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    COMO

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    INSTITUIES

    PENSAM

    MARY DOUGLAS

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    AS INSTITUIES OPERAM CLASSIFICAO

    Quando as instituies operam classificaes para ns, parece que

    perdemos parte daquela independncia que, concebivelmente, poderamos

    ter tido. Enquanto indivduos, possumos todos os motivos para nos

    contrapormos e resistirmos a esse pensamento. Vivendo juntos, assumimos

    uma responsabilidade individual que se estende a todos os membros dacomunidade. Assumimos a responsabilidade por nossos atos e ainda mais

    voluntariamente por nossos pensamentos. Nossa interao social consiste em

    boa parte em comunicarmos uns aos outros o que estvamos pensando

    naquele determinado momento e em censurarmos os pensamentos

    equivocados. Com efeito, assim que construmos as instituies, amoldando

    nossas idias e as dos outros em um formato comum de tal modo que

    possamos provar nossa correo simplesmente por meio das cifras querevelam uma aquiescncia independente. A tal ponto esta reivindicao

    independncia intelectual reconhecida como base de nossa vida social, que

    a filosofia moral toma uma posio exatamente a. Por isso to repugnante

    o conceito de Durkheim, segundo o qual o grupo social age como uma nica

    mente.

    Aqui o julgamento da histria encobre um paradoxo. Quanto mais se

    demonstra que um pensador influente vem repetindo os lemas favoritos de

    sua poca, mais severamente ele ser denunciado por esse mesmo motivo

    pela prxima gerao. Sua altissonante grandeza no passava de um simples

    eco do que todo mundo estava dizendo. Ele no era um original,

    simplesmente copiava. Ele deveria ter-se contraposto sua poca. No

    passava de uma simples flauta, um instrumento passivo no qual o esprito de

    seu tempo soprava sua balada. O desprezo revestido particularmente de um

    julgamento moral; no depunha a seu favor o fato de aderir passivamente s

    ltimas mudanas da opinio sobre a escravido, a insanidade, a eugenia ou

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    o imprio colonial. a postura de superioridade moral mais fcil de se adotar

    porque a crtica das instituies do passado est ajudando as estruturas

    institucionais nascentes da poca desse autor a estruturar sua prpria defesa

    contra o passado. Esta a crtica marxista razo, que resulta

    freqentemente em relativismo histrico. Cada perodo marcado por seu

    prprio estilo de pensamento, ajustado s preocupaes da classe dominante.

    Em cada perodo, uma determinada histria do gnero humano abafa verses

    mltiplas e contraditrias. No mesmo esprito crtico, Michel Foucault, em sua

    arqueologia do pensamento ocidental, atacou todas as instituies

    significativas, demonstrando como elas aprisionavam as mentes e os corpos

    em camisas-de-fora (1970). Ele demonstrou como o pensamento

    transferido diretamente para as instituies ou vice-versa, e como as

    instituies passam por cima do pensamento individual e adaptam a forma do

    corpo a suas convenes.

    Uma instituio, entretanto, no pode ter propsitos. J vimos isto nas

    crticas do ensaio de Fleck sobre a gnese de um fato. Somente os indivduos

    podem intentar, planejar conscientemente e elaborar estratgias oblquas.

    Para que o insight de Foucault retenha seu vigor necessrio que ele seja

    elevado a um novo patamar. No estgio da pertinncia, quando a soberania

    espria de um estilo de pensamento do passado demonstrado, a opinio

    crtica perde seus fundamentos, a menos que possa encontrar um modo de

    distinguir a influncia do atual estilo de pensamento sobre seu prprio

    pensamento e ainda justificar seus prprios julgamentos. As instituies

    dirigem sistematicamente a memria individual e canalizam nossas

    percepes para formas compatveis com as relaes que elas autorizam.

    Elas fixam processos que so essencialmente dinmicos, ocultam a influnciaque eles exercem e suscitam emoes relativas a questes padronizadas e

    que alcanam um diapaso igualmente padronizado. Acrescente-se a tudo

    isso que as instituies revestem-se de correo e agem no sentido de que

    sua mtua corroborao flua por todos os nveis de nosso sistema de

    informao. No de admirar que elas nos recrutem facilmente para que nos

    juntemos sua autocontemplao narcisista. Quaisquer problemas sobre os

    quais tentemos refletir so transformados automaticamente nos prpriosproblemas organizacionais dessas instituies. As solues que elas

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    oferecem provm unicamente da limitada gama de sua experincia. Se a

    instituio daquelas que dependem da participao, nossa frentica

    interrogao ela responder: "Mais autoridade!". As instituies tm a pattica

    megalomania do computador, cuja nica viso do mundo seu prprio

    programa. Para ns, a esperana de uma independncia intelectual est na

    resistncia e o primeiro passo necessrio na resistncia est em descobrir

    como o controle institucional imposto nossa mente.

    A teoria social de Max Weber e a de Durkheim ilustram respectivamente

    as vantagens mistas de se deixar as instituies operar suas prprias

    classificaes (Weber) e as dificuldades de inspecionar como elas o fazem

    (Durkheim). Weber exerceu mais influncia do que Durkheim. Ele estabeleceu

    os termos para que se pudesse pensar sobre o modernismo e o

    psmodernismo. Seu sucesso se deve principalmente ao amplo quadro no

    qual sintetizou aquilo que j era o pensamento de sua gerao. Ele ofereceu

    aos intelectuais de sua poca uma viso da histria de outras grandes

    civilizaes em termos das prprias instituies familiares desses mesmos

    intelectuais. Durkheim e Weber focalizaram sua investigao na racionalidade

    e, especificamente, na relao entre idias e instituies. Para ambos o

    interesse principal era a emergncia do individualismo enquanto princpio

    filosfico. No caso de Durkheim a tarefa consistia em explicar a indagao

    geral do comprometimento com a ordem social, isto , a questo da

    solidariedade, que a mesma que a ao coletiva. Ele descobriu a resposta

    na classificao compartilhada. O trabalho de Durkheim sobre a origem social

    da classificao possibilita um mtodo independente de auto-inspeo. Ele

    proporciona uma tcnica para a anlise que poderia constituir-se em uma

    prova contra a distoro institucional. Para Weber, a tarefa consistia emexplicar o predomnio de determinadas idias e ideais em um determinado

    estgio de desenvolvimento institucional. Estas observaes j mostram que

    Durkheim havia situado sua investigao em um nvel mais elevado de

    abstrao. Na poca de Weber, as opes intelectuais institudas eram ou de

    um tipo hegeliano de idealismo (difcil e implausvel, dado o clima de opinio

    existente na sociologia) ou de um tipo marxista de determinismo sociolgico.

    Ele escolheu um meio caminho entre o idealismo e o determinismo. Tendo emvista sua monumental contribuio compreenso da racionalidade e das

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    formas institucionais, no deixou a seus seguidores um mtodo sistemtico

    que possibilitasse analisar essa relao com maior sutileza. Na realidade,

    legou-Ihes muitssimos problemas relativos ao que queria dizer realmente

    com o esprito do protestantismo ou o esprito da poca.

    O modelo bsico da sociedade em Weber um equilbrio entre os

    diferentes setores institucionais. Sua principal explicao para a mudana a

    descrio das foras histricas que contribuem para o desequilbrio. O

    pensamento secular divide-se em dois setores, um deles dominado pelas

    instituies do mercado e o outro pela burocracia. A racionalidade do mercado

    caracteriza-se por um raciocnio prtico, individual, em torno dos meios e dos

    fins; a racionalidade burocrtica caracterizada pelo pensamento

    institucional, isto , pela abstrao e o estabelecimento de uma rotina. A

    dicotomia de Weber ainda domina a teoria poltica e conferiu um vis

    inamovvel a nossas maneiras habituais de refletir sobre as organizaes (ver

    Douglas 1986). Em se tratando da sociologia da religio, Weber estabelece

    uma distino entre a vida religiosa e a vida secular. Ele aparta o

    comportamento secular do comportamento religioso, situando-o em um

    compartimento institucional prprio. A classificao weberiana da religio

    sempre segue a classificao tradicional dos papis religiosos, que faz parte

    da diferenciao regular, da vida real, das instituies religiosas. Um

    pensador que classifique os fenmenos para que sejam examinados de

    acordo com instituies conhecidas e visveis poupa-se o trabalho de justificar

    a classificao. J o esquema conceitual normal para aqueles que vivem e

    pensam por meio de semelhantes instituies. Entretanto, ao proceder assim,

    Weber nos prope um intricado problema relativo sociologia da religio.

    Como a religio tem sido definida institucionalmente, e a secularizao pelodesengajamento da religio em relao s instituies, a secularizao

    implica ntida perda para a religio. No entanto, retirar a vida religiosa das

    instituies seculares pode acontecer sem perda da f de cada um. O ganho,

    em se tratando da f particular, e a perda da cerimnia pblica no

    acontecem necessariamente no mesmo processo, conforme assinalaram

    muitos comentaristas. Ao abordar a histria religiosa de Israel, China e ndia,

    Weber emprega a estrutura institucional da sociedade ocidental. Isto lhepossibilita recorrer ao nosso atual conceito de nossa experincia histrica em

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    vez de reportar-se a qualquer teoria causal da mudana. No panorama das

    grandes civilizaes cada uma delas comea em uma comunidade primitiva

    (que continua no sendo examinada). Em seguida, todas elas, em diferentes

    perodos, atravessam os mesmos estgios: o estgio feudal, no qual o

    equivalente da nobreza se distingue dos equivalentes do campesinato e do

    qual um setor comercial emergente acabar por desviar todo o sistema para

    uma cena urbana. O incio revestido de sacralidade e pasmo; a urbanizao

    introduz os mercados, a intelligentsia, a burocracia, o sacerdcio e tambm os

    grupos de prias. As instituies crescero e convergiro para aquele ponto

    que agora vivenciamos e deploramos. A histria se conclui com o rasgar dos

    vus, a perda do encantamento, o questionamento e o fim da legitimidade. A

    inverossmil narrativa proposta por um pensamento institucional como este

    que a legitimidade sempre existiu sem ser questionada, onde quer que fosse.

    Que outrora tenha havido um perodo de legitimidade inquestionvel uma

    idia que nossas instituies usam para estigmatizar os elementos

    subversivos. Por meio desse esperto recurso passa a idia de que a

    incoerncia e a dvida algo que acaba de chegar, juntamente com os

    bondes e a luz eltrica; so intrusos nada naturais naquela confiana primeva

    na pequenina comunidade idlica, porm mais plausvel que a histria da

    humanidade esteja repleta, desde o incio, de pregos cravados nos caixes

    locais da autoridade.

    O pesar de Weber pela passagem da infncia da humanidade adoado

    pela exaltao. O movimento moderno em direo liberdade intelectual

    significa o desafio colocado por um mundo adulto, livre de sacerdcios, magia

    e outras tiranias. Os novos medos, por mais aterrorizantes que possam ser,

    so medos reais e no falsas supersties; eles acarretam responsabilidadese privilgios reais e no iluses. A alvorada dourada de Weber uma

    contrapartida ao mitolgico livro de Frazer, O Ramo Dourado, e ao modelo

    colonial da psique elaborado por River (1920). Se eles falavam em coro

    porque as mesmas instituies estavam operando seus pensamentos.

    Na introduo tica Protestante (1905), Weber afirmou que havia lido o

    mais que pudera para apresentar sua argumentao com o mximo de

    clareza, mas desculpou-se por haver negligenciado a etnografia. No contextoparece, com toda certeza, uma omisso bem menor. Como que aquelas

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    pequeninas tribos exticas, que tanto intrigaram Durkheim e Mauss, poderiam

    apresentar qualquer relevncia para seu tema? Aqui, mais uma vez, ele est

    fazendo eco para aquilo que seus leitores sentem ser a verdade. Ele (e eles)

    acreditam realmente que uma profunda diviso separa a experincia que

    temos da sociedade daqueles povos que existem unicamente nos registros

    dos exploradores, missionrios e antroplogos. O mesmo acreditaram os

    socilogos desde ento.

    A crena criada por uns dois rpidos acenos de mo. No primeiro

    aceno Weber nos ensinou a encarar a sociedade em termos dos setores

    institucionais que conhecemos; tais setores so povoados por sacerdotes,

    juzes, intelectuais, elites, proprietrios de terra, arrendatrios e proscritos.

    Nesse cenrio os problemas da racionalidade so colocados como problemas

    que apenas surgem com o crescimento e conflito dessas instituies. Assim,

    aqueles povos cuja sociedade no diferencia claramente os juzes, os

    sacerdotes, os proprietrios de terras e outros setores no podem ser

    relevantes para a histria moderna. A ndia, a China e Israel so relevantes

    porque sua histria pode ser apresentada em termos de equilbrio ou

    desequilbrio entre esses setores institucionais. Os aborgenes australianos e

    os esquims apenas escorregam entre as malhas da rede da investigao.

    Passemos ao segundo aceno. O arcabouo hegeliano do modelo de

    Weber pressupe que a histria das instituies do mundo registra a

    constante evoluo da autoconscincia. Benjamin Nelson (1981) apresenta

    um srio e claro relato sobre os pressupostos weberianos da conscincia

    humana em desenvolvimento. Enquanto nosso interesse girar em torno do

    interesse final, ento haver pouco a se ganhar do exame das fases iniciais

    do movimento. Aqui oculta-se outra idia convincente, isto , o esnobismo domundo da escrita. Os povos que no registraram por escrito suas meditaes

    filosficas no podem possuir princpios articulados que Ihes possibilitem

    refletir sobre a ordem social.

    Na qualidade de contemporneo, Durkheim caiu em todas essas

    armadilhas institucionais. Ele partiu da mesma distino bsica entre

    primitivos e modernos, e tambm as encarou pelo emprego que elas fazem de

    diferentes procedimentos mentais. Seria uma tolice sugerir que ele,igualmente com sentimentos confusos, tambm no subscrevesse a idia de

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    uma alvorada dourada da humanidade. Para ele, a graa salvacionista no

    estava no interesse pela reconstruo das vrias fases da evoluo que se

    desenrolaram do incio at agora. Assim, sua teoria no to sobrecarregada

    de pressupostos institucionalmente estabelecidos. Seu modelo evolucionista

    apresenta apenas dois estgios: o estgio primitivo da solidariedade

    mecnica, baseada em classificaes compartilhadas, e o estgio moderno

    de solidariedade orgnica, baseado na especializao econmica e na troca.

    Se retirarmos as escoras evolucionistas da teoria de Weber, no sobra nada,

    com exceo das sries hierrquicas de instituies. Se as retirarmos da

    teoria de Durkehim, sobram-nos duas formas de comprometimento social,

    uma delas cIassificatria e a outra econmica. At mesmo Durkheim no

    acreditava que a solidariedade classificatria estava associada unicamente a

    estgios subdesenvolvidos da diviso do trabalho, pois dispensava muita

    ateno s idias estandartizadas do que certo e do que errado na

    sociedade moderna.

    Ler isoladamente As Formas Elementares da Vida Religiosa do restante

    da obra de Durkheim garantir sua compreenso equivocada, j que o

    pensamento deste autor era um arco simples, no qual cada publicao

    relevante era um pronunciamento necessrio. Ele batia sempre na mesma

    tecla, isto , a perda da solidariedade classificatria. Deplorava a

    impossibilidade de a substituir e as crises da identidade individual que

    decorrem da ausncia de classificaes vigorosas que prestem apoio

    publicamente compartilhadas e particularmente internalizadas. Durkheim

    ensinou que as idias publicamente padronizadas (representaes coletivas)

    constituem a ordem social. Reconhecia que o domnio que elas exercem

    sobre o indivduo varia quanto fora. Denominando-a densidade moral, eletentou medi-Ia e avaliar os efeitos de suas fraquezas. De acordo com

    Durkheim, o mtodo sociolgico requer que as reaes individuais sejam

    tratadas como fatos psicolgicos a ser estudados em um quadro de referncia

    da psicologia individual. Somente as representaes coletivas constituem

    fatos sociais e estes contam mais do que os fatos psicolgicos porque a

    psique individual constituda por classificaes socialmente construdas.

    Como a mente j colonizada, deveramos pelo menos tentar examinar oprocesso colonizador.

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    Quando Durkheim escreveu com Marcel Mauss o ensaio sobre a

    classificao primitiva (1903), aquilo que j era uma convico a longo prazo

    (isto , o ato de que a solidariedade se baseia em classificaes

    compartilhadas) comeou a tomar-se um mtodo. verdade que Weber

    relacionou estilos diferenciados de raciocnio com tipos diferenciados de

    instituies e, portanto, verdade que este tambm seu programa. No

    entanto, seus avisos de que o sagrado havia sido afugentado e que agora os

    indivduos permanecem em um territrio sem legitimao, bem como seu

    tributo ao esprito da poca, exerceram um efeito soporfico. A pesada tarefa

    de classificar tipos de sistemas de classificao e as atitudes morais a eles

    associadas mal foi encetada. Enquanto todos os demais adotavam posturas

    institucionalmente prescritas sobre a modernidade, a perda da legitimidade, o

    maravilhamento e a sacralidade, Durkheim e Mauss propunham analisar at

    que ponto as classificaes mundanas que empregamos so projees da

    estrutura social que participam da aura da sacralidade. O sagrado de que os

    weberianos sentiam falta era uma mstica impossvel de se analisar. O

    sagrado, para Durkheim e Mauss, eram classificaes mais misteriosas e

    ocultas do que compartilhadas, profundamente acalentadas e violentamente

    defendidas. Isto no tudo: esse conceito do sagrado passvel de anlise.

    Ao escrever sobre o sagrado Durkheim tentava averiguar como as

    instituies operam a classificao. No era seu pensamento que o poder

    sagrado cintila como uma propriedade inerente s constituies e aos reis,

    mas exatemente o contrrio. Os povos que escolheu para representar as

    formas sociais elementares no possuem constituies, reis ou qualquer

    autoridade coercitiva superordenada. Para os australianos, o sagrado s pode

    retirar seu poder de seu prprio consenso. Sua fora coercitiva, que arma ouniverso inteiro com tabus punitivos com o objetivo de reforar o

    comprometimento oscilante do indivduo, baseia-se em classificaes

    existentes na cabea desse mesmo indivduo. Baseia-se essencialmente em

    classificaes que dizem respeito diviso do trabalho. Assim, a teoria do

    sagrado em Durkheim no diz respeito apenas a civilizaes que

    desaparecem mas tambm se refere aos modernos, j que ns temos uma

    sociedade baseada na diviso do trabalho. O livro sobre o suicdio (1897) e odesenvolvimento do conceito de anomia constituem a melhor demonstrao

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    de que Durkheim esperava que aprendessemos sobre ns mesmos a partir

    das sociedades etnogrficas.

    O programa de pesquisa de Durkheim inicia-se com a possibilidade de

    que existe uma boa ou m adequao entre as classificaes pblicas e

    privadas. Se a adequao m, isto pode ocorrer por dois diferentes motivos:

    o indivduo pode rejeitar as classificaes pblicas e recusar a permitir que

    elas exeram qualquer domnio sobre seus prprios julgamentos ou pode

    aceitar o mrito das classificaes pblicas, mas sabe ser incapaz de dar

    conta dos padres esperados. Finalmente as classificaes pblicas podem

    ser relativamente coerentes ou estar em estado de incoerncia. De acordo

    com Durkheim, essas relaes entre o estado de esprito do indivduo e as

    expectativas padronizadas de sua sociedade tm sido muito consideradas

    pelos socilogos como fontes de anomia, dando lugar a um comportamento

    desviante. Com efeito, o conceito de anomia possui abundante literatura. No

    entanto, o desvio geralmente no tem sido identificado pelo exame

    sistemtico das normas, mas pelos sinais de rejeio por parte da sociedade

    principal. O desvio que resulta em mudana no contado como anomia. Os

    socilogos tm demonstrado tendncia para assimilar a complexa

    argumentao do livro de Durkheim sobre o suicdio, bem como As Regras do

    Mtodo Sociolgico para uma distino, entre os de dentro e os de fora. O

    programa de pesquisa relativamente simples: observar os membros de um

    grupo reclassificando seus membros desviantes, dando-Ihes o status de quem

    est de fora. Em Classificao Primitiva os co-autores sugerem um programa

    muito diferente. Aquilo que constitui o desvio no pode ser auferido enquanto

    as dimenses da conformidade no forem delineadas. Para avaliar graus de

    conformidade entre ns mesmos precisamos fazer a mesma contagemmeticulosa de categorias, verificando como o mundo fsico transforma-se em

    uma projeo do mundo social. Para ns o mesmo que ocorre com os

    esquims e australianos. Precisamos usar o mesmo mtodo de construir o

    norte e o sul, a esquerda e a direita, todos eles repletos de padres de

    dominao, congregao e disperso, no apenas para ns como tambm

    para os chineses e os ndios zuni.

    de se reconhecer que Durkheim jamais articulou semelhante programaa moderna sociedade industrial. O estilo de pensamento de sua poca

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    comemorava com tamanha nfase a evoluo social que ele s enxergava em

    tomo de si a marca da modernizao com o inevitvel acompanhamento de

    uma incoerncia cada vez maior. Aceitava aquela idia popular segundo a

    qual o homem moderno escapou do controle das instituies, compartilhada

    pela maioria de seus contemporneos. Um discpulo que queira defender a

    tese principal de Durkheim, ainda que hesitando em aplic-Ia aos modernos,

    pelo menos dispe do mtodo deste autor como um instrumento para a

    descoberta de nossas prprias representaes coletivas. O grande triunfo do

    pensamento institucional tomar as instituies completamente invisveis.

    Quando os grandes pensadores de uma determinada poca concordam que

    os dias atuais no se assemelham a nenhum outro perodo e que um grande

    abismo nos separa de nosso passado, temos um primeiro vislumbre de uma

    classificao compartilhada. Como todas as relaes sociais podem ser

    analisadas como transaes de mercado, a penetrao deste mesmo

    mercado alimenta em ns, com grande sucesso, a convico de que

    escapamos dos antigos controles institucionais, que no se referiam ao

    mercado, e conquistamos uma liberdade nova e perigosa. Quando tambm

    acreditamos que somos a primeira gerao que no controlada pela idia do

    sagrado e a primeira na qual seus componentes se vem cara a cara uns com

    os outros enquanto indivduos reais e que, em conseqncia, somos os

    primeiros a alcanar uma ampla autoconscincia, ento existe,

    incontestavelmente, uma representao coletiva. Ao reconhecer este fato,

    Durkheim teria de admitir que a solidariedade primitiva, baseada numa

    classificao compartilhada, no se perdeu completamente.

    Para analisarmos nossas prprias representaes coletivas deveramos

    relacionar aquilo que compartilhado em nosso equipamento mental comnossa experincia comum em relao autoridade e ao trabalho. Para saber

    como nos contrapormos s presses classificatrias de nossas instituies,

    gostaramos de iniciar um exerccio classificatrio independente. Infelizmente

    todas as classificaes de que dispomos para pensar so pouco originais,

    juntamente com nossa vida social. Para pensarmos sobre a sociedade temos

    mo as categorias que empregamos como membros da sociedade, que

    dialogam uns com os outros sobre ns mesmos. Essas categorias de atorfuncionam em todos os nveis possveis. No topo se situariam as regras

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    sociais mais gerais e, na base, as mais particulares. Quando tentamos

    designar itens a esse nvel bsico de classificaes sociais gerais, mnimas,

    poderemos surpreender-nos pensando em situaes domsticas e

    enumerando os papis das crianas, dos adultos, dos homens e das

    mulheres. Partindo desse ponto, reproduziremos automaticamente o esquema

    de autoridade e a diviso do trabalho no lar, mas ser muito diferente se um

    indiano ou um americano estiver pensando, conforme observou com muita

    sagacidade Ravindra Khare, antroplogo indiano que ensina nos Estados

    Unidos (Khare 1985, p. 43). Poderemos tambm comear abordando os

    papis desempenhados por aqueles menos envolvidos na organizao social,

    os vagabundos, por exemplo, e nos deslocarmos da periferia para os centros

    de influncia. Poderemos ainda comear pelos bebs e subirmos na estrutura

    etria. Em cada caso adotaremos as categorias usadas pelos nossos

    administradores para recolher impostos, operar recenseamentos da

    populao e avaliar a necessidade de escolas ou prises. Nossas mentes j

    estaro percorrendo as velhas trilhas. Como possvel pensarmos sobre ns

    mesmos na sociedade a no ser usando as classificaes estabeleci das em

    nossas instituies? Se nos voltarmos para os vrios cientistas sociais

    verificaremos que suas mentes esto ainda mais profundamente cativas.

    Seus objetos de estudo se inserem em categorias administrativas, nas quais a

    arte est separada da cincia, o afeto da cognio, a imaginao do

    raciocnio. Tendo em vista fins de controle jurdico e administrativo,

    encontramos pessoas rotuladas de acordo com nveis de capacidade e

    verificamos que o pensamento est classificado como racional, insano,

    criminoso e criminosamente insano. A tarefa de classificao, que j

    realizada por ns, executada como um servio para profisses institudas.Ao mesmo tempo em que as instituies produzem rtulos, existe um

    feedback que se refere ao conceito de auto-realizao, enunciado por Robert

    Merton. Os rtulos estabilizam o fluxo da vida social e at mesmo criam, at

    certo ponto, as realidades a que eles se aplicam. Ian Hacking abordou a

    relao entre o rtulo e a realidade a partir de pistas sugeri das pelo estudo

    de Michel Foucault sobre a "constituio dos sujeitos". A este processo

    Hacking denomina "a construo da pessoa", ao rotul-Ias e ao assegurar, devrias maneiras, que elas se conformaro aos rtulos (1985). Trabalhando

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    com as estatsticas do sculo que focalizavam o desvio e o controle dos

    desviantes, ele sugere que a construo das pessoas de origem recente. O

    antroplogo inclina-se imediatamente a contestar. As pessoas sempre

    rotularam umas s outras, com as mesmas conseqncias ! os rtulos

    pegam. Hacking, porm, deve estar com razo ao acrescentar que "a mera

    proliferao de rtulos durante o sculo XIX pode ter engendrado, de modo

    vasto, mais tipos de pessoas do que o mundo at ento conhecera." Uma

    verdadeira avalanche de cifras comeou a surgir nas agncias

    governamentais que se dedicavam estatstica na Europa por volta de 1820.

    O exerccio da contagem, uma vez iniciado, gerou milhares de subdivises.

    Com a mesma velocidade com que novas categorias mdicas, que at ento

    no haviam sido imaginadas, ou novas categorias criminais, sexuais ou

    morais foram inventadas, novos tipos de pessoas apresentaram-se em hordas

    para aceitarem os rtulos e viverem de acordo com eles. A receptividade a

    novos rtulos sugere uma extraordinria presteza a se encaixar em novos

    nichos e a deixar que o conceito do eu seja redefinido. No como a

    nominao que, de acordo com os filsofos nominalistas, cria uma verso

    particular do mundo, ao distinguir certo tipo de coisas, por exemplo, dar nome

    s estrelas, colocando algumas em primeiro plano e deixando outras

    desaparecer de vista. Trata-se de um processo muito mais dinmico, pelo

    qual nomes so enunciados e, sem demora, emergem novas criaturas que a

    eles correspondem.

    A colocao de Hacking que as pessoas no recebem simplesmente

    um novo rtulo e voltam a adquirir proeminncia, mas ainda se comportando

    como se comportariam caso levassem esse rtulo ou no. As novas pessoas

    se comportam de maneira diferente de seu comportamento no passado.

    Elaborando a diferena entre as pessoas e as coisas, diremos que aquiloque os camelos, as montanhas e os micrbios esto fazendo nodepende de nossas palavras. O que acontece com os bacilos datuberculose depende se os matamos com a vacina BCG, mas nodepende da maneira como os descrevemos [...] a vacina que mata, nonossas palavras. A ao humana mais estreitamente ligada disciplinahumana do que a ao bacteriana (Hacking 1985. p. 13).

    Hacking est estabelecendo uma distino entre o efeito da descrio

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    sobre os objetos inanimados e o efeito dos nomes sobre os seres humanos. A

    aplicao de injees pode matar os micrbios: "as possibilidades para os

    micrbios so delimitadas pela natureza, no pelas palavras." O contraste,

    porm, no to claro, pois no so as palavras que fazem as coisas para as

    pessoas. O rtulo no motivo para que elas modifiquem sua postura e

    recomponham seus corpos. A aplicao de injees txicas tambm poderia

    matar as pessoas e os micrbios no so menos receptivos s palavras do

    que os seres humanos. Tendo em vista uma comparao justa, o processo de

    rotulao, em ambos os casos, faz parte de uma ao coatora mais ampla e

    as plantas, os animais e os micrbios reagem ainda mais veementemente do

    que os seres humanos. bem verdade que o bacilo pode morrer, mas, em

    um perodo muito curto, surgem novas cepas, no para se conformarem com

    os rtulos, mas para os desafiarem. Surgem milhes de novos bacilos, jamais

    imaginados, mas imunes aos ataques desfechados contra eles e que

    recorrem a antigos rtulos. Do mesmo modo que os pervertidos sexuais, os

    histricos ou os manaco-depressivos, os seres vivos que interagem com os

    seres humanos transformam-se para se adaptar ao novo sistema

    representado pelos rtulos. A diferena real pode ser que a vida fora da

    sociedade humana transforma-se, afastada dos rtulos, em atitude de

    autodefesa, enquanto a vida na sociedade humana transforma-se,

    aproximando-se dos rtulos, na esperana de obter alvio ou vantagens.

    O mrito especial de se chamar a ateno para a receptividade aos

    nomes consiste em convidar os filsofos a modificar seu enfoque. Em vez de

    se concentrar na nominao como um modo de indicar determinados itens,

    sistemas completos de conhecimento so esclarecidos, mediante a

    abordagem de Foucault. A relao entre as pessoas e as coisas que elasnomeiam jamais esttica. Conforme diz Nelson Goodman, a relao ocorre

    no interior de um sistema que evolui (1978). A nominao apenas um

    conjunto de inputs; ela se situa na superfcie do processo de classificao. A

    interao que Hacking descreve d voltas e vai das pessoas que fazem as

    instituies para as instituies que operam as classificaes, para as

    classificaes que acarretam aes, para as aes que buscam nomes e para

    as pessoas e outras criaturas vivas que reagem nominao de modopositivo ou negativo.

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    Tendo aceitado que as pessoas classificam, tambm podemos

    reconhecer que sua classificao pessoal possui algum grau de autonomia.

    As comunidades classificam de maneira diferente. Conforme j vimos, as

    instituies sobrevivem atrelando todo o processo de informao tarefa de

    se afirmarem. A comunidade instituda bloqueia a curiosidade pessoal,

    organiza a memria pblica e impe heroicamente a certeza ou a incerteza.

    Ao delimitar suas prprias fronteiras, ela afeta todos os nveis inferiores de

    pensamento de tal modo que as pessoas se do conta de suas prprias

    identidades e classificam umas s outras por meio da afiliao comunidade.

    Como ela usa a diviso do trabalho como fonte de metforas no intuito de

    afirmar-se, o autoconhecimento e o conhecimento que a comunidade tem do

    mundo deve passar por mudanas quando a organizao do trabalho muda.

    Quando ela alcana um novo nvel de atividade econmica, novas formas de

    classificao devem ser conceituadas, mas as pessoas no controlam

    individualmente a classificao. Trata-se de um processo cognitivo que as

    envolve da mesma maneira com que elas so envolvidas com as estratgias

    e resultados finais do cenrio econmico na constituio da linguagem. As

    pessoas, individualmente, fazem escolhas no interior das classificaes. Algo

    mais governa suas escolhas, isto , alguma necessidade de uma

    comunicao mais fcil, um impulso para um novo enfoque, tendo em vista a

    preciso. A mudana ser uma rplica viso de um novo tipo de

    comunidade.

    Por exemplo, por que motivo os vinhos tiveram seus rtulos subitamente

    modificados? Os fregueses do Chesse Cellar, em Evanston, selecionam

    agora seus vinhos de acordo com os nomes das variedades de uva. Ser esta

    uma escolha autntica? Ser que algum restaurateur tomou a deciso de nomais oferecer os vinhos de Bordeaux, Bourgogne, Loire ou Reno, St. Emilion

    ou Sauterne? O que significa para a teoria da classificao que os fregueses

    agora estejam solicitando o Zinfandel, o Gamay e o Sauvignon, embora o

    vinho possa proceder de Bordeaux?

    A mesma moda deu novo nome aos tecidos. Eles costumavam ser

    classificados pelos nomes dos lugares de sua provenincia: o xantungue e o

    crepe da China vinham da China, o paisley, de Paisley, a popelina, deAvignon, a cambraia, de Cambrai, a Iila, de Lille, o cashmere, da Caxemira, a

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    seda de Macclesfield, de Macclesfield. Agora eles so rotulados como

    algodo puro, seda pura, l pura, nilon, polister ou rayon. Os sinestes de

    ouro e de prata baseiam-se em seu lugar de origem, mas hoje o simples peso

    muitas vezes nos diz mais. Os livros de zoologia destinados s crianas ainda

    classificam as aves e os animais por regies, as enciclopdias de mitologia

    apresentam os mitos como provenientes de Grcia, Roma, da orla celta ou da

    ndia. A estatstica global, um sofisticado exerccio interpretativo, ainda em

    sua infncia, recorre abordagem do atlas mundial. Na Bblia os rtulos

    judeu, nazareno ou samaritano diziam muito sobre a pessoa. Agora, porm,

    as classificaes baseadas na constituio gentica e status educacional,

    psiquitrico ou ocupacional fazem uma diferena. Lawrence Rosen expressou

    claramente o contraste no conceito da pessoa como uma identidade

    negociada no mbito de uma comunidade. No Marrocos, a identidade social

    comea com a idia do lugar, no simplesmente o lugar de origem, mas

    tambm a soma total das negociaes e redes espacialmente delimitadas que

    uma pessoa estabeleceu.

    Uma parte muito considervel do carter de um indivduo constituda

    pelo meio social do qual ele retira sua formao. Para os marroquinos, asregies geogrficas so espaos habitados, domnios nos quais ascomunidades se organizam para ganhar a vida e forjar um grau desegurana [...] seu principal enfoque est na identidade das pessoas insitu porque o prprio lugar um contexto social atravs do qual oindivduo acostuma-se aos meios de criar um espao vivido. Estar ligadoa um lugar significa, portanto, no s ter um ponto de origem, mastambm possuir aquelas razes sociais, aquelas realizaes humanasque so distintivas para o tipo de pessoa que algum (1984, p. 23).

    Em outra passagem, Rosen contrasta esta viso da pessoa como algumque tem razes em um grupo e em um lugar com uma viso moderna.

    Assim, quando um americano pode, antes de mais nada, querer situarum outro, perguntando o que ele faz (isto . a que ocupao se dedica)porque tal informao transmite todo um conjunto de implicaes para asatitudes econmicas, sociais e polticas, no Marrocos a principalindagao "onde esto suas origens?", pois essa informao que,inicialmente, transmite um grau de previsibilidade sobre os tipos de laospossveis de se estabelecer com esse homem.

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    Alguma coisa acontece dentro de nossas cabeas quando um diferente

    tipo de organizao tornou obsoletas as antigas classificaes segundo os

    lugares. A mudana no uma escolha proposital ou consciente. As

    instituies ocultam sua influncia de tal maneira que mal notamos qualquer

    mudana.

    Uma dessas modificaes do pensamento se acha registrada na

    trajetria do Dictionnaire Universal du Commerce, de Savary des Bruslon.

    Savary era um funcionrio da real alfndega, no reinado de Lus XIV. Seu

    dicionrio do comrcio foi a primeira tentativa de sistematizar o conhecimento

    acumulado pelos mercadores, produtores, funcionrios do governo e

    consumidores. A partir dela, William Reddy tenta compilar "a paisagem mental

    do comrcio txtil no incio do sculo XVllI" (Reddy 1986). "Editado pela

    primeira vez entre 1723 e 1730 e reeditado, pirateado e traduzido pelo menos

    mais seis vezes, entre 1741 e 1784," obteve um sucesso inicial extraordinrio,

    mas, por volta de 1784, a nova edio era pouco mais do que uma

    inconsistente colcha de retalhos, tantas haviam sido as revises. Tantas

    coisas aconteceram em 43 anos que se necessitava de um dicionrio

    completamente novo, organizado de acordo com um novo esquema racional,

    correspondente s mudanas ocorridas no comrcio e na manufatura. No

    entanto, s vsperas da revoluo, uma tal mudana era impensvel.

    Para escrever esses documentos cIassificat6rios como guias e

    dicionrios, as instituies que esto a postos operam elas mesmas as

    classificaes. Para descrever os meandros do comrcio txtil no sculo

    XVIII, Savary necessitou toda a percia de um entendido. Toda pessoa que se

    dedicava ao comrcio exercia um conhecimento complexo, focalizado na

    comunidade, baseado nos nomes dos lugares, das guildas e dos selos graasaos quais seus produtos podiam ser reconhecidos e ter sua qualidade

    garantida.

    Aps a revoluo fracassaram vrias tentativas no sentido de editar e

    atualizar um dicionrio at 1837, quando Guillaumin Publishers lanou um

    novo dicionrio, escrito por uma grande equipe de professores, comerciantes

    e banqueiros. Aps 50 anos de experincia com o livre comrcio, a

    regulamentao j no se apresenta mais como um problema: "nada seinterpe entre o produtor e o comprador; o prprio processo de produo ,

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    portanto, a nica possvel fonte de distines para determinar o que um

    tecido". A essa altura as guildas j no existiam mais. Os resultados que elas

    garantiam e que constituam a principal preocupao de Savary foram

    substitudos no dicionrio por processos, materiais e custos, organizados

    alfabeticamente. Novas categorias foram designadas e pginas e mais

    pginas so dedicadas s matrias-primas, s plantas, a seus lugares de

    origem e fibra (suas propriedades qumicas e mecnicas e o estgio de sua

    transformao em fio). Algumas categorias de tecido foram ampliadas; h

    menos a se dizer a respeito de variedades especficas de tecido. A produo

    constitui a principal preocupao. Reddy descreve o dicionrio de 1837 como

    uma imensa tarefa de reelaborao do pensamento. O prprio conceito de

    mercadoria havia mudado e cada mercadoria especfica usada na Europa

    tinha de ser concebida novamente. medida em que Reddy analisa as

    diferentes categorias nos dois dicionrios, ele pe a nu um determinado tipo

    de mudana na economia. A fabricao do tecido h muito foi desligada das

    instituies do antigo regime. J no corresponde mais ao gosto, no trajar, de

    uma sociedade estratificada, nem s regulamentaes e privilgios de um

    corpo de teceles e comerciantes urbanos, nem aos hbitos de produtores

    camponeses que trabalham no interior, nem aos mtodos operacionais do

    governo em Versalhes. As instituies da indstria txtil alcanaram um nvel

    de organizao tal que um dicionrio pode organizar uma lista de seus

    processos e materiais independentemente daqueles pertencentes ao setor

    manufatureiro de uma economia de mercado.

    E o que dizer do comrcio de vinhos franceses? Foi a indstria de vinhos

    da Califrnia, seguindo semelhantes processos de industrializao, que forou

    de tal modo a mudana da nomenclatura que a abordagem da classificaodo vinho, em forma de atlas, que funcionou bem na Europa, j no mais

    apropriada. Os dois diagramas a seguir mostram a diferena. Seis dos mais

    renomados produtores de Bordeaux e seis dos mais ambiciosos produtores

    de vinhos do Vale de Napa, na Califrnia, foram escolhidos para se comparar

    um com o outro, no apenas quanto qualidade de seus vinhos mas tambm

    no que se refere escala. Do lado francs, a escala da produo vai de 3750

    a 30000 caixas por ano. Alguns estabelecimentos vincolas da Califrniaproduzem acima de 1.000.000 caixas anualmente, mas no difcil

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    emparelhar-se com a escala francesa de produo. Isso demonstra que a

    escala no constitui uma diferena decisiva na mudana a ser descrita.

    A produo californiana altamente diferenciada. Cada estabelecimento

    vincola produz uma grande variedade de vinhos, cada um de uma diferente

    uva, enquanto os produtores franceses tendem a especializar-se em um ou

    dois vinhos e em uma mistura de uvas.

    Na classificao francesa o fator geogrfico proeminente. Pode-se

    comear afirmando que Bordeaux uma regio da Frana; no territrio de

    Bordeaux existem regies menores (Mdoc, St. Emilion, Graves, Ctes); os

    crculos concntricos focalizam os chateaux. Surge ento um princpio de

    qualidade. Mdoc tem uma classificao baseada no preo mdio alcanado

    pelo vinho ao longo dos cem anos anteriores a 1855. fora de dvida que

    essa classificao identificava a terra mais apropriada aos vinhedos. A

    classificao de acordo com a qualidade reconhece a primeira, a segunda, a

    terceira e a quarta safra e, na base da escala, est um Cru Bourgeois. Abaixo

    desse nvel situam-se safras sem classificao. Seguindo esse critrio de

    qualidade, o chateau considerado no tanto uma propriedade rural quanto

    uma certa marca, de cuja reputao o proprietrio extremamente zeloso.

    Como os proprietrios do Mdoc herdaram sua posio hierrquica da

    classificao de qualidade efetuada em 1855, eles esto sujeitos a padres

    auto-impostos. Em St. Emilion, a qualidade verificada por um comit; alguns

    dos chateaux mais famosos, os Premiers Grands Crus, tm de renovar seu

    direito a um posto mais elevado na classificao a cada dez anos. Outros, os

    Grands Crus, tm de submeter cada safra aos provadores de vinho. Nos dois

    casos, a grande preocupao em se manter a qualidade e em se manter um

    nome assemelha-se preocupao, nesse mesmo sentido, das guildas detecidos. E, a exemplo das guildas, cada chateau fabrica seu prprio produto.

    Dar o nome ao vinho, segundo a regio e o chateau, significa condensar uma

    informao que s pode ser desvendada por quem conhecedor do assunto.

    O nome traz em si um processo que j foi experimentado, uma mistura

    tradicional de uvas, um solo, o declive de um vale e um clima. Ele desafia

    qualquer outra racionalizao. E, a exemplo das guildas de tecidos, uma

    instituio monopolstica que protege o produtor. Ela pertence a um sistemade controle alfandegrio e tributrio. Na Califrnia, o chateau e os nomes

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    regionais no poderiam ser ligados aos vinhos sem violar um direito de

    propriedade.

    Foi esse um dos motivos pelos quais os vinhos da Califrnia s poderiam

    denominar-se do tipo Bordeaux ou Bourgogne. Eles, porm, no se viram

    tentados a estabelecer um vinho do tipo Vale de Napa. Com toda certeza

    teriam tido condio de agir assim, se o vinho californiano tivesse sido

    desenvolvido em um perodo anterior, antes da comercializao em larga

    escala, abrangendo todo um continente, fizesse parte de seus objetivos.

    Quem poder afirmar se, a exemplo dos vinhos Bordeaux, seu produto teria

    sido capaz de firmar uma identidade em tomo do Napa, inconfundvel,

    padronizada e, ainda assim, variada? Em vez disso eles escolheram, ou

    foram levados a percorrer, a trilha da diversificao. Sua classificao baseia-

    se no tipo de uva. Em nosso diagrama, dois estabelecimentos vincolas usam,

    cada um, trs tipos de uva para trs tipos de vinho. Um deles usa doze. A

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    amplitude da variedade dos tipos na indstria vincola da Califrnia muito nos

    diz a respeito da especializao de um estabelecimento vincola.

    Se acompanhssemos os mtodos de vinicultura ou o tratamento do vinho

    nos vrios estgios ou as tcnicas de engarrafamento e arrolhamento, a

    mesma exibio de processos experimentais e a produo de tipos

    especializados de vinhos seria colocada a nosso alcance. Surgiu aquilo que

    Weber denominou um tipo de racionalidade pragmtica, que envolve meios efins, orientada para o mercado. Cada estabelecimento vincola est

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    procurando um espectro diversificado de vinhos especializados, em um

    mercado altamente diversificado. The World Atlas of Wines (Johnson 1981),

    que usa to bem a questo do lugar para explicar os vinhos franceses, to

    irrelevante para o cenrio californiano quanto o dicionrio de comrcio de

    Savary o era para descrever os txteis franceses na estrutura ps-

    revolucionrio do sculo XIX, e pelos mesmos motivos. Os processos

    industriais em larga escala so suas prprias instituies. Eles no podem ser

    encaixados nos padres de um controle local, da comunidade.

    assim que os nomes se modificam e assim que as pessoas e as

    coisas so remodeladas para se adequarem a novas categorias. Inicialmente

    as pessoas so tentadas a sair de seus nichos devido s novas possibilidades

    de se exercer ou evitar o controle. Em seguida elas elaboram novos tipos de

    instituies, as instituies elaboram novos rtulos e os rtulos elaboram

    novos tipos de pessoas. O prximo passo na compreenso de como

    entendemos a ns mesmos consistiria em classificar tipos de instituies e

    tipos de classificaes que elas usam de maneira muito prpria. provvel

    que haja um tipo de processo classificatrio distinto, que pertence a

    instituies religiosas, alm de outros tipos distintos, que se prendem a

    instituies mdicas, pedaggicas, militares e a outras instituies. Os

    dicionrios da indstria txtil francesa mostram que as classificaes que

    emanam das instituies administrativas possuem uma base territorial,

    enquanto aqueles que emanam das instituies manufatureiras focalizam a

    produo. O que as classificaes podem ou no fazer e a que objetivo elas

    atendem algo diferente, em cada caso que se apresenta. Uma classificao

    de estilos classificatrios seria um primeiro passo positivo para se pensar

    sistematicamente sobre os distintos estilos de raciocnio. Seria tambm umdesafio soberania de nosso prprio estilo de pensamento institucionalizado.

    A comparao das classificaes como um ndice de outras coisas que esto

    acontecendo em nossa sociedade propicia uma pequena e provisria rota de

    fuga do crculo de auto-referncia. Podemos observar nossas prprias

    classificaes da mesma forma que podemos observar nossa prpria pele e

    nosso sangue em um microscpio. Podemos reconhecer as regularidades que

    surgem em conjuntos inteiros de operaes classificatrias do mesmo modoque os gramticos podem estudar as regularidades nas mudanas da sintaxe

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    e da fontica. No existe nada autocontraditrio ou absurdo em lanar um

    olhar sistemtico nas classificaes que ns mesmos operamos. As

    dificuldades lgicas comeam quando tentamos desenvolver idias, livres de

    valor, sobre a boa sociedade. Tais dificuldades, porm, precisam ser

    enfrentadas se no quisermos deixar nossas buscas mergulhadas em um

    caldo de relativismo filosfico. No de modo algum objetivo deste livro

    postular que devido ao fato de as instituies elaborarem uma parte to

    grande de nosso pensamento, no possa haver comparaes entre diferentes

    verses do mundo, e muito menos se pretende ensinar que todas as verses

    so igualmente certas ou erradas.

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    AS INSTITUIES TOMAM DECISES DE VIDA E MORTE

    Uma idia reconfortante, porm falsa, sobre o pensamento institucional

    adquiriu recentemente certa aceitao. Trata-se do conceito de que as

    instituies apenas realizam o pensamento rotineiro, de baixo nvel, do dia a

    dia. Andrew Schotter, que descreveu to bem as instituies como mquinas

    para pensar, acredita que as decises de menor importncia soencaminhadas para um processamento institucional, enquanto a mente do

    indivduo fica livre para ponderar questes importantes e difceis (Schotter

    1981, p. 149). No h motivos para se acreditar em to benevolente iseno.

    mais provvel que prevalea o contrrio. O indivduo tende a deixar as

    decises importantes para suas instituies, enquanto se ocupa com as

    tticas e os detalhes. Para demonstrar este fato melhor reformular a

    questo inicial.Insistimos acima que altamente improvvel que as instituies

    poderiam emergir, sem empecilhos, de uma uma situao momentnea de

    interesses convergentes e de uma mescla, no especificada, de coero e

    convenes. A experincia, alis vasta, nos mostra o quo facilmente elas se

    fragmentam e entram em colapso. O que resta a ser explicado como as

    instituies comeam a se estabilizar. Tornar-se estvel significa assumir

    alguma forma reconhecvel. admirvel como as instituies passam a

    apresentar tipos estveis que podemos reconhecer em diferentes pocas e

    circunstncias. O fato de podemos falar de uma burocracia de complexidade

    bizantina ou de que podemos reconhecer os instrumentos monetrios sob

    uma forma extica a prova da existncia de tipos de instituies resistentes.

    A economia institucional sugere por que uma determinada forma institucional

    faz mais sentido para os indivduos racionais em determinado entorno

    econmico do que em outro. Ela no explica o processo mediante o qual a

    instituio se mantm, bem como aquilo que a cerca, com suficiente

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    estabilidade para ser reconhecida pelo indivduo que faz uma escolha

    racional.

    A teoria da informao chama particularmente nossa ateno para os

    padres divergentes. Ela pressupe que para qualquer padro toma-se

    necessria uma base anterior de energia. Um padro de determinada

    complexidade, uma vez estabilizado, emprega menos energia do que aquela

    de que se necessitava para faz-lo existir. Vejamos, por exemplo, o que

    acontece com o calor por debaixo de uma vasilha com gua: decorre algum

    tempo antes que a gua comece a rodopiar e borbulhar. Se mais energia for

    empregada, ela ter de ser usada por novos padres de complexidade. Deve

    existir algum meio de dissipar qualquer energia que se mostre excessiva em

    relao quilo que necessrio para manter o padro (Prigogine 1980).

    Acima e abaixo de certo ponto, o aporte extra de energia no conseguir ser

    absorvido por uma complexidade cada vez maior e haver uma mudana

    radical em todo o padro. Por exemplo, a gua se transformar em vapor.

    Escrever sobre as instituies como padres complexos de informao, como

    faz Schotter, e pensar na relativa eficincia de seus canais de comunicao, a

    exemplo do que faz O. E. Williamson, deveria fazer com que se levasse em

    conta a quantidade de energia usada para estruturar determinado tipo de

    instituio e como ela distribuda em um padro mais ou menos complexo.

    A partir disso, chegar-se-ia a avaliar o volume de transaes que essa energia

    capaz de manejar. Caso contrrio a teoria da informao, na cincia poltica,

    ser meramente um objeto de decorao de vitrina, uma nova metfora em

    voga, que substituir a metfora funcionalista datada dos anos de 1950.

    Qualquer instituio que vai manter sua forma precisa adquirir

    legitimidade baseando-se de maneira muito ntida na natureza e na razo.Ento ela propiciar a seus membros um conjunto de analogias por meio das

    quais se poder explorar o mundo e com as quais se justificar a naturalidade

    e a razoabilidade dos papis institudos, e ela poder manter sua forma

    contnua, identificvel.

    Assim, qualquer instituio comea a controlar a memria de seus

    membros; ela os leva a esquecer experincias incompatveis com aquela

    imagem de correo que eles tm de si mesmos e traz para suas mentesacontecimentos que apiam uma viso da natureza que lhe complementar.

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    A instituio propicia as categorias dos pensamentos de seus membros,

    estabelece os termos para o autoconhecimento e fixa as identidades. Tudo

    isto no basta. preciso garantir o edifcio social sacralizando os princpios

    de justia.

    Esta a doutrina do sagrado tal como enunciada por Durkheim. Todos

    os demais controles exercidos pelas instituies so invisveis, mas no o

    sagrado. De acordo com Durkheim, o sagrado deve ser reconhecido por estas

    trs caractersticas: em primeiro lugar, ele perigoso. Se o sagrado for

    profanado, coisas terrveis acontecero. O mundo explodir e o profanador

    ser esmagado. Em segundo lugar, qualquer ataque ao sagrado suscita

    emoes em sua defesa. Em terceiro lugar, ele invocado explicitamente.

    Existem palavras e nomes sagrados, lugares, livros, bandeiras e totens

    sagrados. Tais smbolos tomam o sagrado tangvel mas, de modo algum,

    limitam seu alcance. Firmado na natureza, o sagrado reluz a partir de pontos

    proeminentes para defender todas as classificaes e teorias que sustentam

    as instituies. Para Durkheim o sagrado essencialmente um artefato da

    sociedade. um conjunto necessrio de convenes que repousam sobre

    determinada diviso do trabalho e que, claro, produz a energia

    indispensvel para esse tipo de sistema (Durkheim 1893). O sagrado oferece

    um esteio no qual a natureza e a sociedade se equilibram, refletindo-se

    mutuamente e mantendo aquilo que se conhece de cada uma delas.

    Ningum tem muitos problemas com este conceito do sagrado. Reflita-se

    sobre os totens australianos e os emblemas sagrados dos reis medievais.

    Porm, de modo inconsistente, o ensinamento de David Hume, segundo o

    qual a justia uma virtude artificial, leva a muita confuso. O conceito de que

    a justia uma construo social, necessria, apresenta um paralelismoexato com o conceito que Durkheim tem do sagrado, mas Hume refere-se

    claramente a ns, a nossas pessoas. Ele submete nosso conceito do sagrado

    a um exame minucioso. Nossa reao defensiva contra Hume exatamente

    aquilo que Durkheim teria previsto. No podemos permitir que nossos

    preceitos de justia dependam do artifcio. Semelhante ensinamento imoral,

    constitui uma ameaa a nosso sistema social, com todos seus valores e

    classificaes. A justia aquela instncia que firma a legitimidade.Por este mesmo motivo difcil pensar nela imparcialmente. Apesar de

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    uma ampla crena na moderna perda do mistrio, o conceito de justia ainda

    permanece, at os dias de hoje, obstinadamente mistificado e recalcitrante

    anlise. Se fosse o caso de pensarmos contra as presses exercidas por

    nossas instituies, este o espao mais difcil de se fazer essa tentativa,

    pois nele que a resistncia mais forte. Em relao a isso, os antroplogos

    ocupam uma posio privilegiada, pois eles registram muitas formas sociais

    diversas, cada uma delas venerando seu prprio conceito de justia.

    O conceito das virtudes artificiais em Hume fundamental para seu

    programa ctico (1739, 1751). Fazia parte de seu ataque todas as teorias de

    conceitos inatos, quer se referissem causalidade, lei natural ou propriedade

    privada. Seu construtivismo radical faz dele exatamente o filsofo dos

    antroplogos. Quando se trata da questo de encontrar estruturas lgicas na

    natureza, Hume afirma que tudo que vemos so freqncias e, a partir delas,

    criamos hbitos e expectativas. Quando se trata da justia natural, tudo o que

    podemos saber que precisamos de interaes regulamentadas; para

    satisfazer a essa necessidade, desenvolvemos princpios. Do mesmo modo o

    conceito de justia no a mesma reao natural que se tem em relao a

    uma emoo ou a um desejo. Enquanto sistema intelectual, possui uma

    espcie de naturalidade de segunda categoria, pois uma condio

    necessria para a sociedade humana. Elaborado precisamente com o objetivo

    de justificar e estabilizar as instituies, esse conceito baseia-se em

    convenes, exatamente de acordo com o mesmo sentido acima citado

    encontrado em David Lewis (1969). Assim, nenhum nico elemento da justia

    possui uma correo inata; para ser correto ele depende de sua generalidade,

    de sua coerncia esquemtica e adequa-se a outros princpios gerais aceitos.

    A justia um sistema intelectual mais ou menos satisfatrio, cujo propsito garantir a coordenao de um determinado conjunto de instituies.

    Se isto acabar se revelando ser logicamente incontestvel e, ainda

    assim, inaceitvel para os filsofos que, por outro lado, so muito consistentes

    no que se refere lgica, enxergaremos nesse fato uma outra instncia do

    poder que tem o sagrado de suscitar uma defesa emocional. Por exemplo, o

    filsofo vitoriano que editou com dedicao as obra Inquiry e Treatise, de

    Hume, rejeitou sem a menor hesitao seu conceito de justia, tratandoocomo uma aberrao, como a travessura provocadora de um enfant terrible

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    L.A. Selby-Bigge achou que a argumentao de Hume em relao justia

    era inbil, desajeitada, ininteligvel e desnecessria: "Fica bem claro sua

    pretenso de que essa argumentao fosse ofensiva" (Selby-Bigge 1893 p.

    XXVIII).

    A abordagem de Hume no nos permite recusar o nome de justia a um

    sistema simplesmente porque no se harmoniza com nosso sistema. Sob o

    risco de parecerem preconceituosos, dificilmente os filsofos podero descartar

    todas as civilizaes que precedem a nossa, considerando-as carentes de

    julgamento moral. Em outros contextos eles no permitem uns aos outros

    recorrer intuio ou a um inefvel senso de retido. Quando Hercules Poiret

    surpreendeu a Condessa Rossakoff com jias roubadas, ela negou qualquer

    justia intuitiva inerente propriedade privada: "Eis o que sinto: por que uma

    pessoa deve possuir algo mais do que outra?" (Christie 1935). O problema, ao

    se tentar defender um princpio imutvel da justia, no est no fato de que

    todo mundo enxerga uma coisa auto-evidente. Regras que para ns,

    modernos, hoje parecem monstruosamente injustas no chocavam nossos

    ancestrais como sendo algo errneo. A escravido e a sujeio das mulheres

    so vulnerveis aos mesmos argumentos que Hume empregou contra o direito

    intuitivo propriedade.

    A posse j no mais a questo poltica proeminente em nossos dias.

    Nossas prprias instituies colocaram a igualdade como uma prioridade

    suprema. Como seria o contrrio, numa sociedade que dispersou os direitos

    propriedade privada entre acionistas e companhias de seguro e est

    caminhando para uma organizao vertical das profisses? Os segmentos

    verticais necessitam recrutar e promover o talento: a igualdade de

    oportunidades constitui sua condio necessria (Perkin 1969). As instituiesrequerem que a igualdade de acesso seja incorporada aos princpios

    fundamentais, legitimadores. Elas invocam a falta da igualdade para

    deslegitimar os regimes rivais. Elas enumeram sociedades odiosas,

    estratificadas segundo camadas horizontais, que se dispem como uma

    pirmide, com seu topo. Este , no entanto, outro modo de organizar,

    recorrendo a outra energia e a outra base de comunicao, com seus prprios

    princpios legitimadores apropriados.Sempre que as naes ocidentais colonizam uma antiga civilizao, este

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    conflito entre conceitos de justia acarreta tenses. Em Bali, os colonizadores

    holandeses se depararam com dois sistemas de justia: ao nvel das aldeias a

    igualdade era mantida pelo antigo sistema balins; em outros nveis os cdigos

    legais expressavam a influncia de um sistema hindu hierrquico. O primeiro

    exemplo era aceitvel para os administradores holandeses e o ltimo era

    horrendo. Em se tratando dos cdigos legais, algum que:

    cometesse uma ofensa contra algum de uma casta elevada engendravacircunstncias agravantes, ao passo que na situao oposta presumiam-se circunstncias atenuantes. Um sudra que ofendesse seriamente umbrahmana era condenado morte; a um brahmana que ofendesse umsudra simplesmente se solicitava o pagamento de umas poucas moedas.

    Se um inferior causa um dano corporal a um superior, disso resulta umapunio por meio da mutilao, tal como cortar as mos ou os ps (Boon1977, p. 49, citando a Encyclopedia of the Dutch East lndies, publicadaem 1917).

    James Boon observa que essas punies severas e prejudiciais

    consternavam os observadores ocidentais e que:

    lendo nas entrelinhas dos relatrios posteriores a 1849, torna-se bvio que

    nenhuma explicao simples em torno de uma opresso cega poderiaexplicar o apoio plebeu a tais diferenas. Os estratos mais baixospareciam acreditar que seus superiores meceriam penalidades maisamenas ao praticarem ostensivamente a mesma ofensa. Osadministradores holandeses em Bali poderiam ter tido a capacidade deaceitar uma hierarquia radical no que se referia aos ttulos, instruo, propriedade, ao mrito religioso e assim por diante, porm jamais aaceitariam em se tratando de procedimentos legais, sobretudo oscriminais. No conflito entre dois sistemas legais que podemos sentirmelhor a comoo provocada por aquele relato histrico e pelo fracasssomtuo em compreender, por parte do Antigo Oriente e do Novo Ocidente

    (p. 49).

    Posto que a qualidade, como um direito natural ou como um princpio

    universal, ainda constitui a mais destacada diferena entre o sistema ocidental

    e muitos outros sistemas de justia, no basta simplesmente deixar os ltimos

    de lado, considerando-os obviamente injustos. E, no entanto, existem muitos

    filsofos proeminentes que agem exatamente assim.

    Consideremos a tentativa de Alan Gewirth no sentido de estabelecer um

    supremo princpio de moralidade, do qual dependem todos os demais

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    princpios morais, e de recorrer a esse princpio para provar que a

    desigualdade injusta. A argumentao de Reason and Morality (1978)

    acadmica, impressionante e verdadeiramente sedutora. Sua estratgia

    consiste em desencavar aquilo que est logicamente embutido no conceito de

    um agente racional. Os agentes querem alcanar seus objetivos e, portanto,

    querem liberdade para agir e o bem-estar necessrio ao. As carncias so

    intrnsecas ao conceito de ao e, assim, as carncias dos agentes

    transformamse em reivindicaes. Reconhecendo que suas prprias

    reivindicaes so vlidas em contraposio aos demais agentes, o agerite

    racional, tendo em vista a consistncia, precisa admitir que as mesmas

    exigncias, feitas por outros agentes, so vlidas em relao s suas. No

    reconhecer aquilo que est implicado em uma ao natural significa agir contra

    a razo. A partir desta base lgica, o esquema de Gewirth estende-se a

    princpios morais substantivos, incluindo a qualidade necessria dos agentes.

    Tomando como premissa os desejos de um agente racional, Gewirth

    formulou uma argumentao baseada em carncias logicamente derivadas e

    em uma adequao semelhante quela empregada pelos telogos do sculo

    XII. Com a finalidade de resolver uma controvertida questo - teria a Virgem

    Maria nascido sem o pecado original? - eles propuseram em primeiro lugar que

    Deus haveria de quer-Ia concebida sem mcula, como algo incrustado no

    conceito de Deus; em segundo lugar, recorreram argumentao de que Deus

    onipotente, e da decorre que teria sido perfeitamente possvel para Ele fazer

    o que queria. Isto levou triunfal concluso de que Ele agiu nesse sentido.

    Uma forma enfatiza seu desejo: potuit, voIuit, fecit. Outra enfatiza a adequao

    implcita no esquema lgico: potuit, decuit, ergo fecit. J se afirmou que Alan

    Gewirth refratrio a objees padronizadas ao argumento ontolgico quepostula a existncia de Deus (Nielson 1984). Ele e os escolsticos possuem

    uma argumentao que depende de se desvelar as implicaes lgicas de

    certas palavras - o que mais a lgica poderia fazer? Dissemos, porm, o

    suficiente em captulos anteriores para demonstrar que o conjunto de idias

    que constituem o significado de uma palavra o produto do pensamento

    institucional.

    A partir de sua publicao PrincipIe of Generic Consistency, Gewirthespera elaborar no s apenas a correo da igualdade mas tambm deixar

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    patente o erro que o assassinato e a escravido (1978). Mas a que se refere

    o assassinato? O autor afirma que ele diz respeito ao ato de matar seres

    humanos inocentes que tem por motivo ou como natureza apenas o proveito e

    a gratificao do desejo. E a que se refere a inocncia? Se as outras

    categorias do pensamento so culturalmente definidas, ento permite-se que a

    culpa, a inocncia, a opresso e a coero constituam excees? Conforme

    assinala Lena Jayyusi, as categorias da lei se inserem em um quadro

    normativo e moral, ligado a responsabilidades, e imersos na ordem prtica

    cotidiana (Jayyusi 1984, p. 4). Ela argumenta, por exemplo, que

    descontextualizar os conceitos de coero e opresso, tais como foram

    desenvolvidos no Ocidente, e aplic-los s instituies soviticas uma

    colocao fora do lugar, sob o ponto de vista da lgica. O emprego do termo

    "coero" pressupe a relevncia de direitos cuja infringncia motiva a

    descrio. Se um sistema poltico e social nega direitos acumulao privada

    do capital, ento o fato de uma pessoa ser privada daquilo para o qual no

    existe um direito anterior no se configura como algo opressivo ou coercitivo no

    mesmo sentido que esses termos assumiriam em outros contextos. O

    programa que Jayyusi advoga estudar a prtica ligada ao dilogo e as regras

    que apresentem relevncia. uma lstima que isso dependa tanto da fala e

    no inclua as estruturas de poder e os padres de interao. Sem essa

    dimenso, a construo moral presente nos conceitos verbais no pode ser

    atribuda a outra fonte de evidncias e, assim, a interpretao de tais conceitos

    no pode ser validada de maneira independente. Lena Jayyusi est dando

    apenas um passo preliminar em direo classificao dos sistemas de

    categoria. Um exerccio de maior abrangncia classificaria ao mesmo tempo a

    ordem social.Sem recorrer religio, ao intuitivismo ou s idias inatas, muito difcil

    defender um princpio substantivo de justia como algo universalmente correto.

    Brian Barry outro conhecido filsofo que quer defender o princpio da

    igualdade e discorda do conceito de justia tal como elaborado por Hume,

    que v nela uma virtude artificial. De acordo com a teoria de Hume, a

    necessidade de um conceito de justia surgiria apenas sob certas

    circunstncias. Ele jamais se faria presente em condies de perfeitatranqilidade e afluncia, pois no haveria necessidade de um princpio

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    regulador universal. Ele jamais despontaria quando um dos lados fosse

    detentor de um poder irresistvel, pois os poderosos no se dispem a permitir

    que princpios gerais afetem suas aes motivadas pelo auto-interesse. Para

    Hume, os padres formais e padronizados de justia somente so exercidos

    entre iguais e que se encontram em situao de proximidade. Barry verifica

    que pode aplicar de maneira expressiva tais padres a relaes desiguais e

    que sua aplicabilidade demonstra que a justia se baseia em princpios, no

    em convenes.

    Quando tomamos padres de justia em relao aos quais haveriaconcordncia por um grupo de iguais e os aplicamos para condenarmos

    uma sociedade permeada por sistemtica discriminao grupal, estamos,em certo sentido, fazendo uso de critrios externos e independentes(Barry, 1978, p. 225).

    Para Barry, a possibilidade de podermos discutir a explorao desenfreada

    em termos de justia constitui um ponto decisivo contra Hume. O fato de

    podermos aplicar o conceito de injustia demonstra, em sua opinio, que esse

    conceito universal e independe de circunstncias locais. Algum poder, por

    exemplo, consentir livremente em um acordo injusto por acreditar, de modo

    incorreto, que ele exigido pela justia.

    Suponhos que, em determinada sociedade, fosse universalmente aceitoque algumas pessoas, devido ao nascimento, tivessem direito a privilgioseconmicos e sociais. No haveria conflitos em torno da distribuio e, noentanto, diramos, com toda certeza, que esse sistema social era injusto(Barry 1978, p. 219).

    Nessas opinies, Barry est expressando os princpios legitimadores dasconvenes criadas para manter um determinado conjunto de instituies, isto

    , aquelas da sociedade ocidental industrial. Para ns, entretanto, que

    internalizamos a justia dessas instituies, essa desigualdade claramente

    injusta. Quanto maior for a discriminao causada pelo nascimento e a brecha

    que separa os interesses das diferentes classes, mais condenaremos sua

    desigualdade. No entanto, por maior que seja a veemncia com que

    sustentamos nossos princpios de justia, eles ainda so os princpios que se

    fizeram presentes nos ltimos duzentos anos, ao lado da emergncia de um

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    sistema econmico baseado no contrato individual. Voltando-se de um padro

    horizontal de integrao para um padro vertical, que depende de elevar os

    indivduos independentes da base para o topo, todo o sistema de informao

    tem de ser transformado. Quando a perturbao atingiu determinado ponto, as

    estruturas dissipadoras j no conseguem mais manter o padro. Em primeiro

    lugar, as analogias fundantes precisam ser revistas. Louis Dumont detectou os

    esforos realizados no sculo XVIII no sentido de reenfocar sua ideologia,

    afastando-a das metforas orgnicas. Ele mostra que a parbola da abelha

    industriosa, que se encontra em Mandeville, significou um marco, em se

    tratando de subtrair o pensamento ocidental aos modelos hierrquicos da

    sociedade, direcionando-o para uma justificativa do individualismo (Dumont

    1977, pp. 83-104).

    Quando a analogia com a natureza modificada, o sistema de justia

    tambm necessita uma reviso. Agora ele tem de promover o movimento

    vertical dos indivduos, em vez de cont-Ios em suas camadas horizontais. O

    resultado foi a sacralizao de uma sociedade baseada num uso extravagante

    da energia, sem precedentes na histria mundial. Trata-se de uma sociedade

    que usa a igualdade dos indivduos para justificar-se, mas nas comparaes da

    justia, efetuadas em mbito mundial, sua ascendncia econmica e seus

    esforos para manter sua vantagem desigual tomam-se difceis de justificar

    pelos seus prprios princpios de legitimao. Podemos juntarnos a Barry no

    sentimento da indignao, da pena e da vergonha diante da explorao dos

    fracos. Nossos sentimentos humanos nada fazem para deixar de lado a

    argumentao de Hume.

    De acordo com Hume, as virtudes artificiais sero conhecidas por sua

    coerncia interna em um sistema abstrato que harmoniza as interaescotidianas em determinada sociedade. Barry est defendendo um conceito

    absoluto de justia. Onde mais se poder encontr-Io, a no ser na intuio?

    Ele afirma:

    Se algum conseguir ler uma histria da colonizao europia na Austrliae nas Amricas ou uma histria da escravido negra sem admitir que estlendo a histria de uma injustia monstruosa, duvido que qualquer coisa

    que eu possa dizer ter a possibilidade de convenc-Io (Barry 1978, p.22).

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    Em outras palavras, esse sentimento , em ltima anlise, incomunicvel.

    Se Gewirth recorreu ao argumento ontolgico em nome da igualdade, Barry,

    em se tratando da mesma causa, adotou algo muito semelhante justificativa

    de Rudolph Otto, quando esse se refere experincia mstica. Se o leitor

    jamais passou por uma experincia mstica, se jamais sentiu o Mysterium

    Tremelldum, se o sentido do numinoso lhe estranho, ento, declara Otto, o

    telogo luterano, nada do que eu puder dizer o convencer: o sentimento

    incomunicvel. A resposta de Hume Condessa Rossakoff, bem como a

    resposta dada aos filsofos que tinham intuies contrrias, seria a de recordar

    que o funcionamento de uma sociedade depende, at certo ponto, da

    coerncia, e que um resumo abstrato dos princpios interligados sobre os quais

    ela repousa promove a coordenao. Uma vez formulado, o artifcio adquire

    venerabilidade. Durkheim conseguia explicar por que, a exemplo de um muro

    coberto de hera, em uma universidade nova, a justia parece estar presente

    desde sempre. Ela teria de existir muito antes que os seres humanos viessem

    ao mundo e, assim, ela parece antiga e imutvel, como um dos artefatos da

    natureza, e acima dos desafios.

    A essa altura a questo relativa ao relativismo moral torna-se urgente.

    Teria essa argumentao destrudo os alicerces em que se apia? Colocando a

    coisa em termos bem crus, o fato que as opinies morais so preparadas

    pelas instituies sociais. muito raro e difcil para um indivduo escolher uma

    postura moral a partir de uma base racional individual. Nesse caso, nossos

    prprios julgamentos esto igualmente preparados em nossas prprias

    instituies sociais. Assim, a questo que no temos como comparar seu

    valor: tudo o que podemos fazer descrever. Jamais podemos afirmar que a

    justia requer a igualdade, defende a propriedade privada ou censura aescravido. Reduzimos todos os julgamentos morais a expresses das

    diferentes sociedades.

    Vrias questes parecem estar misturadas. O pior de tudo a

    responsabilidade de se cair em contradies e absurdos. Ainda em termos de

    negatividade segue-se o conceito de que a total tolerncia a qualquer tipo de

    comportamento surgiria em uma seqncia lgica. O menos prejudicial o

    conceito de que, por termos afirmado que as idias morais constituem parteessencial das instituies sociais, elas no podem ser comparadas ou

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    julgadas, o que tambm no verdade.

    Baseando-nos nos princpios de Hume, podemos dizer que um sistema

    mais justo do que outro. Podemos afirm-lo a partir de duas avaliaes, uma

    delas lgica e a outra, prtica. De acordo com seus ensinamentos, um sistema

    de justia concebido expressamente para proporcionar princpios coerentes a

    partir dos quais se possa organizar o comportamento social. Assim, podemos

    comparar sistemas de justia em relao sua coerncia. Esta a tarefa

    habitual da jurisprudncia histrica. A reforma judicial freqentemente

    justificada sob o pretexto da incoerncia entre os princpios que esto sendo

    usados. De acordo com Hume, a arbitrariedade derrota o objetivo essencial da

    justia. Podemos comparar a quantidade de regras arbitrrias. Assim, no h

    problema quanto a esta questo. Quanto avaliao prtica, podemos

    comear indagando com que eficincia um sistema de justia realiza a tarefa

    de proporcionar princpios abstratos para regulamentar o comportamento. Ele

    seria por demais misterioso, secreto e ramificador para ser compreendido.

    Mediante testes simples podemos decidir se o sistema de justia de

    determinado pas, digamos de uma potncia colonial, se relaciona com

    suficiente preciso ao contexto de outro lugar, digamos a frica. Por exemplo,

    ser que a antiga lei da era Tudor, relativa prtica da bruxaria na Inglaterra,

    ajudava os policiais locais a lidar com acusaes de bruxaria no Sudo? As leis

    ocidentais contra a bigamia funcionam bem no sentido de regrar questes

    entre os poIgamos muulmanos em Londres? Ou, em outro tipo de teste

    prtico, ser o sistema de justia eficiente? Os tribunais no sero por demais

    distanciados dos centros da populao? Os juristas fazem estas e outras

    comparaes de sistemas de justia o tempo todo. Ao agir assim no so

    obrigados, em absoluto, a aplicar os princpios corroborantes de suas prpriasinstituies. Os testes de coerncia e no arbitrariedade, complexidade e

    praticidade, no so preferncias subjetivas. to correto estudar

    objetivamente os sistemas humanos de justia quanto medir o comprimento do

    p humano, desde o calcanhar at o dedo. Os sistemas podem ser

    comparados como sistemas. A nica coisa impossvel de se fazer atribuir

    determinadas virtudes; a bondade, por exemplo, aos animais ou aos idosos, ou

    ento a igualdade e encontrar um meio de provar que ela sempreindiscutivelmente certa e melhor.

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    Finalmente, reconhecer a origem social dos conceitos de justia no nos

    obriga a deixarmos de estabelecer julgamentos entre os sistemas. Eles podem

    ser julgados melhores ou piores, de acordo com a compreenso que tivermos

    de seus pressupostos. Suponhamos que um sistema de justia presumisse que

    apenas um tero da populao que se submetesse a suas regras fosse

    inteiramente humano. Seramos objetivos em se tratando dos motivos que

    teramos para pensar que os outros dois teros eram seres humanos. A essa

    altura a questo do relativismo moral fundiu-se com indagaes sobre o que

    real e o que ilusrio no mundo. Espero que no haja necessidade de recorrer

    argumentao sobre o realismo. O que foi dito acima no coloca em dvida

    que se trata de testes objetivos das verses certas e erradas do mundo e como

    ele funciona. Por exemplo, imagine-se um sistema de justia que punisse as

    pessoas por aquilo que se afirmou que elas fizeram nos sonhos de outras

    pessoas. No seria difcil demonstrar que semelhante sistema delimita as

    responsabilidades de acordo com uma verso errnea da realidade e uma

    verso errnea da responsabilidade humana, a tal ponto que no poderia ser

    organizado coerentemente em torno de qualquer questo prtica. O modo

    como os seres humanos so, o fato de que eles caminham eretos e no podem

    estar em dois lugares ao mesmo tempo, so incorporados como parte de

    qualquer sistema de justia. Algumas experincias e o estudo das condies

    da vida se reportaram ao plano de fundo da existncia. Tudo o que est sendo

    colocado aqui e em todo este livro que a experincia cumulativa do mundo

    deveria incorporar explicitamente a natureza social da cognio e do

    julgamento.

    O pressuposto preferido, que sugere que os seres humanos no so

    essencialmente seres sociais, suficientemente forte para impedir-nos de vercomo eles se comportam de fato. O que acontece quando a lei revogada? A

    natureza assume tudo? Temos dito que a natureza culturalmente definida,

    que as mentes individuais so povoadas com atitudes culturalmente

    determinadas. E ento o que acontece? O prprio Hume sups que, por

    ocasio de uma situao em que a fome reinasse, cada um se apropriaria

    daquilo de que necessitasse para sobreviver, mandando s favas o conceito de

    propriedade privada. Parte da demonstrao que Hume fazia de suaartificialidade consistia em demonstrar que os critrios de justia seriam

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    suspensos, em se tratando de uma situao de inanio. Outros filsofos

    concordam. No entanto, as pessoas famintas no se sublevam e se apoderam

    do alimento que est diante delas. A mera existncia da fora no tudo que

    as impede de saquear as lojas. Em uma famlia ou em uma aldeia que passa

    por semelhante crise quem passa fome e morre, ou quem come e vive, no

    algo inteiramente fortuito, nem depende da fora. As pessoas mais fortes e

    mais numerosas nem sempre se apoderam de tudo quando chegam as crises

    trgicas. A histria mostra que a fome no revoga automaticamente as

    convenes. Ela no introduz algo como uma lei natural de direitos iguais. Ao

    adotarmos semelhante pressuposto, explicamos pelas leis naturais nossas

    prprias idias de eqidade. como se admitssemos que, quando a natureza

    se impe, faz aquilo que sabamos que deveramos ter feito o tempo todo, isto

    , distribuir igualmente. O comportamento, numa situao de crise, depende de

    quais padres de justia foram internalizados, do que as instituies

    legitimaram.

    Algumas vezes se observou um conflito entre agncias internacionais de

    ajuda e funcionrios locais. Os agentes internacionais do Ocidente

    industrializado tentam distribuir alimentos de maneira eqitativa. A igualdade

    dos direitos sobrevivncia um princpio inquestionvel. Consternados, eles

    verificam que no conseguem recrutar representantes das instituies locais

    para ajud-los em seu trabalho. Para dar a comida to rapidamente quanto

    possvel os existentes canais de distribuio seriam os mais eficientes e os

    mais aceitveis para um pas atingido pela fome. Mas no! Assim que os

    habitantes locais so includos no esquema que Ihes proporcionar alvio, o

    alimento desviado. Os mais pobres sempre so os mais vulnerveis em uma

    situao de fome. A comida, porm, no chega at eles. O aambarcamento, oroubo, a explorao, a recriminao e a indignao hipcrita fazem parte da

    sinistra histria do socorro fome.

    William Torry um antroplogo que vem estudando respostas e reaes

    fome (Torry 1984). Ele observou-a em contextos de aldeias ou provncias

    isoladas, onde nenhuma ajuda estrangeira disponvel. Tal experincia levou-

    o a questionar se a crise calamitosa est provocando uma ruptura das normas.

    Em vez disso ele verificou que a comunidade deixa de lado seu conjuntoregular de princpios morais e adota um conjunto regular de emergncia. O

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    sistema de emergncia no uma revogao de todos os princpios. Torry no

    v um colapso das convenes. Pelo contrrio, o sistema de emergncia

    comea por um gradual tensionamento e estreitamento dos princpios

    distributivos normais. J se antev que no haver comida suficiente para todo

    mundo. O sistema de emergncia comea a dar raes diminutas aos que se

    encontram em desvantagem, aos marginais, aos politicamente ineficazes.

    Proteger aqueles que esto no comando e aqueles que j gozam de vantagens

    resulta em que as instituies fundamentais sero preservadas e os habituais

    canais de comunicao sero mantidos abertos. O efeito conservar alguns

    nveis mnimos de operaes. medida que a crise se aprofunda, e Torry

    observa, ele testemunha, horrorizado, uma destruio sistemtica de certas

    categorias de pessoas. Ele consegue reconhecer quem est predestinado a

    morrer de inanio, o mesmo acontecendo com as vtimas. Ele percebe como

    se dar a vitimao pelos processos de seleo do sistema social existente.

    Quaisquer que sejam os princpios normativos de excluso dos privilgios ou

    da segurana - seja devido ao nascimento, profisso, ao sexo, ou por

    definies em torno do desvio e da criminalidade essas excluses habituais

    apontam para quem receber menos, medida que os recursos diminuem, e

    quem finalmente ser excludo ou deixado para trs, a fim de morrer de fome.

    Para grande surpresa de Torry, as vtimas pr-estabelecidas aceitam seu

    destino com docilidade. Quando a carestia chega ao fim, algumas dentre elas

    podem ter sobrevivido, mas, com toda certeza, tero perdido filhos e parentes.

    Torry observa como a vida comunitria retomada. Dada a cruel iniqidade do

    que aconteceu, ele se pe a imaginar se os sobreviventes demonstraro

    ressentimento contra quem os explorou. No o caso. Eles reconhecem que o

    fado de suas famlias adequado e parte normal das condies de crise.Compreendem que a elite jamais correu perigo. Retomam com gratido seus

    antigos relacionamentos de prestao de servios, sem ressentimentos. A

    aceitao de que foram vtimas indica, para Torry, que ele testemunhou no a

    destruio da ordem social, mas sua afirmao.

    Ser esta uma histria sinistra? Torry fica a imaginar se a moralidade

    dessa crise tomou o desastre maior ou menor do que seria, caso tivesse

    acontecido o contrrio. O fato de parecer que a recuperao foi mais rpidaexpressa um dilema favorito dos filsofos morais. Deveramos atentar para as

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