o papel das práticas na formação inicial dos...

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14 ESCOLA MODERNA Nº 4•5ª série•1998 1. Apresentação N um momento de intensos desafios para a Educação Pré-Escolar, propomo-nos re- flectir sobre alguns percursos da formação ini- cial dos educadores de infância no quadro uni- versitário. Com os constrangimentos resultantes do academismo desviado (atomização disciplinar, intelectualismo dos percursos, pobreza de in- teracções), contar-vos-emos a experiência de- senvolvida no âmbito de uma cadeira semes- tral denominada «Prática Pedagógica», único momento de confronto significativo das futu- ras educadoras com o contexto de intervenção do jardim de infância. É nosso objectivo partilhar a organização que imprimimos à cadeira, tentando transfor- mar a rigidez e o formalismo processual, as re- lações de poder e a aridez reflexiva que carac- terizam o estágio clássico, em tempos e per- cursos de desenvolvimento para os formandos, para os contextos onde intervêm e para a pró- pria casa de formação. Deste percurso, infelizmente muito curto e isolado, faremos pretexto para sublinhar algu- mas linhas gerais que hoje se perfilam como referências incontornáveis nos percursos de formação inicial, evidenciando implicitamente a modernidade e o carácter percursor das pro- postas do modelo de formação do Movimento da Escola Moderna Portuguesa. 2. Formação Inicial e Construção da Profissionalidade A formação inicial constitui-se quase sem- pre como o primeiro momento de construção intencional da profissionalidade dos educado- res. E, como tudo o que é de origens, esta «ini- ciação» pode ser determinante para o desen- volvimento da profissão, apesar da consciência de que «a parte mais eficaz da construção da profissionalidade se faz ao longo do exercício da profissão» (NIZA, S. 1997). Uma visão abrangente e interactiva da for- mação inicial dos educadores implica a com- preensão de que este tempo e os processos que nele ocorrem podem ser valiosos para o avanço das instituições de formação e para o avanço das escolas e dos educadores profissio- nais que cooperam na formação inicial. Uma formação inicial de qualidade é consequência e tem efeitos intensos sobre uma multifacto- riedade de contextos e de sujeitos, consti- tuindo-se referente importante para a mu- dança. É neste pressuposto que tentámos imprimir um carácter mais científico e mais interpela- tivo a uma pequena parte do percurso de for- mação inicial de uma turma de formandas do Curso de Formação de Educadores de Infância (ainda, ao tempo, bacharelato), mais precisa- mente no âmbito da disciplina de Prática Pe- dagógica IV. O papel das práticas na formação inicial dos educadores de infância Américo Peças

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    1. Apresentação

    Num momento de intensos desafios para aEducação Pré-Escolar, propomo-nos re-flectir sobre alguns percursos da formação ini-cial dos educadores de infância no quadro uni-versitário.

    Com os constrangimentos resultantes doacademismo desviado (atomização disciplinar,intelectualismo dos percursos, pobreza de in-teracções), contar-vos-emos a experiência de-senvolvida no âmbito de uma cadeira semes-tral denominada «Prática Pedagógica», únicomomento de confronto significativo das futu-ras educadoras com o contexto de intervençãodo jardim de infância.

    É nosso objectivo partilhar a organizaçãoque imprimimos à cadeira, tentando transfor-mar a rigidez e o formalismo processual, as re-lações de poder e a aridez reflexiva que carac-terizam o estágio clássico, em tempos e per-cursos de desenvolvimento para os formandos,para os contextos onde intervêm e para a pró-pria casa de formação.

    Deste percurso, infelizmente muito curto eisolado, faremos pretexto para sublinhar algu-mas linhas gerais que hoje se perfilam comoreferências incontornáveis nos percursos deformação inicial, evidenciando implicitamentea modernidade e o carácter percursor das pro-postas do modelo de formação do Movimentoda Escola Moderna Portuguesa.

    2. Formação Inicial e Construçãoda Profissionalidade

    A formação inicial constitui-se quase sem-pre como o primeiro momento de construçãointencional da profissionalidade dos educado-res. E, como tudo o que é de origens, esta «ini-ciação» pode ser determinante para o desen-volvimento da profissão, apesar da consciênciade que «a parte mais eficaz da construção daprofissionalidade se faz ao longo do exercícioda profissão» (NIZA, S. 1997).

    Uma visão abrangente e interactiva da for-mação inicial dos educadores implica a com-preensão de que este tempo e os processosque nele ocorrem podem ser valiosos para oavanço das instituições de formação e para oavanço das escolas e dos educadores profissio-nais que cooperam na formação inicial. Umaformação inicial de qualidade é consequênciae tem efeitos intensos sobre uma multifacto-riedade de contextos e de sujeitos, consti-tuindo-se referente importante para a mu-dança.

    É neste pressuposto que tentámos imprimirum carácter mais científico e mais interpela-tivo a uma pequena parte do percurso de for-mação inicial de uma turma de formandas doCurso de Formação de Educadores de Infância(ainda, ao tempo, bacharelato), mais precisa-mente no âmbito da disciplina de Prática Pe-dagógica IV.

    O papel das práticasna formação inicial doseducadores de infância

    Américo Peças

  • Moveram-nos três propósitos fundamen-tais:

    a) Acentuar a importância das práticas nocurrículo de formação inicial, utilizandoesse tempo de confronto com o real daprofissão não como uma simples (?) apli-cação de conhecimentos teóricos mas,fundamentalmente, utilizando o valorepistemológico das práticas, isto é, a im-portância e o significado dessa experiên-cia para o questionamento do próprioprocesso de formação, bem como o seucontributo para o melhor conhecimentosobre as condições da profissionalidade.

    b) Facilitar a consciencialização sobre acomplexidade dos processos educacio-nais, tentando contrariar as análises di-cotómicas e redutoras que, perversa-mente, são consequência de percursosformativos magistocêntricos, transmissi-vos e centrípetos. Num apelo constanteao discurso sobre o que os formandosviam e sobre como intervinham no con-texto das práticas, quisemos promoveras condições para um exercício efectivode comunicação entre os vários sujeitos(formandos-formandos, formandos-edu-cadores cooperantes, formandos-educa-dores cooperantes-docentes), fazendoavançar os processos metacognitivos so-bre os amplexos da profissionalidade deeducador.

    c) Quisemos ainda que as práticas se de-senvolvessem em torno de e referencia-das a um projecto: projecto de formaçãoque deveria emergir, integradamente, dodiálogo contratual entre sujeitos e sinaisde procedência diversa (instituição deformação, docentes, instituições de aco-lhimento, educadores cooperantes, con-texto de intervenção, grupo de crian-ças...). Projecto forjado na tensãocriadora entre visões, entre sentidos, en-tre interesses, entre necessidades, a que-rer facilitar o entendimento de que é estaconflitualidade que melhor caracteriza e

    mais avança a profissão e os profissio-nais. O projecto quis-se assim «instru-mento ordenador da intervenção, porajustamentos progressivos, e um pro-cesso de desenvolvimento pessoal e pro-fissional pela resolução continuada deproblemas reais e pelo aperfeiçoamentodas formas de operar» (NIZA, S. 1997 a.).

    3. As práticas pedagógicas na formaçãoinicial

    É hoje consensual que «a formação do fu-turo educador deve incluir uma forte compo-nente de reflexão a partir de situações práticasreais» (ALARCÃO, I. 1991). As práticas peda-gógicas devem constituir o eixo central da for-mação, o ponto de partida e o referente do de-senvolvimento da identidade profissional eminício de construção. As práticas pedagógicasfacilitam ao formando o investimento no seupróprio processo de formação, gerando e re-criando sentidos para a inter e intradimensio-nalidade do percurso de formação.

    O espaço da prática pedagógica dever-se-iaassim assumir como centro do design curricu-lar na formação inicial (ZEICHNER, 1993). In-felizmente esta centralidade está ainda longede ser vivenciada em muitos dos percursos deformação inicial que têm lugar nas nossas uni-versidades. Uma matriz permanentemente re-forçada no magistocentrismo determina umsistema isomórfico cristalizado que vem desdea Idade Média, reproduzindo modelos trans-missivos, atomistas, selectivos e intelectualis-tas (NIZA, S. 1998). Neste quadro, a disciplinade prática pedagógica dificilmente ultrapassa,para os formandos, o nível do desconfortoprovocado pela dualidade (percebida) entredois mundos: o da academia e o do jardim deinfância. Desconforto que os formandos ten-tam ultrapassar com a colagem possível ao«modelo» da educadora cooperante, não con-seguindo sequer traduzir algumas boas inten-ções que foram edificando, num permanentereforço do divórcio entre teoria e prática.

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  • Assumir as práticas como centralidade dodesign curricular na formação inicial, implicanecessariamente uma nova racionalidade so-bre as práticas pedagógicas, investindo-as decientificidade e significação para todo o per-curso da formação. Daqui decorrerá uma ou-tra epistemologia da formação, uma outra or-ganização curricular, novas tarefas, novascompetências, novos sentidos. É uma reflexãointensa (e urgente) mas que não é agora o pro-pósito deste escrito.

    4. O contexto da intervenção

    Delineadas algumas linhas gerais, sem pre-tensões de aprofundamento, sobre a questãodas práticas pedagógicas na formação inicialdos educadores profissionais, passamos agoraa descrever a breve experiência em que parti-cipámos no âmbito de uma cadeira semestral(6º semestre) do 3º ano do (então) bacharelatoem educação de infância da Universidade deÉvora.

    A cadeira denomina-se Prática PedagógicaIV e corresponde à dimensão interventiva sis-temática (4 dias por semana, 5 horas por dia)das formandas numa sala de jardim de infân-cia com quem existe protocolo de cooperação.Durante esse semestre (sensivelmente deMarço a Junho) as formandas são responsáveispela organização do trabalho na turma, com a«supervisão» das educadoras cooperantes e oacompanhamento pontual dos docentes dauniversidade. Sobre que pressupostos assen-tava tradicionalmente a cadeira?

    a) As alunas eram colocadas em salas dejardim de infância (uma por sala) sendoessa distribuição da exclusiva responsa-bilidade das docentes da universidade;

    b) As duas primeiras semanas decorriam àvolta do que se designava por activida-des de observação, das quais deveria serproduzido um relatório de caracteriza-ção do contexto da intervenção. Este«conhecimento» inicial raramente eraconvocado para o desenvolvimento da

    intervenção, sendo mais uma agregaçãode dados do que uma interpretação signi-ficante sobre os contextos.

    c) A intervenção propriamente dita organi-zava-se em três momentos:– um período em que as formandas ti-

    nham que fazer planificações diáriaspara todas as actividades que se propu-nham realizar com a tuma (objectivosespecíficos, descrição pormenorizadadas actividades, tempos, organizaçãodo grupo e recursos necessários);

    – um período em que as formandas ti-nham que fazer planificações sema-nais, decorrentes de um centro de inte-resse que deveria «integrar» as váriasactividades diárias;

    – um período em que as formandas con-ceptualizavam um projecto e que emnada se diferenciava dos centros de in-teresse a não ser na temporalidade queera exigida a este «projecto» (normal-mente um mês);

    d) Os modelos e os instrumentos que su-portavam o planeamento eram os avan-çados por uma outra cadeira (teórica),que tinha lugar num semestre anterior(denominada de Métodos e Técnicas deAcção Educativa), cadeira que não acom-panhava agora o desenvolvimento, nocontexto de intervenção, da aplicaçãodesses modelos e instrumentos;

    e) As educadoras cooperantes assumiamfundamentalmente um papel de con-trolo, não havendo durante o período daPrática Pedagógica IV espaço e tradiçãode demonstração de práticas que pudes-sem constituir-se como referente para asformandas;

    f) A avaliação das formandas era de natu-reza bastante subjectiva e impressionista,tendo como objectivo principal a dimen-são sumativa;

    g) Diariamente era recomendado umtempo de reflexão entre educadora coo-perante e formanda, mas essa reflexão

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    h) A visita dos docentes da universidadeera feita de surpresa e dava lugar a umaavaliação quantitativa.

    5. Outras premissas para a PráticaPedagógica

    Quando nos coube assumir a coordenaçãoda cadeira de Prática Pedagógica IV decidimosintervir no sentido de aumentar a coerênciadeste tempo de formação enquanto percursode desenvolvimento para os formandos, paraos contextos e para a própria casa de forma-ção. Animava-nos o entendimento de que«formar-se (...), é antes de mais, reflectir, pen-sar numa experiência vivida (...) formar-se éaprender a construir uma distância face à suaprópria experiência de vida, é aprender acontá-la através de palavras, é ser capaz de aconceptualizar» (HESS citado por NIZA,1997).

    5.1 Os objectivos

    Com todos os constrangimentos decorren-tes de uma estrutura curricular desajustada, osnossos objectivos para a cadeira foram assimexplicitados:

    «A Prática Pedagógica IV constitui-se comoum momento e uma experiência de síntese di-nâmica dos saberes adquiridos ao longo docurso e de novos saberes emergentes. Este ca-rácter de transversalidade e de contextualiza-ção dos saberes exige um processo ampla-mente participado e sublinhadamente coope-rado, desenvolvendo-se sempre sob umamatriz reflexiva que permita um avanço efec-tivo dos sujeitos e dos contextos de interven-ção. São objectivos da Disciplina:

    1. Caracterizar a organização do ambienteeducativo prosseguida nos Jardins de In-fância e reflectir criticamente sobre asopções organizativas subjacentes.

    2. Conhecer e experimentar propostasemergentes dos principais modelos curri-culares para a Educação Infantil.

    3. Ensaiar (em contexto de intervenção)uma matriz organizacional que suporte eavance as práticas educativas no Jardimde Infância.

    4. Experimentar práticas de autoscopia so-bre a intervenção pedagógica que os alu-nos desenvolvem nos Jardins de Infância,inscritas e potenciadas em circuitos decomunicação, de modo a potenciar a for-mação de profissionais reflexivos e críti-cos.»

    5.2 A organização

    A organização da cadeira procurou serviros princípios e os objectivos que explicitámos,para além de decorrer de uma relação educa-tiva democraticamente perspectivada, dialo-gante e obsessivamente contratuada.

    A primeira mudança visível e socialmentepercepcionada pelas formandas foi a sua colo-cação nas salas de jardim de infância: essa dis-tribuição foi feita em grande grupo, depois derecolhido um inquérito com as preferências eas rejeições (fundamentadas), escutadas razõese ponderadas situações, sendo a distribuiçãodas formandas o resultado de um intenso (eviolento) processo negocial no grupo, exausti-vamente explicitado e colectivamente assu-mido.

    A segunda mudança foi a organização daprática propriamente dita. Esta organizaçãoresultou já do encontro entre o grupo de for-mação: formandas, educadores cooperantes edocentes da universidade – avançou-se assimdecisivamente para uma «apropriação co-mum» dos sentidos e das acções que deve-riam enformar os projectos de formação, in-tensificando os níveis de implicação e decooperação tão fundamentais à acção educa-tiva e aos processos de formação. Aqui deixa-mos o resultado deste esforço de explicitação(ver fig. 1).

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  • 5.3 Práticas de Planificação

    Uma das nossas preocupações fundamen-tais foi a de ajudar a compreender que a peda-gogia é muito a ciência da organização de am-biências de aprendizagem estimulantes paratodos (NIZA,S. 1997 b.) e não a estruturaçãodidáctica de um conjunto de actividades pen-sadas pelo educador para aplicar sobre ascrianças. Os modelos tecnocráticos de planifi-cação reforçam esta vertente manipulativa eredutora da profissionalidade, confundindoaprendizagem com prescrição e exercícios va-zios de sentido, ainda que racionalmente per-feitos. Foi assim que fomos edificando umsentido de planificação que exigia outras com-petências (sobretudo de escuta e de comunica-ção) e outros instrumentos que captassem, or-ganizassem e potenciassem essa outra formade fazer pedagogia.

    Em multiplicados e frutuosos encontros fo-mos construindo e afinando um conjunto denovos instrumentos, abertos e permanente-mente reformulados de acordo com os dadosda experimentação. Revelaram-se suportesfundamentais para a inovação dos procedi-mentos e atitudes e cumpriram uma função deorganizadores das práticas, facilitando a com-preensão sobre a emergência da pedagogia.Porque poderão ser úteis a outros colegas,aqui deixamos alguns exemplos:

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    Estratégia de Comunicação e Regulação:

    Observações:

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  • A um percurso de formação ainda quasetodo marcado pelo verbo, importava-nos asso-ciar esta vertente do «fazer», construir instru-mentos e produzir recursos para a organizaçãopedagógica. Assim foram surgindo fichas-guião para desenvolver propostas organizati-vas na classe.

    Exemplo 1– Planificação SemanalToda a planificação deverá suportar-se em

    três objectivos fundamentais:a) Ser o mais participada possível (técnicos,

    crianças e famílias);b) Ser emergente, isto é, contemplar inte-

    resses e sinais das crianças e dos contex-tos;

    c) Constituir-se como factor de referência ede visibilidade social e educativa do J.I..

    A sexta-feira à tarde e/ou a segunda-feirade manhã constituem-se como os momentosmais adequados para esse exercício democrá-tico e científico que é o planificar a vida dogrupo.

    Sugere-se que a planificação seja registadaem folha grande (folha de papel kraft ou papelde cenário), em letras maiúsculas de imprensa,exposta durante a semana e avaliada em grupono final da semana. (ver fig. 8).

    Estes registos semanais deverão ficar guar-dados na sala, organizados numa capa com onome do conteúdo (ilustrada com uma belepintura). São um instrumento pedagógico degrande valor para a reflexão sobre o currículopara o Jardim de Infância; são instrumentosprevilegiados de formação; são uma memória(uma história) do processo educativo. O PlanoSemanal deve ser assumido por todo o grupo;são por isso fundamentais os momentos se-manais de avaliação).

    Exemplo 2 – Caracterização dosespaços/cantinhos/ateliers

    A questão da acessibilidade com autono-mia aos «cantinhos» exige que as educadorasorganizem ajudas ao trabalho das crianças.Uma das ajudas fundamentais, para além daexposição clara dos materiais e instrumentos,é a organização de inventários de tarefas pos-síveis de concretizar em cada «cantinho». Eisuma proposta simples: (ver fig. 9).

    Exemplo 3 – Cadernão/Livro de VidaO «cadernão» ou «livro de vida» constitui-

    -se como a memória activa dos quotidianos noJardim de Infância. É o nosso «album de foto-grafias», o retrato fiel do pulsar da vida do

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    Figura 8

  • grupo. Organizado em folhas grandes (tipo pa-pel kraft), cada folha do «cadernão» corres-ponde normalmente a um dia de actividade,mas a periocidade «2 em 2 dias» ou até mesmosemanal pode, inicialmente, assumir-se comoo compromisso possível.

    No «cadernão» surgem descritivos do pro-cesso, quase sempre da responsabilidade daseducadoras (embora partilhados com as crian-ças) e produtos/criações/afirmações/perguntasdas crianças: uma pintura, um texto, uma co-lagem, uma ficha, o registo de uma observa-ção significante, uma fotografia, a visita que ti-vémos, o passeio que fizémos, um incidente,uma pergunta, a carta dos correspondentes, oconto que adorámos, a lengalenga que a Ritacopiou, ilustrou e ofereceu para o «cadernão»,a receita do bolo de anos da Sofia, a notícia dodente que caiu ao Sérgio,...

    Há que estar atento à inclusão de trabalhosde todos os meninos, pois o «cadernão» é o re-

    trato de todo o grupo. É um apelo ao bom-senso das educadoras. O cadernão pode estarorganizado com uma bela capa, duas molasgrandes, um fio, e fica pendurado num pregoda parede. Que interessante poder mostrar à«minha mãe» as coisas que fazemos!... Queóptimo instrumento para a formação contínuadas educadoras, para partilhar processos, refle-xões, aprendizagens!...Que belo contributopara edificar um currículo para o Jardim de In-fância!... Que belas páginas para fazer uma ex-posição sobre os sentidos do Jardim de Infân-cia!... Aqui fica um pequeno exemplo. (verfig. 10)

    5.4 Práticas de Avaliação

    A avaliação situa-se no cerne da organiza-ção pedagógica e, nos percursos de formaçãoacadémica, é efectivamente vivida com todo odramatismo que as idiossincrasias escolásticaslhe foram reforçando. Acresce o facto de que a

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  • nota da Prática Pedagógica costuma ser assu-mida, pelas formandas e pelos empregadores,como referencial no percurso de formação.Esta especificidade da avaliação das práticasexigiu-nos pois uma atenção redobrada, pro-curando que a luta por uma nota final não per-vertesse as premissas do processo.

    Edificámos então, cooperadamente, umaestratégia de avaliação centrada em:

    a) Registos e descritivos sobre a prática:fundamentalmente constituídos pelasplanificações e registos diversos sobre osquotidianos nos contextos de interven-ção;

    b) Elementos reflexivos sobre o processo:eram os «diários de bordo» que todas asformandas construíam de natureza refle-xiva e crítica sobre o processo, partilha-dos nas sessões de formação em sala (nauniversidade) e potenciadores do apro-fundamente sobre a dimensão sistémicae intrapessoal das práticas;

    c) Elementos de Avaliação das EducadorasCooperantes: elementos centrados na

    análise de competências em situação ena organização do trabalho;

    d) Elementos de Avaliação do Docente daUniversidade: elementos centrados naescuta e no acompanhamento do pro-cesso de intervenção, funcionando comofactor desbloqueador dos nós e tensõessurgidas aos vários níveis da interven-ção.

    Este edifício permitiu construir três grandessentidos da avaliação:

    a) Função de regulação, facilitando a cons-ciência permanente e progressiva sobre oprocesso e permitindo uma melhor ade-quação aos contextos;

    b) Função de registo, construindo uma me-mória, uma história, capaz de funcionarcomo referência estruturante para o edi-ficar da profissionalidade;

    c) Função de socialização, pondo em co-mum o que fizémos e aprendemos (orga-nizámos uma Semana Aberta expondotodos os percursos-ver figura 1), consti-tuindo-se como momento fundamentalpara a explicitação das práticas e para a

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    visibilidade acrescida das práticas pedagógicasno currículo da formação inicial.

    6. Algumas evidências finais

    As marcas do percurso que fomos descre-vendo, e que as práticas pedagógicas nos per-mitiram, afastam-se decisivamente de qual-quer abordagem didactista e redutora daformação. Foi nossa preocupação ir clarifi-cando que o sentido do planeamento e da in-tervenção no Jardim de Infância é um exercí-cio científico e cívico, a enunciar-se napromoção activa dos direitos da criança, no di-reito à educação para todos os meninos, nostrajectos da descoberta cooperada da cultura,na alegria construtora do encontro entre pares,no respeito pelos tempos e modos diferentesde ser e sentir, a solicitarem uma visão abertae fraternal do homem e do mundo. Essas mar-cas enunciam também o Pré-Escolar como ins-tiuição de referência ao serviço da infância,com uma forte implicação social, associandoas famílias e as comunidades ao processo edu-cativo, promovendo as identidades e o res-peito pelos valores culturais comunitários.Essas marcas revelam por fim, e fundamental-mente, uma organização pedagógica que nãopode assentar em qualquer emanação intelec-tualista e académica ou, no outro extremo, empseudo-improvisos que mais não fazem doque mascarar a autocracia do adulto sobre oseducandos. Daí termos construído um quadroque nos lembrava, a todo o momento, os sen-tidos abertos, transversais e einteractivos doplaneamento no Jardim de Infância. (Ver pág.seguinte).

    Talvez que as palavras de Paulo Freire(1997) possam sintetizar o que tentámos edifi-car: «Eu continuo a dizer, homens e mulheresnão viemos para o mundo para ser treinados,fizemo-nos no mundo seres modificadores. Aadaptação ao mundo é apenas um momentodo processo histórico. Adapto-me hoje paraamanhã, desadaptando-me, corrigir o mundoe inserir-me nele. Uma pedagogia do purotreino não faz isso, insisto.»

    Bibliografia:

    ALARCÃO, I. (1991). «Reflexão crítica so-bre o pensamento de D. Schon e os programasde formação de professores» in Supervisão eFormação de Professores. Aveiro: Cidine.

    FREIRE, P. (1997). «Nós somos seres dabriga» in Cadernos de Educação de Infância, nº42. Lisboa: A.P.E.I.

    NIZA, S. (1997 a). Formação Cooperada.Lisboa:Educa

    NIZA, S. (1997 b). «Para uma escola da ci-dadania» in Palavras, nº 12. Lisboa: AssociaçãoProfessores de Português.

    NIZA, S. (1998). Conferência produzida noSeminário «Formação Inicial de Professores –Pré-Escolar/1º Ciclo». DEB, 28 e 29 Maio, ESEde Setúbal.

    NÓVOA, A. (org) (1995). Profissão Profes-sor. Porto: Porto Editora.

    PERRENOUD, P. (1993). Práticas pedagógi-cas, profissão docente e formação: perspecti-vas sociológicas. Lisboa: IIe e D. Quixote.

    ZEICHNER (1993). A formação reflexiva deprofessores. Ideias e práticas. Lisboa: Educa.

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    SENTIDOS DO PLANEAMENTO

    CRIANÇAPromover os direitos da criança

    Multiplicar/desenvolver serviços para a infânciaMinimizar situações de risco

    ALUNODesenvolvimento de competências de aprendizagem

    Facilitação de percursos de desenvolvimentoApoios e ajudas específicas

    Desenvolvimento Sócio-Moral

    CLASSEOrganizar uma ambiência de aprendizagem estimulante para todos

    Diversificar os acessos e os processos de construção dos saberesPromover a democracia, a cooperação e a interajuda

    Valorização sistemática dos vividos, dos saberes vários, alargando as mundivivências.

    INSTITUIÇÃOPromover a instituição como referência na educação das crianças

    Melhorar as respostas educativas – inovaçãoIncentivar o trabalho de equipa

    Desenvolver/potenciar parcerias e redes de cooperação

    COMUNIDADEPromover a identidade cultural e o respeito pelos valores comunitários

    Associar a comunidade ao processo educativoDesenvolver estratégias de extensão educativa e educação ao longo da vida

    Promover a cooperação e a corresponsabilizaçãonos percursos e nos processos educacionais

    FAMÍLIAPromover a cooperação instituição-família: organização/participação

    Apoiar as famílias no desempenho da sua função educativaAssociar as famílias ao processo educativo: ( aprofundar a clareza do que fazemos)

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    Estou convencido de que a percepção da lin-guagem matemática passa pela capacidadede fixar a realidade observada num registo es-crito, como referem autores como John AllenPaulos ou Gerard Vergnaud.

    Isto implica formulações e reformulaçõesmas também a análise cuidadosa de situaçõesvivenciadas.

    Escolhi os dois relatos que seguem por quedescrevem acontecimentos que necessitaramde um tratamento aprofundado, o que impli-cou abordagens sucessivas do problema, ten-tando fixar pouco a pouco o seu significadomatemático. São duas situações vividas namesma turma: a primeira no 3º ano de escola-ridade, a outra um ano mais tarde. No se-gundo relato, o trabalho envolve dois grupos,pelo que o «nós» se refere à actuação conjuntacom a professora do outro grupo de crianças.

    Investigar a frequência de letras paraconstruir um jogo.

    Propus aos alunos a construção de umscrabble português para a sala, para o qual eutinha já desenhado e plastificado o tabuleiro.

    Faltavam as letras. Sugeri que procurasse-mos uma distribuição das letras do alfabeto,no total de 100.

    Como fazer?O P. pergunta quantas letras tem o alfabeto

    e acrescenta: «Como são mais ou menos 25, 4letras de cada: 4 x 25 igual 100.»

    O R. sente que não deve ser tão fácil. Após

    discussão constatámos que utilizamos mais a’sque x’s, para só ficar com este exemplo.

    O Daniel propõe contar letras. Isto gera alguma discussão. Contar letras como? onde?Decidimos escolher um parágrafo do livro

    que estou a ler para a turma e contar todas asletras daquele parágrafo.

    Dividimos as letras do alfabeto por 6 gru-pos de crianças.

    Tentámos que o trabalho fosse distribuídode forma mais ou menos igual. Isto revela al-gumas coisas interessantes:

    – os alunos consideram que as vogais são asmais importantes e frequentes. Atribuem logouma vogal a cada grupo, ficando o sexto comduas consoantes que pensam serem as maisutilizadas.

    – consideram s (aparecendo em todos osplurais) menos frequente que d ou n. Não con-sideram y, k e w, mas introduzem o ç.

    Cada grupo procura a sua própria estratégiapara contar as letras que lhes foram distribuí-das:

    – num grupo, os alunos distribuem as le-tras. Uma criança não recebe letras mas soletrao texto, e vai ditando as letras ao grupo. Cadaum aponta as letras que lhe couberam.

    – noutro grupo, cada elemento circundaprimeiro as letras designadas, depois contamdois a dois as letras que escolheram.

    – noutro grupo ainda, cada um aponta as le-

    Investigações matemáticascomo base para a

    construção de conceitos

    Pascal Paulus

  • tras conforme um código combinado entre oselementos do grupo para facilitar a contagemque cada um faz. Depois conferem resultados.

    – em dois grupos utilizam 4 cores diferen-tes para realçar as letras, e depois cada ele-mento do grupo conta as letras numa das có-pias do texto.

    – o último grupo pede uma cópia do textopara cada letra da qual faz o levantamento.Cada um dos elementos lê as quatro cópiascontrolando o que já está apontado e o que foiesquecido. No fim registam a frequência decada letra, contando por grupos de 5.

    Após contagem, aparece o seguinte quadro:

    Com este quadro já feito, peço os alunosuma estimativa do total das letras. Eis os re-sultados:entre 200 e 300 letras: 3 alunosentre 300 e 400 letras: 4 alunosentre 400 e 500 letras: 6 alunosentre 500 e 600 letras: 2 alunos e o professorentre 600 e 700 letras: 1 alunoentre 700 e 800 letras: 1 alunosem ideia: os outros

    Controlámos a estimativa de duas manei-ras: dum lado, faz-se a soma de todos os totaisde letras apuradas, do outro lado, conta-se asletras de cada linha de texto, somando estessubtotais. Como por magia (entendida de ma-neira diferente por mim e pelos alunos) os doisvalores coincidem: 711 letras.

    Abre-se nova discussão: já sabemos queneste texto de 711 letras há 127 a’s, 91 e’s, 50i’s, etc.

    – Mas isto é mesmo assim? Isto é, qualquertexto de 711 letras dará esta distribuição? per-gunto eu.

    A resposta é muito mais unânime do queeu estava à espera:

    – Claro que não. Depende das palavras dotexto, disse um.

    – Queres uma prova? Neste texto não hánenhum ç, mas sabemos que há textos com ç,senão não existia o ç, acrescenta outro.

    Afirmo à turma que esta discussão é muitoimportante, e que a iremos retomar, mas queexiste ainda outra dificuldade: como saberquantas letras de cada é que temos que pôr nonosso jogo?

    Um dos alunos propõe tirar letras «De 711para 100, tiramos 611 letras. Basta fazer amesma coisa para todas elas.»

    Há logo um embate:– Assim, cada letra fica em 0.– Não, algumas ficam mais em 0 que as ou-

    tras.– Mais em zero, quer dizer abaixo de 0,

    como no termómetro.1

    – Mas se todas as letras ficam abaixo de 0,então não temos letras no jogo!

    É claro que algo está mal. Proponho que re-presentemos com o material MAB o que te-mos e o que queremos:

    o que queremos o que temos

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    grupo 1 grupo 2 grupo 3 grupo 4 grupo 5 grupo 6a 127 e 91 i 50 o 82 u 20 d 27b 10 c 14 f 7 h 10 g 16 n 29j 1 l 14 m 36 p 24 q 6 r 46