!” (que era o melhor cocoricó que Jane sabia dar).

Talvez o que aconteceu à Terra do Nunca não tenha sido por culpa de Gancho, afinal. Ah, ele iria adorar que vocês pensassem que foi. Mas talvez não tenha sido o vidrinho do Mal guardado no bolso da camisa dele que vazou e envenenou a Terra do Nun-ca. Quem sabe, fragmentos que voaram da Grande Guerra — de granadas, de bombas e coisas assim — tenham aberto furos no tecido que separa a Terra do Nunca deste mundo. Os sonhos vazaram para fora pelos buracos; as sujeiras de gente grande vazaram para dentro. E foi quando as Terras do Verão se de-terioraram. Durante alguns tique-taques, o Tempo andou para frente no lugar onde o Tempo nunca an-da, e o verão transformou-se em outono, e as cor-rentes de ar insinuaram-se, malignas, e as amizades esfriaram.

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Qualquer que lenha sido a causa, isso não du-rou.

Sabem o jeito como as manchas roxas desapa-recem? Primeiro ficam negras, depois arroxeadas, depois azul-esverdeadas e por fim amarelas? Bem, a Terra do Nunca também se curou assim aos poucos. A neve derreteu e irrigou o Deserto da Bocasseca. As fontes transbordaram e encheram novamente os rios. A Floresta do Nunca queimada rebrotou. Finalmente, o sol amarelo saiu e se demorou no céu — às vezes, por dias a fio, porque estava se divertindo demais para ir dormir. A Lagoa faiscava, cheia de peixes, sol e sereias. Os vilões voltaram a ancorar ali os seus na-vios. Meninas e Meninos Perdidos seguiam para o Forte Pan.

As mães vinham procurá-los (é claro). As Tribos organizavam festas potlatch e davam

de presente tudo o que lhes pertencia — e até uma porção de coisas que não lhes pertenciam — só por prazer. As fadas fizeram uma trégua, embora bandos de dândis22 saqueadores, ainda durante muito tempo, tenham saído rasgando os arco-íris das cachoeiras para confeccionar túnicas. Mas não importa: as ca-choeiras também cicatrizaram.

De mãos dadas e com muita briga, Sininho e Pirilampo impuseram suas vontades aqui, ali e acolá na Terra do Nunca, inventando novas cores, jogando xadrez chinês com as estrelas e comendo os joelhos das palavras que tivessem muitas letras para ficar

22 Do inglês “dandy”, pessoa que se preocupa demais com sua aparência. (Nota da Editora.)

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mais fácil escrevê-las. Abriram juntos um negócio, vendendo sonhos para os Desengunços e os piratas em troca de fivelas de cintos e botões. Era um setor de trabalho meio perigoso — sobretudo a captura dos sonhos, com um fio esticado no chão para fa-zê-los tropeçar e uma rede —, mas a fada e o elfo estavam tão felizes que decidiram não serem mortos durante pelo menos uns cem anos.

Quanto a Peter Pan, sua sombra levou um tempo enorme para crescer inteira outra vez porque ele raramente ficava triste. Só quando pensava em Wendy e nos outros é que mais um pedacinho de sombra escura aparecia atrás dele — uma perna, uma cintura fina, o braço de segurar a espada... Por isso, ele ficou confinado à Terra do Nunca, sem poder voar, e os Darlings não o viram de um verão ao ou-tro.

Não se preocupem, porém. A sombra dele está completa hoje em dia. Ele pode voar para tão longe e tão alto quanto quiser — mais depressa que um lam-pejo de sonho na sua cabeça — mais longe até que lugares afastados como Fotheringdene e Grimswater.

Nunca perdeu aquela feia mania de escutar às escondidas. Portanto, talvez não tenha sido o barulho farfalhante das páginas sendo viradas o que você ou-viu enquanto esta história durou, mas o próprio Peter Pan, escutando. Em troca de uma história contada por você, ele pode lhe mostrar seu bem mais valioso: o mapa da Terra do Nunca que pertenceu a Jaime Gancho.

Em troca de um sorriso, pode lhe mostrar a própria Terra do Nunca.

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Digitalização/Revisão: Yuna

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