charles wagley

20
Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 9, n. 3, p. 675-694, set.-dez. 2014 675 Os Tapirapé, Tenetehara e gurupaenses através das lentes da máquina de Charles Wagley: uma análise de conteúdo The Tapirapé, Tenetehara, and Gurupaenses through the camera lens of Charles Wagley: a content analysis Richard Pace Middle Tennessee State University. Murfreesboro, USA Resumo: Durante a sua longa carreira, Charles Wagley tirou centenas de fotografias de pesquisa, mas até agora muito poucas foram publicadas. Em 2011, a Universidade da Flórida postou on-line centenas de suas imagens dos Tapirapé, Tenetehara e Gurupá. Em 2012, Isabel Wagley Kottak – filha de Charles Wagley – forneceu-me dezenas de fotos tiradas por ele. Neste trabalho, analiso essas imagens, comentando sobre a particularidade de sua produção no contexto histórico e teórico da época, assim como as convenções fotográficas que Wagley usou em suas representações do outro. Essas convenções incluem um olhar humanístico, classificatório, exótico e masculino. Palavras-chave: Fotografia. Representação. Povos indígenas. Etnologia. Amazônia. Abstract: During his long career Charles Wagley took hundreds of research photographs, but to date very few of these images have been published. In 2011 the University of Florida posted on-line hundreds of his images of the Tapirapé, Tenetehara, and Gurupá. In 2012 Isabel Wagley Kottak – daughter of Charles Wagley – provided me with dozens more images that he took. In this paper I analyze these images commenting on the particulars of their production within the historical and theoretical context of the era, as well as the photographic conventions that Wagley used in the representations of the other. The conventions include a humanistic gaze, a classificatory gaze, an exotic gaze, and a male gaze. Keywords: Photography. Representation. Indigenous Peoples. Ethnology. Amazonia. PACE, Richard. Os Tapirapé, Tenetehara e gurupaenses através das lentes da máquina de Charles Wagley: uma análise de conteúdo. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 9, n. 3, p. 675-694, set.-dez. 2014. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1981- 81222014000300009. Autor para correspondência: Richard Pace. Department of Sociology and Anthropology, P.O. Box 10, Middle Tennessee State University. Murfreesboro, TN, 37132, USA ([email protected]). Recebido em 16/01/2013 Aprovado em 30/11/2013

Upload: miltinho-ribeiro

Post on 01-Oct-2015

10 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

Artigo de Richard Pace

TRANSCRIPT

  • Bol. Mus. Para. Emlio Goeldi. Cienc. Hum., Belm, v. 9, n. 3, p. 675-694, set.-dez. 2014

    675

    Os Tapirap, Tenetehara e gurupaenses atravs das lentes da mquina de Charles Wagley: uma anlise de contedo

    The Tapirap, Tenetehara, and Gurupaenses through the camera lens of Charles Wagley: a content analysis

    Richard PaceMiddle Tennessee State University. Murfreesboro, USA

    Resumo: Durante a sua longa carreira, Charles Wagley tirou centenas de fotografias de pesquisa, mas at agora muito poucas foram publicadas. Em 2011, a Universidade da Flrida postou on-line centenas de suas imagens dos Tapirap, Tenetehara e Gurup. Em 2012, Isabel Wagley Kottak filha de Charles Wagley forneceu-me dezenas de fotos tiradas por ele. Neste trabalho, analiso essas imagens, comentando sobre a particularidade de sua produo no contexto histrico e terico da poca, assim como as convenes fotogrficas que Wagley usou em suas representaes do outro. Essas convenes incluem um olhar humanstico, classificatrio, extico e masculino.

    Palavras-chave: Fotografia. Representao. Povos indgenas. Etnologia. Amaznia.

    Abstract: During his long career Charles Wagley took hundreds of research photographs, but to date very few of these images have been published. In 2011 the University of Florida posted on-line hundreds of his images of the Tapirap, Tenetehara, and Gurup. In 2012 Isabel Wagley Kottak daughter of Charles Wagley provided me with dozens more images that he took. In this paper I analyze these images commenting on the particulars of their production within the historical and theoretical context of the era, as well as the photographic conventions that Wagley used in the representations of the other. The conventions include a humanistic gaze, a classificatory gaze, an exotic gaze, and a male gaze.

    Keywords: Photography. Representation. Indigenous Peoples. Ethnology. Amazonia.

    PACE, Richard. Os Tapirap, Tenetehara e gurupaenses atravs das lentes da mquina de Charles Wagley: uma anlise de contedo. Boletimdo Museu Paraense Emlio Goeldi. Cincias Humanas, v. 9, n. 3, p. 675-694, set.-dez. 2014. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1981-81222014000300009.Autor para correspondncia: Richard Pace. Department of Sociology and Anthropology, P.O. Box 10, Middle Tennessee State University.Murfreesboro, TN, 37132, USA ([email protected]).Recebido em 16/01/2013Aprovado em 30/11/2013

  • Os Tapirap, Tenetehara e gurupaenses atravs das lentes da mquina de Charles Wagley: uma anlise de contedo

    676

    Prximo ao fim de sua carreira, Charles Wagley comeou a distribuir cpias de suas fotografias de campo para seus estudantes e colegas. Como seu ltimo estudante e pesquisador novato em Gurup, recebi uma srie de transparncias coloridas feitas em 1948. Durante minha pesquisa de doutorado, na primeira metade da dcada de 1980, usei com sucesso essas transparncias para estimular discusses entre os gurupaenses, tanto sobre o passado quanto o presente uma tcnica conhecida como chave de ouro para a entrevista porque atrai os entrevistados para a pesquisa ao passo que d margem abertura de informaes explcitas (Collier e Collier, 1986, p. 25, 105). Contudo, no prestei muita ateno coleo, ou s outras fotografias tiradas por Wagley durante sua longa carreira, e tambm nunca conversei com ele a respeito das imagens.

    Cerca de duas dcadas depois, aps o falecimento de Wagley, comecei a dar aulas de antropologia visual, o que me despertou o interesse de examinar sistematicamente todo o seu trabalho fotogrfico. Na poca, j existiam bons exemplos de anlises de fotografias histricas de outras culturas (Edwards, 1992), representaes culturais de outros na mdia popular (Lutz e Collins, 1993) e at anlises focadas especificamente na Amaznia (Nugent, 2007; Kahwage e Ruggeri, 2007). Outro estmulo importante foi a postagem on-line de mais de 500 fotografias de Wagley pela Coleo Latino Americana da Universidade da Florida (University of Florida, 2011). Com as imagens, a teoria e a metodologia das anlises fotogrficas na minha frente, fiquei disponvel para conduzir uma anlise de contedo detalhada da coleo, cujos resultados so aqui apresentados.

    A COLEO DE WAGLEYQuando comecei a revisar a coleo de Gurup, achei lacunas no acervo da Universidade da Flrida. Curioso sobre o quanto da coleo inteira estava faltando, viajei para a casa de Isabel (Betty) e Conrad Kottak (filha e genro de Wagley), onde vasculhamos caixas de plstico e velhas caixas de sapato cheias de fotos envelhecidas. Encontramos dezenas de fotos que no estavam na coleo da Flrida, incluindo fotografias adicionais de Gurup, dos Tapirap, dos Tenetehara e selees menores de outros grupos (ver, por exemplo, Figuras 2, 18, 19 e 25). Percebemos tambm que grande parte das fotos das pesquisas realizadas na Bahia havia sido enviada ao Brasil e no estava disponvel para anlise.

    Sem dvida, existem mais fotografias tiradas por Wagley, ainda no coletadas ou escaneadas para preservao, incluindo muitas produzidas em parceria com seu amigo de longa data e colega Eduardo Galvo1 (Figuras 5, 12, 13 e 20). O que est disponvel para anlise uma grande coleo que inclui imagens dos Tapirap tiradas em 1939-1940, 1957 e 1965 (total de 511); dos Tenetehara, tiradas em 1940-1941 e 1945 (total de 184); e de Gurup, tiradas em 1942, 1945 e 1948 (total de 177). Esses so os trs grupos aqui analisados. Para as fotografias tiradas nas dcadas de 1930 e 1940, Wagley usou uma Rolleiflex TLR (Figura 4). Para as fotos posteriores, ele usou uma Olympus. As fotografias das dcadas de 1930 e 1940 dos Tapirap e Tenetehara so todas em preto e branco. As imagens de Gurup so uma combinao de fotos em preto e branco e transparncias coloridas. As viagens seguintes aos Tapirap, nos anos de 1950 e 1960, tambm resultaram na combinao de fotografias coloridas, em preto e branco e transparncias coloridas.

    1 Em Encontro de Antropologia: homenagem a Eduardo Galvo (Magalhes et al., 2011, p. 164-66), existem cinco fotografias dos Tenetehara, as quais foram atribudas a Galvo, que tambm aparecem na coleo de Wagley. Uma vez que Wagley e Galvo trabalharam colaborativamente, e talvez tenham compartilhado cmeras, nunca se saber ao certo quem o real autor destas imagens. Muitas das fotografias de Galvo da poca em que ele estava trabalhando entre os Tenetehara, porm, o mostram usando uma filmadora 8 mm, o que sugere uma diviso de trabalho, na qual Wagley fotografava e Galvo filmava (por exemplo, nas fotografias do xam em transe, h uma imagem que capturou Galvo correndo no fundo com a filmadora 8 mm). Ainda assim, para esta anlise, se a fotografia foi includa na coleo que Wagley reuniu, iremos trat-la como se tivesse sido tirada por Wagley.

  • Bol. Mus. Para. Emlio Goeldi. Cienc. Hum., Belm, v. 9, n. 3, p. 675-694, set.-dez. 2014

    677

    A qualidade das fotografias de Wagley consistente do incio ao fim. Existem mais fotos esbranquiadas e fora de foco nas primeiras sries dos Tapirap, mas, nas pesquisas entre os Tenetehara e em Gurup, estes problemas so raros. Da coleo total, 94,93% das fotografias contm pessoas, enquanto somente 2,29% apresenta paisagens naturais e 2,78%, objetos materiais. Em muitas fotos (39,77%) as pessoas esto posando (Figuras 11, 15, 16, 21 e 23) ou celebrando rituais (31,18%, Figuras 3, 5, 16, 17, 23 e 24). O estilo fotogrfico foi principalmente classificatrio, o que era tpico para os antroplogos daquele perodo, sem fotos experimentais ou artsticas (uma exceo a Figura 9). Ainda assim, Wagley produziu imagens de qualidade que ainda agradam esteticamente at hoje.

    REPRESENTAES REVELADASTerence Wright (1992, p. 19) comenta que o ato de usar uma cmera fora o fotgrafo (e, ultimamente, a pessoa que olha a fotografia) a aceitar uma teoria de representao, querendo ou no. Essa teoria de representao, de acordo com Sarah Pink (2007, p. 39), influenciada por uma variedade de fatores, incluindo crenas tericas, agendas disciplinares, experincias pessoais, identidades de gnero e culturas visuais diferentes. Em outras palavras, representaes fotogrficas so construdas culturalmente e no so imagens puras capturando a realidade (Crawford, 1992). Como construes, representaes fotogrficas podem ser analisadas para a compreenso do que elas significam (ou como elas criam significados). A fotografia cria sentidos em uma variedade de maneiras, de convenes culturais (normas tecnolgicas ou ideolgicas) que influenciam sobre o que filmar, e como filmar. Essas convenes fotogrficas incluem o enquadramento (o que incluir na foto e o que excluir), a distncia focal (o quo perto ou longe), o ponto de vista (qual o nvel da foto, se de cima, altura dos olhos ou de baixo), a luz e cor, o registro do olhar ou da visada (linhas de viso), a sequncia de imagens etc. (Lutz e Collins, 1993, p. 88; Benjamin,

    1985; Geary, 1988; Berger, 1972, 1980). Anlises cuidadosas destas convenes permitem detectar padres sutis usados para criar representaes que seriam perdidas em outros tipos de estudo (Lutz e Collins, 1993, p. 89).

    Ao analisar as convenes fotogrficas usadas por Wagley, quatro temas ou olhares (gazes) proeminentes se destacam nas representaes de sujeitos. Pode-se classific-los como olhar humanstico, classificatrio, extico e masculino. Os trs primeiros esto enraizados na abordagem terica e agenda disciplinar de Wagley, conhecida como particularismo histrico do incio do sculo XX (Harris, 1968, p. 250). Desenvolvida por Franz Boas e transmitida a Wagley na Universidade de Columbia atravs de Ruth Benedict, Ruth Bunzel e Ralph Linton, essa abordagem focava a descrio etnogrfica de histrias especficas das culturas individuais (uma reao s classificaes etnocntricas do evolucionismo clssico). A abordagem indutivista, muito cuidadosa a respeito de comparaes entre culturas, era fortemente relativista, focada na viso mica (viso popular ou por dentro da cultura) e insistente sobre longos perodos de pesquisa de campo envolvendo participao-observao e o cuidadoso estabelecimento de empatia (rapport). Existia tambm uma preocupao com o resgate da etnografia de salvamento (salvage ethnography) ou com a preservao do registro (tanto escrito quanto fotografado) de rituais, crenas e modos de vida de culturas ameaadas de extino antes que fossem ultrapassadas pelo processo de aculturao. Ainda mais, Banta e Hinsley (1986, p. 106) sustentam que existiu um grande esforo entre os particularistas histricos para registrar o ritual que presumiam exemplificar como histria destilada e sabedoria cultural, o mais conservador e, assim, o remanescente mais significativo da cultura.

    Wagley tambm foi influenciado pelo trabalho de seu colega Julian Steward e seu interesse no conceito de reas culturais. Wagley ajudou a desenvolver e expandir o conceito e classificou algumas regies culturais (e subculturais) da Amrica Latina e do Caribe. No artigo escrito juntamente com Marvin Harris (Wagley e

  • Os Tapirap, Tenetehara e gurupaenses atravs das lentes da mquina de Charles Wagley: uma anlise de contedo

    678

    Harris, 1955), A typology of Latin American Subcultures (Uma tipologia das subculturas latino-americanas), quatro dos sete tipos listados vieram de seus estudos aqui considerados. Os Tapirap eram o modelo de ndios tribais, os Tenetehara eram um modelo regional para os ndios modernos (Wagley tambm usou sua pesquisa da Guatemala para caracterizar este tipo) e Gurup serviu como modelo tanto para camponeses quanto para moradores de cidades pequenas (Harris, 1990, p. 1). Paralelamente ao projeto de Julian Steward de estudar comunidades em Porto Rico, Wagley tambm dirigiu um grupo de estudantes graduados no estudo dos tipos de subculturas da Bahia (os tipos de fazendas de engenho e usinas). Seguindo a sugesto de Alfred Mtraux, da Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura (UNESCO), o projeto tambm abordou relaes raciais (Stein, 1992, p. 405). O olhar classificatrio de Wagley se estendeu fortemente para a definio do conceito de raa social, a pesquisa que ele comeou em Gurup (Wagley, 1952).

    Embora Wagley fosse contemporneo de Margaret Mead na Universidade de Columbia e fosse familiar com sua insistncia em registrar imagens nas pesquisas de campo (Bateson e Mead, 1942), no est claro o quanto isso o influenciou. Exceto pelo livro Lgrimas de boas-vindas (Wagley, 1988), ele publicou relativamente poucas de suas imagens2. Wagley organizou suas fotografias em lbuns para serem observados, mas no as usou sistematicamente em sala de aula, pelo menos no fim de sua carreira. Em sua coleo, h um grande nmero de imagens que incluem crianas (24,25% do total, Figuras 6, 11, 15 e 16), as quais podem ter tido alguma conexo com o interesse de Mead em documentar a criao das crianas e o seu impacto na personalidade adulta na sua misso para definir a

    relao entre cultura e personalidade. Infelizmente, eu nunca pensei em fazer-lhe essa pergunta.

    CONVENES FOTOGRFICAS E REPRESENTAES NA COLEO DE WAGLEY: O OLHAR HUMANSTICOA abordagem do particularismo histrico requer, como citado acima, um longo perodo de pesquisa etnogrfica de campo, o estabelecimento de empatia, a observao-participao e a obteno da viso mica. Esses fatores propiciam um entendimento humanstico das pessoas. Na pesquisa de Wagley, essa abordagem humanstica claramente evidente nos escritos etnogrficos e tambm na coleo fotogrfica. Um olhar humanstico observvel em vrias imagens por meio da distncia focal, da vista focal, de retratos, olhares para a cmera e sorrisos.

    Distncia focal. A fotografia pode ser tirada de um ponto de observao (distncia no intrusiva) ou de um ponto de vista participativo (de perto e ntimo). Fotos distantes e fotos panormicas podem transmitir uma sensao de admirao, mas tambm demostram a falta de relaes sociais com os sujeitos (Macintyre e MacKenzie, 1992). Fotos de perto podem indicar aceitao e empatia, o que leva a um entendimento mais profundo da cultura e riqueza fotogrfica3. Na coleo de Wagley, fotos distantes de pessoas (por exemplo, a 15 metros ou mais) somam apenas 11,18% de todas as imagens com pessoas (Figuras 10 e 23), enquanto fotos de perto (a menos de cinco metros dos sujeitos) compem 39,77% (Figuras 6, 11, 16 e 17). Fotos com distncia mdia (seis a 14 metros) compem os 49,05% restantes (Figuras 3, 5, 8, 14, 15, 21, 22 e 24).

    Vista focal. Uma fotografia pode ser tirada por cima dos sujeitos (acima do nvel de seus olhos), ao nvel dos olhos ou de um nvel abaixo. Nas tradies fotogrficas do Ocidente, uma coleo de imagens tiradas de cima pode

    2 Lgrimas de boas-vindas (Wagley, 1988) o livro com maior nmero de fotografias (54 imagens), seguido por An introduction to Brazil (Wagley, 1963 [1971]), com 12, e somente uma edio de Uma comunidade amaznica (Wagley, 1957 [1988]), com cinco. Seus trabalhos restantes no contm fotografias.

    3 Wagley no possua uma lente com zoom, ento a habilidade de capturar a intimidade social distncia no era possvel.

  • Bol. Mus. Para. Emlio Goeldi. Cienc. Hum., Belm, v. 9, n. 3, p. 675-694, set.-dez. 2014

    679

    denotar a inferioridade de status dos retratados, ao nvel dos olhos pode denotar uma igualdade e de baixo pode denotar uma distino ou superioridade (Berger, 1972, 1980). H tambm outras razes para se mudar o ponto de foco, incluindo a disposio dos sujeitos (por exemplo, fotografando do cho a construo do telhado de uma oca, conforme a Figura 9) e a expresso artstica, mas o uso persistente de determinado ngulo, sobretudo em uma coleo, indica parcialidade. Entre as fotografias de Wagley, 68,40% so ao nvel dos olhos do sujeito (Figuras 3, 5, 8, 14, 15, 17, 21 e 24), 26,18% de cima (Figuras 6 e 11) e 5,42% de baixo. A cmera que ele usou uma Rolleiflex TLR para os Tapirap e os Tenetehara tinha o visor montado na parte de cima do equipamento, necessitando que uma pessoa olhasse para baixo para tirar as fotos (Figura 4). Isso significa que as fotografias foram tiradas tipicamente ao nvel do peito de Wagley. Considerando sua altura (aproximadamente 1,85 m), tirar fotos ao nvel dos olhos dos mais baixos grupos indgenas requeria um consciente esforo para se abaixar (Figura 1). Isso mais evidente entre as fotografias de crianas, para as quais ele teve que se ajoelhar para atingir o nvel dos olhos em 55,72% das fotos (Figura 16).

    Retratos. O processo de tirar retratos pode ter o efeito de humanizar o outro. Por mostrar claramente faces discernveis, a pessoa que v as imagens pode ler emoes e projetar noes de carter e personalidade (o que importante para o entendimento de si no Ocidente, conforme Lutz e Collins, 1993, p. 96-98). Identificar os indivduos no retrato humaniza ainda mais a imagem. Nomear a pessoa ajuda a transpor uma simples taxonomia de tipos tnicos que torna a imagem extica e distante a qual tambm uma caracterstica dos retratos (Geary, 1988, p. 50). Na coleo de Wagley, 30,63% de todas as imagens so retratos de corpo inteiro ou da cintura pra cima (Figuras 11, 15, 16, 17 e 21). A maioria dos retratos adultos foi nomeada. Porm, quando Wagley comeou sua pesquisa sobre o conceito de raa social, ele tirou retratos mais taxonmicos e, quando foram publicados em An

    introduction to Brazil (Wagley, 1963 [1971]), pareceram exticos e distantes.

    Olhares. Lutz e Collins (1993, p. 197-199) escreveram que o olhar do sujeito fotografado a mensagem mais importante que uma imagem pode dar sobre relaes interculturais. Como e o qu a pessoa olha podem significar intimidade, comunicao, hostilidade, indiferena, curiosidade, subjugao ou ambiguidade. As citadas autoras dividem os olhares dos sujeitos em quatro categorias: olhando para alguma coisa ou algum no enquadramento, olhando para a cmera, olhando para algo distante alm do enquadramento (incluindo olhar para o cho em vez da cmera) e sem um olhar, quando os rostos das pessoas esto indistinguveis por causa da distncia, da luz ou da falta de foco.

    Olhar para algum ou para algo no enquadramento dirige a ateno da pessoa que v a foto para aquilo que parece interessar o sujeito fotografado. Se uma coleo fotogrfica constantemente mostra povos no ocidentais olhando para bens manufaturados nos pases industrializados ou para indivduos ocidentais no enquadramento (como achado por Lutz e Collins, 1993, p. 30, 202, em muitas das fotografias da National Geographic), ento provvel que as fotografias signifiquem noes ocidentais de progresso, a superioridade da sociedade industrial ocidental e a importncia dos ocidentais sobre os outros. Se, por outro lado, os olhares esto direcionados aos objetos da manufatura local ou para os outros do mesmo grupo, ento uma representao relativista cultural (compreendendo um grupo em seus prprios termos) mais provvel de ser observada.

    Na coleo de Wagley, h apenas uma fotografia que mostra claramente um olhar de desejo aos bens manufaturados (cobertores trazidos por Wagley como presentes para os Tapirap). H algumas fotos distantes de uma visita feita por uma caravana viajante de brasileiros, os quais deram presentes aos Tapirap, mas a troca real no foi capturada por Wagley. Dada a preocupao terica dele com os impactos negativos da aculturao e da desintegrao da cultura, estas foram provavelmente imagens desagradveis

  • Os Tapirap, Tenetehara e gurupaenses atravs das lentes da mquina de Charles Wagley: uma anlise de contedo

    680

    para se registrar e podem ter sido evitadas. Quando os habitantes locais e os ocidentais estavam juntos no enquadramento da foto (11,69% de todas as imagens com contedo humano), geralmente algum aparece olhando para a cmera e as fotos foram tiradas em pose (40,22%), para alguma atividade fora do enquadramento (17,39%), olhando um para o outro (11,96%, dos quais 62,50% envolveram pelo menos um indivduo sorrindo), para um objeto (1,09%) ou com olhares indistinguveis (29,34%). Entre as fotografias com olhares direcionados para pessoas ou coisas (15,88% de todas as imagens com contedo humano), 11,94% envolvem habitantes locais olhando para seus colegas (muitas dessas fotos foram tiradas no contexto da performance do ritual) e 4,57% para coisas sendo manufaturadas (fiando, fazendo peas de cermica, cozinhando).

    Olhar diretamente para a cmera, a segunda categoria de olhares, permite a interao com o fotgrafo. Se no for desafiador ou hostil (nenhum caso na coleo de Wagley), o olhar direto pode significar permisso para ser olhado/fotografado (Metz, 1985, p. 800-801). Adicionando sorrisos (ver abaixo), o olhar pode significar empatia e intimidade. Na coleo de Wagley, em 45,45% das imagens com contedo humano e olhares visveis pelo menos algumas das pessoas esto olhando para a cmera (Figuras 8, 9, 11, 15, 17, 21 e 24).

    Olhar para a distncia ou para longe da cmera, o terceiro tipo de olhar, pode significar uma grande variedade de coisas o retrato de sonhadores, distrados, pessoas pensando no futuro ou determinao (Lutz e Collins, 1993, p. 202). Isso pode tambm indicar desconforto (evitando um olhar direto), mas ainda permitindo que se tire uma foto. Na coleo de Wagley, 37,24% dos olhares so distantes ou evitam a cmera. Destes, somente poucos se enquadram na categoria de sonhadores ou distrados. Outras fotografias consistem em pessoas olhando simplesmente para a distncia ou para algo ou algum desconhecido por causa do enquadramento da fotografia (Figura 14). H outras, porm, onde o sujeito aparece claramente evitando um olhar direto para a cmera e demonstrando certo desconforto (5,72% de todos os olhares distantes, ou 1,78% de todas as imagens

    com contedo humano; Figura 16, observar o jovem esquerda na Figura 21 e Figura 7, mesmo que a foto no tenha sido tirada por Wagley). Na maioria destes retratos, o olhar do sujeito est direcionado para baixo, mas a face est na direo da cmera. No caso de Gurup, este olhar humilde indicativo de uma hierarquia social tradicional, na qual um inferior socialmente nunca olha nos olhos de seu superior como uma demonstrao de respeito (isto , Wagley claramente representou uma classe superior por ser branco, relativamente rico, um estrangeiro bem educado). O mesmo olhar humilde foi tambm visto nos Tenetehara e posteriormente nas fotografias dos Tapirap, e pode refletir a imitao de padres de classes sociais. A presena no frequente do olhar distante/evitado entre os Tapirap em 1939-1940, porm, foi provavelmente causada pela falta de familiarizao do grupo com a fotografia e constituiu somente uma das muitas maneiras de utilizar os olhares.

    Sorrisos. Pessoas sorrindo em fotografias so importantes chaves para representar felicidade e contentamento, e para criar categorias de desconhecidos amigveis, confortveis no mundo tal como ele , corroborando o status quo global (Lutz e Collins, 1993, p. 96). Sorrir tambm pode indicar empatia com a pessoa estudada. A sobrecarga ou saturao de pessoas sorrindo como representao de um grupo, porm, pode ser parte de uma conveno fotogrfica para obscurecer a desigualdade e, frequentemente, as relaes abusivas de poder entre fotgrafo/pessoa que v a foto e o sujeito fotografado (Fabian, 1983). Por outro lado, a completa falta de pessoas sorrindo pode representar um ambiente hostil ou a ausncia de empatia, especialmente quando acompanhada de olhares hostis. No trabalho de Wagley, 10,70% das fotografias de habitantes locais contm algum sorrindo. Nenhuma das fotografias contm olhares hostis.

    Muitos retratos que Wagley tirou, porm, tm pessoas que no esto sorrindo. Esta outra caracterstica cultural da poca, em que tirar um retrato era um evento srio, onde era inapropriado sorrir. Uma reviso histrica das fotografias da poca revela retratos estoicos, sem expresso como

  • Bol. Mus. Para. Emlio Goeldi. Cienc. Hum., Belm, v. 9, n. 3, p. 675-694, set.-dez. 2014

    681

    norma. Isso explica a ausncia de retratos com sorrisos entre os gurupaenses (Figura 21) e, possivelmente, para os mais aculturados Tenetehara e para os Tapirap das dcadas de 1950 e 1960. No caso das primeiras imagens dos Tapirap, como exemplo dos olhares distantes/evitados discutidos anteriormente, a falta de familiaridade com a fotografia provavelmente resultou em uma distribuio igual de sorrisos e no sorrisos nos retratos (Figura 7).

    Como comprovado por estas cinco convenes fotogrficas, Wagley realizou um nvel alto de empatia com cada grupo e interagiu em boa proximidade com as pessoas que o permitiram tirar fotos de perto e amigveis. Ele criou fotografias com a viso voltada para a relatividade cultural, denotando igualdade entre as partes, esforando-se por registrar atividades ao nvel dos olhos e evitando imagens mostrando desejos por bens ocidentais ou olhares denunciando a superioridade ocidental. Sua coleo tambm mostra que ele foi aceito em sua jornada fotogrfica com um considervel nmero de sorrisos e uma completa ausncia de olhares hostis. Assim como em seu trabalho, sua fotografia significou uma obra sem preconceitos e um entendimento humanstico das pessoas que ele estudou.

    CONVENES FOTOGRFICAS: O OLHAR CLASSIFICATRIONa literatura sobre a fotografia do colonialismo, h muitas crticas sobre o uso de imagens pelas naes europeias para criar taxonomias que dividiam a humanidade em categorias etnocntricas de selvageria, barbrie ou civilizao (Edwards, 1992). O mundo foi fotografado de acordo com o tipo fsico humano, a tecnologia, a cultura material, a roupa e decorao corporal, a arquitetura, o armamento, os rituais e as recreaes (Macintyre e MacKenzie, 1992). Contudo, mesmo aps os antroplogos terem liderado o ataque ao etnocentrismo e s taxonomias racistas do incio do sculo XX, o uso de fotografias para a classificao continuou e continua at hoje como instrumento essencial para encontrar e descrever padres no contedo cultural.

    Entre os particularistas histricos, os etngrafos criaram classificaes detalhadas da cultura material (frequentemente usada em estudos de difuso) que pde ser fotografada. Havia tambm categorias de economia, parentesco, poltica, religio e folclore a serem registradas, frequentemente em etnografias de resgate. Como discutido antes, os rituais como um arquivo rico da cultura foram entendidos como elementos chave para o registro. E, na dcada de 1950, houve um novo interesse em desenvolver taxonomias para a classificao de reas culturais do mundo.

    Quando Wagley pegou sua cmera para registrar a cultura, o olhar classificatrio foi uma parte essencial da sua abordagem terica e agenda de pesquisa, e teve uma influncia crucial na sua representao dos sujeitos, das culturas e do meio ambiente. De todas as imagens, 10,37% foram paisagens naturais, vegetao e reas de roado; e 10,86% foram fotografias de atividades econmicas (cozinhar, preparo de caa, pesca, debulhar o milho, transportar bens da/para a roa, fiar, produo de peas de cermica, construo de casas, venda de mscaras, trabalho de seringa e abastecimento de barcos, Figuras 8, 9, 10 e 22). Este olhar classificatrio no era exaustivo. Por exemplo, existem poucas imagens do cultivo agrcola e de tcnicas de produo, e nenhuma sequncia fotogrfica mostrando o processamento de comidas do incio ao fim. Tambm no existem muitos exemplos de cultura material (somente em Os ndios Tenetehara, de 1949, a cultura material foi documentada, mas na forma de desenhos, no em fotografias; Wagley e Galvo, 1949). Em contraste, o que proeminente na sua coleo so as fotografias de rituais e os retratos. A preparao e a execuo de rituais somam 27,99% de todas as fotografias. Estas incluem a cerimnia do Trovo dos Tapirap, com o xam intoxicado pelo fumo e desafiando o Trovo (Figura 3), a cerimnia de idade para os jovens Tapirap (Figura 5), a cerimnia de idade para os jovens Tenetehara (Figura 16), o xam Tenetehara fumando tabaco para entrar em transe (Figura 17), a celebrao do Boi-Bumb em Gurup (Figura 23) e a procisso de So Benedito em Gurup (Figura 24). Estas cerimnias foram cuidadosamente registradas em sequncias fotogrficas do incio ao fim.

  • Os Tapirap, Tenetehara e gurupaenses atravs das lentes da mquina de Charles Wagley: uma anlise de contedo

    682

    Em Gurup, fotografar o ritual precisou de um esforo extra. O festival de So Benedito ocorre em dezembro, mas a pesquisa de campo aconteceu entre junho e setembro. Em razo de o ritual ser um elemento to importante na agenda dos particularistas histricos, como Wagley, ele pediu para os gurupaenses encenarem a procisso fora da poca. Indicadores chave deste acontecimento foram a pequena quantidade de pessoas fotografadas na procisso (ao invs de 700 a 1.000 pessoas que normalmente acompanhavam a procisso, as fotografias de Wagley capturaram somente 100; ao invs de dzias de barcos para a procisso fluvial da meia lua, havia somente um veleiro rebocado pelo barco a motor de Wagley) e a ausncia da imagem do santo na procisso (o padre da poca, Dom Clemente, era muito rgido para permitir que a imagem do santo deixasse a igreja, exceto durante a procisso real). No caso da cerimnia do Boi-Bumb, o povo de Gurup j havia abandonado a celebrao em 1948. De novo, atrado pela necessidade de registrar e classificar o ritual, Wagley pagou pela realizao da cerimnia. O que ele fotografou foi o ltimo Boi-Bumb realizado em Gurup. Ns s podemos especular, mas a ausncia dessas fotografias nos seus trabalhos publicados, mesmo que sejam de boa qualidade (somente uma figura do Boi-Bumb aparece em An introduction to Brazil, de 1963, e a mesma foto em Uma comunidade amaznica, de 1957), deve ser resultado das produes artificiais a pedido de Wagley.

    Wagley tambem tirou muitos retratos de indivduos para mostrar trajes, ornamentaes e pintura corporal, assim como variaes fenotpicas essenciais para sua pesquisa sobre o conceito de raa social (este ltimo aparece em uma srie de imagens em An introduction to Brazil). Entre os Tapirap, 29,00% das imagens mostram pinturas corporais de frente ou de costas. As fotos so bastante similares a outras representaes publicadas na mesma poca, tanto fotografias quanto desenhos. Para a coleo inteira, 8,30% dos retratos estavam de perfil, prtica comum da poca

    para mostrar a variao fenotpica. Entre os gurupaenses, Wagley explicitamente queria pesquisar a raa social com uma coleo de fotografias tiradas na cidade. Estas fotografias foram utilizadas para procurar respostas aos registros de classificao de raa e classe (Wagley, 1957 [1988]). Algumas das fotografias, todas retratos, foram classificadas a mo por Wagley, no verso: um casal caboclo tpico, um branco brasileiro, uma mulher morena escura e da por diante.

    CONVENES FOTOGRFICAS: O OLHAR EXTICONa literatura cientfica e popular, os no ocidentais, particularmente os povos indgenas, so frequentemente representados como outros exticos. As caractersticas exticas nas fotografias so exemplificadas por Lutz e Collins (1993, p. 89-90) por diferenas culturais como

    colorido radiante, trajes diferentes, realizao de rituais estranhos primeira vista ou comportamentos inexplicveis (...) [para] atrair ateno, pelo menos implicitamente, para coisas que definem ns no nosso estado de humanidade normal e sem marcao, isto , como pessoas que se vestem e agem de maneira normal (traduzido pelo autor).

    Alguns crticos da antropologia apontam que a essncia fundamental da disciplina est enraizada na descrio e anlise do outro extico. Como foi observado por Fabian (1983) em uma referncia especfica antropologia, o outro extico pode no ser tanto o resultado, mas o pr-requisito do questionamento antropolgico.

    A coleo de Wagley no escapa da necessidade de registrar o outro extico. De todas as fotografias, 11,94% mostraram trajes exticos para rituais e, como discutido acima, 27,99% mostraram as populaes fazendo rituais4. Porm, o trabalho de Wagley se destacou na descrio do extico em comparao com outras representaes de mdias populares por que ele foi cuidadoso ao definir a

    4 Mesmo no caso de Gurup, um local menos extico do que as comunidades dos Tapirap ou dos Tenetehara, a classificao da populao como caboclos, um termo racial carregado de preconceito, usado com desaprovao na regio, uma maneira de dar significado ao extico e de aumentar o valor da pesquisa etnogrfica (Pace, 2006).

  • Bol. Mus. Para. Emlio Goeldi. Cienc. Hum., Belm, v. 9, n. 3, p. 675-694, set.-dez. 2014

    683

    significncia cultural dos trajes, dos ornamentos, da pintura corporal e do ritual nos textos associados s imagens. Em uma descrio mais problemtica do extico, ele tirou duas fotos de uma me dando banho em seu filho recm-nascido. Uma das fotos foi publicada (Wagley, 1988) com a legenda: Uma criana recm-nascida sendo banhada no riacho em 1940. Era a quarta criana de Mikatu e no foi deixada viver. No texto, Wagley explicou as regras de infanticdio dos Tapirap para contextualizar a prtica e dar nfase racionalidade demogrfica deste ato. Ao mesmo tempo, ele registrou a m adaptao de tal padro para um grupo ameaado com a rpida depopulao. Sua deciso de informar as Irmzinhas de Jesus (Wagley, 1988), um grupo missionrio catlico prximo, para impedir outro infanticdio assim que pudessem intervir, indicou sua navegao criativa pelas noes estritas da relatividade cultural, uma resposta inovadora que transcendeu as limitaes do treinamento tnico que ele recebeu do particularismo histrico.

    A importncia de enfatizar o extico no trabalho de Wagley ainda evidente. Ele ficou precisamente dentro do projeto antropolgico do sculo XX, no qual usou o conceito do outro extico para definir nosso lugar, o lugar do outro, e o lugar antropolgico no mundo.

    CONVENES FOTOGRFICAS E REPRESENTAES: O OLHAR MASCULINOO olhar masculino significa a importncia e valorizao do homem e de suas atividades acima do valor e das atividades femininas. Neste caso, os homens tipicamente so ativos e as mulheres, passivas e simplesmente aparecem (Berger, 1972, p. 46-47). Esta viso est enraizada no preconceito ocidental do gnero (Ortner, 1974). Ainda que a antropologia caminhe para a relatividade cultural e lute contra imposies dos preconceitos culturais sobre um grupo estudado, o preconceito e o olhar androcntrico foram muito comuns na disciplina at a dcada de 1980.

    A coleo fotogrfica de Wagley reflete esta parcialidade. Entre suas imagens de sujeitos humanos, 56,80% mostram exclusivamente atividades masculinas ou

    focadas na atividade masculina, 30,37% mostram mulheres e homens, e somente 12,83% contm exclusivamente mulheres. Homens somam 60,78% das atividades rituais (mulheres somente 1,29%) e 67,78% das atividades econmicas (mulheres somente 21,11%). Somente nas poucas fotos de cuidados com o cabelo, as mulheres superam os homens (15 no total, dos quais 33,33% so mulheres, 46,67% ambos e 20,00% homens), mas aparecem passivamente. Uma caracterstica proeminente do olhar androcntrico a representao do homem caador, que aparece em 13,33% das fotografias de atividade econmica (Figura 8). Arcos e flechas e bordunas so carregadas por homens exclusivamente em 97,85% das imagens contendo armas/ferramentas de caa.

    De todas as imagens produzidas na coleo, caracterizadas pelo olhar masculino, as mais problemticas so quatro fotografias tiradas de um estupro em grupo entre os Tapirap (Wagley, 1988). As fotografias no mostram rostos, apenas posies corporais. Trs delas esto fora de foco, provavelmente tiradas de forma apressada e possivelmente com nervosismo. Wagley descreveu em detalhes o contexto cultural do estupro, mas nunca o mencionou nas fotografias. Ele sempre separou estas fotos de suas outras imagens, portanto elas nunca foram publicadas ou apareceram on-line. Somente o Instituto Kinsey de Estudos da Sexualidade, da Universidade de Indiana, recebeu cpias dessas imagens.

    As imagens de estupro revelam um enigma na antropologia visual entre registar holisticamente tudo o que acontece de maneira a representar uma cultura em sua complexidade ou registrar eticamente comportamentos questionveis, como a violncia. Wagley nunca esteve confortvel com estas imagens e no as divulgou. Nesse momento, podemos apenas especular se as fotografias se encaixam no ponto de vista do olhar masculino, no qual tudo o que fosse atividade masculina precisava ser registrado. Como um jovem antroplogo treinado para registrar indutivamente tudo, Wagley estava simplesmente tentando ser um bom particularista histrico.

  • Os Tapirap, Tenetehara e gurupaenses atravs das lentes da mquina de Charles Wagley: uma anlise de contedo

    684

    Figura 1. Charles Wagley e os Tapirap em 1939. Fotgrafo desconhecido. University of Florida Smathers Library Digital Collections: Charles Wagley Papers.

    Figura 2. No rio Araguaia, viajando para os Tapirap em 1939. Charles Wagley direita e Valentim Gomes esquerda. Fotografia de Antenor Leito de Carvalho. Coleo pessoal de Isabel e Conrad Kottak.

  • Bol. Mus. Para. Emlio Goeldi. Cienc. Hum., Belm, v. 9, n. 3, p. 675-694, set.-dez. 2014

    685

    Figura 3. Cerimnia do Trovo dos Tapirap em 1939. Xam intoxicado pelo fumo, desafiando o Trovo. Fotografia de Charles Wagley. University of Florida Smathers Library Digital Collections: Charles Wagley Papers.

    Figura 4. Charles Wagley fotografando o xam derrubado pela divindade Trovo (o indivduo est em transe) e levado pela aldeia, 1939. Fotografia de Antenor Leito de Carvalho. Coleo pessoal de Isabel e Conrad Kottak.

    Figura 5. Cerimnia de idade para os jovens Tapirap em 1939, com Eduardo Galvo realizando sua primeira pesquisa de campo. Fotografia de Charles Wagley. University of Florida Smathers Library Digital Collections: Charles Wagley Papers.

    Figura 6. Pintura corporal dos Tapirap em 1957. Fotografia de Charles Wagley. University of Florida Smathers Library Digital Collections: Charles Wagley Papers.

  • Os Tapirap, Tenetehara e gurupaenses atravs das lentes da mquina de Charles Wagley: uma anlise de contedo

    686

    Figura 7. Charles Wagley pintado pelo Tapirap em 1939. Fotgrafo desconhecido, possivelmente Antenor Leito de Carvalho. Coleo pessoal de Isabel e Conrad Kottak.

    Figura 8. A caa de ona pelos Tapirap em 1939. Fotografia de Charles Wagley. Coleo pessoal de Isabel e Conrad Kottak.

    Figura 9. Construo da casa dos Tapirap em 1939. Fotografia de Charles Wagley. University of Florida Smathers Library Digital Collections: Charles Wagley Papers.

  • Bol. Mus. Para. Emlio Goeldi. Cienc. Hum., Belm, v. 9, n. 3, p. 675-694, set.-dez. 2014

    687

    Figura 10. Construo da casa dos Tapirap em 1939. Fotografia de Charles Wagley. University of Florida Smathers Library Digital Collections: Charles Wagley Papers.

    Figura 11. Jovem Tapirap com avio de brinquedo em 1965. Fotografia de Charles Wagley. University of Florida Smathers Library Digital Collections: Charles Wagley Papers.

    Figura 12. Viagem aos Tenetehara com Eduardo Galvo em 1941. Fotografia de Charles Wagley. University of Florida Smathers Library Digital Collections: Charles Wagley Papers.

  • Os Tapirap, Tenetehara e gurupaenses atravs das lentes da mquina de Charles Wagley: uma anlise de contedo

    688

    Figura 13. Charles Wagley sendo pintado pela Tenetehara em 1941. Fotgrafo desconhecido, possivelmente Eduardo Galvo. University of Florida Smathers Library Digital Collections: Charles Wagley Papers.

  • Bol. Mus. Para. Emlio Goeldi. Cienc. Hum., Belm, v. 9, n. 3, p. 675-694, set.-dez. 2014

    689

    Figura 14. Posto indgena Gonalves Dias com Tenetehara (vestidos) e Kaapor (nus) em 1941. Fotografia de Charles Wagley. University of Florida Smathers Library Digital Collections: Charles Wagley Papers.

    Figura 15. Me e filho Tenetehara em 1941. Fotografia de Charles Wagley. University of Florida Smathers Library Digital Collections: Charles Wagley Papers.

    Figura 16. Cerimnia de idade para jovens Tenetehara em 1941. Fotografia de Charles Wagley. University of Florida Smathers Library Digital Collections: Charles Wagley Papers.

  • Os Tapirap, Tenetehara e gurupaenses atravs das lentes da mquina de Charles Wagley: uma anlise de contedo

    690

    Figura 19. Dalcdio Jurandir e Charles Wagley na frente de Gurup em 1942. Fotgrafo desconhecido. Coleo pessoal de Isabel e Conrad Kottak.

    Figura 17. Fumando charuto de tabaco antes de entrar em transe, Tenetehara, 1941. Fotografia de Charles Wagley. University of Florida Smathers Library Digital Collections: Charles Wagley Papers.

    Figura 18. Charles Wagley recebendo a Medalha de Guerra em 1946. Fotgrafo desconhecido. Coleo pessoal de Isabel e Conrad Kottak.

  • Bol. Mus. Para. Emlio Goeldi. Cienc. Hum., Belm, v. 9, n. 3, p. 675-694, set.-dez. 2014

    691

    Figura 20. Ceclia e Charles Wagley em Gurup, 1948. Fotgrafo desconhecido, possivelmente Eduardo Galvo. University of Florida Smathers Library Digital Collections: Charles Wagley Papers.

    Figura 21. Seringueiros em Gurup, 1948. Fotografia de Charles Wagley. University of Florida Smathers Library Digital Collections: Charles Wagley Papers.

    Figura 22. Moradores de Gurup retornando da roa com cupuau, 1948. Fotografia de Charles Wagley. University of Florida Smathers Library Digital Collections: Charles Wagley Papers.

  • Os Tapirap, Tenetehara e gurupaenses atravs das lentes da mquina de Charles Wagley: uma anlise de contedo

    692

    Figura 23. Boi-Bumb em Gurup, 1948, com Eduardo Galvo no canto direito. Fotografia de Charles Wagley. University of Florida Smathers Library Digital Collections: Charles Wagley Papers.

    Figura 24. Folia de So Benedito em Gurup, 1948. Fotografia de Charles Wagley. University of Florida Smathers Library Digital Collections: Charles Wagley Papers.

    Figura 25. Ceclia e Charles Wagley em Belm, 1981. Fotgrafo desconhecido. Coleo pessoal de Isabel e Conrad Kottak.

  • Bol. Mus. Para. Emlio Goeldi. Cienc. Hum., Belm, v. 9, n. 3, p. 675-694, set.-dez. 2014

    693

    CONSIDERAES FINAISQuando colees de fotografias so analisadas quantitativamente para ver como dialogam umas com as outras e o que significam coletivamente, possvel apreender padres sutis do comportamento e pontos de vista no discernveis por anlises mais qualitativas. Pode-se, assim, evitar tambm a definio de padres que simplesmente confirmam aquilo que, desde o incio, se pensava que as fotografias dissessem ou fizessem algo frequentemente feito de maneira inconsciente (Lutz e Collins, 1993, p. 89). A coleo de Wagley nos fala muito a respeito de como ele abordou o seu material de pesquisa e escolheu representar os outros.

    A partir da anlise das imagens dos Tapirap, Tenetehara e de Gurup encontramos quatro olhares principais. O humanstico foi desenvolvido por meio de um extenso trabalho de campo, da observao-participao e da construo de empatia, junto com a predileo terica pelo particularismo histrico, e o conduziu a tirar fotos de perto, intimamente, que signicam a relatividade cultural. A coleo contm dezenas de fotos ricas para o entendimento de outras culturas. O olhar classificatrio organizou sistematicamente os componentes da cultura, com nfase nos retratos tirados para capturar a humanidade do sujeito, assim como nos adornos corporais. A construo da raa social, particularmente com as imagens de Gurup, foi outro componente-chave. O olhar classificatrio tambm focou intensamente os rituais, o mais importante depsito de conhecimento cultural, de acordo com o particularismo histrico. O olhar extico seguiu os ditados do projeto antropolgico da era. Wagley no reduziu as diferenas culturais em categorias etnocntricas, ele no permitiu que as imagens significassem esquisitices ou bizarrices. Seu olhar extico foi colocado dentro do contexto cultural, tal como uma inteligvel parte do universo popular do grupo. Finalmente, seu olhar masculino se encaixou nos limites do olhar androcntrico da disciplina na poca. Ele tirou fotos e escreveu sobre as mulheres, mas com menos detalhes do que o fez para os homens, deixando a documentao de gnero destas trs culturas para as geraes seguintes.

    No final, porm, a coleo mostra como um dos pioneiros na antropologia brasileira usou suas habilidades como fotgrafo, junto com seu treinamento terico e sua agenda acadmica, para representar to bem quanto pde os trs grupos que, at os dias de hoje, mantm um espao etnolgico especial dentro do entendimento antropolgico da Amaznia.

    AGRADECIMENTOSAgradeo a traduo do presente texto a Andr Vitor Silva Lima.

    REFERNCIASBANTA, Melissa; HINSLEY, Curtis. From site to sight: Anthropology, photography, and the power of the imagery. Cambridge: Peabody Museum Press, 1986.

    BATESON, Gregory; MEAD, Margaret. Balinese character, a photographic analysis. New York: The New York Academy of Sciences, 1942.

    BENJAMIN, Walter. The work of art in the age of mechanical reproduction. In: MAST, Gerald; COHEN, Marshall (Eds.). Film theory and criticism. New York: Oxford University Press, 1985. p. 675-694.

    BERGER, John. About looking. New York: Pantheon Books, 1980.

    BERGER, John. Ways of seeing. London: British Broadcasting Corporation and Penguin Books, 1972.

    COLLIER, John Jr.; COLLIER, Malcolm. Visual anthropology: photography as a research method. Albuquerque: University of New Mexico Press, 1986.

    CRAWFORD, Terence. Photography: theories of realism and convention. In: EDWARDS, Elizabeth (Ed.). Anthropology and photography, 1860-1920. New Haven: Yale University Press, 1992. p. 18-31.

    EDWARDS, Elizabeth (Ed.). Anthropology and photography, 1860-1920. New Haven: Yale University Press, 1992.

    FABIAN, J. Time and the Other: how anthropology makes its object. New York: Columbia University Press, 1983.

    GEARY, Christraud. Images from Bamum: German colonial photography at the court of King Njoya, Cameroon, West Africa, 1902-1915. Washington: Smithsonian Institution Press, 1988.

    HARRIS, Marvin. Charles Wagleys contribution to anthropology. Florida Journal of Anthropology, Special Number, n. 6, p. 1-14, 1990.

  • Os Tapirap, Tenetehara e gurupaenses atravs das lentes da mquina de Charles Wagley: uma anlise de contedo

    694

    HARRIS, Marvin. The rise of anthropological theory: a history of theories of culture. New York: Thomas Y. Crowell Company, 1968.

    KAHWAGE, Claudia; RUGGERI, Sandro (Eds.). Imagem e pesquisa na Amaznia: ferramentas de compreenso da realidade. Belm: NAEA/UFPA, 2007.

    LUTZ, Catherine; COLLINS, Jane. Reading National Geographic. Chicago: University of Chicago Press, 1993.

    MACINTYRE, Martha; MACKENZIE, Maureen. Focal length as an analogue of cultural distance. In: EDWARDS, Elizabeth (Ed.). Anthropology and photograph, 1860-1920. New Haven: Yale University Press, 1992. p. 158-164.

    MAGALHES, Snia Barbosa; SILVEIRA, Isolda Maciel; SANTOS, Antnio Maria de Souza (Orgs.). Encontro de Antropologia: homenagem a Eduardo Galvo. Manaus: Editoria da Universidade Federal do Amazonas, 2011.

    METZ, Christian. The imaginary signifier. Em: MAST, Gerald; COHEN, Marshall (eds.). Film theory and criticism. New York: Oxford University Press, 1985. p. 782-802.

    NUGENT, Stephen. Scoping the Amazon: image, icon, ethnography. Walnut Creek: New Left Press, 2007.

    ORTNER, Sherry. Is female to male as nature is to culture? In: ROSALDO, Michelle; LAMPHERE, Louise (Eds.). Woman, culture, and society. Stanford: Stanford University Press, 1974. p. 67-88.

    PACE, Richard. O abuso cientfico do termo caboclo? Dvidas de representao e autoridade. Boletim do Museu Paraense Emlio Goeldi. Cincias Humanas, v. 1, n. 3, p. 79-92, 2006.

    PINK, Sarah. Doing visual ethnography: images media and representation in research. 2. ed. Los Angeles: Sage Publications, 2007.

    STEIN, Stanley. Charles Wagley 1913-1991. The Hispanic American Historical Review, v. 72, n. 3, p. 403-408, 1992.

    UNIVERSITY OF FLORIDA. A guide to the Charles Wagley papers. [s. l.]: University of Florida/George A. Smathers Libraries, 2011. Disponvel em: . Acesso em: dec. 2014.

    WAGLEY, Charles. Lgrimas de boas-vindas: os ndios Tapirap do Brasil Central. Belo Horizonte: Editora Itatiaia Limitada, 1988.

    WAGLEY, Charles. An introduction to Brazil. New York: Columbia University Press, 1963 [1971].

    WAGLEY, Charles. Uma comunidade amaznica: estudo do homem nos trpicos. So Paulo: Brasiliana, 1957 [1988].

    WAGLEY, Charles. Race and class in rural Brazil. New York: UNESCO, 1952.

    WAGLEY, Charles; HARRIS, Marvin. A typology of Latin American subcultures. American Anthropologist, New Series, v. 57, n. 3, p. 428-451, 1955.

    WAGLEY, Charles; GALVO, Eduardo. Os ndios Tenetehara. New York: Columbia University Press, 1949.

    WRIGHT, Terence. Photography: theories of realism and convention. In: EDWARDS, Elizabeth (ed.). Anthropology and photography, 1860-1920. New Haven: Yale University Press, 1992. p. 18-31.

    _GoBack