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Revisão da Revista do Memorial da América Latina

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NossaRevista do Memorial da América Latina N°43 - Ano 2011 | 3º trimestre - R$8,00

Número 43ISSN 0103-6777

EXPEDIÇÃO 47Jorge Ubirajara Proença

PERFIL 38Francisco Alambert

DEBATE 51Laura Gonzalez

POLÍTICA 54Carlos Romero

AGENDA 62Da Redação

POESIA 66Silvio Back

CURTAS 64Da Redação

SUSTENTABILIDADE 43Adolpho José Melfi

EDITORIAL 04Antonio Carlos Pannunzio

CULTURA 06Adriana Marcolini

ARQUITETURA 12Maria José Marcondes

EXPOSIÇÃO 16Marlene Almeida

ARTE 22Leonor Amarante

HOMENAGEM 26Ana Candida Vespucci

OLHAR 29Diego Kuffer

ANTROPOLOGIA 35Moira Anne Bush

RESENHA 60Reynaldo Damazio

GOVERNADORGERALDO ALCKIMIN

SECRETÁRIO DA CULTURAANDREA MATARAZZO

FUNDAÇÃO MEMORIALDA AMÉRICA LATINA

CONSELHO CURADOR

PRESIDENTEALMINO MONTEIRO ÁLVARES AFFONSO

SECRETÁRIO DA CULTURAANDREA MATARAZZO

SECRETÁRIO DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO, CIÊNCIA E TECNOLOGIAPAULO ALEXANDRE BARBOSA

REITOR DA USPJOãO GRANDINO RODAS

REITOR DA UNICAMPFERNANDO FERREIRA COSTA

REITOR DA UNESP (em exercício)JÚLIO CEZAR DURIGAN

PRESIDENTE DA FAPESPCELSO LAFER

REITOR DA FACULDADE ZUMBI DOS PALMARESJOSÉ VICENTE

PRESIDENTE DO CIEERUI ALTENFELDER SILVA

DIRETORIA EXECUTIVA

DIRETOR PRESIDENTEANTONIO CARLOS PANNUNZIO

DIRETOR DO CENTRO BRASILEIRO DE ESTUDOS DA AMÉRICA LATINAADOLPHO JOSÉ MELFI

DIRETOR DE ATIVIDADES CULTURAISFERNANDO CALVOZO

DIRETOR ADMINISTRATIVO E FINANCEIRO (em exercício)ANGELO DE JESUS FERREIRA LOPES

CHEFE DE GABINETEIRINEU FERRAZ

DIRETOR PRESIDENTEMARCOS ANTONIO MONTEIRO

DIRETOR INDUSTRIALTEIJI TOMIOKA

DIRETOR FINANCEIROMARIA FELISA MORENO GALLEGO

DIRETOR DE GESTãO DE NEGÓCIOS JOSÉ ALEXANDRE PEREIRA DE ARAÚJO

REVISTA NOSSA AMÉRICA

DIRETORANTONIO CARLOS PANNUNZIO

EDITORA EXECUTIVA/DIREÇãO DE ARTELEONOR AMARANTE

EDITORA ADJUNTAANA CANDIDA VESPUCCI

ASSISTENTE DE REDAÇãOMÁRCIA FERRAZ

DIAGRAMAÇãO (ESTAGIÁRIO)FELIPE DE PAULA LOPES

REVISãO (ESTAGIÁRIO)ELIAS CASTRO

DIAGRAMAÇãO E ARTEESTAÇãO DAS ARTES/SILVIA SATO

TRADUÇãO E REVISãOESTAÇãO DAS ARTES/DEISE ANNE RODRIGUES/MATRIX BRAZIL TRADUÇÕES

COLABORARAM NESTE NÚMEROAdriana Marcolini, Carlos Romero, Diego Kuffer, Francisco Alambert, Jorge Ubirajara Proença, Laura Gonzalez, Maria José Marcondes, Marlene Almeida, Moira Anne Bush, Reynaldo Damazio, Silvio Back.

CONSELHO EDITORIALAníbal Quijano, Carlos Guilherme Mota, Celso Lafer, Davi Arrigucci Jr., Eduardo Galeano, Luis Alberto Romero, Luis Felipe Alencastro, Luis Fernando Ayerbe, Luiz Gonzaga Belluzzo, Oscar Niemeyer, Renée Zicman, Ricardo Medrano, Roberto Retamar, Roberto Romano, Rubens Barbosa, Ulpiano Bezerra de Menezes.

NOSSA AMÉRICA é uma publicação trimestral da Fundação Memorial da América Latina. Redação: Avenida Auro Soares de Moura Andrade, 664 CEP: 01156-001. São Paulo, Brasil. Tel.: (11) 3823-4669. FAX: (11)3823-4604.Internet: http://www.memorial.sp.gov.br Email: [email protected].

Os textos são de inteira responsabilidade dos autores, não refletindo o pensamento da revista. É expressamente proibida a reprodução, por qualquer meio, do conteúdo da revista.

SECRETARIA DEESTADO DA CULTURA

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EDITORIAL

Neste primeiro editorial que assi-no como diretor da revista Nossa Améri-ca, gostaria de reforçar meu reconheci-mento pelo trabalho incansável dos que me antecederam nesta publicação e na Fundação Memorial da América Latina.

Estou animado com mais esse desafio em minha vida pública e, com especial carinho e entusiasmo, assumo a presidência da nossa Fundação. Dirigir uma revista como a Nossa América tam-bém é desafiador, se levarmos em conta que seu histórico soma nomes da gran-deza de Garcia Marques, Pablo Neruda, Vargas Llosa, Antonio Candido, Harol-do e Augusto de Campos e tantos ou-tros escritores de igual magnitude.

Tenho um apreço especial pela América Latina e por São Paulo, metró-pole cosmopolita, que acolhe milhares de estrangeiros vindos de todas as partes do mundo e, particularmente, de países sul-americanos. Vamos trabalhar juntos para reforçar a integração tão sonhada por Darcy Ribeiro, o mentor do Memorial e desta publicação. Meu propósito primei-ro é fazer dessa Fundação um lugar de buscas, encontros e construção conjunta da identidade latino-americana.

Neste número, destacamos a cida-de de Buenos Aires, que foi escolhida pela Unesco como a Capital Mundial do Livro. Nada mais justo. A cidade tem centenas de livrarias, todas muito char-mosas. A jornalista Marlene Marcolini, autora do livro 50 Livrarias de Buenos Aires, conta um pouco da história des-sa tradição secular na vida cotidiana dos portenhos. Outra questão cultu-ral latino-americana que Nossa América aborda nessa edição, refere-se à arquite-tura. Maria José de Azevedo Marcondes, professora do Instituto de Artes da Uni-versidade de Campinas, explica a impor-tância dos Seminários de Arquitetura Latino-Americana na construção de um pensamento crítico sobre a matéria.

Marlene Almeida é uma artista singular. Leonor Amarante, editora de Nossa América, escreve sobre a obra des-sa paraibana que tira inspiração e pig-mentos da terra para disseminar novos padrões de entendimento da arte brasi-leira. Em outra matéria dedicada às ar-tes, Leonor focaliza o prestigioso Mu-seu de Arte Contemporânea de Caracas, guardião de uma das mais importantes coleções da América Latina.

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Antonio Carlos Pannunzio Presidente do Memorial da América Latina

Nesta edição, o ensaio fotográfi-co ficou a cargo do fotógrafo e perfor-mer Diego Kuffer, que flagrou a indife-rença das pessoas diante de uma cena chocante e comum no cenário urbano: um homem caído no chão. E mais: para quem não sabe o que é mate burilado, que o Pavilhão da Criatividade expõe, a professora Moira Anne Bush explica: trata-se de uma antiga arte exercida por comunidades agricultoras peruanas, em que cabaças recebem inscrições e dese-nhos para contar a história local.

Carlos Monsivaís foi um dos mais prolíficos e populares ensaístas mexi-canos, um dos poucos que eram reco-nhecidos nas ruas, porque escrevia sem preconceitos sobre todos os assuntos. O professor Francisco Alambert traça um perfil dessa figura premiada, que circula-va entre Harvard e a periferia da Cidade do México. Outro tema bastante atual nas páginas de Nossa América: a questão das águas virtuais, quer dizer, o quanto um determinado produto consome de água, durante todo o seu processo de elabora-ção. Quem escreve é o professor Adolpho José Melfi, diretor do Centro Brasileiro de Estudos da América Latina, do Memorial.

O Caminho do Peabiru, que data do período dos primeiros povos da América, ainda que rodeado de misté-rios, existe, e era rota de ligação entre o Atlântico e o Pacífico. O historiador Jorge Ubirajara Proença desvenda a his-tória desse meio ancestral de integração entre os povos da América.

Por sua vez, os especialistas Laura González e Alberto Montoya Palacios tratam da questão das “terras não go-vernadas” na América Latina e as impli-cações que acarretam aos países. E, para encerrar, o professor Carlos Romero, da Universidade Federal de Caracas, analisa a política de Barack Obama para a Amé-rica Latina, cuja conduta, segundo ele, tem sido bem ambígua.

Fecham a edição, como sempre, as seções Curtas e Agenda, além da Po-esia, desta vez, assinada pelo poeta e ci-neasta brasileiro Sylvio Back.

Boa Leitura!

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CULTURA

Adriana Marcolini

A CIDADE DAS LIVRARIAS

Elas estão espalhadas por todos os bairros. Existem as de grandes redes, as médias, as pequenas ou até as minúsculas. As gerais ou especializadas. As de viejo, equivalentes aos nossos sebos; as de saldo, que só vendem títu-los esgotados ou fora de catálogo; e as anti-

quárias, guardiãs de verdadeiros tesouros. Essas senhoras elo-quentes e charmosas são as livrarias de Buenos Aires, uma das marcas registradas da capital argentina. São cerca de 370 – uma para cada seis mil habitantes. O ano de 2011 é um momento de efervescência para elas: a cidade foi escolhida pela Organiza-ção das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) como a Capital Mundial do Livro (www.capialdelli-bro2011.gob.ar). O título é motivo de orgulho não só para a Argentina, mas para toda a América Latina. É o reconhecimento

BUENOS AIRES

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Ícones da cidade, são mais de 350 livrarias, uma para cada seis mil habitantes.

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de uma tradição livreira que remonta a 1780. Naquele ano, o vice-rei espanhol Juan José de Vértiz y Salcedo, no co-mando do vice-reino do Rio da Prata, fundou em Buenos Aires a Imprensa Real das Crianças Abandonadas, me-diante a compra da tipografia que per-tencera aos jesuítas, expulsos em 1767 do império espanhol.

Tinha início o primeiro capí-tulo de uma longa história. Alguns anos mais tarde, em 1785, começava a funcionar o armazém La Botica, que vendia roupas, licores, produtos alimentares e livros. Com o tempo,

transformou-se na Librería del Cole-gio, o primeiro estabelecimento ex-clusivamente livreiro da cidade – cujo nome faz referência ao prestigiado Colégio Nacional de Buenos Aires, que fica em frente da livraria. Depois de permanecer fechada por quatro anos, e de quase virar uma lanchonete, a mais antiga livraria portenha reabriu em 1994, graças ao livreiro Miguel Ángel Ávila, que a rebatizou Librería de Ávila (www.libreriadeavila.servisur.com). Localizada no bairro de Mont-serrat, a poucas quadras da Plaza de Mayo, conta com uma oferta variada

A tradição livreira de Buenos Aires remonta a 1870, quando o vice-rei espanhol montou a Imprensa Real.

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de obras, que inclui uma seção de li-vros antigos e usados.

O centro livreiro mais importante de Buenos Aires é a região da Avenida Corrientes. Ao longo de pouco mais de um quilômetro, as quadras entre as calles Libertad e Ayacucho formam uma espé-cie de grande livraria. Aí ficam as casas de longa trajetória na Argentina; aquelas que superaram as ditaduras e as crises econômicas, e continuam sólidas como uma rocha. São livrarias conhecidas em todo o mundo hispânico, como a Her-nández (www.libreriahernandez.com.ar), a Prometeo (www.prometeolibros.

com) e a Losada (www.editoriallosada.com.ar), que oferecem uma variedade enorme de títulos. Há ainda uma grande quantidade de sebos e algumas librerías de saldo distribuídas pela Corrientes e ruas próximas. Embora esse ainda seja o principal polo aglutinador, outras áre-as despontam hoje na cidade.

Uma delas é o bairro de Palermo. Algumas das livrarias mais atraentes da capital surgiram nos últimos anos nesta região. A Eterna Cadencia (www.eterna-cadencia.com), em Palermo Hollywood, é uma delas. Fica em uma casa do início do século XX, e promove lançamentos

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Adriana Marcolini é autora do guia 50 Livrarias de Buenos Aires (Ateliê Editorial).

concorridos. O café anexo é utilizado como local de trabalho e leitura por muitos que têm na escritura seu ofício. Já em Palermo Soho, a Libros del Pa-saje (www.librosdelpasaje.com.ar) tem um charme especial. Destaca-se pelo ambiente cálido, pela luz natural envol-vente e a oferta variada de títulos. Bem próxima, em uma simpática casa, está a 1690 Tierra Adentro (www.1690ta.com), especializada em livros usados e primeiras edições.

A capital argentina é um centro de livrarias antiquárias e goza de re-putação internacional entre os cole-cionadores de livros, mapas e gravu-ras antigos. Os estabelecimentos mais prestigiados estão aglutinados na Asso-ciação de Livreiros Antiquários da Ar-gentina (www.alada.org.ar). Presidida por Alberto Casares, a entidade reúne 40 livrarias e todos os anos promove uma exposição na capital. As biblio-tecas adquiridas no início do século passado pelas famílias abastadas ar-gentinas, durante suas longas estadias na Europa, mantêm esta especialidade em constante vigor. As novas gerações têm escolhido vender seus volumes, fo-mentando um comércio dinâmico.

A tradição livreira de Buenos Ai-res se consolidou graças à urbanização acelerada e à fixação, por lei, do preço único do livro em todas as livrarias da capital. O principal fator foi, porém, a presença de um mercado sólido. Em virtude do número elevado de imi-grantes que a Argentina recebeu (em 1914 os estrangeiros eram 30,3% da população), a educação de massa era considerada um instrumento essencial para alcançar unidade e consenso. A escola pública de qualidade e a rede de bibliotecas escolares e populares tive-ram um papel fundamental na cons-trução de um público leitor amplo. A guerra civil espanhola, que resultou na instauração da ditadura de Francisco

Franco, também deu sua dose de con-tribuição. Vários editores espanhóis perseguidos pelo franquismo emigra-ram para a Argentina, onde puderam dar continuidade ao seu ofício. Alguns também abriram livrarias.

A tradição se consolidou graças à educação, considerada essencial.

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ARQUITETURA

Os Seminários de Arquitetura Latino-Ame-ricana (SAL) exerceram importante papel na construção do pensamento crítico sobre arquitetura e urbanismo no conti-nente latino-americano nas últimas déca-das, conforme aponta a historiografia e a

crítica do citado seminário, presentes em diversas publicações ibero-americanas. Esse evento surge em 1985, em um período marcado pela redemocratização de alguns países do continente e pela permeabilidade crescente de ideais neoliberais nas polí-ticas culturais vigentes, contaminando diversas esferas da cul-tura, sobretudo, a arquitetônica e urbanística. Neste contexto, foram fomentadas estratégias de resistência de determinado grupo de arquitetos latino-americanos sobre o pensamento e obra arquitetônica local frente às tendências internacionais, no

Maria José de Azevedo Marcondes

ARquITETuRA LATInO-AmERICAnA

construção de um pensamento crítico

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sentido da construção de uma capacida-de latente para resistir às forças culturais dos processos de dominação global.

No seminário fundacional, foram definidos os temas da modernidade e identidade como questão central da ar-quitetura latino-americana, temas esses que permearam as edições seguintes, constituindo um corpo de doutrina que pode ser considerado uma “teoria da arquitetura latino-americana”, como de-signado na historiografia existente sobre esse evento. A pauta da primeira reunião versou sobre as heranças pré-colombia-nas e europeias e a influência delas na arquitetura latino-americana, a incidên-cia do estilo internacional na região, a arquitetura como resposta à identidade regional, a confrontação das tecnolo-gias próprias e importadas, e o balanço e prospectiva da arquitetura latino-ame-ricana. Essas abordagens irão marcar as três próximas edições deste evento, apresentando-se diversas narrativas dis-cursivas sobre as temáticas da moderni-dade e da identidade latino-americana.

Na terceira edição do SAL, em Manizales, Colômbia, foi amplamente di-vulgada a concepção teórica do conceito de “modernidade apropriada”, desenvol-vida pelo arquiteto chileno Cristián Fer-nándes Cox, propondo, conceitualmente, a existência de modernidades cultural-mente diferenciadas, em contraposição à ideia eurocêntrica de uma modernidade universal. Para Cox, existe um triplo sen-tido para o termo apropriação, derivado do conceito “modernidade apropriada”, no sentido de ser adequado a um deter-minado lugar, objeto ou sujeito, em ou-tros termos: ser pertinente ao território latino-americano no sentido de transferir do outro, de abarcar elementos de ou-tras culturas e utilizá-las como próprias e, finalmente, no sentido de um devir próprio, correspondente ao sentido et-nográfico de cultura, da relevância dos elementos identitários.

Em Manizales, a chamada “ter-ceira geração” do movimento moderno, que “alcança paulatinamente seu valor de obra de arte universal, a partir de sua síntese entre a modernidade e a cultu-ra do lugar” (como disse Josep Maria Montaner no livro Modernidad Superada: arquitectura Y Pensamiento del Siglo XX), é destacada, como ilustra o Prêmio Amé-rica, criado nesta edição, atribuído a Luis Barrágan, com a finalidade de valorizar trajetórias de arquitetos comprometidos com a América Latina e que possam ser-vir de exemplo para as novas gerações.

Outro tema recorrente nas edições do SAL, nesse período, foi o do regiona-lismo na arquitetura, em “contrapartida crítica às soluções universais na arquite-tura e também como parte do reconhe-cimento mundial da pluralidade das cul-turas” (segundo Marina Weisman em seu artigo para o livro Nueva Arquitectura en América Latina: presente y futuro), tema esse controverso nos debates do SAL. Como apontou Weisman, “pode significar des-de a reinterpretação criativa de correntes mundiais, até, no extremo oposto, a ati-tude reacionária de um conservadorismo máximo ou de um revivalismo folclórico”.

Os temas da identidade, regiona-lismo e universalismo presentes nas pri-meiras edições do SAL, são revisitados no presente, relacionados às abruptas mu-danças ocorridas nas sociedades latino-americanas nas últimas décadas e às evi-dências da diversidade latino-americana, ressaltando-se a necessidade de relacionar o continente latino-americano e a região do Caribe e delinear pautas convergentes.

A atualização dos discursos latino-americanos em arquitetura e urbanismo presentes nas últimas edições do SAL intenta rechaçar determinada geração vinculada ao internacionalismo da arqui-tetura, com uma linguagem arquitetônica e urbanística enfatizando a incorpora-ção da alta tecnologia de forma acrítica. Como apontou Toca Fernández, também

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no livro Nueva Arquitectura en América La-tina: presente y futuro, “a nova arquitetura latino-americana deixará de ser uma pos-sibilidade para converter-se em realidade, quando houver um esforço coletivo com o qual os arquitetos atuem como verda-deira vanguarda cultural fazendo obras que, respeitando e valorando nosso pas-sado, incorporem, também, os valiosos avanços da técnica moderna”.

Nas últimas edições, observa-se também o deslocamento dos seminá-rios centrados em obras e autores para a apresentação de grupos de pesquisa, com a ampliação dos temas relativos ao urbanismo e da escala de abrangên-cia das análises, algumas voltadas para a macrometrópole, bem como o com-promisso com a contemporaneidade, expressa em análises de novas propostas arquitetônicas para o continente, relati-vas à noção de público e comunitário.

A realização, no Brasil, do XIV Seminário de Arquitetura Latino-Ame-ricana, em novembro de 2011, insere-se em um contexto marcado por outros paradigmas na arquitetura e urbanismo contemporâneo em relação à fase funda-cional, de resistência do local frente ao global, e por novas concepções da noção de identidade cultural. Sua proposta é a de analisar as contribuições do SAL à cri-tica da arquitetura e do urbanismo latino-americanos, decorridos 25 anos de exis-tência do citado seminário e, por outro lado, refletir sobre projetos de arquitetura pública para a cidade contemporânea.

Profa. Dra. Maria José Marcondes, é doutora em Ar-quitetura e Urbanismo e docente do Instituto de Artes da Unicamp.

Museu de la Memoria de los Derechos Humanos, em Santiago, Chile, projeto dos paulistas Mario Figueroa, Lucas Fehr e Carlos Dias, de São Paulo.

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ARTE QUE NASCE DA

TERRALeonor Amarante

EXPOSIÇÃO

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Marlene Almeida tem a inquietude de uma militante nata que atua em diver-sas frentes. O solo arenoso do Nordes-te já lhe trouxe todo um arco-íris com o qual pintou telas coloridas, com uma ma-nufatura singular, alimentada por tintas à base de pigmentos e resinas naturais.

Nascida em Bananeiras, Paraí-ba, estudou filosofia, daí a veia poética com que escreve textos, e depois, dese-nho, pintura e escultura. Firme, como a dura arueira, a artista sobreviveu, ao lado do marido, às agruras do tempo de repressão militar, quando atuava em movimentos sociais e era militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Nas artes, colocou toda sua força criativa na pesquisa da terra, com a qual tentou de-codificar, para os demais centros de arte do País, sua preocupação com a padroni-zação da representação da natureza bra-sileira, traduzindo em telas os frutos e a vegetação que estão fora do alcance do olhar estrangeiro, do eixo Rio/São Paulo.

Nos anos de 1970, realizou uma pesquisa sobre pigmentos e aglutinantes, com apoio da Universidade Federal da Paraíba, onde estudou, e do CNPq. Não guardou para si as descobertas de geó-loga, que somam toda uma aquarela de amarelos intensos, de azuis profundos, de verdes translúcidos, de violetas e de laranjas especiais, entre tantas gamas de cores. Ministrou cursos e palestras sobre pintura e manufatura de tintas em quase todos os estados brasileiros, e em países

como Cuba e Alemanha. Utiliza até hoje os materiais naturais em suas obras.

Discutir e pensar arte sempre foi o seu propósito. Assim, em 1974, fun-dou o Centro de Artes Visuais Tambiá, onde, durante 10 anos, coordenou e es-tabeleceu intercâmbios internacionais. Mantém atelier em João Pessoa, dedi-cando-se a uma produção intensa.

Como artista multimídia, experi-mentou vários segmentos, mas foi na escultura e na instalação que melhor sintetizou suas buscas anteriores. For-mas simplificadas nasceram de pesqui-sas com resinas naturais, e depois, com a terra, romperam-se os limites. Como uma imensa cobra, de comprimen-to interminável, ela criou uma de suas mais instigantes instalações, com tecido branco recheado de terra, uma terra em mutação constante que se rompe, inter-rompe ou, simplesmente, se enrola, de-pendendo da intensidade do momento.

Em Berlim, por exemplo, como mostram as fotos deste artigo, uma luz difusa envolveu a instalação coloca-da numa edificação antiga, criando um cenário quase ritualístico, cuja fruição estética aconteceu no ritmo de cada vi-sitante. A curiosidade e a vontade de decifrar cada elemento complementou o saber anônimo do espectador que, possivelmente, nunca ouviu falar em Pa-raíba, nem em agreste, mas levou consi-go novos padrões de entendimento de um capítulo da arte brasileira.

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O museu aposta no patrimônio artístico.

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ARTE

Leonor Amarante

CARACAS ABRIGA ACERVO DE ARTE CONTEMPORâNEA

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Qual é o mais importante, o MAC de São Paulo ou o de Caracas? Ambos os museus reúnem as obras de arte contemporâneas mais significativas da América Latina. O primeiro é forma-do praticamente por obras premiadas pela Bienal de São Paulo. O segundo, plantado no Complexo Parque Central da capital venezuelana, ao lado do Tea-tro Teresa Carreño, abriga peças de alta qualidade, montadas harmoniosamente em dezessete salas.

O museu possui uma coleção la-tino-americana de arte moderna e con-temporânea com cerca de quatro mil obras. O prestígio do MAC venezuelano pode ser aferido pelo intenso programa de intercâmbio com instituições interna-cionais. Há obras-primas que são requisi-tadas para exposições de peso, organiza-das por outros museus, como as pinturas: Odalisca com Calça Vermelha, de Henri Ma-tisse; Lição de Sky, de Joan Miró; Retrato de Dora Maar, de Pablo Picasso; e O Carna-val Noturno, de Marc Chagall.

Quase todos os movimentos de arte estão representados no MAC, a exemplo do fovismo de Maurice de Vla-minck e Henri Matisse; o expressionismo de Emil Nolde; o cubismo e o futurismo de George Braque e Fernand Léger. Ain-da estão representadas no acervo as cor-rentes não-figurativas com Kandinsky, Josef Albers, Henry Moore, o surrealis-mo e o dadaísmo com Max Ernst, Mar-cel Duchamp, Hans Arp, Lucian Freud; o tachismo de Pierre Alechinsky, Jean Du-buffet; a pop art de Robert Rauschenberg, George Segal e outras correntes artísticas e tendências diversas com Alberto Mag-nelli, Victor Vasarely, Francis Bacon, Fer-nando Botero e Lucio Fontana.

Todo esse precioso acervo ocupa aproximadamente vinte e um mil me-tros quadrados distribuídos em cinco andares. As salas expositivas somam dezessete, sendo oito delas totalmente dedicadas às exposições temporárias.

Ainda dentro do edifício estão uma sala multimídia, para a arte digital e vi-deo arte, e duas salas para exposição do acervo permanente. Assim como o Mu-seu de Arte Moderna de São Paulo, o MAC de Caracas possui um Jardim de Esculturas, onde, ao ar livre, convivem permanentemente obras de Miró, Lucio Fontana e Héctor Fuenmayor.

Não é por acaso que a Venezuela é um país de artistas relevantes, colecio-nadores internacionais de grande poder, como Patricia Cysneiros, vários museus e críticos de renome. Até a década pas-sada, foi palco da Bienal Barro de Amé-rica, idealizada por Roberto Guevara que expôs praticamente todos os artis-tas destacados da América Latina e, ao mesmo tempo, lançou novos valores. Ao longo de mais de dez anos, foi uma plataforma de motivação, persistência e espírito de interação entre a produção artística de vários países do Continen-te. A Venezuela, como a Bienal de São Paulo, pode atestar durante seus 60 anos de existência que é um prolífico celeiro de artistas e de arte consistentes que, se não arrebatou grandes prêmios, mante-ve um nível de qualidade exemplar, as-sim como o Museu de Arte Contempo-râneo de Caracas.

A coleção, um dos orgulhos nacio-nais, ainda abarca um pequeno núcleo de obras impressionistas e pós-impressio-nistas, marcada por obras de pintores do porte de Claude Monet, Maurice Utrillo e Auguste Herbin e dos escultores Auguste Rodin e Aristide Maillol. Não só de his-tória vive o MAC, que também tem um conjunto consistente de arte moderna, em que destacam-se pinturas de Pablo Picasso, como Retrato de Dora Maar, Duas Figuras Reclinadas e 76 gravuras da série de Suíte Vollard.

Leonor Amarante é editora da Revista Nossa América.

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Vista interna do Museu. Em primeiro plano, a escultura Cama Grande, de Cornelis Zitman. Abaixo, à esquerda, obra Conceito Espacial de Lucio Fontana e o artista brasileiro Tunga, durante a montagem da segunda Bienal Barro de América, em 1996.

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HOMENAGEM

O CONCRETISMO VIGOROSO DE

WEISSmAnn

Ana Candida Vespucci

Sem título, 1981, coleção particular.

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Franz Weissmann faria 100 anos dia 15 de se-tembro deste ano. Desenhista, escultor e pro-fessor, esse artista que nasceu na Áustria, e chegou menino ao Brasil, destacou-se pelas esculturas monumentais que deixou em vá-rias cidades do país. Entre elas, a Grande Flor

Tropical, que plantou na Praça Cívica do Memorial da América Latina. Uma obra de cunho construtivista, como muitas outras que criou em formas geométricas, feitas de recortes e dobra-duras, todas de planos, fitas e fios de metal. Weissmann (1911-2005), que começou sua vida artística com o figurativismo, aderiu ao construtivismo já nos anos 1950, época em que, completamente engajado aos movimentos vanguardistas, participou do manifesto neoconcreto, junto com outros ar-tistas, como Lygia Clark. Desde então, essa foi a linha mestra

Três Pontos, de 1957, Parque das Esculturas, Brasília.

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de obras fincadas em espaços públicos e privados, como a primeira variante da Flor de Aço, que está no Museu de Arte Moderna de São Paulo e data de mea-dos dos anos 1970. Ou a Estrutura em Diagonal, no Parque da Catacumba, no Rio de Janeiro; e Diálogo, na Praça da Sé, também em São Paulo.

Quando chegou ao Brasil, ele vi-veu, com a família, primeiro em São Paulo, depois no Rio de Janeiro, onde estudou na Escola Politécnica e traba-lhou na fábrica de carroçarias de ônibus do pai. Foi morando em Belo Horizon-te que abriu seu primeiro ateliê, recebeu as primeiras encomendas de bustos e

mausoléus, e decidiu ingressar na Esco-la Nacional de Belas Artes, para estudar arquitetura e escultura. Convidado por Guinard, implantou a primeira Escola de Arte Moderna da cidade, onde formou uma geração de grandes artistas como ele, a exemplo de Amilcar de Castro. Já no auge da vida artística, com vários prêmios e participações em importantes mostras nacionais e internacionais, Weis-smann radicou-se definitivamente no Rio de Janeiro, onde montou seu ateliê, na fá-brica que o irmão comandava.

Ana Candida Vespucci é editora adjunta da Revista Nossa América.

Grande Flor Tropical, de 1989, no Memorial da América Latina.

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OLHAR

O HOMEM TRANSFORMADO EM

DEJETODiego Kuffer

A imagem seduz. Ao longo da história da fo-tografia, centenas de bons profissionais vie-ram de outras áreas para exercitar o prazer de transformar o real em algo poético. O jovem fotógrafo Diego Kuffer deixou os negócios e o marketing para entrar num

mundo em que a objetiva é a fiel testemunha de seu tempo. Neste ensaio, Dejeto, ele flagra a indiferença das pesso-as diante de uma cena clássica das grandes cidades. O destaque, não é dado aos mendigos, protagonistas re-correntes no cenário urbano, mas a outro indivíduo, o da classe média, que parece não sensibilizar ninguém. A fotografia é a melhor aliada da performance, o elemento que preserva a memória do acontecimento. Neste trabalho, em que contou com o artista Felipe Bittencourt, Kuffer acres-centa tempero aos ingredientes fundamentais das ações per-formáticas: o corpo, a relação com o público e o inesperado.

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O Pavilhão da Criatividade, no Memorial da América Latina, em São Paulo, possui uma preciosa coleção de mates burilados no espaço destinado ao Patrimônio Cul-tural Peruano. Essas obras são livros cir-culares realizados por artistas de Cochas,

Huancayo, região Centro-Sul do Peru. São comunidades que se dedicam à agricultura, à criação de animais e, praticamente todos os habitantes, exercem a arte de burilar mates como um ofício familiar e coletivo. Eles registram suas tradições cultu-rais e sonhos com buril – instrumento pontiagudo, em mates, ou cabaças – frutos secos de casca dura amadeirada, utilizados como recipientes desde os povos pré-colombianos. As caba-ças apresentam formas e tamanhos variados. São cultivadas no Norte do Peru, a aproximadamente mil e duzentos quilômetros

ANTROPOLOGIA

Moira Anne Bush Bastos

A POÉTICA DOS

mATES BuRILADOS

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A casca amadeirada do fruto seco é removida aos poucos por esses instru-mentos, sem desenho prévio.

Histórias são descritas no sen-tido horizontal, vertical ou em curva ascensional espiralada, da base inferior à superior, da esquerda para a direita. Os mates mais elaborados revelam três mundos: o cosmos, a terra e a presença dos antepassados. Levam em torno de três a seis meses para serem concluídos.

Mesmo tendo acesso a equipa-mentos tecnológicos e modernos, os mates burilados da região do Vale Del Mantaro, Cochas Grande, continuam sendo criados com a utilização de pro-cessos herdados dos ancestrais. As téc-nicas de queimado e de fundo preto são as mais tradicionais.

Depois de lavado com água e seco ao sol, o fruto recebe as incisões de figu-ras “miniaturalizadas”, sendo que, muitas delas, devem ser analisadas com auxílio de lentes de aumento. É comum a par-ticipação de vários membros da família em uma única obra, de acordo com o ta-lento natural da pessoa para a criação de figuras fitomorfas, zoomorfas, antropo-morfas, cósmicas, vestes, instrumentos de trabalho, entre tantos outros.

As figuras são maiores, visíveis a olho nu, quando é utilizada a técnica do mate queimado. Os artistas queimam o mate com o sopro de um pedaço de quinual – parte do galho de árvore mís-tica, em brasa. A intensidade e o tempo do sopro, bem como a proximidade da brasa com a casca, fazem com que obte-nham até quarenta tonalidades de mar-rom. Após a queima, o mate volta a ser burilado para que realce a cortiça branca do interior da cabaça e os desenhos se-jam mais definidos.

Para a criação dos mates de fun-do preto é realizada uma mistura de ichu – cinzas de pasto seco com óleo de linhaça cultivado na redondeza. O pre-enchimento dos espaços anteriormente

do local onde se realiza o mate burila-do. As famílias que executam esse ofício têm investido nas plantações para obte-rem os frutos de melhor qualidade. Os menores são utilizados na produção ar-tesanal para turistas.

Ao entrar em contato com as obras que estão à mostra em duas vitrines do Pavilhão da Criatividade, o espectador é convidado a conhecer a tradição ances-tral pertencente à cultura Wanka.

O processo criativo tem início no contato do artista com o fruto seco. A comunicação é estabelecida por meio do olhar e do toque. Uma atração mútua. Detalhes como a suavidade e as marcas, ou defeitos da casca, o tama-nho, a forma, a “redondez” para giro, a leveza, a espessura da cortiça interna do fruto da cabaceira são analisados por cada um dos artistas. O mate, por sua vez, parece anunciar o que deseja contar, ou em quê quer ser transforma-do. Surgem peças circulares antropo-morfas, zoomorfas, ou simplesmente, obras que revelam os meios de vida daquela nação ao espectador.

A base superior do fruto indica o conteúdo da história, ou a parte mais relevante da narrativa, para a qual o ar-tista quer chamar a nossa atenção. Al-guns mates burilados trazem desenhos decorativos na tampa, com inscrições do título acima de sua possível abertura. Com a necessidade de serem compreen-didos, a fim de auxiliar o leitor, alguns artistas passaram a introduzir textos e números associados aos desenhos.

As famílias herdeiras dessa tradi-ção seguem realizando as obras até hoje, da mesma forma como seus antepassa-dos. Contam com uma coleção de buris confeccionados por elas mesmas, com pedaços cortados de galhos de eucalipto e inserção de um prego de aço, devida-mente afiado, de diferentes ponteiras, cujas pontas os inspiram a criar linhas, figuras e textos de diversas espessuras.

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esgrafitados, valoriza os desenhos rea-lizados com o buril. Atualmente o ichu tem sido substituído por cinzas de fo-lhas de jornais diários.

Mates burilados existem para narrar as histórias dos povos peruanos. Desenhos gravados, queimados, esgra-fitados, pintados, rompem o silêncio e tornam-se vozes ao serem desvelados pelos espectadores. São histórias que não parecem ter fim e seguem o ciclo, como a própria vida. Em outras épocas foram considerados documentos, pois descreviam guerras e denunciavam in-justiças sociais e políticas.

Através do fruto decorado é pos-sível acompanhar parte da história do povo dos Andes, o contato dele e da co-munidade com o seu entorno, suas cren-ças, seu dia-a-dia, sua cultura. Apresen-tam a dualidade dos diferentes hábitos sociais, da arquitetura, dos instrumen-tos de trabalho e musicais, dos passos de danças, das vestes, novas plantas e animais na paisagem do campo, envolta por detalhes no fundo do mate. São téc-nicas e vivências tradicionais, associadas a técnicas artísticas de ourives vindos

com a ordem das missões jesuíticas para as Américas. Por meio do fruto, ocorreu a inclusão social e cultural, pois é de fá-cil reconhecimento e de uso costumeiro.

É possível que o ato de criar livros circulares, utilizando as cabaças como suporte, seja único no mundo. No espa-ço expositivo, as obras são como ecos, revelando a vivência pertencente àquela cultura. São narrativas sobre curandei-ros, festas de datas santas e comemora-tivas, vidas cotidianas, poderes vindos de Apus – montanhas, da selva, dos rios, de ancestrais e da vida em comunidade.

Vários artistas que realizaram as obras que estão à mostra no Pavilhão da Criatividade foram premiados nos anos consecutivos à visita dos curadores Jacques e Maureen Bisilliat. Entre eles há um pensamento comum: “somente a memória coletiva ou de alguns eleitos desafiam o esquecimento”.

Moira Anne Bush Bastos é graduada em Comunicação Social. Mestre em Artes pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista e pesquisadora de mates burilados do Pavilhão da Criatividade, no Memorial da América Latina.

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PERFIL

Francisco Alambert

mOnSIVÁISO único dos grandes escritores do méxico que podia ser reconhecido nas ruas

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Há uma longa e poderosa estirpe de ensaístas mexicanos. Assim como a Argentina dá sempre grandes ficcionistas (que frequentemente se tornam ensaís-tas), o México é exuberante em ensaístas (que habitualmente são grandes roman-cistas ou poetas), daquele tipo que vive entre a literatura e a crítica social, um tanto diferentes dos scholars brasileiros (cujos princípios de alta exigência uni-versitária estão sempre presentes). No resto do mundo, os mexicanos mais fa-mosos são Octavio Paz e Carlos Fuentes (ultimamente está na moda o conserva-dor Enrique Krauze). Dentre todos eles, porém, Carlos Monsiváis foi dos mais prolíficos e, certamente, o mais popular. Como se costuma dizer, ele era o único dos grandes escritores do México que podia ser reconhecido nas ruas. E isso sem ser uma figura pop, como o “nosso” Paulo Coelho. Sua capacidade de ensaiar sobre os mais diversos assuntos, e sua crônica atenta e sem preconceitos, diante da cultura popular e da cultura de massa, garantiu essa popularidade, além do esti-lo direto, entre o poético e o reflexivo. A gama de assuntos sobre os quais escre-veu é imensa: música popular (os boleros de Augustin Lara eram uma obsessão), o melodrama e as novelas (que ele abordou em Rostros del cine mexicano), a história po-lítica, a obra de Buñuel, ou de Antonin Artaud, o cotidiano do povo e da elite mexicana. Circulava entre Harvard e os bairros da periferia da Cidade do México, entre a Europa e o Brasil.

Amava os gatos. Quando faleceu tinha 12 (surgiram inclusive boatos de que ele teria tido problemas respirató-rios causados pelos animais). O mais ve-lho tinha o peculiar nome de “Mito Ge-nial” e um outro era chamado de “Miau Tse-tung”. Além deles, mantinha uma associação chamada Gatos Esquecidos.

Monsiváis recebeu diversos prê-mios, entre eles o Juan Rulfo, a maior honraria literária do México.

Sua obra é gigantesca. Só em li-vros publicou cerca de 50, além de in-contáveis artigos espalhados por jornais e revistas. Dentre eles está a fábula Nuevo catecismo para indios remisos, que desvenda os preconceitos da elite mexicana para com os indígenas, questionando dura-mente qualquer mitologia sobre a “iden-tidade” mexicana (e latino-americana). Como cronista ele também marcou época com Amor perdido, um romântico passeio por um universo que ele amava, o do melodrama, e Los rituales del caos, análise “cirúrgica” do embaralhamento de sentidos e das contradições da so-ciedade mexicana. Em 2000, publicou dois livros simultâneos que formam um belo arranjo para se entender o presente e o passado latino-americano: Salvador Novo: lo marginal en el centro, e Ayres de fa-mília: cultura y sociedade en América Latina. Como o nosso Sérgio Buarque de Ho-landa (tratando do caso brasileiro, desde seu Raízes do Brasil), Monsiváis amava o povo mexicano, no qual via muito mais qualidades que na elite.

Sarcástico é uma palavra sem-pre associada a ele. Seus escritos, bem como suas atuações públicas, enfatiza-vam sempre o “surrealismo” da situação mexicana e latino-americana. Talvez, por isso, o célebre Luis Buñuel, em seus tempos no México, tenha se interessado por ele. Uma das histórias mais curio-sas da vida de Monsiváis foi um suposto roteiro, recentemente encontrado entre os papéis do grande fotógrafo de cine-ma Gabriel Figueroa, que ele e Carlos Fuentes teriam escrito para Buñuel, cha-mado “A dor de viver”. Monsiváis dizia não se lembrar se havia escrito mesmo o roteiro, apenas que eles de fato se en-contraram durante a década de 1960 e tiveram ideias para um filme de Buñuel sobre o cotidiano mexicano.

Quando recebeu o prêmio Juan Rulfo foi dito, na saudação, que ele “forjou uma linguagem distinta para re-

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presentar a riqueza da cultura popular, o espetáculo da modernização urbana, os códigos do poder das mentalida-des”. Isso está rigorosamente correto, mas é preciso lembrar que seu olhar não era localista, ou seja, não era exclu-sivamente voltado para seu lugar. Ele sabia, como os grandes ensaístas lati-no-americanos sempre souberam, que a questão cultural e política em nossa condição era muito mais complexa, e que a herança colonial se estendia e se perpetuava no presente.

Um de seus assuntos preferidos era o saque de obras da cultura pré-co-lombiana feito sistematicamente pelos europeus. Por isso, engajou-se em dis-cussões sobre o assunto. Ele conside-rava “insultante” o “roubo” e via nisso uma extensão da mentalidade colonial. Se por um lado ele defendia a volta dos objetos da cultura indígena para seus le-

gítimos herdeiros, por outro, ele mesmo era um colecionador compulsivo, man-tendo na cidade do México o peculiar Museo del Estanquillo, que guarda sua coleção de objetos, quadros, jogos, dis-cos, calendários, livros; as matérias do universo cultural de Carlos Monsiváis.

Monsiváis sempre foi um militan-te de esquerda antidogmático. Por isso, nesses tempos de vitórias e prestígio dos reacionários, sua morte foi muito sentida: “O que vamos fazer sem você ‘Mondi’? Se você é o enfrentamento mais lúcido do autoritarismo presiden-cial (...) e dos abusos de poder”, disse a escritora mexicana Elena Pontiato-wska, que considerava Monsiváis seu irmão. Ele foi partidário da revolução cubana, mas nos últimos anos passou a ser um crítico do castrismo. Mesmo as-sim, o presidente da União de Escrito-res e Artistas de Cuba, Miguel Barnet,

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exaltou o colega mexicano, definido-o como um “estraga-festas para todos os políticos, para todas as administrações de plantão”.

Em 2006 ele apoiou, com restri-ções, o candidato da esquerda Lopes Obrador, contra o conservador Felipe Calderón. Obrador chegou a convidá-lo para ser o Ministro da Cultura. Em entrevista para o site Carta Maior, ele explicou, sarcasticamente, sua recusa: “acredito que foi uma brincadeira, não sobreviveria nem dois dias em um alto posto público, seria demitido de ime-diato. De mais a mais, quando ele fez a oferta eu lhe disse que só aceitaria ser ministro da Economia”.

Ele podia ser irônico e quase performático, mas sua acidez crítica também era muito bem assentada em uma visão clara do conservadorismo mexicano, aquele que aniquilou as ver-tentes revolucionárias do Partido Re-volucionário Institucional (PRI) (que ficou 70 anos no poder), e que recente-mente orientou as políticas neoliberais de Vicente Fox e de Calderón: “a fór-mula da direita combina as técnicas de Goebbels, de mentir descaradamente, com as técnicas aprendidas com seus amigos espanhóis do Partido Popular, de José María Aznar; a ‘mercadotecnia’ do Partido Republicano; e um obscu-rantismo muito mexicano que o senhor Calderón Hinojosa tira de letra, como quando distribui figurinhas da Virgem de Guadalupe, associadas à sua candi-datura, aos trabalhadores”.

Todas essas qualidades aparecem em um de seus últimos livros Apocalips-tick, uma reunião de ensaios que têm o cotidiano da Cidade do México, e suas transformações, como objeto. Já pelo título, somos introduzidos ao universo da catástrofe (urbana, ecológica, po-lítica, criminal, social, de saúde). Mas não se tratam de ensaios ou de crônicas convencionais (em Monsiváis é impos-

sível distinguir uma forma da outra). O escritor mimetiza seu objeto, a cidade caótica, e dela tira uma velocidade exu-berante e uma perturbadora multiplici-dade de sentidos: vinhetas ilustrativas, retratos testemunhais, paráfrases, pará-bolas (morais e imorais), nostalgia, aci-dez crítica. Uma narrativa estilhaçada, na qual a mentalidade urbana moderna se apresenta como um simulacro de corpos moldados pela Indústria Cultu-ral (desde os reality shows até as câmeras do metrô). Monsiváis passa pela músi-ca, cinema, vida noturna, televisão, in-ternet, pelas sexualidades (nos últimos anos ele estava cada vez mais interessa-do em entender e em denunciar a ho-mofobia e o conservadorismo católico do México). Como o filósofo alemão Walter Benjamin, ele é, sobretudo, um colecionador, que recolhe cuidadosa-mente o particular e o periférico para lhe dar um novo significado à luz de sua reorganização, seja em seus escri-tos, seja em seu museu pessoal.

O resultado dessas operações e dessa sensibilidade é a configuração de uma realidade grotesca, marcada, sobre-tudo, pela precariedade criminosa dos serviços públicos, da corrupção e da vio-lência, mas, ao mesmo tempo, vibrante, cheia de vida, engajada com seus pro-testos populares, com sua música cons-tante e variada, seus imigrantes pobres, seus ricos e famosos imbecis. Podia ser São Paulo, mas é a Cidade do México. Ele foi um autor para todos nós.

Carlos Monsiváis faleceu em 19 de junho de 2010, um dia depois da morte de José Saramago.

Francisco Alambert é professor de História Social da Arte e História Contemporânea da USP. É também crítico de arte. Colaborador de diversos periódicos, escreveu, entre outros, Bienais de São Paulo: da era do museu à era dos curadores, com Polyana Canhête.

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O rápido crescimento populacional, a inten-sa urbanização, a necessidade premente de aumentar a produção de alimento para a humanidade e a importante industria-lização, ocorrida nos países emergentes e em desenvolvimento, têm provocado

uma forte pressão sobre a demanda por recursos hídricos, fa-zendo com que o mundo esteja caminhando aceleradamente para uma severa “crise de escassez de água” e este será, certa-mente, um dos maiores desafios que a humanidade enfrentará neste século 21. Na realidade, o problema não é tanto de es-cassez, mas, principalmente, de distribuição heterogênea dos recursos hídricos no planeta, e da sua má gestão. Em 2009, dados apresentados no Fórum Mundial da Água, realizado em Istambul, mostraram que, atualmente, cerca de 1,2 bilhões de

SUSTENTABILIDADE

Adolpho José Melfi

ÁGuA VIRTuAL

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pessoas vivem em países com penúria de água e que até o ano de 2025, este nú-mero estará por volta de 3 bilhões. Dos 14 países situados no Oriente Médio, nove já enfrentam problemas de escassez de água, e destes, seis deverão dobrar o número de habitantes nos próximos 25 anos. Em contrapartida, a América Lati-na, com exceção de alguns poucos paí-ses, como o México, e algumas ilhas do Caribe, apresenta uma situação muito confortável, pois, com uma população de apenas 8% da mundial, possui 25% dos recursos em água doce do mundo.

Quando se observa o consumo de água nas sociedades contemporâne-as, vê-se que as atividades agropecuárias consomem a maior parte da água doce disponível, que atinge cerca de 70%, en-quanto as atividades industriais e urba-nas consomem 23% e 7%, respectiva-mente. No caso do Brasil, país rico em recursos hídricos, as atividades agrope-cuárias consomem ainda mais água, por meio da irrigação e da dessedentação de animais (Figura 1).

A Food Agriculture Organization (FAO) prevê que a produção de alimen-tos, face ao aumento populacional, deve-rá dobrar até o ano de 2050. Para aten-der a essa demanda, a agricultura deverá aumentar a oferta de alimentos, que so-mente poderá ser atendida pelo aumento das áreas cultivadas, das terras irrigadas e pela agregação de tecnologias avançadas.

A disponibilidade de terras agríco-las é reduzida. Dados da FAO mostram que apenas 22% dos solos mundiais são próprios para a agricultura, e destes, cerca de 10% já estão sendo utilizados, restando apenas 12% para permitir a ex-pansão da agricultura (Figura 2).

Portanto, o aumento da produ-ção de alimentos deverá ser obtido pela aplicação de tecnologias mais avança-das e aperfeiçoamentos genéticos que possibilitem o aumento da produtivi-dade das culturas, mas, principalmen-te, pelo aumento das áreas irrigadas. As terras irrigadas, que representam hoje apenas 18% da área cultivada no planeta, são responsáveis pela produ-ção de 44% dos alimentos. Desta for-ma, é de se prever que o consumo de água deverá aumentar ainda mais nas atividades agropecuárias.

Portanto, a gestão consequente dos recursos hídricos, tornou-se um ponto extremamente importante em todo o mundo, mesmo naquelas regi-ões onde a água existe em abundância. Até os anos 1970, a água era considera-da um recurso natural abundante e in-finito e com pouco valor econômico e social. O aumento da poluição dos cor-pos de água, a crescente urbanização e a maior demanda do setor agrícola fez com que a humanidade tomasse cons-ciência de que o uso irracional desse recurso irá provocar sua escassez, fato que está promovendo um aumento

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substancial de seu valor econômico e social. Desta forma, a gestão sustentá-vel dos recursos hídricos deixou de ser um tema apenas de pesquisas hidroló-gicas, para envolver igualmente estudos sociais, econômicos e geopolíticos. A valoração econômica da água tem gera-do tensões entre países vizinhos e pro-longadas discussões sobre sua comer-cialização no mercado internacional.

Se o comércio direto de água é ainda bastante incipiente no âmbito in-ternacional, o mesmo não ocorre com a água comercializada na forma absor-vida por diferentes produtos, em espe-cial pelos alimentos.

Um conceito importante para a quantificação desta água invisível é o da “Água Virtual”, introduzido por J. Anthony Allan, do Kings College de Londres, em 1993, que serve para quan-tificar toda a água usada para produzir um determinado bem de consumo. Na realidade, é uma medida indireta dos re-cursos hídricos consumidos para a pro-dução de um determinado bem.

Outro conceito, relacionado ao da água virtual é o da “Pegada Hídrica” (water footprint), proposto pela Unesco, em 2002, e que leva em conta, além da

água utilizada diretamente na cadeia de produção do bem de consumo, tam-bém a origem dessa água (pluvial, flu-vial ou subterrânea) e fatores ambien-tais como poluição dos corpos de água, evaporação, tipo de solo etc.

Valores de água virtual para alguns produtos (litros de água por kg

de alimentos produzidos)

Arroz 1.400 a 3.600

Carne de boi 13.500 a 20.700

Carne de porco 4.600 a 5.900

Carne de ave 2.800 a 4.500

Legumes 1.000

Soja 2.300 a 2.750

Milho 450 a 1.600

Cana-de-açúcar 318 a 455

Laranja 380

Uva 455

Para produzir 200 kg de carne bovina

(média de três anos para criar o boi) são necessários 1.300 kg de grãos, 7.200

kg de capim, 24 m3 de água para beber e 7 m3

para a limpeza. Desta forma, ao

comprarmos 1 kg de carne bovina, estamos

adquirindo, em média, 17.000

litros de água.

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Por meio da aplicação desses con-ceitos, podemos saber, por exemplo, que para produzir 200 kg de carne bovi-na (média de três anos para criar o boi) são necessários 1.300 kg de grãos, 7.200 kg de capim, 24 m3 de água para beber e 7 m3 para a limpeza. Desta forma, ao compramos 1 kg de carne bovina, esta-mos adquirindo, em média, 17.000 litros de água (Tabela 1).

Esses cálculos permitem quan-tificar os enormes volumes de água (bilhões de m3 por ano) que circulam pelo mundo em razão da exportação e importação de alimentos, tornando a água uma commodity, cada vez mais va-liosa. A média anual de água utilizada pela agricultura, nestes primeiros anos do século 21, foi de 6.400 bilhões de m3. Se cada país tivesse que produzir todos os produtos agrícolas para seu próprio consumo, a quantidade global de água passaria para 6.750 bilhões de m3. Portanto, houve uma economia de 350 bilhões de m3, ou seja, 5%.

Um exemplo interessante, bastan-te citado na literatura, mostra a impor-tância da aplicação do cálculo da água virtual. A China importa cerca de 18 milhões de toneladas de soja por ano. Através da soja, este país está impor-tando igualmente cerca de 45 milhões de m3 de água, quantidade esta que o país não teria disponível para cultivar tal quantidade de soja.

Por meio dos saldos líquidos de importação e exportação de alimentos temos condições de conhecer os países ou regiões que são importadores ou ex-portadores de água virtual. A América do Sul, América do Norte, Oceania e Sudeste Asiático são exportadores de água, enquanto que Sul da Ásia, Euro-pa Ocidental, Norte da África e Oriente Médio, importadores (Figuras 3).

Adolpho José Melfi é doutor em geociências e professor titular da Universidade de São Paulo.

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EXPEDIÇÃO

Jorge Ubirajara Proença

causa a primeira guerra entre europeus na américa

PEABIRu

Entre os inúmeros episódios que envolvem a história da descoberta da América, uma mis-teriosa estrada de três mil quilômetros, co-nhecida por “Caminho do Peabiru”, cons-truída pelos índios sul-americanos, ainda hoje é objeto de estudo e curiosidade. Muitas

lendas gravitam sobre essa saga. Uma delas afirma que os Gua-ranis abriram a passagem em busca de uma mitológica “Terra sem Mal”. Consagrada como símbolo da união continental re-nasce hoje, via turismo, em forma de integração e intercâmbio cultural entre os povos da América. O Peabiru, que por mi-lênios unia e integrava as nações indígenas, foi intensamen-te disputado pela cobiça do ouro e da prata, e dividido entre portugueses e espanhóis. Muito antes da chegada de Cristóvão Colombo e Pedro Álvares Cabral à América, o Peabiru ligava o

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Oceano Atlântico ao Pacífico, unindo Brasil, Peru, Paraguai, Bolívia e Peru, depois de serpentear entre florestas, rios, pântanos e cordilheiras.

Para se compreender a Améri-ca pré-colombiana, deve-se considerar os avanços nas pesquisas sobre os fa-tos que antecederam a história original dos descobrimentos e a efetiva posse da terra. Estudos recentes dão conta da incrível expedição que partiu da China e percorreu praticamente todos os ma-res navegáveis. A frota, nunca vista até então, tinha juncos gigantescos de cerca de 150 metros, algumas vezes maiores do que as embarcações europeias que atravessariam o Atlântico meio século depois. A China detinha conhecimentos de náutica e astronomia inigualáveis. Ao retornar, dois anos depois de sua parti-da, em 1421, o imperador Zhu Di tinha perdido o poder, e a China impôs a si mesma um período de isolamento. Seus conhecimentos permaneceram entesou-rados dentro de suas fronteiras.

Apesar do isolamento cultural, os chineses continuavam a negociar não só

no oriente, mas também no ocidente. Importante papel na comunicação com os chineses desempenhou a Ordem dos Templários, guardiães da rota das chama-das especiarias. Ela incluía trechos de mar no oriente e no Mediterrâneo. Depois seguia em caravanas, por terra, passan-do por Jerusalém. Com anuência papal, asseguravam também o acesso dos pe-regrinos ao Templo desta cidade contra ataques de assaltantes. A Ordem tornou-se poderosa a ponto de financiar reinos, decidir guerras e deter o monopólio do comércio em quase todo o Mediterrâneo.

A Ordem era mais poderosa que os então pequenos reinos da Europa. Sua sede na França era símbolo desse poder, e serviu de asilo ao Rei que teve oportunidade de conhecer as riquezas que ali eram administradas. Este poder e a dependência financeira aguçaram a cupidez do rei da França que, com o apoio do papa, confiscou os bens da Ordem e a extinguiu. Numa “sexta-feira 13”, decidiram prender todos os cavaleiros Templários e assumir os seus bens. Este dia ficaria até hoje associa-

Pedra do Peabiru, um dos marcos do caminho indígena, ancestral rota de ligação entre o Pacífico e o Atlântico.

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do à má sorte. Entretanto, nem todos os Templários foram capturados. Mui-tos conseguiram fugir para a Escócia, onde formariam um grupo importante da Maçonaria. Outros escaparam para outros países da Europa, notadamente os pequenos reinos de Portugal e Cas-tela, onde ainda possuíam propriedades.

É, então, acordado entre a Ordem e os reis um projeto de conquista ultra-marina utilizando os conhecimentos ma-rítimos e comerciais dos templários. Os reis intercedem junto ao papa e a Ordem dos Templários ressurge na Península Ibérica, renovada com o nome de Ordem dos Cavaleiros da Cruz de Cristo. Com o acordo, era permitido aos membros da nova Ordem que se casassem, tivessem propriedades e assegurassem o direito de herança aos dependentes, privilégios ne-gados aos Templários. Tudo isto, além do monopólio das conquistas, advindas das empreitadas das futuras navegações.

O Infante Dom Henrique, irmão do rei de Portugal, é nomeado gestor da nova Ordem. Um meticuloso projeto é desenvolvido, incluindo plantio de árvo-res nas propriedades dos cavaleiros para as futuras embarcações e assimilação dos estaleiros e da técnica exercida por ára-

bes. Eles ainda permaneceram na região após a retomada do território ibérico. Uma nova embarcação é então desenvol-vida, o que propicia a possibilidade de se navegar em ângulos mais próximos do vento com grande agilidade.

Hoje sabemos que a América foi intensamente visitada, não só pelos chi-neses, mas também por vários povos como os Vikings e os Fenícios, antes do descobrimento oficial. As histórias con-tadas de pai para filho (dos marinheiros que regressavam destas viagens) excita-vam a imaginação de plebeus e de cabe-ças coroadas. A lenda de São Tomé era uma delas. Segundo versões correntes, São Tomé teria surgido do mar numa grande ilha existente a oeste, tendo-a atravessado a pé e sumido miraculosa-mente no oceano, do outro lado. Tam-bém eram veiculadas lendas de riquezas ostentadas pelos nativos, abusando de ouro e prata no caminho que atravessa-va a tal terra. A existência das famosas minas de ouro e prata era cada vez mais confirmada pelos navegantes extraofi-ciais. Hoje fica fácil entender o papel da Ordem dos Cavaleiros da Cruz de Cris-to em todas as navegações ultramarinas que ostentavam a cruz dos Templários,

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agora renovada por uma cruz branca em seu interior. O símbolo virou sinônimo de descobrimentos ibéricos. Pela atuação desenvolta da Ordem em Portugal e na Espanha, logicamente ela estava por trás da costura diplomática do Tratado de Tordesilhas. Nele, dividiam o mundo en-tre os dois reinos, o que gerou o irônico comentário do Rei da França que, para aceitá-lo, gostaria de ver o testamento de Adão e Eva. Na realidade, os dois pe-quenos reinos queriam defender-se dos outros que transitavam livremente pela América. Eram aliados contra o mundo, mas na América iniciavam uma maratona para saber quem chegaria as tais minas de ouro e prata. Agora, ninguém mais du-vidava da existência delas, em um ponto qualquer mais ao centro do continente.

A expedição de Martim Afonso saiu com ordem expressa de explorar os rios, penetrando no interior, em busca do chamado Eldorado. Afonso mandou explorar o rio Maranõn ao norte, e foi descendo pela costa. Cada vez mais era confirmada a existência da grande via indígena que chegava às minas. Aportou em Cananeia, onde todas as informações convergiam para a existência da trilha, intensamente utilizada pelas nações indí-genas. Encontrou nesta localidade uma população estabelecida, de maioria espa-nhola. Fixou marcos de posse, pois, se-gundo cálculos, ela estava na porção por-tuguesa do Tratado de Tordesilhas. Entre os poucos portugueses locais, encontra o famoso bacharel degredado, Patrício, que lhe confirma a existência das minas.

Martim Afonso, entusiasmado com as novas versões, decide mandar seu irmão Pero Lobo na primeira Ban-deira Oficial de penetração. Prometem trazer centenas de escravos curvados ao peso do ouro, em dez meses.

Após a partida da Bandeira, Mar-tim Afonso fica sabendo da morte do irmão numa emboscada, por índios Ca-rijós, na divisa do hoje estado do Paraná.

Os índios Carijós eram aliados dos espanhóis mais ao sul. A predominância da população espanhola em Cananeia e a desenvoltura com que o bacharel con-vivia com ela levaram Afonso a descon-fiar que ele tivesse tido participação no evento. Decidiu mandar intimá-lo para vir a São Vicente e, na ocasião, prendê-lo. Desconfiado das intenções, o bacha-rel mudou-se para a casa de um amigo espanhol em Iguape. Ambos dizimaram a tropa encarregada da intimação. Ti-nham se armado com o arsenal de um navio francês que haviam aprisionado no porto. Entusiasmados com a vitó-ria, seguem com o navio francês até a recém-fundada Vila de São Vivente e, de surpresa, dizimam dois terços da guarnição de 150 homens deixada por Martim Afonso. O golpe foi tão forte que a pequena vila demoraria dez anos para voltar a ser o que era. A chamada “Guerra de Iguape” foi a primeira guer-ra nas Américas entre europeus. O de-senvolvimento e as rotas de penetração, por esta razão, foram transferidas para o planalto de Piratininga, apesar de mais distantes e difíceis. O Peabiru de Cana-neia continuou a ser perseguido a partir do planalto, pelos portugueses, e a par-tir de Santa Catarina, pelos espanhóis, criando duas alternativas de acesso ao milenar caminho indígena. Entretanto, a corrida do ouro acaba sendo ganha, no primeiro ciclo, pelos espanhóis que atin-gem as minas pelo norte, com Pizzaro.

A “Guerra de Iguape” foi tam-bém a primeira manifestação de euro-peus assimilados à região, contra orien-tações colonialistas vindas de fora.

Jorge Ubirajara Proença é historiador e coordenador do Núcleo Pró-Vela.

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Os discursos geopolíticos norte-america-nos dos últimos quarenta ou cinquenta anos tocam o tema das fronteiras e de áreas “não governadas”. Sem o Estado atuante na sua totalidade geográfica, os grupos armados ilegais, contrabandistas,

mafiosos, terroristas e os narco-traficantes aproveitam-se da ausência estatal para crescerem como poder paralelo e manter suas atividades ilegais, em detrimento da segurança e da defesa das nações. A ideia de área não governada é atraente e parece descrever o que acontece em alguns recantos das fronteiras sul-americanas, africanas, e do oriente médio. Mas esse discur-so anda de mãos dadas com outros dois: dos Estados falidos e de Estados Párias. Os três elencam a capacidade de presença do Estado para impor a lei e os acordos internacionais às suas

DEBATE

Laura González e Alberto Montoya Palacios

FROnTEIRASe áreas não governadas nas

relações sul-americanas

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sociedades como uma espécie de requisito para que um Estado goze de alguns direi-tos, no caso, o de sua soberania territorial.

O corolário é o de que as inter-venções estrangeiras, mesmo que mi-litares, em áreas não governadas, áreas que surgem devido à falência interna do Estado, ou mesmo com apoio de redes de corrupção ativa e aquiescência inter-na nos Estados Párias, não representam um crime de agressão e de violação ao direito de soberania territorial do Esta-do alvo; antes, trata-se de legítima defesa amparada no Capítulo VII e Artigo 51 da Carta das Nações Unidas.

Acontece que para os Estados do terceiro mundo, mais ainda àqueles que se libertaram do colonialismo nos últi-mos cinquenta anos, criar um Estado com monopólio do uso legítimo da violência não é fácil. Lembremos que o monopólio descrito por Weber era uma característica do Estado Moderno, ainda, um “Estado burocrático”. O processo do qual resultou vitorioso o Estado burocrático ocidental durou pelo menos 350 anos e não foi ra-cional, seu resultado não era intencional-mente previsto. Do Estado nacional ao Estado-nação a imposição do monopó-lio da violência no território reivindicado pelas autoridades estatais foi sangrenta na dissolução dos grupos armados e dos an-tigos destacamentos.

Decorridos 350 anos, os Estados do terceiro mundo devem instaurar o monopólio do uso legítimo da violên-cia em fronteiras que não foram por eles criadas, de maneira rápida, sem os recursos do Ocidente Europeu e fazen-do aquilo que os ocidentais não fizeram, preservando a paz, promovendo a de-mocracia e respeitando os Direitos Hu-manos e o Direito Humanitário.

No caso sul-americano, diversas áreas foram catalogadas como áreas não governadas e uma delas é a com-partilhada por Equador e Colômbia. Ela abrange 586 quilômetros de extensão,

localizados em sua maioria na Região Amazônica, impondo dificuldades de aceso que limitam a presença estatal.

A parca presença estatal e a exis-tência de grupos ilegais na Colômbia, muitos vinculados ao narcotráfico, têm feito com que essa zona seja classifica-da como uma área não governada. Esta classificação se fortalece no âmbito da execução do Plano Colômbia como uma justificativa para a injeção de recursos por parte dos Estados Unidos. Desde o ano 2000, até o ano 2010, o país do norte investiu aproximadamente 548 milhões de dólares: dos quais os 54,5% corres-ponderam a programas sociais e de de-senvolvimento econômico, enquanto os 45,5% restantes foram investidos em ma-téria policial e militar, conforme dados levantados por instituições locais.

O impacto da militarização no as-pecto local traz múltiplas consequências negativas para o Equador, entre as quais podemos mencionar: a invasão constante das propriedades dos habitantes, as ame-aças à população civil para obter infor-mação da presença dos grupos armados colombianos e a criminalização (impera a ideia de que a população equatoriana está vinculada com os grupos armados colom-bianos, principalmente com as Farc).

Estes problemas, em grande parte decorrentes do Plano Colômbia, provo-cam a saída de centenas de equatorianos da sua fronteira norte, num processo paulatino de expulsão de equatorianos de setores específicos da fronteira, como são as ribeiras do rio San Miguel, na pro-víncia de Sucumbíos, o norte da provín-cia de Esmeraldas, e o setor noroeste da província de Carchi.

Ao analisar essas zonas de onde os equatorianos se deslocam, observamos que são espaços nos quais estão con-centradas a maioria das ações militares auspiciadas pelo Plano Colômbia, e a po-pulação prejudicada, geralmente, é cam-ponesa, indígena ou afrodescendente.

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É importante mencionar que, além de serem alvos militares, essas zonas de fronteira não governadas são ricas em recursos naturais, como ouro, petróleo e madeira. Atualmente, empre-sas exploram alguns desses recursos de forma ilegal, como aconteceu na Cos-ta Norte-Equatoriana onde, a partir do ano 2000, instaurou-se um complexo de produção de palma. Algumas das empresas que ali trabalham têm capital colombiano e, nesse país, têm sido acu-sadas de financiar o conflito para se be-neficiar da militarização da região.

A partir desses comentários sobre a questão das fronteiras entre o Equa-dor e a Colômbia, acreditamos que o

discurso de áreas não governadas requer cautela, pois, não raro, significa o uso de conceitos vagos para legitimar as inter-venções militares seletivas das grandes potências, em regiões onde a presença do Estado se faria sentir melhor de ou-tras formas, do que apenas as militares.

Laura González é antropóloga social equatoriana (Pontifícia Universidade Católica de Quito) e mestranda no Programa San Tiago Dantas (Unesp-Unicamp-PUC-SP) Alberto MontoyaPalacios é Mestre em RelaçõesInternacionais pelo Programa San Tiago Dantas/Pró-defesa (Unesp-Unicamp-PUC-SP). Professor da ESPM-SP

Patrulhamento sobre a selva equatoriana.

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POLÍTICA

Carlos A. Romero

UMA AVALIAÇÃO

OBAmA E nÓS

Logo que Barack Obama ganhou as eleições presidenciais estadunidenses em 2008, a América Latina e Caribe foram contagiados por um “ar fresco”, conjecturando, com en-tusiasmo, que era possível alcançar uma re-lação hemisférica mais harmônica entre o

“Colosso do Norte” e as nossas nações. Esta ilusão provinha de duas correntes de pensamento hemisférico que nos últimos anos dominaram a construção das imagens e das narrativas sobre esta questão. Uma delas é a tese da “negligência”, a qual parte da base de que os Estados Unidos se recordam da região quando há uma crise política conjuntural, ou quando se avivam umas eleições, e o começo do período presidencial nos Esta-dos Unidos. A esta perspectiva, soma-se a conhecida tese so-bre os democratas, que levam uma agenda mais amigável, que

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se concentram fundamentalmente nos temas “bons”, a defesa da democracia e dos direitos humanos.

O exercício do poder pelo pre-sidente Obama, e pelos Democratas, recorda-nos que os Estados Unidos levaram estes últimos, a uma posição intermediária frente a estas discussões. Nem foram suficientemente atentos com a agenda hemisférica, nem tam-

pouco se esqueceram dos temas “du-ros” da agenda. Melhor, o que está à vista é uma política contraditória, que, em longo prazo, não se definiu por al-gum estilo em particular.

Coloquialmente, se pode dizer que Obama ficou “discutindo minú-cias”. E que se trata, nada menos, do governo de uma superpotência, que en-tende que deve remodelar sua estrutura de alianças e reconhecer que o mundo caminha para a multipolaridade. Por sua vez, é um governo que teve que confrontar uma severa crise econômica

e financeira, e, como se fosse pouco, uma mutação para uma sociedade cada dia mais heterogênea.

Desta forma, os vínculos dos Es-tados Unidos com a América Latina e Caribe se transformaram em uma rede de interesses internacionais, regionais e locais, que se observam em quatro gru-pos de problemas: há, em primeiro lugar, a vinculação entre a segurança, tanto no

plano mundial tradicional, como no pla-no da luta contra o terrorismo e o com-bate ao narcotráfico. Em segundo lugar, está a questão migratória, tanto em sua dimensão legal, como em sua dimensão humana; em terceiro, encontra-se a ques-tão da promoção da democracia; e em quarto, uma referência sobre os aspectos comerciais, econômicos, de negócios e de investimento. Em cada um destes as-suntos, são identificados tanto as realiza-ções como os erros desta Administração.

Quanto ao primeiro grupo, desta-cam-se duas problemáticas fundamentais:

Narcotráfico, terrorismo, migração, democracia e comércio são os temas que tocam o governo de Obama.

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por um lado, referimo-nos ao fato de que a segurança mundial tem sido abordada pelo governo do presidente Obama com o conceito de smart-power, em que se mes-clam as soluções políticas e as militares.

A experiência da guerra no Iraque e no Afeganistão - e também na Líbia - demonstra que nos tempos atuais não é suficiente o poder militar, quando não se ganha a população local. E é precisamente

esse lado do povo o que levou Washing-ton a propor, pouco a pouco, a retirada militar de guerras bastante controvertidas.

A outra problemática é que cou-be ao governo de Obama realizar sua tarefa em um mundo mais convulsio-nado, mais confuso e mais complexo. As ameaças do terrorismo continuam atualizadas, apesar da importante vitó-ria simbólica, alcançada após a morte de Osama Bin Landen.

Mas, a estas ameaças, devem-se agregar aquelas, referentes ao cresci-mento do narcotráfico, da violência

originada por causas sociais e religio-sas, da explosiva proliferação nuclear e, sobretudo, ao feito do vazio, originado por uma ordem mundial instável. Os Estados Unidos já não podem manter-se como o país supremo de um mundo que já não é bipolar, nem muito menos unipolar, como se pretendeu definir a realidade internacional, no ocaso e des-pedida do sistema soviético.

Neste plano, a América Latina e o Caribe, não dão muitas dores de cabeça a Washington. Não há guerras externas nem internas, nem muita instabilidade política e a maioria dos governos esten-deu seus vínculos com novas potências mundiais, sem chegar a molestar em de-masia a Casa Branca. Preocupam mais os temas de violência social, as gangues, as máfias, os narcotraficantes…

Uma segunda plataforma é a mi-gratória. Esta é uma questão muito in-teressante, já que não está tão distante dos cidadãos estadunidenses, que são

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os que apoiam e votam em um parti-do ou outro. Aqui, nesta questão, Wa-shington teve muitos problemas. No princípio da administração, Obama estava disposto ao perdão e a legalizar todos aqueles estrangeiros que assim o desejassem. Ao cabo destes anos, foi realizado parcialmente este processo, mas, paradoxalmente, governos e mu-nicípios estadunidenses interpretaram de maneira contrária esta política, e mais, puseram novos entraves para o trabalhador e as famílias de imigran-tes, tanto para pertencer ao território estadunidense, como para legalizar sua situação laboral.

Um terceiro espaço de preocu-pação são as dificuldades que há para a promoção da democracia. Neste pon-to, o presidente Obama se moveu com muita prudência. Ele aceitou que a democracia liberal-representativa não é a única maneira de entender o Esta-do de direito, mas não deixou “passar uma”, quando se trata de denunciar a violação dos direitos humanos, ou a aproximação de alguns governos, de países considerados por Washington como “perigosos”.

Um quarto ponto se refere às questões econômicas, comerciais e de negócios. Apesar da globalização e do mundo multipolar, os Estados Unidos continuam sendo o principal sócio dos países da região, embora se observe, isso sim, que a China vai tomando posi-ções e desloca Washington como princi-pal sócio comercial, como já é o caso do Brasil. Mas em matéria de comércio de bens e serviços dinâmicos, os Estados Unidos conservam sua posição, igual ao ocorrente em matéria de energia.

O mercado estadunidense, tanto de bens como de serviços, e em outras modalidades comerciais e sociais, as-sim como as mediáticas e tecnológicas, continua marcando as conexões entre ambas as economias. Se isto é bem cer-

to, também é certo o fato de que alguns governos da região têm expressado uma forte crítica ao modelo da econo-mia liberal e vem implementando um modelo socialista fortemente estadista. O governo do presidente Obama não enfrentou verticalmente este desafio e preferiu negociar tratados bilaterais de comércio com alguns países, dado o fracasso da proposta da Alca, e con-seguiu flexibilizar suas posições com governos que experimentam modelos mistos de propriedade.

Há, certamente, muitas questões conexas, que por razões de espaço não podemos comentar: se há um esforço para reduzir as medidas econômicas e migratórias estadunidenses contra Cuba, mas não se levantou o embargo econômico; se reduzem o espaço de ação da Venezuela nos EUA, mas con-tinuam levando uma relação petroleira proveitosa para ambos os países; se o comércio se aprofunda com a América Central e se mantém em alta com a Co-lômbia e o México; se apoia a abertura do Pacífico para vários países da região, mas se adverte sobre o legado “primá-rio” do comércio com a China; se pro-metem medidas ambientalistas, mas é dado livre curso à exploração de petró-leo no Golfo do México.

Deste modo, o resultado da ges-tão do presidente Obama em relação à América Latina não é tão fácil de ser de-terminado, já que sua conduta tem sido muito ambígua. Avançou-se em muitos temas, ainda que não tenha sido à velo-cidade necessária.

Carlos Romero é politólogo venezuelano e doutor em ciências políticas Professor universitário da Universidade Central da Venezuela

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RESENHA

Reynaldo Damazio

DILEmAS DA GLOBALIZAÇÃO

“A crise econômica que está rachando a União Europeia e que bate às portas dos Esta-dos Unidos, numa dimensão sem precedentes, talvez co-loque em xeque esse modelo neoliberal e macroestrutural.”Parag Khanna

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Inspirado na obra monumental de Arnold Toynbee, em 12 volumes, Um estudo da história, e em suas anota-ções de viagem ao redor do planeta reunidas em Do Oriente ao Ocidente, o indiano Parag Khanna procura ra-diografar o estado atual das relações internacionais, de olho nas grandes mudanças estruturais do sistema, suas crises agudas, realinhamentos de poder (político e econômico) e a emergência de novas potências no livro O segundo mundo (Editora Intrínseca, 2008).

Na perspectiva otimista de Khan-na, está em curso uma reformulação geopolítica significativa, em que os anti-gos blocos hegemônicos cedem lugar a protagonistas que ocupavam um espaço intermediário entre os países desenvol-vidos do primeiro mundo e os subde-senvolvidos do terceiro, também conhe-cidos como emergentes.

“As regiões e os países examinados neste livro – identificados coletivamente como ‘Segundo Mundo’ – constituem hoje o palco em que está sendo determi-nado o futuro da ordem global”, explica o autor. Muitos desses países começam a transformar o panorama internacional, a partir de grandes abalos nos impérios contemporâneos formados por Estados Unidos, China e União Europeia. O pon-to de equilíbrio das economias interna-cionais, portanto, estaria agora deslocado para outras demandas, ou ocupado por personagens inesperados, como o Brasil, na América Latina, ou coreanos, na Ásia.

Segundo Khanna, impérios são mais importantes que civilizações, pois eles determinam o modo de organiza-ção dos países periféricos e de sua di-nâmica interna, conforme os interesses globais, e acima das diferenças locais conflituosas. A ordem, nesse tipo de análise, vem de cima, do mais forte so-bre os mais fracos. A preocupação do autor é identificar no cenário globali-zado as possibilidades estratégicas de

domínio dos blocos que se reformulam sobre os países emergentes.

“Esses impérios comerciais abri-gam corporações globais que controlam cadeias mundiais de abastecimento, não raro sediadas em domínios dos outros impérios, o que significa que a manu-tenção de sua prosperidade depende da força – e não da fraqueza – dos outros”, argumenta Khanna.

O ponto de vista de Parag Khan-na é o do consultor de política externa de Barack Obama, em 2007, quando exerceu essa função, e está comprome-tido com a renovação do controle he-gemônico global, numa situação de in-certeza extrema, em que a diplomacia é encarada como “uma arte”.

A crise econômica que está ra-chando a União Europeia e que bate às portas dos Estados Unidos numa dimensão sem precedentes, talvez co-loque em xeque esse modelo neoliberal e macroestrutural.

Reynaldo Damazio, sociólogo e jornalista, autor de Horas perplexas (Editora 34, 2008), entre outros

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AGENDAAGENDAAGENDAAGENDAAGENDAAGENDAAGENDAAGENDAAGENDAAGENDAAGENDAAGENDAAGENDAAGENDAAGENDAAGENDAAGENDA

Dois eventos musicais se destacaram na programação recente do Memorial: o tradicional Projeto Adoniran, que contou com a participação do Quinte-to Violado; e a Série Conexão Latina, que juntou Diva Barros, de Cabo Ver-de, e Chico César, do Brasil. O Quinteto Violado apresentou faixas de seu novo disco, que revisita as can-ções de Adoniran Barbosa e de Jackson do Pandeiro, fazendo uma ponte entre a vida cosmopolita de São Paulo e o sertão nordestino. O encontro de Diva Barros e Chico César revelou as afini-dades entre a cantora africana e esse paraibano que renovou a MPB.

Deficientes físicos e visuais já podem circular por todas as dependências do Memorial. A fundação inaugurou um completo projeto de acessibilidade que inclui desde piso táctil a rampas e elevador. Em qualquer uma das entra-das, um mapa com inscrições em brai-le orienta o público quanto ao circuito que dá acesso a todos os prédios. As rampas e a plataforma inclinada do portão 1 foram idealizadas para aten-der aos cadeirantes, bem como o ele-vador do prédio da administração, e o transporte sobre escadas no Anexo dos Congressistas. Todas as obras, cuja coordenação coube ao engenheiro do

Conexão Latina une Chico César e Diva Barros

Memorial para todos

Memorial, Joaquim Boaventura, foram aprovadas pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado, para não ferir o projeto de Niemeyer, já que o conjunto é tombado.

A partir de agora, todos os sete prédios do Memorial estão interligados pela faixa especial, amarela, para conduzir os portadores de deficiência visual.

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AGENDAAGENDAAGENDAAGENDAAGENDAAGENDAAGENDAAGENDAAGENDAAGENDAAGENDAAGENDAAGENDA AGENDAAGENDAAGENDAAGENDA

De novo, um sucesso memorável. A 19ª edição do Anima Mundi, que vem sendo realizado no Memorial desde 2005, atraiu milhares de jovens aos espaços da insti-tuição, não apenas para assistir aos filmes de animação, mas também para partici-par das oficinas, workshops, performances, encontros e debates. Oitenta países ins-creveram mais de 1.300 curtas e longas, e as atividades se estenderam por cinco movimentados dias em fins de julho. Jun-to com os tradicionais exibidores, como França e Reino Unido, compareceram países como Lituânia e Estônia.

O Centro Brasileiro de Estudos da Amé-rica Latina (Cbal), departamento do Memorial, realiza nos meses de agosto e setembro as duas primeiras etapas do Primeiro Encontro com Pesquisadores da Literatura Latino-Americana Contem-porânea. A rodada de estudos, que conta com especialistas convidados, como Joel Rosa de Almeida, que apresenta o tema “A Experimentação do Grotesco em Clarice Lispector”, prossegue até o mês novembro, com inscrições abertas.

Muito concorrido, o Colóquio Interna-cional E-books e o Futuro das Bibliote-cas, realizado no Auditório Simón Bolí-var, em setembro. Uma parceria com o

Goethe Institut São Paulo, a Maison de France e o Instituto Cervantes, e reuniu vários especialistas para debater o tema, considerado bastante atual.

Os e-books e as bibliotecas

A experimentação do grotesco em Clarice Lispector

Anima Mundi reúne 80 países

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Em busca da paz

CURTAS

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1A Fundação Ideias para a Paz (FIP), centro cria-do por empresários colombianos com o intuito de contribuir para a superação do conflito arma-do no país, está ampliando sua agenda e forta-lecendo sua capacidade de ação. Uma equipe de acadêmicos e profissionais trabalha em quatro áreas temáticas: negociações de paz, constru-ção de paz pós-conflito, e estudos de segurança e defesa. Com a missão de propor ideias para transformar o cenário colombiano, a Fundação preserva uma postura independente e se susten-ta com aportes de empresas locais e estrangei-ras, além de doações ocasionais de governos e agências de cooperação.

O jornal oficial cubano Granma informou que o país registrou, em 2010, a taxa de mortalida-de mais baixa de sua história, fechando o ano na melhor posição da América: 4,5 por 1.000. De acordo com a notícia, a taxa situa o país ao lado do Canadá e em situação melhor, inclu-

Em saúde, Cuba é campeã

Imigrantes irregulares não estão sujeitos a pu-nições severas apenas em países ricos. Caso exemplar registrou-se no Panamá. O equatoria-no Jesús Vélez Loor foi detido, sentenciado a dois anos de prisão sem acesso a um defensor ou ao consulado; passou por duas das piores prisões do país, onde sofreu torturas e viveu em condições sub-humanas. Depois de dez me-ses de sofrimento, ele acabou por protagonizar uma sentença histórica, que abre precedentes na proteção dos direitos dos imigrantes latino-americanos: a Corte Interamericana de Direitos Humanos estabeleceu o pagamento de indeni-zação, além da publicação da sentença no Diário Oficial do país. A Corte afirma que a pena de

Sentença histórica

sive, que a dos Estados Unidos. Sabe-se que Cuba, tradicionalmente, despende um enorme esforço para cuidar da saúde e da educação, áreas que recebem 60% do orçamento nacio-nal, prestando serviços gratuitos desde 1959, ano da Revolução.

A cidade de Medelin na Colômbia é

a pioneira no transporte aéreo

nas comunidades carentes. O teleférico do

bairro San Javier transporta centenas de pessoas por dia e faz parte do projeto

de transformação do cenário social

colombiano.

prisão para castigar migrações irregulares é in-compatível com a Convenção Americana sobre direitos humanos.

3

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Os maiores escritores

latino-americanos

estão nos livros e na Revista do

Memorial da América

Latina

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POESIA

sou um relestraficante defotogramas

antes fazendo fitado que viver semViveca Lindfors

movies nãohá mais timinglivre-se deles

do cowboy que fuirestam furtivas

infância E infância

a bala na luaMéliès de olhoa dor irisada

queimei o filmequeimei o poemaqueimei se amei

mOVIE-JunKY

Sylvio Back tem editados vinte livros - entre poesias, ensaios e os argumentos/roteiros de vários de seus filmes. Seu último filme Lost Zweig foi lançado timidamente nos cinemas brasileiros, mas teve ampla participação em festivais internacionais, levando vários prêmios. O seu filme mais conhecido é Aleluia Gretchen de 1976.

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