maíra bittencourt grounded theory como

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C&S – São Bernardo do Campo, v. 39, n. 1, p. 143-167, jan./abr. 2017 143 Maíra Bittencourt Professora na Universi- dade Federal de Rondô- nia - UNIR, Doutora em Ciências da Comunica- ção pela Universidade de São Paulo (USP), Grounded theory como metodologia para o estudo das mídias digitais Grounded theory as a methodology for the study of digital media Grounded theory como metodología para el estudio de las medias digitales

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Maíra BittencourtProfessora na Universi-

dade Federal de Rondô-

nia - UNIR, Doutora em

Ciências da Comunica-

ção pela Universidade

de São Paulo (USP),

Grounded theory como metodologia para o estudo

das mídias digitais

Grounded theory as a methodology for the study

of digital media

Grounded theory como metodología para el estudio

de las medias digitales

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Submissão: 26-8-2015Decisão editorial: 29-3-2017

ReSUmoSe nas mais diversas áreas da comunicação as motivações de pesquisa comumente nascem de um objeto empírico, quando focamos nas mídias digitais essa frequência é ainda maior. As inquietações, na maioria das vezes, brotam do campo, da prática e das observações no ambiente digital. A Grounded Theory (GT) vem justamente ao encontro dessa necessidade. É um aporte metodológico há muito empregado em pesquisas de enfermagem, administração e psicologia e que serve muito bem aos anseios e necessidades dos pesquisadores que se dedicam à comunicação digital. Neste artigo, vamos contextualizar a GT e explicar como fazer uso desta metodologia de pesquisa, que tem por principal finalidade criar novas teorias a partir do campo empírico.Palavras-chave: Grounded Theory (GT); mídias digitais; teoria fundamentada; metodologia de pesquisa; campo empírico.

AbSTRACTIf in the most diverse areas of communication the research motivations are usually born out of an empirical object, when we focus on the digital media this frequency is even greater. most of the time, concerns spring from the field, the practice, and the observations in the digital environment. The Grounded Theory (GT) comes precisely to meet this need. It is a methodological contribution that has long been used in researches in the fields of nursing, administration, and psychology, and it meets the desires and needs of researchers engaged in digital communication. In this article, we will contextualize the GT and explain how to make use of this research methodology, whose main purpose is to create new theories from the empirical field.Keywords: Grounded Theory (GT); digital media; research methodology; empiri-cal field.

ReSUmeNSi en las más diversas áreas de la comunicación las motivaciones de investigación suelen surgir de un objeto empírico, cuando nos centramos en los medios digi-tales esta frecuencia es aún mayor. La mayoría de las veces, las preocupaciones surgen del campo, la práctica y las observaciones en el entorno digital. La teoría fundamentada (Grounded Theory - GT) viene precisamente para satisfacer esta necesidad. Se trata de un enfoque metodológico por mucho tiempo empleado en las investigaciones en los campos de la enfermería, la administración y la psi-cología y sirve muy bien a los deseos y que responde a los deseos y necesidades de los investigadores dedicados a la comunicación digital. en este artículo, vamos a contextualizar el GT y explicar cómo utilizar esta metodología de investigación, cuyo objetivo principal es la creación de nuevas teorías de campo empírico. Palabras clave: Grounded Theory (GT); medias digitales; teoría fundamentada; metodología de investigación; campo empírico.

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IntroduçãoAo iniciar uma pesquisa, frequentemente surge

o impasse: O que fazer inicialmente, ir à campo, in-vestigar empiricamente o objeto, ou, antes, ler teo-rias sobre o tema escolhido? Na maioria das vezes, a opção tende a ser a segunda, visto que muitos dos trabalhos acadêmicos, nas áreas mais tradicionais das pesquisas de comunicação, sustentam-se primeira e prioritariamente no pilar teórico para depois, se for o caso, investigar o objeto empírico.

No entanto, existem alguns problemas quanto à adoção desse modelo para as pesquisas em mídias digitais1. Podemos apontar especificamente três: 1) o

1 Mídias digitais são aquelas que não se utilizam de suporte físico, funcionando somente pelo sistema de dígitos. São “dados transformados em sequência de números interpretados por um computador: essa é uma das características principais das mídias digitais” (MARTINO, 2015, p. 11). Desse modo, estão abarcados nas mídias digitais os computadores, a TV digital, os laptops, os tablets, os smatphones e os celulares. Entretanto, vale salientar que o foco deste trabalho de pesquisa não está no estudo dessas plataformas como um todo nem em sua estrutura de funcionamento; a proposta restringe-se apenas à área da comunicação. Assim, pode surgir o questionamento: Por que não adotar a terminologia cibercultura? Essa opção foi feita porque acreditamos que o termo mídias digitais é mais amplo. Enquanto a cibercultura necessita da produção cultural, das comunidades virtuais e da inteligência coletiva, conforme a definição do termo, as mídias digitais abrem espaço para toda e qualquer produção de comunicação que ocorre nos suportes digitais on-line e off-line.

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esforço para embasar observações empíricas novas em velhas teorias;2 2) a falta de rigor empírico; 3) o provável e possível desconhecimento dos objetos e fenômenos das mídias digitais, que pode levar a em-basamentos teóricos equivocados. Vejamos detalha-damente cada uma dessas problemáticas.

A primeira e mais importante é que, frequen-temente, há um esforço para tentar embasar ob-servações de ocorrências novas em teorias velhas. Observa-se um objeto empírico atual – e que não tenha relação com nenhum modelo preexistente – e aplica-se uma teoria enraizada em outro contexto comunicacional. Isso vale para as diversas áreas da comunicação. Mas para o meio digital isso ganha es-pecial importância, pois muitos dos discursos, produtos e conceitos são novos e podem não encontrar am-paro em modelos teóricos já estudados e publicados. Em outras palavras, os objetos empíricos podem ser completamente diferenciados em relação à lingua-gem, formatos, estilos entre outros e, exclusivamente quando assim forem, será muito provável que não existam teorias que abarquem por completo as aná-lises do material proposto.

A segunda problemática levantada é que, muitas vezes, o campo da Comunicação tende a realizar análises empíricas sem o rigor quantitativo e qualita-

2 Velhas teorias: não estamos afirmando que as teorias contam com um período de validade curto. Apenas levantamos a questão de que as teorias antigas podem não abarcar a totalidade e a complexidade de determinados produtos empíricos novos, isso porque elas foram pensadas dentro de outro contexto histórico, no qual se desconhecia a realidade que surgiria futuramente. Com essa afirmativa, aproveitamos para reiterar que mesmo as teorias antigas podem ser válidas para pesquisas novas, desde que consigam alcançar a complexidade do objeto ou situação analisada.

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tivo necessário. É comum encontrar pesquisas muito bem estruturadas em seus discursos teóricos, que são apresentados cheios de confrontos e com muita pro-dução de sentido, mas, quando se chega à parte da análise empírica surgem observações aleatórias sem um real embasamento para as escolhas feitas. É co-mum o uso de fragmentos de entrevistas, de twittes, de comentários no Facebook ou de outra rede social, mas esses aparecem apenas para legitimar um pen-samento que foi estruturado via referências e consta-tações do pesquisador. Como afirma Paviani (2011), “é urgente a necessidade de qualificar as ciências sociais e culturais com rigor teórico e metodológico. O rigor nasce da maneira de desenvolver os proces-sos de pesquisa” (PAVIANI apud TAROZZI, 2011, p. 8).

Como terceira e última questão estão as difi-culdades de se trabalhar com os campos empíricos novos3 (como geralmente são os produtos e proces-sos comunicacionais do ambiente digital) sem os ter analisado previamente à pesquisa. Isso ocorre porque podemos descobrir, somente no meio da pesquisa, que o objeto não renderia tanto quanto o espera-do. Nesses casos, poderíamos nos deparar com um objeto diferente da teoria estudada ou, ainda, tomar conhecimento de que o campo empírico deixou de existir, seja por extinção do produto ou por dissipação do público, seja por migração para outro suporte ou qualquer outro motivo. Nesses casos, seria possível dizer que a resposta mais lógica é a troca de objeto, mas com essa troca, além do atraso na pesquisa, sur-ge novamente a questão abordada como a primeira problemática: provavelmente haverá uma tentativa de aplicação de uma teoria previamente estudada

3 Campos empíricos novos: em termos de tempo de existência.

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em um material que não necessariamente possui as características teóricas preexistentes.

A Grounded Theory (GT) pode ser justamen-te uma opção para superar essas problemáticas e avançar nas pesquisas em mídias digitais. Ela é uma metodologia utilizada para desenvolver pesquisas fundamentadas no objeto empírico e que tem por principal finalidade a criação de novas teorias. Esse aspecto torna a GT essencialmente importante para as pesquisas na área das mídias digitais, que, por se-rem relativamente novas, ainda carecem de teorias que consigam compreendê-las em sua amplitude e diversidade.

Quando nos propomos a criar teorias enraiza-das no campo empírico, como é a proposta da GT, podemos ofertar bases teóricas que carregarão em seu cerne as possibilidades e necessidades específicas das mídias digitais e, por isso, poderão enriquecer o campo por meio da oferta de novas bases teóricas. “Pode-se afirmar que uma GT não se limita a recolher dados e analisá-los para verificar ou falsificar teorias preexistentes, pensadas em outras sedes e por outras pessoas, mas constrói criativamente – e rigorosamente – uma teoria a partir dos dados, capaz de explicar os fenômenos pesquisados” (TAROZZI, 2011, p. 29).

No Brasil, a GT é também chamada de Teoria Fundamentada nos Dados, de Teoria Fundamenta-da em Dados, ou ainda, de Teoria Fundada4. Mas julgamos ser mais adequada a adoção da termino-logia Grounded Theory (GT), em inglês, como no ori-ginal da criação do método, porque o termo Teoria Fundamentada (seja “em Dados” ou “nos Dados”) é

4 Teoria fundada: a incidência desse termo é maior na língua espanhola do que na portuguesa.

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justamente a tradução de uma das etapas da GT, a última etapa, na qual encontramos o resultado do processo. Fazer uma Teoria Fundamentada é fazer o produto final da aplicação metodológica da GT.

Por meio dos processos que compõem a GT, o pesquisador vai a campo, coleta os dados, codifica, estabelece categorias, interpreta, relata o processo, até que o problema seja saturado (tudo isso de forma circular, não necessariamente obedecendo a essa ordem e podendo retornar ao passo anterior quantas vezes forem necessárias) e, a partir desse trabalho, emerge uma nova teoria, ou seja, o que se espera com a aplicação da GT é que nasça uma nova teoria fundada na análise do corpus.

Apesar da aparente evidência de eficácia do uso desta metodologia para os estudos das mídias di-gitais, no Brasil existem poucas publicações com o uso da GT. Existem algumas teses e livros com o uso da GT na grande área das Ciências Sociais5 – e, por conse-quência, da Comunicação –, mas especificamente nos estudos das mídias digitais só foi encontrado um registro de publicação, envolvendo livros e teses de doutorado, pós-doutorado ou livre-docência6. Já em dissertações de mestrado e monografias de conclusão de curso foram encontrados mais materiais, porém, nesses casos, quando analisamos os procedimentos, percebemos que o uso da metodologia foi bastante superficial.

5 Citamos essas obras ao longo deste trabalho.6 Segundo pesquisa realizada entre 05 e 10 de junho de 2015

nas bibliotecas de todas as instituições que possuem cursos de pós-graduação em Ciências da Comunicação. Foi feito um levantamento também de artigos científicos publicados no Intercom e na Compós.

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O único trabalho ligado aos estudos de internet que cita a GT e explica os processos e aplicações é texto do terceiro capítulo do livro Métodos de pes-quisa para internet, das pesquisadoras Suely Fragoso, Raquel Recuero e Adriana Amaral (2013), que explana sobre a possibilidade de utilização do método para as pesquisas de cibercultura. As autoras discutem as potencialidades e os entraves da adoção desta me-todologia para os estudos do ciberespaço. Na obra citada, as autoras concluem que, embora seja de difícil manejo, trata-se de um método interessante para as pesquisas na web, visto que nesse campo “é particularmente interessante aos dados obtidos em um campo onde ainda há uma profusão de da-dos para coleta e ainda um pequeno corpo teórico” (FRAGOSO; RECUERO; AMARAL, 2013, p. 87).

Vista a escassez de produções, o presente artigo procura agregar ao campo de pesquisa das mídias digitais pela perspectiva da GT. Aqui discutimos a GT e seus processos, fornecendo mais um suporte e guia prático, para que os pesquisadores possam utilizar-se do método em seus trabalhos científicos ligados às mídias digitais.

A presente reflexão está dividida em duas par-tes. Primeiramente fazemos uma contextualização histórica da GT e uma explanação sobre as escolas existentes. Na sequência, falamos sobre a aplicação prática da GT nos estudos de mídias digitais, no intuito de fornecer um passo a passo, resumido, de como aplicar o método.

Dessa forma, esperamos não esgotar a temáti-ca da Grounded Theory (GT), mas dar uma pequena contribuição para a difusão do método, oferecendo-o como uma alternativa sólida aos pesquisadores que pretendem analisar materiais empíricos e gerar novas teorias para as mídias digitais.

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Contextualização histórica e as escolas da GTOs pais do processo metodológico da Grounded

Theory foram Glaser e Strauss. Eles desenvolveram o método durante uma pesquisa sobre o contexto da morte em ambientes hospitalares (1965). Dois anos depois, publicaram o livro The Discovery of Grounded Theory: Strategies for qualitative research (GLASER; STRAUSS, 1967), primeira obra que discorre sobre a GT. Nela, os autores explicam os processos metodológicos da pesquisa que realizaram e, por consequência, o modo de fazer GT.

Nesses quase cinquenta anos desde a publica-ção do método, a metodologia foi adaptada para diversos tipos de estudos. Glaser (2014a) afirma que, com o passar dos anos, a metodologia tornou-se mui-to mais completa e complexa, pois foi adaptada para as realidades do século XXI. “Os estudos que utilizam GT nos últimos anos usam a aplicação de um con-ceito abstrato de GT, que tem garra e implicações gerais, e, assim, ajudam a explicar o comportamento que está acontecendo” (GLASER, 2014a, p. 47, tradu-ção livre feita pela autora).

Os próprios fundadores, Glaser e Strauss, tomaram caminhos diferentes. Enquanto Glaser continuou seus estudos amparados nos princípios propostos em 1967, Strauss, junto a outros pesquisadores, propôs altera-ções7 no formato inicial da GT.

7 O grande ponto de discórdia entre Glaser e Strauss foi quando Strauss publicou o texto Basics of Qualitative Research: Techniques and Procedures for Developing Grounded Theory, 1990, escrito em conjunto com Juliet Corbin. A partir desse momento, os dois fundadores da GT tomaram caminhos metodológicos diferentes. Glaser continuou com a l inha clássica da GT e Strauss, juntamente com Corbin e seu grupo de pesquisadores, tomou o caminho da GT conceptual description.

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Assim como eles, também outros autores apare-ceram na década de 1990 propondo diferenciações para a GT. Segundo Glaser (2014b, p. 4), são mais de cem tipos de GT. Isso não significa que essas publica-ções se diferenciem umas das outras por completo, mas cada uma leva consigo alguns traços específicos. É como no caso do presente artigo, que visa adaptar a GT para a análise de mídias digitais.

De modo geral, esses mais de cem tipos diferen-tes estão, de uma forma maneira ou outra, abarca-dos em três grandes escolas de GT. Essas seriam as principais vertentes, com grandes diferenciações. São elas: a GT Clássica, a GT Full conceptual description8 e a GT construtivista9.

Tarozzi (2011) resume as características de cada uma das escolas de forma bastante objetiva por meio do quadro na página seguinte.

Os poucos estudos encontrados na área da co-municação utilizam-se principalmente do modelo de GT Construtivista10, justamente por ela estar ligada às demandas das últimas décadas. Mas isso não é um impedimento para a adoção das outras escolas de GT nas pesquisas de comunicação. A escolha da es-cola de GT é apenas uma opção de estilo de pes-quisa, se mais rígido ou mais aberto, “muitos podem escolher a Grounded Theory Clássica, em detrimento de outros métodos, por razões pessoais, como o tipo de emergência dos dados, a autonomia, tipos de

8 Full conceptual description: nos trabalhos em que o termo aparece traduzido para o português utiliza-se a denominação: “interacionismo simbólico”.

9 Construtivista: Em algumas obras em português aparece traduzido como escola positivista.

10 Exemplos de produção com uso da GT em Comunicação: Leite (2015) e TAROZZI (2005) [não publicada].

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codificação e a não utilização de preconcepções, etc., mas a escolha é pessoal, não melhor ou pior” (GLASER, 2014a, p. 3, tradução livre feita pela autora).

Quadro 1 - Características das principais escolas de grounded theory

GT Clássica GT Full conceptual description

GT Construtivista

Glaser Corbin* Charmaz**Pergunta de pesquisa

Não é uma afirmação que identifica o problema a ser estudado. É impossível defini-lo antes de ir a campo (inicia-se de modo aberto a partir de uma área de investigação).

É uma afirmação que identifica claramente o problema a ser estudado. Consente restringir e gerenciar a área de investigação.

Não existe. Os conceitos sensibilizantes (Blumer), interesses pessoais e disciplinares iniciam a pesquisa.

Tipo de dados

“All is data.” Indiferente, sobretudo observações.

Entrevistas semiestruturadas e análise textual. Construção conjunta de dados.

Core Category

Emerge quase magicamente e é intuída improvisadamente no início ou no fim de uma pesquisa.

Fazê-la emergir requer fortes manipulações de dados. Não existe uma única core category.

Existe uma core category prevalecente.

Tipos de codificação

Substantiva teórica. Aberta, axial e seletiva.

Inicial, focalizada, axial, teórica.

Fonte: TAROZZI, 2011, p. 56.

* Essa foi a escola criada por Strauss junto com Corbin, mas agora atribuído somente a Corbin em razão do falecimento de Strauss em 1996.

** Kathy Charmaz: aluna de Glaser. Publicou em 2000 e 2006 duas obras que propunham evoluções para a GT com aspectos inovadores.

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Como um todo, a GT chegou aos trabalhos de pesquisas brasileiros em 1990, sobretudo nas áreas de enfermagem e administração. Os registros de apli-cação do método na área da comunicação apa-recem mais tarde, por volta dos anos 2000, mas ela ainda é utilizada em pequena escala. Dentre todos os trabalhos publicados no Brasil, um que ganhou notoriedade, com a aplicação da GT, foi a tese dou-toral de Fática Cristina Trindade Bacellar, intitulada Contribuições para o ensino de marketing: revelan-do e compreendendo a perspectiva dos professores, apresentada à Faculdade de Economia, Administra-ção e Contabilidade da Universidade de São Paulo (USP) em 2005.

A aplicação da GT nos estudos de mídias digitais: o passo a passo

A GT é entendida como uma metodologia que deve gerar uma teoria fundamentada nos dados co-letados e analisados simultânea e sistematicamente (GOULDING, 2002). O estudo deve começar sem um problema de pesquisa fechado, mas com uma per-gunta: “O que está acontecendo aqui?” (TAROZZI, 2011, p. 47). Tendo essa ausência de hipótese prévia e de problema de pesquisa fechado, o estudo adota como ponto de partida as respostas obtidas por meio da pesquisa empírica.

O método torna-se interessante para aqueles que buscam uma nova perspectiva sobre um fenô-meno, pois auxilia o pesquisador a se libertar de suas noções preestabelecidas. Sempre vale salientar que, mesmo com essa abertura, nenhum pesquisador es-tará totalmente livre de conceitos prévios e ideias pré-concebidas. “É impossível que um pesquisador

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que não seja iniciante consiga entrar em campo sem pré-noções. Se, ao contrário, reconhecer essa carga de percepções pode influenciar de forma positiva” (FRAGOSO; RECUERO; AMARAL, p. 90). É também o que reafirma Dey (1999, 251): “Há uma diferença entre uma mente aberta e uma cabeça vazia”. O importante é estar aberto para que o campo aponte os caminhos que devem ser percorridos, tanto em questão de respostas quanto em questão de méto-dos de análise (de metodologias complementares a quantidades de entrevistas, tipos de observações…).

Segundo a GT, a percepção do que é mais im-portante para a pesquisa vai emergir desse primeiro trabalho de campo. Isso significa que a base pri-mordial estará na coleta e análise de dados. Assim devemos primeiramente tentar compreender a reali-dade dos entrevistados, por métodos variados (des-de questionários qualitativos, quantitativos, grupos focais, entrevistas, estudo etnográfico ou outras fon-tes de informação) para, depois de todo o processo, confrontar o novo material com bases teóricas.

A partir daqui tratamos ponto por ponto, desde como começar a pesquisa até a redação do relatório final. Os pontos são descritos a seguir.

Definição do propósito da pesquisa: sem que haja necessariamente a restrição em algumas vari-áveis ou em uma pergunta de pesquisa específica, nesta etapa é importante ter clareza sobre o que se deseja pesquisar. Aqui definimos qual é a inquietação do pesquisador. Para auxiliar nesse processo, pode-mos refazer a pergunta: “O que está acontecendo aqui?”. Esse “aqui” deve fazer referência direta à realidade escolhida, seja ela um site, um blog, um

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comunicador, um tipo de relacionamento (entre co-municador e usuário)11 ou outro campo das mídias digitais que se deseja estudar.

Coleta de dados e os métodos complementares: depois de definirmos o que será pesquisado, deve-mos ir a campo para recolher os primeiros dados. Como ainda não há um recorte fechado e exato (ex.: X pessoas que seguem determinado perfil no Facebook, ou ainda um determinado blogueiro que produz algum tipo de conteúdo específico), “a amostra não se forma a priori, mas no decorrer da pesquisa, seguindo as lacunas da teoria emergente, […] recolhendo dados de sujeitos e de contextos” (TAROZZI, 2011, p. 23). Assim, definimos previamen-te o tamanho da amostra ou o tipo específico de metodologia complementar que será necessário em toda a pesquisa. Essa decisão vai sendo tomada ao longo do caminho, pelo contato com o campo e da saturação12 das categorias.

Para o desenvolvimento da GT não há restrição de métodos de captação de informações. Pode-se utilizar netnografia, análise de redes sociais, pesqui-sa quantitativa13, questionários, grupo focal, análise

11 Embora a preferência da autora seja sempre por chamar de pessoas, aqui o que melhor remete e resume, pontualmente, a ideia dessas pessoas que recebem e emitem informações na rede acaba sendo a palavra usuário.

12 Saturação: o entendimento de saturação, no contexto da GT, é explicado a seguir.

13 Embora muitos dos autores não reconheçam a possibilidade de pesquisa quantitativa com Grounded Theory, Glaser, um dos fundadores da GT, publicou em 2008 o livro Doing Quantitative Grounded Theory , que vem justamente a reafirmar esta possibilidade e explicar como se deve proceder para aplicação da metodologia neste tipo de coleta de material.

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do discurso, entre outros métodos complementares. Eles farão parte desta parte da pesquisa, a coleta de dados, e darão suporte a todo o processo de relação com o campo empírico.

Codificação aberta: é a parte inicial de codifi-cação e deve abarcar a identificação, descrição e categorização do fenômeno encontrado na pesquisa empírica. “Esta fase fragmenta os dados e permite que sejam identificadas categorias, propriedades e dimensões. […] A codificação aberta, assim, foca principalmente os procedimentos de comparação, classificação e questionamento dos dados” (FRAGO-SO; RECUERO; AMARAL, 2013, p. 96).

O próprio nome desta etapa já dá o direciona-mento do que devemos fazer aqui: é tempo de fazer uma codificação “aberta”. Devemos estar abertos e atentos para o que virá do campo, sem esquecer que a codificação inicial deve estar estritamente ligada aos dados coletados. A partir deles e rigoro-samente com eles é que devemos criar categorias e etiquetas. “A codificação é o elo fundamental entre a coleta de dados e o desenvolvimento de uma teoria emergente para explicar esses dados. Pela codificação você define o que ocorre nos dados e começa a debater-se com o que isso significa” (CHARMAZ, 2009, p. 70).

O objetivo desta fase é extrair alguns conceitos e expressá-los por meio de algumas categorias. Aqui também cabe a transcrição de entrevistas e tabu-lação de questionários. Como etapas importantes a seguir na codificação aberta estão as seguintes: ler e reler todos os textos e entrevistas; codificar pala-

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vra por palavra14; codificar linha por linha15, compa-rar acontecimentos16, começar a criar categorias e etiquetas17 para os dados.

Charmaz (2009) salienta a importância de o pes-quisador observar os dados para criar categorias e não tentar criá-las a partir de conceitos preexistentes, ou seja, é preciso ousar para “ouvir” exclusivamente o que o campo tem a dizer, tomando o cuidado para não sofrer influências de categorias de outros autores. Se assim for feito, a probabilidade de emergir uma teoria inovadora e arraigada aos dados será muito maior.

Para auxiliar neste processo é possível também o uso de softwares. Cada tipo de pesquisa pode encon-trar amparo em um determinado software. Vejamos alguns exemplos. Se as análises tiverem cunho de en-tendimento do comportamento em relação à audiên-cia do Twitter, podemos utilizar o Topsy; se a intenção da pesquisa for o monitoramento de mídias sociais, podemos optar pelo TopSocialMedia; se a ideia for acompanhar uma página de Facebook, podemos utilizar o FanPage Karma. É possível ainda fazer uso de

14 Codificar palavra por palavra significa transcrever o texto do entrevistado palavra por palavra ou ainda transcrever os comportamentos do grupo focal. De modo geral, a codificação palavra por palavra não deve contar com interferências do pesquisador; ela deve ser uma tradução literal do conteúdo emitido pelo campo.

15 Codificação linha por linha significa a extração de algumas palavras mais importantes e com maior carga de significado de cada uma das frases que anteriormente foram codificadas palavra por palavra.

16 Podemos confrontar os materiais recolhidos. Ex.: anotações de diário de campo com as entrevistas ou respostas dos questionários com grupo focal.

17 Etiquetas: nomes ou termos-chave de fenômenos que surgem por meio da análise das categorias.

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softwares de formatação e tabulação de questioná-rios como Excel, o “R” ou o SPSS, principalmente nos casos de pesquisas quantitativas. Para a formatação do próprio texto, cabe o uso de ferramentas como o Microsoft Word, que auxiliam na implementação de etiquetas ao lado do texto. Existem ainda softwares para análises de pesquisas qualitativas, como o Atlas, TI, Nudist e Nvivo18, este último criado exclusivamente para análises com GT.

Codificação focalizada: após esse processo de codificação aberta, chegamos à codificação foca-lizada, com algumas etiquetas e algumas catego-rias, embora possivelmente ainda não saturadas. É provável que o número de categorias seja bastante amplo, visto que na codificação aberta o processo não é o de resumir categoria ou atribuir sentido úni-co para categorias com o mesmo tom de discurso, e sim criá-las.

Já aqui, na codificação focalizada, dois pro-cessos são importantes: identificar macrocategorias e interligar as categorias existentes. Na identificação das macrocategorias, devemos reunir as categorias por semelhanças, no intuito de gerar etiquetas pon-tuais que descrevam os fenômenos encontrados; na interligação das categorias, que Strauss e Corbin cha-

18 Nvivo: criado em 2010 pela empresa australiana QSR, ele foi elaborado pensando-se exclusivamente na GT. Permite que o pesquisador importe e trabalhe nos textos, arquive e separe os vários tipos de dados, codificações e memorandos, interliga os memorandos, cria relação entre os documentos, organiza as codificações aberta e focalizada, deixando-as com modo de árvore, cria e gerencia diagramas referentes ao texto e suas categorias.

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mam de “codificação axial”19, o intuito é confrontar as categorias entre si, fazendo a “comparação en-tre os códigos e, posteriormente, entre os conceitos” (FRAGOSO; RECUERO; AMARAL, 2013, p. 94).

Depois disso a pergunta de pesquisa deve ser refinada com mais foco, pois já se conhece parte do campo. É possível que surja a necessidade de novas entrevistas ou intervenções no campo, visto que na hora de observar as categorias é bastante provável que apareçam lacunas descobertas.

Codificação teórica: neste momento devemos buscar a core category. A core category é a ponta da pirâmide, é a categoria central, o conceito-chave. A ela todas as outras categorias devem estar ligadas. “A categoria central deve ser como o sol em relação aos planetas” (CORBIN; STRAUSS, 1990, p. 124, tradu-ção livre feita pela autora). É ela que iluminará todo o processo e que brilhará com a nova teoria, pois é pela core category que deve nascer a teoria que estávamos buscando.

Ela “é o resultado de uma GT, e não é raro que esse conceito seja utilizado como título do relatório de pesquisa que será elaborado a seguir […]. Encontrar e aprofundar a (ou as) core category (ies) é o objetivo da codificação teórica, a fase de codificação que se desenvolve no nível máximo de abstração conceitual” (TAROZZI, 2011, p. 140).

Depois de definida esta categoria central chega o momento de refazer as perguntas de pesquisa e retornar seletivamente aos dados. A intenção aqui

19 Codificação axial é o segundo momento. Depois de criadas as categorias, passa-se a relacioná-las, comparando os dados e observando as relações.

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é montar um único modelo20 que explique todo o processo teórico. Segundo Glaser (1978), é preciso integrar as categorias dando atenção às seguintes questões: causa, contextos, contingência, consequ-ências, covariáveis e condições. Esse modelo de es-trutura era defendido com bastante rigidez pelo au-tor, quando de sua publicação, mas o entendimento atual é que são pistas que darão um bom sustento para esta etapa, sendo possível trabalhar também com outras questões.

Saturação: o critério para deixar de retornar ao campo é a saturação teórica. Podemos dizer que a categoria chegou à saturação quando, ao retornar ao campo, colhemos respostas similares às obtidas anteriormente. “Quando os dados se tornam redun-dantes, no sentido de que, para qualquer direção que se prossiga na coleta de dados confirmem-se constantemente aquelas mesmas categorias” (TARO-ZZI, 2011, p. 152), chegamos à sua saturação. “Ao ver casos semelhantes repetidamente, o pesquisador ganha a confiança de que uma categoria está sa-turada. Quando uma categoria está saturada, nada resta senão ir para outras categorias e tentar saturá--las também” (GLASER; STRAUSS, 1965 p. 65, tradução livre da autora).

É importante que se façam novas idas a campo e que se busque a saturação de cada uma das ca-tegorias. Isso garantirá que não seja feita a defesa de uma ocorrência esporádica, mas, sim, que se crie

20 Es te modelo pode e deve ser montado em forma de diagramas. Nesse diagrama as categorias devem aparecer desde a base até a ponta da pirâmide.

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uma teoria sólida com base em diversas incidências comuns.

Memorandos (Memos): é a base sólida do pro-cesso da pesquisa. Entram aqui as observações de campo escritas durante todos os processos, desde as primeiras ideias da pesquisa, passando pelas obser-vações, insights do pesquisador, percepções sobre as entrevistas até o acompanhamento da análise do corpo de dados. É o diário de campo do pesquisador. “Os memorandos são instrumentos de reflexões que acompanham, apoiam, e guiam a emersão da teoria em todas as suas fases, da coleta de dados até a codificação teórica” (TAROZZI, 2011, p. 155).

Eles são úteis para registrar as escolhas meto-dológicas e garantir o acompanhamento de todo o processo. São parte fundamental para demonstrar a credibilidade da pesquisa e auxiliar diretamente na elaboração do texto final. Neles também podem entrar os preconceitos do pesquisador. É importante escrever memorandos regularmente. Os diagramas também podem e devem integrar os memorandos. “O autor pode encontrar áreas de aderência, incom-patibilidades ou complementaridade entre os con-ceitos e relações incluídos na teoria desenvolvida em sua área substantiva e os aportes de outros teóricos” (ARAÚJO; ESTRAMIANA, 2011, p. 391).

Começam com as anotações das observações e terminam com “anotações teóricas, que estão refle-tidas na discussão de como os códigos, conceitos e categorias relacionam-se com a literatura. Esses me-mos, enquanto discussões teóricas, vão auxiliar, ao final, na emergência da teoria” (FRAGOSO; RECUERO; AMARAL, 2013, p. 94).

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Segundo Corbin e Strauss (1990), podem existir três tipos de memorandos. Os memorandos de códi-go, os memorandos teóricos e as notas operacionais. Os memorandos de código referem-se à codificação aberta e devem concentrar-se na rotulagem das ca-tegorias e etiquetas; os memorandos teóricos dedi-cam-se às indicações do processo e estão ligados às codificações focalizadas: axial e seletiva; por fim, os memorandos operacionais devem conter instruções relativas ao projeto de pesquisa em evolução (diário de campo).

Escrita de uma GT – a Teoria Fundamentada (nos ou em) dados: é a fase final. Neste momento de-vemos elaborar o texto a ser apresentado (seja ele uma tese, um artigo científico, um livro, um relatório para uma agência de fomento…). Diferentemente de outras formas de pesquisa, na GT chegamos a este momento com uma grande quantidade de material já organizado. O processo de escrever a GT é basi-camente uma revisão dos memorandos mais apro-fundados, dos diagramas com as categorias (e core category) e um confronto com bases bibliográficas teóricas de outros pesquisadores.

É este o momento do estudo da bibliografia, no intuito de agregar argumentos igualmente sólidos para a nova teoria que vai emergir do campo. O importante aqui é perceber o diferencial da GT. Os textos não contarão somente com extratos de entre-vistas, utilizados para legitimar ideias, como comu-mente ocorre em outros tipos de pesquisa qualitativa, mas, sim, contarão com toda a construção feita até aqui. As entrevistas aparecerão somente se tiverem um conteúdo realmente emblemático, caso contrá-

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rio, a prioridade será para a apresentação da nova teoria em confronto com as referências bibliográficas.

Considerações finaisAdotar a GT é se permitir construir ciência a partir

do desejo de explorar, em sua complexidade, uma área ou objeto empírico desconhecido, sem se restrin-gir a poucas variáveis ou a uma pergunta de pesquisa preestabelecida. Ela é uma metodologia que propõe ir a campo sem uma hipótese fixa preliminar.

O que se tentou com este artigo foi, de modo prático, elucidar de que forma a GT pode ser utiliza-da para as pesquisas ligadas às mídias digitais. En-tendemos a Grounded Theory como uma alternativa sólida e rigorosa para os estudos qualitativos, e com possibilidade de alguma base também quantitativa, ligados à área da comunicação.

Vale salientar que, embora aqui a descrição do processo tenha sido feita em sete passos subsequen-tes, no fazer prático da GT o mesmo não ocorre, pois tal processo deve ser circular. É possível que, ao mes-mo tempo em que estejamos na criação de cate-gorias, seja preciso retomar o passo da codificação aberta ou até mesmo retornar ao campo. É justamen-te por isso que é possível chegarmos à saturação. E é a saturação a grande responsável pela solidez dos resultados obtidos pela GT.

Uma questão comumente levantada por quem estuda as mídias digitais é a validade das análises, visto que focamos em fenômenos que podem ser bas-tante passageiros. Para esse ponto também é possível encontrar amparo na GT. O entendimento é que a realidade empírica pode mudar, mas nem por isso a teoria criada deixará de ter seu valor. Atualizar a

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teoria, com novas pesquisas não tira o mérito do tra-balho realizado, apenas renova a necessidade de mais estudos e retornos ao campo.

Por fim, vale salientar que, apesar de em todo texto termos feito uma descrição sistemática de como deve ocorrer a pesquisa completa com o uso da GT, é também possível utilizarmos os conhecimentos da Grounded Theory apenas para fazer uma análise de material empírico. Mas somente poderemos afirmar que houve uma Teoria Fundada – ou Teoria Funda-mentada nos (ou em) Dados – se houver a criação de uma nova teoria. Essa nova teoria tem que emergir, obrigatoriamente, da análise das categorias codifi-cadas em confronto com os memorandos e com o referencial teórico.

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DaDos Da autora

Maíra Bittencourt

Professora na Universidade Federal de Rondônia - UNIR, Doutora em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP), Mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Jornalista graduada pela Universidade Católica de Pelotas.Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/3631083032453582 E-mail: [email protected]