cognitivismo e racionalismo crÍtico cognitivism and

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277 Psicol. Argum., Curitiba, v. 25, n. 50, p. 277-290, jul./set. 2007 Cognitivismo e racionalismo crítico COGNITIVISMO E RACIONALISMO CRÍTICO Cognitivism and Critical Rationalism Gustavo Arja Castañon 1 Resumo A Revolução Cognitiva só se tornou possível graças à mudança na concepção de ciência moderna ocorrida a partir da obra de Karl Popper. Ao minar e posteriormente derrotar o Positivismo Lógico como teoria epistemológica geral, o Racionalismo Crítico acabou com o mito da indução e da observação neutra como fonte original de conhecimento científico. Além disso, ajudou a generalizar o reconhecimento de que o método de investigação da ciência moderna era o hipotético-dedutivo, e não o indutivo-experimental. Sem o enfraquecimento da posição antes hegemônica do Positivismo Lógico em filosofia da ciência, o estudo empírico de processos cognitivos não poderia ter conquistado o respeito da comunidade científica. Além disso, o Cognitivismo é plenamente compatível com o Racionalismo Crítico, como podemos ver na identidade entre as teses filosóficas de Popper e do Cognitivismo sobre o construtivismo realista (Piaget), o caráter antecipatório da percepção (Bruner), a observação que se faz contra ou a favor de uma teoria (Neisser), a rejeição da tabula rasa (Chomsky), o interacionismo (Sperry) e o caráter de imprevisibilidade que o conhecimento traz ao sujeito (Neisser). Entretanto, o Cognitivismo apresentava até vinte anos atrás uma surpreendente inconsciência em relação ao caráter precursor da filosofia de Popper. Essa inconsciência se revela particularmente surpreendente no silêncio do Cognitivismo em relação à origem de seu modelo de método geral científico. Palavras-chave: Cognitivismo; Racionalismo crítico; Epistemologia; Epistemologia da psicologia; Revolução cognitiva. 1 Gustavo Arja Castañon, graduado em Psicologia pela UERJ e em Filosofia pela UFRJ. É mestre em Psicologia Social pela UERJ e doutor em Psicologia pela UFRJ. Atualmente ministra cursos nas graduações em Psicologia das universidades Estácio de Sá e Católica de Petrópolis, e cursa o Mestrado em Lógica e Metafísica da UFRJ. Rio de Janeiro, RJ. e-mail: [email protected]

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277Psicol. Argum., Curitiba, v. 25, n. 50, p. 277-290, jul./set. 2007

Cognitivismo e racionalismo crítico

COGNITIVISMO E RACIONALISMO CRÍTICO

Cognitivism and Critical Rationalism

Gustavo Arja Castañon 1

ResumoA Revolução Cognitiva só se tornou possível graças à mudança na concepção de ciência modernaocorrida a partir da obra de Karl Popper. Ao minar e posteriormente derrotar o Positivismo Lógicocomo teoria epistemológica geral, o Racionalismo Crítico acabou com o mito da indução e daobservação neutra como fonte original de conhecimento científico. Além disso, ajudou a generalizaro reconhecimento de que o método de investigação da ciência moderna era o hipotético-dedutivo,e não o indutivo-experimental. Sem o enfraquecimento da posição antes hegemônica do PositivismoLógico em filosofia da ciência, o estudo empírico de processos cognitivos não poderia ter conquistadoo respeito da comunidade científica. Além disso, o Cognitivismo é plenamente compatível com oRacionalismo Crítico, como podemos ver na identidade entre as teses filosóficas de Popper e doCognitivismo sobre o construtivismo realista (Piaget), o caráter antecipatório da percepção (Bruner),a observação que se faz contra ou a favor de uma teoria (Neisser), a rejeição da tabula rasa (Chomsky),o interacionismo (Sperry) e o caráter de imprevisibilidade que o conhecimento traz ao sujeito(Neisser). Entretanto, o Cognitivismo apresentava até vinte anos atrás uma surpreendenteinconsciência em relação ao caráter precursor da filosofia de Popper. Essa inconsciência se revelaparticularmente surpreendente no silêncio do Cognitivismo em relação à origem de seu modelo demétodo geral científico.Palavras-chave: Cognitivismo; Racionalismo crítico; Epistemologia; Epistemologia da psicologia;

Revolução cognitiva.

1 Gustavo Arja Castañon, graduado em Psicologia pela UERJ e em Filosofia pela UFRJ. É mestre em Psicologia Social pela UERJ edoutor em Psicologia pela UFRJ. Atualmente ministra cursos nas graduações em Psicologia das universidades Estácio de Sá e Católicade Petrópolis, e cursa o Mestrado em Lógica e Metafísica da UFRJ. Rio de Janeiro, RJ. e-mail: [email protected]

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Gustavo Arja Castañon

AbstractThe Cognitive Revolution turned possible only thanks to the change in the conception of modernscience started with Karl Popper’s work. Debilitating and defeating the Logical Positivism as generalepistemological theory, the Critical Rationalism put an end to the myth of induction and to theneutral observation as original source of scientific knowledge. Besides, it helped to generalize therecognition that the method of investigation of the modern science was the hypothetical-deductive,not the inductive-experimental. Without the weakness of the position before hegemonic of theLogical Positivism in philosophy of science, the empiric study of cognitive processes could nothave conquered the scientific community’s respect. Besides, the Cognitivism is fully compatiblewith the Critical Rationalism, as we can see in the identity among the philosophical theories ofPopper and Cognitivism about the realist constructivism (Piaget), the anticipatory character ofperception (Bruner), the observation that is done against or in favor of a theory (Neisser), therejection of the tabula rasa (Chomsky), the interacionism (Sperry) and the dimension ofunpredictability that the knowledge brings to the subject (Neisser). However, Cognitivism presentedup to twenty years ago a surprising unconsciousness in relation to the precursory character of thePopper’s philosophy. This ignorance is particularly surprising in the silence of Cognitivism aboutthe origin of its model of general scientific method.Keywords: Cognitivism; Critical rationalism; Epistemology; Epistemology of psychology; Cognitive

revolution.

A interpretação tradicional das condiçõesde surgimento da ciência cognitiva e do Cognitivismoafirma que a psicologia cognitiva como campo depesquisa e o Cognitivismo como movimento, apesarde não terem sido criados fora da psicologia, sóconseguiram revolucionar o mainstream psicológicoem virtude de avanços científicos ocorridos além desuas fronteiras. Esses avanços seriam basicamenteseis: o advento da computação, a teoria dainformação, a cibernética, as novas teoriasneurológicas, as novas descrições de síndromesneuropsicológicas e a teoria lingüística de NoamChomsky. (Gardner, 1996; Mayer, 1981; Baars, 1986).

Este artigo busca fundamentar a tese deque existe ainda um sétimo avanço, em filosofia daciência, sem o qual a Revolução Cognitiva teria sidoimpossível. Este é o surgimento do RacionalismoCrítico. A aplicação do método científico ao estudoda mente só se tornou possível quando o próprioconceito de ciência sofreu dramática alteração, oque começou a acontecer com o surgimento da obrade Karl Popper. Assim, este trabalho sedesenvolverá a partir de uma exposição sintética dasidéias básicas do Racionalismo Crítico, passandopela exposição de como estas tornaram possível aRevolução Cognitiva e finalmente comparandoalgumas idéias mais específicas de Popper com asde autores cognit ivistas, demonstrando suacompatibilidade.

Como o racionalismocrítico modificou o conceitode método científico

O Racionalismo Crítico, que com suascríticas ao Positivismo Lógico e ao método indutivona ciência moderna mudou a forma comocompreendemos o empreendimento científico, seestabeleceu, não sem dificuldades, como posiçãocentral na Filosofia da Ciência contemporânea.Podemos marcar uma data de referência para seusurgimento, 1934, com a publicação de A Lógica daInvestigação Científica de Karl Popper. Esta obra foipublicada numa coleção coordenada por MoritzSchlick, fato que rendeu a Popper, durante muitosanos, como ele mesmo relata, a acusaçãoprofundamente equivocada de que teria sido membrodo Círculo de Viena. Na verdade, Popper foi seumaior opositor, fato óbvio para quem lê mesmo quesuperficialmente qualquer uma de suas obras ereconhecido por alguns dos mais proeminentesmembros do Positivismo Lógico, como OttoNeurath, que o chamava de “a oposição oficial aoCírculo de Viena” (Popper, 1999, p. 89). Em suaAutobiografia Intelectual, Popper (1977, p. 95-96) afirma:

Todos sabem, atualmente, que o PositivismoLógico está morto. Mas poucos se lembramde que há uma questão a se propor aqui – a

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pergunta ‘Quem é o responsável?’, ou antes,‘Quem matou o Positivismo Lógico?’. Receioque eu deva assumir essa responsabilidade.

Isso parece ser verdade. Poppercontradisse e refutou todas as principais posiçõesassumidas pelo Positivismo Lógico, colocandoobstáculos intransponíveis ao seu posteriordesenvolvimento. Criticou o princípio da verificaçãocomo critério de demarcação e o substituiu por umconceito quase oposto, o de falsificabilidade;enterrou o método da indução e provou suainvalidade, substituindo-o por seu oposto, o métodohipotético-dedutivo; desabsolutizou os funda-mentos e as pretensões da ciência moderna, ostomando como meras conjecturas e defendendouma ciência perfectível; rejeitou plenamente aantimetafísica positivista, reabilitando a metafísicacomo celeiro de idéias científicas. Em suma, o querealmente fica é a pergunta: como não ver Poppercomo a antítese do Círculo de Viena?

Popper ataca frontalmente o problema daindução (o que valida uma inferência indutiva),resolvendo-o pela sua dissolução. Para Popper(1975a), a indução não existe. Na verdade, estritosenso, nunca ninguém realizou uma induçãogenuína. Essa dissolução do problema se dá baseadaem duas linhas de argumentos centrais: os lógicose os psicológicos. Em seus argumentos lógicos,contra a indução, ele aponta a óbvia falta de validadeda indução por enumeração e também a da induçãopor eliminação, defendida por Mill. Em seusargumentos psicológicos contra a indução, que maisnos interessam aqui, Popper demonstra que aobservação pura, na qual a mente do pesquisadordeve estar livre de pressupostos e hipóteses, é ummito filosófico.

Vamos aos argumentos lógicos. Comoafirma Popper (1975a), havia uma concepçãoaltamente generalizada de que as ciências empíricasse podiam caracterizar pela utilização dos “métodosindutivos”. Nós chamamos uma inferência deindutiva, quando ela passa da enunciação deenunciados particulares (obtidos da observação deeventos particulares de um determinado fenômeno),para enunciados universais, como as teoriascientíficas, que pretendem afirmar coisas sobretodos os eventos de um determinado fenômeno.Porém, essa concepção do método da ciência

empírica é falsa. Escreve Popper (1975a, p. 263),em uma das passagens mais conhecidas da literaturafilosófica contemporânea:

Ora, de um ponto de vista lógico, está longede ser óbvio que estejamos justificados aoinferir enunciados universais a partir dossingulares, por mais elevado que seja o númerodestes últimos; pois qualquer conclusão obtidadessa maneira pode sempre acabar sendo falsa:não importa quantas instâncias de cisnesbrancos podemos ter observado isto nãojustifica a conclusão de que todos os cisnessão brancos.

Ou seja, falando de forma geral, se élogicamente inválido inferir que todos os x são yporque eu observei 132 x e todos eles eram y; élogicamente válido afirmar que nem todos os x sãoy se o x número 133 for w. Ou seja, a ciência avançapor negação, e não por conhecimento positivo. Oque faz a assertiva “todos os corpos menos densosque a água flutuam” ser uma assertiva com validadecientífica, não é o fato de ter sido verificada milhõesde vezes, mas o fato de que, em qualquer uma dessasvezes, ela poderia ter sido refutada, falsificada. Estatese de Popper (1975a), conhecida comofalsificacionismo, é uma tese logicamente válida,porque é dedutiva.

Voltemos ao problema lógico da indução.Este tipo de indução acima descrito é conhecidocomo “indução por enumeração” e é, comodemonstrado, inválido logicamente. Não podemossequer sustentar que ele estabelece uma altaprobabilidade de que o próximo cisne a ser observadoseja branco, diz Popper, porque comparado aonúmero quase infinito de cisnes que já existiram,existem e existirão e que não foram observados,qualquer amostragem de cisnes observados tende azero, portanto, a significância estatística da amostratende à zero. Da mesma forma, a “indução poreliminação” é inválida logicamente. Esta últimaconsiste na eliminação das falsas teorias queconcorrem entre si para a explicação de umdeterminado fenômeno. Uma vez eliminada as falsas,restaria a verdadeira, acreditavam filósofos comoBacon e Mill. Porém mais uma vez se trata deconcepção ingênua, diz Popper (1975a). Ela só seriaválida se o conjunto de teorias possíveis para a

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explicação de um fenômeno fosse finito, mas comosabemos, elas são infinitas. Portanto, não interessaquantas teorias se eliminem, restam sempre infinitaspossíveis, o que faz com que sequer a probabilidadede a teoria sobrevivente ser verdadeira aumente.

Portanto o problema da indução não temsolução. A última tentativa de justificá-lo já tinhasido eliminada por Hume. Esta afirma em últimaanálise que, apesar de não ter fundamento lógico,devemos recor rer à indução para adquirirconhecimento porque ela tem se manifestadoeficiente para tal. Ou seja, estamos falando de umajustificativa empírica para a utilização da indução:ela estaria se mostrando eficiente. Mas comodemonstra Popper (1975a), o argumento é circular:estamos aqui inferindo indutivamente que ainferência indutiva é válida. E para justificar ainferência indutiva que inferiu que a inferênciaindutiva é válida? A que recorreremos? À outraindução? Logicamente não é aceitável. Apesar deestas limitações serem evidentes e conhecidas, issonão pareceu constituir problema para o Positivismo,que adotou a indução experimental como método.

Há ainda uma segunda linha de crítica àidéia de indução e à concepção positivista deconhecimento científico baseado na “observaçãopura”. Essa linha é a psicológica, ou seja, podemoscriticar a idéia de indução atacando uma idéiapsicológica que está vinculada a ela: a idéia de queseríamos capazes de nos livrar de expectativas,pressupostos e hipóteses e contemplar o mundo demaneira neutra, para adquirir verdadeiroconhecimento.

Essa idéia está diretamente ligada à doutrinada tabula rasa. Para Popper (1977), esta doutrina acercado conhecimento não é nada além de um mitofilosófico. Nossa mente é tábula plena, um quadro-negro que está cheio das inscrições que a cultura oua evolução biológica deixaram em nós. A tese de quetoda observação se faz à luz de uma teoria, ou seja,necessariamente contra ou a favor de uma hipótese,embora defendida em vários momentos na históriada filosofia e da ciência (como por Auguste Comte eCharles Darwin), foi reintroduzida filosoficamentepor Karl Popper, não como uma outra opção deinferência, mas verdadeiramente como o único tipode inferência possível.

Portanto, toda observação se orientasempre por expectativas teóricas, conscientes ouinconscientes. Ou seja, nosso corpo de teorias eexpectativas sobre a realidade orientam o que do

campo perceptual nós destacaremos como relevantepara observação. Um experimento, por exemplo,pressupõe sempre algo a experimentar ou acomprovar. E este algo são as hipóteses, as teoriasque inventamos para tentar resolver os problemasque a observação revela em nossa visão de mundo.Ou seja, purgada dos pré-juízos, das hipóteses, comoquerem as ilusões positivistas e empiristas, a mentenão é mente pura, ela é não-mente. Como podemosver, trinta anos antes do surgimento do movimentocognitivista, temos uma teoria que parece saída deum livro texto de psicologia cognitiva.

Isso leva Popper (1999) à conclusãoinatista de que todo animal nasce com muitasexpectativas (algo semelhantes a hipóteses),naturalmente inconscientes, e irá, progressivamente,elaborando-as. Penna (2000), ao interpretar aposição de Popper, afirma que, enquanto os animaissempre têm estas expectativas inatas inconscientes,os homens as têm somente em sua maioria. ParaPenna, o conhecimento consciente que em nós serevela é resultado de um processo analítico sobre ocorpo a que todos nos submetemos e, este último,o depositário de informações genéticas resultantesde milhares de anos de evolução da espécie. Estaparece uma interpretação adequada da posiçãopopperiana. O sentimento de surpresa e frustraçãocom alguns insucessos só ocorre porque tínhamosexpectativas, mesmo que inconscientes, que em talsituação a natureza teria se comportado de outramaneira. E isto, a percepção de um problema, é oinício de todo e qualquer processo de conhecimento.Portanto, deve estar presente em homens e animais,porque até animais aprendem.

Falsificacionismo, o novocritério de cientificidade

Um problema, pois, não é nada mais doque uma expectativa desiludida. E nós pesquisamospara tentar resolver estes problemas. Mas, pararesolvê-los, não há outro caminho além de imaginarnovas formas de interpretar a natureza, na tentativade achar alguma na qual aquele problema nãoexistiria. Precisamos de criação, invenção, razãocriativa. Não é na forma como adquirimos umateoria que podemos garantir sua validade. Podemosobter uma idéia que venha a se tornar científica detodas as formas possíveis: intuição, análise exaustiva,sob efeito de alucinógenos, num sonho, sobinspiração divina, inspirado por alguma observação

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relevante ou por um mito, e, por fim, com a maiordas fontes de idéias científicas, a metafísica. Nadadisso traz em si a validação ou a rejeição de umateoria em particular como científica.

Aqui Popper (1975b) traça uma distinçãofundamental, que é central para o RacionalismoCrítico e para a Filosofia da Ciência contemporânea:a distinção entre contexto de descoberta e contexto dejustificação. Uma coisa é a gênese psicológica dasidéias, outra, completamente diferente, é a sua provacomo verdadeira ou ao menos provável – o contextode justificação de uma teoria. O que então justificauma idéia qualquer, como conhecimento? Uma vezque a indução não existe e a verificação é um mito,qual é o critério de cientificidade para Popper?

O falsificacionismo é, para o RacionalismoCrítico, o novo critério de demarcação entre asassertivas científicas e as não-científicas. Essecritério vem substituir o combalido critério daverif icação na demarcação das proposiçõescientíficas. Portanto, isso implica numa mudança doolhar científico que será absolutamente vital paraas pretensões científicas da psicologia: não é aobservação direta de determinados fenômenos quedeve fornecer as hipóteses a serem testadas. Elaspodem ser criadas de qualquer maneira possível. Oque as fará integradas ou não ao campo doconhecimento científico é o fato de gerarem ou nãoconseqüências passíveis de falsificação. Isso porqueelas estão no início do processo, e não na suaconclusão. Uma hipótese é falsificável se existe umaproposição de observação qualquer, logicamentepossível, que, se estabelecida como verdadeira,implicaria em sua rejeição como falsa.

Estes são os passos que uma teoria cumprepara o Racionalismo Crítico até se tornarconhecimento científico: Primeiro, constatamos umproblema (uma teoria que tínhamos não deu contada realidade e nos frustrou); segundo, elaboramoshipóteses como tentativas de solução do problema;terceiro, temos que colocar em teste empírico estashipóteses (aqui está a questão do falsificacionismo:se ela não puder ser, em tese, falsificada por nenhumaobservação possível, não pode ser científica); quarto,verificamos se a hipótese foi corroborada (ou seja,se a previsão se concretizou) ou falsificada (a previsãonão se confirmou na observação). Quandocorroborada, temos uma teoria científica, que, noentanto, tem validade provisória. Quando refutada(falsificada), também temos conhecimento, poisagora sabemos que a teoria é falsa.

Uma teoria, em si, nunca pode serdiretamente testada. O que podemos testar delas sãoalgumas de suas conseqüências particulares. Se temosum problema P, e temos uma proposta de soluçãoque é a teoria T, então acreditamos que a teoria T éverdadeira. Sendo verdadeira, ela trará uma série deconseqüências particulares empiricamenteobserváveis: cp1, cp2, cp3, ..., cpn. Se estasconseqüências se constatam, a teoria é provisoriamentecorroborada, e aceita. Se não se constatam,desmentem, falseiam, falsificam a teoria. Esta então édescartada e se procura outra.

Agora podemos dizer que se tornou óbviasua condição de critério de cientif icidade, afalsificabilidade. Se não podemos imaginar, sobreuma teoria, qualquer forma de conseqüênciaempírica dela, ou seja, se não podemos imaginarnenhuma situação que em tese poderia refutar essateoria, estamos diante de uma tese metafísica, nãopassível de justificação científica. Se afirmamos que“Deus é uno”, essa assertiva pode não ser falsa, mascertamente não é científica, pois não há maneira dededuzir dela nenhuma conseqüência direta que sejatestável, falsificável. A adequação desse critério aquise torna flagrante. Que observação que possa serfeita não confirma esta teoria metafísica? Por outrolado, que fato poderá desmentir, falsificar tal teoria?Isto, é claro, não significa que a teoria é falsa,significa, ao contrário, que não podemos emnenhum caso imaginável provar que ela é falsa.

No entanto, diferentemente do critério daverificação do Positivismo Lógico, a falsificabilidadenão se pretende critério de significação, somente sepretende critério de cientificidade. Ou seja, a afirmaçãoque “Deus é uno”, para Popper, é perfeitamentesignificativa, mas totalmente não-científica. Masembora ela seja absolutamente inútil empiricamente,porque justifica tudo e não prevê nada, pode serfonte inspiradora para a ciência, gerando idéias que,estas sim, podem ter algum conteúdo empírico.

Assim, Popper (1975b) acredita que, apesarde muitas vezes a metafísica ter contribuído para aestagnação da ciência, não é possível considerar apossibilidade da descoberta científica sem a fé decientistas – que dedicam anos de sua vidaperseguindo uma determinada visão da realidade –em idéias metafísicas, puramente especulativas.

A verdade, para Popper (1975b), é, comopara Tarski (1944), a correspondência de umaproposição com os fatos aos quais ela se refere.Temos uma definição de verdade aceita, portanto. Mas

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não temos um critério de verdade, ou seja, um critériopara estabelecer em absoluto quando temos diantede nós uma teoria verdadeira, já que asconseqüências dela são infinitas e jamaispoderíamos verificar a todas.

A verdade, definitivamente, é a busca daciência. No entanto, jamais poderemos estar certosde tê-la alcançado: estrito senso, o que Popper(1975b) está afirmando é que a episteme, o saberabsolutamente seguro e justificado não é possívelpara as ciências empíricas. Nós só podemos ter teoriasmelhores que outras, e mesmo que estejamos diantede uma teoria que seja verdadeira, jamaispoderíamos estabelecer isto com certeza, porquejamais teríamos acesso a todas as conseqüênciasempíricas possíveis desta teoria.

Portanto o conhecimento científico é feitode conjecturas. Com isso abandona-se a verdade?Não, é a resposta de Popper. A verdade é o idealnormativo da ciência, seu ideal regulador. Nuncaalcançável, sempre perseguida. A busca não tem fim,dir ia Popper (1977) no subtítulo de suaautobiografia. Em Conhecimento Objetivo (Popper,1975b, p. 53) afirma: “Assim, a idéia de verdade éabsolutista, mas não se pode fazer qualquer alegaçãode certeza absoluta: somos buscadores de verdade masnão somos seus possuidores”.

Mas se não podemos obter a verdade, oque podemos obter em ciência? Verossimilhança,diz Popper (1994). Em ciência, o que podemos ésempre nos aproximarmos mais da verdade,elaborarmos teorias que aumentem seu conteúdode verdade e diminuam o de falsidade. E se nãopodemos dizer com certeza que esta teoria éverdadeira, podemos dizer com certeza que estateoria é mais próxima da verdade do que aquela, ouseja, que ela é mais verossímil.

Segundo Abbagnano (2003), a maiorcontribuição de Popper à concepção que temos doempreendimento científico é a de que ele é falível,e que sua garantia de validade não vem do fato deuma certeza infalível, mas de autocorrigibilidade eauto-aperfeiçoamento contínuo. Não sabemosnunca se nossas hipóteses sobre a realidade sãoverdadeiras, mas sabemos que, com o método, asteorias e os instrumentos que temos em dadomomento histórico, elas são as melhoresdisponíveis. Assim, abandona-se o velho ideal deconhecimento como “crença verdadeira justificada”,pois nunca podemos justificar uma crença comoverdadeira, somente como a mais próxima da

verdade entre as crenças testadas. Poderíamosmesmo dizer que com Popper a definição platônicade conhecimento se transforma em “crença maispróxima da verdade, justificada”. A meta da ciência,como diz Chalmers (1993), é falsificar teorias esubstituí-las por outras melhores, que demonstremmaior possibilidade de serem testadas.

Quando descobrimos que uma conseqüênciade nossa teoria é falsa, chegamos mais próximos daverdade que perseguimos e podemos ainda aperfeiçoarou substituir nossas teorias sobre a realidade. É quandoerramos, quando nos deparamos com uma observaçãoinesperada, que tropeçamos no real, saindo da prisãosolipsista de nossas teorias.

Como o racionalismo críticoinfluenciou a revolução cognitiva

As questões que eu vou levantar aquioferecem evidências que nos levam a considerar aemergência do Racionalismo Crítico tão importantepara compreender o surgimento do Cognitivismo– no contexto de uma psicologia dominada peloBehaviorismo neopositivista – quanto o impactodos novos avanços científicos acima citados àquestão do estudo científico da mente humana.

Como se sabe, a psicologia dos anos 30era totalmente aderida aos cânones de cientificidadeditados pelo Positivismo Lógico. Isso fazia doBehaviorismo o modelo de psicologia científicaoficial. Uma vez que o critério de demarcação entreuma assertiva científica (“provida de significado”)e uma asser t iva metafís ica (“desprovida designificado”) era sua verificabilidade, ou seja, suaredução a ter mos fis ical istas, derivados daexperiência direta, tornava-se absolutamenteinterdita a pesquisa de processos classificados de“mentalistas” e seria completamente impossível aaquisição de respeitabilidade acadêmica por umadisciplina que se definisse como o estudo científicodos “processos cognitivos”.

Sem o enfraquecimento da posição anteshegemônica do Positivismo Lógico em filosofia daciência, o estudo empírico de processos cognitivosnão poderia ter conquistado o respeito dacomunidade científica. Foi antes a mudança da visãosobre o que era uma pesquisa científica quepropiciou a aceitação do estudo dos processoscognitivos na psicologia, e não o contrário.

De fato, é impossível estudar com o modeloexperimental positivista, indutivamente, um objeto

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não observável diretamente. A própria revoluçãobehaviorista se fez contra as primeiras e infrutíferastentativas de se fazer isso. O Racionalismo Crítico,direta e indiretamente, propiciou a mudança naconcepção de atividade científica que gerou ascondições necessárias (não suficientes) para osurgimento da Revolução Cognitiva.

Sobre o passo em direção a uma psicologiacognitiva dado por meio de Edward Tolman, nadapodemos atribuir à influência de Popper. Mas omesmo já não se pode dizer do passo seguinte. Essafoi a progressiva adoção do método hipotético-dedutivo nas fileiras da psicologia experimental.Essa adoção começou com o exemplo conhecidode nós psicólogos de Clark Hull, que em 1940publicou A Study in Scientific Methodology, sua obraclássica na qual defende a adoção do métodohipotético-dedutivo em psicologia, integrando emseu modelo o conceito de variável interveniente.Embora não possamos afirmar que Hull tevecontato direto com a obra popperiana de 1934,podemos afirmar que ao menos a receptividade àsidéias de Hull foram influenciadas pela crescenteinfluência das idéias do jovem Popper sobre teóricosdo círculo de Viena, como Victor Kraft, HerbertFiegl e Carl Hempel, em direção à aceitação de queo método científico é hipotético-dedutivo e nãoindutivo, tese essa que foi reintroduzidafilosoficamente no século XX por Popper.

Um efeito direto mais imediato foiexperimentado na obra de Bärbel Inhelder, apsicóloga que foi a grande colaboradora de Piaget.Em pesquisa publicada em 1943, como narraRamozzi-Chiarottino (2002), ela procurou colocaras teorias piagetianas, já apresentadas na formahipotético-dedutiva, sob testes capazes de falsificá-las, substituindo a atitude e a busca verificacionistapor testes declaradamente falsificacionistas.

A progressiva adoção do métodohipotético-dedutivo como modelo de investigaçãocientífica teve profundo impacto na psicologia. Foradas fileiras behavioristas, a adoção do métodopropiciou o começo da investigação de hipotéticosprocessos cognit ivos por meio de suasconseqüências necessárias diretamente observáveis.A noção de que o verdadeiro critério decientificidade de uma teoria não é o fato de ela poderser diretamente verificável, mas o fato de ela possuirconseqüências necessárias que sejam passíveis defalsificação, é a idéia central trazida por Popper eque mudou a face da ciência.

Psicólogos cognitivos usualmente nãoestão conscientes desta influência, assim comoconhecem pouco a obra de Popper. Caso típicodesta inconsciência se encontra na maior obrahistórica sobre o surgimento das ciências cognitivas,a de Gardner (1996), onde podemos observarargumentos popperianos como a da nãocientificidade da Psicanálise por conta de suairrefutabilidade atribuídas à tradição positivista, ouo emprego sistemático do conceito defalsif icabil idade sem, no entanto, maioresreferências à obra de Popper, nem demonstraçãode qualquer consciência quanto à origem desteconceito. Em outro trabalho histórico sobre osurgimento da psicologia cognitiva, o de Baars(1986), encontramos muitas citações de ThomasKuhn, principalmente para justificar a tese do autorde que a psicologia passou por uma “revoluçãocientífica” no sentido que Kuhn conferiu ao termo.Porém não encontramos nenhuma citação dePopper, cuja filosofia foi precursora de pensadorescomo Kuhn. Uma análise pormenorizada do textorevela que esta opção parece ser devida a mais umcaso de desconhecimento paroquial do filósofoeuropeu e conhecimento paroquial do seu herdeirorebelde americano. Percebemos que muitas vezesas referências a Kuhn ocorrem mais em virtude dascaracterísticas de sua teoria que são herdadas dePopper (como a da falsificabilidade como critériode cientificidade a ser preenchido por uma assertivacandidata à científica), do que das particularmentesuas. No mais, como observaram os behavioristasO’Donohue, Ferguson & Naugle (2003), a teoriade Kuhn é utilizada geralmente por cognitivistassimplesmente para justificar o que os primeirosconsideram um fenômeno meramentesocioretórico: a suposta “Revolução Cognitiva”.

Voltando à questão da influência doRacionalismo Crít ico para a emergência daRevolução Cognitiva, temos que lembrar que nemtodos os autores que se debruçaram sobre oproblema dos fundamentos do Cognitivismo emseus primeiros anos manifestaram inconsciência emrelação à influência de Popper. Um exemplo dissoé este trecho de Penna (1986, p. 20):

Especialmente no campo da Epistemologia areferência aponta para as idéias de Karl Popper.Essa absorção registra-se claramente, quer nodomínio da aprendizagem de conceitos, [...],quer no da aprendizagem de resolução de

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problemas, [...]. No que se refere explicitamenteà aprendizagem de conceitos destaca-se aobservação de Neil Bolton de que ela se cumpreatravés de processos hipotético-dedutivos, comemissão de hipóteses logo submetidas a testesde validação ou invalidação.

A partir dos anos noventa, podemosperceber uma maior tomada de consciência destainfluência por parte de cognitivistas que abordam aquestão dos fundamentos epistemológicos emetodológicos da psicologia cognitiva. Eysenck &Keane (1994, p. 08) em um dos principais livros-texto atuais da área, afirmam explicitamente que:

A Psicologia Cognitiva surgiu deste contextohistórico [o behaviorismo] por causa de doisgrandes avanços. Primeiro, a um nível bastantegeral , a visão tradicional de ciência[Positivismo Lógico] foi solapada de tal formaque permitiu que a Psicologia Cognitivaformasse sua própria identidade científica.

Mais à frente, eles declaram que todos osprincípios fundamentais da visão tradicional de ciênciaque fundamentavam o Behaviorismo foram“devastados” pelos filósofos da ciência do século XX,como Thomas Kuhn e Imre Lakatos, “capitaneadospor Karl Popper” (Eysenck & Keane, 1994, p. 09). Defato, como defendemos aqui, uma vez que os princípiosque levavam o Behaviorismo ao veto radical a qualquerpretensão de estudo experimental da mente estavam“devastados” pela nova filosofia da ciência, não haviamais razões para que os psicólogos filosoficamentecultos, como era o caso daqueles presentes ao SimpósioHixon de 1948 e ao Simpósio do MIT de 1954, tivessemque ceder às pressões acadêmicas neopositivistas.

Outros cognitivistas também começam areconhecer a identidade das idéias de Popper com oCognitivismo, como é o caso das obras recentes dospsicoterapeutas cognitivos Beck (2000) e Ellis (1989),ou ainda a da outra versão da filosofia da ciênciapopperiana representada pela obra do psicólogoCampbell (1974), a “epistemologia evolucionista”.Textos mais recentes sobre a história da RevoluçãoCognitiva, como o de Sperry (1993), tambémcomeçam a reconhecer a influência fundamental doRacionalismo Crítico para o surgimento da psicologiacognitiva, assim como novos livros-texto deintrodução à filosofia da psicologia como o de Bem& De Jong (1997, p.45), que declara que: “A revolução

resultante na filosofia da ciência [de 1930 a 1960] foide importância para a psicologia porque ela tornoupossível para a psicologia cognitiva substituir obehaviorismo como teoria hegemônica”.

Ou ainda novos livros-texto de Introduçãoà Ciência Cognitiva, como o de Fetzer (2000, p. 29),que além de reconhecer o Racionalismo Críticocomo a teoria epistemológica que define o status deteoria científica na atualidade, afirma:

[...] o método de conjecturas e refutações(tentadas) que Sir Karl Popper propôs comoessencial à ciência empírica, pode preencherum papel dentro da ciência cognit ivasemelhante àquele que desempenha em outrosdomínios científicos. Hipóteses semelhantesa le is [cognit ivas] podem ser testadastentando-se refutá-las.

Cognitivismo, racionalismo crítico,construtivismo e inatismo

Assim, torna-se evidente porque podemosconcluir que a filosofia da ciência que melhor oferecesuporte ao Cognitivismo e a psicologia cognitiva é oRacionalismo Crítico. Este argumento, já difusamentesustentado neste artigo, será aqui sumarizado,mediante duas linhas de argumentação. A primeiraversa obre a adequação da posição popperiana tantoao inatismo quanto ao construtivismo característicosdo Cognitivismo. A segunda versa sobre a adequaçãometodológica do Racionalismo Crítico ao objeto queo Cognitivismo pretende estudar.

A disputa entre a ênfase inatista e aconstrutivista no seio do Cognitivismo, embora tenhaem grande parte se dissolvido nos últimos anos emvirtude dos próprios resultados a que chegou apsicologia cognitiva, poderia ter encontrado síntesesatisfatória como pressuposto de base se houvessemaior familiaridade por parte de seus principais atorescom as teses epistemológicas de Karl Popper. Paraeste, uma certa forma de inatismo não só é compatívelcom o construtivismo, como é, na verdade, necessáriapara que possamos falar de processos de construçãode conhecimento. Diz Popper (1975b, p. 75) nessapassagem de sua obra Conhecimento Objetivo:

A meta da ciência é o aumento da similitude.Como tenho argumentado a teoria da tabula rasaé absurda: em cada etapa da evolução da vida edo desenvolvimento de um organismo temos

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que admitir a existência de algum conhecimentona forma de disposições e expectativas.Concordantemente o crescimento de todoconhecimento consiste na modificação deconhecimento prévio – ou sua alteração, ou suarejeição em ampla escala. O conhecimento nuncacomeça do nada, mas sempre de algumconhecimento de base – conhecimento que nomomento é tido como certo – juntamente comalgumas dificuldades, alguns problemas. Estes,via de regra, surgem do choque entre, de umlado, expectativas inerentes a nossoconhecimento de base e, por outro lado, algumasnovas descobertas, tais como nossas observaçõesou alguma hipótese sugeridas por elas.

A citação é auto-explicativa. Esta posiçãotem o mérito de integrar as teses básicas de Chomskye Piaget sobre a questão, superando inclusive algumascríticas sobre ambas, particularmente a de Jerry Fodor(1987) a Piaget. O processo de construção doconhecimento deve partir de uma base inata, mas elanão está construída na forma de idéias ou estruturasprontas, mas sim de expectativas inconscientes doorganismo. Se não partimos de qualquer disposiçãoinata, não há nada para assimilar ou acomodar. Popper(1975b, p. 76) chega a expor essa posição na forma deum teorema: “Todo conhecimento adquirido, todoaprendizado, consiste de modificação (possivelmentede rejeição) de alguma forma de conhecimento, oudisposição, que existia previamente, e em últimainstância de disposições inatas”.

Como já afirmado neste artigo, pode seencarar, segundo afirmou o próprio Popper (1977), oRacionalismo Crítico como uma interpretação realistada filosofia kantiana. Aqui talvez tenha sido dada a últimapeça neste quebra-cabeça particular, relembrando opapel do inatismo na filosofia popperiana. Seu papel éo de tendências, disposições, expectativas muito básicasde organismos, que serão o pano de fundo originalcontra o qual se destacarão figuras, os esquemasoriginais, provavelmente inconscientes, que, ao nãoconseguirem assimilar os primeiros estímulos vindosdo mundo a eles, levarão o sujeito a promover seuprimeiro processo de acomodação.

Racionalismo crítico e o métodogeral da psicologia cognitiva

Apesar de toda a identidade entre as tesesfilosóficas trazidas por Popper sobre o

construtivismo realista (Piaget, 1979), o caráterantecipatório da percepção (Bruner, 1983), aobservação que se faz contra ou a favor de uma teoria(Neisser, 1967), a rejeição da tábula rasa (Chomsky,1981), o interacionismo (Sperry, 1993) e o caráter deimprevisibilidade que o conhecimento traz ao sujeito(Neisser, 1975) entre outras, a mais surpreendentedas inconsciências do Cognitivismo com o caráterde precursor que Popper assume em relação a estemovimento é seu silêncio em relação a seu modelode método geral científico. É evidente que as idéiasde Popper chegaram por ecos de seus discípulos eex-discípulos, como vemos por meio das citaçõesdestes últimos ou da exposição de suas idéias. Isso,no entanto, não aconteceu só no Cognitivismo. Umdos filósofos mais importantes do século XX, Poppertambém disputa o posto (para o qual Leibniz eSchopenhauer são dois fortes concorrentes) degrande filósofo, cujas idéias originais menos lhe sãoatribuídas. Ele tinha consciência dessa negligência,como se lê na primeira página do primeiro capítulode Conhecimento Objetivo, Popper (1975b, p. 13):

Poucos filósofos têm-se dado o incômodode estudar – ou ao menos de criticar – minhasconcepções de tal problema [a indução], ou de tomarconhecimento do fato de haver eu feito algumtrabalho a esse respeito. Muitos livros publicados bemrecentemente não fazem a menor referência a minhaobra, embora muitos deles dêem mostras de teremsido influenciados por alguns ecos bem indiretos deminhas idéias. E as obras que tomam conhecimentode minhas idéias costumam atribuir-me opiniões quenunca sustentei, ou criticar-me com base emevidentes incompreensões ou interpretaçõeserrôneas, ou com argumentos inválidos.

Com algumas passagens, quero aqui ilustrarcomo essa influência chegou ainda que indiretamente,apesar de, como já apresentado aqui, nos últimosanos, ela estar começando a se tornar explícita ereconhecida (Sperry, 1993; Eysenck & Keane, 1994;Beck, 2000, Fetzer, 2000). Afirmava Gardner (1996,p. 30) em sua “Nova Ciência da Mente”:

Mas outros fatores também haviam impedidoa fundação propriamente dita de uma ciênciada cognição. Algumas escolas filosóficas – opositivismo, o fisicalismo e o verificacionismo– que evitavam entidades (como conceitos ouidéias) que não podiam ser obser vadasprontamente ou medidas com segurança,ajustavam-se muito bem ao Behaviorismo.

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Havia também a intoxicação com a psicanálise.[...] muitos estudiosos [...] ressentiam-seprofundamente da pretensão de um campoque não se mostrava suscetível de refutação.

Além de alguma falta de familiaridade coma história da filosofia contemporânea, nota-se nestapassagem a presença de Popper duas vezes em umpequeno parágrafo. Na primeira pela alusão(completada depois) à decadência da influência doPositivismo Lógico e suas teses fisicalistas everificacionistas na filosofia da ciência, que ele nãosabe, se deve ao impulso crítico original da obra dePopper. Na segunda, por meio da expressão da teseda irrefutabilidade da Psicanálise como acaracterística que lhe nega o estatuto de ciência.Podemos ver também em outro historiador doCognitivismo, Baars (1986, p. 144), a mesmainconsciência, quando afirma que a metateoriacognitivista poderia ser resumida a um encorajamentoa psicólogos experimentais para começar suaspesquisas por “fazer teorias, relativamente livres derestrições filosóficas prévias”. Ele se refere àsrestrições antiteóricas e indutivistas do PositivismoLógico que haviam perdido o debate filosófico comPopper, que defende que o princípio da investigaçãocientífica é a elaboração criativa de uma teoria quetem conseqüências empiricamente falsificáveis. Umpouco adiante, o mesmo Baars (1986, p. 146) declara:

Fatos isolados não fazem uma ciência; noentanto, um amontoado de fatos irrefletidospode interferir com o trabalho da ciência.Tornou-se agora lugar comum em filosofia daciência afirmar que “os fatos” não podem serpercebidos como fatos independentemente deum arcabouço [framework] teórico, explícitoou não. (e.g., Kuhn, 1962, 1970; Lakatos &Musgrave, 1970) [referência do texto original].

É lugar comum porque assim as idéias dePopper, sobre as quais os três autores citados porBaars (1986, p. 34) basearam grande parte de suasobras, o fizeram. Veja como Piatelli-Palmarini (1987)descreve o que torna o programa cognitivo e suasteorias, científicas:

Os modelos abstratos aos quais chegamosterão, para cada uma destas estruturas[cognitivas], valor científico na medida em queserão suficientemente gerais para apreenderem

verdadei-ramente as características universaisdo sujeito e suficientemente precisos para seremoperacionais logo, falsificáveis pela experiência.

É o que também afirma Chomsky (1987)ao justificar por que suas teses inatistas sãocientíficas e não metafísicas. Elas são científicasporque são refutáveis, qualquer língua encontradaque não possuísse a estrutura profunda por elepredita, falsificaria a tese de que ela é inata. Aoresponder ingênua objeção de Cellérier (1987) queafirmava que ele não poderia demonstrar apesardisso que o caráter universal de uma propriedadelingüística era inata, Chomsky (1987, p. 128)responde ironicamente: “Não pode provar-se pordemonstração que uma propriedade é inata, porquefazemos ciência e não matemática”. Mais à frenteele indica que a universalidade de uma propriedadeé condição necessária para o inatismo, porém, nãosuficiente. Mas, se encontramos um ser humano quenão possui a propriedade, isto é suficiente pararefutar a hipótese de que ela é inata (Chomsky, 1987,p. 129). Os trechos acima passariam perfeitamentepor trechos de autoria de Popper, mas não háreferência direta por parte dos autores citados. Éinútil fazer deste trabalho um amontoado de “fatosirrefletidos”, citações, idéias contrabandeadas ouinfluenciadas, que ademais já foram pontuadas atéaqui. Muitas outras citações poderiam aqui serevocadas, mas o que importa agora, uma vez queestá suficientemente justificada a tese básica desteartigo, é concluir este argumento e explicitar de queforma o método hipotético-dedutivo propiciou apsicologia cognitiva.

Como afirmou Baars (1986), enquanto omodelo de ciência dominante da psicologia impediaa geração de teorias prévias à observação direta deseu objeto de estudo, qualquer investigaçãocientífica da cognição era considerada impossível.Mas uma vez que Popper reintroduziu na filosofiaa tese de que a ciência parte de hipóteses formuladaspreviamente a observações, e mesmo que éimpossível fazer uma observação que não sejacontra ou a favor de uma teoria, a “liberdade derestrições filosóficas” para teorizar foi alcançada.Para Popper (1975a), o método científico tem quatroestágios básicos. O primeiro é a percepção de umproblema científico, por meio de uma observaçãoque frustrou alguma expectativa que tínhamosacerca do funcionamento de algo do mundo. Apartir daí, podemos criar conjecturas ousadas,

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hipóteses, que tenham conseqüências empíricasobserváveis, o que constitui a segunda fase dométodo científico. Aqui, formulamos hipóteses e,portanto, é aqui que a psicologia cognitiva estáliberada para começar seu trabalho, hipotetizandoteorias sobre o comportamento de processos nãoobserváveis diretamente, mas observáveis por meiode suas conseqüências empíricas previsíveis. Naterceira etapa, nossos modelos e hipóteses sobre oreal devem ser formulados em termos de umahipótese experimental, a qual, sob condiçõescontroladas, será submetida ao teste doexperimento. O experimento é o tribunal empírico-matemático da ciência moderna, e é quem julgará,na quarta etapa, se as predições observáveis quenosso modelo ou hipótese efetuou serão observadasou não. No primeiro caso, nosso modelo ouhipótese sobre a vida mental estará provisoriamentecorroborada, tendo atingido o status de lei científica(até ser falsificada por observações confiáveis); nosegundo caso, nosso modelo ou hipótese estaráfalsificado, e também fará parte do conhecimentocientífico, como erro laboriosamente eliminado.

Confluências entre as idéiaspopperianas e as cognitivistassobre o ser humano

Já foram aqui citadas algumas vezes eutilizadas outras, várias idéias cognitivistas que sederivam ou são compatíveis com as idéias dePopper. A mais evidente delas é a teoria daaprendizagem de Donald Campbell (1974),denominada por ele de “epistemologiaevolucionária”, e que nada mais é que a aplicação àteoria da aprendizagem da tese de Popper de quetoda aprendizagem humana é solução de problemas,onde temos que adaptar nossas idéias às novascircunstâncias ambientais ou perecer com elas.Várias outras idéias, porém, algumas surgidas daprópria investigação empírica cognit iva,demonstram surpreendente compatibilidade com opensamento popperiano. É o caso, por exemplo,da teoria do caráter antecipatório da percepçãohumana, defendida por vários cognitivistas comoJerome Bruner (1983) ou Ulric Neisser (1967) e hojemuito bem sustentada por pesquisas experimentais.

Neisser (1967), já em “Cognit ivePsychology”, defende que toda cognição, doprimeiro momento de percepção em diante, envolveprocessos analíticos e sintetizadores. Como ele

argumenta, a g rande diferença entre oprocessamento de informações seqüencial bottom-up (de cima para baixo, dos sentidos para a mente)e a cognição humana é que os seres humanos sãoseletivos na sua atenção, enquanto processosseqüenciais unidirecionais não podem ser.

A partir destes argumentos começaram aser desenvolvidos outros modelos deprocessamento para a simulação destes aspectosconstrutivos da cognição humana. Um dos maistradicionais hoje é aquele que, conforme Eysenck& Keane (1994), versa sobre o modelo bottom-up etop-down de processamento de informação. Segundoeste, todo processamento de informação éexecutado bidirecionalmente: o botton-up refere-seao processamento diretamente afetado pelo inputdo estímulo, o top-down ao processamento feito emfunção daquilo que o indivíduo traz à situação deestímulo (experiência passada, expectativas queorientam o que na informação recebida é relevantepara a tarefa em execução). Não é dif íci lcompreender a força do processamento top-down nanossa cognição ordinária. Parafraseando exemplofornecido por Eysenck, suponhamos que você tenhaencontrado uma folha deste artigo rasgada: “Este— está organizado em três partes”. Naturalmentevocê acreditaria se tratar da palavra artigo. Numacarta com letra ilegível, que comece por “C—Amigo,” naturalmente você processará o estímulocomo se tratasse da palavra ‘Caro’. Segundo Eysenck& Keane (1994), a tese predominante na psicologiacognitiva contemporânea, seguindo mais uma vezNeisser (1975), é a de que toda atividade cognitivaenvolve ambos os tipos de processamento, que nadamais são do que um modelo computacional dacrença construtivista (de origem popperiana) quenossas hipóteses e expectativas condicionam aseleção das informações que consideraremosrelevantes em cada contexto.

Também é interessante observar a sintoniaentre as idéias de Popper e Neisser no que dizrespeito a como o aumento de conhecimentoimplica aumento de imprevisibilidade. Neisser(1975) observa que além de ser impossível hoje paraa psicologia apresentar uma explicação dedutivo-nomológica estrita de qualquer comportamentoparticular, ainda temos que considerar o aparenteparadoxo de que o aumento do conhecimentoprovoca o aumento da impreditibil idade docomportamento humano, e que quanto maissoubermos sobre o ambiente e nossos próprios

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processos cognitivos, menos nosso comportamentoserá predizível.

Isso porque se o comportamento é umafunção da informação presente no ambiente, quantomais você entender seu ambiente, mais informaçõesirá recolher dele e, portanto, mais difícil será preverseu comportamento. De forma geral, diz Neisser(1975), quanto mais a pessoa sabe, menos ficapassível de controle. Penna (1984) aponta aqui maisuma convergência entre o pensamento popperianoe a psicologia cognitiva, uma vez que argumentossemelhantes são desenvolvidos por Popper (1961)em A Miséria do Historicismo.

Temos também as confluências entrePopper e Piaget. Como se sabe, o conceito deconstrução é fundamental na obra de Jean Piaget.Seu problema principal é a questão doconhecimento, o que ele é, como se dá, como oobtemos. As respostas tradicionais a estas perguntassão as estritamente empiristas e as estritamenteracionalistas. Piaget nega as duas e defende oconstrutivismo como terceira via. Piaget (1979)desenvolveu um modelo de desenvolvimentocognitivo construtivista, ricamente sustentado pordados empíricos, que explicava o processo deconstrução do conhecimento por parte do sujeito,onde os principais conceitos são os de assimilação eacomodação. Quando uma criança ou qualquer pessoatem uma experiência que não se coaduna com seusesquemas e teorias, ela primeiramente tenta assimilaressa experiência em seus esquemas existentes. Noentanto, se a pessoa vir que suas explicações epredições são repetidamente desmentidas, prevalecea tendência no sentido de o esquema se modificarde modo a acomodar-se a esta nova informação.

Este modelo, embora diverso, é bastantecompatível com o modelo popperiano de crenças eexpectativas inconscientes, desilusão destas atravésda ação no mundo, formulação de hipóteses, testedestas por meio da ação no mundo. Ou seja, tantopara Popper como para Piaget somos ativos quandointerpretamos a experiência para assimilá-la aosnossos esquemas e teorias, e somos ativos quandomudamos nossos esquemas e teorias de forma aacomodarem-se à realidade. Piaget, claramente, éum construtivista realista. De forma semelhante aPopper, ele acredita que o mundo vai moldandonossos esquemas quando os desmenteseguidamente, exigindo uma nova acomodação.

Também não podemos deixar de apontara sintonia entre os ataques à tábula rasa feitos por

Popper e por Chomsky. A teoria de Chomsky (1981)sobre o dispositivo inato de linguagem defende quetemos potencialidades inatas para desenvolvermosestruturas sintáticas que atuarão como“rastreadores” de palavras diante de emissõesverbais do ambiente onde a criança crescer,propiciando a rápida aprendizagem da língua natale da forma típica de ela organizar suas palavrasdentro das estruturas sintáticas universais humanas.Também aqui, a confluência com teses popperianasde expectativas inconscientes inatas é evidente.

Por fim temos as teses do determinismobidirecional e do interacionismo de Sperry (1993),que são explicitamente desenvolvimentos das idéiasde Popper acerca da relação mente-corpo (Popper& Eccles, 1977) e acerca de um determinismo não-absoluto (Popper, 1975b). O Cognitivismo não secompromete com o determinismo absolutolaplaceano. Isto se dá porque o Cognitivismo, deforma geral, aceita tanto as causas quanto as razõescomo determinantes do comportamento. Comoafirma Penna (1984), numa perspectiva positivistaque somente opera com regularidades causais, oconceito de consciência revela-se descartável, masquando operamos com fins, metas, valores, oconceito de consciência como fenômenointencional e foco de atividade capaz de produzircomportamento orientado por razões torna-seimperioso. Porém é evidente que a psicologiacognitiva considera que os processos cognitivos sedesenvolvem de acordo com leis que podem seraproximadamente descobertas e representadas, masesta crença, como já nos advertia Neisser (1967),só existe em relação aos processos mais automáticosda cognição, não em relação aos processossuperiores, particularmente os criativos e deatribuição de significado.

Sperry (1993), um dos poucos psicólogos(neuropsicólogo) vencedores do prêmio Nobel (porseus estudos sobre especialização hemisféricacerebral), nos apresenta a tese do “determinismobi-direcional”. Partindo do pressuposto holista deque “o todo é mais que a soma de suas partes”, ouseja, de que os todos apresentam propriedadesirredutíveis às propriedades das partes que oconstituem, essa doutrina do determinismoconsidera que o caminho da causação entre os todose as suas partes constituintes é bidirecional. Sperryacredita que esta nova concepção de determinismoestaria sendo exportada para vários campos dasciências, inclusive para a própria física, ainda

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razoavelmente desnorteada com os resultados não-deterministas da Física Quântica.

Esta tese é semelhante à apresentada porPopper (1975b) em seu livro com Eccles e em suaconferência De nuvens e relógios, onde critica odeter minismo laplaceano. Já acerca dointeracionismo, Sperry (1993) é explícito emreconhecer a influência de Popper no seu modelode relação mente-corpo. Nesta passagem, Popperesclarece sua verdadeira posição sobre a questão,Popper & Eccles (1977, p. 230):

Podemos conjecturar que a Consciência,por sua vez, é produzida por estados físicos;contudo, ela os controla em considerável extensão.Assim como um sistema legal ou social é produzidopor nós e, todavia, nos controla, não sendo emqualquer sentido razoável ‘idêntico’ ou ‘paralelo’ anós, mas interage conosco, assim também os estadosde consciência (a ‘mente’) controlam o corpo einteragem com ele.

Popper (1975b) reconhece que o principalproblema com o interacionismo tem sido a recusaem afirmar o que a mente é. No entanto acreditaque o interacionismo é uma resposta “quase trivial”ao problema de Descartes, e lida bem com nossacrença comum e aparentemente óbvia de que há umcerto dar e tomar entre o corpo, que modifica amente, e a mente, que modifica o corpo. Existe,defende Popper, retroalimentação, interação entre aatividade mental e outras funções do organismo,posição que seria retomada por Sperry (1993). Estaoutra passagem é perfeitamente esclarecedora de que,no entanto, seu dualismo não é (diga-se de passagemincoerentemente) um dualismo ontológico, e queportanto, é plenamente representativo do tipo deposição defendida pelo Cognitivismo:

Assim, como Descartes, proponho a adoçãode um ponto de vista dualista, embora, semdúvida, não recomende falar de dois tipos desubstâncias interatuantes. Mas penso ser útile legítimo distinguir dois tipos de estados (oueventos) interatuantes, os físico-químicos e osmentais. (Popper, 1975b, p. 231).

Roger Sperry (1993), seguindo explici-tamente a posição de Popper, procurou levar ointeracionismo característico do Cognitivismo umpasso a frente, procurando dizer o que a mente é, eporque poderíamos falar de dualismo sem falar dedualismo ontológico (ou de substâncias).

Conclusão

Apresentaram-se aqui justificativassuficientes para sustentar a tese de que a RevoluçãoCognitiva só se tornou possível graças à mudança naconcepção de ciência moderna provocada peloRacionalismo Crítico. Mas, além disso, demonstrou-se como o Cognitivismo é plenamente compatívelcom o Racionalismo Crítico, que é sua teoriaepistemológica de base. Não deixa de ser notável queuma disciplina empírica, no caso a psicologiacognitiva, encontre em seus resultados experimentaisdados que confirmam as pressuposiçõesepistemológicas nas quais sustenta sua investigação.Pode-se ver aqui a semelhança das teses filosóficasde Popper às teses do Cognitivismo sobre oconstrutivismo realista (Piaget, 1979), o caráterantecipatório da percepção (Bruner, 1983), aobservação que se faz contra ou a favor de uma teoria(Neisser, 1967), a rejeição da tábula rasa (Chomsky,1981), o interacionismo (Sperry, 1993) e o caráter deimprevisibilidade que o conhecimento traz ao sujeito(Neisser, 1975). Espero que este artigo dê sua parcelade contribuição para dirimir a inconsciência que oCognitivismo ainda demonstra por meio de algunsautores em relação ao caráter precursor da filosofiade Popper. Com menos inconsciência epistemo-lógica, um movimento pode dar passos muito maisseguros em direção a resultados empíricos quecorroborem ou refutem suas teses.

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Recebido em: 14/02/2007Received in: 02/14/2007

Aprovado em: 28/04/2007Approved in: 04/28/2007

Psicol. Argum., Curitiba, v. 25, n. 50, p. 277-290, jul./set. 2007

Gustavo Arja Castañon