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BRUNO FRANCISCO DINIZ MARINHO AS RELAÇÕES ENTRE AS NARRATIVAS MÍTICAS E HISTÓRICAS NAS OBRAS DE PAUL VEYNE E MIRCEA ELIADE Mariana Instituto de Ciências Humanas e Sociais/ UFOP 2010

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Comumente, os conceitos de mito e história são classificados como opostos. Mito é mentira, fábula, invenção de mentes ingênuas. A história é considerada um relato verdadeiro, já que ela deve, segundo Ranke, conhecer “o que realmente aconteceu”. Essa monografia problematiza essa questão a partir de duas obras: “Acreditavam os gregos em seus mitos?”, de Paul Veyne e “O mito do eterno retorno” de Mircea Eliade. Investigamos aqui como esses autores entendem a distinção dos conceitos de história e de mito nas sociedades que estudam. Commonly the concepts of myth and history are classified as opposites. Myth is lie, fable, invention of ingenuous minds. The history is considerate a true report, as it must, according to Ranke, knowing “what really happened”. This monograph discusses this issue from two works: “Did the Greeks Believe in Their Myths? An Essay on Constitutive Imagination” by Paul Veyne and “Cosmos and History: The Myth of the Eternal Return” by Mircea Eliade. We investigate how these authors understand the distinction between the concepts of history and myth in the societies they study.

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Page 1: MONOGRAFIA - Bruno Francisco Diniz Marinho. As relações entre as narrativas míticas e históricas nas obras de Paul Veyne e Mircea Eliade

BRUNO FRANCISCO DINIZ MARINHO

AS RELAÇÕES ENTRE AS NARRATIVAS MÍTICAS E HISTÓRICAS NAS OBRAS DE PAUL VEYNE E MIRCEA ELIADE

Mariana Instituto de Ciências Humanas e Sociais/ UFOP

2010

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BRUNO FRANCISCO DINIZ MARINHO

AS RELAÇÕES ENTRE AS NARRATIVAS MÍTICAS E HISTÓRICAS NAS OBRAS DE PAUL VEYNE E MIRCEA ELIADE

Monografia apresentada ao Curso de História do Instituto de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal de Ouro Preto, como requisito parcial à obtenção do grau de Bacharel em História. Orientador: Prof. Crisoston Terto Villas Boas.

Mariana

Instituto de Ciências Humanas e Sociais/ UFOP 2010

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Dedico a minha mãe.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente ao meu orientador Crisoston Terto Villas Boas que sempre foi solicito e deu todas as diretrizes necessárias para que este trabalho se realizasse. Agradeço ao professor Valdei Lopes de Araujo que se dispôs a fazer uma leitura crítica desta monografia.

Agradeço aos amigos, Adner Sena, Raoni Soares e Braulio Felisberto, que me ajudaram revisando o trabalho. Agradeço à Quemele Paes de Almeida que fez a revisão final deste texto.

Agradeço aos amigos, que fiz na faculdade e fora dela, que sempre me deram força para que eu alcançasse meus objetivos. Agradeço ao meu pai, cuja curiosidade me incitou a aventurar pelo mundo do conhecimento. Agradeço minha mãe, suas conversas e histórias foram essenciais para minha formação, não só acadêmica, mas também, como ser humano. Agradeço às minhas irmãs, Caetana, Marina e Simone, que sempre me apoiaram.

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RESUMO

Comumente, os conceitos de mito e história são classificados como opostos. Mito é

mentira, fábula, invenção de mentes ingênuas. A história é considerada um relato

verdadeiro, já que ela deve, segundo Ranke, conhecer “o que realmente aconteceu”.

Essa monografia problematiza essa questão a partir de duas obras: “Acreditavam os

gregos em seus mitos?”, de Paul Veyne e “O mito do eterno retorno” de Mircea Eliade.

Investigamos aqui como esses autores entendem a distinção dos conceitos de história e

de mito nas sociedades que estudam.

ABSTRACT

Commonly the concepts of myth and history are classified as opposites. Myth is lie,

fable, invention of ingenuous minds. The history is considerate a true report, as it must,

according to Ranke, knowing “what really happened”. This monograph discusses this

issue from two works: “Did the Greeks Believe in Their Myths? An Essay on

Constitutive Imagination” by Paul Veyne and “Cosmos and History: The Myth of the

Eternal Return” by Mircea Eliade. We investigate how these authors understand the

distinction between the concepts of history and myth in the societies they study.

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SUMÁRIO

1. Introdução 6 2. Capítulo I: Mito e História: uma introdução ao problema. 8 3. Capítulo II: História e Mito no mundo grego a partir da obra de Paul Veyne. 12 3.1. Verdade histórica entre os antigos: tradição e vulgata. 12 3.2. História Moderna: quando o historiador começa a citar suas referências. 14 3.3. Mitos de Deuses e mitos de heróis: a cultura popular e letrada frente à mitologia 15 3.4. Acreditavam os gregos em seus mitos? 18 4. Capítulo III: Concepções em torno do mito e sua relação com a história em O mito do eterno retorno. 21 4.1. Narrativas míticas e históricas na memória coletiva. 24 4.2. O Homem moderno e a liberdade através da história. 27 5. Conclusão 30

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Introdução

Esse estudo monográfico tem por objetivo pesquisar como se pode entender a distinção

história/mito, tendo em mente sua articulação nas narrativas das diferentes sociedades. Muitas

vezes esses termos são entendidos a partir da oposição verdade/mentira. Queremos mostrar que o

mito também pode ser entendido como verdade. Mostraremos aqui como dois autores: Paul

Veyne e Mircea Eliade entendem essa distinção nas sociedades que estudam. O primeiro estuda a

sociedade grega. O segundo pesquisa as sociedades arcaicas.

O primeiro capítulo é, como diz o título, uma introdução à problemática que vai ser

explorada nos capítulos seguintes. Primeiro traremos a concepção usual dos termos, isto é, como

mito e história são entendidos pela linguagem comum. Em seguida, colocaremos como alguns

pensadores do século XX estudam os mitos. Tais pensadores demonstraram que o mito pode ser

entendido como verdade e que, longe de constituírem uma oposição radical, a narrativa histórica

e a narrativa mítica possuem pontos em comum.

O segundo capítulo apresentará uma investigação da obra de Paul Veyne “Acreditavam os

gregos em seus mitos.” Nesta investigação buscaremos entender como é feita a distinção entre a

narrativa histórica e a narrativa mítica no mundo grego. Veyne mostra que os historiadores

antigos viam nos mitos um acontecimento verdadeiro que, com o passar do tempo, ganhou

versões fantasiosas. Restava, então, aos historiadores gregos retirar dos mitos seu núcleo

verdadeiro. Portanto, as histórias contadas pelos mitos não eram totalmente falsas (ou

mentirosas). Eram fontes que necessitavam de crítica para que os enredos ganhassem suas

versões históricas, reais.

O terceiro capítulo segue com um estudo da obra de Mircea Eliade “O mito do eterno

retorno.” Percebe-se nessa obra que o autor tenta mostrar a visão que a sociedade arcaica possui

sobre seus mitos. Nessas sociedades as narrativas míticas só têm validade porque são repetidas

nos cerimoniais. Além disso, as histórias narradas pelos mitos baseiam-se em arquétipos que

podem ser encontrados em diversos relatos. Diferem nesse ponto das narrativas históricas, que

são válidas justamente porque os acontecimentos aí narrados são vistos como únicos e

irreversíveis.

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Na conclusão, retomamos a discussão dos capítulos anteriores. Traçamos nesses capítulos

seus elementos principais. Colocamos, também que essas reflexões, exploradas na monografia,

podem ajudar a pensar como os historiadores usam esses conceitos em sua escrita.

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Capítulo I: Mito e História: Uma introdução ao problema

Mito e História são dois conceitos que geralmente são classificados como opostos.

O mito, na linguagem comum, é entendido como uma história falsa, fantasiosa. No livro “Myth:

A Very Short Introduction”, publicada pela Oxford, o autor Robert Segal nota essa concepção:

In today’s parlance, myth is false. Myth is ‘mere’ myth. For example, in 1997 historian William Rubinstein published The Myth of Rescue: Why the Democracies Could Not

Have Saved More Jews from the Nazis. The title says it all. The book challenges the common conviction that many Jewish victims of the Nazis could have been saved if only the Allies had committed themselves to rescuing them. Rubinstein is challenging the assumption that the Allies were indifferent to the fate of European Jews and were indifferent because they were anti-Semitic. For him, the term ‘myth’ captures the sway of the conviction about the failure to rescue more fully than would tamer phrases like ‘erroneous belief’ and ‘popular misconception’. A ‘myth’ is a conviction false yet tenacious(SEAGAL: 2004: 6).1

O mito contrapõe-se, nessa concepção, à história que é entendida aí como um discurso

verdadeiro, que trata de acontecimentos reais, uma vez que a função do historiador é, como

afirma Ranke, “mostrar o que realmente aconteceu” (VEYNE, 1985: 124/125). A distinção entre

a história e o mito pode ser encontrada nos pesquisadores gregos como Pausânias, que dizia:

(...) contam-se muitas vezes coisas nada verdadeiras entre a multidão, que não compreende nada da história e que acredita digno de fé o que ela escutou desde a infância nos coros e nas tragédias. Narram-se tais coisas a propósito de Teseu, por exemplo; mas, na realidade, Teseu foi um rei que subiu ao trono com a morte de Menesteu, e seus descendentes conservaram o poder até a quarta geração (VEYNE, 1985: 25).

Essa distinção não é idêntica à nossa. O mito, para os gregos, era considerado uma

história falseada. Mas havia nessa narrativa um fundo de verdade que a crítica histórica deveria

recuperar. Os mitos teriam parte de seu enredo “falsificado” pela ingenuidade das pessoas. Os

historiadores efetuavam seu método crítico, utilizando aquilo que Paul Veyne chama de “doutrina

das coisas atuais”. Esse método consistia em julgar o que existia ou não no passado a partir do

1 Nos dizeres de hoje em dia, o Mito é falso. O Mito é “o mero” Mito. Por exemplo, em 1997, o historiador William Rubinstein publicou “O mito do Resgate: por que as democracias não salvaram mais judeus dos nazistas”. O título diz tudo. O livro desavia a convicção comum de que muitos Judeus vítimas do Nazismo poderiam ser salvas se apenas os Aliados se comprometessem a resgatá-las. Rubinstein está desafiando a concepção de que os Aliados eram indiferentes ao destino dos Judeus Europeus e eram indiferentes porque eram Anti-Semitas. Para ele, o termo ‘Mito’, captura o balanço da convicção sobre a falha em resgatar mais completamente do que poderiam frases moderadoras como ‘crenças errôneas’ e ‘equívocos populares’. Um ‘Mito’ é uma convicção falsa e persistente (Tradução nossa).

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que existe na atualidade. Ora, pensavam os gregos, se os minotauros não existem nos dias de

hoje, por que existiriam no passado?

Paul Veyne comenta um trecho de Pausânias e afirma que o pesquisador separou na

história de Teseu, o joio do trigo, distinguindo nela o que havia de autêntico do que tinha de

fantasioso. Separou nos relatos sobre o rei o que pertenceria à história e seria digno de crença de

acordo com o pensamento histórico, daquilo que era lenda e que não poderia ter acontecido. Essa

forma de proceder era comum entre outros pesquisadores antigos, procedimento que “consiste em

ver no mito uma tradição oral, uma fonte histórica, que é necessário criticar (...)” (VEYNE, 1985:

25). Para eles os relatos míticos remetem a acontecimentos de períodos longínquos. Só que no

decorrer do tempo os relatos transmitidos geração a geração teriam adquirido versões fantasiosas.

A missão do historiador antigo seria, então, descobrir o núcleo “verdadeiro” desses relatos. Nota-

se que os primeiros historiadores já criticavam o mito e viam nele uma versão “fantasiosa”

daquilo que aconteceu. Ao assumir essa postura, os historiadores delimitaram o campo que

pertence à história e que deve ser julgado como verdadeiro de acordo com o pensamento

histórico.

Como mostra Paul Veyne, para os gregos, a distinção entre as concepções de história e de

mito implicavam um grande número de questões: Acreditavam eles em seus mitos? Acreditavam,

mas não como “acreditamos na realidade que nos circunda”, e sim como as crianças acreditam

em Papai Noel embora saibam que são seus pais que deixam os presentes para elas durante a

noite, ou até mesmo como se acredita em fantasmas. Veremos com Veyne que não é contraditório

acreditar em dois programas de verdade. Portanto, é possível conciliar a verdade contida nos

mitos com a verdade colocada pela história.

É necessário lembrar que o estudo dos mitos engloba uma infinidade de questões e que

existem diversas interpretações para um mito específico como para a mitologia em geral. Mircea

Eliade lembra que “seria difícil uma definição de mito que fosse aceita por todos os eruditos e, ao

mesmo tempo, acessível aos não-especialistas” (ELIADE, 1972: 11). E Lévi-Strauss vai criticar a

postura de Sigmund Freud ao tentar dar uma interpretação definitiva aos mitos, na qual ele

acreditava ser a visão “original”:

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Nunca a psicanálise pôde demonstrar que suas interpretações dos mitos recuperam formas originais — mesmo porque a forma original (supondo-se que a noção tenha algum sentido) é e sempre será inatingível, já que todo mito, por mais que se retroceda, só é conhecido porque foi ouvido e repetido... (LÉVI-STRAUSS, 1985: 234).

Ao invés disso, lembra o etnólogo, o que Freud fez foi dar aos mitos uma versão atual.

Essa interpretação original é para Lévi-Strauss, inalcançável. O mito possui diversas

interpretações. Cada uma delas é, à sua maneira, verdadeira.

Veremos aqui que a separação radical entre mito e história é apenas aparente. A partir do

século XX alguns autores vão trazer um novo olhar sobre o mito, como afirma Mircea Eliade:

Há mais de meio século, os eruditos ocidentais passaram a estudar o mito por uma perspectiva que contrasta sensivelmente com a do século XIX, por exemplo. Ao invés de tratar, como seus predecessores, o mito na acepção usual do termo, i.e, como “fábula”, “invenção”, “ficção”, eles o aceitaram tal qual era compreendido pelas sociedades arcaicas, onde o mito designa, ao contrário, uma história verdadeira e, ademais, extremamente preciosa por seu caráter sagrado, exemplar e significativo (ELIADE, 1972: 7).

Basta uma leitura dos grandes autores (Lévi-Strauss, Ricoeur, Veyne...) que trabalharam

essa questão para percebermos que a oposição mito/história deve ser problematizada e veremos

que em alguns pontos os dois campos se parecem ocupando a mesma função, este é o argumento

de Claude Lévi-Strauss:

O que se descobre ao ler estes livros é que a oposição – a oposição simplificada entre mitologia e história a que estamos habituados a fazer – não se encontra bem definida, e que há um nível intermédio (LÉVI-STRAUSS, 1978: 41).

Em outro trecho o autor diz: “Não ando longe de pensar que, nas nossas sociedades, a

História substitui a Mitologia e desempenha a mesma função (...)”(LÉVI-STRAUSS, 1978: 63).

Paul Ricoeur também problematiza a questão:

Tratando do mito e da história neste nível, devemos evitar a tentação de empenhar-nos em contraposições simplistas entre tipos diferentes de civilizações, ou utilizar interpretações genéticas excessivamente lineares (RICOEUR, 1993: 373).2

2 Grifo nosso.

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O objetivo de pesquisar os conceitos de “mito” e de “história” é entender como essa

distinção pode ser feita para que possamos, no final, ter uma compreensão de como ela é

articulada nas narrativas de diferentes sociedades. Não convém pensar no estudo da história como

um avanço na História do homem, que já não acredita em “lendas” e “histórias fantasiosas ou

irreais” e sim trabalhar com a noção de Paul Veyne, da “pluralidade de mundos da verdade”.

Nesse sentido, a verdade é heterogênea. Não consideraremos a verdade da História mais real que

aquela do Mito. Sabemos, porém, que são verdades de natureza distinta. Acreditaremos no

argumento de Veyne que diz:

(...) mais precisamente seria necessário saber se a literatura ou a religião são mais ficções do que a história ou a física e vice-versa; dizemos que uma obra de arte é, á sua maneira, considerada como verdadeira, mesmo onde ela passa por ficção, pois a verdade é uma palavra homônima que não deveria se empregar senão no plural: só existem programas heterogêneos de verdade e Fustel de Coulanges não é nem mais nem menos verdadeiro que Homero, ainda que seja de outra forma (...)”(VEYNE, 1985: 31).

Este trabalho adota como procedimento, a princípio, uma análise arqueológica da obra de

Paul Veyne: “Acreditavam os gregos em seus mitos?.” Na tentativa de encontrar nessa obra como

se articula a distinção entre história e mito no mundo grego, buscaremos entender como

historiadores e leigos viam os mitos e sua relação com a história. Veremos, também quais eram

as implicações dessa visão para o entendimento da verdade, para, a seguir, realizar uma analise

de “O mito do eterno retorno” de Mircea Eliade, onde questões parecidas vão ser colocadas

buscando entender a distinção mito/história no contexto das sociedades arcaicas. Procedendo

assim faremos classificações que as próprias obras não explicitavam. Como define Michel

Foucault, o método guiará esse trabalho:

Não é nada mais e nada diferente de uma re-escrita: isto é, na forma mantida da exterioridade, uma transformação regulamentada do que já foi escrito. Não é o retorno ao segredo da origem; é a descrição sistemática de um discurso-objeto (FOUCALT, 1971: 173).

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Capítulo II: História e Mito no mundo grego a partir da obra de Paul Veyne

Paul Veyne trabalha de forma interessante os limites entre os campos da História e do

Mito em seu livro: “Acreditavam os Gregos nos seus mitos?”. O historiador investiga como no

imaginário dos Gregos a verdade era entendida, e como eram as diferentes modalidades de crença

do popular e do letrado. Isso não é feito apenas para conhecer o imaginário antigo e nem somente

observar como eles viam a verdade. Seu interesse ao estudar essas questões é repensar o conceito

moderno de verdade e nos mostrar que ela só pode ser entendida de forma heterogênea.

Lembrando Foucault diríamos que só é possível uma história das idéias quando já não existe uma

idéia de verdade única e é isso que constatamos no trabalho de Veyne. Seu trabalho mostra como

as idéias de História e de Mito foram transformadas ao longo do tempo. Isso só é possível porque

se sabe que não existe somente um mundo de verdade no qual podemos acreditar. Nessa

investigação observaremos os lugares da história e do mito no pensamento grego, e como a partir

desses conceitos podemos pensar em diferentes programas de verdade.

Verdade histórica entre os antigos: tradição e vulgata:

Os historiadores antigos nunca citavam suas fontes e nem mesmo distinguiam as fontes

primárias das secundárias. Ao tentar buscar as razões para esse silêncio, Paul Veyne nota que a

história como conhecemos hoje é totalmente diferente daquela feita pelos historiadores clássicos,

tendo em comum somente o nome. Isso não implica dizer que aquela forma de se fazer história

fosse imperfeita: “estava tão acabada, como meio de merecer crédito quanto o nosso jornalismo

(...)” (VEYNE: 1983: 15). O historiador antigo não colocava notas de rodapé, pois queria que

acreditassem na sua palavra.

O historiador Estienne Pasquier em 1560 era bastante criticado por fornecer, com

freqüência, a referência de suas fontes. Não se esperava que o historiador mostrasse de onde ele

tinha tirado aquela informação para que seu relato tivesse credibilidade. Essa credibilidade viria

com o tempo, assim como aconteceuram com os historiadores antigos.

Paul Veyne lembra que, entre os gregos, a idéia de história era diferente: “a verdade

histórica era uma vulgata que consagra o acordo dos espíritos ao longo dos séculos, esse acordo

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sanciona a verdade” (VEYNE, 1983: 16). Ao invés de estabelecer a verdade por referência, o

autor deveria esperar “que ele mesmo fosse reconhecido como texto” (VEYNE, 1983: 16). Ao

colocar referências ele iria tentar “forçar o consenso da posteridade em torno da sua obra”

(VEYNE, 1983: 16). Não podemos considerar que a distinção entre fontes primárias e

secundárias fosse ignorada, ou ainda não tivesse sido descoberta, ela simplesmente não era

necessária.

Os historiadores modernos vêem os seus antecessores como fontes, porém os

historiadores antigos percebiam a versão de seus predecessores como uma tradição que deveria

ser retomada no sentido de melhorá-la. Tito Lívio e Dionísio de Halicarnasso reuniam o que

diziam seus antecessores sem questionar se o que eles diziam era ou não verdade. Somente

suprimiam os detalhes que lhes pareciam falsos, tampouco questionavam como os historiadores

sabiam sobre os acontecimentos que relatavam, ou sobre a distância temporal do historiador e seu

objeto. Eles sabiam que os primeiros historiadores de Roma tinham sido posteriores a Rômulo

quatro séculos, mas para eles “a tradição estava lá e ela era a verdade, eis tudo” (VEYNE, 1983:

17).

Outra função considerada importante pelos historiadores antigos era a de se relatar a

história de seu tempo. Isso porque o passado já tinha seus historiadores. Já na

contemporaneidade precisaríamos de um historiador que se tornasse fonte histórica para o futuro,

estabelecendo-se assim a tradição. O historiador antigo não utilizava fontes e documentos, pois

ele mesmo assumia esse papel de fonte e documento. Tornava-se, então, um porta-voz da

história.

Por algumas vezes, o historiador antigo poderia falar que suas fontes apresentavam

alguma divergência, mas não fazia disso um elemento de prova, somente citava algum detalhe

duvidoso. Podia ele também transcrever um documento, mas com a intenção de ilustrar o leitor e

não de provar algo. No passado, os historiadores eram autoridades para seus sucessores, poderia

ser, no entanto, que estes os criticassem. Faziam isso para eliminar os supostos erros e não para

reconstruir o trabalho já feito.

O historiador antigo não citava suas “autoridades”, pois ele mesmo se considerava uma.

Não é possível saber de onde Políbio ou Tucídides tiraram as informações contidas em seus

relatos, porém se nos empenharmos em traçar uma origem de como a verdade histórica surgiu

como vulgata, a encontraríamos na Grécia. A história não surgiu, como em nossos tempos, da

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controvérsia, mas sim da investigação. Quando se investiga, só se pode dizer: “eis o que eu

constatei, eis o que foi me dito nos meios geralmente bem informados (...)” (VEYNE, 1983: 20).

Tanto é que a veracidade de um relato jornalístico não se faz pela citação das fontes contidas no

texto, mas pela crítica interna feita pelo jornalista. Veyne citando um historiador antigo lembra

que “um bom historiador, diz Tucídides, não acolhe cegamente todas as tradições que lhe foram

narradas: ele deve saber verificar a informação, como dizem nossos repórteres” (VEYNE, 1983:

21).

O historiador antigo não precisava colocar o processo de seleção das informações aos

olhos dos leitores. Ele assumia a responsabilidade sobre a informação que fornecia. O historiador

moderno, por outro lado, propõem uma interpretação e fornece aos leitores meios de verificar

essas informações. O antigo não se preocupava em deixar claro de onde tirou suas informações,

pois considerava que o trabalho de investigar era do historiador e não do leitor: “Pois seu leitor

não era ele mesmo um historiador, não mais do que os leitores de jornais são jornalistas: uns e

outros confiam no profissional” (VEYNE, 1983: 21).

História Moderna: Quando o historiador começa a citar suas referências.

Em certo momento de seu texto Paul Veyne se pergunta: “Quando e por que mudou a

relação do historiador com seus leitores? Quando e por que se começou a dar suas referências?”

(VEYNE, 1983: 21). O autor lembra que Gassendi em seu “Syntazma philosophiae Epicurae”

não citava suas referências, de forma que nada distinguia o pensamento de Epicuro e de

Gassendi. Pretendia assim retomar o epicurismo na sua verdade eterna, verdade essa que é

anônima.

O hábito de citar as fontes não vem de historiadores, mas sim de “controvérsias teológicas

e práticas juristas” (VEYNE, 1983: 22). Esta idéia cresce juntamente com o aumento das

universidades e o crescimento de sua importância. Nesse contexto era preciso atirar “(...) as

provas no rosto, antes de dá-las a compartilhar aos outros membros da “comunidade científica””

(VEYNE, 1983: 22). Na Universidade, os historiadores não escrevem mais para os leitores e sim

para outros historiadores, daí a necessidade de mostrar suas provas. Em Pausânias e Heródoto,

Veyne mostra que muitas vezes os historiadores demonstraram que não acreditam em parte do

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que eles relatam, o dever destes historiadores era como diz Heródoto de “(...) dizer o que me foi

dito, mas não o de acreditar em tudo (...)”(VEYNE, 1983: 23).

Caso um historiador moderno quisesse contar lendas e fatos nos quais ele mesmo não

acredita, ele atentaria contra a ciência. Por outro lado o historiador antigo possuía um público

mais amplo e menos especializado, de forma que alguns queriam ler história por diversão, outros

traziam um olhar mais crítico ou ainda liam história para usá-la na política e na estratégia. Dessa

forma o historiador poderia mostrar a verdade de maneira variada, atentando para o seu público.

Antes da era Nietzsche e Max Weber, a era da controvérsia segundo Paul Veyne, os fatos

existiam, o historiador não precisava interpretá-los, pois eles estavam dados. Veyne diz que nesse

momento o historiador precisava possuir três características que são as de um bom jornalista

hoje: “diligência, competência e imparcialidade”. Ele vai agir diligentemente informando-se nos

livros, tradições e mitos sobre o fato que esta pesquisando, deverá ter competência em assuntos

políticos para compreender as ações humanas e sua imparcialidade: “fará com que ele não minta

por comissão ou omissão” (VEYNE, 1983: 25).

Mitos de Deuses e mitos de heróis: A cultura popular e letrada frente à mitologia

Se a história antiga se difere da moderna em vários pontos, num ponto elas se parecem.

Ambas têm certa desconfiança com relação ao mito. Se para o historiador moderno o mito

deveria ser desconsiderado uma vez que não tem valor3 factual, para o antigo existiria uma

verdade nos mitos. Para este último os mitos se referiam a uma história verdadeira que tinha

ganhado características fantasiosas com o passar do tempo. O papel do historiador era o de buscar

esse fundo de verdade dos mitos.

Pausânias, nos seus estudos, recolhia lendas e histórias nos vilarejos por onde passava.

Nesses lugares as pessoas não duvidavam dos relatos míticos. Esses se remetiam à vida de santos

ou de mártires e retomavam genealogias heróicas ou divinas, porém não acreditavam neles como

(...) se acredita na realidade que nos circundam. Para o comum dos fiéis, as vidas dos mártires permeadas de maravilhas, situavam–se num passado distante, do qual se sabe apenas que era anterior, exterior e heterogêneo do tempo atual; era o “tempo dos pagãos (VEYNE, 1983: 28)

3 Fontenelle foi o primeiro a assumir essa postura, como afirma Paul Veyne neste trecho: “Fontenelle foi o primeiro a dizê-lo: as fábulas não têm nenhum núcleo de verdade e não são nem mesmo alegorias (...)” (Veyne, 1983: 72)

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Era assim que se explicavam os mitos gregos: eles aconteciam nas gerações heróicas,

tempo onde os deuses ainda se misturavam com os humanos. Segundo Paul Veyne um grego teria

ficado atônito “se tivesse de aceitar o problema do tempo, e que lhe ensinassem que Héfesos

acabava de se casar novamente ou que Atena tinha envelhecido muito esses últimos tempos”

(VEYNE, 1983: 28). O mito não pertencia ao mesmo regime de crença que o da história. As

ações míticas realizavam-se numa temporalidade diferente, exterior.

Havia então para os gregos antigos, antes do passado da humanidade, um período

maravilhoso que foi a era dos Deuses. Esse período, segundo Veyne, era “Real em si mesmo e

irreal em relação ao nosso”. Heródoto já distinguia as gerações heróicas e as gerações humanas.

Veyne mostra como, entre os antigos, se entendia a cronologia a partir de Varrão:

De Deucalião ao dilúvio estendia-se a idade obscura; do dilúvio à primeira olimpíada (onde a cronologia tornava-se mais segura) estava a idade mítica, “assim chamada porque ela comporta muitas fábulas”; da primeira olimpíada em 776 a.C. à época de Varrão e de Cícero, estende a idade histórica, onde “os acontecimentos são narrados nos livros de história autênticos” (VEYNE, 1983: 62).

Vemos aí um discurso que separava a verdade histórica da verdade mítica, numa

cronologia que narrava o processo de humanização do mundo: a separação dos Deuses com o

mundo dos homens. Esse mundo dos homens era “narrado nos livros de história autênticos”, já a

época dos Deuses era narrada nos mitos, um relato sem autor que era sempre feito a partir de um

discurso indireto, começando sempre com um “diz-se”.

Para pensarmos essa distinção do mundo mítico para o mundo humano, Veyne nos lembra

de Píndaro, que narrava os mitos aos vencedores. Fazia isso não porque considerava que o

guerreiro devia seguir a vida do herói como modelo, pelo contrário, o mundo dos heróis era um

mundo muito mais nobre. O poeta fazia isso para elevar o atleta ao mundo dos heróis, uma vez

que ele (o poeta) era familiar a esse mundo, “Píndaro enaltece a glória de seu vencedor exaltando

esse outro mundo mais elevado, onde a própria glória é maior” (VEYNE, 1983:31).

Outra particularidade do mito é que se trata de um relato sem autor. Se a partir de

Túcidides ele era interpretado como uma tradição histórica, como uma lembrança dos

acontecimentos transmitida de geração para geração, antes disso o mito era outra coisa, não se

tratava de “comunicar o que se tinha visto, mas em repetir o que se dizia dos deuses e dos heróis”

(VEYNE, 1983: 34). Veyne lembra que o exegeta fazia de seu discurso um discurso indireto ao

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dizer: “diz que...”, “a musa canta que...”, “um logos diz que...”. Esse discurso não remetia a

nenhum autor, uma vez que mesmo as musas não faziam mais do que “redizer”.

Havia então dois domínios, um dos Deuses e outro dos heróis. Existiam pessoas que

duvidavam da existência dos Deuses, mas ninguém duvidava da existência dos heróis. Os heróis

eram homens normais que o tempo e a imaginação das pessoas atribuíram-lhes características

sobre-humanas. Então “a crítica das gerações heróicas consistia em transformar os heróis em

simples homens” (VEYNE, 1983: 53).

Em contrapartida, o grande público acreditava nos mitos sem nenhuma crítica “por

docilidade à palavra de outrem, por ausência de sistematização da experiência cotidiana e por um

estado de espírito respeitoso e edificante” (VEYNE, 1983: 53). Os letrados criticavam os mitos

da forma como já explicamos. O povo conhecia a existência dos mitos, mas ignorava detalhes

que não precisava saber. O poeta contava os mitos como se ele mesmo tivesse inventado. Não se

colocava, por isso, acima do público, o mito era conhecido por todos e o poeta “não sabia mais do

que os outros, não fazia literatura erudita” (VEYNE, 1983: 57).

Na época helenística observaremos uma mudança de postura com relação ao mito. Nesse

momento: “a literatura faz questão de se considerar douta, não que ela se reserve pela primeira

vez a uma elite” (Píndaro ou Ésquilo não eram exatamente escritores populares)” (VEYNE,

1983: 57). O mito passa a ser erudito, transformando-se no que nós conhecemos hoje por

mitologia. A mitologia afasta-se, então, do povo, que continuou com seus contos e superstições.

Gramáticos e retóricos irão codificar a mitologia simplificando-a. Os ciclos vão ganhar uma

versão oficial esquecendo-se as variantes, exigindo-se então um novo maravilhoso que não podia

se situar além do verdadeiro e do falso: “Desejava-se que fosse científico, ou melhor histórico”

(VEYNE, 1983: 59). O gênero histórico crescia e por isso os mitos deveriam passar pela história.

Exemplo disso é Diodoro, que faz uma crítica dos tempos míticos dizendo que Zeus foi um rei e

que Cronos teria reinado por todo o ocidente. “Pois uma coisa é acreditar que no passado já

tenham existido reis, outra coisa é acreditar que no passado existiram monstros, assim como não

existem mais. Para o milênio seguinte, os princípios da crítica das tradições estavam

determinados: já estão em Platão” (VEYNE, 1983: 66).

A palavra mito muda de valor após a época arcaica, pois ao falar nela o autor diz “um

mito diz que”. Ele quer com isso “tirar o corpo da jogada e deixar cada um pensar o que quiser”

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(VEYNE, 1983: 66). A palavra mito torna-se pejorativa, transformando-se em um conceito que

“qualifica uma tradição suspeita” (VEYNE, 1983: 66).

Os pesquisadores gregos acreditavam que parte do mito era mentira, mas não se

perguntavam por que se mentia. A mentira não era uma questão relevante para eles, uma vez que

ela não tinha nada de positivo. Eles entendiam o mito como uma tradição histórica, pois “pode-se

alterar a verdade, mas não poderia falar de nada” (VEYNE, 1983: 72).

O mito era um acontecimento histórico que com o passar o tempo recebeu versões

fantasiosas. Quanto mais antiga a história narrada pelo mito, menos digna de crédito ela era. Para

os modernos o mito é basicamente a narração de um acontecimento, por isso seu aspecto

lendário. Veyne argumenta que “(...) antigos e modernos acreditam na historicidade da guerra de

Tróia, mas por razões opostas; nós acreditamos nela por causa do seu caráter maravilhoso, eles

acreditam nela apesar do maravilhoso” (VEYNE, 1983: 72). Com essa postura, pouco importava

aos gregos se os mitos continham uma mentira com ou sem sentido. Importava, antes, se

defenderem dessa mentira “E já que existe policiamento é menos urgente compreender os

motivos do falsário do que identificá-lo” (VEYNE, 1983: 74).

Os gregos queriam saber se um mito era total ou parcialmente verdadeiro. Com isso

surgem duas escolas: uma que entende o mito como verdadeiro pelo seu sentido figurado,

alegórico e outra que segue a já citada crítica histórica. Com referência à primeira escola cumpre

notar que ela não vê o mito como um misto de verdades e imposturas, mas este seria totalmente

verdadeiro, exprimindo uma verdade filosófica quando entendido de forma alegórica.

No mundo grego, para tornar o mito exclusivamente histórico, era preciso retirar dele tudo

o que não existia naquela atualidade, pois as coisas acontecidas nela, pensavam os gregos,

estavam sendo devidamente comprovadas. Não era possível, para os historiadores, acreditar no

deus Hércules, mas era totalmente plausível pensar em Hércules como um grande homem que por

reconhecimento foi considerado um deus.

Acreditavam os gregos em seus mitos?

Não há verdades contraditórias num mesmo cérebro, mas apenas programas diferentes que encerram cada uma verdades e interesses diferentes, ainda que essas verdades levem o mesmo nome (VEYNE, 1983: 101).

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Os gregos, segundo Veyne, acreditavam e não acreditavam nos seus mitos. Eles deixavam

de acreditar neles quando não mais os interessavam. O mito era, para eles, uma crença de

semiletrados que os doutos invalidavam. A coexistência de duas formas de verdades num mesmo

pensamento não é própria dos gregos. Levi-Strauss fala do feiticeiro que “acredita na sua magia e

a manipula cinicamente” (VEYNE, 1983: 99). E Veyne relata um fato que demonstra uma

relação dúbia com relação à verdade:

De minha parte, considero os fantasmas como simples ficções, mas não deixo de comprovar sua verdade: tenho deles um temor quase neurótico e os meses que passei fazendo triagem de papéis de um amigo morto foram um longo pesadelo; no momento mesmo em que datilografo estas frases, uma crista de terror começa a se elevar sobre minha nuca. Nada me tranqüilizaria mais que aprender que os fantasma existem “realmente”: ele seriam então um fenômeno como os outros, que se estudaria com os instrumentos adequados, câmara ou registrador Geiger (VEYNE, 1983: 103).

Podemos dizer que os gregos acreditavam em seus mitos, embora vissem o mundo dos

Deuses como um mundo exterior e anterior, de forma que não poderíamos julgá-los a partir de

nossa experiência. Como diz Veyne, “essa relação não nos faz acreditar nos Deuses gregos, mas

no faz entender sobre como a verdade pode ser entendida pelos homens” (VEYNE, 1983: 104).

Notamos a partir do texto de Veyne, sobre a relação dos gregos com seus mitos, que além

de existirem vários programas de verdade, sendo que “todas as verdades são analógicas entre

si”, é possível que uma pessoa acredite em diferentes programas sem que isso seja contraditório,

Por isso, a crítica do gênero histórico sobre os mitos deve ser substituída pela idéia de que o mito

trabalha com uma verdade que não é a mesma da verdade histórica, e que nenhuma dessas

verdades deve ser considerada como superior, mas ambas tem a sua eficácia nos contextos nas

quais são utilizadas.

Nesse sentido, uma mentira não passa de uma verdade fora de lugar. É um discurso que

atua num programa de verdade diferente. Como mostra Veyne:

Um falsário é um peixe que, por razões de caráter não se colocou dentro do aquário certo; sua imaginação científica segue os métodos que não estão mais no programa. Acredito piamente que esse programa seja com freqüência, ou seja sempre, tão imaginário quanto o do falsário(VEYNE, 1983: 124)

Assim, o papel da história será o de estudar como a verdade é pensada através dos tempos,

e como se acreditou nas verdades, e o historiador não deve acreditar numa verdade única e

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superior, nem mesmo na sua: “A reflexão histórica é uma crítica que diminui as pretensões do

saber e que se limita a dizer a verdade sobre as verdades, sem presumir que existe uma política

verdadeira ou uma ciência com maiúscula” (VEYNE, 1983: 144).

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Capítulo III: Concepções em torno do mito e sua relação com a história em O mito do eterno

retorno

Tendo colocado que a história e o mito constituem diferentes mundos de verdades,

investigarei agora como a verdade se estabelece nas narrativas míticas das sociedades arcaicas.

Mircea Eliade, historiador das religiões, é um dos autores que estudou os mitos em suas diversas

manifestações. Segundo o autor, podemos encontrar em todas as manifestações do mito uma

relação com o Cosmos, com a origem. O autor pode ser inserido em um grupo de pensadores que,

no século XX, vão estudar os mitos como verdade e não como uma invenção. Retomo aqui a

citação do primeiro capítulo, onde ele mesmo traça esse panorama:

Há mais de meio século, os eruditos ocidentais passaram a estudar o mito por uma perspectiva que contrasta sensivelmente com a do século XIX, por exemplo. Ao invés de tratar, como seus predecessores, o mito na acepção usual do termo, i.e, como “fábula”, “invenção”, “ficção”, eles o aceitaram tal qual era compreendido pelas sociedades arcaicas, onde o mito designa, ao contrário, uma história verdadeira e, ademais, extremamente preciosa por seu caráter sagrado, exemplar e significativo. (ELIADE, 1972: 7)

Estudaremos aqui uma de suas obras mais consagradas: “O mito do eterno retorno.”

Encontramos nessa obra uma recusa em trabalhar diretamente a história como disciplina. Essa

recusa é explicitada pelo autor que afirma em sua introdução: “(...) o problema da história como

história não será abordado de maneira direta neste ensaio” (ELIADE, 1992: 6). Demonstra neste

trecho seguinte sua intenção: “nossa intenção principal foi estabelecer certas linhas orientadoras

das forças no campo especulativo das sociedades arcaicas” (ELIADE, 1992: 6).

Nessa recusa por uma investigação sobre a história, o autor busca o entendimento do mito

tal como ele era, compreendido pelas sociedades arcaicas. Nesse contexto, ele é visto justamente

como recusa do tempo concreto ou histórico por parte desses povos. O historiador vai, por isso,

colocar de lado questões mais relacionadas à história como uma disciplina. Uma vez que para as

sociedades arcaicas a história não tem valor, o autor não despreza, porém, que as posições

espirituais estudadas por ele, “(...) são instrutivas para o nosso conhecimento do homem e da

própria história humana” (ELIADE, 1992: 6-7). Dessa forma a obra busca um entendimento dos

outros (sociedade arcaica tradicional) que é efetivada a partir de uma recusa do nós (sociedade

moderna histórica). Esse procedimento visa demonstrar como o mito é entendido pelas

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sociedades que o criaram e o perpetuaram. Em seu prefácio escrito em Novembro de 1958 o autor

esclarece que o título da obra foi mudado diversas vezes, tendo inicialmente, em 1945, recebido o

título de Cosmos e História, num segundo momento recebeu o nome de Arquétipos e Repetição,

para finalmente ser denominado: O mito do eterno retorno. O historiador lembra que o título do

livro não se refere ao mito grego ou sua reinterpretação por parte de Nietzsche.

Antes de tudo o mito do eterno retorno refere-se à forma com que o homem das

sociedades arcaicas se relacionava com o Cosmo. Para o autor a principal diferença

(...) entre o homem das sociedades arcaicas e tradicionais, e o homem das sociedades modernas, com sua forte marca de judeu-cristianismo, encontra-se no fato de o primeiro sentir-se indissoluvelmente vinculado com o Cosmo e os ritmos cósmicos, enquanto que o segundo insiste em vincular-se apenas com a História. (ELIADE, 1992: 8)

Esse Cosmo tem também uma história. A validade dessa história reside no fato de que ela

remete a um episódio de criação dos deuses e dos heróis nos tempos míticos. Ela é, portanto,

“uma "história sagrada", preservada e transmitida por intermédio de mitos” (ELIADE, 1992: 8).

Além disso, essa história deve ser repetida infinitas vezes, pois as cerimônias reatualizam o

acontecimento primordial narrado pelo mito.

No prefácio de “O mito do eterno retorno” o autor também lembra que o uso da palavra

arquétipo, recorrente em sua explicação, não é o mesmo uso feito por C. G. Jung. Para este

último os arquétipos estão relacionados ao inconsciente coletivo. Já para Eliade essa dimensão

não é colocada. Em sua obra, arquétipo é entendido como sinônimo de modelo exemplar.

Para as sociedades tradicionais todos os atos importantes foram revelados por deuses ou

heróis, portanto os homens dessas sociedades repetem esses atos infinitamente em suas vidas.

Nesse sentido Mircea Eliade dá vários exemplos: Na Nova Guiné, os mitos que falam de viagens

ao mar fornecem modelos exemplares aos navegadores: “quando um capitão se faz ao mar,

personifica o herói mítico Aori” (ELIADE, 1992: 35). O navegador não pedia ajuda desse herói,

mas identificava-se com ele. Outro exemplo é o caso dos Karuk da Califórnia, onde tudo o que

eles faziam era conseguido porque os Ikxareyavs já haviam feito nos tempos míticos.

Esses exemplos são reveladores de uma concepção ontológica das sociedades arcaicas.

Nela um objeto ou ação só se torna real à medida que imita um arquétipo. A realidade só é

alcançada pela imitação. Dessa forma paradoxalmente

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(...) o homem de uma cultura tradicional se vê como uma pessoa real apenas até o ponto em que deixa de ser ele próprio (para um observador moderno), satisfazendo-se com a imitação e a repetição dos gestos de outro. Ou seja, ele se vê como uma pessoa real, isto é, como "ele próprio de verdade", apenas e unicamente até o ponto em que deixa de ser isso. (ELIADE, 1992: 36).

Eliade lembra que o sacrifício não só reproduz um sacrifício inicial, mas se situa nesse

mesmo momento mítico, não só o imita mas coincide com ele. Assim o tempo histórico é

suspenso em nome de um tempo sagrado. Através da imitação desse arquétipo o homem arcaico é

ele mesmo projetado para essa época mítica, onde os arquétipos foram revelados pela primeira

vez. Assim, o homem arcaico abole o tempo histórico em nome de um tempo mítico.

Mas esse projetar-se para o tempo sagrado só acontece em períodos essenciais. Naqueles

momentos em que o homem é verdadeiramente “ele mesmo”. O resto dos dias se passa no tempo

profano e desprovido de significado. Os textos brâmanes demonstram a heterogeneidade do

tempo sagrado e profano: “(...) da modalidade dos deuses, ligada à “imortalidade”, e da do

homem, ligada à “morte””. (ELIADE, 1992: 38).

Deste modo, nos mostra Eliade, o homem arcaico apenas tolera a história e a abole

periodicamente. Para o autor, uma característica do homem arcaico é

(...) sua revolta contra o tempo concreto e histórico, sua nostalgia por uma volta periódica aos tempos míticos do começo das coisas, à "Grande Era". O significado e função daquilo que chamamos de "arquétipos e repetição" só nos foram revelados depois que percebemos o desejo dessas sociedades visando à rejeição do tempo concreto, sua hostilidade em relação a qualquer tentativa de montagem da "história" autônoma, isto é, a história não ordenada por meio de arquétipos. (ELIADE, 1992: 5).

Assim vemos que as contingências históricas não têm muita importância para as

sociedades arcaicas. O que importa para esses povos são os acontecimentos originais e

primordiais narrados pelos mitos. Eles devem ser repetidos, pois o homem tradicional se vê como

“ele mesmo” na medida em que se identifica com o modelo exemplar retirado dos mitos,

diferente do que acontece com a narrativa histórica, onde um acontecimento é considerado

verdadeiro pelo fato de ser único e irreversível.

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Narrativas míticas e históricas na memória coletiva

Mircea Eliade demonstra que a lembrança dos acontecimentos narrados pela história,

entendidos como individuais e irreversíveis, duram pouco tempo na memória coletiva. Para o

autor as narrações que incorporam arquétipos míticos são as que duram mais tempo na memória

das pessoas.

Nos povos onde a tradição ainda possui alguma atualidade, os soberanos se identificam

com grandes heróis. Para pensarmos essa questão, o autor dá um exemplo de mito paradigmático:

o combate entre um Herói e uma serpente de três cabeças que pode ser substituída por um

monstro marinho. Lembrando de Dario, ele se via como um novo Tharaetona, herói que teria

matado um monstro de três cabeças. Via a sua história então como a reatualização da história do

herói mítico. No chamado Livro de Apophis, os inimigos do faraó eram colocados como o

Dragão Apophis e o Faraó era identificado com o deus Rê, que teria vencido o dragão.

Nesses casos citados a elite interpreta o tempo histórico que ela vivia, através de um mito.

Os acontecimentos contemporâneos são interpretados então a partir de um modelo atemporal

fornecido pelo mito.

Eliade mostra outra forma de como um acontecimento histórico pode receber uma

narração mítica, isto é, baseada em arquétipos. Foi o que aconteceu no caso de Dieudonné de

Gozon, o terceiro Grande Mestre dos cavaleiros de S. João de Rhodes. Este ficou conhecido por

derrotar o dragão de Mallpasso. A lenda atribui a Dieudonné de Gozon as características de S.

Jorge. O interessante é notar que esse combate com o dragão só é mencionado dois séculos

depois do nascimento do príncipe de Gozon. Mircea Eliade analisa esse fato dizendo que:

(...) pelo simples fato de ter sido considerado como herói, Gozon foi identificado com uma categoria, um arquétipo que, desprezando por completo as suas conquistas reais, o equipou com uma biografia mítica, a partirda qual era impossível omitir o combate com um monstro do mundo dos répteis. (ELIADE, 1992: 40).

A mitificação de um personagem histórico é encontrada também, como mostra Mircea

Eliade, na poesia heróica iugoslava. Marko Krajevic destacou-se durante uma guerra no século

XIV. Mas logo a memória coletiva transformou a biografia deste personagem, cuja existência

histórica e inquestionável, em uma narrativa mítica. Sua mãe foi transformada em Vila, ou seja,

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em fada. Sua mulher também é transformada em Vila, ele a conquistou e escondeu suas asas para

que ela não saísse voando. Marko luta com um dragão de três cabeças. Na narrativa lendária

encontram-se vários anacronismos, muitas vezes o herói, cuja morte se deu em 1394, é colocado

como amigo de John Hunyadi que é um personagem das guerras de 1450.

Ao analisar esses exemplos Eliade mostra que a mitificação de personagens históricos é

produzida de acordo com as imagens dos heróis encontradas no mito primitivo. As histórias

desses heróis se parecem umas com as outras. Pelo menos um dos pais é divino, o nascimento é

milagroso, os protagonistas realizam viagens ao céu e ao inferno. Isto implica dizer que essas

narrativas incorporam arquétipos míticos.

Eliade mostra, também, que a historicidade de um personagem não resiste por muito

tempo. Sua imagem, como personagem único, individual, não é conservada na memória popular,

ao menos que ela esteja ligada a um arquétipo mítico.

Lembra Mircea Eliade que alguns pesquisadores, entre eles Caraman, chegaram

conclusão de que um episódio histórico permanece na memória popular durante, no máximo, dois

ou três séculos. Mircea Eliade explica o fato:

E isto porque a memória popular encontra dificuldade em guardar a imagem de acontecimentos individuais e figuras reais. As estruturas por meio das quais ela funciona são diferentes: categorias, ao invés de episódios, arquétipos, em lugar de personagens históricos. (ELIADE, 1992: 44).

Sendo assim o personagem acaba se confundindo com seu arquétipo (Herói, etc.) e o

evento com uma categoria de ações míticas (luta com monstros, irmãos inimigos entre, outros).

Quando um poema épico guarda alguma verdade histórica ela nunca está relacionada a eventos e

fatos específicos, individuais, mas sempre a paisagens e instituições. Essas verdades históricas

encontradas nos poemas épicos são sempre despersonalizadas.

Algumas vezes, lembra Eliade, um pesquisador pode encontrar um episódio recente

transformado em mito. O autor cita o exemplo do folclorista romeno Constantin Brailoiu que

registrou uma balada na aldeia de Maramures. A tragédia narrava a história de um jovem

pretendente enfeitiçado por uma bruxa. Pouco antes do jovem se casar, a bruxa por ciúmes,o

empurrou num penhasco. O seu cadáver teria sido encontrado no dia seguinte e seu chapéu preso

nos galhos de uma árvore. Ao encontrar o cadáver a noiva teria lançado um canto fúnebre cheio

de alusões mitológicas.

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Em uma pesquisa feita pelo folclorista foi perguntado quando o episódio havia acontecido

e todos responderam que era uma história acontecida há muito tempo. Por fim, ele descobriu que

o fato tinha acontecido há menos de quarenta anos anteriores à visita do folclorista. A noiva que

aparecia no relato ainda estava viva. O romancista ao questionar a noiva sobre o ocorrido,

recebeu como resposta que o noivo apenas havia escorregado e caído do penhasco sem qualquer

menção da bruxa.

Nesse caso, pouco tempo depois, cerca de quarenta anos do ocorrido, a história já recebia

arquétipos mitológicos. Quase todos da aldeia haviam presenciado o evento. A explicação

histórica não bastou para esclarecer o ocorrido. A morte do jovem teve, como mostra Eliade, um

significado oculto que só se revelaria a partir da identificação com uma categoria mítica.

Quando chamou a atenção dos aldeões sobre a versão autêntica dos fatos o folclorista

recebeu como resposta que a mulher havia esquecido dos pormenores. Para eles, o mito falava a

verdade, a história verdadeira teria se transformado em falsificação. Foi indagado também se

“não seria o mito ainda mais verdadeiro por permitir que a história real adquirisse um significado

mais rico e profundo, revelando um destino trágico?” (ELIADE, 1992: 46). Nesse ponto o autor

questiona se a incapacidade da memória popular em reter um acontecimento histórico, ao lado da

importância dada nas sociedades arcaicas aos arquétipos, não nos revelaria algo mais além da

resistência da concepção espiritual à história? Diz o autor:

(...) essa lacuna mnemônica não revelaria a transitoriedade, ou pelo menos o caráter secundário da individualidade humana como tal — daquela individualidade cuja espontaneidade criativa, em última análise, constitui a autenticidade e irreversibilidade da história. (ELIADE, 1992: 46).

Observa Eliade que, se por um lado a memória popular se recusa a reter informações

pessoais da biografia de alguns heróis, por outro “as mais elevadas experiências místicas

implicam uma elevação final do Deus pessoal ao Deus extra-pessoal.” (ELIADE, 1992: 46).

Dessa forma podemos entender a transformação do morto em ancestral em algumas tradições,

pois temos a transformação do homem num arquétipo. Na Grécia, lembra o autor, as almas não

possuem mais memória, elas perdem sua identidade histórica. Nessa tradição só os heróis

preservam sua personalidade após a morte. Justamente por todas as suas ações na terra serem

exemplares é que sua lembrança é preservada.

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Podemos dizer, a partir de Mircea Eliade, que a narrativa histórica, vista como uma

sucessão de fatos únicos e irreversíveis não dura muito tempo na memória coletiva. O que fica na

biografia de um personagem histórico são os aspectos míticos. O que fica guardado na memória

popular são os arquétipos que já estão presentes nas diversas narrativas míticas das sociedades

arcaicas.

O homem moderno se sente diminuído pela idéia de uma sobrevivência impessoal, pois

ele quer ser único. Lembra Eliade que a, importância do irreversível e do novo é recente na

humanidade. Já a sociedade arcaica vai se defender no máximo da irreversibilidade que a história

pressupõe.

O homem moderno e a liberdade através da história

Colocaremos agora em questão a visão do homem moderno com relação à concepção

ontológica primitiva. Eliade nos mostra a visão que o homem moderno possui sobre a liberdade,

que implica numa aversão à concepção ontológica primitiva, uma vez que essa concepção, para

ele, parece desprovida de liberdade. O homem histórico só se vê livre na medida em que essa

liberdade se vincula à história.

O homem das sociedades históricas atribui um grande valor às novidades, àquilo que para

o homem tradicional representa ou conjunturas sem importância ou a infração de normas, pecado

ou falta. Por isso o homem arcaico abole essas novidades periodicamente. De um lado a narrativa

histórica só permite que um acontecimento seja considerado verdadeiro se este representar uma

conjuntura única, localizada e irreversível. De outro, a narrativa mítica proíbe que sejam narrados

acontecimentos irreversíveis, uma vez que os únicos acontecimentos que importam, para ela, são

relacionados à criação por parte dos Deuses ou de Heróis. Esse momento original e primordial

deve ser repetido nos cerimoniais, onde se imitam a estrutura de uma narração mítica.

O homem moderno atribui à concepção do homem primitivo, a partir de seus arquétipos e

modelos, uma aberrante visão de identificação com a natureza. Ele observa que gestos e atos

manifestados atemporalmente tiveram um lugar, assim como qualquer outro acontecimento

histórico. As narrações míticas remetem ao nascimento, atividade e desaparecimento de um deus,

o herói, demonstrando aí o conhecimento de uma história sagrada e primordial, situada num

tempo mítico. Essa visão demonstra um medo do movimento e da mudança. Se colocado diante

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da aceitação da história ou da reidentificação com a natureza. o homem arcaico, segundo Eliade,

se colocaria ao lado da segunda opção.

O homem moderno pode então, na visão de Eliade, entender nessa concepção do homem

arcaico, um sentimento de culpa do homem recém saído do estado de natureza, o que o leva a

reidentificação com a repetição dessa natureza a partir dos poucos gestos espontâneos que

sinalizam o aparecimento da liberdade. O homem moderno vê então o homem antigo aprisionado

no horizonte mítico e impossibilitado de qualquer ato criativo, pois o homem moderno só pode

ser criativo enquanto histórico, como afirma Eliade: “(...) toda criação está proibida para ele,

exceto aquela que tem sua fonte em sua própria liberdade; e, conseqüentemente, tudo lhe é

negado, exceto a liberdade de fazer a história, fazendo-se a si mesmo” (ELIADE, 1992: 149).

Por conseguinte, continua o autor, o homem arcaico poderia responder ao moderno

questionando se ele estaria mesmo fazendo a história. Como afirma Mircea Eliade “pelo

contrário, quanto mais moderno ele se torna — isto é, sem defesas contra o terror da história —

menos chance tem de fazer história ele próprio.” (ELIADE, 1992: 149). Porque ou a história se

faz, como resultado de atos passados (descoberta da agricultura ou da metalurgia, revolução

industrial, etc.), ou o homem terá que deixar que essa história seja feita por um número cada vez

menor de homens. E estes além de impedirem cada vez mais outros índividuos de participarem

diretamente da história que estão construindo, também terão meios para obrigá-los a suportarem

essa história. Conforme nos mostra Eliade: “A decantada liberdade do homem moderno no

sentido de fazer história é ilusória, para a quase totalidade da raça humana” (ELIADE, 1992:

150). A liberdade na qual se propunha a existência histórica era possível no início do período

moderno, porém o que acontece é exatamente o contrário. Essa liberdade vai ficando cada vez

mais inacessível à medida que o homem vai se tornando histórico, em outras palavras, à medida

que não aceita um modelo trans-histórico. Dessa forma, ao analisar dois fenômenos modernos,

conclui Mircea Eliade:

É perfeitamente natural, por exemplo, que o marxismo e o fascismo devam levar ao estabelecimento de dois tipos de existência histórica: a do líder (o único homem "livre" de fato) e a dos seguidores, que encontram, na existência histórica do líder, não um arquétipo de sua própria existência, mas o legislador dos gestos que lhes são provisoriamente permitidos. (ELIADE, 1992: 150).

Portanto, para Eliade, o homem tradicional pode ser livre para criar. Uma vez que ele tem

o direito de não ser mais o que era, de abolir periodicamente a história. O homem das sociedades

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antigas tinha a oportunidade de todo ano começar uma nova existência. É possível ver nessa

constante renovação uma analogia com a natureza que se renova em cada primavera. Nas

palavras de Eliade: “As "possibilidades" intactas da Natureza a cada primavera, e as

possibilidades do homem antigo às portas de cada ano, portanto, não são homólogas.” (ELIADE,

1992: 151). Mas enquanto a natureza recupera a si mesma, o homem recupera a possibilidade de

transcender o tempo. Enquanto ele não fizer isso, enquanto ele pecar, ou seja, insistir na

existência histórica, ele perderá essa oportunidade de transcendência. Ele tem a oportunidade,

então, de “anular suas faltas, de abolir a memória de sua "queda na história", para fazer uma nova

tentativa de escapar definitivamente do tempo” (ELIADE, 1992: 151).

O homem antigo tem então o direito de se considerar mais criativo que o homem moderno

porque este só se vê como criativo a partir da história. Já, nas sociedades arcaicas o homem,

todos os anos, “toma parte na repetição de sua cosmogonia, o ato criativo par excellence”.

(ELIADE, 1992: 151). As técnicas orientais buscam anular ou transcender o humano, porque eles

não vêem a existência humana como irredutível. Dessa forma, podemos falar não só de liberdade,

mas também de criação, pois o que se vê aí é a criação de um novo homem, supra-humano, um

homem-deus. Experiência essa que, segundo Eliade, o homem histórico nunca será capaz de

alcançar.

Ao estudar Mircea Eliade, percebemos que esse autor vê na emergência das narrativas

históricas um problema: que o homem moderno ao se vincular a essas narrativas tem, para o

autor, uma ilusão de liberdade. Já o homem das sociedades arcaicas, ao repetir os acontecimentos

narrados pelos mitos, é realmente livre pois, este transcende o tempo profano e se une aos

deuses, tornando-se ele mesmo um deus, portanto um criador.

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Conclusão

Tentaremos agora traçar os principais elementos abordados nessa pesquisa. Esses

elementos buscam entender as relações entre as narrativas do mito e da história.

No primeiro capítulo o eixo norteador foi explicar como a distinção entre mito e história é

pensada no senso comum. Neste capítulo pretendemos mostrar que essa concepção não é a única

possível. Mostramos que alguns pensadores do século XX trazem uma visão diferente. Estes

autores vêem que o mito pode ser considerado uma verdade.

O segundo capítulo, um estudo da obra de Veyne, traz alguns elementos para explorar a

problemática inicial. A primeira questão levantada, neste capítulo, diz respeito à forma de se

pensar a história na antiguidade. Nesse contexto, os historiadores acolhiam a tradição. O

historiador coletava histórias sobre a origem dos lugares e sobre os eventos importantes. As

coletava mesmo que estas histórias fossem lendas e possuíssem elementos imaginários. A

segunda questão que colocamos é a maneira que os historiadores lidavam com essas lendas ou

mitos. Para eles os mitos possuíam uma verdade. Para encontrar esse núcleo verdadeiro os mitos

teriam de passar pela crítica histórica. Essa crítica eliminaria dos mitos seus aspectos imaginários.

Os historiadores antigos imputavam às narrativas míticas uma versão histórica. O ultimo

elemento explorado no capítulo se refere aos diferentes regimes de crença. O regime de crença da

história e do mito. Paul Veyne mostra que diferentes mundos de verdade se estabeleciam no

mundo grego. Nesse contexto, acreditava-se nos mitos, mas não como se acredita na realidade

concreta. Os mitos se referiam a um tempo anterior e exterior ao tempo humano ou histórico. Por

isso Veyne afirma que a história não deve ser vista como mais real do que o mito. Mito e história

são, cada um, reais a sua maneira.

Dando seqüência, exploramos no terceiro capítulo como, na visão de Mircea Eliade, se

estabelece a verdade nas narrativas míticas. Exploramos também como essa verdade nas

narrativas míticas se distingue da verdade nas narrativas históricas. Apresentamos neste capítulo

três argumentos principais para se pensar essa questão. O primeiro é que, de um lado, a narrativa

histórica entende como verdadeiros os acontecimentos narrados como únicos e irreversíveis. De

outro lado a narrativa mítica só é valida por que os acontecimentos aí narrados são

constantemente repetidos. O segundo argumento é de que as narrativas míticas permanecem mais

tempo na memória coletiva do que as narrativas históricas. Percebe-se aí que a memória popular

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guarda os arquétipos e esquece as características individuais e históricas dos personagens. O

terceiro argumento é que de um lado o homem moderno, que se vincula a narrativa histórica, se

vê como livre e criativo porque seus atos são considerados únicos e irreversíveis. De outro lado

na sociedade arcaica, o homem é livre e criativo por que repete os atos de criação dos deuses e

dos heróis. E estes atos são narrados pelos mitos.

O que pretendemos neste estudo foi apresentar diferentes visões sobre os conceitos de

história e de mito. Visões estas que podem ser exploradas nas narrativas de diferentes sociedades.

Ao estudar as obras de Paul Veyne e Mircea Eliade, intentamos mostrar que a visão da sociedade

moderna sobre os mitos pode ser relativizada. Acreditamos, portanto, que essa relativização pode

nos ajudar a refletir como esses conceitos podem ser trabalhados na própria escrita da história.

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