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Repetir nunca é repetir 1:
reflexões sobre a reprodução e o plágio de obras de arquitectura
Cláudia Trabuco*
ABSTRACT
The present article deals with the protection of works of architecture within the
Portuguese Copyright legal regime. Contrary to what happens in other national laws, the
Portuguese Copyright Law expressly includes not only projects, drawings and models
but also the edified architectural works. The author defends that these are both forms of
expression of the work of architecture, which means that its protection begins with the
exteriorization of the essential elements of the work, which can happen even in the
phase of the project. The article then explores the concept of originality in architectural
works, considering both that these works convey both art and technique. The protection
of the work of architecture demands the presence of a creative and original artistic
expression, which should be measured in casu and attending to its intimate relationship
with the space where the work is built.
Departing from this concept, the article explores the notion of reproduction within the
context of the author’s exploitation rights, considering both homogenous and
heterogeneous reproductions. It is considered defensible a legal concept of reproduction,
including bidimensional and tridimensional copies of the essential elements of the work
of architecture. As for the importance of originality for the identification of a crime of
plagiarism, the article analysis the peculiarities of this conduct as far as works of
architecture are concerned, taking into account the importance of the influence
exercised by prior works upon the creation of the architect and the insertion of these
works in styles and art movements.
* Doutora em Direito. Professora da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. Correio
electrónico: [email protected]
1 ÁLVARO SIZA, Imaginar a evidência (tradução do original Immaginare l’evidenza, por Soares da
Costa), Edições 70, Lisboa, 1998, pág. 15.
2
KEYWORDS: Copyright. Architecture. Exploitation rights of the architect. Public
utility versus private interest. Plagiarism.
SUMÁRIO
1. Conceito de obra de arquitectura; 2. Protecção das obras de arquitectura pelo direito
de autor; 3. A originalidade na arquitectura; 4. A reprodução de obras de arquitectura;
4.1 Reprodução homogénea e heterogénea; 4.2 Reproduções fotográficas e limites ao
direito de reprodução; 5. O plágio.
1. “De um traço nasce a arquitectura”. Assim se referia Oscar Niemeyer ao trabalho de
concepção do arquitecto, acrescentando, de uma forma exemplar porque expressiva, que
“quando ele é bonito e cria surpresa, ela pode atingir, sendo bem conduzida, o nível
superior de uma obra de arte”2.
A definição do que seja a arquitectura não é clara, sendo uma das questões a que se
dedicam desde há muito os teóricos desta arte, concluindo pela “incerteza conceptual” e
pela inutilidade de uma definição esquemática, que consideram redutora3.
São muitas e muito diversas as definições de arquitectura postuladas pelos autores da
literatura antiga e moderna neste domínio, variando entre interpretações culturais,
funcionalistas e tecnicistas, formalistas e espaciais do conceito, consoante confiram
maior relevo à relação da arquitectura com a sensibilidade dos povos (pois que cada
época imprime um carácter específico à sua arquitectura), à intenção prática do edifício,
dos materiais e dos métodos construtivos, às leis determinantes da expressão
arquitectónica (em que se incluem as referências à ordem, à harmonia, às proporções e à
2 In Conversa de arquitecto, 5.ª ed. (a partir da edição original de 1993, Editora Revan, Rio de Janeiro),
Campo das Letras, Porto, 2001, pág. 9. Porque é absolutamente devido, não posso deixar de expressar o
meu agradecimento ao Arquitecto António Alfarroba que, para além de ter feito várias críticas ao texto,
me abriu os olhos para muitos dos traços deste mundo.
3 Uma das reflexões mais claras, sobretudo para um leigo na matéria, sobre a historiografia arquitectónica
e, nesse quadro, sobre a definição da arquitectura parece-me pertencer a BRUNO ZEVI, Architectura in
Nuce – Uma definição de arquitectura (tradução do original Architectura in Nuce, 1979), Edições 70,
Lisboa, 1996, pág. 21 e seguintes. Entre nós, com interesse por pretender justamente responder ao desafio
de formulação de um conceito de arquitectura e por, nesse processo, sintetizar a “multiplicidade de
opiniões e doutrinas” sobre o fenómeno, veja-se MARIA JOÃO MADEIRA RODRIGUES, O que é
arquitectura, Lisboa, Quimera, 2002, págs. 7-19.
3
geometria dos edifícios), ou, finalmente, ao conceito de espaço como factor distintivo,
pelo que a arquitectura seria a arte do espaço e o arquitecto um modelador de espaços4.
Ainda assim, tornou-se frequente a utilização em ensaios teóricos e textos de história da
arquitectura da tríade de condições de boa arquitectura expostas no século I a.c. por
Vitrúvio no seu tratado De Architectura: a firmitas, a utilitas e a venustas, ou seja, os
aspectos técnicos, utilitários ou funcionais e estéticos ou artísticos da arquitectura5.
A obra de arquitectura é, pois, o resultado desta arte ou saber fazer e da acção criadora
do arquitecto. Esta distingue-a da mera edificação ou construção, que se esgota num
propósito funcional e prático, porque lhe acrescenta a intenção artística6.
2. Não encontramos no Direito de Autor português qualquer definição de obra
arquitectónica, à semelhança do que sucede, por exemplo, no direito estadunidense, que
a define como “desenho de um edifício tal como incorporado num meio tangível de
expressão, incluindo o edifício, os projectos de arquitectura ou desenhos. A obra inclui
a forma no seu conjunto bem como o arranjo e composição de espaços e elementos no
desenho, mas não inclui elementos individuais estandardizados”7.
Contudo, na enumeração exemplificativa a que se dedica, o n.º 1 do artigo 2.º do Código
de Direito de Autor e Direitos Conexos português (CDADC) considera que são obras
protegidas, na medida em que preencham os requisitos previstos no artigo 1.º do mesmo
Código, quer as “obras de desenho, tapeçaria, pintura, escultura cerâmica, azulejo,
gravura, litografia ou arquitectura” (alínea g)), quer os “projectos, esboços e obras
4 O esquema de classificação das principais definições de arquitectura é proposto por BRUNO ZEVI,
Architectura in Nuce…, cit., págs. 25-49, que caracteriza criticamente as ideias sustentadas por cada um
dos quatro grupos de definições a cuja distinção procede.
5 Cfr. a explicação das três partes da arquitectura (De partibus architecturae), in VITRUVE, Les dix
livres d’architecture (tradução do original por Claude Perrault), Balland, Paris, 1979, págs. 33-34. Para
uma tradução do tratado para português, vide VITRÚVIO, Tratado de Arquitectura (tradução por Manuel
Justino Maciel), 2.ª ed., ISTPress, Lisboa, 2006.
6 Nas palavras de LE CORBUSIER, Vers une architecture (a partir do original de 1923), Flammarion,
Paris, 1995, pág. 123, “[o]n met en œuvre de la pierre, du bois, du ciment; on en fait des maisons, des
palais ; c’est de la construction. L’ingéniosité travaille. Mais, tout à coup, vous me prenez au cœur, voues
me faites du bien, je suis heureux, je dis: c’est beau. Voilà l’architecture. L’art est ici”.
7 Secção 101 do Copyright Act: “An “architectural work” is the design of a building as embodied in any
tangible medium of expression, including a building, architectural plans, or drawings. The work includes
the overall form as well as the arrangement and composition of spaces and elements in the design, but
does not include individual standard features”.
4
plásticas, respeitantes à arquitectura, ao urbanismo, à geografia ou às outras ciências”
(alínea l))8.
Contrariamente ao que sucede noutros ordenamentos jurídicos, a lei autoral portuguesa
torna claro que são objecto de protecção no Direito de Autor tanto os planos, projectos,
desenhos e maquetas quanto a obra de arquitectura edificada9. Segue-se, assim, de
muito perto, a previsão do n.º 1 do artigo 2.º da Convenção de Berna de 1886, na versão
resultante da revisão operada pelo Acto de Paris de 1971, que sustenta também uma
dupla protecção, tanto das obras de arquitectura como dos “planos, esboços e obras
plásticas relativos à geografia, à topografia, à arquitectura ou às ciências”10
.
A protecção das obras de arquitectura, como sucede em relação às demais obras, inicia-
se com a exteriorização, ou seja, com a objectivação de uma ideia de uma forma
perceptível pelos sentidos humanos, ainda que não necessariamente tangível11
.
Esta forma perceptível sensorialmente é apelidada por alguma doutrina “forma
sensível”, distinguindo-a porém da matéria que lhe serve de suporte, ou seja, das coisas
materiais em que apareça incorporada e sirvam de veículo à sua apreensão pelos
sentidos. Assim, os suportes materiais podem ser múltiplos, sem que isso prejudique a
unidade daquela forma sensível. Para tanto basta, pois, que exista uma conexão estável
entre os suportes múltiplos que assegure a unidade da obra que naqueles é incorporada.
8 Realces meus.
9 É distinto, por exemplo, o caso espanhol, em cuja lei aparecem expressamente referidos tão-somente
“[l]os proyectos, planos, maquetas y diseños de obras arquitectónicas y de ingeniería” (artigo 10.º, 1, f)),
muito embora a doutrina tenha procurado sempre ampliar a protecção para abranger a obra arquitectónica
“terminada”, e isto, não apenas por um argumento “por maioria de razão” (na medida em que, se é
protegido o mero projecto, mais ainda o deverá ser a obra concluída), mas também o artigo 10.º da Ley de
Propiedad Intelectual , na versão resultante do Real Decreto Legislativo 1/1996, de 12 de Abril, que
aprovou o Texto Refundido de Ley de Propiedad Intelectual, reveste um carácter exemplificativo, e ainda
porque se poderia eventualmente equiparar a obra de arquitectura, na fase de construção, a uma obra de
arte plástica. Assim, comentando a referida alínea f), RODRIGO BERCOVITZ RODRÍGUEZ-CANO,
Comentarios a la Ley de Propiedad Intelectual, 2.ª ed., Tecnos, Madrid, 1997, págs. 186-187. Para a
compreensão do modo como a doutrina espanhola tem procurado lidar com o problema desde o momento
de aprovação da lei em causa, JORGE ORTEGA DOMÉNECH, Arquitectura y derecho de autor, Reus,
Madrid, 2005, págs. 34-50.
10 Sobre o processo de previsão das duas vertentes no texto da Convenção de Berna e as discussões que a
precederam, leia-se SAM RICKETSON, The Berne Convention for the Protection of Literary and Artistic
Works: 1886-1986, Centre for Commercial Law Studies, Queen Mary College - University of London,
London, 1987, págs. 254-255.
11 PHILIPPE GAUDRAT, Réflexions sur la forme des œuvres de l’esprit, in ʺPropriétés Intellectuelles,
Mélanges en l’honneur de André Françonʺ, Dalloz, Paris, 1995, págs. 201-202.
5
De acordo com a mesma doutrina, a forma sensível distingue-se de uma outra
modalidade de expressão da obra, que é designada como “forma convencional”, por se
apoiar numa convenção conhecida e compreendida por todos. Assim sucede, por
exemplo, com as obras literárias, que dependem de uma convenção linguística ou com
as partituras de música em relação às obras musicais.
Transpondo tais classificações para o contexto das obras de arquitectura, a forma
sensível corresponderia ao edifício construído propriamente dito, ao passo que seria
considerado como forma convencional o projecto desenhado pelo arquitecto.
Em todo o caso, muito embora relevantes para efeitos da compreensão do momento de
juridicização da obra, estas distinções podem facilmente ser reconduzidas ao princípio
geral segundo o qual a forma deve ser tomada em sentido amplo englobando todas as
linguagens perceptíveis pelos sentidos12
.
A forma de expressão das obras intelectuais, enquanto misto de conteúdo intelectual e
forma apreensível pelos sentidos humanos, permitindo o conhecimento dos traços
caracterizadores essenciais da criação intelectual, corresponde ao objecto de protecção
do direito de autor. Só a expressão dá, afinal, realidade às coisas incorpóreas13
.
O n.º 2 do artigo 1.º do Código do Direito de Autor exclui, inversamente, da protecção
jurídico-autoral “[a]s ideias, os processos, os sistemas, os métodos operacionais, os
conceitos, os princípios ou as descobertas”. Ao excluir os processos ou esquemas para a
acção, o Código parece, por princípio, não conceder protecção aos projectos de
realização de obras futuras ou aos estádios intermédios de realização destas obras,
mesmo no caso de estas últimas corresponderem a obras protegidas.
Assim sendo, para justificar a previsão da alínea l) do n.º 1 do artigo 2.º, tem-se entre
nós considerado, por influência da obra de Oliveira Ascensão, que a tutela específica
dos projectos de arquitectura, urbanismo, geografia e outras ciências, se tem
12
Assim, ANDRÉ LUCAS, HENRI-JACQUES LUCAS, Traité de la propriété littéraire et artistique,
2001, 2ª ed., Litec, Paris, 2001, pág. 67.
13 Parece inevitável a extensão da observação feita em 1955 por Luis Barragán a propósito da arte em
geral às obras de arquitectura. O mundo da arte contrapor-se-ia, segundo o arquitecto, ao mundo real, pois
que do primeiro, contrariamente ao que sucede com o segundo, é necessário falar para que exista.
Conclui, assim, que, em relação à arte, “[s]i no se habla de una cosa, es como si no hubiera ocurrido.
Sólo la expresión da realidad a las cosas”. LUIS BARRAGÁN, Escritos y conversaciones (edição de
Antonio Riggen Martínez), El Croquis Editorial, Madrid, 2000, pág. 44.
6
obrigatoriamente que fundar numa “valia estética” autónoma do próprio projecto,
autonomia essa que se manifestaria em relação à obra de arquitectura, em si mesma
considerada. Deste modo, no caso dos projectos de arquitectura, “[a] lei não tutela a
manifestação da obra de arquitectura,, nem o esquema para a acção, mas uma nova obra,
pela valia estética que apresente”14
.
De acordo com este entendimento, a obra de arquitectura apenas encontra o seu modo
de expressão característico na construção ou edificação. Pelo que, segundo Oliveira
Ascensão, enquanto este não houvesse sido realizado não teríamos efectivamente uma
exteriorização da obra completa, mas apenas um esquema de acção sem autonomia
jurídica15
. “É que só se pode falar de uma determinada obra quando o seu modo de
expressão característico estiver no mundo”16
.
Com o devido respeito pela opinião assim expressa, não posso concordar. Tanto o
projecto de arquitectura, sobretudo na fase dita de projecto de execução, quanto a obra
edificada são formas possíveis de expressão da obra de arquitectura. Essencial é, pois,
não a concretização da forma de expressão “característica” mas a exteriorização
suficiente dos traços caracterizadores essenciais de uma obra que, em si mesma, reúna
os requisitos imprescindíveis para poder ser protegida pelo direito de autor, o que é
dizer uma obra que seja original17
.
Aliás, é nesse sentido que mais facilmente adiro à afirmação do mesmo autor, que me
parece deixar margem para outras interpretações da relação obra edificada/projecto.
Deste modo, sendo a obra de arquitectura a “criação ideal”, que subjaz à sua
14
JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito de autor e direitos conexos, Coimbra Editora, Coimbra,
1992, pág. 73 (realce meu).
15 Contra, Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 26/2/1991, in CJ, A. XVI, T. I, p. 314 e seguintes.
Contra a posição de Oliveira Ascensão, pronuncia-se também LUIZ FRANCISCO REBELLO, Código do
Direito de Autor e dos Direitos Conexos, 2.ª ed., âncora Editora, Lisboa, 1998, comentários aos artigos 3.º
e 25.º, págs. 37 e 68, para quem os esboços e fragmentos de obras constituem já uma exteriorização
formal da concepção em que se funda a obra.
16 JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, “A protecção jurídica dos programas de computador”, in RP, A.
50, I, 1990, págs. 92-97.
17 Parece-me convincente a distinção a que procede MANUEL TAINHA, Arquitectura em questão,
AEFA-UTL, Lisboa, 1994, págs. 72-73, entre o “acto de concepção (a ficção que se hipotetisa) e o acto
de construção (prova da prática) ”, na medida em que, partindo ambos de um “acto criativo comum”, a
imagem, proporcionando um “meio particularmente económico de proceder a testes (simulados) de
prova”, reveste ainda o carácter de uma “experimentação mental, que precede necessariamente a prova
real (construção)”.
7
concretização material, “nenhuma distinção se poderia fazer entre a protecção da obra e
a protecção do projecto. Se se protege a obra de arquitectura, protege-se forçosamente o
projecto que a exterioriza”18
.
Entender de outro modo, significa admitir que a protecção das obras de arquitectura só
se inicia com a construção. Ou, noutras palavras, que obras de arquitectura são, apenas,
os edifícios, entendidos de modo amplo.
Parece-me, outrossim, que a criação do arquitecto adquire exteriorização suficiente com
a fixação das ideias num desenho arquitectónico ou na produção de um modelo ou
maqueta19
. A protecção do projecto representa, pois, a protecção de um estádio
intermédio da obra, que saiu já da etapa de mera ideia e adquiriu uma expressão criativa
individual.
Assim, em lugar de este ser uma “obra nova”, entre o projecto e a obra edificada existe,
afinal, uma continuidade ou ciclo criativo, que se inicia com uma fase de desenho mais
elementar, e que se vai desenvolvendo ao longo das etapas de estudo prévio, projecto
base e projecto de execução, “só se esgota na observação comentada (crítica) dos
objectos construídos e em uso: esta é a sua prova de fogo”20
21
.
18
JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito de autor…, cit., págs. 72-73.
19 Assim também JORGE ORTEGA DOMÉNECH, Arquitectura…, cit., pág. 55.
20 MANUEL TAINHA, Arquitectura em questão, cit., pág. 73. No âmbito deste ciclo, “o desenho
arquitectónico jamais representa o que «lá está»; ele apenas sugere o que «lá poderá estar»”, segundo um
sistema de referências dirigidas à nossa experiência anterior do espaço”.
21 As “Instruções para o cálculo de honorários referentes aos projectos de obras públicas”, aprovadas por
Portaria de 7 de Fevereiro de 1972, publicada no suplemento ao Diário do Governo, II série, n.º 35, de 11
de Fevereiro de 1972, alterada por Portaria de 22 de Novembro de 1974, publicada no Diário do Governo
II série, n.º 2, de 3 de Janeiro de 1975, e por Portaria de 27, de Janeiro de 1986, publicada no DR II série,
n.º 53, de 5 de Março de 1986, contêm, nas alíneas n), o) e p) do artigo 1.º, definições das fases de estudo
prévio (correspondente ao “documento elaborado pelo autor do projecto, depois da aprovação do
programa base visando o desenvolvimento da solução programada, essencialmente no que respeita à
concepção geral da obra”), anteprojecto ou projecto base (“desenvolvimento, pelo autor do projecto, do
estudo prévio aprovado pelo dono da obra, destinado a esclarecer os aspectos da solução proposta que
possam dar lugar a dúvidas, a apresentar com maior grau de pormenor alternativas de soluções difíceis de
definir no estudo prévio e, de um modo geral, a assentar em definitivo as bases a que deve obedecer a
continuação do estudo sob a forma de projecto de execução”) e projecto ou projecto de execução
(“documento elaborado pelo autor do projecto, a partir do estudo prévio ou do anteprojecto aprovado pelo
dono da obra, destinado a constituir, juntamente com o programa de concurso e o caderno de encargos, o
processo a apresentar a concurso para adjudicação da empreitada ou do fornecimento e a facultar todos os
elementos necessários à boa execução dos trabalhos”).
8
O guião para a obra, representado pelo projecto de arquitectura, pode conceder uma
maior ou menor margem para a interpretação a ser realizada na execução da obra. No
entanto, essa continuidade não se quebra, tal como, noutro ciclo criativo, a partitura,
muito embora determinando o seu resultado, deixa espaço de interpretação àquele que
executa ou interpreta uma composição musical.
3. No Direito de Autor, a criação é tida como facto constitutivo do direito de autor,
muito embora o quantum necessário para o reconhecimento do carácter criativo de uma
obra seja difícil de aferir em abstracto22
. A originalidade, como requisito essencial à
protecção das obras, deve ser apreciada casuisticamente, podendo, em alguns casos ser
limitada a um “nível mínimo de criatividade ou originalidade”23
.
Com efeito, apesar de tradicionalmente se exigir a individualidade ou a personalidade
como condição de protecção da obra intelectual, a tendência para uma certa
“banalização” do direito de autor tem conduzido a que seja cada vez mais reduzido o
número de obras em que se procuram traços da personalidade do autor e se haja
generalizado a exigência de que seja possível reconhecer nas obras, positivamente,
apenas um mínimo de criação. Assim, no ordenamento português, como de resto na
maioria dos outros sistemas, “a busca da individualidade atinge um patamar mínimo”24
.
A doutrina apela, pois, a uma necessidade de redefinição do conceito de originalidade,
entendido ora como “conceito de imputação subjectivo”, pois que “[a]penas quando a
obra satisfaz o requisito da originalidade podemos dizer que a obra emana de um
determinado autor”25
. Deste modo, a originalidade aparece como resultado de uma
actividade criativa do autor, exigindo apenas que “a obra tenha origem no autor, ou seja,
22
Cfr. o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14/12/1995, in CJ, A. XX, T. II, pág. 109 e seguintes.
Considerando que no requisito de originalidade da obra está implícita a individualidade desta, como
“marca pessoal dum autor”, leiam-se os acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 22/1/2002 (in
CJ, A. XXVII, T. I, pág. 21 e seguintes) e do Tribunal da Relação do Porto de 8/7/2004 (Proc. n.º
0442253, in URL:http://www.dgsi.pt).
23 JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito de Autor…, cit., pág. 88.
24 Idem, pág. 90.
25 MARIA VICTÓRIA ROCHA, A originalidade como requisito de protecção do Direito de Autor -
algumas reflexões, Junho de 2003, pág. 28, in URL:http://www.verbojuridico.net.
9
que não seja meramente banal ou resultado necessário de uma técnica ou método, ou
ainda de uma actividade puramente mecânica”. Para que a obra seja protegida, “[b]asta
que alguém desenvolva uma actividade criativa independente, ou seja, que intervenha
com a sua imaginação no processo lógico de realização da obra, para que a obra seja
original, uma vez que o resultado obtido é necessariamente pessoal, individualizado”26
.
No caso das obras de arquitectura, o problema da originalidade reveste-se de contornos
semelhantes aos que assumiu a propósito do tratamento das obras de arte aplicada em
geral27
, tornando-se aqui sobremaneira relevante ter presente a convivência, na
arquitectura, entre arte e técnica28
.
Para a compreensão da criatividade na obra de arquitectura, torna-se necessário tomar
aqui a devida distância em relação às obras de arte plástica. Ainda que, com Le
Corbusier, seja imprescindível considerar a arquitectura como “coisa de plástica” no
sentido de coisa “que se vê e que se mede com os olhos”29
, do ponto de vista jurídico o
valor artístico da obra é incindível de outros elementos, resultando a criação num “facto
26
Idem, p. 37.
27 De acordo com MARIA VICTÓRIA ROCHA, as obras de arquitectura são, ainda, obras de arte
aplicada, no sentido de “obras utilitárias”. Cfr. Modificações da obra de arquitectura: o regime do artigo
60º do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos, 2004, pág. 3, in www.apdi.pt. Publicado
como “Modificações na obra de arquitectura: regime do artigo 60.º do Código do Direito de Autor e dos
Direitos Conexos – anotação ao acórdão do TRC de 25.3.2003, Rec. 4240/02”, in Cadernos de Direito
Privado, n.º 6, pág. 54 e seguintes.
28 Como explica RAPHAEL WINICK, esta natureza, aliada à fundamentação do direito autoral nos
termos da constituição estadunidense como instrumento da promoção “do progresso das ciências e das
artes úteis” através da concessão de monopólios legais limitados, esteve na origem da recusa durante
muito tempo em tal ordenamento de protecção das obras arquitectónicas. Apenas a adesão à Convenção
de Berna nos anos 80 do século XX forçaram o direito estadunidense a ultrapassar este carácter
exclusivamente utilitário conferido às obras de arquitectura e a concepção segundo a qual o progresso e a
criatividade seriam entravados pela sua protecção. Cfr. “Copyright protection for architecture after the
Architectural Works Copyright Protection Act o f 1990”, in Duke Law Journal, n. 41, 1992, págs. 1601-
1602.
29 LE CORBUSIER, Vers une architecture, cit., pág. 175 : “L’architecture, c’est quand il y a émotion
poétique. L’architecture est chose de plastique. La plastique, c’est ce qu’on voit et ce qu’on mesure par
les yeux”. Esta afirmação serve a Le Corbusier para distinguir a arquitectura da mera construção, de
forma a não “rebaixar” a primeira “à ses causes utilitaires”. A distinção faz-se, em rigor, por via daquilo
a que o arquitecto chama “modénature”, que aproxima a arquitectura da obra de arte plástica. “La
modénature est la pierre de touche de l’architecte. Celui-ci se révèle artiste ou simplement ingénieur. La
modénature est libre de toute contrainte. Il ne s’agit plus ni d’usages, ni de traditions, ni de procédés
constructifs, ni d’adaptations à des besoins utilitaires. La modénature est une pure création de l’esprit :
elle appelle le plasticien” (pág. 163).
10
unitário em si mesmo, expressando-se através de uma estreita combinação de elementos
técnicos, estéticos e utilitários”30
.
Dada esta sua particular natureza, o problema da originalidade coloca-se, no que
respeita às obras de arquitectura, com especial acuidade. Aliás, encontramos um
sintoma dessa especial relevância na leitura de várias decisões da jurisprudência dos
tribunais franceses, em que se nota uma tendência para se formular uma exigência de
prova de originalidade da obra pelo próprio arquitecto, ao contrário daquele que seria o
resultado natural do funcionamento do ónus da prova, ou seja, a demonstração da falta
de originalidade por aquele que alicerça a sua posição na denegação da mesma31
.
A respeito das obras literárias e artísticas, afirma-se, e bem, que “[n]ão há criatividade,
que é essencial à existência de obra tutelável, quando a expressão representa apenas a
via única de manifestar a ideia”32
. Ora, isso torna-se particularmente visível nas obras
de arquitectura nos casos em que a forma é exclusivamente determinada pela função.
No direito francês, André Lucas e Henri-Jacques Lucas procuram assegurar que, uma
vez que a arquitectura é simultaneamente arte e técnica, apenas os projectos que
ultrapassem um carácter meramente técnico e em relação aos quais seja possível divisar
alguma originalidade se poderão encontrar sob a tutela do direito de autor. O mesmo
não sucederá, naturalmente, com todos aqueles projectos que não sejam mais que o
simples resultado de um cálculo de especialidades de engenharia, como acontece, na
maioria dos casos, com os cálculos de estruturas ou de instalações técnicas inerentes ao
uso dos edifícios33
.
30
JORGE ORTEGA DOMÉNECH, Arquitectura…, cit., págs. 102-103: “Sin embargo, en el campo de la
arquitectura nos encontramos con la creación en un hecho unitario en sí mismo, expresándose a través
de una estrecha combinación de elementos técnicos, estéticos y utilitarios”.
31 Resumindo o essencial de algumas decisões francesas e revelando a sua preocupação pela tendência
que extrai das mesmas, MICHEL HUET, L’architecte auteur, Editions Le Moniteur, Paris, 2006, págs.
32-33.
32 JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito de Autor…, cit., pág. 74.
33ANDRÉ LUCAS, HENRI-JACQUES LUCAS, Traité…, cit., pág. 122. No mesmo sentido, CLAUDE
COLOMBET, Propriété littéraire et artistique et droits voisins, 9ª ed., Dalloz, Paris, 1999, págs. 67-68.
Aparentemente em contraste, o artigo 99 da lei autoral italiana (Legge 22 aprile 1941 n. 633, Protezione
del diritto d'autore e di altri diritti connessi al suo esercizio), confere protecção jurídica aos projectos de
engenharia nos seguintes termos: “All'autore di progetti di lavori di ingegneria, o di altri lavori analoghi,
che costituiscano soluzioni originali di problemi tecnici, compete, oltre al diritto esclusivo di
riproduzione dei piani e disegni dei progetti medesimi, il diritto ad un equo compenso a carico di coloro
che realizzino il progetto tecnico a scopo di lucro senza il suo consenso” (realce meu). Considerando,
11
É indiscutível que são necessariamente muitos e de vária ordem os limites e restrições
impostos à liberdade criativa do arquitecto (determinados por exigências legais, sociais,
económicas, humanas, e técnicas ou funcionais, e pelas necessidades do cliente), sendo
certo até que, em muitos casos, estas exigências e necessidades são susceptíveis de
dificultar o aparecimento da própria ideia arquitectónica e o respectivo
desenvolvimento34
.
Contudo, é essencial que exista um verdadeiro espaço de liberdade para a criação,
mesmo nos casos em que a forma resolva uma questão utilitária. Como afirma, no
direito espanhol, Bercovitz, retomando ideias já anteriormente defendidas, no direito
italiano, por Greco e Vercellone, “a forma arquitectónica ou na construção (engenharia)
pode ser objecto do direito de autor, ainda que resolva um problema técnico, sempre que
o problema se resolva de uma maneira não original, se a originalidade está unicamente
na forma, ou mesmo que resolva de modo original um problema técnico (a originalidade
está na forma em relação com a dita solução técnica), sempre que a forma adoptada não
seja a única possível para esse resultado técnico (que possa ser alcançado por outras
vias)”35
.
Numa aproximação moderna à arquitectura e ao urbanismo, tem vindo, no entanto, a ser
construída uma identificação mais ampla do objecto de protecção, que ultrapassa de
algum modo a fronteira tradicionalmente demarcada pelo conceito de “forma de
expressão”. Sendo certo que as ideias, os conceitos e os métodos se encontram
excluídos do campo da protecção pelo direito de autor, tem vindo a ensaiar-se um
caminho no sentido da protecção do conceito arquitectónico e da escolha de soluções
porém, que este preceito dever ser interpretado no sentido da introdução de “un mínimo de originalidad
para establecer la proteción de los planos de ingeniería por el derecho de autor”, JORGE ORTEGA
DOMÉNECH, Arquitectura…, cit., pág. 112.
34 Por este motivo, afirmava Alvar Aalto que a arquitectura exige mais tempo do que qualquer outro
trabalho criativo. Cfr. A truta e a corrente (a partir da publicação original in Domus, 1947), in “Alvar
Aalto – Catálogo da exposição da Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 18 de Janeiro/6 de Março de
1983”, Lisboa, 1983, pág. 26.
35 RODRIGO BERCOVITZ RODRÍGUEZ-CANO, Comentarios…, cit., pág. 186: “La forma
arquitectónica o en la construcción (ingeniería) puede ser objeto del derecho de autor, aunque resuelva
un problema técnico, siempre que el problema se resuelva de una manera no original, si la originalidad
está únicamente en la forma, o aunque resuelva de modo original un problema técnico (la originalidad
está en la forma en relación con dicha solución técnica), siempre que la forma adoptada no sea la única
posible para ese resultado técnico (que se pueda alcanzar por otras vías)”.
12
originais, com algum acolhimento em alguma jurisprudência e doutrina francesas. Esta
via alicerça-se no reconhecimento de que “em arquitectura, é um facto que desde há
uma década, o que se pede aos arquitectos cada vez com maior frequência, não é tanto
que concebam um projeco e/ou um edifício original quanto à sua forma, mas dar-lhe um
sentido através de um método e de um conceito que, em si mesmos, devem ser
originais”36
.
Não é protegida pelo direito de autor a obra banal, o que, não implicando qualquer
apreciação de mérito, significa apenas que se deixam de fora os trabalhos que sejam de
tal modo comuns que não poderiam ser atribuíveis a um determinado criador intelectual.
Tem, pois, vindo a generalizar-se, mesmo fora das fronteiras dos sistemas de common
law, a visão segundo a qual “a originalidade existe sempre que a obra seja produto de
uma actividade independente, de um trabalho pessoal do autor”37
.
Na comparação entre a arquitectura e as demais criações artísticas, foi já afirmado que o
estado de espírito subjacente à concepção artística apenas difere quanto à finalidade,
pois que, se é verdade que qualquer forma de arte é, em si mesma, o resultado de um
processo de cristalização, apreensível pelos sentidos, no caso das obras de arquitectura
existe um carácter utilitário que deverá necessariamente ser tido em conta.
No direito estadunidense, o reconhecimento do carácter funcional das obras de
arquitectura conduziu à construção de um “teste de funcionalidade”, que corresponde a
uma adaptação do teste dito da “separabilidade” habitualmente utilizado para as obras
pictóricas, gráficas ou escultóricas, por forma a separar os elementos protegidos nestes
tipos de obras dos aspectos utilitários e, por isso, não tutelados, ao caso das obras de
arquitectura. Aquando da fundamentação do Architectural Works Copyright Protection
36
Assim, MICHEL HUET, Architecture et urbain saisis par le droit d’ auteur en France, in RIDA, 212,
2007, pág. 17 : “En architecture il est un fait que depuis une dizaine d’années, ce qui est demandé de plus
en plus aux architectes, ce n’est tant de concevoir un projet et/ou un bâtiment original quant à sa forme
mais de donner un sens à travers une méthode et un concept qui, en soi, doivent être originaux ! ” (realce
meu). Para ilustrar esta teoria, Michel Huet refere-se a um projecto não construído do arquitecto Jean
Nouvel, relativo ao Gran Stade de France, cuja originalidade residia principalmente – ainda que,
acrescento, não exclusivamente – na total mobilidade dos elementos do estádio, que facilmente poderia
assumir capacidade para 80 000, 60 000, 40 000 ou 25 000 espectadores, consoante a utilização
pretendida para o espaço. Para uma melhor compreensão dos contornos do projecto, cfr. o número
especial sobre as obras de Jean Nouvel entre 1994 e 2002, in El Croquis, 112/113, 2002, pág. 70.
37 MARIA VICTÓRIA ROCHA, Modificações da obra de arquitectura…, cit., pág. 2.
13
Act de 1990, o Congresso americano considerou que tal teste não deveria ser aplicado
em relação às obras de arquitectura para determinar a respectiva originalidade38
.
Propunha-se, pois, que a obra arquitectónica fosse observada para determinar se o
respectivo desenho poderia ser considerado original, incluindo a forma no seu conjunto
e a arquitectura interior. No caso afirmativo, e num segundo momento deste teste, seria
examinado se os elementos de desenho em causa seriam determinados pela respectiva
função, caso em que a obra não seria tutelável. Apenas se o desenho não fosse
funcionalmente imposto se poderia considerar que a obra, no seu conjunto, e sem
necessidade de proceder a qualquer separação física ou conceptual, poderia lograr
protecção pelo direito de autor, interessando para tanto a identificação de uma forma
que no seu conjunto fosse esteticamente original39
.
O conceito de espaço encerra um factor distintivo da arquitectura, que tem como
característica essencial a de “preparar ambientes, de encerrar espaços adaptados à visa
dos seres humanos”40
. Para além disso, a própria experiência estética da arte
arquitectónica resulta da vivência do espaço, que a distingue das outras artes
figurativas41
.
Essencial parece ser, pois, para a protecção da obra arquitectónica, que seja possível
identificar uma expressão artística criativa ou original, o que, pela sua natureza, haverá
que aferir-se na relação harmónica da obra com o espaço, transpondo, pois, as fronteiras
da sua própria forma42
. Em suma, será objecto de observação o modo “como cada
38
H.R. Rep. No. 735, 101st Congress, 2
nd Session, 19-20 (1990), reimpr. in United States Code
Congressional and Administrative News, 1990.
39 Sobre o teste em causa, leia-se LOUIS ALTMAN, “Copyright on Architectural Works”, in IDEA: The
Journal of Law and Technology, 1992, pág. 5, n. 49 (disponível in http://www.idea.piercelaw.edu/
articles/33/ 33_1/p1.altman.pdf).
40 BRUNO ZEVI, Architectura in Nuce…, cit., pág. 42.
41 Defendendo de modo veemente esta relação com o espaço, defende Niemeyer que “o «espaço
arquitectural» é a própria arquitectura, e, para realizá-la, nele interferimos externa e internamente,
integrando-a na paisagem e nos seus interiores, como duas coisas que nascem juntas e harmoniosamente
se completam”. Conversa de arquitecto, cit., pág. 19.
42Parece-me ser esta a conclusão de JORGE ORTEGA DOMÉNECH, Arquitectura…, cit., pág. 122, à
qual adiro.
14
arquitecto, em cada imagem poeticamente verdadeira, criará um espaço único e
irrepetível”43
.
4. O objecto do direito de autor, a obra literária e artística, caracteriza-se pela
conjugação de dois factores fundamentais: por um lado, a susceptibilidade de repetição
e de reinscrição e, por outro, a possibilidade de identificação da obra em cada exemplar
independentemente dos formatos que aquela venha a assumir. Sendo um bem
incorpóreo, a obra necessita de exteriorizar-se por forma a ser perceptível pelos sentidos
humanos e poder ser comunicada aos restantes sujeitos, o que pode suceder numa forma
tangível ou intangível.
A incorporação da obra num determinado suporte material, que é condição para o
exercício do direito de reprodução, dá lugar à criação de um exemplar da mesma. O
suporte material é apenas um veículo da comunicação da obra, sem que, porém, o
exemplar ou corpus mechanicus daí resultante se confunda com a obra em si mesma
considerada. A protecção conferida pelo direito de reprodução ultrapassa, pois, a
primeira incorporação da obra num determinado suporte, alargando-se a todos os
exemplares subsequentemente fabricados.
O objecto do direito de reprodução corresponde, assim, à forma de expressão da obra,
entendida enquanto misto de conteúdo intelectual e forma sensorialmente apreensível,
susceptível de repetição em novos suportes materiais sem perda da individualidade que
a caracteriza. Deste modo, em cada exemplar da obra, enquanto veículo de comunicação
daquela, devem encontrar-se presentes os seus traços identificadores essenciais.
Definiu-se anteriormente o direito de reprodução como direito de exploração económica
das obras literárias e artísticas que reserva ao seu titular o controlo exclusivo de,
mediante a sua incorporação num qualquer suporte material, por qualquer meio e sob
qualquer forma, tornar exequível a produção de exemplares que possibilitem a terceiros
a percepção, directa ou indirecta, dos traços essenciais identificadores da obra44
.
43
BRUNO ZEVI, Architectura in Nuce…, cit., pág. 67.
44 CLÁUDIA TRABUCO, O direito de reprodução de obras literárias e artísticas no ambiente digital,
Coimbra Editora, Coimbra, 2006, passim, maxime pág. 726.
15
Animado pelo mesmo propósito de densificação do sentido jurídico da actividade de
reprodução, considera, na doutrina italiana, Emanuele Santoro que tal actividade
“reclama a noção de um quid que repete fielmente todos os elementos de um
determinado objecto, e portanto o próprio objecto, sem que seja necessariamente
reconhecível uma – aliás impossível no plano material e filosófico – relação de
identidade, mas sobretudo ou no máximo de repetição mais ou menos fielmente
representativa”45
.
Por este motivo, torna-se por vezes necessário que nos desprendamos do conceito
técnico de reprodução e tomemos por base uma noção juridicamente edificada, o que
significa que, em alguns casos, em atenção ao interesse do autor na exploração
económica da sua obra, são consideradas como enquadráveis ainda num conceito
jurídico amplo de reprodução algumas representações que, embora não reproduzam na
íntegra todos os elementos característicos da obra original e não dêem, por isso, origem
a exemplares do mesmo tipo do exemplar originário, desempenham ainda uma função
informativa e epistémica em relação aos traços essenciais da obra.
Este tipo de considerações é muitas vezes feito a propósito das imagens fotográficas de
obras artísticas, as quais, fornecendo apenas uma percepção qualitativamente parcial
destas últimas, são reguladas no direito português como “reproduções fotográficas”. A
questão pode suscitar-se, aliás, não apenas na relação entre as fotografias e as obras de
arte plástica, mas também no retrato de outras obras, mormente das obras
arquitectónicas46
.
No direito português vale, como em outros, por influência do n.º 1 do artigo 9.º da
Convenção de Berna relativa à protecção das obras literárias e artísticas de 1886, da
qual o Estado português é parte, o princípio segundo o qual o autor goza do direito
exclusivo de autorizar a reprodução das suas obras “de qualquer maneira e por qualquer
forma”. Contudo, a interpretação dada a esta expressão tem variado de ordenamento
45
“Cenni sul diritto de riproduzione delle opere dell’ingegno”, in Rivista del Diritto commerciale, Vol.
LXIV, n. 1, 1966, pág. 67: “Ma occorre subito rilevare che il significato lessicale e commune del termine
“copia” è quello della “esatta riproduzione di una cosa”, il che richiama la nozione di un quid che
ripete fedelmente tutti gli elementi di un determinato oggetto, e quindi l’oggetto medesimo, senza che sai
necessariamente ravvisabile un – peraltro impossibile sul piano materiale e filosofico – rapporto di
identità, ma piuttosto o al massimo di ripetizione più o meno fedelmente rappresentativa”.
46 Cfr. infra 4.2.
16
para ordenamento, num sentido ora mais amplo, coincidente com a reserva de qualquer
tipo de reprodução seja qual for a natureza do exemplar a que a mesma dê lugar, ou
mais restrito, englobando apenas as reproduções ditas homogéneas, a que poderá
acrescer uma protecção de outras representações, ou reproduções heterogéneas, na
medida em que esta última seja expressamente prevista pela lei.
Contudo, não é apenas em relação às reproduções fotográficas que a questão da
circunscrição do direito de reprodução, neste particular aspecto da natureza do
exemplar, se suscita. No que respeita especificamente às obras de arquitectura, também
é possível colocar a dúvida sobre se o conceito de reprodução exige uma absoluta
identidade entre as formas de expressão da obra ou se, pelo contrário, será possível
construir uma noção jurídica que passe tão-somente pela representação, ainda que em
diferente formato, dos elementos realmente essenciais da obra.
4.1. Em diversos ordenamentos jurídicos, a doutrina e a jurisprudência, ou mesmo a
própria lei, têm atribuído à reprodução um significado bastante compreensivo.
No direito inglês, por exemplo, o n.º 2 da secção 17 do Copyrigth, Designs and Patents
Act de 1988, considera que a obra pode ser reproduzida através de qualquer forma
material, e, concretizando esta fórmula, o n.º 3 , a respeito das alterações relativas à
dimensão da obra, estabelece que nas obras artísticas se considera reprodução o fabrico
de uma cópia tridimensional a partir de uma obra bidimensional bem como a produção
de uma cópia a duas dimensões tendo como modelo uma obra tridimensional. A partir
deste preceito, tem sido aceite que, na medida em que a forma da obra permaneça
visível na cópia realizada, ainda que esta última seja de um outro tipo, existe reprodução
mesmo nos casos de alteração tanto de forma quanto de dimensão47
.
Da mesma forma, no direito alemão reconhece-se desde há muito que o direito de
reprodução não se encontra dependente de eventuais variações quer do tipo (Art) quer
da forma (Weise) quer ainda do processo (Verfahren) pelo qual tem lugar a fixação que
47
Cfr., por todos, KEVIN GARNETT, JONATHAN RAYNER JAMES, GILLIAN DAVIES, Copinger
and Skone James on Copyright, 14ª ed. (1ª ed.: 1870), Vols. I, Sweet & Maxwell, London, 1999, pág.
436.
17
lhe subjaz48
. A propósito das obras de arte plástica, vários autores realçam a indiferença
da alteração do tamanho, do formato, ou mesmo da dimensão espacial no exemplar
resultante da reprodução49
.
Em particular, Otto Von Gamm salienta que o valor decisivo da obra reside na
impressão geral do ponto de vista intelectual e estético que causa ao sujeito. Desta
forma, apesar de o objecto da reprodução ser a concreta forma de expressão da obra
(Formgestaltung), existem casos em que um desvio a este princípio é admissível se,
através de uma reprodução em que se produza uma alteração dessa forma de expressão,
se lograr conduzir ainda a uma impressão geral intelectual ou estética correspondente à
causada pelo original50
. Transpondo uma tal ideia para a arquitectura, o
Bundesgerichtshof defendeu já que a execução em obra de um determinado plano
arquitectónico não se reveste de uma expressão própria, situando-se ainda no âmbito de
protecção definido para a obra original exteriorizada no projecto de arquitectura51
.
No sistema jurídico autoral espanhol, tendo em vista acautelar a protecção do
autor/arquitecto, tem sido entendido dever ser traçada uma distinção entre dois tipos de
48
Vejam-se, na jurisprudência, em particular, os casos BGH Vorentwurf II, 10/12/1987 (I ZR 198/85), in
GRUR, n.º 7, 1988, pág. 533 e seguintes, e BGH, Explosionszeichnungen, 28/2/1991 (I ZR 88/89), in
GRUR , n.º 7, 1991, pág. 529 e seguintes. Para vários autores da literatura jurídica alemão as adaptações
ou transformações que tenham lugar mediante uma fixação corpórea da obra original devem ainda incluir-
se no âmbito do direito de reproduções, sendo, assim, consideradas reproduções as fixações de obras sob
uma diferente forma. Assim, EUGEN ULMER, Urheber- und Verlagsrecht (1ª edição: 1951), Springer-
Verlag, Berlin, Heidelberg, New York, 1980, pág. 270; FRIEDRICH KARL FROMM, WILHELM
NORDEMANN, Urheberrecht - Kommentar zum Urheberrechtsgesetz und zum
Urheberrechtswahrnehmungsgesetz, 9ª ed. (1ª edição: 1966), Verlag W. Kohlhammer, Stuttgart, Berlin,
Köln, 1998, pág. 180.
49 GERHARD SCHRICKER, Urheberrecht – Kommentar, Loewenheim, § 16, 2ª ed. (reimpr.), Verlag
C.H. Beck, München, 1999, pág. 334; HEINRICH HUBMANN, MANFRED REHBINDER,
Urheberrecht, 12.ª ed. (edição revista da obra de Heinrich Hubmann, "Urheber- und Verlagsrecht", 1.ª
ed., 1959), Verlag C.H. Beck, München, 2002, pág. 152; PHILIPP MÖHRING, KÄTE NICOLINI,
Urheberrechtsgesetz, - Kommentar, Kroitzsch, § 16, 2ª ed., München, Verlag Franz Vahlen, 2000, pág.
286; THOMAS DREIER, GERNOT SCHULZE, Urheberrechtsgesetz, - Kommentar, Schultze, §16,
München, Verlag C. H. Beck, 2004, pág. 234. Cfr. também a decisão produzida no caso BGH, Hummel-
Figuren, 22/1/1952 (I ZR 68/51), in GRUR , n.º 11, 1952, pág. 516 e seguintes.
50 OTTO- FRIEDRICH VON GAMM, Urheberrechtsgesetz – Kommentar, C.H. Beck’sche
Verlagsbuchhandlung, München, 1968, págs. 338-339: “Da der maβgehende Werkgehalt im geistig-
ästhetischen Gesamteindruck der konkreten Formgestaltung liegt, gehört dieser zum Gegenstand der
Vervielfältigung. (...) Denn auch Abänderungen der konkreten Formgestaltung können (je nach ihrem
Abstand vom benutzen Original) zu einem übereinstimmenden geistigästhetischen Gesamteindruck
führen”.
51 BGH Vorentwurf II, 10/12/1987 (I ZR 198/85), in GRUR, n.º 7, 1988, pág. 533 e seguintes.
18
reprodução de obras arquitectónicas: a execução dos projectos e planos mediante a
construção do edifício projectado, por um lado, e a reprodução, em formato
bidimensional (desenho, fotografia, planta) ou tridimensional (maqueta), da própria obra
edificada52
.
A distinção entre aqueles dois tipos de reprodução das obras arquitectónicas, a que faz
referência a doutrina espanhola, não é mais do que a importação para outro sistema
jurídico das ideias defendidas em França por Henri Desbois53
.
Em França, a questão é clarificada pela própria lei que, no âmbito das obras
arquitectónicas, expressamente reconhece à execução ou edificação de um plano ou
projecto o estatuto de reprodução. Trata-se do artigo L. 122-3 do Code de la Propriété
Intellectuelle de 1992, segundo o qual “ [p]ara as obras de arquitectura, a reprodução
consiste igualmente na execução repetida de um plano ou projecto tipo”54
.
A doutrina francesa tem em conta que a redacção do artigo L. 112-2 do mesmo código,
assegurando a protecção não somente dos planos e obras plásticas relativas à
arquitectura como também das obras de arquitectura, tinha por propósito ultrapassar
uma certa relutância da jurisprudência anterior à lei de 11 de Março de 1957 em
reconhecer a protecção das edificações feitas a partir de planos e maquetas. A sua
função era, pois, conceder ao arquitecto uma dupla protecção consoante o objecto
reproduzido fosse um projecto ou uma maqueta ou a obra arquitectónica edificada55
.
Interpretando a norma prevista no artigo L. 122-3, na literatura jurídica francesa a
construção de uma obra a partir de um projecto é muitas vezes simplesmente
reconduzida ao conceito de reprodução56
.
52
Assim, em comentário ao artigo 18.º da lei autoral espanhola, FRANCISCO RIVERO HERNÁNDEZ,
in Rodrigo Bercovitz Rodríguez-Cano, Comentarios…, cit., pág. 327.
53 HENRI DESBOIS, Le Droit d' Auteur en France, 3ª ed., Dalloz, Paris, 1978, pág. 298.
54 “Pour les œuvres d’architecture, la reproduction consiste également dans l’exécution répétée d’un plan
ou d’un projet type”. O Code de la Propriété Intellectuelle (CPI) francês resultou de uma reunião num
mesmo diploma das normas relativas à propriedade literária e artística, por um lado, e à propriedade
industrial, por outro, tarefa levada a cabo pela lei n.º 92-597, de 1 de Julho de 1992.
55 Assim, CLAUDE COLOMBET, Propriété littéraire…, cit., pág. 68.
56 MICHEL HUET, Droit de l’architecture, 3.ª ed., Paris, Economica, 2001, pág. 230 ; André Lucas,
Henri-Jacques Lucas, Traité…, cit., pág. 206 ; XAVIER LINANT DE BELLEFONDS, Droits d’auteur et
droits voisins, Dalloz, Paris, 2002, pág. 166.
19
Noutros textos, porém, é possível encontrar uma exploração mais cuidada da ratio do
artigo, sendo explicitado que, ao referir-se a “execução repetida”, o legislador tem em
vista os projectos tipo que estão na base da repetição de casas de habitação no âmbito de
loteamentos ou em vários locais da mesma cidade ou determinados modelos de
alojamentos colectivos. O próprio Desbois já aludia a esta finalidade quando defendia
que o arquitecto deveria receber uma remuneração adequada e proporcional na medida
em que o seu projecto tenha dado lugar a aplicações sucessivas, repetidas ou em
construções feitas em série57
. Aquele artigo seria no fundo equivalente ao n.º 2 do artigo
161.º do Código de Direito de Autor português, em que se afirma que “[a] repetição da
construção de obra de arquitectura, segundo o mesmo projecto, só pode fazer-se com o
acordo do autor”, sendo certo, porém, que o legislador deste último teria sido mais
cauteloso ao omitir qualquer referência a uma qualificação como reprodução do acto de
repetição da construção.
A partir da identificação do fim subjacente ao artigo, tanto na doutrina francesa como na
doutrina espanhola, têm vindo a avolumar-se as vozes que consideram que a obra
arquitectónica, a obra terminada, é, em mesma uma obra, distinta, por isso da mera
reprodução de planos, projectos ou maquetas58
.
Alguma doutrina vai mesmo mais longe, considerando que “a verdadeira
«reprodução», quer dizer, aquela em que devemos fixar-nos, é a repetição dos planos,
projectos, maquetas ou desenhos, pois que […] o edifício ou obra terminada é obra
arquitectónica em si mesma, a três dimensões, é tão obra arquitectónica quanto os
planos e demais meios a duas dimensões”59
.
57
HENRI DESBOIS, Le Droit d' Auteur…, cit., pág. 298. Retomando o raciocínio de Desbois, Michel
Huet, L’architecte auteur, cit., pág. 108.
58 Em Espanha, JORGE ORTEGA DOMENECH, Arquitectura…, cit., pág. 181; JOSE MIGUEL
RODRIGUEZ TAPIA, Comentarios a la Ley de Propriedad Intelectual, Editorial Aranzandi, Navarra,
2007, pág. 103. Em França, considerando os vários tipos de reprodução como tendo, apesar de tudo, o
mesmo objecto, qual seja a de reprodução da mesma concepção de um espaço, MICHEL HUET,
L’architecte auteur, cit., págs. 23-24 e 106 e seguintes.
59 JORGE ORTEGA DOMÉNECH, Arquitectura…, cit., págs. 180-181: “Y esa es la verdadera
«reproducción» en la que debemos fijarnos, es decir, la repetición de los planos, proyectos, maquetas o
diseños, puesto que, como hemos defendido a lo largo del presente estudio, el edificio u obra terminada
es obra arquitectónica en sí misma, de tres dimensiones es tan obra arquitectónica como los planos y
demás medios en dos dimensiones” (realce meu).
20
No direito estadunidense, a existência de dois tipos de reprodução deriva da afirmação
de duas formas de protecção distintas (da obra protegida e dos projectos e desenhos)
pelo próprio Congresso aquando da aprovação da lei de 199060
. Apesar disso, a doutrina
não é inteiramente clara quanto ao tratamento jurídico da construção da obra a partir do
projecto, parecendo amiúde reconduzi-la à noção de reprodução61
.
É sintomático também verificar que, na lei autoral italiana, muito embora se proteja a
execução de projectos de arquitectura e engenharia, tal protecção consiste
essencialmente na atribuição de um direito de compensação económica ao autor (artigo
99), não estando prevista como elemento do direito de reprodução mas sim num
capítulo autónomo integrado no Título II do diploma, em que se concentram as
disposições sobre direitos conexos ao exercício do direito de autor.
E no direito português? No n.º 2 do artigo 68.º o Código de Direito de Autor e Direitos
Conexos autonomiza a construção daquela como modalidade de utilização económica.
Justificando tal opção, Oliveira Ascensão integra a construção da obra arquitectónica
entre as faculdades substanciais relativas à comunicação ou apresentação pública da
obra, distinta, por isso, da reprodução no sentido de fabrico de um exemplar da mesma.
A construção concretiza a ideia e corresponde à forma de expressão característica da
obra, para que tendem todas as fases anteriores. “O fim último de toda a actividade
criativa é a construção!”62
. Nesta perspectiva, o projecto que dá origem àquela obra não
passa de um “esquema para a acção”, pelo tem de demonstrar-se a existência de uma
valia estética do próprio projecto para que este possa ser protegido por si mesmo63
.
60
RAPHAEL WINICK, “Copyright protection for architecture…”, cit., pág. 1620.
61 Idem, pág. 1626. Assim também NATALIE WARGO, “Copyright Protection for Architecture and the
Berne Convention” in New York University Law Review, n. 65, 1990, pág. 426.
62 Conquanto o propósito fosse o de contestar a percepção da arquitectura como actividade menos artística
do que a subjacente às outras artes e afirmar a unidade da obra de arte arquitectónica, assim se iniciava o
manifesto da escola da Bauhaus escrito em 1919 por WALTER GROPIUS: “Das Endziel aller
bildnerischen Tätigkeit ist der Bau!” In Museumspädagogischer Dienst Berlin, Bauhaus Archive Berlin –
The collection, Berlin, 2004, pág. 28, também disponível in
http://www.bauhaus.de/bauhaus1919/manifest1919. htm.
63 JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, “A protecção jurídica dos programas…”, cit., págs. 92-97.
21
Daqui se retiraria, como acentua Doménech, que a obra arquitectónica construída vale
como obra em si mesma considerada, e não como reprodução de planos, projectos,
maquetas ou desenhos64
.
Alguns autores procuram justificar esta conclusão utilizando argumentos como o de os
autores do projecto e da obra edificada poderem ser distintos e de existirem, na maior
parte dos casos, limites e condicionantes à construção da obra que não existem no
momento do projecto65
. Não me parecem, porém, de aceitar. Em relação a uma
protecção distinta alicerçada numa “autoria” distinta, é evidente que, na esmagadora
maioria dos casos, o autor do projecto não executa a construção. Tal não lhe nega,
contudo, a autoria, até porque se reconhece no direito autoral um poder-dever que
consiste exactamente no acompanhamento da execução da obra, de forma a garantir que
aquela seguirá as orientações definidas no projecto e corresponderá à criação
intelectual66
.
No que respeita especificamente ao argumento de que a realização do projecto é uma
actividade livre, contrastando, por isso, com a execução da obra, sempre recordarei que,
sendo a arquitectura a arte do espaço, o projecto de arquitectura aparece habitualmente
como a proposta de uma solução para um determinado espaço, do qual não se distancia
mas modela67
. É, aliás, nesta distinção entre espaço meramente físico e espaço
arquitectónico que se compreende a diferença entre a construção e a arquitectura.
A rejeição destes argumentos radica também na concepção de unidade da obra de
arquitectura e das suas manifestações, a que me referi anteriormente. Parece-me certo
que estamos perante formas de expressão distintas e que essa diferença não assenta
apenas no carácter bidimensional ou tridimensional da forma assumida. Não existe
identidade entre as duas formas de expressão, pelo que, a atermo-nos a um sentido
estrito do âmbito do direito de reprodução, teríamos necessariamente que afastar a
64
JORGE ORTEGA DOMÉNECH, Arquitectura…, cit., pág. 181.
65 Assim, JOSÉ MIGUEL RODRÍGUEZ TAPIA, Comentarios…, cit., pág. 103.
66 Cfr. o n.º 1 do artigo 60.º do CDADC. Na regulação da deontologia da profissão, veja-se também o n.º
3 do artigo 42.º do actual Estatuto da Ordem dos Arquitectos, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 176/98, de 3
de Julho.
67 De acordo com BRUNO ZEVI, Architectura in Nuce , cit., pág. 65, “[o] espaço arquitectónico não é
nem físico nem transcendente: é simplesmente o ponto de aplicação, o objecto proeminente, o lugar onde
se encarna a realidade, a imagem da arquitectura; e resultará prosa ou poesia, negatividade expressiva ou
elevadíssima lírica, segundo quem lhe dá forma e o modula”.
22
construção deste âmbito pois que a mesma não origina a criação de um exemplar fac-
símile da obra do espírito exteriorizada no projecto68
. E isto mesmo nos casos em que,
ao falarmos de projecto, nos estejamos a circunscrever ao guia prático para a execução
da obra que se apelida normalmente de projecto de execução.
De todo o modo, como se referiu anteriormente, se o conceito de reprodução for
desobrigado de uma ideia de absoluta identidade entre formas de expressão, tornar-se-á
possível, e porventura mais adequado, investir numa circunscrição do conceito aos seus
elementos realmente essenciais, que se prendem com a perceptibilidade das obras dos
autores, com a transmissão a outro sujeito e a recepção por este das criações intelectuais
exteriorizadas69
. No caso das obras em apreço, o resultado seria a recondução ao direito
patrimonial de reprodução da reserva da actividade de construção, ou seja, como
repetição dos elementos essenciais da criação intelectual numa distinta forma externa70
.
Na prática, esta conclusão não difere substancialmente do enquadramento dogmático
proposto por Oliveira Ascensão. Contudo, integrar a construção como forma de
“exploração económica por apresentação ou comunicação da obra ao público” ou
“reprodução incorpórea” não traduz a essência desta actividade nem tão pouco se insere
pacificamente na distinção que o próprio traça entre “reprodução corpórea” e
“reprodução incorpórea” da obra71
. Para tanto, haveria que considerar que a construção
de uma obra de arquitectura é sempre uma comunicação da obra ao público, o que,
embora tendo o conceito de público sofrido uma evolução e adaptação significativa nos
últimos tempos, não se verifica nos casos de obras que não são construídas para serem
mantidas em locais públicos.
A continuidade entre projecto e obra construída extrai-se de vários elementos,
inclusivamente assinalados na lei autoral. Veja-se, por exemplo, a faculdade de repudiar
a paternidade da obra conferida ao arquitecto nos casos em que não exista acordo entre
este o dono da obra quanto às modificações que este último pretende introduzir na obra
68
Recorda-se que a expressão advém da locução latina fac simile, que significa “fazer igual”.
69 CLÁUDIA TRABUCO, O direito de reprodução…, cit., pág. 425.
70 No mesmo sentido, contestando, a propósito das obras de arte plástica, o critério da identidade das
obras, BEGONA RIBERA BLANES, El derecho de reprodución en la propiedad intelectual, Dykinson,
Madrid, 2002, págs. 190-195.
71 JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito de autor…, cit., pág. 277 e seguintes.
23
no momento da edificação ou após a sua conclusão. Não obstante o propósito desta
norma seja acautelar um equilíbrio entre as posições jurídicas em causa, conciliando o
direito de autor com o direito de propriedade sobre um suporte físico da obra, o certo é
que esta faculdade tem por base a existência de uma unidade da obra de arquitectura.
Tanto é assim que a doutrina tem considerado que, em qualquer momento, tendo
embora rejeitado a paternidade num primeiro momento, é sempre possível ao arquitecto
vir a reassumi-la e a declarar-se autor da obra72
, o que apenas poderá ser reconhecido
com base no seu direito moral e irrenunciável de paternidade sobre a obra no seu todo
considerada.
Da mesma forma, é dessa unidade da obra de arquitectura que se extrai a
inadmissibilidade de, tendo existido construção com base no projecto da autoria de
determinado arquitecto, e na medida em que se considere existir originalidade suficiente
para protecção da obra de arquitectura (ou, melhor dito, na medida em que exista
arquitectura), o dono do edifício utilizar o projecto noutra construção sem
consentimento do autor da obra. Como afirma Oliveira Ascensão, “[a] propriedade dá-
lhe direito àquele edifício, não à obra de arquitectura nele encarnada”73
. A repetição
poderá existir, pois, apenas se e na medida em que tenha beneficiado de autorização
para o efeito, o que poderá, naturalmente, ter ficado expressamente previsto no contrato
entre as partes74
.
72
MARIA VICTÓRIA ROCHA, Modificações da obra de arquitectura…, cit., pág. 14.
73 JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito de autor…, cit., pág. 295.
74 Pelo contrário, parece-me em princípio ser livre a utilização pelo arquitecto do projecto da sua autoria
ainda que para a realização de uma construção distinta, a menos que se verifiquem entraves por via da
atribuição da titularidade do direito a outrem mediante contrato de encomenda (cfr. artigo 14.º do
CDADC). Dificilmente, porém, a adaptação ao sítio subjacente à obra de arquitectura permitirá concluir
que se trate, ainda, da mesma obra. Explicitando esta relação com o local, a que chama “genius loci”, leia-
se CHRISTIAN NORBERG-SCHULZ, Architecture: Presence, Language, Place (tradução a partir da
versão italiana do original norueguês de 1994 por Antony Shugaar), Skira, Milan, 2000, pág. 28.
Esta relação com o local deverá necessariamente ser atendida para efeitos da compreensão das eventuais
réplicas da obra. A compreensão destas últimas, habitualmente estudadas a propósito das obras de arte
plástica, como realização de exemplares da obra original pelo próprio autor por diversas razões, sendo o
caso mais frequente a própria divulgação e comercialização de obras cujos originais atingiram preços
muito elevados, terá que ser feita, nas obras de arquitectura, cum grano salis. São distintas as réplicas
realizadas pelo autor através de execuções que apenas introduzem pequeníssimas alterações em relação ao
exemplar original (muitas vezes condicionadas pela próprias técnicas utilizadas), e os casos em que, o
autor ou um terceiro com a sua autorização, realize uma obra que “anche se nuova, conservi tuttavia
l’idea, l’ispirazione ed i caratteri della precedente” (EMANUELE SANTORO, “Cenni sul diritto de
riproduzione…”, cit., pág. 71). Nestes últimos casos, e é o que sucederá provavelmente no caso da réplica
24
Face ao exposto, e muito embora reconhecendo que andou bem o legislador português
ao, contrariamente ao que sucede noutras leis, atribuir expressamente ao autor da obra
de arquitectura o controlo sobre a construção da obra segundo o projecto (artigo 68.º, n.º
2, alínea l)), considero defensável um conceito amplo de reprodução que englobe as
cópias homogéneas das obras de arquitectura, a partir do projecto (reprodução fac símile
de projectos, qualquer que seja o meio empregue) ou da obra edificada (cópia de
edifícios em forma de edifícios), mas que se estenda a protecção às reproduções
heterogéneas (cópia de projectos através da construção de edifícios ou cópia de edifícios
sob a forma do desenho de projectos) no sentido explicitado75
.
4.2. A necessidade de estabelecer um tratamento jurídico adequado para a reprodução
fotográfica é tributária de um fenómeno de alteração do modo de percepção sensorial
das obras, tornando o objecto representado mais próximo através da superação do seu
carácter único76
.
No que concerne às obras de arquitectura, como afirma Bruno Zevi, “nenhuma
reprodução gráfica ou fotográfica de um edifício poderá substituir a experiência espacial
e até mesmo a representação cinética de um filme não recolhe senão uma das infinitas
sucessões mediante as quais se pode fruir um espaço”77
. Com esta afirmação, que parte
da recusa da arquitectura como arte “estática e imutável” ou arte “espacial” e não
“temporal”, pretende este autor, relevante teorizador e historiador da arquitectura
de uma obra de arquitectura, estar-se-á perante uma transformação da obra pré-existente e a criação de
uma obra derivada. Cfr. Cláudia Trabuco, O direito de reprodução…, cit., pág. 301, nota 239.
Parecem-me elucidativas as dificuldades enfrentadas aquando da reconstrução entre 1981 e 1986 do
pavilhão alemão desenhado por Ludwig Mies van der Rohe e originalmente construído para a Exposição
Internacional de Barcelona de 1929, que tornam possível a afirmação de que “toda réplica es, sin duda,
una reinterpretación”. Cfr. IGNASI DE SOLÀ-MORALES, CRISTIAN CIRICI, FERNANDO RAMOS,
Mies van der Rohe - El pabellón de Barcelona, 3.ª ed. (1.ª edi: 1993), Editorial Gustavo Gili, Barcelona,
2002, pág. 39.
75 Veja-se a exploração de cada uma destas cópias in JORGE ORTEGA DOMÉNECH, Arquitectura…,
cit., págs. 212-221 e MICHEL HUET, L’architecte auteur, cit., págs. 106-110.
76 Cfr. WALTER BENJAMIN, A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica (trad. do original
alemão "Das Kunstwek im Zeitalter seiner technischen Reproduzierbarkeit", 1936-39), in Id., "Sobre arte,
técnica, linguagem e política", Relógio d’Água, Lisboa, 1992.
77 BRUNO ZEVI, Architectura in Nuce , cit., pág. 51.
25
moderna, concluir que “o espaço arquitectónico não é fixo nem rígido: é o espaço-
tempo que se experimenta na leitura dinâmica das sequências arquitectónicas”78
.
Está em causa, ainda, como explicitei supra, o direito de reprodução da obra intelectual,
definido pelo Código nos termos da alínea i) do n.º 2 do seu artigo 68.º. Ainda que a
reprodução fotográfica não preencha o conceito técnico de reprodução, no sentido de
cópia repetitiva ou repetição fac-símile da obra, a doutrina tem reconhecido que esta
reprodução “heterogénea”, preenche as condições necessárias para poder ser incluída
num conceito juridicamente construído de reprodução, na medida em que seja
susceptível de afectar a exploração económica da obra intelectual. Ou seja, ao núcleo do
direito de reprodução, em que se integram as repetições fac-símile da obra, o legislador
juntou a protecção das meras representações daquela, desde que sejam dados a conhecer
fielmente os seus elementos essenciais e desde que se encontrem expressamente
previstos por uma previsão legal (o que sucede por via da alínea e) do n.º 2 do artigo
68.º do Código)79
. Deste modo, reserva-se igualmente ao autor o controlo sobre a
actividade de reprodução fotográfica.
Contudo, e no que respeita especificamente às obras de arquitectura, a Lei n.º 50/2004,
de 24 de Agosto, veio incluir no elenco de excepções previstas no n.º 2 do artigo 75.º do
CDADC a desnecessidade de autorização do autor da obra para efeitos da reprodução da
mesma quando esta tenha sido feita para ser mantida permanentemente em locais
públicos, dando como exemplo o caso das obras de arquitectura (alínea q)).
Para tanto é necessário equacionar as condições a que recorre a excepção da alínea q) do
n.º 2 do artigo 75.º, em particular a exigência de que a obra reproduzida tenha sido feita
para ser mantida permanentemente num lugar público.
A noção de “lugar público” não é fornecida de modo claro pelo CDADC. O que é dado,
isso sim, é um outro conceito, não confundível com este, isto é, o de “comunicação ao
público”. Este último pode ser obtido por interpretação dos elementos expressos no n.º 2
78
Idem, pág. 49.
79 E isto apesar de a fotografia, retirando a obra do seu contexto, não permitir “ler o edifício” no sentido a
que alude BRUNO ZEVI. Idem, págs. 53 e 58.
26
do artigo 108.º, os quais, ainda que pela negativa, fornecem uma noção aplicável a todas
as formas de comunicação da obra ao público80
.
O que interessa no caso presente, pois, saber se a construção da obra arquitectónica e a
sua consequente exposição é ou não por si mesma uma comunicação da obra ao público,
uma vez que isso poderia suceder, nos termos do n.º 1 do artigo 108.º, quer a
comunicação da obra fosse realizada em lugar público quer o fosse em lugar privado. O
que releva, isso sim, é, por um lado, aferir a natureza do lugar em que a obra é colocada
e, por outro, verificar se existe uma intenção relativa à colocação desta num lugar
público com carácter permanente.
Quanto ao primeiro elemento, não creio que o facto de o acesso do público ao edifício
ser condicionado, no sentido de a entrada de pessoas ser sujeita a controlo, obste, por si
só, à qualificação do lugar como público. Pode suceder, aliás, que o edifício em causa,
pela sua dimensão e também pela sua localização, o torne visível desde vários pontos
situados fora do perímetro do espaço delimitado e de acesso condicionado.
Relativamente ao segundo elemento, importa analisar se o edifício foi construído para
ser mantido permanentemente num local que possa ser caracterizado como público81
.
Da conjugação destes dois elementos poderá resultar a conclusão de estarmos perante
uma utilização da obra que dispensa a autorização do seu autor, e que tão pouco possa
colocar em causa o direito patrimonial de exploração deste último, na medida em que,
nos termos do n.º 5, tal utilização não seja susceptível de atingir a exploração normal da
obra arquitectónica (pelo contrário, podendo mesmo contribuir para uma maior
divulgação desta) nem de causar prejuízo injustificado aos interesses legítimos do autor.
5. No direito português, o tratamento jurídico das situações de plágio é feito no âmbito
da defesa contra as infracções aos direitos de autor ou aos direitos conexos, isto é, no
quadro do Direito Penal de autor.
80
De acordo com a parte final desta disposição este princípio aplica-se “a toda a comunicação”.
81 O problema em causa assume desde há muito relevância no direito francês, tendo sido por diversas
vezes objecto de tratamento na jurisprudência. Para um comentário às principais decisões e fixação de
princípios no tratamento da matéria no âmbito do direito de autor, leia-se MICHEL HUET, Architecture
et urbain…, cit., págs. 43-47. A questão é também alvo de um tratamento no campo do “direito à imagem
do bem”. Cfr., do mesmo autor, Droit de l’architecture, cit., págs. 263-271.
27
Ao proceder à previsão do tipo penal de contrafacção, o artigo 196.º do CDADC
português admite que a contrafacção possa realizar-se quer por via da “reprodução
servil” quer através de plágio82
. Em ambos os casos, a contrafacção de obras resulta da
utilização, como sendo criação sua, de obra alheia. A diferença está, pois, na forma
como se procede à apropriação intelectual da obra de outrem.
O plágio supõe a existência de uma apropriação da criatividade de outrem, da expressão
original de outro sujeito e a sua apresentação como se se tratasse de uma obra própria. O
n.º 1 do artigo 196.º concede atenção particular ao critério para a identificação de uma
situação de plágio, ou seja, a inexistência de individualidade própria da obra. A alínea
a) do n.º 4 do mesmo artigo reforça, depois, a relevância de tal condição, dispondo que,
em caso de semelhança objectiva entre as obras, a individualidade própria destas
afastará a contrafacção83
.
A reprodução procede apenas a uma “comunicação fiel e exacta dos elementos e
características do original”84
, não negando a sua titularidade ao criador intelectual mas
aproveitando-se economicamente da possibilidade de repetição da sua obra.
Contrariamente ao que sucede com o plágio, a reprodução carece de qualquer conteúdo
criativo85
.
O plagiador apodera-se da expressão criativa de outrem, conferindo-lhe, muitas vezes
de modo subtil e ardiloso, uma configuração distinta de forma a encobrir o carácter não
original do resultado de tal actividade. O delito de plágio requer uma verdadeira
ausência de criação autónoma e parte da existência de uma reconhecida apropriação por
alguém da autoria de outrem, e não de uma mera utilização não autorizada da obra
alheia86
82
Assim, JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito penal de autor, Lex, Lisboa, 1993, pág. 40.
83 De acordo com JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito de autor…, cit., pág. 65, “[o] critério da
individualidade prevalece sobre a semelhança objectiva. Mas individualidade tem aqui o exacto sentido
de criatividade. Decisivo é que nada se acrescenta à criação alheia a que se recorre”.
84A fórmula é utilizada abundantemente pela doutrina espanhola (“la comunicación fiel y exacta de los
elementos y características del original”). Cfr., por todos, NICOLÁS GARCÍA RIVAS, “Los delitos
contra la Propriedad Intelectual”, in Rodrigo Bercovitz Rodríguez-Cano, Comentarios…, cit., pág. 2382.
85 CRISTINA BUSCH, La Protección Penal de los Derechos de Autor en España y Alemania – análisis
de Derecho Comparado. Perspectiva Comunitaria de la Lucha contra la Piratería Intelectual, CEDECS,
Barcelona, 1995, pág. 130.
86 GERHARD SCHRICKER, Urheberrecht – Kommentar, cit., Loewenheim, § 23, págs. 449-450.
28
No Direito de Autor, impõe-se como essencial o princípio da livre utilização e da livre
circulação das ideias, segundo o qual estas pertencem ao património comum e assim
devem permanecer como consequência da liberdade de expressão. A liberdade de
utilização das ideias de outrem contrasta, porém, com a reserva da expressão formal das
mesmas, a qual tem necessariamente de beneficiar do consentimento do respectivo autor
para poder ser licitamente apropriada.
Não obstante tais princípios, há muito que se superou a divisão estanque entre conteúdo
(livre) e forma (protegida) das obras. Nesse processo assumiu um papel proeminente a
literatura jurídica alemã – em especial, através das obras de Eugen Ulmer e Heinrich
Hubmann –, que veio afirmar que, não apenas a forma estava longe de ser a única base
da individualidade da obra, como, no conteúdo, havia ainda que separar o material pré-
dado (vorgegebenen Stoff) e a prestação criativa (schöpferischen Leistung)87
. Apenas
este último, correspondente à criatividade do autor, deveria ser objecto de um direito
exclusivo, permanecendo o primeiro, constituído por dados provenientes da natureza, da
história ou da própria tradição literária e artística, ao dispor de todos os indivíduos.
Tendo-se ultrapassado a antinomia forma/conteúdo, pode apenas falar-se na criação de
bens imateriais enquanto objectos de carácter intelectual originados pela incorporação
de um conteúdo espiritual numa determinada forma, sendo, afinal, da junção e
interacção desses dois elementos que resulta, em muitos casos, a identidade da obra.
Aferir a existência de plágio, o que é o mesmo que dizer analisar se determinada obra
nasceu sem verdadeiro esforço criativo e apoderando-se dos traços distintivos de outra
obra, pode ser extraordinariamente difícil de fazer. A verificação de coincidências
estruturais básicas ou essenciais que podem, no caso concreto, denunciar o plágio
assume uma dificuldade acrescida nas obras de arquitectura. Como em qualquer obra, o
desenho das obras arquitectónicas não é totalmente original e nem resulta apenas da
imaginação do arquitecto. Pelo contrário, “[o] carácter do edifício é criado através da
combinação de diferentes elementos num contexto específico”88
, sendo certo que cada
87
EUGEN ULMER, Urheber- und Verlagsrecht, cit., maxime págs. 121-125. Veja-se também
HEINRICH HUBMANN, MANFRED REHBINDER, Urheberrecht, 12ª ed. (edição revista da obra de
Heirich Hubmann, "Urheber- und Verlagsrecht" – 1.ª edição: 1959), Verlag C.H. Beck, München, 2002,
págs. 31-32.
88 RAPHAEL WINICK, “Copyright protection for architecture…”, cit., p. 1604: “The character of a
building is created by the combination of different elements in a specific context”.
29
novo contexto obriga em princípio a uma combinação de elementos diferenciada e
requer uma intervenção criativa particular.
No direito estadunidense, a jurisprudência adapta ao caso concreto das obras
arquitectónicas o teste da “semelhança substancial” que aplica para as restantes
categorias de obras. No plano da defesa contra um delito de plágio, o titular é chamado
a apresentar provas da violação do mesmo com base em dois elementos, a saber: a
demonstração factual de uma semelhança substancial (substantial similarity) entre as
duas obras, mas também a apresentação de provas de uma apropriação indevida
(improper appropriation) de uma parte significativa da sua obra original do autor, o que
em muitos casos se faz procurando tornar evidente que existiu da parte de quem plagia
acesso à mesma89
.
No campo da arquitectura, sendo certo, inevitável e, bem assim, social e juridicamente
tolerável que exista um determinado nível de semelhança entre as várias obras, maxime
se as mesmas correspondem a uma mesma época, o esforço de aplicação deste critério –
e que o torna tão difícil – passa pela distinção entre os casos de semelhança menor ou de
grau mínimo, pelo que permissível, e as situações em que a semelhança é substancial,
logo proibida.
Na demonstração da existência da semelhança substancial, quer nos casos de
“comprehensive nonliteral similarity” quer nas situações de inserção de elementos
protegidos no contexto geral de uma nova obra (“fragmeted literal similarity”), a
doutrina tem considerado essencial que se atenda, em primeiro lugar, ao grau de
criatividade da forma de expressão do autor na combinação dos diferentes elementos
89
O critério da substantial similarity tem resultado essencialmente de uma construção jurisprudencial
(cfr., entre outras, as decisões Nichols v. Universal Pictures Corp.,45 F. 2nd
119 (2nd
Circ. 1930), e Peter
Pan Fabrics, Inc. v. Martin Weiner Corp., 274 F. 2nd 487 (
2nd
Circ. 1960)), muito embora a doutrina tenha
vindo com o tempo a traçar algumas distinções no seio destr critério que visam facilitar a sua aplicação.
Separa, assim, a “semelhança não literal compreensiva” (comprehensive nonliteral similarity), que
respeita à própria essência ou estrutura da obra, mesmo se não existe qualquer duplicação de segmentos
ou partes da mesma, e a “semelhança literal fragmentada” (fragmented literal similarity), que se refere à
cópia de linhas, segmentos ou partes da obra, mesmo que não exista total coincidência das palavras.
Assim, MELVILLE B. NIMMER, DAVID NIMMER, Nimmer on Copyright, Vol. 4, Mathew Bender,
New York, San Francisco, 1999, § 13.03, págs. 20-51. Para um enquadramento deste teste no âmbito do
tratamento em tal direito da actividade de “copying” em geral, cfr. CLÁUDIA TRABUCO, O direito de
reprodução…, cit., págs. 216-219.
30
que utiliza na sua obra90
. Ou seja, como pressuposto da comparação que haverá que
num segundo momento fazer, é imprescindível que se trace primeiro a separação entre
os elementos exclusivamente utilitários, exigidos pela própria função, e os elementos de
desenho verdadeiramente originais, que são, afinal, os únicos que relevam para efeitos
da comparação91
. Só em seguida, numa base inteiramente casuística, se olhará, pois,
para o desenho da obra no seu conjunto (overall design), verificando se a impressão
geral que causa em quem o observa poderá indiciar a existência de uma imitação,
podendo relevar no contexto deste exercício a existência de uma semelhança essencial
dos traços mais marcantes da obra de arquitectura92
.
Nos sistemas jurídicos de civil law, não encontramos um critério geral que venha
servindo de orientação para o apuramento das situações de plágio de obras de
arquitectura93
. No caso do direito português, não existe sequer experiência dos tribunais
superiores na apreciação de situações desta natureza. E, no entanto, é uma questão que
assume relevância, encontrando até alguma expressão na regulação da deontologia da
profissão de arquitecto94
.
A solução terá que ser casuística e contar com os elementos resultantes da análise das
circunstâncias concretas e das características específicas das obras em confronto. Tal
resulta particularmente problemático numa arte em que constantemente se notam
influências de umas criações sobre as outras, em que as obras se inserem muitas vezes
em estilos e que vive, em grande medida, da atracção por referências a obras que, para o
arquitecto, se revelaram marcantes.
90
RAPHAEL WINICK, Copyright protection for architecture…, cit., págs. 1632-1639.
91 Cfr. supra ponto 3.
92 CRAIG JOYCE, WILLIAM PATRY, MARSHALL LEAFFER, PETER JASZI, Copyright Law, 5ª ed.,
Lexis, New York, 2000, p. 214.
93 Cfr. MICHEL HUET, L’architecte auteur, cit., págs. 133-134. Dando testemunho de alguma
jurisprudência espanhola neste domínio, JORGE ORTEGA DOMÉNECH, Arquitectura…, cit., págs.
231-234.
94 Artigo 48.º, alínea d) do Estatuto da Ordem dos Arquitectos, que impõe ao arquitecto o dever de se
recusar a assinar qualquer trabalho em que não tenha participado, e, de forma indirecta, como dever do
arquitecto para com os colegas, a previsão nas alíneas a) e b) do artigo 50.º do mesmo Estatuto, da
necessidade de, respectivamente, “[b]asear a competição entre colegas no respeito pelos interesses de
cada um”, e “[q]uando chamado a substituir um colega na execução de uma tarefa, não a aceitar sem
esclarecer previamente, com ele e com quem lhe incumbe a tarefa, a situação contratual e de direito de
autor”.
31
Talvez se possa, no processo inevitável de comparação quando existem indícios de
plágio, recorrer, seguindo o percurso já proposto no direito estadunidense, a um
exercício paralelo àquele que, no quadro do Direito da Propriedade Industrial, se faz
para a aferição da imitação de uma marca anteriormente registada95
.
Com efeito, neste domínio específico a própria lei estabeleceu e conserva há muito
requisitos imprescindíveis para a verificação de uma imitação (cfr., actualmente, o
artigo 245.º do Código da Propriedade Industrial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º
36/2003, de 5 de Março). Para além disso – o que é mais importante – a doutrina admite
consensualmente critérios de apreciação comuns para as situações de confundibilidade,
sem prejuízo das especificidades colocadas por cada sinal, que poderiam servir, com as
devidas adaptações, de inspiração a um juízo de semelhança entre as obras de
arquitectura96
. Em especial, são importáveis para o Direito de Autor a necessidade de
apreciar a obra no seu conjunto, só se recorrendo a uma “dissecação analítica” caso a
mesma seja indispensável e, bem assim, a identificação de um elemento dominante
poder apenas ser correctamente realizada no quadro de uma visão unitária da obra.
Nas palavras do arquitecto Álvaro Siza Vieira, em comentário a uma obra da sua
autoria, a articulação das influências exercidas sobre uma obra “é um acto de criação
irrepetível. O arquitecto trabalha manipulando a memória, disso não há dúvida,
conscientemente mas a maioria das vezes subconscientemente. O conhecimento, a
informação, o estudo dos arquitectos e da história da arquitectura tendem ou devem
tender a ser assimilados, até se perderem no inconsciente ou no subconsciente de cada
um”97
. Porém, é imprescindível a expressão de uma qualquer singularidade, que liberte
a obra tanto da banalidade como da determinação da função e ainda do carisma das
obras que a precederam.
95
Considerando que o direito de marcas é o fórum adequado para discutir desenhos que são susceptíveis
de confundir o mercado e que este raciocínio pode ser analogamente aplicado às obras de arquitectura,
RAPHAEL WINICK, “Copyright protection for architecture…”, cit., p. 1635.
96 No direito português, leia-se, por todos, LUÍS M. COUTO GONÇALVES, Manual de Direito
Industrial, Almedina, Coimbra, 2005, p. 233.
97 ÁLVARO SIZA, Imaginar a evidência, cit., págs. 36-36.