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ATOS DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO - PPGE/ME FURB ISSN 1809-0354 v. 7, n. 2, p. 380-403, mai./ago. 2012
EXPRESSIVIDADE, CORPOREIDADE E A FENOMENOLOGIA:
QUANDO O CORPO-SUJEITO ENTRA EM CENA
EXPRESSIVITY, CORPOREALITY AND PHENOMENOLOGY:
BODY-SUBJECT ON THE STAGE
GRUNENNVALDT, José Tarcísio
Universidade Federal de Mato Grosso
SURDI, Aguinaldo César
Universidade do Oeste de Santa Catarina
Universidade Federal de Santa Catarina
PEREIRA, Danieli Alves
Universidade Federal de Santa Catarina
KUNZ, Elenor
Universidade Federal de Santa Catarina
RESUMO Este ensaio visa a uma reflexão sobre a “presença corporal” na
Educação Física, quando articulada à fenomenologia de Merleau-Ponty. Nossas experiências humanas constituem nossas diversas formas de “ser-no-mundo”, expressão que indica a impossibilidade de existirmos como razão pura, mas sim como seres corporais, feitos do mesmo tecido do mundo. Em busca de uma educação física que olhe a corporeidade para além da instrumentalidade, percebemos as ideias de Merleau-Ponty como sendo centrais para pensarmos uma educação humana e sensível. A experiência corporal como experiência sensível, aponta para a existência de um “Ser” na educação física que é seu corpo, corpo-sujeito, corpo-vivido, expressividade viva.
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ATOS DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO - PPGE/ME FURB 381 ISSN 1809-0354 v. 7, n. 2, p. 380-403, mai./ago. 2012
Palavras-chave: Expressividade. Corporeidade. Fenomenologia. Educação
Física. ABSTRACT This essay aims to reflect about the “corporal presence” in Physical education, when articulate to the phenomenology of Merleau-Ponty. Our human experiences constitutes different forms of “being-in-the-world”, expression that indicates the impossibility of exist as pure reason, but as corporeal being, made of the same material of the world. Seeking a physical education that looks beyond the instrumentality of the corporeality, we realize the Merleau-Ponty’s ideas as being central to a human and sensitive education. The corporeal experience as a sensitive experience, points to the existence of a “Being”, in physical education, that is body, body-subject, body-lived and living expressivity. Keywords: Expressivity. Corporeality. Phenomenology. Physical Education.
1 INTRODUÇÃO
"Sabe o que eu quero de verdade, é jamais perder
a sensibilidade, mesmo que às vezes
ela arranhe um pouco a alma...
Porque sem ela não poderia
sentir a mim mesma!"
Clarice Lispector
Para atender às necessidades, contundentemente novas, da civilização
industrial moderna, as ciências médicas biológicas e, inclusive, as ciências
humanas e sociais foram persuadidas e se tornaram tecnologia instrumental,
visando conceber o corpo para responder a uma perspectiva que condiz com
os preceitos da ciência moderna. Nela prevalece a visão que admite o corpo de
forma objetiva, generalizante e universalizadora.
O corpo que se objetivou, tendo em vista responder aos anseios da
sociedade industrial e que a ciência moderna não titubeou em responder,
incontinenti, a tal imperativo de orientação da moral do mundo do trabalho, é
uma massa corpórea feita para obedecer aos ditames da lógica produtiva que
requer um corpo submisso, ordenado e disciplinado para atender e responder
aos anseios simplificadores que ordenam condutas e orientam posturas que
favorecem a instauração da ambiência do “mal- estar da civilização”.
Essa concepção de corpo, objetivista e universal, pode ainda ser
verificada nos postos de trabalho onde, por exemplo, se depende do porte
http://pensador.uol.com.br/autor/clarice_lispector/
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atlético do corpo e de sua força física para garantir um emprego, ainda que o
empregador não ignore que o esforço exigido no trabalho é maior do que a
capacidade humana pode suportar.
Não obstante os avanços da tecnologia que vão, gradativamente,
substituindo o homem no trabalho fabril ou nas linhas de produção, ainda é
comum o uso “do corpo” como cobaia para testes físicos ou laborais, com a
intenção de melhoramentos científicos. Com efeito, olhemos para as atividades
do dia a dia, com ênfase nas formas dos movimentos, quer no envolvimento no
tempo do lazer, nas práticas esportivas (normatizadas) e, até mesmo na
escola. Elas nos são apresentadas como se já fossem acabadas e completas,
ou as mais perfeitas, como se todos nós fôssemos iguais e capazes de
reproduzir e estabelecer uma relação de significado razoável a esse corpo-
-movimento.
Assim, a ciência, por intermédio dos meios de comunicação, pensa pelo
sujeito individual e, ideologicamente, o induz a fazer ou a copiar as atividades
previamente estruturadas. Dessa forma, podemos dizer que a ciência
hegemônica e seus métodos e modelos teóricos, lida com os corpos sem vida.
Sabe lidar com as estatísticas e as diferenças percentuais dos acontecimentos
como fatos situados verticalmente, mas, nunca poderá entender o significado
de um corpo vivo, que se expressa e se comunica com o mundo em uma
situação relacional com os outros, com os animais, com as plantas, com os
objetos, consigo mesmo, enfim com a vida. Este corpo-vivido relacional é o que
não se dá às explicações da matemática. Suas recusas, hesitações e
afirmações, podem, sim, através do silêncio, proporcionar a quem o ausculte, a
possibilidade de ouvir a sua fala, e poder compreender o que ele deseja, e isso
é o que o faz um ser expressivo. Esse desejo significa entender a si mesmo
como um “ser-no-mundo”.
Este artigo pretende tecer uma reflexão sobre as possibilidades do
referencial da fenomenologia em ampliar o entendimento de corpo para além
da racionalização instrumental, enfoque que subsumiu a face sujeito, na
relação corpo-sujeito.
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2 UM CORPO-SUJEITO E A CONFIGURAÇÃO QUE ACONTECE NA
RELAÇÃO ENTRE O EU, O OUTRO E O MUNDO
Atualmente, os estudos que têm como referência o corpo, vêm
assumindo um destaque surpreendente. Não obstante a quantidade de
produções encontradas, o surpreendente é o fato constatado da opção pelas
mais diversas abordagens epistemológicas, envolvendo, ao mesmo tempo, as
mais diversas áreas do conhecimento. Tanto filósofos, psicólogos,
historiadores, assim como sociólogos, poetas e artistas despendem esforços
para compreender melhor as questões relacionadas ao corpo.
Os estudos sobre o corpo, tendo em vista contemplar as mais diversas
abordagens epistemológicas, e terem se tornado um objeto de cobiça por
várias áreas de conhecimento, atribuíram-lhe credibilidade, fazendo-o ganhar
mobilidade, despertando a atenção entre as mais variadas disciplinas. Nesse
sentido, acredita-se que a visão, ainda predominante, de que o corpo é uma
matéria puramente física e serve para que o eu pensante de Descartes tenha
existência no mundo, não esteja mais a contento da maioria dos pensadores.
Pelo que se pode observar, ultimamente, o corpo vem recebendo um sentido
diferente, principalmente pelo fato de ser ele que consegue expressar e
manifestar as questões relacionadas à mente, psique, razão e outras.
Essa ideia de entender o corpo com vida e possuidor de sentimento,
está muito além de o pensarmos como um mero e simples objeto. O corpo,
agora, é o que eu sou, é o que me faz ser humano. Estamos a falar de um
corpo adjetivado. É, sim um corpo que trabalha, mas este corpo sonha, brinca,
chora, dói e tudo o mais para caracterizar minhas experiências no mundo. É
esse corpo que revela nosso potencial de criação e expressão frente ao mundo
que percebo. Essa é a real maneira de sermos humanos. A corporeidade é
isto, uma unidade corporal indivisível, que proporciona a construção do mundo
da vida com todas as possibilidades e dimensões.
Tendo em vista essa ideia de unidade corporal indivisível, é a concepção
fenomenológica que entende expressividade e corporeidade como sendo
sinônimos. Segundo Merleau-Ponty (1971), a forma de se expressar e se
comunicar com o mundo acontece através do nosso corpo. É na experiência
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com o nosso corpo, com o outro e com o mundo, que se entendem de modo
organizado e espontâneo os fenômenos. É em nosso corpo que a existência se
realiza. A expressão, pode-se dizer, é um elo, entre o sensível e o significado.
Segundo Muller (2002), Merleau-Ponty se baseia na teoria da expressão
para buscar restabelecer como fator primordial à experiência humana e sua
relação inseparável com os fenômenos, fator este separado pela tradição
clássica. O autor salienta que é pela ideia de expressão que tenta descrever os
fenômenos engendrados por nossas experiências. É através de nosso corpo
que a expressão se realiza e, dessa forma, revela o sentido de nossas
experiências como expressão pura, como manifestação de um interior no
exterior. O autor reconhece que o corpo tem a capacidade de instituir relações
expressivas. Merleau-Ponty (1971) comenta que todo o uso do corpo é uma
expressão primordial, portanto, produz significação e valorização humana.
Ao realizar um ato em direção a um objeto, o que se move é o corpo
fenomenal, cheio de significados e intenções, e não um corpo objetivo. São
acontecimentos expressivos, também, suas significações simbólicas e os
fenômenos sensíveis que pertencem ao corpo próprio. O meu corpo expressa a
unidade de uma ação como sendo uma totalidade (MULLER, 2001). Desta
forma, o saber de que é dotado nosso corpo, que habita o espaço e o tempo,
jamais pode ser entendido como sendo objetivo. Este saber é um poder que
temos sobre nosso corpo que faz com que ele seja mais do que expressivo,
que ele seja realmente, o próprio movimento de expressão. A partir desse
movimento, todas as significações são originadas e exteriorizadas e
proporcionam a existência. “A consciência é o ser para a coisa por intermédio
do corpo” (MERLEAU-PONTY, 1971, p. 193).
Nas relações entre o eu, o outro e o mundo, o significado das coisas
aparece. O mundo está sempre por fazer-se. A ligação do meu corpo com os
fenômenos do mundo, através da experiência, proporciona a percepção real de
todas as coisas. Tal percepção está baseada na vivência do sujeito no e/ou
com o mundo. Nosso corpo possui o poder da expressão que transforma
nossas intenções em atos afetivos, então, nosso corpo deve ser entendido
como um todo, no qual pensamento, palavra e movimento existem um para o
outro, não têm possibilidade de existir um sem o outro. Nossos pensamentos
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ganham vida pelos movimentos que são corporificados pela palavra e pela fala.
Existe, dessa forma, uma interdependência entre a palavra e o ato intencional.
Os atos intencionais só podem ser expressos pela palavra e as palavras só
recebem significação pelos atos intencionais. Sobre este movimento de
unidade Merleau-Ponty, salienta na obra Signos:
[...] com meu corpo que é, entretanto, um pedaço da matéria, se unificam em gestos que visam além dele, assim também as palavras da linguagem, que consideradas uma a uma, são apenas signos inertes, aos quais corresponde alguma ideia vaga ou banal, inflam-se subitamente com um sentido que extravasa no outro quando o ato de falar nos ata em um único todo (MERLEAU-PONTY, 1991, p. 86).
Merleau-Ponty (1971) entende o ato corporal como sendo uma reflexão
que nos remeteria a uma regra pré-reflexiva, pela qual a subjetividade e a
objetividade seriam constituintes. As sensações humanas seriam localizadas
no corpo. Este seria um campo possuidor da capacidade de sentir e ser, ao
mesmo tempo, sujeito e objeto. O corpo, neste sentido, deve ser entendido
como corpo próprio e desta forma como corporeidade. A corporeidade só pode
ser compreendida como vivência humana que pretende fazer com que o
mundo apareça para nós através de nossa consciência. O corpo, no dizer de
Merleau-Ponty (1971), tornou-se o sujeito da percepção.
Podemos perceber o sentido de unidade entre as dimensões da
expressividade e da corporeidade. A expressão, pode-se dizer que é a
operação da intencionalidade. No conceito de expressão, o sensível possui um
sentido imanente, ou seja, o sentido habita o objeto. A expressão se realiza
pela união natural de momentos que se comunicam interiormente em função do
tempo. Sobre a questão da unidade Merleau-Ponty comenta o seguinte:
Só aprendemos a unidade de nosso corpo na unidade da coisa, e é a partir das coisas que nossas mãos, nossos olhos, todos os nossos órgãos dos sentidos nos aparecem como tantos instrumentos substituíveis. O corpo por ele mesmo, o corpo em repouso, é apenas uma massa obscura, e nós o percebemos como um ser preciso e identificável justamente quando ele se move em direção a alguma coisa” (MERLEAU-PONTY, 1971, p. 162).
O corpo se caracteriza pela sua possibilidade de movimento. Esse
corpo, entendido como sendo corpo-sujeito, se movimenta como uma
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intencionalidade que percebe as coisas, vivendo-as. Esse movimento vivo e
livre, podemos dizer que é um ato expressivo, significativo e único. A
expressão só pode ser realizada através do nosso corpo; ela tem a capacidade
de revelar o sentido de nossas experiências puras. No dizer de Muller (2002 p.
60), “a manifestação de um interior no exterior, a manifestação de um excesso
para além do que está dado no espaço, e antes mesmo que nossos
comportamentos simbólicos pudessem representar”.
Por sua vez, a corporeidade dentro de uma visão ampla se define
segundo Santin (2005, p.103) como “uma ideia abstrata de corpo, de ser
corpóreo”. Este modo de ver é herdado pelo pensamento grego, entendido
como soma ou somático, caracterizado como algo material em oposição ao que
é espiritual. Dessa forma de entendimento, o termo corporeidade está
relacionado ao que é material que se manifesta como corpo. Baseado nas
ciências empíricas, a corporeidade é um conjunto das propriedades físicas,
químicas e mecânicas.
Avançando um pouco no entendimento da corporeidade Santin (2005,
p.103), afirma que ela deve ser entendida como uma organização tanto de
ordem material, quanto cultural. Desta forma, pode-se falar em “corporeidade
social, doutrinal, jurídica, profissional e, etc”. O autor defende a ideia de que
tanto corporeidade como corpo devem ser entendidos como tendo o mesmo
sentido. Esta ideia deve ser baseada no entendimento do homem como um ser
corporal, conforme o pensamento de Merleau-Ponty (1971). Merleau-Ponty fala
do “ser corpo” como algo real e existencial do ser humano. A corporeidade
desta forma deve ir além da ideia abstrata do corpo e constituir o corpo como
individual, indivisível e inalienável. A expressividade do corpo é uma forma real
e espontânea de vivência, demonstrando que o homem vive o corpo e o
mundo, simultaneamente, como uma unidade inseparável.
A corporeidade é a realidade humana que se constrói a cada momento
no mundo. O homem é a sua corporeidade, uma forma única de viver a
realidade corporalmente. Sendo assim, ele é movimento criativo que possui
possibilidades ilimitadas de vivências que produzem gestos e expressões,
também, ilimitados que tornam a relação com o mundo significativa e cheia de
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sentido. A presença do homem no mundo pode se entendida através da sua
corporeidade.
Esta corporeidade está ligada às intenções internas do homem. Com isto
deve--se fugir do entendimento puramente material e limitado do homem
corporal, limitação essa que faz do homem um mero instrumento com objetivos
externos e conflitantes aos seus desejos e capacidades que o tornam dono de
si mesmo. O movimento criativo é sempre novo, é como um gesto que, quando
se expressa criativamente, fala e se comunica com os outros e com o mundo.
O homem, como ser-no-mundo, só pode ser entendido como um ser
corporal, que se expressa no mundo e com o mundo, através de sua
corporeidade. Esta corporeidade atual lhe proporciona possibilidades para que
cada um consiga descobrir e entender a si próprio. As intenções humanas
proporcionam uma vivência mais direta e mais criativa da realidade. Nessa
experiência direta do mundo vivido é que deve surgir a nossa capacidade para
conceituar o mundo e buscar entendê-lo de forma racional, uma racionalidade
criada por nós e não oferecida pronta pela linguagem científica. Dessa forma, o
movimento corporal humano deve ser direcionado ao mundo sem restrições
padronizadas; um direcionamento para o mundo vivido deve ser enfatizado
como algo sempre novo que se constrói sempre.
A expressão corporal deve ser um espaço criativo. Ela se apresenta
como sendo uma proposta de trabalhar com o movimento humano de tal forma
que procura estabelecer uma relação reflexiva com o corpo.
Para Schwengber (2005, p. 192-193), os eixos conceituais que se
explicitam com a expressão corporal são: inventividade, espontaneidade,
sensibilidade, liberdade corporal e criação. A expressão pode ser entendida,
ainda, como uma prática pedagógica que trabalha o “movimento como arte –
arte (do movimento), num elo entre técnica e criatividade”.
Esta prática pedagógica, que é a expressão corporal, valoriza toda a
possibilidade de inventividade do movimento. Entende o movimento como
sendo possuidor de inúmeras interpretações e torna todos os sujeitos
especiais, por ser possível a cada um ter sua individualidade, nas diversas
formas de realizar movimentos. Mostra que as pessoas estão vivas e são
capazes de criar e não apenas imitar formas prontas de movimento.
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“Expressar-se corporalmente supõe um trabalho de indivíduo sobre si, um jogo
entre interiorização e exteriorização, numa produção de significantes”
(SCHWENGBER, 2005, p. 193).
Compreende a dinamicidade como uma unidade de fatores, tais como,
corpo, prazer, afetividade, tanto individuais como sociais que constituem a
linguagem corporal que se torna consciente das suas reais possibilidades e,
dessa forma, abre as portas para o ser humano se comunicar com o mundo.
Portanto, a dinamicidade procura ampliar as potencialidades corporais das
pessoas, permitindo que todos vivenciem o corpo pela fantasia ou em outros
níveis de diversas dimensões. Ignora a possibilidade de entender o corpo com
um fenômeno isolado, compreendendo-o sempre em relação com o mundo e
com os outros, abrindo a possibilidade para o corpo expressar suas
manifestações subjetivas e emocionais.
A inventividade “sempre nova” do movimento, também parece ser
possível na concepção de Trebels (2003), respaldado por Christian (1963),
quando apresenta como os movimentos em uma concepção ocorrem:
A gênese do próprio movimento não segue qualquer plano, não se dirige a (re)construção deste movimento, mas desenvolve-se de forma imediata a partir da confrontação com a situação. A única orientação é a do sentimento do movimento... (TREBELS, 2003, p. 253).
Ao trazer à tona a possibilidade de que a orientação do movimento
atribui ênfase ao sentimento, o que o levou a reencontrar o seu lugar, o qual,
segundo Ferry (1994), lhe era recusado pelo classicismo dogmático. Esse
classicismo dogmático, com seus conceitos e regras universais determinados,
passou a orientar as ciências e as artes, a ponto de reificar qualquer forma de
subjetividade, portanto, negada como possibilidade.
A partir desse processo da dinamicidade corporal significativa e
intencional, abrem-se, para as pessoas reais, condições de se tornarem
sujeitos de sua corporeidade, de seus atos e de suas decisões, a partir dos
movimentos corporais como gestos significativos.
A palavra gesto vem do latim gestu, e significa uma atitude ou uma
forma de proceder ou, ainda, um movimento expressivo. Baseado na forma
nominal do verbo, significa ter consigo, executar ou proceder, Ramos (2005, p.
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207), enfatiza que o “gesto pode ser entendido como uma ação corporal visível
que transmite um determinado significado por meio de uma expressão
voluntária”. A atividade gestual pode ser entendida como gestualidade que
procura estudar os gestos enquanto unidades de comunicação. Tais unidades,
quando referidas a um contexto qualquer, nunca podem ser entendidas como
isoladas, mas sim, como um conjunto de expressões corporais que
compreendem o movimento como sempre sendo um gesto novo e interligado
com o mundo.
O gesto, para Merleau-Ponty (1971), nunca é dado, mas sim,
compreendido, e essa compreensão está ligada ao outro, sendo entendido na
reciprocidade das intenções do meu gesto com o gesto do outro. Sobre o
sentido e o direcionamento do gesto, Merleau- Ponty (1971), comenta:
O gesto do qual sou o testemunha designa minuciosamente um objeto intencional. Este objeto torna-se atual e ele é compreendido inteiramente quando os poderes de meu corpo se ajustam a ele e o recobrem. O gesto está diante de mim como uma pergunta, ele me indica alguns pontos sensíveis do mundo, ele me convida a encontrá-lo lá. A comunicação se completa quando minha conduta encontra neste caminho seu próprio caminho. Há confirmação do outro por mim e de mim pelo outro. [...] É pelo meu corpo que compreendo o outro, como é pelo meu corpo que compreendo as coisas. O sentido do gesto, assim compreendido, não está por detrás dele, confunde-se com a estrutura do mundo que o gesto designa e que retomo à vontade, ele se abre no próprio gesto (MERLEAU- PONTY, 1971, p. 195-196).
Apoiando-se, ainda, nessa orientação, Merleau-Ponty (1971) comenta
sobre a questão do hábito. Geralmente, pensamos que o corpo se habitua, ou
seja, automatiza um movimento qualquer através de inúmeras tentativas e que,
depois de automatizado, começa a agir cegamente, sem que precisemos
pensar no movimento para que ele execute um ato específico. O autor afirma o
contrário, ele procura demonstrar que, através do hábito, o corpo aprende e
reflete e nunca poderá ser explicado como um ato puramente automático, ou
como sendo uma operação da inteligência. O autor cita a dança, e comenta
que o corpo capta e compreende o movimento que é a apreensão de uma
significação motora. Pelo fato de o corpo possuir o poder de aprender e refletir,
ele não se restringe a situações que são fixadas para sempre. No hábito,
podemos perceber que o corpo age sempre de forma pré-reflexiva,
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inicialmente, e cuja ação é independente das ordens que recebemos. A
questão de aprender, neste sentido, não significa o potencial corporal de repetir
o mesmo gesto inúmeras vezes, mas de proporcionar várias respostas à
mesma situação motora.
Para Merleau-Ponty (1971), somos inseparáveis do mundo; na
realidade, somos um ser-no-mundo. O hábito possibilita um potencial de
ampliar nossa vivência neste mundo e até mesmo pode nos fazer mudar nossa
forma de existência. O corpo se torna um campo aberto para todos os tipos de
situações, sejam elas reais, virtuais, imaginárias e outras mais que não
podemos identificar por serem ínfimas, mas significativas. O corpo é que nos
coloca em contato direto com o mundo e nos permite transformá-lo. Portanto, o
corpo não pode ser comparado a um objeto físico, seu parâmetro comparativo
é a uma “[...] obra de arte. Num quadro ou num trecho de música, a ideia só
pode ser comunicada pelo desdobramento das cores e dos sons” (MERLEAU-
PONTY, 1971, p. 161), mostrando, assim, a totalidade do corpo como
expressão primordial das experiências vividas no mundo.
Para elucidar, ainda mais, sobre o hábito, Huisman e Vergez apud
Carmo (2004, p. 93) comentam que:
O hábito nos leva a refletir sobre a relação da alma com o corpo. No hábito o corpo deixa de ser inimigo da alma. [...] Uma vez que o hábito é adquirido, o corpo deixa de ser um obstáculo, transformando-se em intérprete, em espelho da ideia. [...] uma bailarina não tem mais o seu corpo, como se tivesse um objeto estranho consigo, mas ela é seu próprio corpo. A alma fez-se corpo, a vontade metamorfoseou-se em poder. Desse modo, o hábito não é mais inércia e mecanismo, mas graça. É o espírito que se encarna e se revela, é antes de tudo este milagre: meu corpo, este velho estranho, tornou-se meu amigo.
Pode-se observar que todas as possibilidades de entendimento da
corporeidade como expressividade remetem à ideia de totalidade. Elas levam a
compreender o processo de construção da humanidade corporal do homem e
essa construção é sempre vivida na prática cotidiana. Para se viver dessa
forma, os manuais não são necessários, basta a nossa percepção, pois Nós é
que temos que traçar nosso caminho e buscar conceituar o mundo através da
vivência de nossas experiências. A todo o momento, recebemos informações
técnicas sobre como temos que ser e viver, mas, se assim for, jamais
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perceberemos o real significado da nossa vida e do próprio mundo. Sobre a
questão da humanidade corporal, Santin (1992, p. 5) defende que:
A humanidade corporal tem como prioridade máxima garantir ao ser humano a plenitude da vida. Não se trata de privilegiar o desenvolvimento intelectual ou psíquico das pessoas em detrimento do desenvolvimento biológico e orgânico. O homem precisa ser um todo, uma unidade sistêmica, onde tudo acontece e se manifesta de maneira indissolúvel. O ponto de partida do ser humano é a corporeidade. Dela se originam e dela emanam todas as propriedades constitutivas do modo de ser do homem, e condição necessária de sua presença e de suas manifestações no mundo.
O homem, sendo sua corporeidade, se expressa de forma original,
criativa e intencional. Este movimento expressivo é dirigido subjetiva e
intersubjetivamente para as coisas que habitam o mundo. Nesta relação de
totalidade, em que não existe a possibilidade de pensar as partes em
separado, o homem desvela todo o significado do mundo.
3 A EDUCAÇÃO FÍSICA E A SENSIBILIDADE: O CORPO-SUJEITO COMO
EXPERIÊNCIA SENSÍVEL
A Educação Física como área de conhecimento, que tem o corpo-
movimento como fenômenos centrais nas suas experiências, vem,
constantemente, aprimorando estudos sobre diversos aspectos que estão
interligados a eles. Porém os estudos, em grande parte, ainda reforçam um
entendimento de corpo objeto, sem vida, sem subjetividade, sem sensibilidade,
sem expressividade, que são elementos destacados nos estudos do corpo
trazido por Merleau-Ponty. Assim, se o corpo é “objetificado” como um objeto
qualquer, logo o movimento humano que nele se efetiva parte de princípios de
instrumentalização, no qual o interesse é pela sua execução mecânica e
“correta”. Este, por sua vez, sendo reconhecido exclusivamente como um
fenômeno físico, desconsidera, inclusive, o próprio Ser que o realiza (KUNZ,
2001). Ao atentar para o contexto escolar, vemos que há resquícios de uma
educação que ainda fragmenta o corpo, pois, conforme Nóbrega (2005, p. 603),
o “corpo e o movimento, apesar de valorizados nos processos educativos,
ainda são considerados elementos acessórios na formação do ser humano”.
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Fensterseifer (2008), ao apontar a escola como produto da
modernidade, diz ser ela um local privilegiado para racionalidade científica
moderna, pois “reproduz a dualidade própria a este pensamento,
dicotomizando matéria-espírito, corpo-mente, sensação-razão” (p.25). O autor,
utilizando uma metáfora para exemplificar uma relação do corpo com a escola,
diz que “ ‘pela porta da frente’ entra o corpo objeto da natureza, o corpo das
ciências naturais, o corpo mensurável, o corpo máquina (produtivo e
disciplinado), ao qual os alemães chamam ‘körper’ ” (p.25). Esse, na educação
física escolar, pode-se dizer que é ainda a presença corporal predominante,
pois, por mais que já tenhamos avançado em propostas teóricas para a área,
ainda nos deparamos com práticas voltadas a um “corpo substancial” (KUNZ,
1991), que considera prioritariamente possibilidades de rendimento. Já “pela
porta dos fundos”, conforme indica Fensterseifer (2008), entra “o corpo sócio-
histórico, “encharcado” de cultura, o corpo das ciências sociais, corpo sensitivo,
expressivo, indisciplinado, criativo porque vivo, ao qual os alemães chamam
“leib” (p.25).
Nesse sentido, vemos que, de forma geral, temos uma cultura
educacional que, por condições históricas, desconsidera a presença corporal
nas ações escolares como um todo, permanecendo a ideia de que escola é
lugar de aprendizagem intelectual, reforçando a dualidade corporal que
Merleau-Ponty tanto questionou. Vê-se que é um grande desafio escolar
reconhecer que não só se aprende com o intelecto puro, mas sim com o corpo
total, que sente, pensa, age e se transforma, um ser humano que, como
evidencia Fensterseifer (2008), vem para a escola já “encharcado” de cultura.
Se por um lado é grande o desafio do sistema escolar como um todo
reconhecer essa “presença corporal humana e totalizadora”, por outro a
educação física por se diferenciar das demais disciplinas, sendo aquela que se
caracteriza pela viabilização de experiências práticas corporais, teria a
possibilidade, por essa razão, de criar um espaço que permitisse a
expressividade corporal, considerando todas as dimensões humanas, por meio
de diversas vivências significativas com os movimentos.
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ATOS DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO - PPGE/ME FURB 393 ISSN 1809-0354 v. 7, n. 2, p. 380-403, mai./ago. 2012
Como bem destacado por Nóbrega (2005), não se trata de incluir o
corpo na educação, pois este já está incluído nela. A preocupação maior está
em
compreender que o corpo não é um instrumento das práticas educativas, portanto as produções humanas são possíveis pelo fato de sermos corpo. Ler, escrever, contar, narrar, dançar, jogar são produções do sujeito humano que é corpo. Desse modo, precisamos avançar para além do aspecto da instrumentalidade (p. 610).
Para refletir acerca da aprendizagem nas aulas de Educação Física
escolar, busca-se pensar como poderia a Educação Física contribuir para
formação de um corpo--sujeito, corpo vivido/criativo, considerando as
dimensões do corpo fenomenológico de Merleau-Ponty (1971) e, também, em
como pensar em uma aprendizagem do movimento humano que vá além da
instrumentalidade, que respeite e inclua a “manifestação do diverso”. Nessa
perspectiva,
o reconhecimento do outro revela consequências éticas na possibilidade de reconhecer as diferenças e construir algo a partir delas. Eu (corpo gestual) não sou solitário, eu sou no mundo e no mundo me torno outro “eu mesmo”. O mundo é comunidade intercorporal. Reconhecer a diferença significa adotar a postura de respeito [...] É no reconhecimento da alteridade que exerço minha liberdade (ZIMMERMANN, 2010, p. 175).
Evidencia-se que é a partir da Educação Física escolar que muitos
sujeitos poderiam ter a oportunidade de manter um maior contato com
diferentes formas de movimentos, ficando a escolha e o desafio para as
propostas e práticas pedagógicas promoverem a construção/formação de um
corpo/sujeito – com experiências significativas através da vivência dos
movimentos, que considere conforme a perspectiva fenomenológica de
Merleau-Ponty o corpo vivido, onde se valoriza o sujeito e as experiências do
seu mundo vivido – ou um corpo/instrumento, com treinamentos que procuram
alcançar padrões/modelos de movimentos, em busca de maior rendimento e
competitividade. Nesse caso, tomar como parâmetro, por exemplo, somente o
treinamento de habilidades físicas em um sujeito, é negar toda a história de um
corpo-próprio, espaço de expressividade, sensibilidade, subjetividade que
possui, com certeza, seus repertórios de movimentos vividos.
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As diversas experiências com um “se-movimentar” não
instrumentalizado/ mecanizado abrem expectativas durante o fazer pedagógico
para um atuar mais sensível, despertando no educando um viver, um sentir, um
expressar, que garante nas vivências individuais e coletivas, um reencontro
mais prazeroso com o outro e com a vida.
Assim como sugeriu Santos (2001), em O novo século das luzes,
permeadas pela “era da globalização”, as cidades se relacionam com os países
nos quais se inserem, mas devido à sua autonomia, nelas há produção própria
de sentido, o que lhes permite realizar uma espécie de “revanche do lugar”.
Pois é ao pensar assim, no exercício da “rebeldia”, que existem possibilidades
de utilizar racional e humanamente as novas tecnologias, “numa espécie de
regresso ao artesanato, à criatividade, à beleza, ao sentido da vida” (SANTOS,
2001a).
Mas, como poderia a Educação Física ensinar ou ajudar o aluno a
aprender o seu corpo-sujeito quando, desde a mais tenra idade, nossas
crianças e, principalmente, os adultos convivem com a “prevalência de uma
perspectiva que compreende o movimento humano de forma estritamente
objetivista”? Parece que, se olhássemos para corpos singulares, – tal como
Milton Santos vislumbrou as cidades – poderíamos começar a perceber
possibilidades de realização de outra espécie de revanche, a “Revanche do
Corpo”, vivificado de sentimento e emoção. Essa, talvez, possa ganhar
materialidade, não pela “incorporação via discurso”, mas com “práticas
corporais” (BRACHT, 1996, p. 27).
Neste sentido, parece ser oportuna e instigante a sugestão de Certeau
(1994) no seu Fazer com: usos e táticas, ao destacar na literatura
possibilidades de diferenciar “estilos” ou maneiras de escrever e, portanto,
seria possível também distinguir “maneiras de fazer” – de caminhar, ler,
produzir falar e, defendemos agora, produzir e ser o meu corpo. Assim,
ousamos denominar de “Revanche do Corpo” as “maneiras de fazer” como
alternativas e possibilidades, ainda que determinadas, por aquilo que temos à
mão. Vejamos que,
[...] diante de uma produção racionalizada, expansionista, centralizada, espetacular e barulhenta, posta-se uma produção de
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tipo totalmente diverso, qualificada como “consumo”, que tem como característica suas astúcias, seu esfarelamento em conformidade com as ocasiões, suas “piratarias”, sua clandestinidade, seu murmúrio incansável, em suma, uma quase-invisibilidade, pois ela quase não se faz notar por produtos próprios (onde teria o seu lugar?) mas por uma arte de utilizar aqueles que lhe são impostos ( CERTEAU, 1994, p. 94).
Não obstante, a instigante contribuição de Charlot (2009) ao propor “uma
revolução copernicana: eu sou meu corpo”, enfatiza que quem sabe do próprio
corpo é quem vive o corpo. E, certamente, não se trata de discursos
elaborados, ora oriundos da biologia, da sociologia, psicologia, história ou
filosofia, mas que não seja uma opção maniqueísta, a de expulsar a palavra
“falar de” do ensino da Educação Física. Mas, como adverte Charlot,
pertencendo ao corpo “real”, vivido, sempre um resto escapa à fala. Mas não
será, talvez, este resto de pequena possibilidade de a Educação Física fazer
uma educação do corpo-sujeito, como “revanche do corpo”, pois é o corpo
quem sabe e como se pode educá-lo destoando do axioma de que o
entendimento racional determina a relação dos indivíduos com o mundo.
Essa advertência diante da perspectiva de sermos tomados pelo “falar
de”, já se explicitava nos PCNs (1998), pois:
[...] Nenhum discurso racional, por mais elaborado que seja, pode substituir a experiência prática e a vivência corporal. O movimento é real e não virtual. O gesto é a sensação, a emoção, a reflexão, a possibilidade de comunicação e satisfação. Todas as modalidades de esporte, dança ou ginástica, têm existência na medida em que são exercidas por pessoas ( PCNs, 1998, p. 38).
Pensar a “revanche do corpo”, poderia se situar como postula Crhristian,
citado por Trebels (2003), um fazer [o corpo] que de forma imanente
acompanhe um sentimento do fazer.
Não menos emblemático de sinais que evidenciam a “revanche do
corpo” é a sugestão de Bracht, apoiado em Betti, ao atentar para o fato de que
a educação crítica, valendo-se também na Educação Física, deveria de ter
preocupação para com a educação estética, – educação da sensibilidade –,
quando nas práticas corporais, as normas e valores ao orientarem gostos,
preferências, aliados ao entendimento racional contribuem para uma relação
equilibrada dos indivíduos com o mundo. Não se trata de diluir a razão, ou
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ATOS DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO - PPGE/ME FURB 396 ISSN 1809-0354 v. 7, n. 2, p. 380-403, mai./ago. 2012
racionalidade cientifica, na sensibilidade, mas promover uma relação razoável
entre ambas “nem movimento sem pensamento, nem movimento e
pensamento, e, sim, movimentopensamento”17. (BRACHT, 1996, p. 27).
O olhar estético que comporta a questão da sensibilidade é,
possivelmente, uma das belas provocações que nos deixaram os Parâmetros
Curriculares Nacionais ao considerar que:
O desenvolvimento moral do indivíduo, que resulta das relações entre a afetividade e a racionalidade, encontra no universo da cultura corporal um contexto bastante peculiar, no qual a intensidade e a qualidade dos estados afetivos experimentados corporalmente nas práticas da cultura de movimento literalmente afetam as atitudes e decisões racionais (PCNs, 1998, p. 34).
Se entendermos que reconhecer a diferença significa adotar posturas de
respeito e, quiçá, de satisfação, então é no reconhecimento da alteridade que
exerço minha liberdade. Mas, vejamos que possibilidade ímpar nos proporciona
a cultura de movimento pela vivência concreta de sensações de excitação,
prazer, cansaço e, porventura, até a dor, quando consentida. Não obstante, a
mobilização intensa de emoções e sentimentos, da imensa satisfação, medo de
vergonha, de grande alegria e profunda tristeza, são situações que se
configuram como um desafio à racionalidade. Portanto, pela “revanche do
corpo”, visto que nestas situações junto ao outro, manifestações de sentimento
podem, nas raras exceções que a história nos possibilita, deixar “de ser
apenas uma referência ao amanhã”, assim o novo [sentimento, intuição,
sensibilidade e percepção], deixa de ser apenas uma referência para o futuro;
“ele é também constituído do que hoje ainda não se realizou, mas a partir de
possibilidade atuais concretas” (SANTOS, 2001a).
Sobre o amanhã já se estar fazendo no agora é, possivelmente, um caso
de uma utopia concreta. E, sobre elas, foi Kunz (2000) que mais uma vez em
uma destas encruzilhadas da vida acadêmica, sem perder de vista a
direcionalidade pedagógica de seus escritos nos apresentou uma aproximação
dos conceitos –“percepção, sensibilidade e intuição” – até então
marginalizados pelo classicismo dogmático.
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4 O SE-MOVIMENTAR, O CONHECIMENTO DE SI E O RESPEITO À
SINGULARIDADE DO SUJEITO
A fenomenologia e sua proposição de captar o mundo em seu status
nascendi, ou no inicio de toda reflexão, possibilita que os três conceitos
supracitados ganhem visibilidade como conceitos operadores de descrição de
realidades. Parece que foi movido por esta provocação da fenomenologia como
campo aberto de investigação que Kunz foi desafiado e instigado a “descobrir
as coisas encobertas pela teorização excessiva e abstrata” (KUNZ, 2000, p. 5).
Atribuir centralidade a conceitos como “conhecimento de si”, “auto-
conhecimento” ou, ainda o “sentimento”, como categorias operacionalizadoras
de “situações didáticas” em aulas de Educação Física escolar ou esporte nas
circunstâncias da sociedade contemporânea movida pelas “necessidades
inventadas” em que a efemeridade é o que conta, é possível quando se partilha
de uma espécie de “Elogio da lentidão” sobre o uso das coisas, pois se está
formando acima de tudo, crianças e jovens.
Não se trata de pregar o desconhecimento da modernidade - ou uma forma de regresso ao passado -, mas de encontrar as combinações que, segundo as circunstâncias próprias a cada povo, a cada região, a cada lugar, permitam a construção do bem-estar coletivo. É possível dispor da maior velocidade tecnicamente possível no momento e não utilizá-la. É possível fruir da modernidade nova, atual, sem ser obrigatoriamente o mais veloz (SANTOS, 2001b).
Nesse sentido, ao olhar para o corpo e auscultá-lo na sua natureza mais
profunda, ou seja, aquilo que ele captura por meio dos sentidos ainda não
interpretados, nos faz pensar que Santos parece estabelecer uma afinidade
com a obra de Merleau Ponty (1971). Talvez, por analogia fosse possível
pensar que a Educação Física, precisa também voltar “as coisas mesmas” para
deixar o corpo falar a partir de sua linguagem e, não incorporar a
representação da modernidade “super nova”. E, assim, fazem sentido as
formulações de que “tudo aquilo que sei do mundo, mesmo por ciência, eu o
sei a partir de uma visão minha” (MERLEAU PONTY, 1971, p. 3) e, quando se
trata de envolvimento, “de uma experiência do mundo sem a qual os símbolos
da ciência não poderiam dizer nada” (MERLEAU PONTY, 1971, p. 3).
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Poderemos até nos encantar com toda a beleza estética do corpo que se
utiliza da maior velocidade técnica para produzi-lo com os meios das clínicas
de estética e academias de ginástica, poderemos ficar seduzidos pelo novo
corpo-atleta, que se traduz na performance, mas coitada dela, ela já nasce
velha, por conta da obsessão de superação de marcas que é a linguagem
comum no campo da ciência esportiva. Por fim, poderemos ser ludibriados pelo
discurso do corpo-saúde, mas esse cada vez mais se materializa em um
paradoxo, pois com o avanço da ciência e da tecnologia, um número crescente
de crianças, adolescentes e jovens, para não falar de adultos, recorre aos
medicamentos para controlar suas ansiedades, medos e depressões, filhos da
modernidade contemporânea.
Nesse sentido, é possível que sobre a ciência, seus usos e abusos,
e, para pensá-la com rigor, deve-se “apreciar exatamente seu sentido e seu
alcance, precisamos primeiramente despertar essa experiência do mundo, da
qual ela é a expressão segunda (MERLEAU PONTY, 1971, p. 3).
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Chegando ao final do texto, no leitor pode ter sido afetado pela
impressão de que os autores não corresponderam às expectativas criadas
desde a leitura do título do texto. É necessário destacar que nossa pretensão
não foi estabelecer um diálogo com a perspectiva que reconhece e objetiva o
corpo e intervenções sobre a relação corpo--mundo e movimento-mundo a
partir da perspectiva de corpo substancial.
Objetivou-se, com o texto que ora finda, ao estabelecer nexos e
possibilidades de intervenções problematizadas baseadas com o referencial da
fenomenologia, ampliar o entendimento de corpo para além da racionalização
instrumental. A expectativa por proposições, decerto é decorrente ao fato de
os autores desse artigo terem efetuado, ao longo do escrito, uma crítica à
perspectiva que concebe o movimento humano e o corpo humano de forma
objetivista e ao modo como as análises do corpo-movimento se vinculam ao
paradigma empírico-analítico.
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Aguçando ainda mais a expectativa do leitor, em vez de dar respostas,
levantamos duas questões, invertendo a sequência proposta por Trebels
(2003): 1. Como se relaciona o movimentar humano e o [corpo humano] no
campo das ciências do esporte, no qual é dominante o conceito mecanicista
de movimento? 2. O conceito dialógico de corpo relacional é a única forma
possível de compreensão da corporeidade e de ensiná-la com compromisso
pedagógico?
As respostas são possíveis, mas elas trazem certamente as marcas das
diferentes perspectivas científicas de “ser humano e corpo” e, em que medida
se materializam propostas educacionais em que se mantém ou se supera a
dicotomia sujeito-objeto. Tamboer, apud Trebels (2003) para ilustrar como a
dicotomia sujeito-objeto é persistente, lança mão da tipologia de imagens e faz
uso do conceito de “figurações” para designar como o corpo humano pode se
relacionar com o mundo.
Essas figurações do ser humano podem ser substanciais e relacionais, e
ambas implicam perspectivas educacionais de explicação ou de compreensão
da relação corpo no mundo. As primeiras concebem e conceituam o ser
humano e seu corpo como uma entidade isolada, não existe para o sujeito
margem para compreensão do que passa pelos órgãos dos sentidos, pois o
corpo está envolto com a pele e ela é o invólucro que não o deixa contaminar-
se com as fantasias da sensibilidade. Para tal perspectiva, o que conta, é o
corpo objetivado do paradigma empírico-analítico de pesquisa.
Em contrapartida, existem as figurações do ser humano que são
relacionais. Nelas, o corpo não é entidade isolada, pode, portanto, estar ligado
a outras entidades, também isoladas, mas em interdependência, pois se parte
da condição relacional própria do corpo, que se clarifica no conceito de corps
subject, de Merleau Ponty (TREBELS, 2003). Essas relações de corpos com
outros corpos são figurações relacionais, que admitem a (re)construção de
movimentos, quando da confrontação com a situação; entendemos que essa
seja a configuração capaz de responder a segunda questão formulada acima.
Tal configuração de corpo e movimento, na medida em que procura
compreender um sujeito que se move em situação, descarta “o mundo seguro
das coisas das definições físicas [que] perde sua identidade e passividade no
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ato de movimentar. Esta é uma consequência de considerarmos o movimento
dialógico” (TREBELS, 2003, p. 260).
Nos termos propostos por Trebels (2003), admite-se, pari passu com a
fenomenologia, que a manifestação primeva do movimentar-se do ser no
mundo não considera a interpretação que “separa substancialmente
Pessoa/Sujeito de um lado e mundo/objeto do outro” (p. 260). Assim, entende-
se que:
Movimentar-se é, a forma de ação original do ser humano, por meio do qual ele se remete ao mundo, e na qual – como ação – constrói a si como sujeito e o mundo como sua contraface imaginária (TREBELS, 2003, p. 260).
Parece que as figurações substanciais que movem perspectivas de
intervenções pedagógicas sobre o corpo e o movimento na Educação Física
que se pautam demasiadamente nas orientações da biomecânica, pretendendo
– amparados nos princípios da quantificação e da racionalidade objetiva –
explicar e controlar o mundo, as relações corporais e de movimento que os
sujeitos estabelecem com o mundo e a vida, vão reduzindo o lugar do sujeito
como descobridor de possibilidades.
Quando o sujeito é centro na relação corpo-mundo e movimento-mundo,
a qualidade da relação não é o que conta naquilo que se controla ou funciona,
pensado a partir de quem está de fora, mas, talvez, o que mais valha é a
satisfação pessoal de contemplar, admirar e partilhar de uma experiência em
que a abertura para a percepção seja permitida.
JOSÉ TARCÍSIO GRUNENNVALDT Graduado em Educação Física pela Universidade de Passo Fundo-RS em 1985. Especialização em Educação Física escolar na Faculdade Salesiana – Dom Bosco – Santa Rosa – RS em 1991. Mestrado em Educação pela Universidade Federal de Sergipe – UFS em 1997. Doutorado em Educação no Programa: Política, sociedade, educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo- PUC em 2005. Professor Associado do Instituto de Ciências da Saúde da Universidade Federal de Mato Grosso –Sinop. Em estágio de Pós- doutoramento em Educação Física pela UFSC (2011-2012).
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ATOS DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO - PPGE/ME FURB 401 ISSN 1809-0354 v. 7, n. 2, p. 380-403, mai./ago. 2012
AGUINALDO CÉSAR SURDI
Graduado em Educação Física pela UFSM - RS em 1995 Graduado em Filosofia pela UNOESC - Campus Videira SC em 2004 Especialização em Desenvolvimento Humano pela UFSM - 1996 - 1998 Mestre em Educação Física pela UFSC - SC 2006-2008 Doutorando em Educação Física pela UFSC - início 2010 Professor da Universidade do Oeste de Santa Catarina (UNOESC) DANIELI ALVES PEREIRA
Licenciada em Educação Física, especialista em Educação Física Escolar e, Dança e Consciência Corporal. Mestrado pelo Programa de Pós-Graduação em Educação Física da UFSC. Bolsista Capes.
ELENOR KUNZ
Mestrado pela Universidade Federal de Santa Maria – UFSM. Doutorado e pós-doutorado pela Universidade de Hannover- Alemanha. Autor de vários livros com destaque para: Educação Física: ensino e mudanças; Educação Física crítico-emancipatória e Didática da Educação Física (v. 1, 2 e 3). Editora Unijuí-RS. Presidente do Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte (CBCE) por duas gestões (1995-1997 e 1997-1999). Passagem junto à Comissão de Especialistas SESu/MEC. Professor Titular do Centro de Desportos da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Pesquisador CNPq. REFERÊNCIAS
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