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O BATUQUE NASCE DO CORAÇÃO: UMA REFLEXÃO SOBRE A CONCEPÇÃO DE ESCOLA PÚBLICA COMO ESCOLA DE SAMBA THE DRUMBEAT IS BORN IN THE HEART: A REFLECTION ON THE CONCEPTION OF PUBLIC SCHOOL AS SAMBA SCHOOL EL BATUQUE NACE DEL CORAZÓN: UNA REFLEXIÓN SOBRE EL CONCEPTO DE ESCUELA PÚBLICA COMO ESCUELA DE SAMBA Tiago Lazzarin Ferreira DOI: 10.11606/issn.2238-3999.v9i1p154-170 Do Lado de Fora do Teatro Tiago Lazzarin Ferreira Pós-doutorando pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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O BATUQUE NASCE DO CORAÇÃO: UMA REFLEXÃO SOBRE A CONCEPÇÃO DE ESCOLA

PÚBLICA COMO ESCOLA DE SAMBA

THE DRUMBEAT IS BORN IN THE HEART: A REFLECTION ON THE CONCEPTION OF PUBLIC SCHOOL AS SAMBA SCHOOL

EL BATUQUE NACE DEL CORAZÓN: UNA REFLEXIÓN SOBRE EL CONCEPTO DE ESCUELA PÚBLICA COMO ESCUELA DE SAMBA

Tiago Lazzarin Ferreira

DOI: 10.11606/issn.2238-3999.v9i1p154-170

Do Lado de Fora do Teatro

Tiago Lazzarin FerreiraPós-doutorando pela Universidade

Federal de Minas Gerais (UFMG).

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Tiago Lazzarin Ferreira

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Do Lado de Fora do Teatro ResumoO presente artigo possui o objetivo de desenvolver uma reflexão

sobre a concepção de escola pública análoga à ideia de escola de

samba, lugar onde o batuque é um privilégio e onde o samba nasce

do coração, tal como nos versos da letra da canção “Feitio de oração”

composta pelos sambistas Noel Rosa e Vadico. Esta concepção foi

desenvolvida a partir de uma pesquisa de doutorado realizada em uma

escola pública de São Paulo, a respeito do engajamento estético de

jovens estudantes do ensino médio. A pesquisa envolveu uma série de

práticas musicais percussivas baseadas nas linguagens dos gêneros

musicais do rap e do jazz. Com base nas proposições de Muniz

Sodré sobre o princípio da Arkhé, que designa um modo de pensar

segundo o todo, sugerimos uma concepção de escola como lugar do

engajamento estético, onde o sentido dos gestos é intrínseco, e não

exterior a si mesmo.

Palavras-chave: Coração, Arkhé, Batuque, Escola.

AbstractThis article aims to develop a reflection on the conception of public

school that carries a meaning akin to samba school, a place where

the drumbeat is a privilege and where samba is born in the heart, just

as said in the song called “Feitio de Oração”, composed by the samba

musicians Noel Rosa and Vadico. This conception was based on a

doctorate research conducted in a public high school in São Paulo,

about the aesthetical commitment of young high school students,

which involved musical activities related to rap and jazz music. The

principle of Arkhé as conceived by Muniz Sodré suggests an alternative

way of thinking about the relationship between the individual and the

community that promotes recognition and affection; therefore, we

suggest a concept of school as a place of aesthetical commitment,

where gestures meaning is intrinsic, and not external.

Keywords: Heart, Arkhé, Drumbeat, School.

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O batuque nasce do coração

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ResumenEste artículo tiene el objetivo de reflexionar sobre la concepción de

una escuela pública análoga a la idea de escuela de samba, lugar

donde el batuque es un privilegio y donde el samba nace del corazón,

tal como en los versos de la letra de la canción “Feitio de Oração”,

compuesta por los sambistas Noel Rosa y Vadico. Esta concepción

fue desarrollada a partir de una investigación de doctorado realizada

en una escuela pública de São Paulo acerca del compromiso estético

de jóvenes estudiantes de la enseñanza media. La investigación

involucró una serie de prácticas musicales percusivas basadas en los

lenguajes de los géneros musicales del rap y del jazz. Sobre la base

de las propuestas de Muniz Sodré sobre el principio de arkhé, que

designa un modo de pensar según el todo, sugerimos una concepción

de escuela como lugar del compromiso estético, donde el sentido de

los gestos es intrínseco, y no exterior a sí mismo.

Palabras clave: Corazón, Arkhé, Batuque, Escuela.

No ano de 2015 realizei uma pesquisa de doutorado sobre o

engajamento estético1 de jovens do ensino médio em uma escola estadual

chamada Gualter da Silva, ou simplesmente Gualter como será chamada

daqui por diante, localizada no bairro do Moinho Velho (zona centro-sul de

São Paulo). Como professor de Sociologia da instituição, procurei a partir e

por meio desta pesquisa estabelecer vínculos com os estudantes ao som do

rap e do jazz: duas linguagens musicais que foram propostas como modelos

dialógicos de comunicação, em vista de seus elementos rítmicos que reme-

tem à diáspora do Atlântico Negro – entre os quais está incluído o jogo de

chamada e resposta ou antífona, de acordo com Paul Gilroy (2001).

Naquele ano em particular, o Gualter se encontrava em uma difícil situa-

ção que envolvia conflitos entre alunos, professores e gestores, reiterados por

uma série de dispositivos responsáveis pela estigmatização da comunidade

1. Trata-se da tese Rap e jazz na escola pública: um estudo sobre a formação cultural e o engajamento estético de jovens do ensino médio, defendida no ano de 2017 na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FE-USP), com a orientação da Profa. Dra. Mônica G. T. do Amaral.

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escolar como, por exemplo, os baixos índices obtidos em avaliações institu-

cionais como o Índice de Desenvolvimento da Educação do Estado de São

Paulo (Idesp)2. Além disso, o contexto político era de acentuação do processo

de precarização da escola pública, empreendida por meio de projetos como

o da reorganização escolar3, que previa o fechamento de escolas e salas de

aula, com a consequente diminuição da oferta de vagas na rede estadual de

ensino, sobretudo para o período noturno e para estudantes adultos. Também

deve ser mencionada a desvalorização da carreira do magistério, com salá-

rios considerados baixos para profissões com ensino superior completo4.

Neste contexto, uma das propostas da pesquisa foi promover o enga-

jamento estético na arte musical do rap e do jazz, concebidos como moda-

lidades dialógicas que politizam as relações intersubjetivas. A noção de

engajamento estético é tributária da filosofia de Vilém Flusser (2011), para

quem a arte é responsável pela “mediação do imediato”, isto é, revela virtua-

lidades da cultura de modo a intervir concretamente na realidade efetiva,

na medida em que publica a experiência privada do artista. Nesse sentido,

a arte articula e expõe o conteúdo das relações em que o artista vive enre-

dado, de modo a conferir profundidade à superficialidade dos vínculos inter-

subjetivos na contemporaneidade.

2. O Idesp avalia o desempenho das escolas com base nas pontuações dos estudantes em provas do Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar (Saresp), destinadas aos alunos dos últimos anos do ensino médio e fundamental. Para a composição da nota do Idesp, foram contabilizados os níveis de aprovação, transferência e evasão escolar, entre outros critérios.

3. Ainda em 2012 a Secretaria da Educação, presidida por Herman Voorwald, havia publi-cado um documento extenso intitulado Reorganização do Ensino Fundamental e Médio. Consta neste documento que um dos objetivos da reorganização foi elaborar “a forma mais adequada de organizar, nas escolas, os ciclos de aprendizagem, o tempo escolar, as áreas de ensino e sua distribuição na composição das matrizes curriculares de cada segmento do ensino, formas, espaços e modos de organização da recuperação dos alu-nos com dificuldades” (SÃO PAULO, 2012, p. 9). Assim, compreende-se que o projeto de reorganização em 2015 consistia apenas em uma das etapas de um amplo projeto já em andamento pelo menos desde 2012.

4. A política de bonificação por resultados consiste no pagamento de um determinado per-centual do salário que varia de acordo com os índices obtidos pela escola no Idesp. No caso da não obtenção da nota mínima do Idesp de acordo com a média geral das escolas, ou no caso de a escola não atingir a meta individual – conhecida no momento da publica-ção da nota do ano anterior –, os professores e funcionários não recebem o bônus, como ocorreu no Gualter durante sucessivos anos.

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Com base na noção de engajamento estético, foi proposta a abordagem

do rap e do jazz nas aulas de sociologia como linguagens que veiculam ele-

mentos dialógicos em suas músicas, tais como a improvisação, a antífona ou

jogo de chamado e resposta, e o suingue. Durante a pesquisa, os estudantes

realizaram gestos que produziram vínculos de reconhecimento e alteridade:

trouxeram de casa instrumentos musicais como o violão, gravaram músicas

em aparelhos celulares, que foram amplificadas por aparelhos de som, e

tocaram os instrumentos que antes estavam trancafiados em um depósito

na escola. Eu, como professor do Gualter e músico baterista de formação5,

trouxe meu instrumento musical para que ele fosse tocado no pátio da escola

em um conjunto de aulas chamado “coisa de bater”, que seria a tradução

literal de Schlagzeug, a bateria em alemão. Assim, constatamos o engaja-

mento estético por meio da percussão do rap e do jazz, na medida em que os

sons emitidos pela bateria reverberaram no espaço e tempo do Gualter como

música para o ouvido dos jovens estudantes e como ruído para o funciona-

mento autômato da instituição escolar.

Os gestos realizados pelos estudantes do Gualter despertaram o meu

interesse em compreender de modo aprofundado alguns dos princípios cons-

titutivos do engajamento estético. Por isso, o objetivo do presente artigo é

procurar por pistas que contribuam para elucidar o caráter dialógico de um

pensamento que possui raízes na ancestralidade africana e é manifesto no e

pelo rap e jazz. No entanto, em vez de procurarmos por essas pistas por meio

das respectivas linguagens musicais, que foram extensivamente abordadas

na tese e que aqui não serão comentadas, partiremos de um aspecto elemen-

tar compartilhado por diversos outros gêneros, especialmente o samba. Este

aspecto é o gesto de batucar. Tal reflexão pode ser encetada por um trecho

da letra da canção “Feitio de oração”, composta pelo poeta da Vila Noel Rosa

e pelo sambista paulistano Vadico.

Batuque é um privilégioNinguém aprende samba no colégio

5. Minha formação musical foi concluída em 2011 na antiga Universidade Livre de Música, atual Escola de Música do estado de São Paulo (Emesp Tom Jobim), no curso regular para adultos de bateria, como uma modalidade profissionalizante, embora sem o reconhe-cimento do Ministério da Educação.

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Sambar é chorar de alegria

É sorrir de nostalgia

Dentro da melodia. (FEITIO…, 1933)

A letra desta canção, repleta de metáforas e imagens de afeto, suscita

algumas questões que podem ser assim enunciadas: Por que não se aprende

samba no colégio? O que é o privilégio do batuque? Evidentemente, por sua

própria natureza musical e poética, a letra da referida canção não provê maio-

res explicações para aquilo que afirma, e suas imagens simbólicas poderiam

ser interpretadas de maneiras diversas. Poderíamos, contudo, enfatizar alguns

dos elementos tematizados em “Feitio de oração” que parecem ser constituti-

vos de uma constelação de pensamento singular, vinculada à ancestralidade

da diáspora africana, a começar pela relação entre batuque e escola.

Para que possamos pensar o lugar do samba e do batuque no colégio, é

necessário definir um sentido preciso de escola: em qual escola não se aprende

a batucar? Seria na escola pública, universal e gratuita? Ou então, qual deve ser

a finalidade da escola? Os pesquisadores de filosofia da educação holandeses

Jan Masschelein e Maarten Simons (2013) problematizam a função social da

escola em um contexto democrático. Segundo os educadores, uma das inter-

pretações sobre o papel da escola inspirada na crítica de Hannah Arendt ao

modelo dos Estados Unidos é de que tal instituição deve ser primordialmente

um espaço mediador e de preparação para a vida pública na sociedade demo-

crática, ou então “uma arquitetura social que nós […] construímos e organiza-

mos especificamente para ‘estranhos e recém-chegados’” (Ibid., p. 173).

Com a palavra arquitetura, os autores pretendem enfatizar tanto o espaço

físico de prédios escolares quanto o caráter de regime disciplinar específico

que classifica os jovens de acordo com sua origem social, fixando-os em dife-

rentes posições de aprendizado. Isto significa que, de acordo com tal concep-

ção, a escola deve servir como mediação entre a vida privada e a vida pública

do jovem, formando-o de acordo com supostas competências e habilidades

atreladas ao lugar que ocupa na hierarquia social. Caberia à escola manter

os estudantes longe do perigo das ruas, como se os mesmos não dispuses-

sem de repertório e conhecimento suficientes na infância e adolescência para

atribuir sentido aos assuntos apresentados como componentes curriculares.

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Os educadores holandeses afirmam que essa arquitetura escolar carac-

terística dos Estados Unidos é projetada para ensinar uma língua compar-

tilhada aos não falantes (in-fantes), enquanto as pessoas detentoras de

autoridade sobre o conhecimento da linguagem (como os professores) con-

ferem arbitrariamente relevância para determinados conteúdos. Por isso, tal

escola é concebida como uma espécie de “portão de entrada para o mundo

público” (MASSCHELEIN; SIMONS, 2013, p. 180), que organiza o acesso do

jovem ao conhecimento das linguagens compartilhadas, pressupondo que

o não falante é potencialmente capaz de aprendê-la, embora “ainda não”

tenha se apropriado dela durante sua permanência no espaço escolar. Assim

sendo, a escola democrática possui um valor instrumental, sendo sua finali-

dade necessariamente exterior a ela mesma, ideia que pode ser sintetizada

pela expressão escola-como-passagem.

Nesse sentido, a meta da escola é instrumentalizar o jovem para viver

em uma sociedade democrática de modo a encontrar o seu devido lugar na

arquitetura da esfera pública, o qual é determinado por sua origem sociocul-

tural. Para que isso ocorra, é igualmente necessário o aprendizado de uma

língua comum, a qual é pressuposta como desconhecida pelos recém-che-

gados (as crianças e adolescentes). Ou seja, a premissa básica é de que o

jovem estudante é um estrangeiro e uma tábula rasa, e o aprendizado da lín-

gua comum, que presumimos ser as diferentes matérias do currículo, consiste

em uma espécie de passaporte para a cidadania.

A concepção de escola acima esboçada contrasta com os princípios

norteadores da pesquisa realizada no Gualter. Nela, os gestos dos estudan-

tes não foram comparados ou avaliados de acordo com uma expectativa

do que eles deveriam ser e ainda não são. Tais gestos, que consistiram em

batucadas e improvisações rítmicas em instrumentos de percussão disponí-

veis na escola, foram concebidos como significativos por si e em si próprios,

posto que são inerentes a experiências formativas diversas e igualmente

incomensuráveis. Para melhor compreendermos o sentido atribuído às prá-

ticas que envolveram a percussão dos ritmos de jazz e rap como forma de

engajamento estético, iremos retomar a letra de “Feitio de oração” e dedicar

nossa atenção para uma outra metáfora, que é a ideia de que o samba

“nasce do coração”.

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O samba na realidade

não vem do morro nem lá da cidade

e quem suportar uma paixão

sentirá que o samba então

nasce do coração. (FEITIO…, 1933)

A expressão “o samba nasce do coração” pode ser interpretada como

um complemento para os versos anteriores da letra de “Feitio de oração”, que

afirmam que o “privilégio do batuque” não se aprende “no colégio”. No artigo

ora apresentado, pretendemos sugerir que a ideia de que o batuque nasce do

coração não é incompatível com uma determinada concepção de escola, que

é a própria escola de samba.

A escola de samba nasce do coração

A expressão “escola de samba” possui uma curiosa história. O pesquisa-

dor e percussionista Oscar Luiz Werneck Pellon (2003, p. 54), também conhe-

cido como Oscar Bolão, em seu livro/método de ensino de ritmos de percussão

na música do Rio de Janeiro com o sugestivo nome Batuque é um privilégio,

comenta a respeito dessa origem. Diz o autor que a primeira escola de samba

“surgiu no bairro Estácio de Sá, Rio de Janeiro em 1928, com o nome Deixa

Falar”. O compositor Ismael Silva teria sido o responsável por sugerir o termo

“escola”, posto que, naquele bairro onde ele próprio residia, ficava localizada

a Escola Normal – um prédio que abrigava o antigo magistério. Em vista da

rivalidade com outros redutos do samba carioca, como a Mangueira, os sam-

bistas do Estácio provocavam os demais afirmando que eles próprios eram

os verdadeiros “professores” do samba. Isto significa que a ideia de escola de

samba não se baseia (ao menos inteiramente) no paradigma da “escola nor-

mal”, tratando-se de uma espécie de uso anedótico do termo.

Assim, é provável que este uso possua relação com uma cultura ainda

mais ampla, que remonta à ancestralidade da diáspora africana. De acordo

com o pesquisador dos ritmos do Rio de Janeiro e percussionista Pellon

(2003, p. 54): “a estrutura das escolas de samba é toda herdada dos ran-

chos carnavalescos. Abre-alas, alegorias, mestre-sala, porta-bandeira e até

mesmo a apresentação dos enredos são copiados dos ranchos”. Isto significa

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que a tradição das escolas de samba provém de agremiações denominadas

ranchos, as quais possuem estreita relação com elementos alegóricos, reli-

giosos e musicais vinculados a culturas diversas (africana, nordestina, nor-

tista e portuguesa). Tais elementos foram inspirados em tradições como a

Congada, cerimônia que recria a coroação de um rei do Congo, com danças,

cantos e jogos de caráter festivo e religioso.

Este breve comentário sobre a origem das escolas de samba faz alusão

à história não apenas da transmissão do conhecimento do samba, mas do

ensino do batuque em geral, ou, mais precisamente, do não ensino do batu-

que nas escolas públicas democráticas. Assim sendo, é necessário apresen-

tar alguns princípios e noções que se articulam com a concepção de escola

que possui como fundamento o ritmo produzido pelo som do batuque. O pes-

quisador e escritor brasileiro Muniz Sodré (2017, p. 88) oferece subsídios para

refletir a respeito da possibilidade de pensar “a toques de atabaques”6.

Ainda nos primeiros capítulos de seu livro intitulado Pensar Nagô, o

autor recupera a noção de coração, não como uma metáfora reivindicada por

toda uma tradição de filósofos europeus à maneira de uma marca distintiva

de sua cultura (uma idiossincrasia), mas como uma categoria compreensiva

que alude ao pensamento de povos e culturas as mais variadas. Dentre esses

povos, são particularmente ressaltadas pelo pesquisador as nações prove-

nientes do complexo cultural situado na Costa da Mina (que abrange Nigéria,

Togo e Benin), que são os grupos dos jejes e nagôs. Estes grupos foram

escravizados, espoliados e assassinados durante a diáspora do Atlântico no

final do século XVIII, quando desembarcaram no porto de Salvador, Bahia.

Tais modos de pensar possuem tanto analogias com sistemas filosóficos

hegemônicos quanto singularidades, além de se reportarem igualmente às

grandes questões do cosmo e de serem pertinentes às problematizações da

contemporaneidade. Assim, o escritor e pesquisador sugere que o pensa-

mento nagô se traduz como prática existencial, ou então, como pensar-vi-

vendo, em vez de viver-pensando.

Afirma Sodré (2017) a propósito de Hegel que o ilustre filósofo se refere

à ideia de coração como se esta fosse uma característica exclusiva da cultura

6. Esta expressão é também o título do segundo capítulo do livro Pensar Nagô (2017).

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alemã – uma idiossincrasia, portanto –, consistindo no modo invisível de

apreensão do mundo sensível, ou seja, naquilo que preside à percepção do

real, mas não é perceptível enquanto dado empírico. Tal noção encerra o

sentido do comum, compreendido como vínculos sociais não visíveis ou pal-

páveis, mas que são constitutivos de qualquer experiência individual a partir

da coletividade. Seria possível dizer igualmente que este conceito possui afi-

nidade com a ideia de presença de uma ausência, ou nas palavras do autor,

de uma “imanência despercebida”, ou ainda “tonalidade afetiva”, “sensível” e

“laço invisível”. Em resumo, coração pode ser concebido como uma instância

que transcende a dimensão empírica do real, sendo imanente à comunidade

onde todos os membros se banham. Trata-se, portanto, de um real, ainda que

esta corporeidade transcendental não possa ser apreendida ou represada.

O pesquisador brasileiro nos lembra que a ideia de coração está pre-

sente não só no pensamento hegeliano e na tradição filosófica dos gregos,

mas em muitas outras constelações de pensamento, incluindo a dos nagôs.

Portanto, não se trata de uma idiossincrasia. Em diversas regiões do globo,

desde o Ocidente até a África, o corpo (tanto o físico quanto o espiritual) seria

o microcosmo que guarda em si um virtual coração coletivo, “a partir do qual

falamos quando dizemos ou fazemos algo de essencial no grupo humano em

que vivemos e agimos como, por exemplo, pensar” (SODRÉ, 2017, p. 34).

Podemos concluir que a ideia de coração, por metafórica que possa ser,

diz respeito a algo bastante concreto que é o corpo comunitário (corporeidade

de acordo com o autor), se manifestando nas operações do sensível. Isto por-

que o coração é da ordem de um coletivo pré-individual. Ou seja, antes de

poder ser percebido como algo concreto em sua substancialidade, constitui

a condição sensível e inteligível do humano, uma vez que “não há sensação

dos sentidos mesmos”, pois a “faculdade sensitiva não está em ato, mas ape-

nas em potência” (AGAMBEN, 2007, p. 351-368 apud SODRÉ, 2017, p. 132).

Cabe ressaltar, ainda, que o samba “nasce do coração” e do Rio de

Janeiro, mas também da Bahia, de onde provinham as “tias baianas”, as anfi-

triãs das festas de samba na Cidade Nova desde os primeiros anos da década

de 1910. Embora exista uma série de controvérsias que envolve tanto pesquisa-

dores quanto sambistas a respeito da origem do samba (algo que aqui não nos

interessa), é provável que o batuque do samba, a partir das festas de Tia Ciata,

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possua raízes ancestrais nos ritmos africanos e nagôs. Em vista disso, pode-

mos supor que esse coração coletivo, como princípio dinâmico e potente, se

inscreve na temporalidade não cronológica atinente ao espaço geográfico, atra-

vessando sujeitos que manifestam sua pulsação por meio e a partir do gesto

do batuque.

Resta-nos pensar, ainda, a relação entre o “coração”, que banha a coleti-

vidade com sua lógica imperscrutável – como a lógica do coração [logique du

couer] de Blaise Pascal (SODRÉ, 2017) – e a escola pública estadual, onde,

por vezes, gestos como o batuque são desvalorizados porque não dizem res-

peito aos conteúdos curriculares e não correspondem às expectativas das auto-

ridades escolares.

É emblemático o caso do próprio pesquisador Oscar Pellon ou, como

é conhecido entre os batuqueiros, Oscar Bolão. Na parte final do método de

percussão de Bolão, o musicólogo Carlos Didier (2003, p. 147-148, grifos do

autor) escreve a biografia intitulada “Oscar Bolão, doutor em samba”, onde

narra os seguintes episódios da vida deste percussionista:

De repente, sem ordem do diretor, o repique executou o toque de cha-mada. Bolão, seguindo o falso comando, fez o surdo vibrar. Metade da bateria entrou, metade ficou de fora. Waldomiro [mestre da bateria da Mangueira] saiu de dentro do alto-falante. Furibundo, correndo desajei-tadamente, pois mancava de uma perna, aplicou ao músico do repique o castigo mangueirense: uma bordoada com a baqueta na cabeça do infrator […] em seguida, o mestre partiu em sua direção. Olhou bem dentro dos seus olhos: – Tudo bem, você tá certo, pode ficar aí […] Por dentro, todo com medo, por fora, cheio de moral. Com Waldomiro na banca examinadora, Oscar passou no teste do surdo. São diferentes os diplomas do samba.

Ainda que possa ser criticada a severidade da atitude do mestre da

bateria da Mangueira de “bater com a baqueta na cabeça do infrator”, simples-

mente porque este se antecipou ao tempo de entrada do repique, podemos

buscar outras formas de compreensão sobre o episódio narrado. Inicialmente,

chama a atenção o tom prosaico com que o ritual de diplomação do samba é

narrado. Constatamos que a entrega do certificado de graduação das escolas

de samba consiste no veredito do mestre de bateria que poderia ser traduzido

como algo do tipo: “sim, você está autorizado a tocar”.

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O que pode ser considerado significativo neste acontecimento não é

exatamente o que as palavras dizem por si próprias na frase “tudo bem, você

tá certo, pode ficar aí”, mas como sua enunciação é performativa7: a prova

final dos ritmistas da Mangueira é o olhar frente a frente com o mestre da

bateria. É a experiência – ambivalente de medo e moral (no sentido de cora-

gem, autoconfiança) – que serve ao ritmista como indício de que havia então

conquistado o equivalente ao diploma do samba, dispensando qualquer

prova formal que pudesse autorizá-lo como membro pertencente à escola.

Trata-se, portanto, de um diploma que não pode ser ostentado como um pas-

saporte, mas apenas realizado como gesto no instante mesmo em que é

solicitado. Um sábio ensinamento que a escola de samba – em seu sentido

poético – transmite à comunidade pode ser expresso, segundo a formulação

de Sodré (2017, p. 96, grifos do autor), a propósito do pensar nagô e da filoso-

fia em contexto africano como o Ubuntu, “o indivíduo é, sendo junto a Outro”.

Depreende-se do exposto que o sentido da escola de samba (conce-

bida a partir da poesia de Noel Rosa e Vadico e da versão sobre a biografia

de Oscar Bolão) é a continuidade do grupo, isto é, a escola de samba possui

finalidade em si mesma, diferentemente da escola-como-passagem descrita

por Masschelein e Simons. A ideia de coração, que aqui pressupomos ser

fundamental para a escola de samba, de acordo com o pesquisador e escritor

brasileiro possui afinidade com a noção de Arkhé, palavra de origem grega,

cujos significados possíveis são tanto origem quanto destino. No âmbito da

filosofia, este termo designa um modo de pensar “segundo o todo” que, por

sua vez, possui analogia com configurações simbólicas de outras partes do

mundo e, particularmente, com o pensamento nagô.

Arkhé, arquivo e repertório na escola

De acordo com Sodré (2017, p. 83), Arkhé consiste no princípio de expan-

são de uma origem, entendida não como um começo absoluto, cronológico,

7. Muniz Sodré se baseia na teoria dos atos de fala de J. L. Austin para abordar o conceito de per-formatividade, distinguindo enunciado performativo de enunciado constatativo. Diferentemente do enunciado constatativo, que visa descrever a realidade (de modo verdadeiro ou falso), o enunciado performativo ele mesmo produz um acontecimento. Deste modo, performatividade consiste na ideia de que o enunciado faz ou pretende fazer aquilo que enuncia.

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mas como “protodisposição originária do comum que engendra a unidade dos

sentidos e a conversão analógica (não dialética) de uns nos outros, desvelando

a conaturalidade ou o copertencimento entre corpo e mundo”. Desse modo, a

Arkhé deve ser compreendida como um princípio constitutivo da linguagem –

e, portanto, do pensamento – na qual origem e destino estão imbricados.

A fim de demonstrar a articulação entre Arkhé e categorias do pensa-

mento e da linguagem de povos como a nação nagô, o autor delineia uma

analogia com a figura da diátese média a partir da semiologia, distinguin-

do-a da diátese ativa, atinente ao pensamento hegemônico. O enunciante

da diátese ativa (voz ativa) se caracteriza como sujeito cujo processo verbal

se realiza de maneira exterior a ele próprio. A título de exemplo, o autor cita o

sacerdote que se sacrifica em nome de Deus. Na diátese média, por sua vez,

o processo verbal se realiza no próprio sujeito – o sujeito que sacrifica a si

próprio. Além disso, a diátese média não é reflexiva, pois a ação não é conce-

bida em termos de causalidade, onde o sujeito completa e sofre a ação, mas,

em vez disso, a ação é completada em si mesma. Outro exemplo evocado

pelo pesquisador brasileiro para elucidar o uso da diátese média na criação

literária é o de Flaubert. De acordo com Sodré (2017, p. 73), o ato criativo do

escritor francês foi enunciado nos seguintes termos pelo mesmo: “eu sou o

homem-pena, eu sinto por ela, por causa dela”.

A partir da ideia de diátese média, Sodré (2017, p. 81) afirma o seguinte:

para povos de diversas culturas – hindus, chineses, africanos – o processo

verbal de pensamento “perfaz-se no interior da pessoa, entendida em sua

unidade com a comunidade, o que solicita o corpo, tanto individual quanto

comunitário (a corporeidade) como âncora fundamental”. Disto se segue que a

diátese média da Arkhé conduz ao transbordamento das estruturas da repre-

sentação, recusando o pensamento binário e dualista. Pela potência deste

pensar que não se reduz meramente à fala e escrita, a Arkhé se faz sentir

como irradiação de uma potência que, em seus modos de comunhão, integra

vivos e mortos, ou mesmo pessoas e não pessoas (sujeito e objeto).

É necessário ressaltar, ainda, as afinidades e tensões que o conceito

de Arkhé, do modo como foi interpretado por Sodré, possui com o conceito

de arquivo: palavra que, como podemos supor, provém deste mesmo termo

grego. A concepção de arquivo como espaço privilegiado da memória coletiva

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Tiago Lazzarin Ferreira

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no mundo ocidental – na forma de documentos, mapas, textos, restos arqueo-

lógicos etc. – é problematizada pela pesquisadora Diana Taylor (2013). A

autora põe em relevo a diferença entre as ideias de arquivo e repertório a

partir de debates sobre os múltiplos sentidos de performance que tem envol-

vido áreas do conhecimento diversas, tais como a Antropologia e as Artes

Cênicas, de modo a demonstrar as potencialidades metodológicas e cogni-

tivas implicadas em práticas daquilo que veio a ser o campo de estudos da

Performance. É com base em tais práticas e debates que Taylor (2013, p. 45)

sugere o conceito de performance no sentido de “um sistema de aprendiza-

gem, armazenamento e transmissão do conhecimento”.

Para compreender a diferenciação entre arquivo e repertório, Taylor

(2013) remonta ao período da colonização de países da América Latina (como

o Brasil), no qual a escrita havia sido legitimada em prejuízo de outros modos

de transmissão da memória, como rituais e “práticas sociais cotidianas incor-

poradas”. Práticas não verbais (como o batuque no nosso caso) não eram con-

sideradas formas válidas de conhecimento. Em alguns casos, essas práticas

eram até mesmo proibidas, por serem consideradas idólatras ou subversivas.

A pesquisadora procura demonstrar que a concepção vigente de arquivo

consiste na oposição entre memória arquival – de materiais supostamente

duradouros – e repertório, subentendido como efêmero (assim como a língua

falada). Enquanto a memória arquival separa fonte do conhecimento e conhe-

cedor no espaço-tempo, o repertório diz respeito à memória incorporada, isto

é, aos gestos e enunciações performativas que não dissociam conhecedor

e fonte de conhecimento – sendo estas ações, no entanto, efêmeras e não

reproduzíveis. O que não quer dizer que o arquivo pensado como memória

arquival consista no oposto do repertório. Afinal, como a pesquisadora dos

estudos da Performance nos lembra, há práticas incorporadas relativas ao

repertório que são arquivadas na forma de documentos, assim como há ele-

mentos do arquivo que podem ser deslocados de seu contexto em ações

performativas. Trata-se, sobretudo, de ênfases diferentes sobre o modo como

epistemologias distintas produzem estratégias e táticas singulares que con-

cernem à comunicação intergeracional.

Constatamos, portanto, certa afinidade entre as proposições de Taylor

(2013) e de Sodré (2017), no sentido de que a Arkhé consiste em um princípio

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O batuque nasce do coração

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fundamental de transmissão de uma memória coletiva incorporada nos atos

performativos que, por sua vez, não são armazenáveis ou separáveis no

tempo e espaço de quem os realiza. Por fim, cabe salientar que Sodré confere

ao ritmo uma importância fundamental para o princípio da Arkhé. Isto porque,

no pensamento nagô, a música e suas imagens sonoras auditivas e táteis

produzem um senso de orientação do sujeito inserido em uma coletividade

por seu caráter vibratório. Assim, o elemento musical rítmico (de modo mais

pronunciado que a melodia e a harmonia) é o responsável por capturar forças

sonoras, constituindo-se como uma espécie de operador da passagem de um

tempo-espaço a outro. Na medida em que o ritmo dispõe temporalmente sons

com qualidades distintas (que podem ou não ser alturas melódicas, como as

notas dó, ré etc.) em uma determinada sequência, promove a contenção e

ordenação quantitativa do movimento da música.

O ritmo, portanto, movimenta e é movimentado por uma medida interna

– em vez de externa, como no caso do metrônomo – sendo ele próprio um

espaço vazio e aberto a outras marcações. Por sua potência interna e dinâ-

mica, além de constituir um princípio real e não palpável de vinculação de ele-

mentos singulares que são os sons, o ritmo é o fundamento da Arkhé, assim

como o pulsar é o fundamento do coração. Daí a provável origem da popular

frase: “a bateria é o coração da escola de samba”. Pelo exposto, a Arkhé nos

proporciona pensar a memória da escola de samba como repertório, em

contraste com a ideia de memória arquival que separa conhecedor e objeto

do conhecimento. Isso porque a origem e o destino da escola de samba é

ela mesma, com seu ritmo pulsante da batucada.

O batuque na escola pública e o engajamento estético

Retornando ao exemplo do percussionista e pesquisador Oscar Bolão

e à letra de “Feitio de oração”, podemos inferir que o ser batuqueiro é meio

e finalidade da ação de batucar, e alguém só é batuqueiro sendo junto à

escola de samba. É no samba que se aprende a sambar, é no batuque que se

aprende a batucar. Isso porque o samba nasce e permanece no coração onde

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mora como memória ancestral, como Arkhé. Deste modo, a escola também

pode ser concebida como origem e destino dos gestos.

A partir dos exemplos acima, pretendemos acentuar o fato de que a

escola de samba pode veicular o princípio da Arkhé, conforme se evidencia

na metáfora o samba (e o batuque) nasce do coração. De modo que pode-

mos não compactuar com a máxima de Noel e Vadico: “ninguém aprende

samba no colégio” somente se entendermos colégio e coração como coisas

distintas. É preciso, portanto, fazer o coração da escola pulsar, e este pulso

pode ser o ritmo do batuque.

A ideia de promover batucadas no Gualter tinha o propósito de des-

programar os gestos dos jovens do ensino médio. Isso porque a batucada é

concebida como gesto que nasce do coração, performado no aqui e agora,

significativo por si mesmo. O som que vibrava no e por meio dos instrumen-

tos de percussão era o estudante, era o professor, era cada pessoa singu-

lar – como na diátese média. Criou-se, assim, o “professor-que-batuca”, “o

estudante-que-bate-no-tambor”, de maneira que cada pessoa era reconhecida

mútua e igualmente em seus gestos.

Cada batuqueiro era uma passagem entre margens, como é o próprio

ritmo batucado, pensado como medida interna do tempo. Deste modo, foi evi-

denciado nas atividades propostas e gestos de alteridade mediante o ritmo,

como se ele pudesse nos orientar para um comum. O batuque, seja ele do

samba, do jazz ou do rap pulsa o ritmo do coração de uma memória coletiva

em cada gesto singular.

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TAYLOR, Diana. O arquivo e o repertório: performance e memória cultural nas

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Recebido em 15/02/2019

Aprovado em 24/05/2019

Publicado em 29/08/2019