capital_social com isbn

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Page 1: Capital_Social Com ISBN
Page 2: Capital_Social Com ISBN

ParceriasUnC

UNIVILLE

UNISUL

Comissão Carla Sussenbach

Carlos Roberto Rodrigues da Silva

Cirene Linzmeier Heyse

Flavia Albertina Pacheco Ledur

Gilmar Luiz Mazurkiewiski

Giovanna Benedetto Flores

Marcedes Maria Gevaerd

Maria Luiza Milani

Nadia Régia Maffi Neckel

Nadja de Carvalho Lamas

Solange Maria Leda Gallo

Viviane Bueno

Page 3: Capital_Social Com ISBN

Maria Luiza Millani | Nádia Régia Maffi Neckel [organizadoras]

Page 4: Capital_Social Com ISBN

C244 Capital social : arte, ciência, cultura e desenvolvimento regional / organizadoras Maria Luiza Millani, Nádia Régia Maffi Neckel .— Curitiba : Kairós, 2013.

280 p.

ISBN 978-85-63806-17-8

1. Capital social (Sociologia). 2. Desenvolvimento social. 3. Arte. 4. Ciência. 5. Cultura. I. Millani, Maria Luiza. II. Neckel, Nádia Régia Maffi. III. Título.

CDD (20.ed.) 306.4 CDU (2.ed.) 304

© Maria Luiza Millani e Nádia Régia Maffi Neckel [orgs.] 2013

Antônia Schwinden - Coordenação EditorialIvonete Chula dos Santos - Editoração Eletrônica

Foto da capaLauro Benazzi – A Guerra do Contestado

Depósito legal junto à Biblioteca Nacional, conforme Lei n.º 10.994 de 14 de dezembro de 2004

Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP) Index Consultoria em Informação e Serviços Ltda.

Curitiba - PR

IMPRESSO NO BRASIL/PRINTED IN BRAZIL

Page 5: Capital_Social Com ISBN

[ 5 ]

A PresentAção

Este livro Capital social: uma discussão sobre Arte, Ciência, Cultura e Desenvolvimento regional é fruto do IV Seminário Integrado e Interinstitucional,

realizado na Universidade do Contestado – Campus Canoinhas, nos dias 29 e 30 de

abril de 2010, como uma das etapas integrantes do projeto de pesquisa em cooperação

entre as Universidades: UnC (Programa de Mestrado em Desenvolvimento Regional),

UNISUL (Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem) e UNIVILLE

(Programa de Mestrado em Patrimônio e Sociedade)1. Tal projeto debruça-se sobre as

relações culturais observando-se, de um lado, como essas relações são definidas e

estabelecidas nos campos político, jurídico e administrativo e, de outro, como se

estruturam e se expressam diferentes vínculos identitários, perpassando as questões

da arte, do patrimônio, dos fazeres artesanais e da comunicação.

Os textos desta publicação discutem questões balizadas pelo conceito de

Capital Social mobilizado na Arte, na Cultura e na Ciência em uma perspectiva

contemporânea. No texto de abertura trazemos a fala do professor Boisier, pesquisador

chileno que tem prestado estimada contribuição para as reflexões a respeito do Capital

Social e da Cultura nas propostas de desenvolvimento latino-americas, assim como os

processos identitários desses países.

As discussões aqui presentes foram propostas por pesquisadores reunidos em

um núcleo multidisciplinar de diversas instituições de ensino e pesquisa lationo-

americas que buscam refletir sobre o desenvolvimento e suas questões tangenciais,

1 Trata-se do projeto “As relações culturais e artísticas e a preservação de patrimônio material e

imaterial implicados no desenvolvimento regional de Canoinhas, Florianópolis, Tubarão e Joinville” financiado

Pelo Ministério da Cultura e Fundação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior –

CAPES do programa de Apoio ao Ensino e à Pesquisa Científica em Cultura Pró-Cultura – Diretoria de

Programas e Bolsas no País – DPB Coordenação Geral de Programas Estratégicos – CGPE – Coordenação

de Programas de Indução e Inovação – CII Edital N.º 07/ 2008 – CAPES/MINC PROGRAMA PRÓ-CULTURA –

PROJETO INTEGRADO DE PESQUISA ENTRE: UNISUL, UNIVILLE e UnC.

Page 6: Capital_Social Com ISBN

[ 6 ]

promovendo uma integração interdisciplinar entre os pesquisadores fruto da (In)

contingência da cultura na sociedade. Os textos resultantes das pesquisas e que

compõem este livros foram divididos em quatro seções.

A primeira seção trata das questões conceituais e aplicadas do Capital social. Os textos reunidos nessa seção procuram refletir sobre o conceito de capital social em

sua abrangência teórica e prática desde o agronegócio, passando pelas questões de

planejamento urbano e político, até o capital humano e cultural que visam ao

desenvolvimento. O desenvolvimento é o resultado de um conjunto de fatores

institucionais, culturais, econômicos, tecnológicos, científicos, sociais e políticos que

explicita e favorece o processo de organização nos diversos recortes territoriais.

Na segunda seção Arte, Cultura e Desenvolvimento os autores buscam refletir

sobre as produções artísticas e culturais tanto no âmbito regional quanto no âmbito

nacional. Dessa forma a partir das reflexões aqui propostas é possível pensar na arte

e na cultura no cenário do desenvolvimento regional em suas múltiplas expressões.

Na terceira seção o Histórico e o Político, propõe-se uma reflexão do político

do/no Brasil recortado pela mídia jornalística, posições de confronto que nos ajudam

a compreender sócio, histórica e ideologicamente os acontecimentos que nos

circundam.

Na quarta e última seção, trazemos uma discussão sobre as tecnologias

no âmbito da educação, do desenvolvimento regional e das técnicas de produção

de mercado.

Esperamos que estes textos possam contribuir com as questões referentes a

Arte, a Cultura, a Ciência e o Desenvolvimento, uma vez que são oriundos de diferentes

ancoragens teóricas e frutos de uma diversidade de pesquisas que compreendem o

vasto território do Sul do Brasil e da América Latina. Uma vez que a presença do Capital

Social alavanca os processos de desenvolvimento materializam a cultura em suas

múltiplas expressões.

Boa Leitura a todos!

Maria Luiza Milani | Nádia Régia Maffi Neckel

Nadja de Carvalho Lamas | Solange Maria Leda Gallo

Canoinhas, outono de 2010

Page 7: Capital_Social Com ISBN

[ 7 ]

s UMÁrIo

APRESENTAçãO .......................................................................................................... 5

1 O CAPITAL SOCIAL, CULTURA E IDENTIDAD EN LAS PROPUESTAS

DE DESARROLLO .................................................................................................. 11

Sergio Boisier

2 CAPITAL SOCIAL NA AGRICULTURA FAMILIAR: UMA APRECIAçãO SOBRE

A SUSTENTABILIDADE NO PROJETO DE AGRONEGÓCIO EM BELA VISTA

DO TOLDO-SC ...................................................................................................... 31

Reinaldo Knorek

3 AS CAPELAS COMO PATRIMÔNIO MATERIAL CULTURAL NA 26ª SDR:

NECESSIDADES E DESAFIOS DO CAPITAL SOCIAL PARA SUA PRESERVAçãO ..... 51

Marcelo Tokarski

4 CAPITAL HUMANO E CULTURAL: AS NOVAS TECNOLOGIAS DESENVOLVIDAS

PARA A PRESERVAçãO AMBIENTAL LOCAL ......................................................... 75

Filipe de Souza dos Santos, Marcia Moro

Arte, CULtUrA e DesenVoLVIMento ...................................................................... 85

5 FUNCIONAMENTOS DO ARTÍSTICO: DISCURSO E MEMÓRIA EM GUERRA, PAZ E

CONTESTADO DE HELOANA TERPAN ..................................................................... 87

Nádia Régia Maffi Neckel

6 LENDO FILMES E O POEMINHA DO CONTRA: O FECHAMENTO DO

CINEMATOGRÁFICO NA SIMULTANEIDADE DO FÍLMICO ........................................ 101

Mara Salla

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[ 8 ]

7 A CHITA COMO PANO DE FUNDO DA CULTURA POPULAR DO MARANHãO ............ 123

Conceição de Maria dos Santos Pacheco

8 A ETERNIZAçãO DA GUERRA DO CONTESTADO PELA VISãO E MãOS DOS

ARTISTAS NO ÂMBITO DA UNC-CANOINHAS ......................................................... 131

Cirene Linzmeier HeyseMaria Luiza Milani

9 ELEMENTOS TEÓRICOS ORIENTADORES ............................................................... 139

10 ESTRADA DONA FRANCISCA: A MéMÓRIA DE UMA NAçãO .................................. 143

Marilene Teresinha Stroka

11 A EDUCAçãO PATRIMONIAL: UM OLHAR PARA O PATRIMÔNIO HISTORICO

E CULTURAL ......................................................................................................... 153

Flavia Albertina Pacheco Ledur, Carla Sussenbach, Carlos Roberto Rodrigues

da Silva, Claudia Regina Pacheco Portes, Mercedes Maria Gevaerd ........................ 153

12 ESTUDOS CULTURAIS E O LUGAR DA PRODUçãO ARTÍSTICA CONTEMPORÂNEA 169

Sandra Devegili, Nadja de Carvalho Lamas ............................................................. 169

13 A VIDA COMO OBRA DE ARTE E SUA CONDIçãO TRÁGICA OU PROFANA

CONTEMPORANEIDADE ......................................................................................... 183

Sandro Luiz Bazzanella

14 O DISCURSO “SOBRE” O CINEMA DOCUMENTAL .................................................. 199

Lucio Flávio Giovanella, Solange Leda Gallo ........................................................... 199

o HIstÓrICo e o PoLÍtICo ........................................................................................ 209

15 OS JORNAIS DA INDEPENDêNCIA: O ESPELHO DA CORTE .................................... 211

Giovanna Benedetto Flores

16 AS METÁFORAS CONCECPTUAIS SOBRE DESENVOLVIMENTO DIRCURSO LULA:

UMA LEITURA DA LÓGICA DISCURSIVA ................................................................ 225

Andréia da Silva Daltoé

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[ 9 ]

teCnoLoGIAs ............................................................................................................. 241

17 SUJEITO, SENTIDOS E EAD .................................................................................... 243

Regina Aparecida Milléo de Paula

18 TECNOLOGIA SOCIAL COMO FATOR PARA O DESENVOLVIMENTO REGIONAL ........ 255

Gilmar Luis Mazurkievicz

19 BIODESIGN, DA INTEGRAçãO DE SABERES À VALORIZAçãO DA CULTURA LOCAL:

UMA EXPERIêNCIA DO MESTRADO EM DESENVOLVIMENTO REGIONAL DA UTFPR . 265

Arminda Almeida Rosa, Clariana M. Werkauser Bressiani,

Andréia Mesacasa, Maria de Lourdes Bernartt

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[ 11 ]

1o CAPItAL soCIAL, CULtUrA e IDentIDAD en LAs ProPUestAs De DesArroLLo1

sergio Boisier2

René Descartes falleció en 1650 y en el mundo de la filosofía y de la metodología

de la investigación bien se podría decir de él lo mismo que los españoles solían decir

del Cid, tan poderoso había sido en vida que ganaba batallas aún después de muerto.

En efecto, el peso del cartesianismo, del método analítico y de la disyunción,

ha sido tan enorme que ni aún hoy, en la sociedad del conocimiento, en el umbral de

un cambio de paradigma científico (del positivismo al constructivismo y a la

complejidad), somos capaces de sobreponernos al rígido marco mental, a los modelos

mentales, que el sistema educacional occidental nos inculca y que tiene sus poderosas

raíces en el pensamiento de quien afirmase “cogito, ergo, sum”. Vivimos bajo el peso

de la noche cartesiana y sólo muy recientemente hemos tomado nota de las

restricciones que el método cartesiano impone en el campo de los procesos sociales,

1 Entiendo por “Comunicación”, en el ambiente académico, una nota científica breve dirigida a los

participantes de un evento mediante la cual se da a conocer un punto de vista sobre el tema de la reunión,

en carácter menos formal que una presentación rigurosa. Una parte de este texto fue presentada en un

Seminario de la CEPAL en el año 2003 (Capital social y programas de superación de la pobreza: lineamientos

para la acción). Se utilizan también fragmentos de otro documento publicado en la Revista Territorios # 5,

CIDER, 2006, U. de Los Andes, Bogotá, Colombia, con el título: “La imperiosa necesidad de ser diferente en

la globalización”. Esta monografía ha sido preparada para su exposición en el marco del Projeto Integrado

de Pesquisa entre: UNISUL, UNIVILLE e UNC: As Relações Culturais e a Preservação do Patrimonio Cultural

e Imaterial Implicados no Desenvolvimento Regional de Canoinhas, Florianópolis e Joinville, en Brasil, 29

de Abril 2011. 2 Licenciado en Economía por la U. de Chile, Master in Regional Science por la U. de Pennsylvania

y PHD en Economía Aplicada, por la U. de Alcalá de Henares, España. Ex Director de Políticas y Planificación

Regionales del ILPES. Santiago de Chile, 2011. [email protected]

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[ 12 ]

en su comprensión y en consecuencia en la manera en que se conciben las prácticas

de intervención de una sociedad sobre sí misma.

Precisamente en el campo del desarrollo y de los programas para estimularlo

seguimos utilizando una rutina originada en Lindblom (1969)3 conocida en su expresión

original como “muddling through”, o “incrementalismo disjunto” en su versión más

popular en español, que supone por cierto una visión analítica de las cosas, que nos

empuja a privilegiar metafóricamente la suma por encima de la multiplicación,

haciéndonos víctimas de una suerte de “síndrome de la suma”, de una preferencia por

lo simple, lo aditivo. Como bien lo dice el español Nieto de Alba (1998:97)4 “Hemos

llegado a considerar que los fenómenos lineales, predecibles y simples prevalecen en

la naturaleza porque estamos inclinados a elegirlos para nuestro estudio, pues son los

más fáciles de entender”.

Descartes y sus otros “socios” en el positivismo nos impusieron, queriéndolo

o no, la linealidad, la proporcionalidad, la certidumbre, el empirismo y la disyunción,

y todas estas características del positivismo cartesiano impiden aprehender la

realidad social en su complejidad, por lo demás, exponencialmente creciente en la

contemporaneidad.

¿Cómo se pueden diseñar intervenciones eficientes, sea para superar la

pobreza, o más ampliamente, el subdesarrollo, si no estamos en condiciones de

entender la naturaleza, quiero decir, la estructura y la dinámica, del propio desarrollo, o

de la misma pobreza? El método analítico permite conocer, pero no permite entender

un problema de carácter sistémico porque la disyunción desvanece la propia naturaleza

intrínsecamente sistémica del problema. Ni la complejidad ni la sistemicidad de los

procesos sociales puede ser develada a partir del positivismo cartesiano.

Desde varios lugares, geográficos y/o funcionales (como por ejemplo, el

Instituto Santa Fé, en Nuevo México, o la Association pour la Pensée Complexe, en

Paris), se comienza a construir el paradigma de la complejidad, único espacio cognitivo

3 LINDBLOM C.E., “The Science of Muddling Through” en H.I. Ansoff: Business strategy, Penguin,

1969, London.4 Nieto de Alba U, Historia del tiempo en economía. McGraw Hill, 1998, España.

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[ 13 ]

donde resulta pertinente ubicar la cuestión del desarrollo, y de su desgraciada

contrapartida: el subdesarrollo. Esto no significa que estemos próximos a resolver la

incógnita del desarrollo, porque en forma simultánea, al entenderlo mejor en su

complejidad, parece alejarse de su propia realización, a menos de que seamos capaces,

como sociedad, de dar tremendos saltos cognitivos y también políticos.

Años atrás tuve la osadía de hacer circular una propuesta para considerar el

fenómeno del desarrollo como una propiedad emergente de un sistema territorial

adaptativo, complejo, dinámico, disipativo y autopoiético (BOISIER; 2003)5. No es una

propuesta menor como es fácil intuir y sus consecuencias, si pasa las habituales

verificaciones de hipótesis conceptuales, pueden ser considerablemente positivas y

también considerablemente difíciles de poner en práctica. Pero en cualquier caso

pareciera ubicarse en el camino adecuado. Volveré sobre ella en unas líneas.

El capital social, antes que un concepto con pretensiones de teoría (cuestión

que me parece un tanto exagerada) es y ha sido una práctica social incrustada en

algunas antiguas culturas, como por ejemplo y tal como es señalado por varios autores,

en el sudeste asiático, en donde la costumbre de usar créditos rotatorios en un contexto

informal es antigua (por ello no debe sorprender demasiado el éxito, loable por cierto,

del banquero M. Yunus).

De todos modos es un hecho que ahora es perceptible una moda desarrollista

basada en el concepto de capital social, cuyo origen se remonta, según algunos, a J.

Coleman (1990)6, según otros a R. Putnam (1993)7 y no falta quien rastree su inicio

más atrás, como lo hace C. Román (2001)8 al señalar al norteamericano Lyda Judson

Hanifan9, un supervisor de escuelas rurales en West Virginia, quien habría usado el

5 El desarrollo en su lugar, Serie GEOLIBROS, Instituto de Geografía, Pontificia Universidad Católica

de Chile, 2003, Santiago de Chile.6 CoLEMAN, J. social Capital. Foundation of Social Theory, Harvard University Press, 1990, Boston.7 PUTMAN, R. Making Democracy Work. Civic Tradition in Modern Italy, Pirnceton University Pres.8 ROMÁN, C. Aprendiendo a innovar: el papel del capital social, Instituto de Desarrollo Regional

de Sevilla (FU), 2001, Sevilla, España.9 HANIFAN, L.J. “The Rural School Community Center”, Annals of the American Academy of

Political and social sciences, 1916 # 67.

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[ 14 ]

término “capital social” por primera vez en 1916 según lo anotase Robert Putnam en su libro Bowling Alone10.

No se trata acá de una competencia. Está claro que Coleman, Bourdieu, Putnam, y Fukuyama, le han dado un importante respaldo intelectual y han ayudado a transformar una práctica en una pretendida teoría. Pero la moda no se hubiera impuesto, probablemente, si desde el seno de una de las instituciones pilares del neo-liberalismo – el Banco Mundial – no se hubiese dado la “orden” de validar la confianza interpersonal o capital social como el puente imprescindible para viabilizar el trickling down o derrame desde el plano macro al plano microsocial, en donde circulan los “bípedos implumes”, en la magnífica expresión de don Miguel de Unamuno para referirse a las personas, legitimando un modelo de política económica sujeto a una importante repulsa mundial. La “orden” se concretó en el conocido documento de C. Grootaert (1998)11 cuyo título no puede ser más sugerente: Capital social: ¿el eslabón perdido? Porque es a partir de la difusión de este trabajo que se produce una verdadera avalancha de “papers”, investigaciones empíricas, y programas y proyectos de intervención.

Hay una suerte de creencia, tal vez subliminal, de haber encontrado nuevamente, porque esto ya ha sucedido en varias oportunidades anteriores, una verdadera piedra filosofal del desarrollo, en el mejor de los casos, o nada más que de la pobreza. Por lo menos para quienes nos hemos especializado en el tema del desarrollo territorial (sería mejor decir en el desarrollo de las personas a través del desarrollo territorial), la piedra filosofal ha sido conocida como, por ejemplo, la teoría perrouxiana de los polos, la teoría northiana de la base exportadora, la teoría perloffiana del mix de dinámica sectorial de las regiones, la teoría friedmanniana centro-periferia, y el variopinto conjunto de teorías actuales listadas por H.W. Armstrong (2002)12, entre las cuales por cierto que se encuentra la “teoría” del capital social.

10 PUTNAM, R. Bowling Alone, Simon and Schuster, 2000, New York11 GROOTAERT, C. Social Capital The Missing Link?, Social Capital Iniciative, 1998, Working series

# 3, World Bank, Washington12 ARMSTRONG, H. W. “European Union Regional Policy. Covergence and Evaluation Evidence”

en J.R. Cuadrado-Roura and M. Parellada (Eds.), Convergence in european Union. Facts, Prospects and Policies, SPRINGER, 2002, Berlin.

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[ 15 ]

Quisiera mencionar al pasar un punto en torno a la “paternidad” del capital

social, una criatura intelectual, que al revés de las humanas, puede en efecto reclamar

la presencia simultánea de varios progenitores. Llama la atención que se atribuya a

Putnam gran parte del mérito en cuestión, lo que está bien ya que éste concepto fue

uno de los que Putnam usó para explicar la situación de las regiones italianas, pero se

pasa por alto la no menos importante contribución de Putnam a la puesta en valor del

concepto de capital cívico (diferente del institucionalismo de North). La confianza de la

gente en las organizaciones, su voluntad para participar en los asuntos públicos, su

apego a la democracia, la formación de redes cívicas y el derecho a exigir cuenta, son

elementos constitutivos del capital cívico, extremadamente importantes para el

desarrollo. Una cuestión que se muestra empíricamente significativa en Chile y también

en Estados del sur del Brasil (Paraná, Santa Catarina, Río Grande do Sul).

Tomando como ejemplo sólo algunas propuestas – en principio representativas

de un espectro más general – que llevan el concepto de capital social al plano empírico,

sea como investigación de la cual puedan extraerse recomendaciones de política,

como en Durston (1999)13, sea como diseño de programas específicos de intervención

frente a la pobreza o al subdesarrollo en general, como se observa en Chile (MIDEPLAN;

2002)14, o en Brasil (de Franco; 2002)15, o que lo llevan desde un plano elemental hasta

el campo sistémico más sofisticado.

El Gobierno de Chile dio a conocer en su oportunidad y a través de la Secretaría

Ejecutiva del Programa “Chile Solidario” (programa ahora en el 2011 reformulado por

el actual gobierno) ejecutado por el MIDEPLAN, el documento programático “Estrategia

de intervención integral a favor de familias en extrema pobreza” (2002) cuyo

basamento conceptual reside únicamente en la creación/reforzamiento de capital social

y de las redes que lo tipifican.

13 DURSTON, J. “Construyendo capital social comunitario” revista de la CePAL, # 69, 1999,

Santiago de Chile.14 MIDEPLAN. estrategias de intervención integral a favor de familias en extrema pobreza,

PROGRAMA CHILE SOLIDARIO, 2002, Santiago de Chile15 FRANCo, A. de. Pobreza y desarrollo local, 2002, <http//www.iigov.org>.

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[ 16 ]

Me parece muy claro el trasfondo analítico-cartesiano del enfoque: la pobreza es una parte del problema de la falta de desarrollo y como parte de un todo, la puedo aislar, conocer, (entender jamás) e intervenir sobre esa parte. Otros se encargan entonces de “otras partes” del problema, por ejemplo, carencias de salud, de educación, o de lo que sea.

Así como el Dr. Fausto no fue completamente responsable del asesinato de Filemón y Baucis, según la espléndida interpretación de Marshall Berman, ya que era la propia modernidad en su afán homogeneizador la responsable principal del hecho, acá también se puede argumentar que no son los técnicos, sino el peso de la noche cartesiana, la responsable de seguir persiguiendo inútilmente objetivos que están erróneamente concebidos y que por tanto inducen necesariamente intervenciones ineficaces.

Augusto de Franco, Coordinador de la Agencia de Educación para el Desarrollo (en español) y miembro del Consejo de “Comunidad Solidaria” del Brasil y principal impulsor de un enfoque denominado Desarrollo Local Integrado y Sustentable (DLIS) sostiene que: “no se puede alterar este ciclo reproductor de la desigualdad y de la pobreza a no ser interviniendo sistémicamente en el conjunto, a través de la introducción de cambios en el comportamiento de los agentes del sistema que interactúan en términos de competencia y cooperación” (FRANCo; 2002, 5)16.

Sin embargo, y a pesar de un excelente y muy bien estructurado discurso acerca de la necesidad de una nueva interpretación del desarrollo, de Franco hace descansar la propuesta DLSI en dos pilares: el capital social y el capital humano, entendiendo éste último como la capacidad emprendedora de las personas, volviendo entonces a una postura analítica-cartesiana, aunque más sofisticada al incluir dos elementos (de un sistema presumiblemente muchísimo más amplio) y al destacar la necesidad de generar sinergia.

Creo que de Franco se entrampa en su propia y atrayente trampa conceptual. Si la pobreza (no entendida sólo como ingreso insuficiente) es en realidad subdesarrollo y no una parte de él, si la carencia de oportunidades es en efecto pobreza y al mismo tiempo es una forma de visualizar la falta de desarrollo, entonces se puede decir que la pobreza o la falta de desarrollo es un estado de un sistema complejo, es un atractor

16 FRANCo, A. de. Op.cit.

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que estabiliza el sistema en tales condiciones, en cuyo caso una intervención aislada, basada en el capital social, o en el capital social más el capital humano, o en el capital social más el capital institucional, o combinaciones similares que sumen factores sin agotarlos y sin sinergizarlos no garantiza que el sistema adquiera una nueva y virtuosa dinámica. Como lo plantea por lo demás el mismo de Franco, lo que sucede es que el sistema vuelve a su dinámica anterior apenas cesan las intervenciones externas. Y ello debido a las características intrínsecas de los sistemas complejos.

Más fundado, pero también un tanto alejado ahora de la complejidad es el análisis presentado por J. Durston17 quien retoma en su investigación sobre capital social en comunidades campesinas en Chile las categorías conceptuales de capital social y de capital institucional, para luego optar por “una definición de capital social centrada en las interacciones sociales más que en las normas y valores”, un enfoque que privilegia el hecho primigenio, ya anotado, de ser el capital social una práctica más que una teoría, por así decirlo. Sin embargo, Durston, en un importante estudio anterior sobre capital social en comunidades guatemaltecas, publicado en la Revista de la CEPAL (DURSTON, 1999)18 había dejado en claro la necesidad de un enfoque sistémico y complejo para encuadrar correctamente la potencialidad del concepto de capital social y de su construcción.

Distinto es un modelo de desarrollo basado en el funcionamiento de un sistema (territorial por definición ya que el desarrollo sólo puede ser entendido inicialmente en este plano) adaptativo, complejo, dinámico, disipativo y autopoiético, como ya fue anotado en relación a la citada propuesta de Boisier. Se trata de sistemas complejos en virtud de la interacción entre la necesidad autopoiética y la necesidad vital de algunos sistemas, dinámicos y disipativos porque su crecimiento interno resulta del balance entre la eliminación de entropía y la absorción de neguentropía, y porque sólo pueden mantenerse y crecer interdependientemente y adaptativos en tanto el sistema aprende y se auto organiza.

17 DURSTON, J. “El capital social en seis comunidades de Chile: adelantos y desafíos de una

investigación en marcha” en Capital social y políticas públicas en Chile. Investigaciones recientes, 2002.

CEPAL, Serie de Políticas Sociales, Santiago de Chile.18 DURSTON, J. Construyendo capital social comunitario, 1999. Op. cit.

Page 18: Capital_Social Com ISBN

[ 18 ]

En este modelo, el capital social forma parte de lo que este autor denomina como subsistema subliminal (incluyendo en ello el capital cognitivo, el simbólico, el cultural, el social, el cívico, el institucional, el psicosocial, el humano, el mediático, y el capital sinergético, articulador de los anteriores). El subsistema subliminal es uno de seis subsistemas que, según esta propuesta, serían identificables en todo sistema territorial complejo (se agregan el subsistema de acumulación, el decisional, el organizacional, el procedimental, el axiológico), entre los cuales debe introducirse una sinapsis densa y una energía externa bajo la forma de constructivismo linguístico (conversaciones sociales tendientes a generar sinergía cognitiva).

El capital social es importantísimo como simiente del desarrollo, pero quizás no lo es más que otras formas de capital, material e inmaterial. Su importancia última radica – en el lenguaje actual – en hacer posible una sensible reducción en los costes de transacción y de asociación. Lo importante en definitiva radica en los fenómenos sinápticos y sinergéticos, más que en los factores específicos, por importantes que ellos sean en sí mismos, una idea que ya había expresado con otras palabras A. Hirschmann, décadas atrás.

La confianza interpersonal, en medios de reciprocidad difusa y ejercida para el logro de fines legítimos es algo deseable de fortalecer en atención a sus méritos propios, pero un alto nivel de capital social no garantiza en modo alguno ni la superación de un problema específico ni menos, la superación del subdesarrollo. Si así fuera, muchos países asiáticos se ubicarían entre los más desarrollados y localidades de América Latina en donde las culturas pre hispánicas poseedoras de un alto stock de capital social se mantienen, no mostrarían la postración que muestran. Dicho sea de paso, si no fuese así, la isla de Chiloé en el Sur de Chile constituiría un “enigma de desarrollo”.

1.1 IDentIDAD terrItorIAL: CoMentArIos

Cabe acá entonces introducir más explícitamente la cuestión de la identidad territorial en el marco de la cultura.

Todos nosotros, todos y cada uno de los seis mil quinientos millones de

habitantes del globo, y todos y cada uno de los miembros de todas las especies

Page 19: Capital_Social Com ISBN

[ 19 ]

animales, somos el resultado de una competencia tremenda en la que participan

cientos de millones de actores en cada momento del inicio de la vida: las células

masculinas reproductoras. La competencia forma parte de nuestro código genético, en

tanto que la cooperación es el resultado de nuestra paulatina socialización y de la

adopción de normas morales de conducta.

Si no tuviésemos un código genético que impone a cada individuo características

singulares, no seríamos individuos, como probablemente lo diría Humberto Maturana,

seríamos parte irreconocible de un agregado, de una masa. Menos aún seríamos

personas, una categoría que se basa – entre otras características – en la diferenciación

dentro de una sociabilidad. El nombre no es la cosa nombrada solía decir Gregory

Bateson19; el nombre sirve eso sí para conferir singularidad, individualidad, diferencia.

El llamar Pedro a un individuo no dice nada acerca de la naturaleza de ese individuo, ni

siquiera si es humano; el nombre eso sí, diferencia: tú eres Pedro y por tanto no eres

Juan ni Manuel ni Estefanía. Por esta razón – la necesidad de la diferenciación – es que

el bautismo es la principal liturgia en cualquier práctica religiosa.

Es exactamente lo que sostuvo Pierre Bourdieu mediante su concepto de valor/

capital simbólico.

La globalización – parece inescapable volver a referirse a ella – que, por

supuesto, ha acompañado al hombre desde las profundidades del tiempo y no sólo

desde la primera crisis del petróleo en 1973 como algunos ingenuos sostienen, no es

el resultado de la perfidia de ciertos personajes que podrían arbitrariamente

ejemplificarse a través de figuras como G. Soros, B. Gates, J. Stiglitz, B. Obama, N.

Sarkosy o J. L. Rodríguez Zapatero o tantos otros; no es ni siquiera un resultado, es

simple y complejamente la etapa actual de desarrollo del sistema capitalista, la etapa

tecnocognitiva de él, que viene a sumarse, como ha ocurrido en el pasado, a las etapas

previas: comercial, industrial, financiera, del sistema capitalista. Por tanto la

globalización, sistémica como es, opera de acuerdo a sus propias leyes internas de

cambio y tiene una direccionalidad establecida y propósitos claros. No es ni buena ni

mala: simplemente es.

19 BATESON, G. espíritu y naturaleza, Amorrortu eds., 2002:40, Buenos Aires, Argentina.

Page 20: Capital_Social Com ISBN

[ 20 ]

Dos procesos internos de la globalización son muy importantes para entender

su naturaleza y ambos procesos se relacionan estrechamente con el tema de esta

monografía. Por un lado, como producto de la Revolución C & T (core de la globalización),

el ciclo de vida de los productos manufacturados se reduce sistemáticamente a lo

largo de una curva exponencialmente decreciente; por otro, el costo financiero en

investigación C & T+ i, y mercadeo, se eleva en una curva exponencialmente creciente

al pasar de un producto de generación “n” al de generación “n+1”.

Como todo sistema “vivo”, el sistema capitalista enfrenta el imperativo de su

reproducción permanente, para lo cual debe recuperar tan rápido como sea posible sus

recursos financieros empleados en el paso anterior; por ello la fase tecnocognitiva del

capitalismo lucha por un único espacio de mercado, por el mercado mundial sin

restricciones. Al mismo tiempo y como consecuencia de las innovaciones aparejadas

a la Revolución Científica y Tecnológica, con la “tecnología madre” de la microelectrónica

a la cabeza, el sistema reorganiza la producción manufacturera en múltiples territorios

de producción, originando la “economía difusa” de Vázquez Barquero, la “economía de

geometría variable” de Castells, el post fordismo de Storper y otros, en definitiva, la

producción en redes flexibles.

Entonces ahora comenzamos a entender el por qué, por ejemplo, un nuevo

disco de boleros de Luis Miguel es lanzado simultáneamente en Ciudad de México,

Tokio, Buenos Aires, Paris, y…¡Santiago de Chile!

Claro que si la estructura productiva mundial correspondiese a una súper

especialización o a una organización estrictamente monopólica para cada ítem, no

sería necesaria una preocupación por el mercadeo; la oferta se ajustaría a la demanda

a lo largo del tiempo. Pero claro, lo que sucede en la globalización es también un

aumento de oferentes, hay más competencia (sin perjuicio de los procesos de fusión)

y el disco de Luis Miguel compite con otros de Bosé, Cabrel, Guerra, Vives, Chico

Buarque y tantos otros boleristas. De ahí la necesidad de un marketing agresivo que

diferencie a ojos del consumidor. ¡Vive la différence!

La globalización no sólo transforma la geografía económica; también transforma

la geografía política quizás de manera aún más radical.

Page 21: Capital_Social Com ISBN

[ 21 ]

El Estado nacional, creación relativamente reciente de la humanidad, está

siendo sometido a presiones que surgen, por así decirlo, desde arriba y desde abajo y

lo están transformando en un producto cuya forma final es difícil de dibujar por el

momento. Pero a lo menos dos cuestiones son claras, particularmente en Europa: los

estados nacionales se desdibujan a favor del surgimiento de un cuasi-Estado

supranacional – la Unión Europea – y se desdibujan simultáneamente hacia abajo al

surgir cuasi-Estados subnacionales, las regiones20. Como se ha dicho en innúmeras

oportunidades, las ciudades y sus regiones21 son los nuevos actores de la competencia

internacional, por capital, por tecnología, por mercados y por atraer los modernos

factores causales del crecimiento.

¿Qué sucede entonces con la competencia y mercadeo territorial?

El geógrafo Gerard Serbet22 ha calculado en 5239 el número de “regiones”23 en

todo el mundo. Todas quieren dos cosas: atraer capital, particularmente inversiones

que generen un aumento y uso local del conocimiento, atraer el gasto de no residentes

(turistas, remesas del exterior) y colocar sus productos transables en los mercados

internacionales. Es decir, todos los territorios quieren ser competitivos hacia adentro y

hacia fuera. Atraer y vender. ¿Cómo sobresalir en la multitud? El mercadeo puede

hacer la diferencia.

Por ejemplo, del total de regiones anotadas, quince de ellas son las actuales

regiones chilenas y entre ellas, por lo menos una (Región del Maule) es una importante

región productora de vino y todavía más importante productora y exportadora de

manzanas. En el rubro vitivinícola enfrenta una dura y amplia competencia de países (y

de sus regiones) como Argentina, España, Italia, Francia, Nueva Zelanda, Australia,

Alemania, Hungría, Estados Unidos, etc., y en manzanas compite exitosamente con

Argentina, Nueva Zelanda, Francia. ¿Cómo lograr posicionarse en las preferencias de

20 Entendiendo por “región” cualquier ciudad y su hinterland con el cual tiene una relación

simbiótica.21 Lewis Mumford solía referirse a las ciudades como “los artefactos de las regiones”22 SERBET G., “Mondialization et Geographie”, 2003, Amerique du nord, # 25, Quebec, Canada23 Serbet no se hizo problemas, simplemente consideró como “regiones” a la primera escala de la

división política interna de los países.

Page 22: Capital_Social Com ISBN

[ 22 ]

los consumidores con la manzana Gala producida en la región, o con el vino Cabernet

Sauvignon Cremaschi-Furlotti de la misma región? Ni siquiera es sencillo responder

teóricamente a esta pregunta, porque hoy en día se cuestiona (en España, por ejemplo)

si es mejor colocar en el mercado una marca nacional genérica (Wines of Spain) o una

denominación específica, (Marqués de Riscal), por ejemplo. Porque no se remite la

cuestión sólo a una de precios; entran en juego otros elementos, muchos de ellos de

orden cultural.

El Tratado de Libre Comercio entre Chile y los Estados Unidos, por ejemplo,

rebajó a cero el arancel de internación en USA de las paltas (aguacates, avocados)

chilenas en tanto que las provenientes de México todavía están sujetas a pagos

arancelarios y abrió de esta manera, un mercado potencial enorme al producto

chileno, derivado de lo cual es un extraordinario aumento en la superficie plantada de

paltos (actualmente más de 30.000 hás.). No obstante, se ha puesto en evidencia

que el consumo principal de este producto en los Estados Unidos proviene de la

enorme comunidad mexicana, la cual, por razones culturales y psicológicas descritas

y adscritas al pachuco por Octavio Paz (El laberinto de la soledad), preferirá

seguramente comprar el producto mexicano al chileno, aún teniendo en cuenta un

diferencial de precios.

La mercadotecnia aplicada a los territorios (ciudades, regiones) es un concepto

relativamente nuevo en el quehacer de la economía y posiblemente todavía acuse una

base teórica precaria; no obstante su uso crece obligado por las circunstancias. La

novedad en este caso, reside en vincular una estrategia de marketing a un territorio

considerado como un todo, como un producto conjunto, comercializable en

consecuencia en términos de imagen. Cualquier territorio interesado en su propio

mercadeo requiere definir: a) su identidad: ¿cómo se define el ente territorial?, ¿en qué

espejo se mira?, ¿qué elementos lo identifican?, ¿con quién se compara?, ¿qué utiliza

para describirse?; b) su imagen: ¿cómo se percibe el territorio – ciudad o región – más

allá de sus fronteras?, ¿cómo lo ven sus propios habitantes?

La más remota base conceptual del mercadeo en general se encuentra en…¡Aristóteles! En efecto, la retórica aristotélica, el arte de presentar las ideas, se basa, primero, en un ethos, concebido como el conjunto de características propias del sujeto

Page 23: Capital_Social Com ISBN

[ 23 ]

que “habla”, que emite un mensaje. Es el ser mismo el que se presenta en sus elementos intrínsecos que lo definen; segundo , el mensaje apela al pathos, a la emoción, a los sentimientos que genera el que habla, y tercero, el mensaje apela al logos, a la razón.

El territorio aparece como un elemento constitutivo de la identidad. Es aquello donde la identidad individual ancla su lugar de expresión y fija sus límites. Los individuos y los grupos existen a través de vivencias de territorialización múltiples. El concepto de identidad está cargado de territorialidad, de lugar propio, de espacio y de pertenencia. Por ejemplo, la identidad local, tal como su nombre lo indica, apela a lo local, lo cual debe ser entendido como una expresión de un espacio y un tiempo determinados. Reconocer un territorio como “propio” implica que éste no sólo representa un espacio físico, sino que en él también se desarrollan prácticas de sociabilidad, en tanto es un lugar en que habitan personas, posibilitándose el encuentro entre ellas.

Identidad como un fenómeno ontológico y también construido y en la construcción de una identidad – actual y futura – varios elementos de la técnica del mercadeo son importantes.

Figura 1: Los Elementos de la Identidad RegionalFonte: Boisier, 2011

Page 24: Capital_Social Com ISBN

[ 24 ]

Algunos autores conciben una “place identity”, como una sub estructura de la

“self identity” de una persona24: “Place identity (…) consisting of broadly conceived

cognitions, about the physical World in which the individual lives . These cognitions

represent memories, ideas, feelings, attitudes, values, preferences, meanings, and

cognition of behaviour and experience which relate to the variety and complexity of

physical setting that defines the day-to-day existence of every human being”.

Según Reinhard Friedmann25, la psicología ambiental desglosa el concepto de

identidad territorial en dos procesos parciales: a) el proceso de identificación de un

lugar y; b) el proceso de identificación con un lugar. La identificación de alude a la

representación psicológica de, por ejemplo, una región, en la imagen de un observador,

con lo cual el foco de interés está centrado en los aspectos cognitivos de la relación

entre el hombre y su entorno espacial; la identificación con no destaca en primer plano

al territorio representado como estructura cognitiva, sino más bien la identidad de una

persona que se sienta vinculada o perteneciente a un referente espacial, y que de esta

manera está incorporando esta pertenencia en su concepto del yo. Como lo dice un

especialista español en referencia al nivel comunal, la identidad tiene tres elementos o

dimensiones conceptuales: a) lo que el territorio es (el ser del territorio); b) lo que el

territorio dice de sí mismo que es (comunicación de la identidad); c) lo que el público

que se relaciona con él cree que es el territorio (la percepción)26.

Los elementos básicos de una identidad corporativa para un territorio son,

según varios autores, los siguientes:

• Cultura corporativa territorial, cuyos ejes son los valores locales, que se

reconocen en los elementos culturales, tales como teatros, museos,

exposiciones, bibliotecas, edificios y monumentos patrimoniales, fiestas

24 POHANSKY H. M., FABIAN A.K., KAMINOFF R.: “Place Identity: Physical World Socialization of

the Self”, Journal of environmental Psychology, # 3, 1983.25 R. FRIEDMANN. Hacia el municipio del siglo XXI: Marketing Comunal y reinvención del

Municipio, Cuaderno # 6, Centro de Estudios del Desarrollo, CED, 2000, Santiago de Chile.26 Sanz de la Tejada L. A.: La integración de Identidad y de la Imagen de la empresa, 1994,

Madrid (citado por R. FRIEDMANN, op. cit.).

Page 25: Capital_Social Com ISBN

[ 25 ]

tradicionales, folklore, etc. La cultura territorial satisface tres funciones:

adaptación, cohesión, e implicación;

• Personalidad y misión corporativa territorial, definida la personalidad como “la

comprensión de sí mismo del territorio”. Como se indicó más atrás, es el ethos

aristotélico del territorio. La personalidad corporativa del territorio se expresa

explícitamente en la formulación de una visión o filosofía (imagen objetivo) que

abarca los objetivos, finalidades, potenciales, valores, normas y patrones

conductuales de un territorio;

• Instrumentos de proyección de la identidad corporativa territorial, es decir, la

capacidad de comunicación de la identidad, que mezcla tres elementos: a) la

comunicación corporativa, b) la conducta corporativa y, c) el diseño corporativo

del territorio, éste último configurando la identidad visual del territorio.

Figura 2: Identidad Territorial CorporativaFonte: Boisier, 2011

El diseño corporativo del territorio incluye varios componentes, a saber: la

identidad verbal, el nombre del territorio, siendo mucho más que un signo de

diferenciación, ya que es también una dimensión esencial de la misma cosa designada.

Page 26: Capital_Social Com ISBN

[ 26 ]

En muchísimos lugares en América Latina, los patronímicos territoriales dan cuenta de

la historia o de la geografía lugareña: la toponimia es muy a menudo de origen pre

hispánico y se pierde su sentido original, que es preciso recuperar a fin de afirmar la

identidad, sobre todo cuando el nombre original es en sí mismo bello o da cuenta de

algo bello27. Por ejemplo, la ciudad de Loncoche en el Sur de Chile significa en lengua

mapudungún “jefe de la tribu”, o el volcán y poblado turístico Antuco, cuyo nombre

significa “agua del sol”, por el derretimiento de nieve durante el verano; el logotipo es

una herramienta importante en el mercadeo y representa el paso de una identidad

verbal a una identidad visual; el logotipo es exactamente “una palabra diseñada” y

suele encerrar indicios y símbolos acerca de quién representa; otro elemento del diseño

corporativo es el símbolo gráfico del territorio, esto es, una figura icónica que representa

el territorio, que lo identifica y distingue y su importancia deriva parcialmente del hecho

de ser la memoria visual más fuerte que la memoria verbal. Otros elementos del diseño

corporativo tienen que ver con la identidad cromática, con la tipografía, con los

escenarios arquitectónicos y con el entorno natural. La “marca”, de acuerdo a algunos

especialistas, es más que un símbolo gráfico y un slogan28.

En mi propia experiencia29 he podido apreciar tanto la importancia como las dificultades sociológicas para establecer estos elementos, dificultades que derivan de

27 No siempre es así; probablemente sea difícil encontrar algo más ridículo en este campo que el

nombre de un pueblo de la VI Región de Chile: Peor es nada, una situación a la que los lugareños tratan de

sacarle provecho fomentando la curiosidad y las visitas de turistas. Un marketing adecuado puede revertir el

carácter negativo de una situación.28 Alberto Borrini, un especialista argentino en mercadeo, escribe en La nación (Buenos Aires, l

19/04/05) que la marca es como un escudo de armas de un territorio y que en el caso argentino debería

mostrar una vaca, una espiga, un bandoneón, el glaciar Perito Moreno y una pelota de fútbol y llama la

atención al hecho de que Chile ha gastado US $ 300.000 en la creación de un símbolo nacional..29 El autor dirigió en 1990 un Proyecto de Cooperación Técnica de las NN.UU. al Gobierno de la

Región del BíoBío (Chile) a fin de ayudar en la preparación de una propuesta de futuro. Por primera vez

en el país y en este tipo de asunto, se introdujo el “marketing regional”, como se describe en el libro del

autor, El difícil arte de hacer región, 1992, cap. II, Centro de Estudios Regionales Andinos “Bartolomé de

Las Casas”, Cusco, Perú. En el año 2000 el autor dirigió un notable experimento social en el Región del

Maule (Chile) consistente en un largo ciclo de “conversaciones sociales” con los actores regionales a fin

de prepararlos en el diseño de una propuesta de desarrollo y nuevamente hubo oportunidad de explorar

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[ 27 ]

pequeñas rivalidades prácticamente “parroquiales” o de la falta de conocimiento sobre la propia historia del lugar. En general se trata de una cuestión que debe involucrar un elevado nivel de participación ciudadana para establecer su propio éxito. Un ejemplo pequeño, pero ilustrativo sobre esto: la ciudad La Ligua es una pequeña ciudad (45.000 habitantes) situada 140 kms. al noreste de Santiago de Chile; su base económica descansa desde antiguo en dos actividades: tejidos de lana de alpaca y elaboración de una clase de pastelería (“dulces” de La Ligua) muy apreciada en el país, siendo ambas actividades de alto nivel de empleo local. La propia comunidad ha “inventado” tanto un logotipo como una “idea fuerza” o slogan que se muestra en las carreteras a mucha distancia de la localidad: “La Ligua: endulzando el presente y tejiendo el futuro”.

¿Se puede finalmente definir con cierta precisión el concepto de “mercadeo territorial”?

Desde luego, según Kotler30, quien afirma que: “el marketing es la actividad que permite a la organización quedar permanentemente en contacto con sus consumidores (clientes), reconocer sus deseos, desarrollar productos que correspondan a estos deseos y diseñar un programa de información que da a conocer generalmente las metas de la organización” en tanto que Reinhard Friedmann (op.cit.) sostiene que en la praxis sobre marketing territorial se parte de la idea de que el marketing es aplicable a los planteamientos territoriales y que el concepto de marketing puede proporcionar a los gobiernos locales ayudas decisionales importantes.

Matteo G. Caroli31 sostiene – en su importante texto sobre la materia – que desde el punto de vista estratégico, el mercadeo territorial es: una inteligencia de integración y una inteligencia de fertilización.

En el plano de la integración se concreta en el hecho de que el marketing del

territorio (MT en adelante) desarrolla una visión integrada de los diversos elementos de

la cuestión del mercadeo y descubrir las dificultades que se plantean al buscar imágenes por encima de

los provincialismos. El experimento se describe en el libro del autor Conversaciones sociales y desarrollo

regional, 2001, Editorial de la Universidad de Talca, Chile.30 KOTLER, P., LEVY S. J. “Broadening the Concept of Marketing”, 1969, Journal of Marketing

(citado por R. Friedmann, op.cit.)31 MATTEO, G. Caroli, 1999, Il Marketing territoriale, FrancoAngeli, Milán, Italia.

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[ 28 ]

los cuales depende el nivel de atractibilidad de la oferta territorial. En el plano de la fertilización, el MT proporciona los instrumentos operativos y el método mediante el cual es posible valorizar del mejor modo la presión puesta en el ámbito de cualquier área o actividad relevante de la oferta territorial. El gráfico siguiente es adaptado del texto de Caroli (p.102).

Figura 3: Inteligencia Desarrollo e CompetenciaFonte: Boisier, 2011

En su análisis de la demanda y de la oferta territorial, Caroli sostiene – correctamente – que el territorio está constituido por un conjunto de elementos tangibles e intangibles y se caracteriza por la relación existente entre estos elementos. Coincide el autor citado en buena medida con la posición de este autor32; los elementos intangibles anotados por Caroli son: el “espíritu” del lugar, el sistema de valores civiles y sociales, el nivel de competencia del tejido productivo y social, el liderazgo económico y social, el grado de madurez social y la distribución del bienestar y, la intensidad del

32 En muchos trabajos este autor ha elaborado su concepción de “capitales intangibles” y el papel

de ellos en el desarrollo territorial. Ver por ejemplo, “¿Y si el desarrollo fuese una emergencia sistémica?,

Ciudad y Territorio. estudios territoriales, v. XXXV, # 138, 2003, MINFOM, Madrid, España.

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[ 29 ]

intercambio económico y cultural con el entorno. Estos elementos se combinan con

los tangibles: el tejido industrial local y el mercado, el sistema de servicios públicos, la

infraestructura pública, la posición geográfica y la morfología, la estructura urbana y el

patrimonio inmobiliario, y el patrimonio cultural. Para Boisier, los “capitales intangibles”

de un lugar son: el capital cognitivo, el cultural, el simbólico, el social, el cívico, el

institucional, el humano, el psicosocial, el mediático, todos los cuales se articulan y se

direccionan a través del capital sinergético.

La adhesión al razonamiento analítico reduccionista, sea en términos de

diagnósticos, sea en términos de programas, no nos acercará en lo más mínimo al

desarrollo, por inconsistencia lógica y por resistencia al cambio. Resulta difícil imaginar

un gobierno dispuesto a aceptar un programa de acción basado en la complejidad, ya

que ello significaría modificar radicalmente no sólo la manera de pensar sino la propia

estructura organizacional del aparato público.

La pobreza es un fenómeno sistémico complejo y el desarrollo lo es más. La

complejidad debería llevar a intervenciones más asociadas a crear las condiciones que

permiten el surgimiento de emergencias (oportunidades, bienestar, etc.) que a potenciar

elementos singulares del sistema, como el capital social.

En vez de confiar ciegamente en una suerte de “solución mágica”, tan propia

de Macondo, haríamos nuestra tarea mejor si entendiésemos cabalmente la complejidad

de los sistemas que son arrastrados a un atractor fatal: el subdesarrollo. Sería la única

manera de zafarnos del largo brazo del cura y filósofo del pueblo de La Haye. El capital

social es muy importante, pero, por favor, terminemos con la manía de creer en la

magia de los espejuelos y abalorios con los cuales los conquistadores europeos

engañaban a los primitivos pobladores de América!!!

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2CAPItAL soCIAL nA AGrICULtUrA FAMILIAr: UMA APreCIAção soBre A sUstentABILIDADe no ProJeto

De AGroneGÓCIo eM BeLA VIstA Do toLDo-sC

reinaldo Knorek1

IntroDUção

Relacionar o capital social, como um fator extraordinário, voltado à

sustentabilidade na agroindústria da agricultura familiar, almejando-se, assim, o foco

do desenvolvimento local-regional ou ainda dizer que o mesmo é de fundamental

importância para o crescimento das atividades na agroindústria familiar. O capital

social é fundamental, pois, quando articulado, como é o caso do projeto que configura

a cooperação entre as prefeituras de Canoinhas, Bela Vista do Toldo, Três Barras e a

Universidade do Contestado – UnC, voltados ao desenvolvimento do agronegócio na

agricultura familiar, faz do mesmo a sustentabilidade criadora de arranjos institucionais

que são moldados pelos atores em ações que almejam obter um maior grau de bem-

estar abalizado no sucesso coletivo.

o capital social tem sido empregado na literatura nacional e internacional, em

uma vasta gama de disciplinas, entre as quais: sociólogos, antropólogos, educação,

economia, ciências políticas, criminologia, saúde e, de certa forma acentua-se em

trabalhos relacionados ao desenvolvimento local-regional. Trata-se de um conceito

desafiador, pois se incorpora frequentemente o social como submisso ao capital.

O capital social enfatiza o fato de que formas e relações não monetárias podem ser

1 Doutor em Engenharia de Produção e Sistemas, graduado em Administração de Empresas e

Filosofia, professor do programa de mestrado em Desenvolvimento Regional da Universidade do Contestado

(UnC) – campus Canoinhas. [email protected]

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[ 32 ]

fontes determinantes de poder e de influências ao desenvolvimento e, de modo inclusivo, ao crescimento econômico. Compreender como o capital social se configurou na forma da confiança, do associativismo, da cooperação, da participação e da ação conjunta entre as quatro prefeituras e a universidade, na ação de instalar o agronegócio voltado à agricultura familiar é, sobretudo, dizer que o capital social equivale e é, sobretudo, determinante para o sucesso e na sustentabilidade do projeto. Esse projeto que foi sendo implantado no município de Bela Vista do Toldo, denominado: Desenvolvimento regional: o agronegócio para a agricultura familiar com sustentabilidade e diversificação produtiva voltada ao fortalecimento das potencialidades dos arranjos produtivos locais para os pequenos produtores inseridos na 26a SDR, se afirma que a simples existência de capital social não resolverá todos os problemas no direcionamento das ações combinadas, mas que, outros recursos como o capital humano, mediático, institucional associados na propriedade da cooperação e na confiança participativa deverá gerar o desenvolvimento econômico, cultural e social, tanto no âmbito local como no contexto regional. Todavia, é na base teórica do desenvolvimento endógeno que se focalizam, com toda atenção, a questão regional de desenvolvimento. Endógeno na busca de resolver a problemática das desigualdades sociais, das quais a solução pode estar nos melhores instrumentos das políticas públicas aplicadas na base da cooperação, com os ajustes e as correções necessárias para que esses problemas sociais sejam diminuídos dentro do próprio sistema implantado.

O desenvolvimento endógeno tem suas origens na década de 1970, quando as propostas de desenvolvimento, da base para o topo, emergiram com maior notoriedade na colaboração de dar respostas aos novos enfoques ao problema do crescimento desequilibrado. Nessa trajetória a contribuição da teoria endógena de desenvolvimento identifica alguns fatores de produção que, sobretudo, com o capital social associado ao capital humano, perpetram na diferença do desenvolvimento de um local ou de uma região.

O desenvolvimento regional endógeno se fundamenta na década de 1990, como um processo que nasceu de dentro do sistema e se amplia continuamente para fora, agregando valores na produção, absorvendo e retendo ganhos excedentes

gerados na economia local, associados com o que vem exogenamente de outras

regiões, formando, assim, o desenvolvimento sustentável. Com esse processo

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[ 33 ]

sistêmico de entradas, processo e saídas, os resultados para a mesma é o sucesso

na ampliação dos empregos, produtos, renda e, dessa forma, se configura como

um arquétipo de desenvolvimento sustentável. A capacidade de gerar o próprio

desenvolvimento, local-regional, condiciona-se a mobilizar fatores produtivos de

potencialidade endógena que faz do capital social empregado pela sociedade organizada

o diferencial entre a sustentabilidade na base regional e a não sustentabilidade, como

se destaca na visão de Boisier (1997), a sociedade civil, e nela compreendida as

formas locais de solidariedade, integração social e cooperação, pode ser considerada

o principal agente da modernização e da transformação socioeconômica em uma

região. Portanto uma das chaves para o desenvolvimento, local e regional, reside na

cooperação entre atores envolvidos e, também, na própria capacidade institucional

voluntária, que pode produzir e motivar o contato entre eles: criando assim condições

de gerar o capital social voltado na configuração do desenvolvimento sustentável.

Essa motivação entre atores locais é o que podemos chamar de mobilidade

de capital humano, fundamentado evidentemente na cooperação e na associação

que, focada no conhecimento individual, levada ao coletivo, pode gerar o

desenvolvimento local.

Partindo dessas ideias desenvolvimentistas, o pesquisador Robert Putnam,

estudou os distintos aspectos que levaram as diferenças estabelecidas no norte e no

sul da Itália. Em suas conclusões, Robert Putnam (2000, p. 162) destaca: “na Itália

contemporânea, a comunidade cívica está estritamente ligada aos níveis de

desenvolvimento social e econômico”2.

2 Putnam estuda duas regiões da Itália: Emila-romana, ao norte e, ao sul a região da Calábria. Essas

regiões, no início do século vinte, tinham padrões de desenvolvimento semelhantes, décadas mais tarde, a

desigualdade foi notória, tornando o norte com a grande participação política embasadas na solidariedade uma

das regiões de maior desenvolvimento da união européia, enquanto que n a região da Calábria, sem o capital

social envolvido a mesma manteve-se com características medievais de estilo feudal, isolada e atrasada.

Putnam introduz a ideia de que o capital social foi o grande diferencial de desenvolvimento econômico

na organização da região. O capital social envolveu as redes de relações, normas de comportamentos,

valores, confiança mútua, obrigações, informações e conclui que o capital social, quando é existente em

uma região,possibilita a tomada das ações colaborativas das quais é concretizada em desenvolvimento para

a comunidade local e, sobretudo disseminada na região.

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[ 34 ]

Pode-se concluir que a existência de um capital social leva uma região a adquirir

habilidades de criar e tornar as associações fundamentadas, na confiança e

confiabilidade sustentáveis. A configuração do agronegócio voltado à agricultura

familiar, na região da 26ª SDR, tornar-se-á próspera se os cidadãos envolvidos

estiverem dispostos a trabalhar de forma colaborativa – organizada em prol da

associação voluntária entre as instituições – e, que as políticas públicas, voltadas para

uma estratégia de desenvolvimento regional, não podem ser simplesmente configuradas

em ações ortodoxas como, por exemplo, a abertura de crédito, incentivos fiscais e

investimentos fixos, mas, principalmente, levar em conta a ampliação do capital social

como fonte de sustentabilidade do negócio abrigado no território. Será necessário

manter e ampliar o acúmulo de capital social na comunidade local e fortalecer assim a

auto-organização social, estimulada por práticas de colaboração e cooperação entre

os atores que buscam promover soluções aos problemas comuns da região,

fundamentalmente na participação e na abertura de diálogos com os atores integrantes

na região. Essa deve ser a prática que envolve o projeto de desenvolvimento voltado à

agricultura familiar na região da 26ª SDR apresentado neste artigo.

2.1 CoMPreenDenDo o ConCeIto De CAPItAL soCIAL

o conceito de capital social desenvolveu-se por meio de diversas acepções,

conexo a algumas criações, teórico-metodológicos, de forma distinta em estudos

voltados à análise de desenvolvimento regional. A disseminação desses estudos

científicos, principalmente pela academia, tem sua expressão a partir dos anos 80, em

especial, pela sociologia e difundidos pelos cientistas políticos e na atualidade por

planejadores. Destaca-se que uma das fontes pioneiras é Pierre Bourdieu, sendo um

sociólogo da escola francesa, que sistematizou esse conceito. Assim, o conceito de

Bourdieu sobre o capital pode ser considerado em sua forma econômica, no campo da

aplicação das trocas mercantis, e ele define o capital social como:

Um conjunto dos recursos reais ou potenciais que estão ligados à posse de uma rede durável de relações mais ou menos institucionalizadas de inter-reconhecimento e de inter-reconhecimento mútuos, ou, em outros termos, à vinculação a um grupo, como o

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[ 35 ]

conjunto de agentes que não somente são dotados de propriedades comuns (passíveis de serem percebidas pelo observador, pelos outros e por eles mesmos), mas também que são unidos por ligações permanentes e úteis. (BOURDIEU, 1998, P.67).

O capital social está associado à própria noção de estratégias, pois elas são as

que constroem, dentro das redes organizadas, as ligações de investimentos na

produção, na transformação, no capital humano, enfim, são utilizadas em prol da

inserção de cada membro no grupo, para fortalecer as afinidades e as ações adotadas

coletivamente.

Outro pioneiro nessa discussão é Putnam que realiza estudos sobre o capital

social. Ele estuda o grau de confiança existente entre diversos personagens ou atores

sociais, destacando o grau de associativismo e a reverência às normas de

comportamento cívico dos envolvidos. Esse comportamento está relacionado ao

pagamento de impostos e também aos cuidados com as coisas públicas e bens

comuns. Como já destacado, que o capital humano é um produto de ações individuais

que buscam na aprendizagem e no aperfeiçoamento e, que o capital social se

fundamenta nas relações estabelecidas nas obrigações e nas expectativas que ambos

desenvolveram nas ideias da confiabilidade e fortalecimento das relações sociais com

o fluxo de informações entre eles, tanto no âmbito interno como no externo, a união

entre o indivíduo e o coletivo é o que irá fazer a diferença nos resultados esperados ao

desenvolvimento econômico e social de uma região. Essas relações de confiança

favorecem, sobretudo, o funcionamento das normas e sanções aprovadas pelo

interesse público coletivo. Formar um capital humano é estimular o indivíduo para

arquitetar, no capital social, a coesão de desenvolvimento, na família, na comunidade

e na sociedade em geral.

As raízes do desenvolvimento, no caso de uma nação, segundo Putnam, o

êxito está na formação do capital social distribuídos em quatro dimensões: a) os

valores éticos dominantes em uma sociedade; b) sua capacidade associativista; c) o

grau de confiança de seus cidadãos; e d) a consciência cívica. Com essas quatro

dimensões, destaca-e que o capital social, quanto mais ter, maior será o desenvolvimento

de uma região ou país: mais crescimento e desenvolvimento. Putnam não ignora o

peso das dimensões na macroeconomia, mas destaca a soma deles. O capital social

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[ 36 ]

significa praticar confiança, solidariedade, reciprocidade e é o próprio exercício da

cidadania. Bourdieu (1983) e Putnam (2000) desenvolveram um conceito de capital

social individualizados. Para Putnam, é um conjunto de recursos possuídos pelos

indivíduos de um grupo formando tanto para o indivíduo como para o grupo. Já, para

Bourdieu o capital social é uma consequência das relações sociais que é percebida

pelos atores envolvidos que pode ser transformado em outra forma de capital, ele

destaca numa forma individualista embutida no coletivo.

Bourdieu define capital social:

Social capital is the aggregate of the actual and potential resources which are linked to possession of a durable network of more or less institucionalizad relationships of mutual acquaintance and recognition – in other words, to membership of a group – which provides each of the members with the backing of the collectivity-owned capital (BOURDIEU, 1983, p. 248-249).

Então, nesse conceito, o capital social é o que agrega os recursos atuais e

potenciais dos quais serão unidos a possessão de uma instituição reconhecida, como

o agronegócio em Bela Vista do Toldo, pelos sócios desse capital e oferecem apoio

necessário ao crescimento que buscam na coletividade.

Para Putnam, o conceito de capital social: “refers to connection among

individuals-social networks and the norms of reciprocity and trustworthiness that arise

from them” (PUTNAM, 2000, p. 19). Então, ele está se referindo as conexões entre as

cadeias de indivíduos e sócios que estabelecem a relação entre às normas de troca e

probidade que vai surgir entre eles no decorrer da busca de desenvolvimento.

O World Bank (2000) define assim o capital social: “….the rules, norms,

obligations, reciprocity and trust embedded in social relations, social structures and

society’s institutional arrangements which enable members to achieve their individual

and community objectives3”. Então, esse conceito fala de regras, normas, obrigações,

reciprocidade e confiança embutidas nas relações sociais, nas estruturas sociais e nos

arranjos institucionais que a sociedade permite aos sócios alcançarem tanto no

3 Disponível em: <www.worldbank.org/poverty>. Acessado em setembro 2011.

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[ 37 ]

individual como nos objetivos da própria comunidade organizada. Boisier4 (2011)

destaca a função do capital social como:

El capital social es lo que permite a los miembros de una comunidad, confiar el uno en el otro y cooperar en la formación de nuevos grupos o en realizar acciones en común. Se basa en la reciprocidad difusa. Una comunidad con elevado capital social alcanza mayores logros con recursos dados. Se reconoce la existencia de capital social en la densidad del tejido social. Es un bien público y por tanto hay una tendencia a sub-invertir en él. (BOISIER, 2011)

Algumas conclusões importante sobre o desenvolvimento endógeno de um

territorio, segundo Boisier5:

El crecimiento económico de un territorio es función principal de la interacción del sistema con su entorno, del intercambio de energía, información y materia (se trata de un sistema cuasi-aislado). Ello explica que el crecimiento contenga un alto grado de exogeneidad. (BOISIER, 2011)

Boisier6 destaca que o desenvolvimento territorial está baseado na sinergia do

capital social e destaca:

El desarrollo territorial es función primordial de la complejidad del sistema territorial, de la sinapsis y de la sinergía cognitiva. Ello explica que el desarrollo sea siempre un proceso endógeno, necesariamente descentralizado y de escala social y territorial pequeña. (BOISIER, 2011).

O grau de sinergia que envolve o capital social, como mediação do fortalecimento

da sociedade, dará o sentido das ações coletivas que estimulam o cidadão a ter

opiniões firmes e cobrar, sobretudo, os governantes um melhor desempenho – por

meio de políticas públicas – que tornem imprescindiveis essas ações em mudanças:

4 Palestra ministrada por Boisier, no Seminário sobre cultura e Desenvolvimento, dia 30 de abril de

2011, em Canoinhas – SC. Definição em uma das transparências apresentadas na palestra.5 Palestra ministrada por Boisier, no Seminário sobre cultura e Desenvolvimento, dia 30 de abril de

2011, em Canoinhas – SC.6 Ibdem.

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se as discussões forem se confirmando, o chamado bom desenvolvimento local pode chegar até ao âmbito do regional.

Para Putnam (2007), a cidadania, o civismo e a democracia estão relacionados ao capital social e, a partir daí, ele desenvolve um conceito de comunidade cívica, destacando as diferenças entre as regiões que estão relacionadas às raízes histórico-culturais, destacando-se que as mais cívicas são aquelas que são mais organizadas e que estão baseadas na cooperação, confiança, normas de reciprocidade na coletividade do território. é a confiança social a chave para a cooperação o ganho de desenvolvimento nas redes de engajamento cívico.

Essas ideias se associam na configuração do capital social como destaca Putnam: 1) Grupos e redes – considera a participação do cooperado em organizações sociais formais e informais, bem como as vantagens dadas e recebidas nestas relações; 2) Rede (Individual) – trata das relações de amizade informal que o cooperado tem em seu cotidiano; 3) Confiança e solidariedade – leva em conta dados sobre a confiança nos relacionamentos interpessoais do cooperado, inter e extrafamiliar; 4) Ação coletiva e cooperação – investiga as relações de trabalho na celula familiar, nos produtos em conjuntos e na punição de ações oportunistas; 5) Informação e comunicação – como se dá o fluxo de informações e a facilidade de comunicação dos cooperados na comunidade e com outras regiões; 6) Coesão e inclusão social – buscar identificar como se processam as interações entre os cooperados inter e intracooperativa; 7) Autoridade (ou capacitação – empowerment) e ação coletiva – envolve o nível de empoderamento psicossocial dos cooperados e ainda a capacidade dos cooperados de agir agregadamente. Os grupos e redes, a rede individual, a confiança, a ação coletiva, as informações, a coesão e inclusão social e a autoridade são ideias sobre o capital social elaboradas por Putnam (1996) que se espandem nas possíbilidades de aplicação em diversos trabalhos que tentam compreender a influência do mesmo em projetos de desenvolvimento local e regional. A aplicação do capital social se identifica nos impactos sobre a melhora de renda e a influência da ação coletiva na comunidade. O Banco Mundial, no estudo “Social Capital initiative”, o capital social determina a sustentabilidade de projetos voltados ao desenvolvimento local e regional.

Para Boquero (2003, p. 95), uma diferença importante entre o capital social e

outras formas de capital é que o capital social existe em uma “relação social”. Reside

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nessas relações e não no indivíduo sozinho, como é o caso de habilidades que adevém

do capital humano. é constituído em coletividades institucionalizadas tais como:

universidades, corporações, governos, associações informais de pessoas em que o

conhecimento e as visões de mundo formam-se e são transferidas na coletividade.

Capital social não são simplesmente um atributo cultural, cujas raízes só podem ser

fincadas ao longo do tempo ao longo da formação de muitos povos e gerações. Ele

pode ser criado – desde que haja organizações suficientemente fortes – para sinalizar

aos indivíduos as alternativas que eles podem, por meio de seus comportamentos

políticos, transportar na coletividade a vontade do indivíduo. Esse envolvimento entre

os atores é o que pode ser observado na configuração e na diferença, entre

desenvolvimento e estagnação, entre uma região e outra.

2.2 CAPItAL soCIAL: ProJeto Do AGroneGÓCIo CoMo ALAVAnCAGeM PArA o DesenVoLVIMento DA eConoMIA LoCAL-reGIonAL

O projeto da agroindústria familiar, como fonte geradora de riquezas e

desenvolvimento regional, destaca-se para as mudanças que pode vir a ocorrer na

problemática de todas as atividades agropecuárias, em especial na região do Planalto

Norte Catarinense. Essa região apresenta uma realidade de múltiplas dificuldades,

tanto no âmbito social como no econômico. Essas dificuldades se conjecturam

em dificuldades na produção, industrialização e comercialização dos productos

desenvolvidos e produzidos por pequenos agricultores. De certa forma, inclui-se a

ação a ser justificada, como relevância prática, o desenvolvimento de uma agroindústria

nesse território, pois ela irá contribuir para suprir a necessidade local, dos pequenos

agricultores familiares que estão voltados em suas atividades para o desenvolvimento

do agronegócio. O fato é que, essas famílias de agricultores necessitam desenvolver

sua vocação endógena, ou seja, produzir alimentos e agregar valores para se fortalecer.

Fortes, eles podem completar o ciclo da produção, industrialização e comercialização,

no sistema agroindustrial de forma sustentável. Com a aplicação de uma ação conjunta

entre a Universidade do Contestado, Prefeituras Municipais de Canoinhas, Três Barras,

Major Vieira e Bela Vista do Toldo, MDA (Ministério do Desenvolvimento Agrário) e da

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FAPESC (Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Estado de Santa Catarina) –

para ser estruturada a agroindústria no território da 26a SDR, de forma organizada.

Entrementes, a formação do capital social no agronegócio para esses agricultores

familiares, com certeza, irá ser a grande fonte para o desenvolvimento local e regional.

Além do mais, ajudará a evitar o êxodo rural, motivado pela falta de oportunidades, do

qual essas pessoas almejam num futuro próximo a própria sobrevivência. No mapa

n.º 1 o local da instalação do agronegócio em Bela Vista do Toldo-SC.

Mapa n.º 1 – localização da 26ª SDR e da sede da agroindústria.

Muitos são as justificativas do investimento em projetos de instalação de

agronegócios voltados à agricultura familiar. Segundo o Relatório – A força da

agricultura segundo o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MDA,

2009) relata que o agronegócio diversificado, moderno e eficiente desenvolvido no

Brasil elevou o País à categoria de grande fornecedor mundial de alimentos. Mas não

é só isso. A alavancagem neste setor de agroenergia, com produção sustentável e de

qualidade, conquistou o mercado internacional. O desempenho das safras e da balança

comercial se supera a cada ano e em 2008 não foi diferente. No entanto, nos últimos

meses, a crise financeira global, iniciada no segundo semestre de 2009, puxou o freio

deste acelerado desenvolvimento e trouxe apreensões. Incertezas quanto ao crédito e

ao comportamento dos mercados chegaram juntos e o Brasil, sendo o terceiro

exportador de produtos agrícolas, com desempenho expressivo e aumentando a cada

ano. O relatório destaca que, em 2008, as vendas externas do setor agropecuário

resultaram em US$ 71,8 bilhões, 23% a mais do que em 2007, e o agronegócio

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respondeu por 36,3% das exportações totais do País. Esse potencial é sinônimo de

liderança que os indicadores para 2010-11 apontam com um acréscimo ainda maior.

o Brasil é o maior produtor e o maior exportador de café, açúcar, etanol de cana-de-

açúcar e suco de laranja. Lidera o ranking das vendas externas de carne bovina, carne

de frango e tabaco. O País já é o principal polo de bicombustíveis obtidos a partir de

cana-de-açúcar, e tem tudo para ser, em breve, destaque mundial na produção de

combustíveis a partir de óleos vegetais. Destaca-se também na exportação de algodão,

milho, frutas frescas, cacau, castanhas, couro e suínos, entre outros. O crédito é o

motor da economia e o agronegócio vem se beneficiando com linhas específicas, a

taxas de juros controlados e com medidas emergenciais de suporte para os efeitos da

crise financeira mundial. A qualidade, a sanidade e a sustentabilidade ambiental do

agronegócio brasileiro conquistaram reconhecimento mundial. Mesmo em épocas de

desvantagens cambiais e de crises globais, as vendas externas do Brasil cresceram.

Para Couto Filho (2007, p. 21), desde a criação do Programa Nacional de

Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF) em 1996, os agricultores e agricultoras

familiares brasileiros têm recebido crescente atenção das políticas públicas. Essas

políticas, diga-se de passagem, construídas com a participação e a legitima

representação dos movimentos sociais organizados. Para o autor, o setor público deve

promover políticas que permitam o crescimento da atividade. De forma resumida, os

municípios, o Estado e a União devem oferecer infraestrutura, assistência técnica e

extensão, estudos e pesquisas, fiscalização e controle ambiental, e por fim organizar a

comercialização. Não se pode falar de Política Pública sem que sejam tratados outros

pontos fundamentais como: a) programas especiais regionalmente localizados; b)

desencontros das políticas agrícolas e agrárias; c) falta de uma política específica e

substancial de apoio à agricultura familiar; e d) a política agrícola do MERCOSUL e a

sua relação com outras regiões.

Para a Secretaria de Desenvolvimento Agropecuário e Cooperativismo (MDA,

2008), a associação “é uma sociedade civil sem fins lucrativos, onde vários indivíduos

se organizam de forma democrática em defesa de seus interesses”. Pode existir em

vários campos da atividade humana e sua criação deriva de motivos sociais,

filantrópicos, científicos, econômicos e culturais. A associação é uma maneira de

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participar da sociedade. é muito comum que as pessoas se reúnam para alcançar

objetivos que, individualmente, seriam bem mais difíceis ou mesmo impossíveis de

ser conseguidos. Gradativamente e em diferentes atividades, organizações não

governamentais (ONGs), entidades representativas de categorias profissionais, grupos

sociais ou setores produtivos reivindicam sua participação no planejamento. Essa

participação é definitiva para influenciar a direcionar os recursos públicos aos projetos

desejados pela maioria da população, bem como fiscalizar sua aplicação. Ao mesmo

tempo, o associativismo se constitui em alternativa necessária de viabilização das

atividades econômicas, possibilitando aos trabalhadores e pequenos proprietários um

caminho efetivo para participar do mercado em melhores condições de concorrência.

Com a cooperação formal entre sócios afins, a produção e comercialização de bens e

serviços podem ser muito mais rentáveis, tendo-se em vista que a meta é construir

uma estrutura coletiva da quais todos são beneficiários.

Os pequenos produtores, que normalmente apresentam as mesmas dificuldades

para obter um bom desempenho econômico, têm na formação de associações um

mecanismo que lhes garante melhor desempenho para competir no mercado.

Transformar a participação individual e familiar em participação grupal e comunitária

se apresenta como uma alavanca, um mecanismo que acrescenta capacidade produtiva

e comercial a todos os associados, colocando-os em melhor situação para viabilizar

suas atividades. A troca de experiências e a utilização de uma estrutura comum

possibilitam lhes explorar o potencial de cada um e, consequentemente, conseguir

maior retorno financeiro por seu trabalho. A união dos pequenos produtores em

associações torna possível a aquisição de insumos e equipamentos com menores

preços e melhores prazos de pagamento, como também o uso coletivo de tratores,

colheitadeiras, caminhões para transporte etc. Tais recursos, quando divididos entre

vários associados, tornam-se acessíveis e o produtor certamente sai lucrando, pois

reúne esforços em benefício comum, bem como o compartilhamento do custo da

assistência técnica do agrônomo, do veterinário, de tecnologias e de capacitação

profissional. O conceito de associação de produtores rurais é: “uma sociedade formal,

criada com o objetivo de integrar esforços e ações dos agricultores e seus familiares

em benefício da melhoria do processo produtivo e da própria comunidade a qual

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pertencem”. Objetivos Desenvolver um projeto coletivo de trabalho. Defender os

interesses dos associados.

A foto n.º 1 destaca o prédio da agroindústria da agricultura familiar em Bela

Vista do Toldo-SC.

Foto n.º 1- vista da sede da agroindústria em Bela Vista do Toldo.Fonte: Reinaldo Knorek, 2010.

Formar um capital social para esse agronegócio voltado à agricultura familiar é

o grande desafio. Vale (2006) destaca que o capital social representa o conjunto de

recursos enraizados (embedded) em redes sociais, de usufruto de atores (individuais

e coletivos) e resultante de relacionamentos, conexões e laços. Tais recursos garantem

a seus detentores informações, permitem acesso a bens valiosos e regam oportunidades

ajudando-os na obtenção de resultados pretendidos. Nesse contexto, atores sociais,

com conexões capazes de lhes permitir transpor distâncias sociais e estabelecer

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pontes com outros atores e redes (grupos sócias) distintos, gozarão de condições

mais privilegiadas. Em um determinado território, uma aglomeração produtiva, o capital

social seria representado pelo conjunto de recursos inserido nas conexões e laços à

disposição de atores aí presentes, vinculados entre si e com o “resto do mundo” e

condicionados à natureza dos empreendimentos (individuais e coletivos) que são

capazes de praticar.

Produzir, industrializar e comercializar de forma cooperada e reunir esforços

para reivindicar melhorias em sua atividade e à comunidade, além de melhorar a

qualidade de vida e participar do desenvolvimento de sua região, devem ser

características das associações rurais que, geralmente, são formadas por grupos de

vizinhos que, pela proximidade e pelo conhecimento, se agrupam para discutir

problemas comuns. E isso faz a formação de um capital social sustentável. Ao

buscarem soluções em conjunto, evoluem para decisões mais definitivas, aperfeiçoando

a parceira, inicialmente informal, para uma forma de união organizada e associativa,

onde terão maiores chances de sucesso. Para tanto, a participação democrática e a

ajuda mútua são os princípios fundamentais, sem os quais as associações perdem

sua razão de existir, já que defendem os interesses e anseios da maioria. O mutirão –

que antes ocorria como uma ação eventual de colaboração entre amigos – se

transforma num método, os membros da associação passam a trabalhar juntos e (ou)

de forma complementar, tanto na fase produtiva como na comercial. As vantagens das

associações que se organizam e garantem um processo participativo, tendo como

principal objetivo o permanente interesse do grupo, tendem a prosperar. Ao atingirem

suas metas, novos horizontes se estabelecem, impulsionando suas atividades.

Abramovay (2006) indica que a visão do desenvolvimento territorial pela óptica

do “embeddedeness”, ou seja, o enraizamento ou imersão, se revela um recurso

analítico adequado para compreender os dois elementos centrais para o sucesso das

experiências de desenvolvimento, que são os mecanismos de cooperação entre atores

e o papel dos mercados.

A coesão territorial apóia-se em formas de cooperação que correspondem à capacidade de diferentes grupos em oferecer os padrões em torno dos quais a interação social se estabiliza. Os participantes de qualquer mercado procuram, permanentemente,

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estabilizar suas relações ou, em outras palavras, reduzir ao mínimo os riscos que ocorrem pelo fato de estarem expostos ao sistema de preços. Os protagonistas dos mercados não são fundamentalmente maximizadores de lucro vivendo num mundo atomizado em que as oportunidades são aproveitadas sob a forma de um leilão permanente estabelecido entre participantes anônimos e impessoais. (ABRAMOVAY, 2006, p. 32)

De fato, quando se busca o desenvolvimento local-regional, fala-se do território

a ser desenvolvido do qual inspira grandes estudos de discussões; sobre as

características do mesmo e do enraizamento ou imersão (embeddedness) das

atividades econômicas em contextos, espaços ou ambientes sociais marcados pelas

fortes relações de proximidade e interconhecimento: fundamenta a formação do capital

social para esse envolvimento. Sob as perspectivas culturalistas de Putnam (2000), os

estudiosos da sociologia econômica afirmam que as relações entre os atores são

socialmente construídas e negociadas, formando estruturas, hierarquias e lutas sociais

por poder. O território rural, as perspectivas de imersão e as relações econômicas não

são simplesmente um conjunto de fatores naturais de dotações humanas capazes de

determinar as opções de localização das empresas e dos trabalhadores; eles se

constituem por laços informais, por modalidades de cooperação, que é o ponto

fundamental do capital social. Certamente, no que tange ao momento da cooperação

entre os líderes dos municípios inserido neste projeto, a definição dos produtores que

farão parte do negócio e o apoio da universidade serão determinantes para o sucesso

ou fracasso da agroindústria. Dentro desse contexto devem ocorrer fatores como a

inovação tecnológica endógena que surgem como maximização das estruturas a

serem montadas em busca dos lucros a ser conseguido, o capital humano, ou seja, o

estoque de conhecimentos dos agentes econômicos, e os arranjos institucionais,

incluindo a política governamental e as organizações da sociedade civil. Isso é

fundamental no crescimento econômico e contínuo da renda per capita em qualquer

sistema econômico. é nesse ponto que se insere o papel fundamental exercido por

atores sociais que comandam as políticas de desenvolvimento, tais como: as citadas

prefeituras, o MDA, a 26ª SDR e a Universidade do Contestado-UnC. Contudo, é aberta

a discussão em que na teoria o crescimento endógeno constitui-se para a legitimidade

da endogeização territorial, mas que a partir de ações concretas, com investimentos

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localizados, o crescimento econômico pode ser visível no território. A forma de

cooperação e de parceria desenvolvida entre os atores citados pode sim, de certa

maneira, ser o ponto forte de alavancagem para o desenvolvimento da agroindústria.

Esse ponto forte – a cooperação e a formação de parcerias – ficou evidenciado

e se destacou com a realização, no dia 19 de novembro de 2010, em Canoinhas, do

II Seminário sobre Ferramentas de Desenvolvimento: os desafios do agronegócio na

região da 26ª SDR. Nesse seminário foi discutido o agronegócio voltado à agricultura

familiar e as atividades das prefeituras como apoio ao desenvolvimento e a

sustentabilidade dessa atividade. Foram mais de 150 pessoas participantes, entre

agricultores, prefeitos, sindicalistas, vereadores, secretários de agricultura, mestrandos

do Programa de Mestrado em Desenvolvimento Regional e Público em geral discutir e

compreender os desafios do agronegócio na região. À medida que as economias vão

se consolidando, observa-se que tende a ocorrer um processo de interdependência

entre setores e territórios com seus segmentos produtivos, e é nesse momento que

novos padrões passam a ser ditados pelos atores mais dinâmicos da economia.

A produção agrícola e pecuária tem como principal objetivo obter lucro ou ganhos

quantitativos pelo aumento de produção e produtividade. Nessa ideia de cooperação

para se desenvolver uma agroindústria da qual muitos farão parte, é evidente que os

atores, quando obtiverem lucros agregados em seus produtos, entrarão na dinâmica

da economia que é circular a produção e aumentar cada vez mais a produtividade e,

sobretudo, o ganho da qualidade desses produtos: cooperação e dinâmica de mercado

levam ao desenvolvimento. Neste contexto de produção, dinâmica da economia,

inovação e ampliação do leque de produtos produzidos com a agregação de valores à

produção in natura que surge na literatura especializada a terminologia de agribusiness

ou agronegócio.

Agronegócio abrange a produção agropecuária propriamente dita (produção vegetal, produção animal, e as atividades vinculadas ao extrativismo), as atividades situadas a montante da produção agropecuária (indústria de insumos, máquinas e equipamentos, estrutura de financiamento à produção, instituições de pesquisa) e as atividades situadas à jusante da produção rural (setor de transporte, beneficiamento, armazenamento, estruturas de atacado e varejo incluindo os restaurantes e bares). (ARBAGE, ALEXANDRO, 2006, p. 184)

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Todas essas empresas fazem parte do sistema chamado agribusiness ou

agronegócio. Desenvolver a partir das experiências dos produtores, cooperação entre

municípios e universidade e estruturação do agronegócio é, sobretudo, a maneira de

consolidar a região do vale do Canoinhas como um território endogenamente agrícola

e que passa a ser um novo território de agronegócios com novas empresas e novas

formas de crescimento da economia local.

Este é o objetivo de consolidar o agronegócio nos municípios da 26a SDR,

desenvolvendo, equipando e organizando um agronegócio para agricultores familiares,

construindo o associativismo e cooperativismo garantirá o desenvolvimento territorial

e a sustentabilidade deles. O capital social mobilizado neste projeto beneficiará 80

famílias diretamente em cada um dos quatro municípios envolvidos e aproximadamente

1500 pessoas indiretamente na região da 26a SDR. De certa maneira, essa realidade

apresentada nesses números, necessariamente, precisa ser alterada para mais. Os

valores financiados pela FAPESC totalizam um montante de R$ 128.845,00, dos quais

R$ 32.910,00 se destinam ao custeio da pesquisa e R$ 96.935,00 correspondem ao

valor para compra dos equipamentos da agroindústria. Também há a contrapartida das

prefeituras de Canoinhas, Três Barras, Major Vieira e Bela Vista do Toldo, cujo valor é

de R$ 15.000,00. A universidade nesta parceria entra com uma contrapartida de R$

45.000,00. O MDA financiou a construção da sede com R$ 140.000,00 e, está um

acréscimo demais investimentos na ordem de R$ 91.000,00 para garantir o início da

produção da agroindústria. O projeto tem por objetivo geral: Promover o desenvolvimento

local-regional por meio do agronegócio – completando o ciclo produção, industrialização,

comercialização – voltado à sustentabilidade e diversificação produtiva da agricultura

familiar, fortalecendo assim a potencialidade dos arranjos produtivos locais para

pequenos produtores inseridos na 26a SDR. Para que tal objetivo seja atingido,

destacam-se os objetivos específicos: 1) Fomentar o setor produtivo agropecuário

para a agroindústria; 2) Edificar a instalação de uma unidade agroindustrial para ser um

instrumento de geração de emprego e renda voltado a novas oportunidades de trabalho

da agricultura familiar no âmbito local-regional da 26a SDR; 3) Incentivar e apoiar os

pequenos produtores nas atividades de produção, inovação, desenvolvimento científico

e tecnológico aliados à gestão, transferência de tecnologias, promoção do capital

humano, desenvolvendo a natureza mercadológica, por meio da educação, cultura e

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treinamento dos pequenos produtores rurais associados à agroindústria; 4) Promover

a produção, industrialização e comercialização da produção da agricultura familiar de

forma sustentável; 5) Elaborar um diagnóstico dos produtos comercializados na região

26ª SDR; 6) Elaborar um diagnóstico das potencialidades de produção da agricultura

familiar na região da 26a SDR; 7) Identificar a capacidade de diversificação da agricultura

familiar na região da 26aSDR; 8) Promover a feira livre como canal de comercialização

dos produtos produzidos na agroindústria da agricultura familiar na região da 26ª SDR;

9) Estimular e capacitar os pequenos produtores rurais para produção associada

voltados à agregação de valores dos seus produtos para a agroindústria; 10) Sensibilizar

os pequenos produtores rurais para que desenvolvam a consciência organizacional de

trabalhos associativista-cooperativista na região 26ª SDR. Entrementes, o capital social

a ser construído na forma da cooperação entre os atores envolvidos será o grande

diferencial, tanto no momento da sua implementação como no que tange à própria

sustentabilidade do negócio. A razão desse capital social já produziu resultados com a

implantação de uma cooperativa entre os atores envolvidos neste projeto: Cooperativa

de Fortalecimento da Agricultura Familiar do Planalto Norte Catarinense – CooPerFAP

em Bela Vista do Toldo, no dia 30 de junho de 2011.

ConsIDerAçÕes FInAIs

A perspectiva do desenvolvimento endógeno rural no território da 26ª SDR e da

edificação do capital social, formado na cooperação, vem evoluindo de vários

segmentos da sociedade, de forma expressiva, desde a construção da sede da

agroindústria, em Bela Vista do Toldo, com o projeto de equipar e instrumentalizá-la,

será determinante para a sustentabilidade do agronegócio familiar. Muitas das ações

que deverão ser efetivadas no projeto terão o apoio da Universidade do Contestado e

dos governos dos municípios de Canoinhas, Bela Vista do Toldo, Major Vieira e Três

Barras. Os formuladores de políticas que, por muitas razões buscam o desenvolvimento

de territórios, especialmente os rurais, precisam, de certa forma ser refinados e

aprofundados por novas pesquisas: tanto na área técnica como na forma de gestão

dos negócios. Exatamente o que está sendo configurado neste projeto: ações

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inovadoras para a região e norteada para o desenvolvimento econômico de forma

sustentável. A teoria do capital social inovada por Putnam (1993; 2000) presume,

segundo o autor, que quanto mais relacionarmo-nos com outras pessoas, mais

confiamos nelas, e vice-versa. (PUTNAM, 1995b, p.665). Essa ideia de formar

parcerias para projetos interinstitucionais, muitos problemas defrontado com os atores

políticos de diversas formas como, por exemplo: o partidarismo, o territorialismo e as

paixões discursivas em torno das potencialidades locais dos quais todos querem ser

os propulsores das ideias, são questões que envolvem muito mais relações e

envolvimentos para ser compreendidas como uma sinergia de ligação entre poderes.

Mas, sobretudo, o capital social envolvido está criando a sinergia necessária para que

o projeto seja sustentável em todo o seu processo de formulação como de

desenvolvimento: é do local que emergem o capital social para o crescimento

econômico e o desenvolvimento da comunidade de forma sustentável do qual o

sucesso ou fracasso se estabelecerão. Neste sentido, o capital social oferece uma

maneira nova e excitante de revitalizar as pesquisas em desenvolvimento de um

território com vocação endógena, voltado à agricultura familiar e se manifestará em

desenvolvimento na promoção da justiça e da solidariedade institucionalizada. Por fim,

destaca as ideias de BOQUERO (2003): o capital social como instrumento de

“empowerment” das pessoas para agirem coletivamente e que essa força de

cooperação gere mecanismos democráticos eficientes com qualidade, em que as

demandas de grupos tradicionalmente excluídos não sejam mais esquecidas, e ao

mesmo tempo tais experiências fortaleçam o conceito de cidadania: desenvolver as

pessoas na cooperação para o crescimento sustentável.

reFerênCIAs

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VALE, Gláucia Maria Vasconcellos. Laços como ativos territoriais: análise das aglomerações produtivas na perspectiva do capital social. Tese apresentada à Universidade Federal de Lavras como parte das exigências do programa de doutorado em administração, área de concentração gestão social e meio ambiente, para a obtenção do título de doutor. Lavras – Minas Gerais, 2006.

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3As CAPeLAs CoMo PAtrIMÔnIo MAterIAL CULtUrAL nA 26ª sDr: neCessIDADes e DesAFIos Do CAPItAL soCIAL PArA sUA PreserVAção

Marcelo tokarski1

IntroDUção

Este texto é mais especulativo do que conclusivo, diante do debate que se abre

ao tratar-se das interações entre cultura e desenvolvimento. Procurar-se-á demonstrar

a importância de ações coordenadas, por parte das várias esferas de governo e da

sociedade civil dos municípios que compõem a 26ª SDR2, no sentido de se construírem

ações que visem à preservação do seu patrimônio cultural, notadamente, aqui, o

patrimônio arquitetônico singular das antigas capelas de madeira. Tais capelas, antes

maioria, são hoje poucas, mas importantes representantes de uma época. Emblemáticos

exemplares de saberes e fazeres construtivos e artísticos que correm risco de se

perder; perda esta inestimável e que pode ser evitada. A preocupação pela preservação

de tal patrimônio cultural não pode ser entendida como fruto de um possível sentimento

de saudosismo ou apego às “coisas do passado”, mas sim, o “fator cultural”, como

uma das facetas do desenvolvimento, saindo de um ostracismo3, pois por muito tempo

a cultura foi considerada muito mais como um fator com capacidade de atrapalhar do

que ajudar no desenvolvimento (HERMET, 2002).

Atualmente, parece haver um descaso, por parte da sociedade local, no tocante

à preservação do patrimônio cultural local e regional, salvo ações singulares e

1 Administrador e Turismólogo, Especialista em Planejamento Turístico e Mestrando em

Desenvolvimento Regional.2 Secretaria de Estado do Desenvolvimento Regional, que abrange seis municípios: Bela Vista do

Toldo, Canoinhas, Irineópolis, Major Vieira, Porto União e Três Barras.3 Aqui, entendido como isolamento, proscrição e (ou) banimento.

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localizadas de algumas comunidades, e, também de algumas pessoas, seja por

conscientização da importância desta preservação, seja pelo apreço que tais pessoas

e (ou) comunidades têm pelos seus patrimônios.

A existência de capital social, aqui entendido como catalisador sinérgico de

ações por parte da sociedade, segundo Robert Putnam, “características da organização

social como confiança, normas e sistemas que contribuam para aumentar a eficiência

da sociedade, facilitando as ações coordenadas” (PUTNAM, 2000), poderá ser de

fundamental importância para que se realizem ações coordenadas regionalmente que

visem à preservação de importante parcela do patrimônio cultural material da região

citada, com vistas ao desenvolvimento de atividades relacionadas ao turismo cultural

e, estas, como possíveis fatores de retroalimentação de processos de desenvolvimento

regional sustentável, ao se valorizar a identidade cultural regional, alavancando o

sentimento de pertença da população, dotando-a de mecanismos de defesa de sua

cultura, diante dos desafios da globalização.

No decorrer do presente texto, com a apresentação dos subsídios para a

reflexão sobre o tema, pretende-se construir a base da defesa argumentativa acerca da

importância da preservação do patrimônio cultural, suas possibilidades turísticas, a

necessidade de um capital social mais ativo para a necessidade apontada de tal

preservação e possíveis implicações inerentes ao estímulo da valorização da identidade,

por meio do turismo cultural, como fator de desenvolvimento regional, além de termos/

conceitos conexos com o de “capital social”, inclusive o de “sustentabilidade político-

institucional”.

Portanto, compromissado com a alteração deste cenário atual, que pode pôr

em risco a conservação do patrimônio material cultural regional, o texto a seguir

respalda teoricamente discussões a respeito da temática apresentada.

3.1 PAtrIMÔnIo MAterIAL CULtUrAL e IDentIDADe

Definir cultura é tarefa difícil, pois há vários entendimentos, a partir de uma

visão antropológica, Linton afirma que: “Os seres humanos devem seu predomínio

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atual, em parte, a seu equipamento mental superior, mas ainda mais às ideias, hábitos

e técnicas que lhes foram transmitidos pelos seus ancestrais”. Mais adiante, esse

autor descreve que:

A cultura de qualquer sociedade consiste na soma total e a organização de ideias, reações emocionais condicionadas e padrões de comportamento habitual que seus membros adquiriram pela instrução ou pela imitação de que todos, em maior ou menos grau, participam. (LINTON, 2000, p. 279)

Segundo esse mesmo autor, a curiosidade e o deleite de criar e conhecer coisas

novas seria um dos fatores de desenvolvimento cultural da espécie humana, quando

afirma “a raiz do desenvolvimento cultural humano está, provavelmente, mais na

capacidade que o homem tem de aborrecer-se de que nas suas necessidades sociais

ou naturais” (LINTON, 2000). Procurarei demonstrar, mais adiante, a relação desta

afirmativa com as razões/motivações do Turismo Cultural.

Na abordagem entre cultura e desenvolvimento, mesmo as autoridades

financeiras internacionais parecem ter despertado para a importância do cuidado com

o respeito a ela, em 1998, James Wolfensohn, presidente do Banco Mundial, na

Conferência “A Cultura no Desenvolvimento Sustentável”, afirmou: “Temos que respeitar

as raízes das pessoas em seu próprio contexto social. Temos que proteger a herança

do passado. Mas também temos que estimular e promover a cultura viva em todas as

suas múltiplas formas.” (apud HERMET, 2002, p. 88).

Conforme o Ministério da Cultura, no Plano Nacional de Cultura, “A cultura é

constitutiva da ação humana, seu fundamento simbólico está presente em qualquer

prática social”, afirma também, que “economia e desenvolvimento são aspectos da

cultura de um povo”, aqui entendendo-se que ela pode ser parte de processos

propulsores da criatividade, gerando inovações econômicas e tecnológicas e a

diversidade cultural produz variados modelos de geração de riqueza que devem ser

reconhecidos e valorizados. (MinC, PNC, 2008).

Ao se abandonar uma possível forma elitista de se pensar a cultura, pode-se

dizer que, antes de ser um refinamento ou sofisticação, a cultura seria uma condição

de produção e reprodução da sociedade (MENESES, 2002).

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o conceito de cultura complementa o de sociedade, neste caso, entendendo-se

como um conjunto de indivíduos que se identificam como membros de um grupo

social. (MARTINS, 2003).

Em vários autores, encontram-se estudos que apontam para as relações entre

patrimônio cultural, turismo e identidade.

Na obra “Turismo, Cultura e Identidade”, encontra-se interessante texto do qual

pode-se depreender que a valorização do patrimônio cultural pode ser entendido com

a tomada de consciência social de um grupo com referência a alguma ou a algumas

manifestações culturais próprias. (AGUIRRE, apud MARTINS, 2003) No mesmo

capítulo, tem-se um embasamento preciso de tais implicações:

De todas as formas, tomando o patrimônio em sentido amplo, na hora da verdade estão ali materializados: as tradições, os costumes, os modos de ser e de viver, mas, sobretudo, em cultura material, técnicas, artefatos, etc., nos quais estão os testemunhos reais, palpáveis das mais diversas culturas. (MARTINS, 2003, p. 45.)

Para o mesmo autor, identidade se relaciona com a memória coletiva, exterior

ao indivíduo “[...] O homem nasce, vive e morre sabendo a que grupo, família,

comunidade, cidade, país pertence. Mas essa identidade não é “petrificada”, quando

se relaciona à execução de papéis sociais, sendo assim, a identidade é uma construção

também do próprio homem, logo, pode ser alterada.” (MARTINS, 2003). A relação

entre o desenvolvimento turístico e a valorização da identidade local/regional será

abordada mais a frente.

Complementando, a identidade pode ser identificada como o sentimento de

pertencer a algo, ao se pensar o ser humano como um ser simbólico, que sente

afinidades por um pertencimento, seja a um grupo, seja um local.

Para o Programa de Regionalização do Turismo – Roteiros do Brasil, a cultura é

pensada como a totalidade ou o conjunto da produção de uma sociedade e o patrimônio

cultural, tem um significado abrangente e atualizado “[...] o conceito de patrimônio

cultural entendido até a metade do século passado como sinônimo de obras de arte

consagradas e monumentos, tem sido redefinido atualmente, sendo pensado em seus

aspectos materiais e imateriais (tangíveis e intagíveis)” (MTur, 2008, p. 57)

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Como o objetivo deste texto é o de demonstrar a importância da preservação e

valorização do patrimônio cultural arquitetônico das capelas erigidas, em sua maioria,

nas primeiras décadas do século anterior, na região da 26ª SDR, e seu possível

aproveitamento turístico e de ações educativas que reforcem a identidade cultural da

população, ater-se-á aos aspectos inerentes ao patrimônio cultural material.

As regiões devem descobrir o seu potencial e suas vocações, pois caso

exista algum tipo de patrimônio, provavelmente, sempre deverá existir, este necessita

ser preservado e valorizado, mas tendo sempre a participação da comunidade,

envolvendo-a nos projetos e dando-lhe voz, pois, como afirma Guy Hermet: “Para

que façam seu um projeto, é preciso sempre que possam personificar nele seus

desejos, antes de concordarem em empregar nele seus esforços”. (HERMET, 2002, p. 99)

Ao se pensar na identidade como algo que se relaciona com a memória

coletiva, exterior ao indivíduo, deve-se observar que essa memória envolve outras

referências individuais e guarda de forma particular os fatos da sociedade inerente a

esse indivíduo (LEVY-STRAUSS apud MARTINS, 2003). Complementando, pode-se

afirmar que o indivíduo recorre a este conjunto de referências para recuperar ou

manter a sua identidade, seu sentido de pertencer, resgatando a sua história,

sobretudo neste período de globalização, em que o individual se perde no padrão

(MARTINS, 2003). Ainda na mesma discussão, a autora Margarita Barreto explica

que manter sua identidade seria, então, algo essencial para que os indivíduos sintam-

se seguros, unidos por laços extemporâneos a seus antepassados, no contexto de

um território4, de hábitos e costumes que lhe transmitam segurança, indicando-lhes

suas origens, auxiliando-os a poderem se referenciar, dentro do rol das diversidades

(BARRETO, 2000).

Aqui, pode-se pensar no potencial que o desenvolvimento do turismo cultural

tem, como ferramenta auxiliar na preservação de patrimônios culturais ameaçados,

pois, com a perda destes, poderiam perder-se ícones de identidade cultural da região.

4 “O território é o espaço ocupado por uma pessoa ou grupo, é aquele no qual se vive e se

experimenta sua existência concreta e cotidiana”. (MARTINS, 2003, p. 44)

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3.2 tUrIsMo, DesenVoLVIMento reGIonAL e CAPItAL soCIAL

A fim de se entender o seu caráter multidisciplinar, deve-se ter em conta que o

turismo tem várias definições, além de envolver em seu estudo vários segmentos do

conhecimento humano, tais como: Psicologia, Economia, Sociologia, Educação,

Administração, Direito, Marketing, Antropologia, Geografia, História etc. Oscar de La

Torre, autor mexicano, descreve o turismo como sendo:

[...] fenômeno social que consiste no deslocamento voluntário e temporário de indivíduos ou grupos de pessoas que, fundamentalmente por motivos de recreação, descanso, cultura ou saúde, saem de seu local de residência habitual para outro, no qual não exercem atividade lucrativa ou remunerada, gerando múltiplas inter-relações de importância social, econômica e cultural. (BARRETO, 2003, apud Mtur, 2009, p. 49)

Buscando aprofundar as implicações do desenvolvimento da atividade turística,

tendendo à defesa do turismo cultural, apoia-se na obra de Panosso Netto, na qual,

estabelece-se que o sujeito do turismo é o ser humano:

Podemos dizer que turista [...] não é somente um objeto, mas sim um sujeito em construção, em contínua formação. Assim, o turismo pode ser visto também como a busca da experiência humana, a busca da construção do “ser” interno do homem, fora de seu local de experiência cotidiana, não importando se ele está em viagem ou se já retornou, pois esse ser continua a experienciar, a recordar e a viver o passado, independentemente do tempo cronológico. (PANOSSO NETTO, 2005, p. 30)

Para se entender a diferenciação entre o turismo cultural e os demais segmentos,

pode-se buscar entendê-lo pelas suas motivações, que podem ser classificadas em

duas grandes segmentações, o turismo motivado pela busca de atrativos naturais e o

turismo motivado pela busca de atrativos culturais. Pode-se, assim, compreender o

turismo cultural como todo turismo em que a primordial atratividade baseia-se em

algum aspecto da cultura humana, podendo este ser o artesanato, a história, o

cotidiano, uma apresentação/evento cultural (BARRETO, 2000)

No rol das propostas e diretrizes do Plano Nacional de Cultura, podem ser

encontradas interessantes conexões entre a preservação do patrimônio cultural

nacional, apoiados pelo desenvolvimento do Turismo Cultural Sustentável, valorizando

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a diversidade, pois o mesmo afirma que deve-se “realizar programas de incentivo e

fomento para a valorização e qualificação de centros históricos, espaços urbanos e

áreas rurais detentoras de patrimônio cultural” (MinC, 2008, p....). Como reconhecedor

da importância do turismo cultural, afirma que deve-se “desenvolver e aplicar métodos

de gestão do patrimônio material e imaterial em que sua proteção e interpretação

alimentem a identificação de novos produtos de turismo cultural”. Além das diretrizes

citadas anteriormente, vale destacar:

• Incentivar modelos de desenvolvimento turístico que respeitem as necessidades

e os interesses dos visitantes e populações locais, garantindo a preservação do

patrimônio, a difusão da memória sociocultural e a ampliação dos meios de

acesso à fruição da cultura;

• Realizar campanhas e programas integrados com foco na informação e

educação do turista para difundir o respeito e o zelo pelo patrimônio material e

imaterial dos destinos visitados;

• Instituir programas integrados que preparem as localidades para a atividade

turística por meio do desenvolvimento da consciência patrimonial, formação de

guias e de gestores. (MinC, PNC, 2008, p. 93)

Além do citado acima, na mesma obra apresenta-se que é importante que se

apoie e se zele pelo turismo baseado nas festas, tradições e crenças do povo brasileiro.

A preocupação com os impactos negativos, que o desenvolvimento da atividade

turística pode trazer, é pertinente, mas tais impactos podem ser mensurados e evitados

com o uso racional de ferramentas de planejamento:

o fortalecimento da educação patrimonial pode se tornar um fator de incremento ao turismo interno no país. A experiência democrática das expressões culturais representa atualmente um elemento imprescindível ao enriquecimento das trocas entre residentes e visitantes, além de contribuir para o desenvolvimento socioeconômico e a continuidade das manifestações que caracterizam as identidades locais. é preciso assegurar que os valores e o patrimônio das comunidades não se tornem meros reféns dos empreendimentos turísticos e dos interesses comerciais. (MinC, 2008, p.53)

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Após o exposto acima, pode-se afirmar que, atualmente, desde que se sigam

as boas prátices, planejadas e desenvolvidas por profissionais especializados na área

do turismo e com a participação democrática da comunidade, deve-se abandonar o

pré-conceito de que os patrimônios culturais não devam ser “turistificados”, mas sim,

usados como potenciais ferramentas do desenvolvimento regional.

o desenvolvimento regional, não entendido apenas como crescimento

econômico, tem, na cultura, uma de suas facetas, pois relaciona-se, também, a

processos de mudanças sociais. (SIEDENBERG apud DALLABRIDA, 2010). Já Souza

vai mais além, quando afirma:

Com efeito, para quem de fato quiser levar a sério a convicção de que o termo ‘desenvolvimento’, no essencial, e devidamente despido de sua carga ideológica conservadora (etnocêntrica5 e capitalistófila6), deve designar um processo de superação de problemas sociais, em cujo âmbito uma sociedade se torna, para seus membros, mais justa e legítima, o reducionismo embutido na idéia de ‘desenvolvimento econômico’ precisa ser energicamente recusado. (SOUZA, 2002, p. 18. Grifo no original)

Importa, talvez, observar o que diz Guy Hermet: “[...] na realidade, o

desenvolvimento social, a justiça, a igualdade, a democracia e a proteção do meio

ambiente contam tanto quanto o crescimento” (HERMET, 2002, p.81).

Contribuindo para a fundamentação sobre desenvolvimento regional, Dallabrida

afirma que este é “um processo de mudança estrutural empreendido por uma sociedade

organizada territorialmente, capaz de promover a dinamização socioeconômica e a

melhoria da qualidade de vida de sua população” (DALLABRIDA, 2010, p.111).

Buscando-se fundamentar a importância da cultura e da identidade, como

fatores de desenvolvimento regional/territorial, intencionando demonstrar tal relação,

apoia-se nas palavras de Scott:

Ao integrar os interesses da comunidade territorial, o território permite que seja concebido como agente de desenvolvimento, sempre que seja possível manter e

5 Refere-se a uma visão de mundo “ocidental”, capitalista e eurocentrista.6 Favorável/fundamentada no capitalismo.

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desenvolver a integridade de interesses territoriais nos processos de desenvolvimento e mudança estrutural. é uma concepção que reforça a importância da cultura e da identidade territorial local nos processos de desenvolvimento [...] (SCOTT apud DALLABRIDA, 2010, P. 128)

Ao se pensar numa região, como sendo formada por municípios, deve-se

pensar, também, na cooperação entre estas unidades administrativas, como importante

fator de desenvolvimento regional, Dowbor afirma:

Programas intermunicipais: Embora tradicionalmente se considere que quando um problema extrapola os limites de uma prefeitura deveria ser discutido com autoridades de governo estadual ou central, tornou-se evidente que a cooperação e coordenação intermunicipais podem produzir resultados imapctantes. (DOWBOR, 1998, p. 299, grifo no original).

Como cada unidade municipal, na região compreendida pela 26ª SDR, possui

um gestor cultural, seja ele em cargo específico para tal e (ou) a pessoa que chamou

à si esta responsabilidade, pode-se citar aqui, num esforço demonstrativo do ambiente

favorável que pode haver, para o desenvolvimento de algum projeto conjunto de

preservação do patrimônio material cultural desta região, o resultado de recente

pesquisa que apontou que a maioria dos gestores culturais, desta região, faz uma

estreita relação entre turismo, economia e desenvolvimento local e (ou) regional

(BOELL, MILANI e BIRKNER, 2010). Na referida pesquisa, 79% dos gestores identificam

a preservação do patrimônio cultural como potencial fator de preservação da história e

da cultura e atrelam isso ao desenvolvimento de produtos turísticos. No mesmo artigo,

demonstra-se que 57% dos gestores culturais entrevistados, ao serem indagados

sobre qual a relação entre cultura e desenvolvimento regional, responderam que isso

se daria pelo potencial turístico de cada localidade, região ou território. (BOELL, MILANI

e BIRKNER, 2010).

Ao se pensar nesses dados, parece haver um ambiente favorável à preservação

do patrimônio material cultural, na região da 26ª SDR. Não se discutirá, aqui, o grau de

autonomia administrativa e financeira que cada gestor teria à sua disposição, para

implementar ações com vistas à preservação do patrimônio, mas sim, a importância

da existência de capital social, regional, para a efetivação de tais ações.

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Se ações que envolvam uma certa “sinergia regional”, ou como descrito na introdução deste artigo, como a existência de capital social, entendido como catalisador sinérgico de ações por parte da sociedade, cabe a tentativa de explicar o significado de capital social, no texto de Linton, aborda-se interessante relação com a cultura:

Toda sociedade tem como fundamento um agregado de indivíduos. Uma das principais funções da cultura é transformar este agregado em sociedades, pela organização das atitudes e do comportamento dos seus membros. A cultura dá esta organização, proporcionando padrões para as atitudes de e comportamento, e técnicas para adestrar os indivíduos no exercício habitual destes padrões. A cultura assegura ainda mais a continuidade da vida social, proporcionando técnicas de inibição de tendências individuais que poderiam interferir com a cooperação [...] (LINTON, 2000, p. 390)

Ao se falar em cultura, talvez importe se pensar nas resistências que podem haver às mudanças, principalmente no âmbito das instituições desenvolvidas para gerir a nossa reprodução social, entre elas, empresas, órgãos de governo, OnG’s7, sindicatos, etc. Deva-se pensar na resistência cultural à própria mudança, bem como na possibilidade da existência de um conjunto de fatores que tendem à inércia, tais como, lutas por poder e prestígio, além de interesses corporativos, que fazem com que instituições possam ficar inertes, mesmo que seus membros estejam cientes e concordem com as mudanças objetivadas (DOWBOR, 1998).

Mudanças demandam a existência de certo nível de capital social, pois exigem esforços, cooperação, confiança, instituições participativas e estoques de capital social (PUTNAM, 2000). Pensando no capital social, de uma determinada região, como sendo a capacidade de vários segmentos institucionais desta sociedade, instâncias de governo, organizações da sociedade civil, atuarem de forma coordenada e sinérgica, a fim de resolver os problemas de sua região, não se deve esquecer da importância da participação popular nestes processos, sem apatia, que pode ser exemplificada na afirmação de MARTINS (2003, p. 25): “A falta de compromisso com a comunidade da qual se faz parte e a não integração nas mudanças que acontecem ou venham a acontecer nela são reflexo da apatia de um povo que pensa o Estado como pai distante, cuidando de todos os problemas.”

Abordando uma possível relação entre capital social e sustentabilidade

sociocultural, a apatia popular poderia ser revertida em participação, pois a

7 Organizações não governamentais.

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“sustentabilidade sociocultural implica o reconhecimento da contínua necessidade de

mecanismos de mediação entre as partes interessadas no desenvolvimento da

comunidade” (Mtur, 2008, p. 103). Além desta afirmação, pode caber outra: “Assegura

que o desenvolvimento aumente o controle das pessoas sobre suas vidas, preserve a

cultura e os valores morais da população e fortaleça a identidade da comunidade.”

(Idem, p. 43).

Finalizando o entendimento relacionado ao termo capital social, acredita-se que

a necessidade de se realizar fecunda ação objetivando a preservação de importante

parcela do patrimônio material cultural, citar-se-á um texto que explica sustentabilidade

político-institucional: “Assegura a solidez e a continuidade das parcerias e dos

compromissos estabelecidos entre os diversos agentes e agências governamentais

dos três níveis de governo e nas três esferas de poder, além daqueles atores situados

no âmbito da sociedade civil” (Mtur, 2008, p. 43).

O constructo textual, apresentado até aqui, pretende-se embasador do despertar

de ações regionais sinérgicas e emblemáticas, objetivando resgatar, valorizar, preservar

e revitalizar ícones do patrimônio cultural material da região da 26ª SDR, trazendo à

tona as reais possibilidades de tais patrimônios, futuramente, transformarem-se em

atrativos turísticos e, como tal, serem ferramentas de desenvolvimento, ao se pensar

na geração de renda conexa. Reforçando as conceituações de capital social, pensando

nas possíveis diferenças regionais, mesmo no tocante a “estoques” deste elemento,

pode-se citar Dallabrida, quando este afirma que “as abordagens sobre capital social

explicam as diferenças dinâmicas de desenvolvimento local, regional ou territorial,

segundo o capital presente nos territórios, o que resulta num maior ou menor dinamismo

socioeconômico-cultural”. (DALLABRIDA, 2010). No final deste artigo, abordar-se-á

especulações sobre esta afirmativa.

Conceituado capital social, suas implicações no desenvolvimento de uma

sociedade parecem determinantes e indissociáveis, além de ser fator primordial de

facilitador ou dificultador de projetos e ações que visem ao desenvolvimento.

Para se reforçar a importância da preservação do patrimônio cultural material

da 26ª SDR, apresentarão-se imagens de parcela deste.

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3.3 AMostrAGeM De IMAGens De CAPeLAs AntIGAs DA reGIão DA 26ª sDr

As imagens das capelas que podem ser visualizadas neste artigo, todas de

autoria do autor, situam-se nos municípios de Bela Vista do Toldo, Canoinhas,

Irineópolis, Major Vieira, Porto União e Três barras, todos localizados no Estado de

Santa Catarina e pertencentes à região administrativa da 26ª SDR.

Esses municípios, em sua maioria, têm nas atividades agrícolas, boa parcela

de sua renda e apresentam baixos níveis de IDH, se comparados com os demais

municípios da Região Sul do Brasil. Nos mesmos, o elemento étnico eslavo, polonês e

ucraniano é predominante, ao lado de descendentes de alemães, italianos, portugueses,

espanhóis, sírio libaneses, japoneses e os descendentes dos caboclos8, pioneiros

nesta região.

Facilmente distinguíveis, nas imagens que serão apresentadas a seguir, são os

elementos culturais ucranianos, pois suas capelas são singulares e representativas de

sua cultura. Nas demais, não se destacam diferenças de cunho étnico, pois foram

erigidas por fiéis de suas comunidades, misturando elementos dos povos que as

construíram. Como representantes de um catolicismo rústico e de presença anterior,

nesta região, destacam-se as pequenas capelas, grutas e pocinhos ditas de ‘São’ João

Maria9, que demandam estudo mais aprofundado e relacionam-se com os fatos

contemporâneos à Guerra do Contestado10. Tanta diversidade e significação, podem

atrair interessados em conhecê-las e estudá-las, seja pelo interesse histórico-cultural,

seja pela questão estética ou como atrativos extras, inseridos num roteiro turístico

regional. Tais considerações, tratar-se-ão ao final deste artigo.

8 Mistura do elemento indígena autóctene, com elementos portugueses, espanhóis e africanos.9 Com historicidade, foram três os monges que, cada um em épocas diferentes, percorreram o Sul

do Brasil, com grande repercussão na região do Contestado. Em ordem cronológica: João Maria D’Agostinis,

João Maria de Jesus (na verdade, Anastás Marcaf) e José Maria de Santo Agostinho (na verdade, Miguel

Lucena de Boaventura). No imaginário popular, todos foram ‘São João Maria’. (TONON, 2010)10 Conflito Social do início do século XX, considerado, por muitos autores, como um dos maiores

movimentos populares da história do Brasil.

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A seguir, um mostruário das imagens coletadas em inventário regional, realizado

pelo autor, entre os anos de 2006 a 2010:

Figura 1. Capela de S. J. M. na localidade de Bonetes, Canoinhas, SC.

Figura 2. Detalhe do cemitério em anexo, Bonetes, Canoinhas, SC.

Figura 3. Capela de S. J. M. em de Paciência dos Neves, Canoinhas, SC.

Figura 4. Gruta de S. J. M. em Serra dos Borges, Bela Vista do Toldo, SC.

Figura 5. Cruzeiro de S. J. M. em Rio do Tigre, Canoinhas, SC.

Figura 6. Cruzeiro de S. J. M. em Fazenda Evasa, Canoinhas, SC.

Figura 7. Bandeira do Divino, em Paciência dos Neves, Canoinhas, SC.

Figura 8. Detalhe de altar na capela de S. J. M. na localidade de Sta. Emídia, Rio D’Areia do Meio, Canoinhas, SC.

Figura 9. Altar da capela de S. J. M. em Tira Fogo, Bela Vista do Toldo, SC.

Figura 10. Altar na Gruta de S. J. M., em S. dos Borges, Bela Vista do Toldo, SC.

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Figura 11. Detalhe da capela de S. J. M. em Tira Fogo, Bela Vista do Toldo, SC.

Figura 12. Interior da capela de S. J. M. na localidade de Sta. Emídia, Rio D’Areia do Meio, Canoinhas, SC.

Figura 13. Gruta de Sta Emídia, dedicada à S. J. M., na localidade do mesmo nome, em Três Barras, SC.

Figura 14. Detalhe de um pocinho de S. J. M., anexo à capela em Sta Emídia, Rio D’Areia do Meio, Canoinhas, SC.

Como se pode observar nas imagens acima, alguns elementos parecem ser

constantes e característicos, nestes locais sagrados, representantes da fé em S. J. M.

(São João Maria). Nas figuras 1 e 3, observa-se a simplicidade arquitetônica, talvez

representativa das condições socioeconômicas dos que as erigiram. Nas figuras 4 e

13, o interessante é a adoração que os seguidores de S. J. M. fazem das grutas onde

os monges costumavam se abrigar. Já nas figuras 5 e 6, pode-se observar a similaridade

no cuidado dos populares, ao proteger o local, sagrado para eles, com cercas. Nas

Figuras 7 e 11, destacam-se elementos inerentes às capelas de S. J. M. a presença

constante de cruzes, bandeiras do Divino e cruzeiros; muitas dessas capelas foram

erigidas com a intenção de proteger os cruzeiros erigidos pelos monges e (ou), com

certo grau de certeza, pelas afirmações dos moradores entrevistados, essas cruzes e

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cruzeiros são, no mínimo, contemporâneos à passagem dos monges. Os altares desse

locais sagrados possuem um similaridade e características inerentes à práticas que

podem ser reconhecidas como sincretismo religioso, pois, além da presença constante

de imagens do monge S. J. M.11, encontram-se, também, representações da pomba do

Divino Espírito Santo e demais imagens do catolicismo, seja este o antigo,

contemporâneo das tradições anteriores à chegada dos primeiros sacerdotes

franciscanos á região, ou de tradições mais recentes, como crucifixos, estatuetas de

São Sebastião, Nossa Senhora Aparecida, algumas, com a sua parte superior

arrancada. Finalisando, na figura 14, visualiza-se um pocinho de S. J. M., com uma

estrutura, erigida pelos fiéis, para a proteção de suas águas, consideradas milagrosas

pelos seguidores dessa tradição religiosa. Lembrando que, muitas das capelas de S. J.

M., foram erigidas com a finalidade de proteger cruzeiros, grutas e (ou) pocinhos. Tais

estruturas, com esse conjunto de elementos e características singulares, somente são

encontradas no Sul do Brasil. Só isso já pode ser considerado ao se pensar em sua

proteção e possível uso, como atrativos culturais e (ou) religiosos.

Nas imagens a seguir, podem ser observados vários aspectos interessantes do

ponto de vista cultural, arquitetônico e (ou) pictóricos. Nas figuras 15, 21, 26, 28, 29

e 30, destacam-se os elementos culturais eslavo-ucranianos, tanto do rito ortodoxo

quanto do rito católico-ucraniano, com vários e singulares símbolos de sua cultura.

11 A imagem mais famosa e usada, pelos fiéis, é a do monge João Maria de Jesus, retratada,

provavelmente, pelo fotógrafo Claro Jansson.

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[ 66 ]

Figura 15. Capela antiga de madeira, do rito católico-ucraniano, em Legrú, Porto União, SC.

Figura 16. Capela católica antiga, de madeira, em estilo norte-americano, no IBAMA, em Tres Barras, SC.

Figura 17. Capela católica, de madeira, em São Sebastião do Timbózinho, Irineópolis, SC.

Figura 18. Capela católica, em alvenaria, em Rio dos Pardos, Canoinhas, SC.

Figura 19. Capela católica antiga, de madeira, em Pinheiros, Canoinhas, SC.

Figura 20. Capela católica antiga, de madeira em São Roque, Major Vieira, SC.

Figura 21. Antigo cemitério da uma capela do rito ucraniano-ortodoxo, em 1º plano uma cruz ortodoxa, na localidade de Xaxim, Porto União, SC.

Figura 22. Capela católica, de madeira, em São José do Maratá, Porto União, SC.

Figura 23. Capela católica antiga, de madeira, na localidade de São Miguel/Rio D’Areia do Meio, Canoinhas, SC.

Figura 24. Interior da capela de São Miguel, Rio D’Areia do Meio, Canoinhas, SC.

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[ 67 ]

Figura 25. Interior da capela luterana do distrito de Marcílio Dias, Canoinhas, SC.

Figura 26. Capela antiga de madeira, do rito ucraniano-ortodoxo, em 1º plano o cemitério anexo, na localidade de Xaxim, Porto União, SC.

Figura 27. Interior da capela católica, erigida em pedras e alvenaria, na comunidade de Aparecida, Canoinhas, SC.

Figura 28. Capela, do rito católico-ucraniano, antiga, de madeira, na localidade de São Demétrio, Rio D’Areia do Meio, Canoinhas, SC.

Figura 29. Detalhe do altar e do interior da capela de rito católico-ucraniano em Legrú, Porto União, SC.

Com uma arquitetura singular e fortemente influenciada por elementos norte-

americanos, a capela de Nossa Sra. Aparecida (Figura 16), localizada na sede da

FLONA/IBAMA, também merece visitação e cuidados em sua conservação. Na figura

17, visualiza-se a frente da Capela de São Sebastião do Timbózinho, considerada,

segundo alguns pesquisadores, como sendo o 2º maior templo, em madeira, do

Estado de Santa Catarina. Nas figuras 18n e 19, pode-se comparar o estilo

arquitetônico e observar a semelhança entre as duas construções, apesar de uma

ser erigida em alvenaria e a outra, em madeira, talvez, os primeiros templos em

alvenaria, nesta região, seguissem o mesmo estilo/planta dos de madeira, sendo

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[ 68 ]

utilizado, apenas, materiais diferentes na construção. A capela de São Roque, em

Major Vieira (Figura 20), é um exemplo da beleza e singularidade arquitetônica dos

templos erigidos em madeira, na região da 26ª SDR e da importância em se haver

ações de preservação dos mesmos, pois este é o último, de vários, que existiam,

neste estilo, naquele município, bem como na referida região. As semelhanças no

estilo arquitetônico dos templos, requereriam um estudo mais aprofundado, bem

como vários aspectos aqui abordados, mas pode-se observar, como nas figuras 22

e 23, a semelhança, apesar da distância entre eles, mais de 100km, em dois

municípios distintos. Já na figura 24, observa-se a riqueza pictórica que pode ser

encontrada em vários dos templos, principalmente os mais antigos, as figuras 27 e

29 bem representam tal riqueza cultural e arquitetônica. Na figura 25, apresentando

uma menor variedade pictórica, mas nem por isso pode ser considerado menos

belo, visualiza-se o interior de um típico templo luterano, onde a cultura desta tradição

religiosa apresenta singularidades e despojamento.

As imagens apresentadas, neste trabalho, são apenas uma amostragem do

inventariado, pelo autor, em pesquisa realizada nos municípios que compõem a 26ª

SDR, mas que podem representar parcela significativa da riqueza cultural ameaçada,

quer pela falta de conscientização das comunidades, quer pelo descaso de algumas

autoridades ou pela falta de recursos, sejam humanos e (ou) financeiros, além de

tecnológicos especializados, para a sua adequada preservação.

Uma ação de grande porte, com vistas à preservação de tais riquezas, parece

tarefa de consenso regional, que demandaria um bom nível de capital social e esforço

sinérgico, para tal, como será descrito ao final deste trabalho.

ConsIDerAçÕes FInAIs

Após a visualização das imagens anteriores, parece inegável o valor histórico,

cultural e estético dos locais apresentados, urge aqui, informar que estes são muito

mais, apenas uma parcela foi apresentada. Então, o que poderia estar “faltando” para

que tais belezas e locais possam vir a ser, num futuro não muito distante, locais de

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[ 69 ]

visitação turística? Além do seu papel de locais sagrados, o que não é a tônica do

presente trabalho, os aspectos simbólicos, pictóricos, étnicos, arquitetônicos, entre

muitos outros, poderiam justificar, plenamente, um grande projeto de preservação e

posterior aproveitamento deste rico patrimônio cultural, conjuntamente com os demais

patrimônios laicos, ou não religiosos, que resistem, quase sempre, heróicos e

singulares, distribuídos pelos seis municípios que compõem a 26ª SDR, muito destes,

fadados ao completo desaparecimento, seja pela ação do tempo, pela falta de recursos

financeiros e (ou) tecnológicos, seja pela especulação imobiliária e a falta de

conscientização da comunidade regional, além de que, “através das edificações

arquitetônicas podemos encontrar o valor histórico e a identidade de um povo, que

necessita de um conhecimento mais amplo para preservar a nossa herança cultural”,

como bem lembraram Sussembach e Gevaerd, (2010, p. 162), na obra Cultura: faces

do desenvolvimento.

Como afirmado explicitamente, no início e durante este trabalho, o mesmo é de

caráter especulativo e não conclusivo, mas objetiva, de forma teórica e acadêmica,

despertar o Capital Social da região citada para que se empreendam medidas urgentes

a fim de que não se perca, ainda mais, do patrimônio cultural regional, ora por descaso,

ora por desconhecimento, seja por parte das autoridades, seja por parte da comunidade

regional como um todo, salvo raras exceções. Pois que o desenvolvimento, muitas

vezes confundido, apenas, com a ideia de expansão econômica quantitativa, e que não

pode ser assim entendido, como apresentado durante este trabalho, reforça-se aqui,

nas palavras de Dallabrida, quando este afirma que:

[...] considerando a concepção de desenvolvimento, não só há uma relação entre economia, cultura e desenvolvimento. A dimensão econômica e a cultura, juntamente com as dimensões social, política, espacial, ecológica e tecnológica, são elementos constitutivos dos processos de desnvolvimento. (DALLABRIDA, 2010, p. 121)

Como poderiam ser mais valorizado e, por consequência, melhor preservado,

o patrimônio cultural da 26ª SDR? O que falta, identificação da sua própria população,

com os seus ícones, baixo nível de sentimento de pertença, a este território? Cuidadosa

investigação parece ser necessária, pois, como diz Milani:

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Para conhecer uma realidade e nela sua identidade, a qual ao mesmo tempo mantém e transforma seu sentimento de pertence, é preciso desvelar os interferentes provenientes da miscigenação étnica, religiosa, filosófica e ideológica e os reflexos da globalização do mundo atual, que dão um traço plural à identidade.(MILANI, 2010, p. 240)

Dentro das possibilidades investigativas aqui apresentadas, a abordagem do

tema não se esgotaria apenas num ensaio teórico, necessário parece que se aprofunde

tal estudo, seja de forma bibliográfica, seja de forma empírica, mas que deve ser

abordado, futuramente, de forma mais oportuna.

Como possível “caminho” a ser explorado de forma prática, como desafio à

uma ação sinérgica e coordenada regionalmente demonstrando, assim, a existência de

certo nível de Capital Social na região da 26ª SDR, o autor sugere o uso do patrimônio

cultural, aqui de forma mais explícita, o arquitetônico/material, como possível

ferramenta de desenvolvimento, seja na valoriação/preservação do referido patrimônio,

seja na sensibilização/conscientização, da população regional, no tocante a uma

possível “alavancagem/reforço” de sua identidade e sentimento de pertença e,

inegavelmente, aos ganhos econômicos/geração de renda, também elementos do

desenvolvimento regional. Importa, aqui, desvencilhar-se de qualquer preconceito

inerente à utilização de patrimônios culturais, para fins de projetos culturais e turísticos

voltados à geração de renda.

Muito se tem falado na problemática da “comercialização da cultura”, mas,

como já foi anteriormente colocado, as próprias diretrizes atuais do Plano Nacional de

Cultura apontam no sentido inverso, na valorização da cultura, não a transformando

em mero “produto”, mas sim, em atrativo que pode e deve ser usado, com

responsabilidade e planejamento, dando sustentabilidade à sua preservação. Doutor

em Psicologia Social José Clerton de Oliveira Martins, assim o expressa:

Algumas críticas já foram feitas ao processo de transformação do legado cultural transformado em bens de consumo. No contexto regional, no qual a história é uma grande desconhecida, os feitos heróicos do povo ficam enterrados no esquecimento e sobrepostos aos valores das classes dominantes, enquanto o povo, de forma geral, desconhece todo o seu processo em decorrência de um cotidiano voltado para a sobrevivência dura [...] (MARTINS, 2003, p.46).

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[ 71 ]

Reforçando a importância de se desenvolver o turismo, com vistas à preservação

do patrimônio cultural de determinada região, não se deve esquecer de que o ambiente

que é voltado ao turista também o é para os residentes, em seus momentos de lazer, e

sendo pensado e planejado desta maneira é que ele pode ser sustentável, auxiliando na

preservação de ruas, cidades, até mesmo propiciando o incentivo à encenações de

feitos históricos e até de guerrilhas (MARTINS, 2003). Complementando tal afirmação,

o mesmo autor afirma:

Desta forma, as populações terão a oportunidade de entender o seu passado, resgatando assim suas referências históricas, que, fatalmente, as remeterão às suas identidades, ou gerarão curiosidades e buscas de conhecimento mais profundos, que contribuirão de alguma forma para uma rememorização da identidade. [...] O fenômeno do turismo sai da exploração e chega à valorização do fazer e ser local, partindo do homem local. Isso agrega outros fatores/valores que levarão, em breve o turismo regional a uma sustentabilidade. (MARTINS, 2003, p.46)

Cabe aqui, reforçar que a ideia central não é a busca do lucro, mas sim, a de

prover formas de tornar esse patrimônio, cultural, sustentável “a idéia não é manter o

patrimônio para lucrar com ele, mas lucrar com ele para conseguir mantê-lo.”

(BARRETO, 2003, p. 17). Atividades geradoras de renda, por exemplo, podem ser

desenvolvidas pela comunidade, em especial pelos jovens e mulheres, relacionadas à

gastronomia e ao artesanato. Os menos flexíveis poderão não ver em curto prazo

possibilidades de investimento local, mas observa-se que, onde o turismo se

desenvolve, de uma forma ou de outra, dá-se o despertar de uma consciência de lugar,

de “ser local” e do despertar de um sentimento de orgulho, de se pensar em “cuidar

melhor do seu lugar”. (MARTINS, 2003)

Finalizando, ao se pensar nos desafios que um mundo globalizado impõe às

regiões, parece importar que se desenvolvam ações no sentido de se preservar

culturas e identidades, na tentativa de se contrapor à avalanche da mundialização,

pois, como bem lembra Hall (2002, p. 14) “As sociedades modernas são [...]

sociedades de mudança constante, rápida e permanente” e, no afã de se preservar

ícones de uma possível identidade regional que, com isso poderia “retro-alimentar”

o processo de desenvolvimento territorial/regional da referida região que, neste

esforço acadêmico, apresentou-se o turismo como potencial ferramenta para tal

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mas, que na visão do autor, tal possibilidade somente se concretizará se houver uma

“concertação” regional, pois a responsabilidade por tal ação não é exclusiva dos

governos (federal, estadual ou municipal), as da sociedade organizada como um

todo. Deveriam empresários, profissionais liberais, organizações não governamentais,

artistas, líderes religiosos, pesquisadores, instituições de ensino, sindicatos e

demais comunidades organizadas, se comprometer com a implantação e com os

resultados advindos, demonstrando, assim, se não a existência de um capital social

regional, pelo menos, uma boa dose de interação participativa da sociedade e a

busca de uma alternativa de desenvolvimento.

reFerênCIAs

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Page 74: Capital_Social Com ISBN
Page 75: Capital_Social Com ISBN

[ 75 ]

4CAPItAL HUMAno e CULtUrAL: As noVAs teCnoLoGIAs DesenVoLVIDAs PArA A PreserVAção AMBIentAL LoCAL

Filipe de souza dos santos1 Marcia Moro2

O desenvolvimento é intangível, porém por meio de planejamento e do uso de

tecnologias apropriadas, que respeitem os aspectos históricos e culturais locais e

preservando o meio ambiente, pode-se maximizar o potencial das regiões. Para auxiliar

nesse processo entra em cena o Capital Humano, mediante de investimentos na

educação, o Capital Cognitivo (pesquisas), na formação de agentes empreendedores

e no respeito à cultura local e ao meio ambiente, visa-se a melhorias significativas na

vida das pessoas, buscando uma sociedade justa e de qualidade. Mas o que é

necessário para a criação das tecnologias de preservação ambiental? Qual é o

investimento feito?

A preocupação com o meio ambiente é assunto nas conferências realizadas

pela ONU para o século XXI, que têm como base o documento criado na Rio 92, a

Agenda 21. O seu sucesso depende em grande parte dos países desenvolvidos, para

que por meio de planejamento e de medidas preventivas se possa promover a

diminuição da poluição, desenvolvendo novas tecnologias que auxiliem neste

processo e, para tanto, entram em cena o Capital Social, Humano, Cultural, Cognitivo

e o Econômico.

1 Formado em Geografia pela Fafi-União da Vitória, residente em São Mateus do Sul-PR, cursando

mestrado em desenvolvimento regional da UnC.2 Formada em Matemática pela Unicentro-Guarapuava, residente em São Mateus do Sul-PR,

cursando mestrado em desenvolvimento regional da UnC.

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4.1 CAPItAL soCIAL, HUMAno e CULtUrAL, PreserVAção e DesenVoLVIMento

O desenvolvimento encontra-se atrelado às decisões tomadas pelos agentes

envolvidos, por intermédio daqueles que representam o país, uma união entre o Capital

Social e o Estado. é pelas suas decisões que se promove o aumento da capacidade ou

das possibilidades de crescimento local, é um processo contínuo que necessita de

tempo, condições e apoio da sociedade, e para promovê-lo não existe uma receita a

ser seguida, pois cada região tem suas particularidades. Para Lima e Oliveira (2003),

pensar em desenvolvimento regional é, antes de tudo, pensar na participação da

sociedade no planejamento contínuo, na maximização do seu potencial local e na

distribuição dos frutos desse processo de crescimento.

Capital social é definido como as características de organização social, tais como confiança interpessoal, normas de reciprocidade e redes solidárias, que capacitam os participantes a agir coletivamente e mais eficientemente, na busca de objetivos e metas comuns. (PATTUSSI et all., 2006, p. 1543)

Para Oliveira (2002), “o desenvolvimento deve ser encarado como um processo

complexo de mudanças e transformações de ordem econômica, política e,

principalmente, humana e social (...)”. Uma economia sustentável é essencial para que

uma região evola, ao respeitar suas particularidades vemos que as regiões respondem

de acordo com a sua cultura e com a importância que ela dá à promoção dos agentes

empreendedores locais. Tudo depende dos conceitos adotados para definir metas que

promovam o potencial humano; visa-se a um desenvolvimento que altere a qualidade

de vida das pessoas, na procura pela modernidade. Para tanto, transformações por

meio de inovações auxiliam na melhora da sociedade.

Boisier (2000), ao analisar o crescimento que ocorre nas regiões, diz que este

deve ser convertido em desenvolvimento e para isso são necessários estudos,

planejamentos, estratégias de implantação, controle do mesmo e da análise dos

resultados, o Capital Humano. Ressalta que este processo se dará em longo prazo e

que cada sociedade tem suas características próprias, logo, devem ser tratadas de

maneira diferente.

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Para Vargas (2008), “as mudanças econômicas das últimas décadas têm

gerado uma sociedade na qual o principal recurso é o conhecimento (...)”. O Capital

Cognitivo, assim como o desenvolvimento, é intangível. O ser humano tem capacidade e

potencial para criar, inovar e destruir, está sempre em busca de novas tecnologias, o que

veremos é como as tecnologias podem ser criadas para a preservação ambiental.

No mesmo sentido, Fitz-enz (2001) apud Schultz, ao falar de sua preocupação

com a situação precária das nações subdesenvolvidas, destaca que o meio para

superar essa crise é focar no conhecimento, esse recurso, o conhecimento gerado,

torna-se um dos principais da atualidade.

(...) a fonte de riqueza deixou de se concentrar essencialmente nos fatores econômicos representados por ativos físicos como: terra, dinheiro, máquinas etc. e passou a reconhecer o valor de outros elementos intangíveis, como habilidades e conhecimento dos empregados, capacidade de inovação, administração de processos internos, valores e normas coletivas da organização, redes de relacionamentos, carteira de clientes, pesquisa e desenvolvimento, tecnologia, marcas, franquias etc. Os elementos intangíveis têm sido denominados na literatura de capital intelectual (CI), ativos intangíveis, ativos de conhecimento, recursos intangíveis ou simplesmente intangíveis (...). (VARGAS, 2007, p.16)

Assim, o ser humano tem capacidade e potencial para criar tecnologias, mas

para isso necessita de meios, além do aspecto cognitivo desenvolvido por uma

organização inteligente, criativa e inovada, necessita de investimentos, Edvinsson e

Malone (1998) definem que “toda capacidade, conhecimento, habilidade e experiência

individual dos empregados e gerentes estão incluídos no termo Capital Humano”.

Somos espectadores e protagonistas de uma extraordinária velocidade no desenvolvimento dos mais variados ramos do conhecimento humano, rapidez esta representada especialmente pelos sucessivos aprimoramentos e inovações nos campos científico e tecnológico. Inseridos nesse contexto de mudanças e transformações técnicas, sociais e econômicas, acentua-se a importância de descobrir novas metodologias que forneçam condições para que essas áreas se desenvolvam (...). (BORTOLOTTI, 2003, P.15)

Ao falar em desenvolvimento, Boisier (2004) diz que este deve ser estabelecido

respeitando cinco dimensões: a paz, a economia, a justiça, o meio ambiente e a

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democracia. Desse modo, os projetos ambientais que têm como propósito promover

a proteção e a preservação dos recursos naturais, deve respeitar os aspectos históricos

e culturais da região, através de uma educação que estimule a criação sem destruir,

que ensine a desenvolver métodos de produção que não agridam a natureza.

Então, ao promover o Capital Humano temos condições intelectuais de

desenvolver projetos e tecnologias de proteção ambiental, falta apenas o interesse dos

empresários em investir e aplicar este trabalho, posição que na conferência realizada

em 2009 pela ONU já ficou clara.

4.2 MeDIDAs PArA A PreserVAção AMBIentAL, teCnoLoGIAs e DesenVoLVIMento

A grande preocupação da oNU, no momento, é a preservação ambiental

mundial. Os países de primeiro mundo se desenvolveram industrialmente sem se

preocupar com os impactos ambientais, sem políticas de prevenção da poluição. Os

grandes empresários preocupados apenas com o lucro não estão interessados em

financiar estudos para a criação de novas tecnologias que auxiliem a minimizar esse

problema. A vida dos seres humanos na sociedade capitalista se faz:

Se, por um lado, o espaço geográfico produz-se em função da reprodução da vida humana, por outro lado, permite o desenvolvimento da produção capitalista. A Cidade aparece como a justaposição de unidades produtivas, através da articulação entre os capitais individuais e a circulação geral. Ela permite a integração de diversos processos produtivos (centros de intercâmbio e serviços; mercado de mão-de-obra, etc.), implicando uma configuração espacial própria a garantir a fluidez do ciclo do capital (CARLOS, 2001, p. 41).

No sistema capitalista, ao explorar, esgotam o potencial biológico das regiões

(exemplo as indústrias madeireiras), quando atingem um pico onde os lucros são

reduzidos procuram outra região, o Capital Humano é apenas visto como mão de

obra barata.

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No ano de 1972, a Organização das Nações Unidas estabeleceu algumas regras

sobre a questão ambiental para todo o mundo, a partir daí iniciou-se um processo de

criação de estratégias para uma possível Gestão Ambiental. Desde então foram muitas

as Conferências para debater temas relacionados ao meio ambiente, principalmente

entre os países mais ricos do mundo, os quais são os mais poluidores.

Com a assinatura da Agenda 21 no Rio de Janeiro em 1992, foram

preestabelecidos alguns planos de ação para serem implementados para que se

conseguisse um plano de desenvolvimento comprometido com a preservação

ambiental. Nessa ocasião, 172 países assinaram esse acordo, que permitiu a criação

de políticas de sustentabilidade que não comprometessem a qualidade de vida das

populações futuras.

As conferências atuais para o meio ambiente têm como base esse documento

mas, no momento em que ele foi feito, a meta era reduzir apenas 5% dos gases

lançados pelos países entre 2008 e 2012. Já no final do ano de 2009, na Conferência

de Copenhague, as autoridades de diversos países reuniram-se para discutir sobre as

emissões de gases causadores do efeito estufa e sua possível diminuição em nível

global. As propostas dessa conferência são a de redução, até o ano de 2020, de 25%

a 40% na emissão de gás maléficos à sociedade, assim como à natureza.

Os Estados Unidos nos últimos anos alegaram que se fossem reduzidas suas

emissões de gases, a economia norte-americana seria muito prejudicada. Porém mais

recentemente o presidente Barack Obama sugeriu que seu país teria de diminuir as

emissões em até 80% até o ano de 2050.

Ao longo dos tempos as mudanças climáticas estão se tornando cada vez mais

frequentes e alguns autores alegam que isso se deve à ação humana no espaço. Em

longo prazo, alterações são uma ameaça constante, e em alguns locais a degradação

do meio ambiente é cada vez maior, principalmente onde as políticas são menos

eficazes e por falta de recursos o seu Capital Cognitivo é baixo.

A Educação Ambiental tem a tarefa de mostrar que com a utilização racional

dos recursos naturais pode-se produzir sem agredir; ela será o vínculo entre a sociedade

e as tecnologias, afinal sem o apoio e a confiança do Capital Social pouco ou nada

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poderá ser feito. Ainda, o Capital Humano, o agente inovador, que passa a desenvolver

tecnologias viáveis para a sociedade na qual está inserido, deve respeitar a cultura

local, utilizando elementos presentes em seu meio. Logo, aquele que tem potencial

econômico e que está cercado de tecnologia de ponta ou até mesmo o que trabalha

com material reciclável pode criar tecnologias que preservem o meio ambiente.

Já na América do Sul, onde a ONU prevê consequências cada vez mais

devastadoras ao meio ambiente, boa parte dos recursos desses países deverá, nos

próximos anos, ser destinada para o aumento da fiscalização, assim como a criação e

uso de tecnologias que possam auxiliar na minimização dos impactos ambientais.

Daly (1974) assinala, porém, que a criação de algumas tecnologias podem vir

a se tornar um problema.

(...) maníacos pelo crescimento (...) normalmente oferecem um sacrifício ao deus da tecnologia: certamente o crescimento econômico pode continuar indefinidamente (...). O alegado ‘crescimento exponencial da tecnologia’ (...) é mais parte do problema do que sua solução (DALY,1974, p.18).

Daly (1974) propõe então que as mudanças na produção tecnológica sejam

qualitativas, para que se possam economizar os recursos naturais preservando assim

o meio ambiente.

Começa-se a perceber então a importância do apoio mundial e local para a

criação de novas tecnologias que auxiliem na diminuição da poluição. Todos os países

devem investir em seu Capital Humano na busca de soluções para a melhora da

qualidade de vida da sua população. Para Cappelletti citado por Kropotkin, a luta pela

vida e o apoio mútuo são fatores que estão em um mesmo nível na evolução, firmados

pelo livre acordo em que o homem representa sua sociabilidade, portanto, o apoio do

Capital Social torna-se essencialmente necessário.

Algumas ideias discutidas em Copenhagen para a preservação ambiental por

meio de tecnologias são: a compostagem com o biogás; o aquecimento solar; a

utilização de prédios abandonados para atividades as mais diversas como sociais e

culturais; ações de Educação Ambiental nas escolas.

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Palsule (1994) cita que, na Europa em Borlange (Suécia), uma cidade pequena

de cerca de 50.000 habitantes tem aproximadamente 90% de suas casas aquecidas

por energia renovável com biogás que é oriundo do lixo produzido e pela água quente

que é liberada pelas indústrias.

Em locais abandonados após a Segunda Guerra Mundial, como em Leipzig na

Alemanha, houve uma ação cooperativa de cunho ecológico para que ocorresse uma

ocupação de velhos prédios, renovando a cidade, além de se fazer uma coordenação

para o uso racional da água, o cuidado com as construções, a utilização da energia

com responsabilidade e o uso dos transportes coletivos de qualidade ofertados para

toda a população diminuindo a poluição.

Essas ações que foram implantadas na Europa podem e servem de modelo

para outras regiões, muito embora as diferentes realidades e a insuficiência de recursos

financeiros possam interferir diretamente neste processo. Deve-se, portanto, fazer o

possível com os recursos presentes em cada região, mas, para isso, precisa-se de

pessoas criativas que disponibilizem o seu tempo como agentes criadores, executores

e que com o apoio e a compreensão da sociedade durante este processo, que levará

tempo, possa-se tornar possível a preservação da identidade da região. Afinal, como

se diz, na natureza nada se perde nada se cria, tudo se transforma.

As políticas de preservação com a utilização de novas tecnologias obtidas pelo

Capital Humano são elementares para que o desenvolvimento possa ocorrer em um

determinado local. Lucas (1988) identificou falhas principalmente na igualdade e

disponibilidade de tecnologias entre os países ricos e pobres. Segundo ele, se a mesma

tecnologia estivesse disponível em todos os países, o Capital Humano não seria

privilégio dos países ricos, portanto, os avanços tecnológicos são possíveis desde que

haja investimentos na área cognitiva (educação).

Para Mendonça (2004):

Somente as ações desenvolvidas do ponto de vista da holisticidade da temática é que conseguem apresentar resultados satisfatórios no tocante as tentativas de recuperação e preservação dos ambientes degradados locais, regionais ou planetário – a biosfera (MENDONçA, 2004, p.70).

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[ 82 ]

O equilíbrio ambiental depende das políticas que serão implementadas na

região, havendo realmente a participação governamental. Para tanto, é necessária uma

maior e melhor fiscalização, pois as tecnologias disponíveis são extremamente

atrasadas e poluidoras, a população, a sociedade civil organizada, precisa discutir e

exigir que as questões ambientais sejam atendidas a priori e por fim a sua região pode

vir a se tornar referência nas questões ambientais.

Atualmente o uso indiscriminado dos recursos naturais está exercendo forte

pressão sobre a diversidade biológica; verifica-se a possibilidade de mobilidade dos

meios e das práticas para a implementação de novas regras para a preservação

ambiental. A começar pela Educação Ambiental, que terá como tarefa transmitir a

viabilidade da utilização racional dos recursos, será o instrumento que irá assessorar

e apoiar a criação de novas tecnologias. Portanto, ela será o vínculo entre a sociedade

e as tecnologias, uma vez que sem o apoio e a confiança do Capital Social pouco ou

nada poderá ser feito.

ConsIDerAçÕes FInAIs

os dados elementares do desenvolvimento são a liberdade, a criatividade e a

responsabilidade, atrelados a eles temos o Capital Humano, a cultura local, o agente

empreendedor mediante inovações tecnológicas. Cada região se desenvolve de acordo

com suas necessidades e regras, não se pode estabelecer um padrão e tampouco

definir um limite de tempo para sua execução, o desenvolvimento é intangível, mas

visa à melhoria da qualidade de vida da população, ou pelo ponto de vista econômico,

aumenta o poder aquisitivo da sociedade.

As políticas ambientais estão sendo cada vez mais discutidas, porém são

muitas as divergências de informações. Atualmente é cada vez mais importante a

presença de políticas públicas e de tecnologias que promovam a preservação ambiental.

Com os debates realizados nas Conferências Ambientais, a preocupação por parte de

todos hoje é maior, mas a sustentabilidade não está garantida.

Page 83: Capital_Social Com ISBN

[ 83 ]

As relações entre sociedade e o meio ambiente devem ser sustentáveis e,

apesar de cada local possuir culturas diferentes, de as pessoas viverem em realidades

diversas, estas podem criar e usar tecnologias diferentes desde que atinjam o objetivo

proposto. Pois o ser humano tem a capacidade de criar alternativas para que se possa

desenvolver uma região preservando.

Atualmente o uso indiscriminado dos recursos naturais está exercendo pressão

forte sobre a diversidade biológica. Se queremos equilíbrio e um futuro de qualidade,

devemos assumir um compromisso com a natureza.

Logo, o Capital Econômico é o agente financiador e o Capital Humano é a

ferramenta que vai atrelar desenvolvimento/tecnologia/preservação, pela via do Capital

Cognitivo, o conhecimento avança e é ampliado por meio das pesquisas que visam

despertar a consciência para a responsabilidade ambiental correta. Para tanto, a cultura

deve ser respeitada e promovida para que as gerações futuras recebam um local que

garanta uma boa qualidade de vida, e isso é tarefa de todos, governo e sociedade.

reFerênCIAs

BOISIER, S. el desarrollo territorial a partir de La contruccion de capital sinergético. Curso internacional Ciudad Futura II, Rosario, Plan Estratégico Rosario. Rosario, mayo de 2000.

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Arte, CULtUrA e DesenVoLVIMento

Page 86: Capital_Social Com ISBN
Page 87: Capital_Social Com ISBN

[ 87 ]

5FUnCIonAMentos Do ArtÍstICo: DIsCUrso e MeMÓrIA eM GUerrA, PAZ e ContestADo De HeLoAnA terPAn

Nádia Régia Maffi Neckel1

IntroDUção

Pretendo mobilizar neste texto o dispositivo teórico-analítico da Análise do

Discurso (AD), que, no meu entendimento, especializa a compreensão de diferentes

materialidades significantes. Apesar do fato que a AD, em seus primeiros percursos,

ocupou-se principalmente de materialidades verbais como, por exemplo, o discurso

político. No entanto, é preciso considerar que a própria episteme constitutiva dessa

(des)disciplina, dessa disciplina de entremeio, reclama diferentes materialidades

constitutivas dos sentidos e dos sujeitos. Sempre em constante deslocamento.

Fora, justamente nesse escopo teórico, tecido no deslocamento da linguística,

do materialismo histórico e da psicanálise, que a AD se constitui num terreno fértil para

se pensar nos gestos de interpretação próprios do artístico.

A formulação Discurso Artístico (DA) está cunhada nas formas de funcionamento

do discurso pensadas por orlandi

O discurso lúdico é aquele em que seu objeto se mantém presente enquanto tal (enquanto objeto, enquanto coisa) e os interlocutores se expõem a essa presença, resultando disso o que chamaríamos de polissemia aberta (o exagero é o non sense). O discurso polêmico mantém a presença do seu objeto, sendo que os participantes não se expõem, mas ao contrário procuram dominar seu referente, dando-lhe uma direção,

1 Doutora em Linguística pela Unicamp/SP, Mestre em Ciências da Linguagem pela Unisul/SC,

Graduada em Artes Cênicas pela UFSM/RS. Docente do Programa de Pós-Graduação em Ciências da

Linguagem Unisul e curso de Artes Visuais da UnC.

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indicando perspectivas particularizantes pelas quais se o olha e se o diz, o que resulta na polissemia controlada (o exagero é a injuria). O discurso autoritário o referente está ausente, oculta pelo dizer, não há realmente interlocutores, mas um agente exclusivo, o que resulta na polissemia contida (o exagero é a ordem no sentido em que se diz “isso é uma ordem”, em que o sujeito passa a instrumento de comando). (1987, p.15)

Nessa esteira, penso o DA como predominantemente: lúdico e polissêmico.

Lúdico por seu funcionamento de preponderância em expor interlocutores ao jogo, ao

múltiplo de sentidos, ao contar com a errância dos sujeitos, sujeitos e sentidos se

constituindo mutuamente sempre no movimento. Tal funcionamento reclama a

polissemia aberta como constitutiva. Assim, a noção de DA rompe epistemologicamente

com a rigidez metodológica e a redução estilística.

A perspectiva discursiva na interpretação do artístico é capaz de compreender

a produção e os deslocamentos de sentidos do/no corpus de análise, considerando

tanto o processo criativo quanto o processo discursivo. Orlandi (1984) nos apresenta

exemplarmente a diferença entre segmentar (modo de tomar a linguagem de forma

nuclear) e recortar (pensando a linguagem em sua materialidade discursiva). O recorte

é aqui compreendido como o “naco”, o “naco” da “ferramenta2” discursiva (escopo

teórico) do no corpus. Lembrando que o procedimento de análise se dá no batimento

do dispositivo teórico com o dispositivo analítico. Assim, as noções tomadas da AD,

a posição do analista e o corpus contribuem para a formulação do dispositivo

analítico. Daí dizer que a análise é sempre formulação, gesto de interpretação via

dispositivo teórico.

é pensando nessa posição teórica que formulamos a noção de tessitura e

tecedura para operar nos dispositivos de análise de diferentes materialidades

significantes inscritas no artístico.

A Tecedura está na trama dos discursos, no espaço das redes de memória, espaço próprio das heterogeneidades discursivas e da contradição. A noção de tecedura é

2 Referência a expressão utilizada por Leandro Ferreira durante o IV SEAD – UFRGS – Porto

Alegre, setembro 2009. “caixa de ferramentas” da AD, referindo-se aos conceitos fundantes do nosso

dispositivo teórico.

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cunhada na imagem metafórica de uma teia, numa teia invisível que nos envolve por completo. E, é nessa teia que somos tecidos discursivamente. No caso da imagem, Tecedura representa a rede de filiações da memória a outras imagens e (ou) materialidades, às quais nem sempre temos acesso, pois tal teia é tramada pelos esquecimentos constitutivos (1 e 2) formulados por Pêcheux. E, tomamos por Tessitura, a estrutura da própria das diferentes materialidades discursivas ancoradas no artístico em seus modos de funcionamento. Tomamos metaforicamente Tessitura do conceito de funcionamento musical, como aquilo que ordena o andamento, os compassos, as notas, etc. Assim como no funcionamento musical, a Tessitura estaria para a estrutura do dizer (visual/sonoro/gestual/ verbal). A tessitura se mostra na circulação do movimento parafrástico, o que recuperaria uma memória marcada e mostrada pela heterogeneidade discursiva. (NECKEL, 2010, p. 143)

Dessa posição de batimento é possível especializar os gestos de leitura/

interpretação de diferentes materialidades significantes e suas imbricações. Assim, é

possível pensar no estatuto das palavras, das imagens, da gestualidade, da sonoridade

não mais de forma dicotômica, tomando e velha proposição verbal/não verbal e, sim,

a materialidade significante em seu próprio funcionamento – tessitura – e em sua

imbricação determinada por sua rede de filiações (Memória discursiva) – tecedura.

Proponho olhar mais detidamente para a formulação de imbricação material.

Lagazzi nos ensina que o trabalho analítico discursivo se faz na “intersecção de

diferentes materialidades”, na “imbricação material significante” (2004, 2009).

Tomamos a noção de imbricação material na ordem da estrutura e do acontecimento

para compreender o funcionamento do artístico.

Se o discurso se constitui na relação língua – história, Lagazzi (2011) propõe

que falar do discurso como a relação entre a materialidade significante e a história

faz-se necessário para poder concernir o trabalho com as diferentes materialidades e

reiterar a importância de tomarmos o sentido como efeito de um trabalho simbólico

sobre a cadeia significante, na história. Materialidades prenhes de serem significadas.

Materialidade que a autora compreende como o modo significante pelo qual o sentido

se formula.

é mobilizando os conceitos acima enunciados que proponho olhar para o

corpus em questão delineando uma análise discursiva de três produções artísticas de

Heloana Terpan: “Guerra”, “Paz” e “Contestado”, todas de 2010.

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A região conhecida como a “Região do Contestado” deve essa nominação a

uma luta sangrenta pela posse das terras contestadas ocorrida em 1912. Guerra

fomentada pelo poderio estrangeiro ocasionou inúmeras mortes em condições

desiguais. Entre as subvenções oferecidas pelo governo brasileiro para a Brazil Railway

Company, estava a desapropriação de terras, 15 km para cada lado da ferrovia, quase

sete mil km de extensão.

Entre os jogos de poder econômico e políticos desenhados sobre o tabuleiro

brasileiro, estava deflagrado o conflito entre os Jagunços do Contestado (proprietários

das terras, armados com facões de madeira) e o exército brasileiro e seu aparato

bélico sustentado pelo capital estrangeiro.

Quanto às questões estéticas, na iconografia do Contestado há certa predileção

pela reprodução parafrástica da figuração em inúmeras produções artísticas que

tematizam o conflito. Nas imagens, aqui analisadas também é possível observar a

reescrituração das armas, do combate, do trem e das araucárias, porém, a artista o faz

por meio de um jogo compositivo. Pretendo debruçar meus argumentos sobre essa

relação lúdica própria da arte e exarcebada na estética contemporânea.

5.1 o CorpUs ContestADo

Nesse sentido, ao considerarmos uma produção artística no processo de

análise, contamos com as condições de produção da obra. Tais condições são de

ordem histórica – ideológicas e sociais.

Trabalhar com a noção de historicidade faz com que pensemos na história não

como algo do passado, mas como constante construção, e que mesmo fatos passados

continuam ressoando nos acontecimentos presentes, pois acontecimentos discursivos

são tecidos nos acontecimentos históricos.

é nesse contexto que apresento o corpus escolhido para a análise discursiva a

qual me proponho a tecer. Cabe ressaltar que o interesse por tais produções vem ao

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encontro dos objetivos de pesquisa do projeto “As relações culturais e artísticas e a

preservação de patrimônio material e imaterial implicados no desenvolvimento

regional de Canoinhas, Florianópolis, tubarão e Joinville” desenvolvido em parceria

pelas IES – UnC – Unisul – Univille do qual esta produção teórica faz parte, assim

como o seminário que a originou.

Discursivamente vejo nessas produções um acontecimento interessante, a

força e o peso histórico do conflito do Contestado textualizado e, por que não dizer,

texturizado pela estética contemporânea no qual o jogo lúdico da arte se instala e o DA

se potencializa. Vejamos as produções em discussão:

Figura 1: Guerra – Heloana Terpan 2010Fonte: Neckel (2010), Catálogo da Exposição

Itinerante Artes Visuais do Contestado

Figura 2: Paz – Heloana Terpan 2010Fonte: Neckel (2010), Catálogo da Exposição

Itinerante Artes Visuais do Contestado

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Figura 3: Contestado – Heloana Terpan 2010Fonte: Neckel (2010), Catálogo da Exposição

Palavras-imagens que se imbricam e se transmutam. O que de fato é imagem?

O que de fato é palavra? A textualização/composição destas obras desfazem dicotomias

verbal-não verbal e mergulham na imbricação da materialidade significante.

(...) a distinção do verbal e não verbal não tem sentido: é o nível do significante, aquele que Lacan chama de o simbólico. O simbólico não é a linguagem3. Seria preciso dizer sobretudo que a linguagem é simbólico realizado, com a condição de concebê-lo simplesmente como um certo registro de materialidade em que se podem inscrever, materialmente, as relações de significante com significante e não sob a modalidade do verbal e do não-verbal. é preciso acrescentar que, se a linguagem é do simbólico realizado em formas e substâncias (...). (HENRY, 1992 p.164)

3 Linguagem aqui tratada pelo autor como verbal – ato falho ele mesmo faz distinção.

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As produções há pouco apresentadas, também podem ser consideradas produções contemporâneas se considerarmos o tempo cronológico em que foram produzidas. Mas, se além disso, considerarmos a discursividade, a historicidade em que foram produzidas, é preciso presentificar as condições de produção. Lamas (2009), ressalta que em particular na arte contemporânea os parâmetros não são rigidamente definidos. Os conceitos investigados são indicados pelo próprio trabalho enquanto está sendo instaurado. Há um investimento pessoal na elaboração do trabalho artístico e uma reflexão cujas referências advêm desse trabalho.

No processo analítico da AD, o dispositivo teórico sustenta o desenvolvimento de um dispositivo analítico. Este, por sua vez, é determinado pelo recorte do analista. Dito de outro modo, os resultados de uma análise são relativos à articulação das condições de produção do corpus, com a posição do analista.

A AD se interessa pela linguagem tomada como prática: mediação, trabalho simbólico, e não como instrumento de comunicação. é ação que transforma, que constitui identidades. Ao falar, ao significar, eu me significo. Aí retorna a noção de ideologia, junto à idéia de movimento. Do ponto de vista discursivo, sujeito e sentido não podem ser tratados como já existentes em si, como a priori, pois é pelo efeito ideológico elementar que funciona, como se eles já estivessem sempre lá. (ORLANDI, 1998, p. 28).

é desse movimento de constitutividade de sujeitos e sentidos que pensamos o funcionamento do discurso artístico. Um discurso que se dá predominantemente por sua forma lúdica operando sempre nas franjas do dizer, no vazamento polissêmico. O jogo entre paráfrase e polissemia se acentua. Jogo no qual a polissemia mostra sempre sua força abrindo-se à interpretação. Sempre em processo.

Tomamos então o conceito de Tessitura como a estrutura própria de diferentes materialidades discursivas ancoradas no artístico em seus modos de funcionamento. A tessitura se mostra na circulação do movimento parafrástico, por meio da estrutura da matéria significante, o que recuperaria determinados recortes da memória. Temos, então, nas composições apresentadas tessituras próprias da pintura ancoradas no artístico em seus modos de funcionamento: formas – cores- pontos – linhas – texturas – palavras etc. Palavras? Mas a estrutura que vemos não é de uma pintura? A palavra aqui vaza de sua tessitura verbal para ser uma forma pictórica. é no batimento e cores, letras, formas que a potência visual instala seu jogo polissêmico.

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Nesse ponto é importante elucidar como pesamos memória do ponto de vista

discursivo, por isso, trago as palavras de Pêcheux:

A memória, por sua vez, tem suas características, quando pensada em relação ao discurso. E, nessa perspectiva, ela é tratada como interdiscurso. Este é definido como aquilo que fala antes, em outro lugar, independentemente. Ou seja, é o que chamamos de memória discursiva: o saber discursivo que torna possível todo dizer e que retorna sob a forma do pré-construído, o já dito que está na base do dizível, sustentando cada tomada de palavra. (PêCHEUX 1999, p. 31)

A sustentação da “tomada de palavra”, da tomada de gestualidade, da

pincelada etc. é o que sustenta a possibilidade de dizer, a produção de sentido em

determinadas condições.

Como dito anteriormente, se considerarmos a categoria de pintura, o que temos

é uma pintura contemporânea, tanto por sua cronologia quanto por sua estética. Aqui

a tecedura é reclamada pela tessitura, pois, ao considerarmos as marcas pictóricas,

temos uma profusão de linhas e cores, predominantemente cores quentes e o uso do

preto. Marcas pictóricas e memórias da pop art. Nas formas temos a geometrização,

o deslocamento entre o figurativo e o abstrato, a transmutação de formas.

é na esteira da transmutação de formas instalada pelo jogo polissêmico da

poiética da artista que chegamos ao acontecimento discursivo nesse discurso artístico.

Contudo é preciso considerar que, ao falarmos em materialidades significantes, não

consideramos elementos isolados. Pois o conceito de materialidade significante

carrega consigo o conceito de relação. Temos, então, no conceito de materialiadade

imbricados à instância plástica (estrutural) e à historicidade (materialidade histórica).

Como temática das produções temos o Contestado como acontecimento

histórico. Mas no gesto de interpretação da artista instala-se o acontecimento

discursivo. A pintura reclama tanto a memória histórica quando a memória discursiva

que se tece na imbricação dos fatos históricos, dos movimentos artísticos, do percurso

poético da artista, dos possíveis espectadores das obras. Há aí um deslocamento

interessante. Quanto se tenta recuperar uma memória iconográfica de outras produções

artísticas do/sobre o Contestado o que se encontra são inúmeras imagens que primam

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pela figuração, reproduções em diferentes poéticas de imagens documentais sobre a

Guerra do Contestado.

Nas produções aqui analisadas, temos um movimento contrário à figuração,

pois é pela abstração de formas e palavras que a artista interpreta o Contestado. Não

nega a recuperação histórica, porém não se faz refém dela.

Dessa forma, é que posso afirmar que para apontar as marcas interdiscursivas

faz-se necessário verificar a filiação histórica – ideológica e social. Se não considerarmos

o histórico-ideológico-social, ficamos na instância estrutural – icônico-semiótica –

intertextual. é na relação de confronto entre arte e história, entre figuração e abstração,

entre pintura e texto que se instalam tessituras singulares que reclamam as teceduras

histórias e artísticas. Tais acessos podem, parafraseando Pêcheux (1999), “perder o

trajeto de leitura”, pois os esquecimentos constituem o processo de interpretação.

5.2 A AnÁLIse MoVIMentos Do ArtÍstICo

Ao considerarmos nosso recorte: o Funcionamento do Artístico: Discurso –

Memória, na produção de sentidos em “Guerra” – “Paz” – “Contestado”, trazendo-as

como um acontecimento discursivo tateamos pelas relações de confronto e contradição

do/no discurso de/sobre arte que tematizam o Contestado. Temos ai atravessadas as

formações discursivas da Arte Contemporânea, da História do Contestado confrontadas

no funcionamento lúdico e polissêmico do Discurso Artístico.

A interlocução, o jogo entre artista e público são exarcebados na estética

contemporânea. Pois nas produções contemporâneas as leituras já não são de cunho

contemplativo dotado de passividade e sim, retomam etimologicamente o termo

contemplare e o olhar se põe em ação. é preciso jogar para ler.

Nessa triologia sobre o Contestado, a artista HeloanaTerpan, inscrita nas

condições de produção da pintura contemporânea produz um dizer articulado pela

tessitura pictórica de que é própria de sua poiética, mas, que, ao mesmo tempo,

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mobiliza uma tecedura na rede de memórias, tanto da arte contemporânea quanto da

produção simbólica do Contestado.

Trata-se de um processo identitário, afetado pelas características mestiças da

pintura moderna e contemporânea. Os signos cromáticos e sensoriais são de um apelo

contundente e nos pegam no jogo lúdico do Discurso Artístico INTERLOCUçãO.

Nosso olhar precisa passear pelas formas, cores, texturas e pelos objetos,

investigando cada curva, cada linha, cada movimento e pincelada da artista. é pelo

percurso desse labirinto visual que somos levados a compreender formas que nos

lembram signos linguísticos, porém, estes signos estão transmutados em imagens.

Na obra PAZ com seus tons azuis esverdeados como que um apelo de esperança

e desejo dos caboclos do Contestado (discriminadamente chamados de jagunços pelo

poder dominante), somos levados a provar desse sentimento de esperança e desejo de

paz como que uma lacuna na história. Os elementos pictóricos não são apenas tinta.

As formas visuais são palavras e as palavras imagem, imagens: bandeira, notas de

dinheiro, o dourado, formas estilizadas. Formas que não são formas, palavras que não

são palavras. Marcas que se escondem e se mostram no jogo discursivo do artístico.

Os dizeres em curso. Linearidade opaca.

A linearidade “tranquila” do azul é quebrada pela vermelhidão da GUERRA.

Seus tons avermelhados e linhas retas nos jogam nos sentimentos dos homens, que

sem opção, tiveram de pegar em armas improvisadas para contestar o que de direito

era seu. A pintura contemporânea que contesta a pintura temporal da historiografia do

Contestado.

Enquanto no “Paz” nosso olhar horizontalizava-se como que um desejo de

vislumbre da paz, aqui nosso olhar verticaliza-se, o dourado o amarelo e o vermelho

entrincheirados entremeiam-se nos símbolos de poder, religiosidade e luta, textualizados

nas formas estilizadas, das armas, das batalhas e das crenças.

Na obra CONTESTADO, o vermelho da guerra, o azul da paz encontram o arco-

íris de cores e a profusão de formas que nos deixam ver para além da palavra, as

representações icônicas da região contestada e sua história mestiça, que na imbricação

dos acontecimentos sociais, econômicos e ideológicos nos transformam no povo que

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[ 97 ]

somos. Somos parte dessa cultura. Somos peças desse tabuleiro de xadrez do jogo da

arte e da vida nos sentidos da HISTÓRIA DO CONTESTADO.

Tão complexa e opaca quanto a palavra CONTESTADO no quadro, é também a

história contada. Não temos apenas uma História do Contestado. Temos histórias. As

histórias dos vencedores.

As histórias dos vencidos. As histórias não contadas e, portanto, não “históricas”.

A profusão de cores diz a profusão de sujeitos da/na história do Contestado. Da/Nas

discursividades do Contestado. Se a ruptura é própria da estética contemporânea

como nos trazem inúmeros autores, temos nessas representações artísticas do

Contestado, importantes rupturas a considerar.

ConsIDerAçÕes FInAIs

Se, segundo Pêcheux, acontecimento é o ponto de encontro de uma atualidade

com uma memória, essas produções convoca-nos pensar as discursividade de/sobre

o Contestado em suas multiplas históriaS – em sua historicidade. E, assim, é preciso

considerar que os gestos de interpretação não estão apenas determinados pelas

estruturas sígnicas, mas, e, principalmente, pelas condições de produção.

Dito de outro, a espessura da materialidade inscreve-se na estruturação e na

historicidade. Sua imbricação está no batimento das tessituras e teceduras do artístico/

histórico. Retomando Lagazzi, o sentido como efeito de um trabalho simbólico sobre a

cadeia significante, na história.

O gesto artístico de Heloana Terpan é da ordem do acontecimento discursivo,

um encontro de uma memória com uma atualidade proposto na força das imagens

um jogo de força que visa manter uma regularização pré-existente com os implícitos que ela veicula, confronta-la com “boa forma” estabilização parafrástica negociando a integração do acontecimento, até absorve-lo e eventualmente dissolve-lo; mas também, ao contrário, o jogo de força de uma desregulação que vem perturbar a rede dos ‘implícitos’. (PêCHEUX, 1999, p.53)

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Assim, “o discurso marca a possibilidade de uma desestruturação-

reestruturação dessas redes e trajetos: todo discurso é o índice potencial de uma

agitação nas filiações sócio-históricas de identificação” (1999, p. 56).

A artista desloca, assim, o olhar de contemplação do espectador que já estava

“preparado” para visualizar uma produção sobre o Contestado que figurativizasse a

guerra, suas armas, o sangue, os soldados, os jagunços, as virgens, os monges...

Ao nos colocarmos como fruidores das produções aqui apresentadas somos

pegos pelo jogo polissêmico do artístico. Somos desestabilizados em nossos pré-

construídos daquilo que aprendemos sobre a guerra e sobre a arte que se fazia, até

então, tematizando a guerra.

Aturdidos em meio a um combate e formas e cores, palavras escondidas e

transmutadas em imagem. Bombardeados pela exuberância do amarelo, a agressividade

do vermelho, nos camuflamos na calmaria do azul e na esperança do verde, para enfim

passearmos no colorido trem do Contestado.

Falamos da guerra. Estamos na guerra. Porém, numa guerra não mais

sangrenta. Não que deneguemos o que foi. Mas, guardamos do horror, da exploração

do capital estrangeiro e da extirpação do mais fraco, a vergonha que se transforma em

aprendizado. Não é preciso “esconder” a história, é preciso falar sobre o Contestado.

E a artista sensivelmente nos mostra que há inúmeras maneiras de se falar do/sobre o

Contestado. é possível falar/pintar contestando!

o colorido trem do Contestado nos propõe uma viagem de rememoração e

nos lembra que, muito além de documentos de guerra, houver vidas. Em meio ao

conflito: esperança.

E, principalmente, que a História do Contestado se constitui de muitas históriaS.

Eis a força contestadora da arte.

Page 99: Capital_Social Com ISBN

[ 99 ]

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Page 101: Capital_Social Com ISBN

[ 101 ]

6LenDo FILMes e o PoeMInHA Do ContrA: o FeCHAMento Do CIneMAtoGrÁFICo nA sIMULtAneIDADe Do FÍLMICo

Mara salla

6.1 FotoGrAMAs DA sIMULtAneIDADe

O trabalho aqui exposto nasceu de uma observação feita na construção de um

roteiro cinematográfico. O roteiro do curta-metragem Malabares – Os filhos dos outros1

parecia complicado demais para virar filme, segundo a opinião de algumas pessoas da

área. Caso virasse filme, seria difícil ser entendido, apreendido ou, termo que eu prefiro,

um filme complicado de ser lido.

Tal observação trouxe implícita a noção de que seria preciso auxiliar a “leitura”

do espectador, quando este estivesse diante de um filme produzido sem a intenção de

entreter. Fugir de imagens estereotipadas para falar a respeito da violência humana e

propor a arte como alternativa para um mundo em decadência, é a proposta do filme

Malabares – Os filhos dos outros e que se opõe ao entretenimento proposto pela

maioria dos filmes que nos chegam. Assim Malabares – Os filhos dos outros passou

a ser o filme escolhido como exemplo da leitura a que nos propomos. Estamos

considerando aqui que “ler um filme” é buscar na textura da imagem em movimento,

do som e do texto verbal, as relações de sentido propostas e passíveis de interpretação

por um “leitor”. Assim nasceu a ideia do curso Lendo Filmes2, um projeto por meio do

qual alunos de uma escola tradicional recebem aulas de cinema que os coloca diante

de elementos cinematográficos na sua singularidade, como a elaboração de um roteiro,

definição de enquadramentos, movimentação de câmera, luz, atuação, montagem e a

1 Malabares – Os filhos dos outros. Mara Salla, 2006. 2 Lendo Filmes. Mara Salla, 2006.

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[ 102 ]

identificação destes elementos dentro de um filme. O objetivo é que os alunos, ao

aprenderem o cinematográfico (as partes), compreendam e ampliem suas possibilidades

de leitura dos elementos que compõem uma parte possível, um “todo” chamado de

fílmico. Ao desenvolver tal projeto, há de se considerar que eu entrava em sala de aula

não no papel de professora, mas no de cineasta que faz filmes e propõe uma discussão

com alunos do Ensino Fundamental II, com a intenção de revelar as camadas do filme,

fazer um caminho inverso ao que fazemos quando vamos ao cinema, sair do todo para

as suas partes. Do fílmico para o cinematográfico.

Três anos após a constatação de que o filme seria de difícil leitura, via-se

Malabares – Os filhos dos outros entrando nos festivais de cinema – lugar possível

para filmes não comerciais. Com ele, alunos participantes do projeto Lendo Filmes

trabalharam em sala de aula, em set de filmagem, na ilha de edição e nos estúdios de

cinema da Universidade do Sul de Santa Catarina – Unisul. Ainda participaram da

estreia do filme numa sala de cinema em um Shopping Center – lugar predominantemente

de filmes de entretenimento. Chega agora o momento de colocar a experiência em

palavras, para discuti-la neste projeto de mestrado.

A noção da leitura fílmica que tenho hoje é diferente da que tinha no início da

pesquisa, e percebo agora que um questionamento de Eni Orlandi no livro Discurso e

Leitura caberia para situar a leitura proposta pelo curso Lendo filmes:

O que torna um texto legível? O que é um texto legível?Percebi que a legibilidade do texto tinha pouco de “objetivo” e não era apenas uma consequência direta, unilateral e automática da escrita. Não me parecia verdadeira a afirmação: “um texto bem escrito é legível” (...) é a natureza da relação que alguém estabelece com o texto que está na base da caracterização da legibilidade.(...) a leitura, portanto, não é uma questão de tudo ou nada, é uma questão de natureza, de condições, de modos de relação, de trabalho, de produção de sentidos, em uma palavra: de historicidade. (ORLANDI, 2001, p. 8 e 9)

Portanto, conceitos como o “cinematográfico” e o “fílmico” serão explorados

para demonstrar o investimento na formação de um novo espectador, a partir de uma

experiência de leitura: apreender e compreender o discurso fílmico por meio da “leitura”

do cinematográfico. Ou seja, a leitura de um filme pode ser ampliada ao se entender os

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[ 103 ]

vários elementos que o constituem, ao se reconhecer e ou descobrir as referências, as

camadas que formam os elementos que contam uma história em som e imagem em

movimento. Principalmente reconhecer o que faz com que, como plateia, fiquemos

suspensos diante de um filme.

O trabalho que se propõe com o curso Lendo Filmes é o de dar conta de uma

lacuna que existe entre “ler” filmes de modo “espontâneo”, por oposição a “ler”

percebendo os elementos constitutivos deles.

Entender o filme como discurso e o cinema como instância produtora de

sentidos é perceber o que temos como sentido dominante: aquele produzido pela

indústria cinematográfica hollywoodiana. Faz parte da legitimação desse discurso – os

sentidos produzidos por esta indústria –, as relações de sentido do cinematográfico

com o fílmico. Esses sentidos dominantes, por sua presença constante, fragilizam e

apagam a possibilidade de entender nosso próprio discurso fílmico, um discurso ainda

por se legitimar. O discurso fílmico brasileiro pode ser entendido como um discurso

miscigenado, porque mais se aproxima de uma mistura de discursos fílmicos regionais,

considerando a vastidão e riqueza de nossa pluralidade cultural, nas várias heranças

culturais que trazemos.

O discurso fílmico, já legitimado, atravessado e balizado no Brasil, é o

discurso produzido por essa indústria hollywoodiana, ou seja, uma produção mais

homogênea, que usa o filme como um veículo de escoamento de produtos e

ideologias. Um filme comercial.

Quando lemos um filme, lemos o quê? Certamente lemos o que vemos e o que

ouvimos, o que historicamente se constitui, nos permitindo relacionar sentidos. Mas

lemos também o que não vemos, o que constitui igualmente o sentido do que lemos.

Ao assistir tão somente filmes hollywoodianos acabamos limitando nossa

leitura de mundo. Nossa identidade se perde ou se encontra/entende em outra. Ou seja,

os sentidos sempre são determinados pelas posições em que as palavras, proposições

são produzidas, é o que Pêcheux (1997) chama de Formação Discursiva.

Chamaremos, então, formação discursiva aquilo que, numa formação ideológica dada, isto é, a partir de uma posição dada numa conjuntura dada, determinada pelo estado

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pela luta de classes, determina o que pode e deve ser dito (...) isso equivale afirmar que as palavras, expressões, proposições, etc., recebem seu sentido da formação discursiva na qual são produzidas. (PêCHEUX, 1988, P. 161)

Ainda que precisemos – e precisamos – nos entreter com filmes leves, não

podemos abrir mão de leituras mais críticas, sob risco de perdermos sentidos

contraditórios que só ampliariam nosso olhar e nossa própria leitura, e tudo o que isso

implica. No discurso produzido pela indústria hollywoodiana há uma projeção imaginária

de um telespectador mediano, e tudo converge para a manutenção de uma leitura rasa.

Não estamos construindo, aqui, argumentos críticos em relação a esse tipo de cinema

que encanta, emociona, diverte e embala. é seu excesso e sua dominância que

preocupam. é ao que ele silencia, que devemos estar atentos.

Quanto perdemos ao consumir um único tipo de cinema? Não perdemos

apenas bons filmes, o mais grave é que perdemos a capacidade de leitura diante de

outros cinemas. Nos privamos de ler outros sentidos.

Entendemos que os sujeitos são sempre interpelados pela ideologia, e que através dela o sujeito produz o seu dizer por meio de estruturas de funcionamentos que produzem evidências de sentidos, afetados pela língua com a história, o que nos faz sempre já sujeitos. “é o gesto de interpretação que realiza essa relação do sujeito com a língua, com a história, com os sentidos. (...) E não há sujeito sem ideologia. Ideologia e inconsciente estão materialmente ligados. (ORLANDI, 2005, p.47).

Alguns diretores do cinema contemporâneo subvertem a forma de compor

os elementos cinematográficos ao contar uma história, diferente do que vemos no

cinema narrativo. Peter Greenaway3 e Lars Von Trier4 são exemplos, além de outros

do cinema francês, italiano, iraniano etc. No entanto, ainda estamos muito expostos

ao cinema hollywoodiano.

3 Peter Greenaway – Cineasta britânico. Autor e artista multimídia. Filmes: O livro de cabeceira,

Os livros de Próspero, A última tempestade, O cozinheiro, o ladrão, sua mulher e o amante, O bebê de

Mâcon etc.4 Lars Von Trier – Cineasta dinamarquês. Fundador, junto com Thomas Vinterberg, do manifesto

Dogma 95, cria 10 regras para a produção de filmes: não usar cenários, não usar banda sonora, usar apenas

câmara de ombro etc. Filmes: Dogville, Dançando no Escuro, Os Idiotas, Anticristo etc.

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Há uma tendência do sujeito para os sentidos estabilizados, pois a contradição

produz desconforto. Por outro lado, ela é inevitável e através do artístico se pode

sublimar a dor e até a morte. O cinema pode tanto ser o lugar do sentido estabilizado,

como o lugar da arte. Segundo Morin,

As artes levam-nos a dimensão estética da existência e – conforme o adágio que diz que a natureza imita a obra de arte – elas nos ensinam a ver o mundo esteticamente. (MORIN, 2008, p.45).

Enquanto os sentidos estabilizados, os discursos cristalizados ocultam e

silenciam a complexidade do ser nas suas relações com o outro e com o mundo. O

jeito próprio de inscrever-se na formação discursiva nunca é sem falhas, e isso é

universal. As posições-sujeito estão sempre atravessadas por tantas formações

discursivas nas quais o sujeito se inscreve no seu movimento. Aí está a singularidade

que nos é silenciada. A produção de filmes cujos efeitos de sentido pretendem negar

essa falha é aquela que idealiza o sujeito na forma de um estereótipo. Em uma posição

dada espera-se que os sujeitos inscritos nela ajam de acordo com o que se idealiza

para a posição. Na falha, o sujeito revela sua condição subjetiva, seu modo particular

de assujeitamento e, contraditoriamente, sua universalidade. O sujeito que se constitui

no discurso cinematográfico como personagem em um filme comercial geralmente é

um personagem estereotipado.

Portanto, para o Lendo Filmes não seria suficiente o aprendizado por meio de

apostilas, que trabalha com um dizer sobre a coisa. Para que o aluno deixasse de ler

filmes de forma espontânea e passasse a fazê-lo criticamente, seria necessário

deslocar o sujeito aluno dessa posição no discurso pedagógico e trazê-lo para assumir

uma posição no discurso cinematográfico, trabalhando dessa maneira diretamente

sobre “a coisa”, ou seja, sobre o objeto do conhecimento. Só o desafio da produção

faria com que esse sujeito se sentisse identificado com outro discurso e mobilizasse

os efeitos de sentido próprios da nova formação discursiva para, então, ler do lugar de

quem conhece o seu funcionamento. é dado ao aluno um lugar de identidade em outro

discurso. Por exemplo, o discurso da fotografia, da montagem etc.

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Por outro lado, conforme Gallo (2001), a função-autor e o efeito-autoria

demonstram a necessidade da produção:

A autoria pode ser observada em dois níveis pela AD. Primeiramente, em um nível enuciativo-discursivo, que é o caso da função-autor, que tem relação com a posição-sujeito. (GALLO, 2001, p. 211)

O que caracteriza a autoria é a produção de um gesto de interpretação, ou seja, na função-autor o sujeito é responsável pelo sentido do que diz, em outras palavras, ele é responsável por uma formulação que faz sentido. O modo como ele faz isso é que caracteriza sua autoria. Como naquilo que lhe faz sentido, ele faz sentido. Como ele interpreta o que o interpreta. (ORLANDI, 1996, p.97).

Se o curso Lendo Filmes se limitasse a falar de cinema como objeto ausente e

não levasse os alunos à produção da cena proposta no estúdio, ficaríamos somente na

etapa da função-autor, como fica evidenciado por Gallo (2001):

Segundo Orlandi (ibidem), essa é a função-autor, função de todo sujeito, modo de individuação sócio-historicamente determinada. E em segundo lugar, a autoria pode ser observada em um nível discursivo por excelência, que é o caso do efeito-autor e que, ... diz respeito ao confronto de formações discursivas com nova dominante em um acontecimento discursivo (GALLO, 2001, p. 211)

Outrossim, se por um lado o efeito-autor só se funda nessas circunstancias de confronto, depois de produzido, a tendência é “ecoar” em todos os “comentários” dessa produção fundadora, ou seja, nos textos que se produzirão estabelecendo com ela uma relação parafrástica (GALLO, 2001, p. 212).

Portanto, ao trabalhar o deslocamento do discurso pedagógico para o discurso

cinematográfico, pretendia que, além da função-autor, pudéssemos produzir o efeito-

autoria quando o filme fosse “fechado”.

Analisando um dos registros audiovisuais gerado pelo curso Lendo Filmes,

encontramos os alunos fora da sala de aula dividindo o estúdio de cinema da Unisul

com alguns acadêmicos do curso de Cinema e Realização Audiovisual. Nessa

prática, exibimos o curta metragem Eu passarinho, um vídeo produzido pelos

acadêmicos da graduação, já formados, e que estão na estrada fazendo carreira

com seus novos filmes.

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6.2 AnÁLIse Do CUrtA VoCês pAssArão – seqUênCIAs DIsCUrsIVAs

escolha da cena – um recorte poéticoPrimeira sequência discursiva

Como 1º ponto de análise escolhemos o momento em que os alunos fazem o

recorte no filme, a escolha da cena. Temos aqui como possibilidade de interpretar que

o ponto que condiciona toda a trama no filme Eu passarinho, pode ter sido escolhido

por ser o lugar de resolução do conflito que o filme propõe, ou seja, a sequência

síntese. Outra possibilidade para a definição da escolha, podem ter sido também as

condições materiais do estúdio, o andaime, uma TV, cadeiras etc. O forte interesse de

duas alunas em atuar, e o desejo de outros alunos em ocupar as posições de fotógrafo,

som, iluminador, montador podem ser marcas do que os fez escolher a cena e a

maneira de a reencenar. Ou seja, o que motivou a escolha foi da ordem do ideológico

e material. Provavelmente o recorte dos alunos e a sua interpretação é da ordem de

uma subjetividade, mas, também daquilo que é possível dizer a respeito do que fala o

filme. No momento da escolha o non sense estava ao lado de uma escolha, poderia ser

outra a cena escolhida, mas ao escolher, eles se encontram no “esquecimento número

dois, conforme proposto por Pêcheux. Ou seja, eles poderiam escolher outra cena,

considerado outra cena, mas depois da escolha eles “com certeza” justificam a cena

escolhida como sendo a melhor. Outras alternativas são lembradas até que o

esquecimento delas as apague e apague também a sua existência ou a sua possibilidade

de vir a ser. Por isso a importância de ser este o 1º ponto da análise, uma vez que é o

ponto em que se observa os alunos fazendo o seu recorte.

A divisão dos trabalhos foi feita a partir de escolhas deles, sob minha orientação,

considerando que nessa escolha já existe uma divisão anterior e que situa membros de

uma equipe cinematográfica.

O grupo trabalhou com os recursos disponíveis no estúdio, nada veio de fora.

Alguns recursos como o som do jogo de futebol vieram depois, na fase de montagem

do vídeo. Isso permitiu uma liberdade e uma busca por alternativas do que fazer ao

refazer a cena.

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6.3 esCoLHA De noVAs PosIçÕes – IDentIFICAção

segunda sequência discursiva

Como 2º ponto de análise, definimos o momento em que os alunos escolhem

as suas posições-sujeito, as posições-sujeito que ocuparão dentro do discurso

cinematográfico. São os gestos de interpretação, que se percebem nas suas escolhas

ao ocuparem setores da produção, de acordo com seus interesses e aptidões. Assim

alguns foram para a câmera, outros para o som, outros atuar, outros preferiram ficar

ao lado do montador, que captava as imagens vindas da câmera e já as salvava dentro

do computador. Outros preferiram dirigir as cenas e praticamente todos fizeram

observações a respeito de como a história seria contada e de como as atrizes deveriam

atuar. Também foi escolha deles usar uma colega que representaria o passarinho e

outra que seria um policial.

Isso está visível nos planos 1, 3, 4, 5, 7, 8, 9,10,11, 13, 14, 16 entre outros.

Ou seja, aqui é possível perceber que as escolhas quanto à posição se dá a

partir da identificação da história dos sujeitos em relação à história da posição a ser

ocupada, a posição sujeito-atriz, por exemplo, ou da posição sujeito-fotógrafo etc.

As escolhas das posições possíveis aos sujeitos se dão pelos gestos de interpretação

que fazem, em relação à história da posição que se pretende ocupar. Ao ocupar a

posição-atriz, a aluna acessa interesses anteriores, identifica-se e identifica o que a

levaria a ter êxito na posição pretendida. Sua bagagem de atuação é mobilizada para o

gesto de interpretação que irá determiná-la. Os sentidos com os quais ela se identifica

definem as escolhas que fará. é o pré-construído compartilhado entre o autor e o leitor.

O sentido já tem que estar lá para que haja a identificação.

Quando a aluna opta pela atuação – assumir dentro do discurso cinematográfico

a posição sujeito-atriz – isso tem relação com uma identificação a partir da história

dela em relação a história da posição atriz, e é porque entre essas duas dimensões

existe uma identificação que se torna possível o gesto de interpretação.

A identificação que permite o gesto de interpretação – nessa posição

específica de atriz – é nossa herança grega do teatro e da identificação aristotélica.

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Recurso utilizado no teatro grego para gerar uma sensação de familiaridade por parte

do público para que este se emocione, queira justiça, torça para um final vitorioso

etc. O que torna possível, para nós, um gesto de interpretação na forma da atuação,

é a memória da atuação. A identificação é uma necessidade do sujeito que o fará

mobilizar memórias discursivas próprias para outras posições assumidas em uma

produção cinematográfica. O sujeito-fotógrafo mobiliza a memória da fotografia, e

assume um lugar que já estava lá e com o qual ele se identifica.

Dentre os acadêmicos também havia os que se encaixavam em setores

variados dentro da produção. Foi esse o critério para que acompanhassem o trabalho,

garantindo assim que para cada grupo de alunos haveria um adulto com experiência

naquele setor específico. Assim tivemos um acadêmico orientando, por meio de

técnicas de atuação, a atriz que representou o passarinho, para depois assumir a ilha

de edição captando as imagens. Outro assumindo a fotografia e também a iluminação

e um acadêmico do curso de Jornalismo ficou responsável pelo acompanhamento e

pela captação do áudio.

6.4 LeGItIMAnDo PosIçÕes – CoInCIDênCIAs Do Gesto

terceira sequência discursiva

Ao sair do camarim com cabelos desgrenhados e muito séria, a aluna que fez

o papel de passarinho era um passarinho assustado e acuado. Para manter sua

concentração ficou em outro lugar até que tudo estivesse pronto. Ficou nos espiando,

sentada no mezanino do estúdio. Disse que precisava se manter concentrada para

atuar de forma mais convincente. Disse, também, que sempre sonhou atuar e ali estava

claro o porquê da sua paixão, ela levava muito a sério o papel que em pouco representaria

de forma intensa.

Isso fica claro nos planos 7, 9, 15, 19, 21 e 22, por exemplo.

Percebe-se, nas novas posições ocupadas, uma mimeses necessária para o

modo de ocupar a posição. Isso permitirá a legitimidade da posição. Passar a ser

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sujeito-atriz ou fotógrafo, por exemplo. Há que ter coincidência no gesto, portanto tudo

deve estar providenciado para que o sujeito se assuma autor. é a responsabilidade que

se espera dos sujeitos naquele lugar.

A experiência de fazer o passarinho do jeito como foi feito exigiu que ela,

ao assumir a posição sujeito-atriz dentro do cinematográfico, mobilizasse a

história pessoal e a memória discursiva da posição. Cinematográfico + atuação +

mobilização de memórias discursivas. Seu desempenho e o que ela representa, o

passarinho, só chegam ao efeito de sentido proposto, devido à mobilização de

memórias discursivas.

Feitos os testes e após algumas tentativas de conter o riso da aluna que fez o

papel do policial, em nada, nem nada a abalou. O passarinho sofria calado a sua

prisão. Injusta, se considerarmos o pesar imposto no rosto e no corpo da atriz.

Outro momento em que se pode observar isso, o processo quanto ao modo de

ocupar uma outra posição, está logo no início do vídeo de forma muito clara, quando

os alunos observam a maneira de trabalhar como um iluminador/fotógrafo. Representar/

imitar o sujeito na posição é o que lhes confere legitimidade. Isso é visto nos planos 1,

10, 11, 13, 16, 17 e 18, entre outros.

6.5 esqUeCer PArA MUDAr – os sUJeItos nAs PosIçÕes

quarta sequência discursiva

O 4º ponto da análise é quando ocorre o acontecimento enunciativo que produz

a legitimidade das posições. Temos esse acontecimento em dois momentos distintos

do vídeo. O primeiro é no plano 17 no qual temos a seguinte descrição:

Plano 17 – Criança no computador fala: atenção, câmera. Ação! Vemos o

ensaio do policial abrindo a cela e do cinegrafista testando a subjetiva do passarinho

quando for sair da prisão.

Na imagem fica claro o efeito que causa esse acontecimento. O momento pede

os sujeitos nas posições. A atriz que faz o passarinho não se abala, não se afeta, não

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se move da sua posição. Ela se encontra “no esquecimento dois” de Pêcheux, enquanto

a atriz que faz o policial demora para esquecer. A risada a trai, a puxa para a posição

que ocupava anteriormente. Ao não estar no esquecimento, ela revela a falha para o

que se espera na posição que ocupa. A risada é a percepção da inconsistência da

posição ocupada pelo sujeito. A outra, que é o passarinho, está completamente no

esquecimento. Esquecer é uma necessidade para ocupar uma posição.

Depois de mais algumas definições e cada um seguro do que deveria fazer, os

sujeitos ocupando determinadas posições falam:

Atenção! (o diretor)

Silêncio no estúdio! (o diretor)

Som? (o diretor)

Som foi. (o sujeito que ocupa a posição de captar o som do filme)

Câmera? (o diretor)

Câmera foi. (o sujeito que ocupa a posição de captar a imagem do filme)

Ação! (o diretor)

Nesse segundo momento temos a seguinte descrição:

Plano 27 – Entra crédito: Lendo Filmes apresenta Vocês passarão. Enquanto

entra o crédito, o volume da música é diminuído e ouvimos o diretor que fala: atenção!

Silêncio no estúdio. Som? Som foi. Câmera? Câmera foi. Ação!

O que se vê já é o que funciona. O nome do vídeo vem separar o que antes era

ensaio para o que agora está valendo. O que vale passa a valer diante das palavras

ditas pelo diretor.

Outro ponto importante que acontece aqui e que merece atenção é o uso

dos verbos performativos, que ao serem ditos fazem a coisa acontecer. No

momento em que é dito o fato de dizer legitima todas as posições. Todos assumem

a autoria do fazer.

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6.6 Gestos InterPretAtIVos – o ProCesso PAssA PeLA FALHA

quinta sequência discursiva

O 5º ponto de análise chama a atenção para o efeito metonímico.

o modo como funciona o efeito de legitimação de uma materialidade através

da outra. Quando um passa a ser outro, mediante a representação, é que podemos

chamar de efeito metonímico. é esse efeito de que se utilizam os sujeitos-alunos

para assumir as suas posições fotógrafo, atriz etc. O gesto de interpretação é um

processo que só é visto quando se tem acesso às partes. Os sujeitos não assumem

novas posições de imediato, é necessário tempo para que se consiga dar legitimidade.

Isso é visto no vídeo, pois a escolha da montagem optou por mostrar as etapas. Os

alunos não chegaram ao estúdio e assumiram as posições, eles foram observando,

perguntando, se entendendo ali dentro, observando nos acadêmicos o modo de

fazer para depois assumirem as posições. Quando assistimos a um filme não vemos

as falhas, elas se encontram no making of das produções, quando essas optam por

mostrar o processo.

E, por fim, quando todos estão nas suas posições vemos a cena funcionar.

O guarda ouve o jogo. Toca o telefone. A passarinho ouve o som do telefone e olha a

reação do policial. Este se irrita com a interrupção, levanta, atende, pega o molho de

chaves, vai até o prisioneiro, abre a cela e ordena que ele vá embora. Antes que ele –

o guarda – se arrependa.

A cena é repetida com o cinegrafista dentro da cela e que vai embora olhando

para o chão. Para representar o olhar do passarinho ao sair da cela (câmera subjetiva).

Outros alunos representaram tudo o que aprenderam ali a respeito da maneira

mais adequada para direcionar um microfone a fim de evitar determinados ruídos.

Aprenderam também quais microfones eram melhores para captar o som em situações

externas/internas sem vento e ou externas/ internas com vento.

Assim que ficou definido que seria utilizado o mesmo som do filme, ou seja, o

jogo de futebol, eles decidiram que o policial ficaria irritado ao receber uma ligação

dando ordens para soltar a prisioneira.

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[ 113 ]

Aqui, novamente, os alunos estão no discurso cinematográfico, no processo discursivo relativo ao som, e mobilizando toda a memória dessa formação discursiva, desde os tempos dos filmes mudos.

6.7 A MontAGeM – A sIMULtAneIDADe qUe ProDUZ o esqUeCIMento

sexta sequência discursiva

Na segunda parte da produção no estúdio, temos o trabalho realizado. A mistura do que eles interpretam com o filme do qual foi selecionada a cena. Antes o cinematográfico e depois, o efeito de unidade. Ou seja, o fílmico.

é neste elemento do cinematográfico, a montagem, que o efeito-autor alcança seu “fechamento”, em que o cinematográfico se transforma em fílmico. Ou seja, na simultaneidade do fílmico está o esquecimento do cinematográfico. A imagem não é considerada como ícone, como quadro ou como moldura. é o percurso da imagem, o seu movimento. O que interessa agora é o fílmico.

O que se observa na montagem é a costura entre a produção da cena no estúdio com a cena do filme. Uma mescla. Há novamente um efeito metonímico: o modo como funciona o efeito de legitimação de uma materialidade através da outra. A cena do filme vem legitimar a reencenação, a cena produzida pelos alunos, a matéria já legitimada que entra com a sua própria materialidade na composição do novo texto. O efeito de uma materialidade que se estende para outra, como, por exemplo:

Plano 28 – Imagem de um menino que grita: o seu Zé vai soltar o passarinho! E sai correndo.

Corte

Plano 29 – Vemos o policial ouvindo um jogo de futebol e ouvimos um telefone que toca ao fundo.

Corte

Plano 30 – Imagens do menino correndo e de mais outros dois meninos que correm com ele.

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Corte

Para Walter Murch, cineasta e montador norte-americano, os filmes funcionam

porque os cortes têm uma similaridade com os sonhos. Ao citar uma entrevista com

John Hustonm, Murch ainda faz uma relação entre os cortes e o piscar de olhos,

“para mim o filme perfeito é aquele que se desenrola como que por trás dos seus olhos, como se os seus olhos o projetassem e você estivesse vendo o que quer ver. Filme é como pensamento. De todas as artes, é a mais próxima do processo de pensar.Olhe para aquela lâmpada ali. Agora olhe para mim. Olhe de novo para a lâmpada. Agora para mim de novo. Viu o que fez? Você piscou. Isso são cortes. ... primeiro você olha a lâmpada. Corta. Depois olha pra mim.”O que Huston nos pede para observar é o piscar. Um mecanismo fisiológico que interrompe a aparente continuidade visual da nossa percepção. (MURCH, 2004, p. 64-65).

Mas a necessidade fisiológica não parece ser a única explicação para o fato de

piscarmos. Piscamos em ritmo diferente dependendo da situação. Para uma situação

de tensão piscamos diferente do que em uma situação em que nos sentimos

confortáveis. O montador de filmes premiado com Apocalipse Now, O Paciente inglês

e a Insustentável Leveza do ser, entre outros, observa o piscar dos atores para também

definir o momento do corte. Cria um paralelo entre o piscar e o corte.

Poderíamos então dizer:

Um menino anuncia: seu Zé vai soltar o passarinho. Pisca. Vemos um policial que

ouve um jogo, ao lado da cela. Pisca. Recebe a ordem de soltar um passarinho. Pisca. Vemos os dois torcedores ouvindo um jogo, ao lado uma gaiola com um passarinho.

Parece-nos cada vez mais evidente a relação entre os filmes e a subjetividade.

Entre as projeções e de que forma as ordenamos para que elas fiquem direcionadas

com o que queremos que a plateia veja.

Essa direção é finalizada aqui, na montagem. E é aqui que se revela a relação

do filme com nossa necessidade, não só de dominarmos o tempo, em relação ao qual

a foto nos deu um certo conforto como nos explica André Bazin. O filme ampliou esse

conforto com o movimento. A montagem nos permite esculpir o tempo.

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Dentre as possibilidades que motivaram a satisfação do grupo pode-se

considerar o estar fora da sala de aula, ou seja, um deslocamento do lugar legitimado

da escola para o aprendizado. Há nesse deslocamento uma possibilidade de assumir

uma nova posição. De um aluno para uma atriz, por exemplo. De um aluno para um

iluminador. Todos no grupo assumiram novas posições, deixando de ser mais um em

um grupo para assumir uma posição fundamental dentro do grupo. No discurso

pedagógico a posição fundamental é assumida pelo professor. Podemos dizer que sem

o professor a aula não acontece.

Outro deslocamento que se observa é do próprio espaço físico da sala para o

espaço físico de um estúdio. Há, nesse deslocamento, um deslocamento discursivo

análogo que permite ao grupo assumir as posições adequadas para o lugar, assim

como a sala de aula espera do grupo posições dadas ao estudante.

Nos recursos dados em sala de aula temos o livro, o quadro, o giz, o caderno,

o lápis, a borracha, as cadeiras enfileiradas e os alunos quietos, prestando atenção

e devidamente uniformizados, e acima de tudo o cronograma para dar conta da

apostila. O Curso Lendo Filmes, no espaço do estúdio, rompe com que ainda

acontece em muitas escolas: o engessamento e a uniformização do que deveria ser

a vivência da arte.

6.8 Do PeDAGÓGICo Ao CIneMAtoGrÁFICo – o PoeMInHA Do ContrA

sétima sequência discursiva

Vocês passarão foi o nome escolhido pelos alunos para o vídeo que produziram.

O “vocês” dos alunos é análogo ao “eles” do poema de Quintana, que está em oposição

ao “Eu” passarinho, que é o lugar do possível, do sonho, do voo. O “vocês/eles” está

relacionado ao muro da escola, um muro psicológico e material que afeta o estudante,

que o priva de voar, de poemar, de passarinhar, de sonhar.

Ao dizer uma coisa – a libertação de um passarinho preso na gaiola – se

utilizando de outras coisas – uma presidiária aguarda a sua libertação – se ultrapassa,

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pela metáfora e pela metonímia, o contar da história. Ali no grupo se percebe o dizer

dos estudantes, que também passam a assumir outras posições de sujeito ao se

inscreverem no discurso cinematográfico. Há aqui uma mudança em suas posições –

roteiristas, diretores, fotógrafos – e também uma mudança da formação discursiva:

antes o pedagógico, depois o cinematográfico.

Pode-se ainda perceber, na cena e na metáfora do pássaro preso, que é

inspirada no poema de Mário Quintana – na sensação vista no grupo – como o da

libertação da sala de aula.

Poeminha do contra

Todos esses que aí estãoAtravancando o meu caminho,Eles passarão...Eu passarinho!(Quintana, 1978 – Prosa e Verso)

O próprio curso Lendo Filmes pode ser utilizado como espaço de leitura do

discurso artístico. E o poema de Mario Quintana vem confirmar a proposta do curso.

Ao caracterizarmos o DA como predominantemente lúdico e polissêmico, inferimos a ele esses caracteres de polifonia/polissemia/ policromia e percebemos que suas condições de produção são de ‘liberdade’, seu espaço de constituição é de uma materialidade histórica que se fundamenta na ruptura, na subversão, na não linearidade, tanto no processo verbal quanto no processo não verbal. O objeto de arte, dotado de discursividade não está apenas num lugar único de significação, pois opera sempre num espaço de re-significação, o que já remete a outros dizeres possíveis. Não é um dizer determinista, justamente por ser aberto (poli), ou seja, não há determinismo histórico, assim como na língua ou como na lei, embora haja consistência. A consistência histórica e ideológica do DA vem justamente do espaço de interpretação, de um espaço democrático de interpretação que funda um gesto próprio. (NECKEL, 2004, p. 133).

Nas atividades realizadas em estúdio foi permitido aos alunos o que lhes falta

em sala de aula: a forma autoritária perdeu suas amarras e cedeu à forma polêmica

e à polissemia. Deslizamento de lugares, posições e sujeitos. Embora se espere que

o exercício seja finalizado como numa sala de aula, a forma de fazer assume outras

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[ 117 ]

possibilidades. O efeito-autoria que se encontra no vídeo produzido pelos alunos se

relaciona com o filme do qual foi retirada a cena. Os alunos deram ao seu filme o

nome de Vocês passarão, numa relação clara ao filme que serviu de referência.

A marca de seu trabalho está evidenciada nas cenas construídas por eles. Numa

mistura de bastidores com a encenação, vemos os sujeitos marcando com seus

uniformes o lugar da escola deslizada em outro lugar e eles, alunos, identificados

com outras posições.

ConsIDerAçÕes FInAIs

A proposição aqui desenvolvida, balizada pela teoria da AD, trouxe uma análise

da dimensão discursiva dos processos constitutivos do cinematográfico, considerados

enquanto um conjunto que alcança efeito de unidade: o discurso fílmico. O material

analisado confirma e amplia as possibilidades de leitura fílmica a partir da compreensão

do cinematográfico.

Poucos produzem imagens, mas todos lemos imagens e sons a todo instante.

Quando procuramos entender como a fotografia possibilitou que se fizesse o

que hoje temos como filme, ou seja, uma história feita de imagens em movimento e de

sons, nos deparamos com uma separação de caminhos. Entendemos como os

discursos da ciência procuram se distanciar dos caminhos do entretenimento. Vimos

através desse percurso o distanciamento do discurso científico, o caminho feito pelos

óticos e que evoluíram para, por exemplo, a montagem de um satélite que nos envia

com tempo estipulado aqui da terra, fotos de planetas que passam a ser mapeados,

como sendo da nossa galáxia. As superlentes de microscópios, também desenvolvidas

pela ciência, nos revelam mundos que a olho nu passam despercebidos. Os que se

inscrevem no discurso do entretenimento, ainda que aliados aos experimentos da

ótica, aproveitaram-se das lentes de câmeras fotográficas capazes de nos dar imagens

em movimento, a profundidade de campo e detalhes em razão da nitidez que temos

hoje num plano geral, sem falar da tridimensionalidade, do volume e do distanciamento

dos objetos em relação ao segundo plano. Todas evoluções da ótica. Cada experimento

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[ 118 ]

e cada busca dão conta de mercados audaciosos. Sejam eles para entreter ou para

chamar a nossa atenção para outros mundos e outras imagens.

Em uma perspectiva analítica, buscamos entender como foi possível chegar ao

que temos hoje como cinema: o registro dos primeiros experimentos de projeções a

partir de estudos da luz e da sombra. A confecção das primeiras lentes. Nomes que

marcaram a evolução da ciência, aliados ao discurso científico ou associados ao

discurso do entretenimento.

Deparamo-nos também com a sugestão do orientador educacional da rainha

da França, que sugeriu que as aulas do filho, enfadado com livros, fossem substituídas

por aulas que se utilizassem das projeções feitas pelos artistas de rua, aliadas a

pinturas de placas com os assuntos considerados importantes para uma boa formação

educacional, digna de sua posição.

Hoje, muitas práticas pedagógicas ainda provocam o mesmo enfado. E por

ironia dessas voltas que o mundo dá, foi justamente “uma apostila” (a necessidade de

cumpri-la como conteúdo) que retirou o Lendo filmes da sala de aula e o colocou no

contraturno. Na verdade, existem cronogramas a serem cumpridos e tudo o que estiver

fora destes – isto até tal dia e aqueles para tal dia – fez com que o Lendo Filmes, hoje

dado no contraturno, fosse visto como elemento que atrapalha o bom andamento do

planejamento anual.

São três as mudanças observadas durante as aulas do curso Lendo Filmes.

Uma, a de deslocamento de sentidos do discurso pedagógico para o discurso

cinematográfico. Outra, a da posição-sujeito: de sujeito aluno para sujeito-fotógrafo,

sujeito-atriz, sujeito-montador entre outros, sem que se perdesse, entretanto, a

dominância de sujeito-aluno. E, por fim, a produção do efeito-autor para além da

função-autor.

A metáfora proposta no filme Vocês passarão – do autoritário para o poético,

simbolizada pelos alunos do curso Lendo Filmes – pôde, através do lúdico e do

polêmico, com embasamento teórico da Análise do Discurso, contestar o processo

adotado ainda em muitas escolas, ou seja, um ensino padronizado, contraditório ao

ensino da arte.

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[ 119 ]

Ao buscarmos entender como foi possível trabalhar com alunos do 5º ao 9º

anos do Ensino Fundamental em um curso de Cinema que desse conta de uma leitura

crítica, em oposição a uma leitura espontânea, nos deparamos com a necessidade de

um deslocamento dos sentidos e dos sujeitos inscritos no discurso pedagógico, para

que fossem afetados pelos sentidos do discurso cinematográfico.

Considerar que as partes de um filme constituem práticas inscritas no que

denominamos o discurso cinematográfico, e que o efeito de unidade constitui o

fílmico possibilitou-nos uma nova prática, de produção cinematográfica inscrita no

discurso pedagógico.

O que este trabalho propõe é a possibilidade de uma interpretação polissêmica

do discurso fílmico em oposição a interpretações parafrásticas, contribuindo, portanto,

na formação de plateias mais críticas.

o curso Lendo Filmes traz para a sala de aula a oportunidade de o aluno se

apropriar de conhecimentos relacionados à arte do cinema, por um deslocamento de

sua forma de inscrição no discurso pedagógico, deixando-se afetar pelos sentidos

do discurso cinematográfico. Desenvolvem-se, aí, atividades teórico-práticas que

auxiliam no conhecimento dos elementos cinematográficos e suas relações, para a

consequente compreensão do discurso fílmico. Ensina a ler filmes e enriquece a

leitura de mundo ao ampliar o olhar do espectador por meio de uma interpretação

dirigida. Busca possíveis relações de sentido da textura do som e da imagem em

movimento, com outras texturas em um exercício de intertextualidade e de

interdiscursividade. Promove – na contramão do discurso pedagógico autoritário – a

interdisciplinaridade, por dialogar com saberes que circulam em diferentes áreas do

conhecimento e contribui para a integração e a contextualização desses saberes.

Disponibiliza material de pesquisa para que os órgãos públicos ou privados ligados

à educação trabalhem com o cinema e com a realização audiovisual de forma

responsável e com embasamento teórico.

Se não é possível ensinar arte, oportunizar a sua vivência é plenamente possível.

Page 120: Capital_Social Com ISBN

[ 120 ]

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7A CHItA CoMo PAno De FUnDo DA CULtUrA PoPULAr Do MArAnHão

Conceição de Maria dos santos Pacheco

7.1 A CHItA no BrAsIL

A chita é um tipo de tecido de algodão com estampa florida e colorida. Fina,

esvoaçante e de baixo preço no mercado nacional.

Tal produto de uso popular teve sua origem na Índia e foi trazida para o Brasil

pelos portugueses, conforme descrito em site do Serviço Social do Comércio de

São Paulo:

Quando chegou a cidade de Calcutá, na Índia, no dia 22 de março de 1498, Vasco da Gama encontrou, entre tantas outras coisas, tecidos de puro algodão, estampados com uma espécie de carimbo de madeira, chamado cunho, em motivos florais, arabescos, listras ou xadrez. Achou que ia vender bem na Europa, e levou para Portugal em sua viagem de volta, junto com as porcelanas, sedas, especiarias e outros produtos cobiçados pelos europeus. (Disponível em:<http://www.sescsp.org.br/sesc/revistas/subindex.cfm?Paramend=1&IDCategoria=3781 >Acessado em: 12/04/2011)

Tem como peculiar o gosto estético que produz pela imagem agradável e o

colorido alegre que impressiona os participantes das danças e expressões culturais de

origem popular.

Considerando a chita como manifestação de um discurso de uma posição

sujeito que representa a cultura popular por compreender que “...o discurso é o lugar

em que se pode observar essa relação entre língua e ideologia, compreendendo-se

como a língua produz sentidos por/para os sujeitos.” (ORLANDI, 2005, p.17)

Percebe-se claramente, pela materialidade da chita, a presença da manifestação

da cultura popular e sua inscrição em uma cultura, no sentido de cultuar uma memória

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artística das expressões populares de beleza, música, arte musical e cênica, o que

NECKEL (2010) define em seus conceitos de tecedura e tessitura porque perpassam

as dimensões da paráfrase e da polissemia na Análise do Discurso.

Parece claro quando se observa o uso da chita, como uma padronagem oriunda

do europeu colonizador como uma paráfrase de quem deseja falar e se coloca na

posição sujeito que o colonizador ocupa para utilizar o caráter polissêmico da linguagem

através das danças, da demonstração das crenças e culturas desenvolvidas no seio da

camada social popular.

Segundo Orlandi, os processos parafrásticos e polissêmicos se equilibram

entre o dizível e o subentendido que representam os deslocamentos no sentido do que

deve ser dito e o que deve ser interpretável...são as “entrelinhas”

Os processos parafrásticos são aqueles pelos quais em todo dizer há sempre algo que se mantém, isto é, o dizível, a memória. A paráfrase representa assim o retorno aos mesmos espaços do dizer. Produzem-se diferentes formulações do mesmo dizer sedimentado. A paráfrase está no lado da estabilização. Ao passo que, na polissemia, o que temos é deslocamento, ruptura de processos de significação. Ela joga com o equívoco. (ORLANDI, 2005, p.36)

7.2 A CHItA CoMo PAno De FUnDo DAs MAnIFestAçÕes CULtUrAIs PoPULAres Do MArAnHão

observa-se nas manifestações populares vistas no Estado do Maranhão a

utilização da chita nas vestimentas, na decoração dos espaços de cultura como marca

das expressões de cultura popular.

A chita como pano de fundo resgata o conceito de pré-construído porque busca

a anterioridade, o que representa para a comunidade, a padronagem, a estampa da

chita remete-se a quê?

é o que Orlandi, 2005 explica:

O pré construído é, portanto, isso que está em posição de anterioridade ou exterioridade em relação ao enunciado em um encadeamento sintático, e ele não se confunde com a

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pressuposição que, na sua própria definição, como na sua marcação empírica do discurso, faz intervir um sujeito de enunciação. Por oposição, o “pré construído” é o efeito do que está sempre já-lá, mesmo nos casos em que o sujeito não denega sua alienação por meio do que Authier denomina “heterogeneidade mostrada” (não constitui em sujeito da enunciação). (ORLANDI, 2005, p.27)

Nas danças e expressões artísticas durante o ano inteiro em suas mais diversas

épocas como carnaval nas fantasias dos tradicionais fofões; na páscoa nas vestes do

Judas; no período junino nas roupas das quadrilhas, dança do côco, bumba-meu-boi,

cacuriá e no Natal nas natalinas observa-se que formam uma marca com uma marcante

e observável presença.

Em geral, os grupos e agremiações de cultura popular organizam as suas

roupas com uma padronagem escolhida para todos os “brincantes”.

As vestimentas, indumentárias e decorações presentes nas manifestações de

cultura popular deixam perceber a memória presente nessa forma de linguagem em

que os participantes se colocam como sujeitos de uma fala e mobilizam uma memória

de suas origens que encontram no espaço da cultura popular o espaço de se colocarem

para a comunidade a que apresentam sua arte.

A memória, por sua vez, tem suas características, quando pensada em relação ao discurso. E, nessa perspectiva, ela é tratada como interdiscurso. Este é definido como aquilo que fala antes, em outro lugar, independentemente. Ou seja, é o que chamamos de memória discursiva: o saber discursivo que torna possível todo dizer e que retorna sob a forma do pré-construído, o já dito que está na base do dizível, sustentando cada tomada de palavra (PêCHEUX, 1999, p. 31).

Percebe-se, então, tratar-se de um pano de fundo, um diferencial, cuja

padronagem das roupas ou, da decoração, demonstra tratar-se de um pertencimento

a um grupo cultural de cultura popular. Embora possam ser sobreposta de outras

indumentárias que transportam para a identidade particular da “brincadeira” ou

manifestação cultural.

No estudo sobre o silêncio, Orlandi (1991 e 1995 in Tânia Clemente, 2001, p.72) observa que os mecanismos de análise que apreendem o verbal através do não-verbal revelam um efeito ideológico que o apagamento que se produz entre os diferentes

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sistemas significantes, dando sustentação, entre outros, ao “mito” de que a linguagem só pode ser entendida como transmissão de formação, ou como sistema para comunicar.

Reiterando a impressão das cores e estampas como um reforçador das

memórias ali contidas, a chita também resgata todo um contexto e configura a posição

de pano de fundo

o trabalho de interpretação da imagem, como na interpretação do verbal, vai pressupor também a relação como a cultura, o social, o histórico, com a formação social dos sujeitos. E vai revelar de que forma a relação imagem/interpretação vem sendo “administrado” em várias circunstâncias.” (SOUSA, 2001, p.73)

o pano de fundo, representado pelo uso da chita nas vestimentas e decorações,

tenta resgatar pontos de um intradiscurso, buscando no espectador uma memória que

liga a cultura popular; a paráfrase mobilizada pelas imagens dos floridos coloridos

gravados no tecido fino e vaporoso das roupas está ligado ao discurso das danças

populares, principalmente se a memória de que a chita chegou ao Brasil por intermédio

dos portugueses e que foi utilizada nas roupas das portuguesas, depois dos escravos

e ficou no gosto popular por seu colorido que se destaca. O pano de fundo está inscrito

na ordem do discurso, na estrutura do dizer, do como dizer de seu pertencimento a um

grupo, a uma ordem cultural que é do popular. é de caráter enunciativo o que se

identifica com o conceito de tessitura, segundo NECKEL (2010).

“Assim, tomamos como Tecedura aquilo que corresponde aos efeitos de sentido nas redes de memória. E, como Tessitura, o funcionamento de sua estrutura enquanto materialidade significante (forma e plasticidade em relação ao funcionamento). Estamos tomando Tecedura no entremear de fios do DA e dos gestos de leitura que lhe são possíveis. Podemos dizer que o gesto de leitura do DA se dá na Tecedura do processo. é pela Tecedura que se configuram as relações intertextuais, mostradas pela Tessitura da matéria significante.”

Ao analisar a presença da chita como um diferencial nas manifestações que

utilizam a estampa colorida como um pano de fundo, como um discurso subliminar

para resgatar uma memória de um sujeito que busca se representar a si próprio numa

sociedade que não lhe permite falar de seu próprio lugar, observa-se a mobilização de

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conceitos de tecedura e tessitura em que coexistem o dito, o presente o materializável

presente na forma da dança, da representação popular e sua presença a partir do uso

da chita, e o não dito, ou o interdito da sua própria história, da sua trajetória de buscar

a visibilidade diante da sociedade a que faz parte.

Essa tessitura de funcionamento singular nos “joga” à tecedura polissêmica do artístico, uma memória que funciona pela forma lúdica. Esta forma lúdica é mediada pelo estético e pelo poético produzindo, assim, estesias: as projeções sensíveis dos sujeitos determinada sócio-histórica e ideologicamente. (NECKEL, 2010, p.6)

olhar a chita como um pano de fundo para as manifestações culturais populares

é perceber o discurso lúdico como o dialógico, é considerar o negociável num discurso

que solicita a memória transversal da história dos povos que formam a cultura brasileira

em sua forma pura, original do dizer pelo dizer, sem o viés mercadológico do marketing

cultural, bem como a busca da forma do falar, da linguagem do se colocar em uma

posição autora de uma linguagem que está em uma outra posição social, de um outro

estrato, o de admirado por uma plateia, semelhante a um teatro com uma mensagem

que pode ser admirada por outros.

“Discurso lúdico: e aquele em que a reversibilidade entre interlocutores é total, sendo que o objeto do discurso se mantém como tal na interlocução, resultando disso a polissemia aberta.” (ORLANDI, 2009, p.154)

A interlocução para esta forma de discurso contida nas manifestações

culturais populares, notadamente do Estado do Maranhão, apoia-se na identificação

da presença que se estabelece na chita que ilustra o discurso que solicita do

interlocutor, na alegria das suas cores e estampas a posição do colonizador que

trouxe a chita para o Brasil, como uma posição estabelecida pelo autor em potencial,

aquele que se coloca como o “senhor” para ser “apreciado” em sua expressão

artística, que é outro lugar onde nem todos podem estar, pois este, que se coloca

apreciados. E, desse lugar de apresentação, que não é qualquer lugar, é que o

popular, o povo, o comum, se faz representar.

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ConCLUsão

A Análise do Discurso oferece aparato teórico e metodológico que possibilita a

utilização de uma “lente” especial para observar o discurso presente no dia a dia e que

costuma conviver como “naturalizado” no contexto social.

A chita como pano de fundo das expressões culturais populares notadamente

do Estado do Maranhão deixa perceber as ideologias e materialidades que estão ali

colocadas e que nem sempre é possível ler por não se materializarem, por não se

colocarem presentes. Mas, que coexistem na “vida real” e que os demais não fazem

questão de perceber e que a chita deixa presente através do discurso lúdico, negociando

o diálogo entre os interlocutores.

No discurso lúdico em que se representa deixa observar que a cultura popular

compreendida no tambor de crioula do Maranhão propõe a sua inclusão no âmbito das

dimensões da polissemia e da paráfrase artística em seus efeitos de sentido nas redes

de memória, a tecedura que se impõe pela dança, sons ritmados e versos entoados

como repentes a manifestação cultural típica, própria em seu modo de existir e de dizer

de uma comunidade, o que não a diminui em relação as demais manifestações com

maior prestígio.Quanto ao funcionamento de sua estrutura como materialidade

significante, ao seu fazer artístico, refere-se à tessitura. A tessitura aproxima o tambor

de crioula, em seu modo de apresentar, a dança. Pois os participantes embalam os

seus corpos no ritmo do batuque dos tambores, vestem roupas com estampas

reconhecidas por seu uso em situações de destaque, de festa, e a tecedura dissolve a

ideia de convenção para a mesma dança. Pois permite que as pessoas criem ritmos,

instrumentos musicais, passos de dança, improviso na composição de toadas e a

utilização de aspectos comuns àquela comunidade para torná-la personificada

utilizando a polissemia como ponto de convergência para as redes de memória.

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8A eternIZAção DA GUerrA Do ContestADo PeLA VIsão e Mãos Dos ArtIstAs no ÂMBIto DA UnC-CAnoInHAs1

Cirene Linzmeier Heyse2 Maria Luiza Milani 3

IntroDUção

O texto a seguir aborda como a arte pode apresentar e eternizar a história.

Define-se neste estudo a guerra do contestado, que inspirou artistas a produzirem

obras de arte – telas – as quais se encontram dispostas no âmbito da UnC-Canoinhas.

Este estudo é a segunda parte do que já foi realizado sobre a produção artística e

literária, encontrada no campus da UnC em Mafra. A opção por esta fonte de dados:

produção artística de profissionais e ou acadêmicos, simbologias, rituais e valores

mais presentes na identidade local-regional. As obras são marcadas pelas cenas

de religiosidade, das relações familiares e do modo de produzir durante o período

da guerra.

Por isso, no desvelamento das representações da identidade cultural do Planalto

Norte Catarinense (composto por dez municípios), deveria ter como ponto forte de seu

capital cultural a guerra do contestado. No entanto, após quase 99 anos, percebe-se

que são tênues as referências da guerra na sua identidade local-regional. Desse modo,

este estudo delimitou o âmbito da UnC-Canoinhas, no qual se levantaram as obras de

seu patrimônio que versassem sobre o contestado, e elegeu duas delas, para, num

1 ???2 ???3 ???

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segundo passo, levantar junto aos artistas que influências tiveram que os levou a

retratarem cenas do contestado na sua produção artística.

Esta pesquisa tem orientação fenomenológica, pois ela tem como pressuposto

o significado que o sujeito atribui ao objeto. Aplicou-se uma entrevista não estruturada,

contendo uma questão desde quando e o porquê optaram pelo tema do contestado;

qual o sentido querem dar com esta inspiração. Para responderem estas questões

foram escolhidos dois artistas que têm suas obras expostas no ambiente da UnC-

Canoinhas. Um deles é morador do município e o outro, é morador do Estado do

Paraná, mas que estudou na UnC (Medicina Veterinária). Os artistas responderam as

questões pessoalmente, explicitando a sua compreensão e versão dada ao tema do

contestado em suas obras.

8.1 os ArtIstAs

8.2 PrIMeIrAMente se APresentAM AsPeCtos BIoGrÁFICos Do ArtIstA, eM seGUIDA se APresentAM DUAs oBrAs De CADA PIntor, As qUAIs ConFIrMAM, De ACorDo CoM os ProPÓsItos Deste teXto, qUe A PIntUrA eM teLA PoDe se tornAr UMA Fonte reFerenCIAL De estUDos e AnÁLIses soBre A GUerrA Do ContestADo.

8.3 A PrIMeIrA ArtIstA é HeLoAnA terPAn. eLA é nAsCIDA eM CAnoInHAs, eM JUnHo De 1971 – CenÁrIo DA GUerrA Do ContestADo – onDe resIDe Até o MoMento. é ForMADA eM eDUCAção ArtÍstICA CoM HABILItAção eM Artes PLÁstICAs PeLA UnIVersIDADe PresBIterIAnA MACKenZIe De são PAULo. esPeCIALIstA eM Arte – eDUCAção PeLA UnIVersIDADe Do estADo De sAntA CAtArInA (UDesC). AtUA CoMo ProFessorA nA UnC, nAs LInGUAGens De DesenHo e PIntUrA CoM ênFAse nA ProDUção ConteMPorÂneA. teM VÁrIAs oBrAs ProDUZIDAs PeLA téCnICA CUBIstA. JÁ ProDUZIU CerCA De oBrAs CoM o teMA ContestADo.

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[ 133 ]

Para este texto foram escolhidas duas obras, as quais servirão de referência no

contexto do tema deste estudo.

Título: Guerra – Produzida em 2010 (1,20 x 0,90cm)

Descrição contextualizada do tema da obra:

A obra denominada Guerra propõe uma reflexão do que foi a guerra do

Contestado, suas influências políticas e sociais, o contexto em que transcorreu e os

principais motivos que levaram ao conflito. Essas questões são identificadas na leitura

dos elementos compositivos da pintura e dos objetos inseridos na sua produção; a

exemplo das cédulas de dinheiro, representam a influência do poder, não só da época

do conflito, e também retratam as visões sociais ambiciosas que permaneceram no

poder, no âmbito não só local como mundial. Os traços em vermelho simbolizam os

fatos sangrentos e o calor da guerra e eles propõem indagações e reflexões acerca

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[ 134 ]

deste episódio no que tange aos elementos influentes no tempo da guerra ou os

elementos que fazem parte da identidade individual e social presentes no território.

Título: Paz – produzida também em 2010 (1,20 x 0,90cm)

Descrição contextualizada do tema da obra:

Esta obra identifica, por suas cores frias da pintura, a calmaria e a esperança

de um recomeço que seguem em direção à linha do horizonte. Ainda, a vontade do

povo em retomar suas vidas mesmo com as ameaças geradas no período da Guerra

do Contestado. A palavra “Paz” escrita entre os elementos simboliza o grito de

esperança daqueles que em momentos da vida não enxergavam nada além do fim.

Esses elementos, que parecem ter ficado na história, surgem na imagem, estimulando

uma leitura direcionada à realidade do povo e do mundo que se vive hoje. As cédulas

de dinheiro inseridas colocam em cena a continuidade do poder de forma vertical, bem

como questionam as incertezas do futuro.

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[ 135 ]

8.4 o seGUnDo ArtIstA é JULIAno BenAZZI. é PArAnAense De GenerAL CArneIro, nAsCIDo eM JUnHo De 1971, ForMADo eM MeDICInA VeterInÁrIA PeLA UnC, ProFIssão qUe eXerCe eM sUA CIDADe nAtAL. este MUnICÍPIo tAMBéM FeZ PArte Do terrItÓrIo no qUAL oCorreU A GUerrA Do ContestADo. neLe se sItUA o MonUMento eM HoMenAGeM Ao AVIADor Morto eM CoMBAte eM (KIrKen) qUe se tornoU PAtrono no eXérCIto BrAsILeIro. InICIoU CoMo ArtIstA AUtoDIDAtA eM 1997. FeZ UM CUrso De PIntUrA A ÓLeo no AteLIê De JeFerson BernArDon eM UnIão DA VItÓrIA entre 1996 e 1999 e oUtro CoM ArI MAtIosKI, eM CAnoInHAs, entre 2000 e 2003. PArtICIPoU De VÁrIAs eXPosIçÕes e MostrAs reGIonAIs De Artes VIsUAIs. no entAnto, teM se DeDICADo À PIntUrA (ÓLeo soBre teLA) e sUAs oBrAs têM retrAtADo eLeMentos Do ContestADo. A Arte é PArte DAs AtIVIDADes FAMILIAres Do BenAZZI. ALéM De JULIAno, seU tIo BenAZZI, PIntA HÁ MAIs De 42 Anos os AsPeCtos Do ContestADo, UtILIZAnDo A téCnICA BICo De PenA. As oBrAs Dos BenAZZI (tIo e soBrInHo) FAZeM sUCesso nAs eXPosIçÕes qUe oCorreM nA reGIão.

8.5 A UnIVersIDADe Do ContestADo-CAMPUs CAnoInHAs PossUI VÁrIAs oBrAs Do ArtIstA CoM A teMÁtICA ContestADo eM seU ACerVo, PerMAnenteMente eXPostAs Ao PúBLICo.

Para este texto foram escolhidas duas obras, as quais servirão de referência no

contexto do tema deste estudo.

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[ 136 ]

Título: Os dois lados dos trilhos – Poder Bélico – produzida em 2010 (84 x 1,10cm)

Descrição contextualizada do tema da obra:

Esta obra mostra as diferenças do poder bélico das forças do governo e dos

jagunços que lutavam na guerra do contestado. Os jagunços, apesar de lutarem muitas

vezes com espadas de madeira, resistiram bravamente em muitos conflitos, sendo a

estratégia e o conhecimento da região a melhor arma que possuíam.

Título: Os dois lados dos trilhos – Dominação – produzida em 2010 (84 x 1,10cm)

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[ 137 ]

Descrição contextualizada do tema da obra:

A obra demonstra a maneira como o poder internacional agiu impondo suas

leis em consenso com o governo brasileiro, que levou à expulsão dos moradores da

região, onde ocorreu a guerra do contestado. O governo brasileiro na época doou a

posse das terras destes moradores à multinacional americana, em troca da construção

de uma ferrovia que se encontra desativada.

8.8 oPção Dos ArtIstAs PeLo teMA ContestADo

8.9 PArA HeLoAnA terPAn, “o teMA Do ContestADo Me InteressoU reCenteMente. MAIs PreCIsAMente eLe FoI senDo estIMULADo PeLAs FALAs DAs PessoAs e Dos ALUnos nA UnC, qUe ForAM Me CHAMAnDo A Atenção soBre eLe. MAs o qUe MAIs Me InstIGoU MesMo FoI A FALA reCorrente soBre A GUerrA – o FAto HIstÓrICo e o enALteCIMento Do qUe FoI sAnGrento. estes AsPeCtos ForAM toMAnDo ForMAs e Me LeVAnDo As ForMULAr qUestÕes: onDe FICoU A HIstÓrIA Do ContestADo não HÁ BeLeZA nos MUItos AsPeCto qUe CoMPÕeM o ContestADo – PorqUe não se FALA DA rIqUeZA qUe FoI esse PerÍoDo. PortAnto, o IMPACto esPerADo Ao retrAtAr seUs AsPeCtos é oCAsIonAr UM sentIDo nAs PessoAs qUe As LeVeM A se InteressAr soBre o qUe estÁ Por trÁs De CADA UM Dos DetALHes. qUe As PessoAs PossAM ser estIMULADAs A Ir eM BUsCA De sABeres PArA resPonDer os PorqUês, Dos sIGnIFICADos, Dos trAços e DA HIstÓrIA qUe enVoLVe CADA DetALHe DA oBrA. tAMBéM, o CoLorIDo UtILIZADo nA CoMPosIção DAs oBrAs PossA sUBsIDIAr UMA Versão ALeGre DA HIstÓrIA Do ContestADo, qUe se PAre PArA PensAr no qUe rePresentAM As Cores. Por eXeMPLo, VerMeLHo: seMPre é o sAnGUe DA GUerrA, MAs estA Cor não teM oUtros sIGnIFICADos PArA ALéM DeLe.”

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[ 138 ]

8.10 PArA JULIAno BenAZZI, “o qUe Me LeVoU A DeFInIr o ContestADo CoMo teMA De MInHAs oBrAs ForAM As HIstÓrIAs soBre o teMA JÁ oUVIA DesDe MUIto JoVeM. CresCI nA reGIão CoM UMA AtrAção PeLos FAtos Do PAssADo LoCAL, tAnto qUe Antes DA PIntUrA tInHA CoMo HoBBy CoLeCIonAr AntIGUIDADes. oUtro FAtor InFLUente nA DeCIsão, ForAM os ConteúDos DAs DIsCIPLInAs nA UnC, qUe ABorDAVAM A HIstÓrIA, PessoAs e LoCAIs LIGADos Ao teMA. Deste PerÍoDo (esPeCIALMente qUAnDo CUrseI nA UnC, MeDICInA VeterInÁrIA), eM DIAnte, tenHo o ContestADo CoMo PArte De MInHA HIstÓrIA. PoDer ContrIBUIr PArA A ILUstrAção e PArA A PesqUIsA De UM FAto tão reLeVAnte De nosso PAssADo e qUe AInDA VeM reFLetInDo eM nosso Presente, é GrAtIFICAnte. CoM estAs oBrAs esPero qUe PossA DesPertAr As PessoAs soBre A IDentIDADe CULtUrAL reGIonAL. não terIA sentIDo UMA oBrA De Arte se não DesPertAsse nAs PessoAs A VontADe oU o Interesse PeLo qUe HÁ Por trÁs DeLA, o qUe qUer DIZer. esPero qUe MInHA oBrA PossA FAZer CoM qUe As PessoAs reFLItAM soBre o teMA, os erros e ACertos Do PAssADo e CoM Isso PoDer ForMAr UMA soCIeDADe MeLHor no FUtUro.”

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[ 139 ]

9 eLeMentos teÓrICos orIentADores

9.1 GUerrA Do ContestADo

Entre 1912 a 1916, ocorreu na fronteira norte do Estado de Santa Catarina

(divisa com o Estado do Paraná), numa área em litígio, a guerra do contestado. Foram

várias as causas deste conflito armado. Na mesma época e no mesmo lugar, ocorreu

um movimento messiânico de grandes proporções; disputa pela posse de terras aliada

à questão dos limites interestaduais; e competição econômica pela exploração de

riquezas naturais abundantes no território.

As bases do conflito sangrento se estruturaram ao redor de uma legião de

fanáticos religiosos composta por agregados das fazendas dos coronéis, por ex-

operários demitidos quando da conclusão da construção de uma estrada de ferro, por

sem-terras, ex-posseiros retirados de suas áreas de terra onde plantavam e viviam, por

ervateiros sem erva para colher; por dezenas de pequenos proprietários expulsos de

seus pinheirais; e por outros comerciantes que perderam seu pequeno negócio.

9.2 estA Gente CABoCLA, ForA DAs LeIs DA eConoMIA AGroPAstorIL, VIVIA onDe oCorreU o ConFLIto Do ContestADo, tIDA CoMo UMA “terrA De nInGUéM”, MArCADA PeLA PersIstênCIA De UMA VeLHA rIXA De 150 Anos entre o PArAnÁ e sAntA CAtArInA, eM qUe A AUtorIDADe DIsCUtIA se os LIMItes GeoGrÁFICos DeVerIAM oU não ser MoLHADos PeLA MArGeM esqUerDA Dos rIos: neGro e IGUAçU.

9.3 IDentIDADe(s)

A identidade cultural é constituída por vários elementos; entre os quais, o

cultural, o econômico, o político e o religioso. Segundo Hall (1999), uma identidade

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[ 140 ]

cultural enfatiza aspectos relacionados à nossa pertença, a culturas étnicas, religiosas, regionais e (ou) nacionais.

Ao se analisar essa afirmação, este autor focaliza particularmente as identidades culturais que referenciam as culturas nacionais. Para ele, a nação é, além de uma entidade política – o Estado –, um sistema de representação cultural. Noutros termos, a nação é composta de representações e símbolos que fundamentam a constituição de uma dada identidade nacional. Segundo Hall (1999), as culturas nacionais produzem sentidos com os quais podemos nos identificar e constroem, assim, suas identidades.

Esses sentidos estão contidos em estórias, memórias e imagens que servem de referências, de nexos para a constituição de uma identidade da nação.

Entretanto, segundo Hall (1999), vivemos atualmente numa “crise de identidade” que é decorrente do amplo processo de mudanças ocorridas nas sociedades modernas. Tais mudanças se caracterizam pelo deslocamento das estruturas e processos centrais dessas sociedades, abalando os antigos quadros de referência que proporcionavam aos indivíduos uma estabilidade no mundo social.

A modernidade propicia a fragmentação da identidade. Conforme o autor, as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade não mais fornecem “sólidas localizações” para os indivíduos, que os alia a uma cultura.

9.4 Por soDré (1981), A CULtUrA é entenDIDA PeLo nÍVeL De DesenVoLVIMento ALCAnçADo PeLA soCIeDADe. CULtUrA é UM sIsteMA De AtItUDes, De JUÍZo De VALores, De MoDos De PensAr, sentIr e AGIr. é o MoDo De VIDA De UMA soCIeDADe. é o resULtADo DAs trAnsForMAçÕes HUMAnAs, A soMA Do ConHeCIMento HUMAno. enqUAnto HeteroGêneA, A CULtUrA é, Ao MesMo teMPo, MAterIAL e esPIrItUAL.

Por isso, a identidade de uma pessoa está relacionada à identidade cultural de um povo, composta pela herança repassada de geração a geração, que reflete a sua origem, complementada pela produção e aprendizagem do homem.

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[ 141 ]

Como identidade cultural, é uma mistura. No contexto do contestado soma-se

a identidade religiosa e capitalista, os elementos remanescentes dos europeus com a

influência cabocla.

Na perspectiva da identidade cultural, a guerra do contestado aparece com seu

patrimônio visual das fotos, mas que de fato aconteceu a exploração da madeira e da

erva-mate, como produtos do desenvolvimento. Por outro lado, a exploração da terra

e da força de trabalho, impulsionadores da guerra, é reconhecida como forte elemento

da identidade cultural local e regional.

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10estrADA DonA FrAnCIsCA: A MéMÓrIA De UMA nAção

Marilene teresinha stroka1

IntroDUção

O estudo que está sendo proposto tem como objeto a memória discursiva na

qual se inscreve o sujeito imigrante colonizador da região norte de Santa Catarina, a

partir da análise de documentos relativos à imigração de alemães para este “novo

lugar”. Toma-se esse “novo lugar” como nova nação, não somente geográfica, mas

como lugar simbólico, em que esse sujeito significa pela história e pela ideologia de

uma determinada sociedade.

Para esse entendimento, busca-se conhecer a concepção de nação, cujo

sentido vem sendo construído ao longo dos séculos de acordo com as realidades de

cada época e, por isso, está em permanente transformação. Vários estudiosos

contribuíram e contribuem com a formação desse conceito. Pensar um conceito de

nação para Hobsbawm (1990), por exemplo, é pensar em ações políticas e linguísticas.

Entretanto, é um conceito que transcende o significado do signo “nação”, transformando-

se ao longo do tempo e agregando novos sentidos. Esse autor coloca que vários

elementos constitutivos do sentido de nação, que não eram relevantes no passado

foram somados aos já existentes, corroborando para uma ideia de nação contemporânea.

Para ele, nação se caracterizava pelo “corpo de cidadãos cuja soberania coletiva os

constituía como um Estado concebido como uma expressão política” (1990, p.31),

1 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem da Universidade

do Sul de Santa Catarina – Unisul. Coordenadora da Universidade do Contestado UnC/Rio Negrinho e

Professora da UnC.

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incluindo-se cidadania e governo. Também se determinava pelo território, onde eram

necessárias fronteiras que poderiam conter etnias e línguas diversas. Hoje, têm-se

como constitutivos do que se pode chamar de uma nação, embora não absoluta, pois

não existe uma uniformidade em relação a todas as nações, elementos contemporâneos

que compõem esse pensamento como: a etnicidade, a religião e a história, além da

língua nacional.

Outro autor que faz referência ao conceito de nação é Anderson (2008). Para

ele, nação é definida como uma comunidade política imaginada como limitada e

soberana. é imaginada porque cada componente dessa nação acredita que todos estão

unidos pela língua, pela etnia, pela religião e (ou) pela história, mesmo sem o

conhecimento mútuo de todos que compõem essa nação. Ela é percebida como

limitada porque possui fronteiras finitas (território). A nação é vista como soberana

porque defende a sua liberdade política (Estado) e é imaginada “como uma comunidade

porque, independente da desigualdade e da exploração que possa existir dentro dela, a

nação é sempre concebida como uma profunda camaradagem horizontal” (p.34), ou

seja, ela é legitimada por um efeito de unidade dentro dessa comunidade. Por isso,

para esse autor, a nação é passível de transformações ao longo da história, pode se

adaptar a diferentes sociedades, pois, apesar de seu caráter heterogêneo e desigual, o

que prevalece é o efeito de unicidade.

Com algumas dessas contribuições dos vários conceitos de nação,

referenciados em diferentes áreas da ciência, pode-se dizer que nação se constitui

e constrói-se no presente, tendo um vínculo no passado e na perspectiva do futuro.

é um lugar habitado por um povo que se imagina unido por uma nação, constituindo

um corpo simbólico que depende de práticas sociais e discursivas.

Com uma visão de nação simbolicamente unida por meio de práticas sociais e

discursivas, coloca-se o sujeito imigrante alemão como constituinte dessa nação, na

medida em que esse inscreve na nova terra sentidos que vão se dando ao longo da

história, em uma constante transformação. Pode-se dizer que essa nação não é mais

a Alemanha e nem é o Brasil. é uma nação imaginada pelos imigrantes por sua união,

constituída pela língua, pela etnicidade, pela religião e pela história, mas mesmo esses

elementos constitutivos do que se pode chamar de nação, Hobsbawm (1990) diz que

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[ 145 ]

são em si mesmos ambíguos, mutáveis e opacos. Com isso, tem-se a nação como

passível de transformações.

Segundo Seyferth:

[...] a Volkstum alemã, o germanismo ou germanidade, a essência da Ale manha, representando o mundo teutônico. Deutschtum engloba a língua, a cultura, o Geist (espírito) alemão, a lealdade à Alemanha, enfim, tudo o que está relacionado a ela, mas como nação e não como Estado. Volkstum e Deutschtum, portanto, trazem consigo a ideia de que a nacionalidade é her dada, produto de um desenvolvimento físico, espiritual e moral: um alemão é sempre um alemão, ainda que tenha nascido em outro país. (1999, p. 46)

Na Análise do Discurso os vários sentidos de nação não devem ser

desconsiderados, pois as condições de produção dos discursos são determinadas

socialmente e historicamente, e para compreender a construção do sentido de nação,

deve-se pensar nela num plano discursivo, em que as imagens produzidas atravessam

os enunciados e o tempo, através do interdiscurso.

A teoria da Análise do Discurso (AD), proposta por Pêcheux, concebe a

linguagem como lugar de constituição dos sujeitos e dos sentidos. A materialidade é o

discurso, que torna possível tanto a permanência e continuidade quanto o deslocamento

e a transformação do homem e da realidade em que ele vive (ORLANDI, 2009). Por

isso, o discurso é apresentado nessa teoria como a língua posta em funcionamento

por sujeitos, produzindo sentidos numa dada sociedade.

Para fazer uma relação dos traços que constituem a imagem de nação e a língua,

apropria-se de um importante conceito da Análise do Discurso que ajudará no

entendimento dessa imagem, que é o conceito de cenografia, que Mangueneau (1989)

coloca como “encenação” ou representação da enunciação no enunciado. Na cenografia,

tem-se um efeito de sentido produzido pela enunciação. é um efeito necessário como

forma de legitimar-se, instituir-se em um determinado processo enunciativo.

Portanto, a cenografia constitui-se por imagens das coordenadas da

enunciação, construídas pela própria enunciação. Essas coordenadas, que compõem

o que Maingueneau (1989) chama de dêixis discursiva, são o enunciador, o

coenunciador, a cronografia e a topografia. O enunciador e coenunciador correspondem

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[ 146 ]

às imagens dos participantes da enunciação e as duas últimas, às condições

espaço-temporais relativas aos participantes. A cronografia demonstra a dimensão

temporal da imagem da nação e constrói-se nos usos da língua politicamente

marcados e, portanto, inscritos na história nacional. Quanto aos sujeitos da

enunciação, representados pelo enunciador e seu coenunciador, estão relacionados

às imagens do povo, do Estado que o representa, e da sua etnicidade (aí se inclui

tanto a religião quanto a língua e a história). E finalmente, a dimensão espacial,

representada pela topografia, que faz referência à imagem do território nacional.

Desse modo, pode-se afirmar que, mediante análise da cenografia construída em

um enunciado, é possível reconstruir um sentido de nação, que não esgota as

possibilidades de outros sentidos.

A Análise do Discurso não trabalha com a língua como um sistema abstrato,

mas com a língua no mundo, com maneiras de significar, com homens falando,

considerando a produção de sentido como parte de suas vidas na condição sujeitos e

membros de uma determinada forma de sociedade. (ORLANDI, 2009). Portanto,

segundo Dias (2001, p.197), “a relação entre o que somos e a língua que falamos vai

sendo moldada nas formas silenciosas de pensarmos o sentido da própria nação”

10.1 ConteXto HIstÓrICo DA IMIGrAção ALeMã eM são Bento Do sUL

Como base do estudo, apresentam-se as condições históricas que atuam para

o funcionamento da memória histórica desse sujeito, visto que ele assume diferentes

posições no discurso, considerando sempre os processos e as condições de produção

da linguagem em que esse movimento se marca.

A realidade histórica que está sendo focada tem seu início na Europa, na

antiga Prússia Ocidental, com os chamados alemães, pois somente em 1971 a

Alemanha é unificada e organizada como país, procedente de inúmeros estados.

Esses alemães, no século XIX, viviam em dificuldades devido a um excessivo

crescimento da população, sendo desproporcional ao desenvolvimento dos meios

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[ 147 ]

de produção da época, além dos elevados impostos e barreiras alfandegárias

impostas à população. Outros fatores como a Revolução Industrial também se

constituiu como ameaça, mostrando as consequências de sua arrancada inovadora,

fazendo produzir sempre mais com menos braços.

As famílias eram numerosas e as terras eram poucas, ficando normalmente,

após a divisão, para o filho mais velho. Tudo isso aliado ao fim da Guerra franco-

prussiana, fizeram com que o número de indivíduos com desejos de buscar um “novo

mundo” aumentasse, e o Brasil era uma opção vantajosa, pois já havia fortes laços

com a Alemanha. Mas o que determinou o início da colonização alemã nas terras de

Santa Catarina e mais especificamente no norte do estado foi o recebimento de grandes

extensões de terras devolutas (terras pertencentes ao Estado que na época integravam

o domínio da Coroa Portuguesa) na então província de Santa Catarina, pelo príncipe de

Joinville, como dote do casamento com Dona Francisca, irmã de D. Pedro II. Quando

o príncipe de Joinville refugiou-se na Inglaterra devido à queda do rei Louis Philipe e a

Revolução na França em 1848, estava exilado e sem meios para manter-se, por esse

motivo, o príncipe ofereceu parte de suas terras ao senador Christian Mathias

Schroeder, que firmou a Sociedade colonizadora de Hamburgo.

Por decreto do governo brasileiro ou por meio das companhias particulares, os

imigrantes se instalaram nessas terras e tornaram-se colonos, sendo definidos mais

tarde, pelo governo, como camponeses de origem europeia.

Os imigrantes alemães eram encaminhados às colônias em situação precária,

pois o processo de concessão de terras era demorado e penoso, principalmente para

aqueles que chegaram depois da primeira leva de imigrantes. Os colonos alemães

foram pioneiros nessas terras devolutas, ficando isolados nas colônias e, segundo

Seyferth (1999), somente tiveram um contato mais intenso com a população brasileira

já no período republicano.

Assim, em 1851, foi fundada a Colônia Dona Francisca, hoje Joinville, dando

início ao futuro desenvolvimento da região nordeste e norte de Santa Catarina. Para

a recém-fundada colônia, a ligação terrestre com o planalto era de vital importância,

e assim a direção do empreendimento colonizador deu início a um projeto de

construção da estrada Dona Francisca, como estratégia de ampliar a colonização

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[ 148 ]

alemã que se fazia nas terras do príncipe de Joinville. Estas iam até o alto da serra e

extremavam com as terras do Conde D’Eu, genro de D. Pedro II, proprietário de

grande parte do planalto.

O projeto de povoar esses territórios com imigrantes alemães contava com o

interesse e apoio do governo imperial do Brasil, pois as terras precisavam ser habitadas

por pessoas consideradas muito civilizadas (KORMANN, 1989), que fossem capazes

de fazer o progresso sem muita interferência do governo, sem muito paternalismo;

indivíduos que fossem capazes de mostrar que era possível resolver seus próprios

problemas culturais, sociais, econômicos e políticos no fundo do sertão, longe de

tudo, pois eram pessoas que já tinham passado por problemas e vivências dentro de

um sistema de sociedade organizada.

Seyferth (1999) diz, ainda, que além das questões de ordem econômica e

política, aparece a de cunho ideológico, relacionada ao problema da nacionalidade,

pois se buscava o imigrante ideal para um país que pretendia se transformar numa

nação branca, de civilização ocidental e economia capitalista, mas, principalmente,

por um imigrante “dócil” e “obediente”, prestando-se melhor ao trabalho e à vida

nas colônias.

Foi então que se efetivou a imigração alemã na região e principalmente no alto

da serra, de clima tão ameno, onde os germânicos facilmente se habituaram e também

serviram de vanguarda catarinense na conquista do sertão planaltino, ao mesmo

tempo em que de retaguarda para a Colônia Dona Francisca, hoje a cidade de Joinville.

E assim, em 1873, setenta pioneiros sobem a serra e recebem os primeiros lotes

demarcados. Com isso, a vila de São Bento tornou-se realidade concreta. De acordo

com Pfeiffer (1997, p.22), dentre os setenta homens “a maioria era casada, escolhidos

entre os quase 2.000 imigrantes amontoados nas casas de recepção em Joinville”.

Depois de subirem a serra a pé, pela picada aberta por Wunderwald, o grupo chegou

e, à medida que as terras foram demarcadas, esqueceram o cansaço e todas as

dificuldades, embrenhando-se mato adentro para limpar a área para futuras plantações

e construir as casas para a instalação de suas famílias.

o projeto da colonização sempre teve o objetivo de fundar uma colônia no

planalto, o que começa a ser concretizado em 1853, com o registro da primeira subida

Page 149: Capital_Social Com ISBN

[ 149 ]

ao planalto do engenheiro Carl August Wunderwald, que se tornou inesquecível por

suas expedições, explorando novas áreas para a colonização. Ficker (1973, p.18)

afirma que “Em verdadeiras odisséias e penosas caminhadas a pé, o engenheiro

conseguiu escalar a Serra Geral e trazer notícias da fertilidade das terras e das

possibilidades de uma colonização no planalto catarinense”.

Com um tratado entre a Colônia e o Governo Imperial para a construção da

estrada Dona Francisca foi enviado, em 1855, o engenheiro Carl Platz, para fixar

definitivamente o traçado da futura estrada e estabelecer o rumo no planalto em direção

a Rio Negro (Mafra), onde já havia, desde 1829, colonos alemães. Platz, em seu

relatório, descreve as vantagens da estrada para esses moradores e para a colônia

Dona Francisca, pois facilitaria o envio dos produtos para Joinville e São Francisco do

Sul, diminuindo assim a viagem pela metade do tempo, pois não teriam mais que se

deslocar por Morretes (PR). Em seu diário de viagem, Platz afirma, segundo Ficker

(1973, p. 19), que “Para a colônia Dona Francisca a estrada é sem dúvida uma questão

vital a facilidade de communicação (...)”. Também exalta as terras do planalto acima

da serra. “O terreno do planalto é em geral de melhor qualidade, o clima mais saudável,

o ar mais puro e mais fresco e muito mais apropriado à constituição dos Européus do

que o ar quente e humido do litoral” (FICHER, 1973, p.20).

O traçado não foi aceito pelo governo do Paraná que queria que a estrada

seguisse diretamente a Curitiba, mas Santa Catarina tinha o apoio do governo Imperial

para levar a estrada pelo planalto até Rio Negro, hoje Mafra. Com isso, inicia uma longa

e lenta rixa entre os dois estados, chegando o Paraná a reagir de uma maneira

surpreendente, colocando barreiras alfandegárias na própria província de Santa

Catarina, pois considerava que todo planalto catarinense era território paranaense. Mas

de nada adiantou a tentativa de mudar o traçado da estrada, nem as retaliações feitas,

já que ficou acordado que a estrada seguiria pelo planalto até Rio Negro.

A Guerra do Paraguai retardou a conclusão da Estrada, pois o governo imperial

deixou de repassar as subvenções mensais para a sua conclusão, destinando-as à

guerra. E assim, a Estrada Dona Francisca, iniciada em 1858, só foi inaugurada em

1895. Durante muito tempo, foi uma das mais importantes estradas do Brasil e de toda

a América Latina e fez nascer uma nova colônia, São Bento do Sul e seus descendentes,

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[ 150 ]

Campo Alegre, que conquista sua emancipação política e administrativa em 18 de

março de 1897, e Rio Negrinho, que em 30 de dezembro de 1953 desmembra-se de

São Bento do Sul.

A estrada trouxe desenvolvimento para a região e novos imigrantes chegavam

com o sonho de uma nova nação, trazendo, além do conhecimento da indústria e

agricultura, toda a materialidade simbólica representada pela língua, pelos costumes e

pela cultura, constituindo o que se tem hoje como memória histórica da imigração.

ConsIDerAçÕes FInAIs

é com a intenção de cruzar linhas da memória desse imigrante que se busca

na teoria da Análise do Discurso (AD) fazer uma reflexão sobre o funcionamento da

memória discursiva, sendo constituída pela língua que se inscreve na memória

histórica, materializada na linguagem por meio de documentos, depoimentos, músicas,

danças, enfim, formas de linguagem com diferentes materialidades significantes.

O que se propõe como pesquisa é demonstrar como a memória do sujeito

imigrante transita nas várias formações discursivas e como os sentidos podem se

estabilizar (paráfrases) ou podem se ressignificar (polissemia) nessa construção

dessa nova nação, como lugar simbólico, que não é o Brasil, pois esse sujeito traz sua

ideologia, sua memória histórica, traz o já dito (ORLANDI, 2009), e nem a Alemanha,

porque ele está determinado por um tempo histórico e por um espaço social que já não

é o lá. São novos dizeres, movimentando novos sentidos, pois os dizeres sofrem

atravessamentos quanto postos em outros contextos sociais. Esse é o jogo da memória

e dos esquecimentos e é a partir do conflito das diferentes memórias que se tem a

formação da sociedade, dessa nação simbólica para o imigrante.

reFerênCIAs

AMMON, Wolfgang. Chronica do Município de são Bento. Traducção Elly Herkenhoff. Typografia Boehm: Joinville, 1923.

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Page 152: Capital_Social Com ISBN
Page 153: Capital_Social Com ISBN

[ 153 ]

11A eDUCAção PAtrIMonIAL: UM oLHAr PArA o PAtrIMÔnIo HIstorICo e CULtUrAL

Flavia Albertina Pacheco Ledur1 Carla sussenbach2

Carlos roberto rodrigues da silva3 Claudia regina Pacheco Portes4

Mercedes Maria Gevaerd5

Um dos principais objetivos da Educação prevista pela Lei de Diretrizes e Bases

da Educação Nacional (Lei n.º 9394 de 20 de dezembro de 1996), é o preparo para o

1 Possui graduação em Licenciatura em História pela Faculdade Estadual Filosofia, Ciências e

Letras de União da Vitória-PR, Especialista em História e Sociedade pela mesma Instituição, Mestranda em

Desenvolvimento Regional pela Universidade do Contestado – UnC – Canoinhas-SC. [email protected]. 2 Possui graduação em Educação Artística pela Faculdade de Artes do Paraná – FAP (1987)

e especialização em Arte Educação pela Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC (2003),

mestranda em Desenvolvimento Regional na Universidade do Contestado – UnC (2010). Atua como

professora e coordenadora do Curso de Artes Visuais na Universidade do Contestado – Canoinhas/Porto

União. [email protected]. 3 Possui Graduação em Gestão Pública, e Graduação em optometria pela Universidade do

Contestado – UNC, Canoinhas-SC. Pós Graduado em ORTÓPTICA E TERAPIA VISUAL pela Faculdade

Internacional San Martim-Colômbia. Mestrando em Desenvolvimento Regional pela mesma Instituição,

email: [email protected] Possui Licenciatura em História pela Faculdade Estadual Filosofia, Ciências e Letras de União da

Vitória-PR, Especialista em História e Sociedade pela mesma Instituição, Mestranda em Desenvolvimento

Regional pela Universidade do Contestado – UnC – Canoinhas-SC. [email protected]. 5 Possui graduação em Educação Artística – habilitação em Artes Plásticas pela Universidade do

oeste Catarinense –UNoESC, especialização em Arte Educação pela Universidade de Passo Fundo – UPF

e mestrado em Educação e Cultura pela Universidade do Estado de Santa Catarina UDESC. Atua como

professora do Curso de Artes Visuais na Universidade do Contestado – Canoinhas/Porto União/Curitibanos.

[email protected].

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[ 154 ]

exercício da cidadania. Mas esse processo somente se consolidará, se dentro do

ambiente escolar houver trabalhos voltados para esse fim, práticas que levem os

alunos a desenvolverem noções de ética e práticas de cidadania, pois a Escola nesse

momento tem um papel de responsabilidade social, sendo que a Educação se faz

necessária como instrumento de alfabetização cultural, que capacita o indivíduo à

leitura e compreensão da sociedade e cultura em que está inserido.

Nesse sentido, o conhecimento e a apropriação pela comunidade escolar são

fatores indispensáveis ao processo de preservação do Patrimônio Histórico Cultural de

um determinado local. Este processo de valorização e de troca possibilita a geração e

produção de novos conhecimentos, num processo contínuo de enriquecimento

individual, coletivo e institucional, viabilizando a cidadania. Para Jeudy (1990), “[...] o

Patrimônio não se e restringe ao monumento, ele busca um novo caminho que é o das

memórias coletivas.” Dessa forma, existe uma relevância do Patrimônio como um

conceito intrinsecamente educativo, pois sua contribuição surge por permitir uma

relação entre coletivo e Escola, afetando diretamente o processo de ensino-

aprendizagem. Por esse caminho é possível entender a importância de se levar tal

discussão para a esfera escolar, pois valorização do Patrimônio Histórico Cultural em

sua complexidade e amplitude pode ser um elemento enriquecedor do processo de

ensino aprendizagem.

A Educação como elemento reconhecedor do Patrimônio Histórico tem a

função de desenvolver práticas pedagógicas voltadas para o reconhecimento dos bens

patrimoniais e de sua valorização ativa e consciente, promovendo atitudes que levem

em conta uma melhor relação dos cidadãos com o Patrimônio que faz parte de sua

vida, assim exercitando a prática da cidadania participativa e a construção do

conhecimento atrelado aos verdadeiros interesses populares.

é comum as pessoas considerarem que o Patrimônio Histórico Cultural de uma

região possa apenas ser encontrado dentro dos museus. Desmitificar essa ideia seria

a proposta da Educação, que levaria os alunos a descobrir a importância e valorizar

esse Patrimônio, redescobrindo marcos culturais, e tomar conhecimento de sua

história, bem como da necessidade de uma Política Pública de conservação do

Patrimônio, também fazem parte do exercício.

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[ 155 ]

A Educação Patrimonial é uma prática educativa utilizada para a apropriação

dos bens culturais que propõe o Patrimônio Histórico Cultural; contudo, mostra que

uma sociedade organizada é a maior geradora de ações educativas no que tange à

importância e à valorização do Patrimônio Histórico Cultural de uma região.

O trabalho com o Patrimônio Histórico Cultural de uma região delimitada, em

sala de aula, parece ser um exercício árduo, pois existem desafios principalmente em

relação à construção de um currículo que privilegie as ações centradas na valorização

do Patrimônio Histórico Cultural. é saber notório que a importância da valorização do

Patrimônio, entendido como todos os bens de natureza material e imaterial portadores

da identidade dos diferentes grupos sociais, é um importante instrumento educacional

ao exercício da cidadania. Segundo Ana Carmem Casco, (2006, p. 02):

Elaborar projetos educativos voltados para a disseminação de valores culturais, formas e mecanismos de resgate, preservação e salvaguarda, assim como para a recriação e transmissão desse patrimônio às gerações futuras é, sobretudo, um projeto de formação de cidadãos livres, autônomos e sabedores de seus direitos e deveres.

Apesar de existir o reconhecimento da importância de valorização do Patrimônio

Histórico Cultural, atividades educativas nas Escolas voltadas para esse fim, trabalhos

acadêmicos e livros didáticos que problematizem essa temática, ainda são poucos.

Segundo Soares (2008, p. 08), “[...] muito há o que se fazer em termos de Educação

para o Patrimônio”.

Assim, podemos considerar que a Cultura e a Educação deveriam estar

enquadradas naquilo que, conforme José Itaqui (2000, p. ??), diz que “[...] os técnicos

chamam Políticas de Desenvolvimento, organizador e articulador das instâncias do

fazer comunitário, processo no qual a Educação não está acima ou abaixo, mas no

centro sinérgico das relações estruturantes de uma sociedade irmanada no respeito e

defesa da vida.

Para tanto, o estudo em pauta estará centrado em levantar argumentos que

mostrem que a Educação Patrimonial Escolar é um importante elemento reconhecedor

do Patrimônio Histórico Cultural, com ênfase na região do Contestado. Num primeiro

momento, iremos fazer algumas considerações acerca da importância do

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[ 156 ]

reconhecimento do Patrimônio Histórico e sua importância Cultural; num segundo

momento, ressaltaremos da trajetória da Educação Patrimonial no Brasil, apresentando

a importância e a necessidade do trabalho pedagógico acerca desse tema.

11.1 CULtUrA e PAtrIMÔnIo HIstÓrICo

Conceituar cultura não é uma tarefa fácil, cada individuo apresenta uma forma

de definição da cultura, Arias (2002, p. 103) descreve o conceito de cultura como:

… una construcción específicamente humana que se expresa a través de todos esos universos simbólicos y de sentido socialmente compartidos, que le ha permitido a una sociedad llegar a “ser” todo lo que se ha construido como pueblo y sobre el que se construye un referente discursivo de pertenencia y de diferencia: la identidad.

O autor afirma que cultura é uma expressão da construção humana. A cultura

é construída através do diálogo entre as pessoas no dia a dia. Nessa interação social

são construídos gradativamente símbolos e significados que têm sentido a essas

pessoas, e são compartilhados entre elas. A construção de uma cultura está repleta de

elementos e significados que vão identificar esse povo como pertencente a uma

determinada comunidade ou região, diferenciando-os de outras comunidades, surge,

assim, a identidade cultural.

O entendimento do significado de cultura subsidiará a compreensão das

raízes culturais. Quando nos referimos às raízes culturais, estamos nos referindo à

sua origem, princípio, ou seja, à forma como foi construída a cultura de um povo, o

que determina que alguns elementos ou algumas manifestações culturais sejam

considerados tipicamente desse povo.

Entende-se por cultura a construção a partir das ações e inter-relações sociais.

As pessoas fazendo parte de uma sociedade acabam interagindo umas com as outras,

trocando ideias e conhecimentos. Desse relacionamento deriva a cultura desse povo,

que foi construída passo a passo. Juntos, constroem uma história de vida, em que

hábitos e costumes, manifestações, expressões, sentimentos e outros estão inseridos,

Page 157: Capital_Social Com ISBN

[ 157 ]

identificando cada componente dessa sociedade determinando o seu modo de viver

e de ser.

Para Sodré (1981), a cultura é entendida pelo nível de desenvolvimento

alcançado pela sociedade na instrução, na ciência, na literatura, na arte, na filosofia,

na moral, e as instituições correspondentes. Ainda, segundo Sodré (1981, p. 104),

cultura é:

[...] um fenômeno social que representa o nível alcançado pela sociedade em determinada etapa histórica: progresso, técnica, experiência de produção e de trabalho, instrução, educação, ciência, literatura, arte e instituições que lhes correspondem. Em um sentido mais restrito, compreende-se, sob o termo de cultura, o conjunto de formas de vida espiritual da sociedade, que nascem e se desenvolvem à base do modo de produção dos bens materiais historicamente determinados.

Portanto, cultura é tudo aquilo que é criado pelo esforço e pela inteligência

humana, quer mostrado sob a forma tangível, material, quer expresso em usos,

costumes, ideias e ideais. Cultura é um sistema de atitudes, de juízo de valores, de

modos de pensar, sentir e agir. é o modo de vida de uma sociedade. é o resultado das

transformações humanas, a soma do conhecimento humano. Como heterogênea, a

cultura é, ao mesmo tempo, material e espiritual.

O homem não vive só, mas precisa de um grupo. Por isso, para compreender

a cultura humana, precisa-se estudá-la a partir do seu grupo social, aquele ao qual

está integrado e onde desenvolve suas atividades. Isso, sem contar que, para melhor

compreender uma cultura, precisa-se também ir às suas origens, portanto, recuperar

as trajetórias dos grupos sociais que se sucederam.

No mundo globalizado contemporâneo, a questão cultural nos dá o direito à

diferença, assim, é o universo da escolha, da produção e dos valores, que decorrem

da ação social por meio de mecanismos de identificação. A cultura é o que nos torna

singulares, o patrimônio, como expressão cultural é que vai edificar os costumes, a

política, os interesses econômicos e as características do lugar, como explica Leff

(2000, p. 123):

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[ 158 ]

A cultura, entendida como as formas de organização simbólica do gênero humano remete a um conjunto de valores, formações ideológicas e sistemas de significação, que orientam o desenvolvimento técnico e as práticas produtivas, e que definem os diversos estilos de vida das populações humanas no processo de assimilação e transformação da natureza.

Através da cultura, elemento de identidade de um povo e de um local,

inserem-se a ideologia e os significados desta, orientando, como afirma Leff (2000,

p. 123), [...] “o desenvolvimento local, de acordo com os processos enunciativos,

respeitando a alteridade, a partir das diferenças existentes na sociedade”.

Antônio Arantes, (1990, p. 34) define cultura quando afirma que:

Em se tratando de vida social, a cultura (significação) está em toda parte. Todas as nossas ações seja na esfera do trabalho, das relações conjugais, da produção econômica ou artística, do sexo, da religião, das formas de dominação e de solidariedade, tudo nas sociedades humanas é constituído segundo os códigos e as convenções simbólicas a que denominamos “cultura” .

Ainda destaca Arantes (1990) que a cultura é um amplo sistema de códigos,

que contém elementos da identidade de um povo. Assim, o Patrimônio Arquitetônico

de um lugar demonstra os traços culturais da comunidade, onde se encontra inserido.

A cultura é dinâmica, está sempre em transformação, e a partir dela entendem-se as

transformações que ocorrem, por exemplo, no Patrimônio Arquitetônico citadino no

decorrer do séculos, onde a cada momento vai se refletindo o pensamento, os valores

da comunidade de um determinado local.

Pellegrini (1997, p. 90 e 91) coloca que [...] “atualmente, o significado de

Patrimônio Cultural é muito amplo, incluindo outros produtos do sentir, do pensar e do

agir humano; o que no conjunto se poderia definir como o meio ambiente artificial”.

A noção de Patrimônio Histórico tradicionalmente se refere à herança composta

por um complexo de bens históricos. Segundo Kalina Silva, (2010, p. 324), especialistas

vêm continuamente substituindo o conceito Patrimônio Histórico pela expressão

Patrimônio Cultural. Essa noção, por sua vez, é mais ampla, abarcando não só a

herança histórica, mas também a ecológica de uma região. Assim, em última instância,

podemos definir Patrimônio Cultural como complexos de monumentos, conjuntos

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[ 159 ]

arquitetônicos, sítio históricos e parques nacionais de determinado país ou região

que possuem valor histórico e artístico e compõem um determinado entorno

ambiental de valor patrimonial.

Em seu significado mais primitivo, a palavra patrimônio tem sua origem grega

“pater”, que significa paterno, de tal forma que patrimônio veio a se relacionar a tudo

aquilo que é transmitido de pai para filho, sendo importante para a compreensão da

identidade histórica, também para manter vivos os usos e costumes populares de uma

determinada sociedade.

A definição atual de Patrimônio Cultural se originou no documento elaborado

pela Convenção sobre a Proteção do Patrimônio Mundial Cultural e Natural, realizada

em 1972 e promovida pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência

e Cultura (Unesco). Tal documento detalhou o Patrimônio Cultural como monumentos,

ou seja, as obras arquitetônicas, de esculturas ou de pinturas monumentais, assim

como elementos estruturais de caráter arqueológico que tenham valor universal do

ponto de vista da História, da Arte e das Ciências. Durante essa Convenção, os

países membros assinaram um documento se comprometendo a proteger os locais

designados como Patrimônio da Humanidade; apesar dessa obrigação ser

financeiramente custosa, segundo Kalina Silva, (2010, p. 325), muitos dos países

membros não possuem recursos para custear as demandas da Convenção, das 192

nações participantes, 174 já ratificaram o acordo. O motivo desse interesse político,

é meramente econômico, no sentido de gerar prestígio internacional, incentivando

o turismo.

Interessante ressaltar que o conceito de Patrimônio Cultural não se restringe à

produção material humana, mas abrange também a produção emocional e intelectual.

Ou seja, tudo o que permite o homem conhecer a si mesmo e ao mundo que rodeia

pode ser chamado de bem cultural.

A crescente importância do Patrimônio Cultural tem permitido a produção de

ampla literatura sobre o tema, inclusive no Brasil. Diversos estudos vêm sendo

elaborados sobre os fundamentos e os significados do Patrimônio Cultural em

diferentes sociedades.

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[ 160 ]

Em tempos recentes, o conceito de patrimônio histórico vem sendo

ressignificado, adquirindo novas dimensões e conotações. Françoise Choay “(ano?)

identificou, especialmente a partir da década de 1960, uma intensificação da prática

patrimonial. Esta intensificação culminou com um alargamento da noção de patrimônio

histórico, que passaria a atingir novas categorias de edifícios, além de conjuntos

urbanos e do chamado patrimônio imaterial. O atual conceito de patrimônio histórico

estaria, portanto, subdividido em duas categorias. O patrimônio material, voltado para

os testemunhos físicos do passado, e o patrimônio imaterial, voltado aos testemunhos

do passado cuja importância não estaria na dimensão física – para os saberes,

tradições orais, modos de fazer e ritos. Maria Cecília Londres Fonseca (2003) destaca

as diferenças entre o patrimônio material e imaterial:

Talvez o melhor exemplo para ilustrar a especificidade do que se esta entendendo por patrimônio imaterial [...] seja a arte dos repentistas. Embora a presença física dos cantadores e de seus instrumentos seja imprescindível para a realização do repente, é a capacidade de os atores utilizarem de improviso, as técnicas de composição dos versos [...] que produz a cada “performance”, um repente diferente. Nesse caso, estamos no domínio absoluto do aqui e agora, tampouco sem possibilidade, a não ser por meio de algum registro audiovisual, de perpetuar esse momento.

Também, de acordo com o professor francês Hugues de Varine-Boham, citado

por Carlos Lemos (1987):

[...] podemos dividir o Patrimônio Histórico Cultural em três grupos: elementos naturais, como os rios, as matas, as praias; elementos do saber, as técnicas e artes, que o homem utiliza para sobreviver, como saber cozinhar, desenhar, transformar, dançar, esculpir; e, bens culturais que surgem a partir dos outros dois grupos que são objetos, artefatos e construções.

Ainda, Rodrigo Pessoa reforça o sentido da importância do Patrimônio Histórico,

afirmando que:

Instrumento na construção da nacionalidade nas sociedades modernas, o patrimônio histórico e artístico [...] é o documento de identidade da nação brasileira. A subsistência dele é que comprova, melhor que qualquer outra coisa, nosso direito de propriedade sobre o território que habitamos. Ele é testemunho dos processos de ocupação do Brasil, das técnicas construtivas do passado, dos modos de vida e dos episódios

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[ 161 ]

fundamentais da nossa história, mas principalmente tem qualidades plásticas que interessam ao olhar contemporâneo (PESSOA, 2000, p. 42).

Dessa forma, ao investigar o Patrimônio Histórico Cultural de uma determinada

região, este deve, num primeiro momento, estar diretamente ligado à identidade do

grupo, no qual representa. Nessa temática, ressaltamos a importância do Patrimônio

Cultural inerente à memória coletiva, que garante a identidade individual e coletiva,

assegurando a reprodução social, agindo na construção cultural e na formação de

uma imagem regional, ao mesmo tempo em que representa e tenta integrar a ideologia

do povo. O conceito de Patrimônio nos remete ao conceito de memória quando se trata

da preservação dele. Como afirma Octávio Paz (apud MACEDO, RIBEIRO, 1999, 17),

escritor mexicano, Prêmio Nobel de Literatura de 1990:

A destruição da memória afeta não apenas o passado, como também o futuro. Para mim, a memória é a forma mais alta da Imaginação Humana, não apenas a capacidade automática de recordar. Se a memória se dissolve, o homem se dissolve.

A partir da memória, também são definidas as relações humanas, em que são

feitas as opções do que deve ser preservado do patrimônio histórico-cultural, definindo

os elementos representativos de uma comunidade. O patrimônio arquitetônico, que

também faz parte do legado cultural, é a forma edificada da identidade de um povo. Le

Goff (1996, p. 476 e 477) também contempla este conceito em seu estudo.

A memória é um elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na angústia. [...] A memória, onde cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir o presente e o futuro. Devemos trabalhar de forma a que a memória coletiva sirva para a libertação e não para a servidão dos homens.

Nesse sentido, a memória recorda o passado para rever o presente e garantir a

identidade. Em sua dimensão coletiva, estão gravados os bens culturais; dos

monumentos aos depoimentos das pessoas, por meio de lembranças, fotografias,

vídeos, livros objetos e demais registros, que buscam tornar memoráveis os

acontecimentos de uma localidade.

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O empenho em conservar um Patrimônio Histórico Cultural está ligado a

vários fatores, como o político, o econômico e mesmo o social. Para Barreto (2000),

“[...] determinar o que deve ser preservado é uma decisão político ideológica. Nessa,

devem estar refletidos os valores e as opiniões da comunidade, envolvendo os

elementos que devem ser tidos como representativos de uma determinada sociedade.

A esfera política necessita manter diálogo constante com a comunidade, para que,

juntos, possam decidir o que deve ser preservado ou não dos bens culturais da

cidade. Canclini (1998, p. 160) coloca que os bens culturais de uma nação devem

ser preservados e restaurados.

Esse conjunto de bens e práticas tradicionais que nos identificam como nação ou como povo é apreciado como um dom, algo que recebemos do passado com tal prestígio simbólico que não cabe discuti-lo. As únicas operações possíveis – preservá-lo, restaurá-lo, difundi-lo – são a base mais secreta da simulação social que nos mantém juntos. [...] A perenidade desses bens leva a imaginar que seu valor é inquestionável e torna-os fontes do consenso coletivo, para além das divisões entre classes, etnias e grupos que cindem a sociedade e difereciam os modos de apropriar-se do patrimônio.

Para tanto, destaca-se a importância do processo educacional, no sentido de

ultrapassar o conhecimento restrito ao Patrimônio Histórico, transformando aqueles

recortes do passado para o conhecimento crítico da História, sempre se preocupando

em estabelecer formas de trabalhar a relação cidadania e educação patrimonial, pois

não há como valorizar o passado sem a tomada da consciência social, assim como

não há conscientização cidadã sem o conhecimento da História.

11.2 trAJetÓrIA DA eDUCAção PAtrIMonIAL no BrAsIL

Na década de 1920, período que marca o surgimento do Movimento Modernista

no Brasil, já se falava da necessidade da preservação do nosso passado; o poeta

Mário de Andrade, em seus discursos, afirmava o valor dos nosso Patrimônio Histórico

como forma de construir uma identidade nacional, baseando-se na pluralidade das

nossas raízes étnicas. Somente a partir do conhecimento da cultura e toda a sua

grandeza, haveria condições de inserir o Brasil no rol das nações desenvolvidas, mas

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[ 163 ]

para isso, o trabalho deveria iniciar das bases, ou seja, mediante o processo

educacional. O poeta Mário de Andrade (1922) dizia:

O ensino primário é imprescindível (...) Não basta ensinar o analfabeto a ler. é preciso dar-lhe contemporaneamente o elemento em que possa exercer a faculdade que adquiriu. Defender o nosso Patrimônio Histórico e Artístico é alfabetização.

De acordo com Maria de Lourdes Horta (1999), a Educação tem o papel de

norteadora, criando “um instrumento de alfabetização cultural, que possibilita ao

indivíduo fazer a leitura do mundo que o rodeia, levando-o à compreensão do universo

sociocultural e da trajetória histórica-temporal em que está inserido”.

Em termos teórico-metodológicos, a Educação Patrimonial se utiliza dos

lugares e suportes da memória (museus, monumentos históricos, arquivos, bibliotecas,

sítios históricos, vestígios arqueológicos etc.) no processo educativo, a fim de

desenvolver a sensibilidade e a consciência dos educandos e dos cidadãos para a

importância da preservação desses bens culturais.

A Educação Patrimonial nada mais é do que uma proposta interdisciplinar de

ensino voltada para questões pertinentes ao Patrimônio Cultural, a fim de propiciar

informações acerca do acervo cultural, de forma a habilitá-los a despertar, nos educandos

e na sociedade, o senso de preservação e da valorização da memória histórica.

A metodologia da Educação Patrimonial foi introduzida no Brasil pela museóloga

Maria de Lourdes Parreiras Horta há pouco menos de trinta anos, precisamente em

1983, por ocasião do 1º Seminário sobre o “Uso Educacional de Museus e

Monumentos”, organizado pelo Museu Imperial, em Petrópolis, no Rio de Janeiro

(HORTA et al., 1999, p. 05).

Concebida como proposta de desenvolvimento de ações educacionais voltadas para o uso e apropriação dos bens culturais que compõem o Patrimônio Cultura Local, esta metodologia teve seu berço na Inglaterra, sob a denominação Heritage Education. (HORTA et al, 1999, p. 05) .Sendo a premissa básica das ações de Educação Patrimonial o uso do bem cultural como fonte primária da aprendizagem, espera-se com este contato o conhecimento crítico e a apropriação consciente pela comunidade do seu patrimônio para a preservação sustentável destes bens e fortalecimento de sentimentos como identidade e cidadania. (HORTA et al., 1999, p. 06)

Page 164: Capital_Social Com ISBN

[ 164 ]

A partir daí, diversos trabalhos foram criados, objetivando a necessidade de

colher materiais para aprimorar o conhecimento acerca do tema. Somente a partir de

1988, com a promulgação da atual Constituição no Brasil, é que as ações educacionais

voltadas para o uso e a apropriação dos bens culturais integrantes do nosso Patrimônio

Cultural receberam estímulos. (BASTOS, 2002, p.134). E mais ainda quando ocorre a

regulamentação dos sistemas educativos no Brasil, resultante da criação de uma nova

Lei de Diretrizes e Bases da Educação em 1996 e da adoção dos Parâmetros

Curriculares Nacionais a partir de 1997, que atenderam a transformações processadas

na sociedade (BITTENCOURT, 1992, p. 134).

Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) para o Ensino Fundamental,

elaborados pelo Ministério da Educação (MEC), trazem uma inovação, ao permitir a

necessária interdisciplinaridade na educação básica, mediante a introdução dos

chamados “temas transversais”, que deverão perpassar as diferentes disciplinas

escolares. Dois desses temas transversais possibilitam à Escola o estudo do Patrimônio

Histórico e a consequente adoção de projetos de Educação Patrimonial.

Como se vê, já há espaços normativos para que a escola vivencie experiências

inovadoras capazes de suscitar nos alunos o interesse pelo conhecimento e pela

preservação de nossos bens culturais. No entanto, para que a legislação seja cumprida,

é preciso que os órgão públicos responsáveis, como Secretarias de Educação, Escolas

por meio do seus Projetos Políticos Pedagógicos, em parceria com os órgãos de

preservação, possibilitem a criação de projetos pedagógicos que incentivem a

preservação e a valorização do Patrimônio Histórico Cultural. Assim estaremos dando

condições efetivas para que a Escola se constitua num espaço privilegiado para o

exercício da cidadania de nossos educandos, mediante o conhecimento e a valorização

dos bens culturais que compõem o multifacetado patrimônio histórico nacional.

Todas essas iniciativas contribuíram para a valorização da preservação do

Patrimônio no âmbito escolar. Nesse sentido, vale a pena ressaltar as discussões no

1º Encontro Nacional de Educação Patrimonial, realizado em São Cristóvão, Sergipe,

no ano de 2005, quando se chegou à conclusão que:

As ações educativas, voltadas para a preservação do patrimônio e desenvolvidas pela sociedade, aparecem como iniciativas de grupos que assim entendem ser seu papel

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[ 165 ]

ou que resolvem ocupar o vazio deixado pela ausência de uma ação efetiva do Estado (municípios, governos estaduais e governo federal) nesse campo. (CASCO, 2006, p. 01).

Segundo Casco (2006, p. 02), ainda são parcos os investimentos da Educação

para a valorização do Patrimônio, tampouco o Estado elaborou uma metodologia,

normas e diretrizes que ajudassem a organizar esse campo promissor e incipiente. A

Lei 9.394/ 1996, que institui as Diretrizes e Bases da Educação brasileira, defende

como um dos princípios do ensino no país a divulgação da cultura e, para tanto,

estabelece que os currículos da educação básica devam ter uma base diversificada de

acordo com as características regionais e locais da sociedade e da cultura.

A importância do processo educacional acerca do Patrimônio Cultural é

assegurado nesse documento e, de acordo com os Parâmetros Curriculares Nacionais,

o ensino fundamental preconiza o desenvolvimento de discentes capazes de:

(…) conhecer características fundamentais do Brasil nas dimensões sociais, materiais e culturais como meio para construir progressivamente a noção de identidade nacional e pessoal e o sentimento de pertinência ao País; conhecer e valorizar a pluralidade do patrimônio sociocultural brasileiro (…) posicionando-se contra qualquer discriminação baseada em diferenças culturais, de classe social, de crenças, de sexo, de etnia ou outras características individuais e sociais; (BRASIL, 1997, p. 09)

Nesse sentido, o trabalho sobre a importância da valorização do Patrimônio

Cultural recai sobre o Projeto Político Pedagógico da Escola, como valorizador da

identidade da comunidade escolar.

O projeto busca um rumo, uma direção. é uma ação intencional, com um sentido explícito, com um compromisso definido coletivamente. Por isso, todo projeto pedagógico da escola é, também, um projeto político por estar intimamente articulado ao compromisso sócio-político com os interesses reais e coletivos da população majoritária (VEIGA, 1995, p. 93)

No processo dinâmico de construção do Projeto Político da escola, o tratamento

e as atribuições ao currículo são imprescindíveis, atendendo às funções que este

cumpre como expressão do projeto de cultura e socialização da escola, mediante seus

conteúdos, formatos e práticas embutidas. Para tanto, percebem-se alguns problemas

Page 166: Capital_Social Com ISBN

[ 166 ]

que precisam ser elencados como importantes desafios acerca da Educação

Patrimonial como elemento reconhecedor do Patrimônio Cultural.

Primeiramente destacamos a falta de Políticas Públicas acerca da Educação

Patrimonial. Segundo Casco (2006, p.02), “[...] falta de uma política estatal de

patrimônio voltada para a educação e uma política de educação voltada para a

preservação do patrimônio e da memória.” Ainda que as leis acima citadas ressaltem

o reconhecimento e a valorização da diversidade cultural do país, estas acontecem

de forma tímida. Nesse sentido, na intenção de buscar melhorias, a Educação

Patrimonial precisa ampliar suas potencialidades na escola, sendo esse o caminho

mais seguro para a construção de respeito e preservação do patrimônio cultural de

uma determinada região.

ConsIDerAçÕes FInAIs

Ao finalizar este artigo e tomando como parâmetro o processo evolutivo e

social da contemporaneidade, entende-se que não se pode fazer diferença entre

desenvolvimento econômico, cultural e tecnológico. Isto porque, uma das principais

dificuldades da sociedade contemporânea é considerar todos os aspectos que

envolvem o desenvolvimento, visto que a cultura importa para o desenvolvimento.

Para Faria (2001, p. 43), “(...) é dela que emanam propostas que resgatam a

criação da identidade, envolvendo grupos sociais, mapeando a cultura e buscando

raízes dentro do território.” é, pois, a cultura propulsora do desenvolvimento local,

visto que colabora na qualidade de vida e está inserida no valor simbólico do patrimônio

cultural da sociedade.

Além disso, cabe às escolas exercer papel diferencial no sentido de

despertar um novo olhar construído para a preservação do Patrimônio Histórico

Cultural. E isso ocorrerá a partir de práticas pedagógicas diferenciadas aplicadas no

ambiente escolar.

Page 167: Capital_Social Com ISBN

[ 167 ]

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Page 169: Capital_Social Com ISBN

[ 169 ]

12estUDos CULtUrAIs e o LUGAr DA ProDUção ArtÍstICA ConteMPorÂneA1

sandra Devegili2 nadja de Carvalho Lamas3

O texto tem o intuito de buscar algumas considerações que procuram dar conta

das possíveis relações existentes entre os estudos culturais, a produção artística atual

e a pesquisa em artes. Isso sem a pretensão de qualquer definição para essas

temáticas, pois acredita-se que seria reduzi-las, devido às dinâmicas sociais, mas

pensar nelas e suas ligações, considerando principalmente as discussões que alguns

autores fazem sobre a produção artística em meio ao contexto histórico cultural.

A pesquisa apoia-se nas reflexões de alguns teóricos, abarcando estudos sobre

estudos culturais, produção artística, a arte na atualidade e seu circuito. Procura-se

1 Estudos desenvolvidos para a dissertação intitulada “A arte em Joinville: uma investigação a

partir da perspectiva de artistas, críticos e curadores”, apresentada ao Curso de Mestrado em Patrimônio

Cultural e Sociedade, Universidade da Região de Joinville – UNIVILLE.2 Sandra Devegili, Mestrado em Patrimônio Cultural e Sociedade – UNIVILLE, Graduada no

Curso de Licenciatura em Artes Visuais e Mestrado em Patrimônio Cultural e Sociedade pela Universidade

da Região de Joinville – UNIVILLE. Professora de Artes em Escolas Municipais em Itapoá/SC. Aluna de

Iniciação Cientifica em projeto de pesquisa na área de antropologia, artes e exposições de artes no Programa

Institucional de Extensão Arte na Escola – UNIVILLE, Rua das Palmeiras, 883, Balneário Princesa do Mar,

Itapoá/SC, 47-9901-8273, [email protected] Nadja de Carvalho Lamas, Mestrado em Patrimônio Cultural e Sociedade – UNIVILLE, Doutorado

e Mestrado em Artes Visuais – UFRGS – História, Teoria e Crítica de Arte. Doutorado Sanduíche, Université

Paris I Panthéon, Sorbonne. Docente e pesquisadora no Departamento de Artes Visuais e do Mestrado

Patrimônio Cultural e Sociedade, da UNIVILLE. Coordenadora Grupo de Pesquisa Arte na Escola Lattes/

CNPq. Organizadora da publicação Arte Contemporânea em Questão (2007).

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[ 170 ]

perceber a maneira como é pensada a arte no contexto social, assim como as possíveis

relações no fluxo da produção artística e cultural.

Discutir sobre arte e procurar compreendê-la, acreditando que seria suficiente

analisar somente os aspectos formais entre imagens, temas, gestos, volumes,

movimentos, cores, traços, por mais intensa que seja a discussão, seria reduzir o

poder estético de uma obra de arte, já que se conectando em seu aspecto formal

podem sentir energias, emoções, sensações, entre outras experiências humanas.

Considera-se que a Arte Contemporânea se utiliza dos recursos tecnológicos

em suas linguagens, mas está na contramão da ideologia de interesses da cultura de

massa, pois não a encontramos em qualquer momento, em qualquer lugar ou o tempo

todo, até porque perderia alguns princípios como a originalidade, a prática de apresentar

linguagens e do espectador a de vivenciar uma experiência estética. De um modo

geral, a produção artística contemporânea parece existir na periferia das dinâmicas

sociais (construções de valores e transformações), ou seja, um tanto escondido e

revelado somente a quem procura.

Assim, percebe-se uma complexidade para pesquisar e falar de arte, pois ela

parece existir num mundo próprio, na qual a teoria e as discussões parecem não

alcançar. Valcárcel (2005, p.5) aponta em sua análise sobre a teoria de Wittgenstein

que, “ética e estética formam parte do sentido do mundo e se encontram, então, fora

dele, pertencendo ao inefável, ao que se mostra. O que é transcendental. O que se

contempla. Como escreve Wittgenstein em sua Note Book, p. 83”. Assim, quando a

teoria “alcança”, temos uma redução de sua existência e as possíveis experiências

estéticas que podem ser vivenciadas. Segundo Ortega (2002, p. 32), “Perceber uma

coisa não é conhecê-la, mas simplesmente dar-se conta de que diante de nós se

apresenta algo. Uma mancha escura, longe, no horizonte.(...) Digerimos e não sabemos

o que é a digestão; amamos e não sabemos o que é o amor”.

No texto “Antropologia e Arte: uma relação de amor e ódio”, Lagrou (2004)

pensando no estado da arte nessa área de conhecimento fala sobre a vantagem da

proposta de Gell, apontando que a natureza do objeto de arte é uma função da matriz

sociorrelacional na qual está inserido, de um ponto de vista antropológico. Mas assim,

qualquer coisa poderia ser pensada como objeto de arte, incluindo pessoas vivas,

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“porque uma teoria antropológica da arte (que podem definir em grandes linhas como

as relações sociais na vizinhança de objetos que mediam agência social) se funde sem

problemas com a antropologia social das pessoas e seus corpos”.

Lagrou aponta ainda (2004) que a proposta é, portanto, tratar os objetos como

pessoas. Interessa o que esses objetos e seus variados usos nos ensinam sobre as

interações humanas e a projeção da sua sociabilidade sobre o mundo envolvente. é na

relação com seres e corpus humanos que máscaras, ídolos, banquinhos, adornos,

plumários, pulseiras e pinturas podem ser percebidos e talvez compreendidos, assim

também a obra de arte – a relação do artista com sua produção e suas relações no

circuito da arte. Nesse sentido, uma investigação antropológica cria possibilidades

para compreender a rede de significados do campo artístico, as concepções e práticas

dos artistas. Para Levis-Strauss (1993, p. 19),

Não se podem estudar os deuses e ignorar suas imagens; os ritos, sem analisar os objetos e as substâncias que o oficiante fabrica ou manipula; regras sociais, independentemente de coisas que lhes correspondem. A antropologia social não se isola em uma parte do domínio de etnologia; não separa cultura material e cultura espiritual. [...] Os homens se comunicam por meio de símbolos e signos; para a antropologia, que é uma conversa do homem com o homem, tudo é símbolo e signo que se coloca como intermediários entre dois sujeitos.

A obra de arte envolvida por signos e símbolos e socializada, possibilita

relações entre o artista, a obra e o público. Nesse sentido, é na sua produção artística

e com sua arte legitimada que o artista se faz artista, e é nessa relação que a obra se

faz obra de arte. Torna-se, então, uma relação de um ser com outro ser, ou seja, uma

comunicação entre a matéria e o sujeito. Comunicações estas que no caso da arte

contemporânea causam estranhamentos, angústias, reflexões, provocações e outros.

Nesse sentido, existe também a dificuldade de textualizar essa dinâmica, por

isso o envolvimento por parte de quem a textualiza é bastante significativo, como

apontam Frow e Morris (2006), que os estudos culturais procuram utilizar cada vez

mais as técnicas de análise textual, empregando uma diversidade crescente de fontes,

utilizando uma metodologia de forma mais eclética, trabalhando com uma problemática

talvez mais complexa da relação existente entre autor e a cultura que está sendo

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estudada, “com uma intensificação do problema antropológico da tensão entre a

distância pessoal e política e o envolvimento pessoal e político”.

Vemos que no decorrer de toda a história da humanidade, é por meio de

imagens que configuram símbolos, signos e figuras constituindo coisas, gente,

ideais, valores, imaginação que o ser humano procura se comunicar. Para Geertz

(2001), em sua análise sobre a arte como sistema cultural, a conexão central entre

a arte e a vida coletiva se pode encontrar em plano semiótico. “A não ser muito

indiretamente os rabiscos de Matisse e as composições de linhas dos iorubas não

celebram uma estrutura social nem pregam doutrinas úteis. Apenas materializam

uma forma de viver, e trazem um modelo específico de pensar para o mundo dos

objetos, tornando-o visível”.

A partir desse pensamento, pode-se compreender que o significado da arte

não está necessariamente intrínseca a ela mesma, mas muitas vezes no contexto no

qual ela existe. Nessa perspectiva, embora a Arte (após séc XIII) não esteja a serviço

da religião, nem da política, nem pregando doutrinas úteis ou moral das virtudes,

podemos considerar que toda experiência social é o campo existencial da cultura.

Como aponta Coelho (2008, p. 122),

A obra de cultura é uma obra coletiva; no processo, o nós é mais determinante que o eu: não quer dizer que nela a participação do indivíduo como indivíduo seja inexistente ou desimportante, mas a obra de cultura não resulta dele, não cabe ao indivíduo, não depende do indivíduo a realização de uma obra de cultura. Inversamente, a obra de arte é determinada em últimas instâncias por um indivíduo.[...] na obra de arte, o determinante é o indivíduo.

Considera-se representação artística toda aquela que tem em si uma intenção

estética ou formal, além de um valor poético que se dá na organização das figuras no

plano, na criação do espaço, nas formas e no gesto. A manifestação artística vai além

dos aspectos formais e extrapola o esforço racional. O encantamento está junto à

forma, nos mistérios de suas figuras, na expressão dos gestos e no apropriar-se do

espaço. Assim, ao perceber tais manifestações, depara-se com emoções intersubjetivas

(a do criador e a do observador), que vai da calma ao desespero, do prazer à angústia,

da alegria à tristeza, da contemplação ao estranhamento. Para Costa (2002), “O prazer

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que nasce da percepção da boa forma na manifestação artística é a admiração, o

gosto do belo que a distingue. Essa emoção que resulta do en contro com a poesia vem

da forma presente na obra, à qual temos acesso de maneira sensível e intuitiva”.

A arte surge de processos subjetivos e revela o mundo do artista e até mesmo

de seu público; revelação esta, que acontece normalmente pela emoção, pelas trocas

subjetivas. A fruição da obra de arte tem como estratégia o aspecto ficcional, que não

tem a ver com irrealismo ou inverdade. Trata-se de uma manifestação e seu

entendimento por meio de sentido e imaginário, pois a representação rompe com sua

cotidianidade. A arte mesmo ficcional é sempre verdadeira como obra de arte.

Considera o observador um pesquisador, a arte lhe oferece um processo múltiplo e

complexo, uma rede de significados simbólicos e estéticos. O que o pesquisador deve

pensar é que suas interpretações não são únicas e nem definitivas, e que existe uma

possibilidade ilimitada de decifrações. O que é importante apontar aqui, segundo Costa

(2002, p. 50), “não é o método de leitura da obra de arte que coloca em risco a análise

interpretativa, mas o interesse e o objetivo do pesquisador”, ou seja, a pesquisa e a

interpretação se validam na problematização e na pergunta que se faz na observação

da obra de arte.

Com essas observações, para pensar melhor na condição atual da Arte, vale

levar em consideração as distintas maneiras de concepção ocorridas na história da

arte. Vemos que, no mundo das representações, a representação da Beleza cresce em

complexidade, remete-se à imaginação, mais que ao intelecto, criando nova regra para

si mesma. Cai a distinção entre proporção e desproporção, entre forma e informe,

visível e invisível: a representação do informe, do invisível e do vago transcende as

oposições entre belo e feio, verdadeiro e falso. A Beleza maneirista exprime uma

laceração do espírito apenas velada: é uma Beleza refinada, culta e cosmopolita como

a aristocracia que a aprecia suas obras, enquanto o Barroco, ao contrário, mostrará

traços mais populares e emotivos. Não há uma linha que não guie o olho para um

“além” a ser atingido, não há uma linha que não se carregue de tensão: a Beleza imóvel

e inanimada do modelo clássico é substituída por uma beleza dramaticamente tensa.

o debate estético do século XVIII apresenta traços de forte inovação em relação

ao Renascimento e ao século XVII, traços que determinam sua peculiaridade e sua

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intrínseca modernidade. A Beleza é vista com o olho interior das paixões, na forma

prevalente do diário íntimo; uma forma literária que já contém em si todo o primeiro

Romantismo. O sentimento, o gosto, as paixões perdem, portanto, as auras negativas

da irracionalidade.

Considera-se que a “arte moderna” representa ainda uma atitude para com o

presente, descrevendo assim uma identidade que resulta de experiências dualistas, por

um lado, transitório ou passageiro, e, por outro, eterno. é esta arte um território em

movimento, e se tentarmos defini-la ou fixar uma ideia sobre, corremos o risco de

perdermos a sensação de renovação.

Essa renovação existente no período moderno traz consigo uma liberação de

sentimento, a busca de uma beleza dinâmica, que se configura como sinônimo da

verdade procurando diminuir a distância entre sujeito e objeto. Segundo Umberto Eco

(2004, p. 353), o sujeito “extrai vigor da coibição eterna para um sentimento todo

interior da rebelião. Mas é uma interioridade que exatamente por sua negação das

regras da razão, é por si mesmo livre e despótica ao mesmo tempo”.

Essa nova relação entre o sujeito e o objeto artístico torna-se compenetrado,

ou seja, o sujeito sem perder sua liberdade, pelo contrário e justamente por esta, que

se inter-relaciona com o objeto artístico e mantém a própria subjetividade.

O dadaísmo põe em questão a lógica da cultura racionalista e defende o

absurdo, a incoerência, a desordem e o caos. Politicamente, firma-se como um

protesto contra uma civilização que não conseguiria evitar a guerra. Suas ideias se

desenvolveram em Nova York, Zurique, Paris, Berlim, Hanover, Colônia e Barcelona,

durante e após a Primeira Guerra Mundial.

Eles se voltaram não somente contra as instituições políticas e sociais, mas

também contra o sistema da arte, que se alinhava a uma sociedade burguesa. Assim

acreditavam que a solução era destruir aqueles sistemas baseados na razão e na

lógica, substituindo-os por valores ancorados na anarquia, no primitivismo e no

irracional. Toda aquela “maneira de fazer arte”, como a abordagem artística libertária

e a ironia absurda conquistaram a imaginação de uma nova geração de artistas e

escritores. Seu legado mais abrangente e duradouro dadaísta foi às atitudes de

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liberdade, irreverência e experimentação. A arte como ideia, a afirmação de que ela

poderia ser feita a partir de qualquer coisa e o questionamento dos usos e costumes

da sociedade modificaram inevitavelmente, talvez até mesmo irreversivelmente, a

trajetória da arte. Pois dessa irreverência toda, encontramos sequelas até hoje nas

obras de muitos artistas, que, por sua vez, também são irreverentes. Segundo Dempsey

(2003, p. 7), “a partir do simbolismo, passando pelo dadá e pelo surrealismo, até

chegar a arte conceitual, os artistas declararam que a verdadeira função da arte não

era retratar a realidade, mas representar os mundos internos da emoção, dos estados

de espírito e da sensibilidade”.

A arte na atualidade se configura como uma desconcertante profusão de

estilos, formas e práticas, na qual os artistas não mais se utilizam apenas de tintas,

metais e pedras, mas também se apropriam do ar, luz, som, palavras, pessoas, objetos

do cotidiano, entre infinitas outras coisas. Encontramos em meio a esses, linguagens

como performance, vídeos, fotografia, pinturas, instalações e outros. Para Agnaldo

Farias (2002, p. 14), a arte contemporânea é o “sintoma de uma insatisfação, cada

obra de arte traz embutida uma crítica à própria noção de arte e pode mesmo modificar

aquilo que entendemos por arte”.

A arte se define não por seus aspectos de negação de valores estabelecidos,

mas por sua capacidade estratégica de mostrar algum tipo de posicionamento diante

do mundo, pois a ação artística contemporânea é individual, pessoal, íntima e subjetiva,

numa tentativa de estabelecer na arte um sentido e uma ligação com o espectador, de

forma a instigar nele algum tipo de reação diante do mundo e da vida. Segundo Archer

(2001), “[...] Depois de 1960 houve uma decomposição das certezas quanto a este

sistema de classificação. Sem dúvida, alguns artistas ainda pintam e outros fazem

aquilo que a tradição se referia como escultura, mas estas práticas agora ocorrem num

espectro muito mais amplo de atividades”.

A arte passou a ser discutida, pensada e ressignificada constantemente, na

qual os valores estéticos que definem o que é arte ou não passam a ser um desafio

para críticos e curadores, pois a diversidade da prática artística contemporânea é

antissistemática e instável e assim elimina a possibilidade de uma leitura única e linear.

Segundo Archer (2001), no início dos anos 60, era possível pensar a pintura e a

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escultura como as únicas possibilidades de pensar nas obras de arte. Sendo que esta

dupla, por muitos anos consagrada, começou a ser desafiada pelas colagens cubistas,

performance futurista, eventos dadaístas... sendo que a fotografia reivindicava, cada

vez mais, seu reconhecimento como expressão artística. Ainda segundo Archer

(2001), “Depois de 1960 houve uma decomposição das certezas quanto a este

sistema de classificação. Sem dúvida, alguns artistas ainda pintam e outros fazem

aquilo que a tradição se referia como escultura, mas estas práticas agora ocorrem num

espectro muito mais amplo de atividades”.

o interesse também era com os meios de comunicação, imagem recorrente

em jornais, revistas, boletins de TV, na qual a produção de alguns artistas na Pop Art

parecia depender da técnica da cultura de massa. Para Archer (2001), a Pop Art, “foi

um fenômeno norte-americano: americano em termos dos envolvidos, na medida em

que tratava de uma espécie de realidade social, em termos de observar o mundo

americano quintessencial que andava de mãos dadas com essa realidade”.

Assim como na arte, toda e qualquer coisa e relação no mundo pede um

novo olhar, uma nova maneira de perceber, relacionar e experimentar. As narrativas

teóricas sobre a modernidade trazem consigo certa lógica existencial com objetivos

concretos e racionais. Mesmo diante de movimentos no contexto social que buscavam

uma reação de transformações com o passado – anterior à Guerra – as novas

experiências e vivências são percebidas e pensadas de forma um tanto fechada e

codificada. Mas essas transformações continuaram a ocorrer com mais intensidade e

com uma postura cada vez mais significativa no contexto histórico e social, fazendo

com que a maneira como o mundo era percebido e interpretado não desse mais conta

de tais manifestações e forma de vida, exigindo, então, uma nova maneira de pensar,

de se relacionar e interagir com as coisas no mundo, no qual tudo parece se tornar

experiências e não mais fatos certos e definitivamente vividos e interpretados. Segundo

Harvey (1989, 27),

No começo do século XX, e em especial depois da intervenção de Nietzsche, já não é possível dar à razão iluminista uma posição privilegiada na definição da essência eterna e imutável da natureza humana. Na medida em que Nietzsche dera início ao posicionamento da estética acima da ciência, da racionalidade e da política, a exploração da experiência estética – “além do bem e do mal” – tornou-se um poderoso

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meio para o estabelecimento de uma nova mitologia quanto aquilo a que o eterno e imutável poderia referir-se em meio a toda a efemeridade, fragmentação e caos patente da vida moderna.

Assim, para Harvey (1989), nessa concepção, a exploração da experiência

estética possibilitou aos artistas uma posição especial e até mesmo heróica, já que

uma condição essencial da modernidade era a racionalização, a “destruição criativa”.

Na história da humanidade a tradição da Idade Média, na qual Deus é o centro de todas

as coisas, é de certa forma rompida com a emancipação do homem como o centro de

todas as coisas – o homem sem Deus – o homem que transcende a ele mesmo – o

homem e sua liberdade individual – sendo que este homem, segundo Harvey (2003),

“nega a si mesmo, já que a razão deixa na ausência da verdade de Deus, nenhuma

meta espiritual ou moral. Assim o projeto teológico pós-moderno é reafirmar a verdade

de Deus sem abandonar os poderes da razão”. Sell (2002, p.??), em sua análise sobre

a sociologia da religião de Max Weber, nos aponta que existe na modernidade o

processo de racionalização, “e, embora a razão tenha trazido para o homem a

capacidade de dominar o mundo, especialmente através da ciência e da técnica, trouxe

também consequências negativas: a perda de sentido da vida e a perda de liberdade”.

Essas questões apontam a complexidade de pensar a pós-modernidade, pois

encontram-se todos os pensamentos já vividos até então, e ao mesmo tempo nada

definido. Além do caos dado pela infinidade de símbolos, na qual se pode retomar o

medieval e ao mesmo tempo aberto e acessível às condições dadas pela atualidade.

Dessa maneira, a pós-modernidade mostra um campo de conceitos e

significações com a qual procura lidar, instável, mas certos da existência de uma

transformação considerável para com o moderno. Essas transformações estariam

principalmente no sentimento, na maneira de existir no mundo em relação às coisas,

de viver as experiências que o contexto propõe de forma acessível, sem preconceitos –

como o ar, que se pode sentir, perceber, conhecer suas reações e que o mesmo é

fundamental para sobrevivência, mas não se pode ver e nem mesmo definir sua forma,

simplesmente viver.

Assim, a crítica de arte objetiva seria insuficiente para entendê-la, pois analisar

somente os aspectos formais entre imagens, temas, gestos, volumes, movimentos,

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cores, formas, traços, por mais intensa que seja a discussão, seria reduzir o poder

estético de uma obra de arte, já que se conectados a em seu aspecto formal podemos

sentir energias, emoções, sensações, entre outras experiências humanas.

Os sentidos e os valores dados a cada momento pelo sujeito no “mundo da

arte” estão diretamente ligados “às regras do jogo”, ou seja, às concepções, aos

conceitos sempre reformulados em relação à arte e ao que é arte, sobre toda uma rede

de significados que criam relações, pensamentos, pois cada sujeito age e interage de

forma única em cada espaço e tempo. Segundo Geertz (1989, p.212),

A cultura de um povo é um conjunto de textos, eles mesmos conjuntos, que o antropólogo tenta ler por sobre os ombros daqueles a quem eles pertencem. Existem enormes dificuldades em tal empreendimento, abismos metodológicos que abalariam um freudiano, além de algumas perplexidades morais. Essa não a única maneira de se ligar sociologicamente com as formas simbólicas. O funcionalismo ainda vive, e o mesmo acontece com o psicologismo. Mas olhar essas formas como “dizer alguma coisa sobre algo”, e dizer isso a alguém, é pelo menos entrever a possibilidade de uma análise que atenda a substância, em vez de fórmulas redutivas que professam dar conta dela.

A identidade de uma determinada cultura, especialmente às do mundo

globalizado e também munidos de tecnologia, tem um caráter dinâmico, flexível,

variado, prontas a reformulações e até mesmo manipulações, tornando difícil e

complexo delimitar e definir tal identidade, pois esta não é absoluta e sim relativa.

Em meio a esse contexto, percebemos também que as culturas sejam elas

eruditas ou populares não se revelam como pura imitação, ou pura criação, ou seja, os

elementos originais, e os elementos importados de outra cultura, se revelam e acabam

formando e reformulando a estrutura cultural de um determinado povo, e isso acaba

acontecendo mesmo quando há resistência aos elementos importados, muitas vezes

de dominação. Denys Cuche (2002, p. 150) nos aponta que “(...) sem esquecer a

situação de dominação, é talvez mais correto considerar a cultura popular como um

conjunto de “maneiras de viver com” esta dominação, ou, mais ainda como um modo

de resistência sistemática à dominação”.

Essas ideias nos mostram um pouco das muitas maneiras de pensar cultura,

uma discussão que possibilita perceber a cultura dominada e a cultura dominante, mas

Page 179: Capital_Social Com ISBN

[ 179 ]

ainda vale lembrar que devemos considerar que elas são multiformes e disseminadas,

até mesmo pelo seu caráter efêmero.

Nesse sentido, tais ideias nos levam a prestar atenção nas discussões sobre a

cultura de massa que é por sua vez racionalizada, padronizada, expansionista e ao

mesmo tempo centralizada, e que pelo seu poder age como cultura dominante e vemos

que com esse domínio o quanto é possível a perda de uma identidade cultural. Segundo

Cuche (2002, p. 151), “é difícil de identificar essa cultura de consumo, pois ela é

caracterizada pela astúcia e pela clandestinidade”. Assim, para se encontrar alguma

identidade podem-se considerar outros aspectos, e não pelos objetos que as pessoas

estão consumindo. Devido ao mercado de consumo, o modo de fazer de um

determinado povo também é diferente do que ele faria para ele mesmo, pois este é

projetado para o outro, e existe uma investigação para essa projeção, ou seja, para que

aconteça a venda do produto, e isso passa então a fazer parte daquela cultura.

Embora a cultura dominada seja obrigada a “viver com” o que os dominantes

lhe impõem ou lhe recusam, estes não impedem práticas originais que dão sentido à

sua existência e ressaltam sua identidade.

Mesmo diante dessa ideia, os estudos nos mostram, e podemos considerar

que tal produção de cultura (cultura de massa) tende a suplantar a criação no interior

das culturas. Com os meios de comunicação de massa, existe uma forte tendência a

uniformização provocando uma alienação cultural, muitas vezes aniquilando a

capacidade criativa do indivíduo, que por sua vez, não consegue escapar da influência

das mensagens transmitidas, sendo que as mesmas estão por toda parte, nas ruas, no

shopping, nos domicílios, estabelecimentos comerciais... Em contrapartida, por mais

padronizado que seja o produto emitido pelos meios de comunicação, cada grupo, ou

mesmo cada pessoa tem suas particularidades culturais do momento, assim a

recepção não pode ser uniforme. Nesse sentido, podemos considerar, então, novamente

a noção de habitus utilizada por Pierre Bourdieu, que sugere este como uma

materialização da memória coletiva reproduzindo para os sucessores, que permite,

assim, perceber o seu ser, quando interioriza e incorpora disposições corporais e

concepções de mundo, dando ao grupo um estilo particular.

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[ 180 ]

Todo discurso necessariamente envolve uma relação de poder e, dessa forma,

quando se analisa, ensina, pinta ou reproduz uma visão qualquer de mundo,

consequentemente, se estaria dominando, reestruturando e tendo autoridade sobre as

pessoas, a respeito de suas ações e sobre o que elas falam. O mesmo se pode dizer

dos signos de propaganda: tentativas de dominação e pontos de vista ideologicamente

demarcados e diluídos em tais procedimentos. Em meio a esse contexto, citado acima,

Teixeira Coelho (2008, p. 130) nos aponta que,

Todas as questões levantadas e pensadas acima, de modo breve, sobre

identidade, cultura e artes, nos fazem pensar um pouco sobre a produção artística e

suas relações e condições em meio ao contexto social. A produção artística atual, com

sua maneira dinâmica e instável de existir e ser pensada exige do espectador, muito

além do interesse em visitar a obra de arte, mas uma postura ativa, com pensamento

aberto/subjetivo e a vontade de buscar na obra possibilidades de vivências sensíveis e

estéticas e o conhecimento. Mas vale lembrar que o mesmo espectador vive em meio

a uma, de certa forma, desconcertante produção cultural, que por sua vez está o

tempo todo em todos os lugares de maneira ativa e dominadora, construindo valores,

ideais na qual nos dias atuais estão voltadas ao consumo. Assim, a produção artística

parece estar cada vez mais distante da produção cultural/contexto social e enfim do

próprio público.

Pensar os estudos culturais e a pesquisa em arte é pensar primeiro onde e de

que maneira a arte está no contexto social. Traz para pesquisa em arte um olhar que

vai além do estudo dos aspectos formais na obra de arte e possibilita pensar nas

dinâmicas e relações produzidas no contexto artístico. E, assim, encontram-se

sociólogos, antropólogos e filósofos com intensos estudos sobre a produção

artística, que ajudam a construir pensamentos e conhecimentos sobre a produção

artística e cultural.

Page 181: Capital_Social Com ISBN

[ 181 ]

reFerênCIAs

ARCHER, Michael. Arte Contemporânea: Uma História Concisa. Tradução Alexandre Krug, Valter Lellis Siqueira. São Paulo: Martins Fontes, 2001. (Coleção a).

BOURDIEU, Pierre. As regras da Arte. São Paulo: Ed. Companhia das Letras, 1996.

COELHO, Teixeira. A cultura e seu contrário: cultura, arte e política pós-2001. São Paulo: Iluminuras: Itaú Cultural, 2008.

COSTA, Cristina. A imagem da mulher – um estudo de arte brasileira. Rio de Janeiro: Senac Rio, 2002.

CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. Trad. Viviane Ribeiro. 2. ed. Bauru: EDUSC. 2002.

DEMPSEY, Amy. estilos, escolas e movimentos – guia enciclopédico da arte moderna. Trad. Carlos Eugênio Marcondes de Moura. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.

ECO, Umberto. História da Beleza. Trad. Eliane Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2004.

FARIAS, Agnaldo. Arte Brasileira Hoje. São Paulo: Publifolha, 2002.

FROW, John; Morris, Meaghan. Estudos Culturais? In: DENZIN, Norman K; LINCON, J. o planejamento da pesquisa qualitativa. 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2006.

GEERTZ, Clifort. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC Livros Técnicos e Científicos, 1989.

GEERTZ, Clifort. o saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. Trad. Vera Melo Joscelyne. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.

HARVEY, David. Condição Pós Moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. Trad. Adail Ubirajara Sobral e Maria Stela Gonçalves. 10. ed. São Paulo: Loyola, 2003.

LAGROU, Elsje Maria. Antropologia e arte: uma relação de amor e ódio. Ilha revista de Antropologia, Florianópolis, v. 5, 2004.

LEVIS-STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural dois. Trad. Maria do Carmo Pandolfo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1993.

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Page 183: Capital_Social Com ISBN

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13A VIDA CoMo oBrA De Arte e sUA ConDIção trÁGICA oU ProFAnA ConteMPorAneIDADe

sandro Luiz Bazzanella1

13.1 ArGUMentos IntroDUtÓrIos

Apresenta-se paradoxal o fato de que a vida tenha se tornado na

contemporaneidade a centralidade das preocupações existenciais que movem os seres

humanos. Partindo do pressuposto de que outrora e, talvez em grande parte da

presença do humano no mundo, o que movia os esforços dos seres humanos na

constituição de formas de vida existencialmente significativas era a morte. Porém, esta

condição nos parece atualmente esquecida, submetida aos imperativos biopolíticos

que implicam a primazia e potencialização da vida biológica sobre a vida politicamente

qualificada. A modernidade ao matar Deus sufoca também o sujeito, aquela espécie de

indivíduos que se concebiam como parte de uma totalidade societária e que na

ausência das promessas transcendentes assumiam a responsabilidade de construir na

teórica e na prática, o melhor dos mundos aqui mesmo, na imanência contingente das

existências terrenas. Neste frio e árido ambiente desértico encontra-se agora o

indivíduo, abandonado, órfão de Deus, desconfiado de toda e qualquer promessa de

salvação. Restou-lhe o corpo, sua estrutura biológica como sua última fronteira

existencial. Importa neste ambiente desértico conferir sobrevida à dimensão corpórea

e biológica da vida. Disciplinar-se. Obedecer cegamente aos protocolos normalizadores

e normatizadores da vida boa e saudável, querer ser controlado pela lógica administrativa

que potencializa a vida em sua biologicidade, e por último desejar e exigir segurança,

1 Graduado em Filosofia pela FFCLDB/Santa Rosa/RS. Mestre em Educação e Cultura pela UDESC/

SC e Doutor em Ciências Humanas pela UFSC/SC. Professor de filosofia da Universidade do Contestado –

Campus Canoinhas. [email protected]

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alimentando as pequenas utopias dos indivíduos atomizados na dinâmica da sociedade

de massas contemporânea.

Parece paradójico que hoy se la vida y no la muerte del hombre lo que arroja al pensamiento más allá de lo humano. En efecto, en los debates contemporáneos que tienen por objeto al ser vivo y al núcleo biológico de lo humano como especie, la vida nombra un campo de conceptos y de prácticas no dominado por el hombre como categoría ordenadora de la experiencia. La vida se ha vuelto el más allá de la subjetividad, lo que viene a exceder los límites del sujeto individual, a arrancarlo del campo de la experiencia, a dislocar el campo de su consciencia, a vaciar su interioridad, a tensar violentamente su lenguaje, a reorganizar sus políticas, a reconfigurar sus modos de producción.(GIORGI, 2007, p. 10).

O que as reflexões filosóficas e políticas de Nietzsche e de Agamben sugerem

é a urgência de colocar a vida na centralidade dos debates que conformam o mundo

contemporâneo. Nietzsche e Agamben, cada um com seu arcabouço conceitual e

estratégia filosófica que lhes são características, detectam na estrutura metafísica da

civilização ocidental contradições, paradoxos e fraturas que se revelam em toda sua

extensão de forma repressora, senão aniquiladora em casos limítrofes das condições

de vida na contemporaneidade. Nessa perspectiva, seria possível anunciar como

hipótese preliminar, que Nietzsche e Agamben se aproximam em suas articulações

filosóficas, ao afirmarem que a vida em sua forma trágica e profana pode se apresentar

como obra de arte. Para além de propostas de transformação social ou de melhoramento

do homem (o que no caso de Nietzsche evidencia-se com maior propriedade, seu

vinculo com o humanismo, ao apresentar o além-do-homem como fim último da

humanidade), o que estes pensadores propõem é outro olhar em relação à vida.

Diante de tais pressupostos, faz-se necessário lançar um olhar desvencilhado

da utilidade, da finalidade política e jurídica que apreende a vida em seus mecanismos

de sacrificabilidade, de um tempo cronológico, fragmentado e efêmero, que envolve a

totalidade da existência humana. Um olhar que possa contemplar a vida sob outra

perspectiva política, que no caso de Nietzsche se apresenta pela superação do homem

e na afirmação do além-do-homem, como um ser humano capaz de participar

intensamente da experiência trágica da existência, e em Agamben retomada da

dimensão ontológica da política-que-vem, como possibilidade de experienciar a vida

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como obra de arte, permitindo a abertura potencial e temporal de formas de vida

qualificadas na busca do bem viver, da felicidade. Podem-se aproximar Nietzsche e

Agamben como filósofos que, diante da Morte de Deus e da revitalização secularizada

de novas transcendências, constatam que se torna necessário, num mundo

desencantado, fazer a experiência de posicionar uma nova forma de conceber a

filosofia, o pensamento, a experiência vital. Uma forma de pensar e viver num mundo

marcado pela ambivalência, pela tragicidade, pela ausência de segurança e certeza

diante dos desafios que se apresentam à existência humana cotidianamente. Viver a

vida na precariedade imanente e contingente do mundo exige dos seres humanos

conceberem a vida como arte, como impulso criador e contínuo movimento em direção

à experiência com o mundo em suas potencialidades vitais, com outros seres humanos

que vivem e convivem neste mundo no tempo presente.

Pero si la verdad solo puede ser negada en su mismo nombre, si implica su propia negación y si esto se ha hecho patente en el momento en que la razón secular domina, la tierra, es necesario atreverse a rastrear una nueva filosofía un nuevo pensamiento. Un pensamiento que no eluda la contradicción, sino que, en cierto modo, la haga suya y aflore en ella; un pensamiento de la ambiguedad y la ambivalencia; un pensamiento que se a la vez dialéctico e antidialéctico. Un pensamiento destructor del mito y solidario con él, un pensamiento dúplice, trágico. (GIVONE, 1991, p. 15)

13.2 nIetZsCHe: A GrAnDe PoLÍtICA e A DIMensão trÁGICA DA VIDA

Nesta perspectiva, pode-se dizer que Nietzsche, ao longo de sua atividade

filosófica, assumiu como pano de fundo, como método de trabalho e exposição de

suas ideias, a criação artística. O variado estilo literário na composição de seus textos,

o carregar nas tintas em torno de certos argumentos, as metáforas e figuras de

linguagem que borbulham em suas obras, o estilo aforismático, profético, senão

evangélico, utilizado na composição do Zaratustra, que quer dar seu testemunho, mas

se propõem a fazer pregação, pois o além-do-homem não pode querer impor uma

verdade, mas que cada ser humano seja a verdade, demonstram de forma inequívoca

sua aposta na arte como forma de pensar a vida, o mundo. Mas, talvez anterior a todas

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essas formas e estilos discursivos, esteja o fato de que Nietzsche concebe o mundo

como obra de arte. “(...) en el caso de Nietzsche no es la actividad cognoscitiva la que

se adopta como paradigma explicativo, sino la creación artística: “El mundo – dice

Nietzsche – puede ser considerado como una obra de arte que se engendra a si

misma.”(MECA, 1989, p. 68).

Nietzsche não aspira à construção de um sistema filosófico que tenha a

pretensão da sistematicidade, que se apresente como chave de interpretação e

compreensão da totalidade da existência humana. Essa postura do filósofo dionisíaco

não significa, abrir mão de querer saber o todo, mas de reconhecer os limites nos

quais se movem os seres humanos em seu anseio de conhecer e determinar a

realidade, o que o torna crítico da vontade de verdade que dogmatiza os pressupostos

racionais, a partir dos quais se constituem os mais diversos sistemas de razão. Ao

adotar a óptica da obra de arte, Nietzsche confere coerência à sua visão apolínea e

dionisíaca de mundo e de vida, que se constituem, se superam e se mantêm na

existência, por meio da vontade de poder, que lhes é inerente como força motriz, como

jogos de forças caracterizados pela plasticidade e dinamicidade e que conferem ao

mundo e à vida novas possibilidades de configuração vital.

Também é preciso ter presente que a concepção artística de Nietzsche se

distingue “(...) del punto de vista estético, de inspiración romántica, que vê en la obra

de arte un paradigma hermenéutico privilegiado para una reflexión de carácter

ontológico (...)”(MECA, 1989, p. 68). Nietzsche não concebe a obra de arte como algo

desvencilhado da dinâmica da criação artística, como algo em si mesmo a expressar

uma verdade ontológica independente das forças em jogo que motivaram o artista no

processo de criação da obra.

Para Nietzsche, el arte no significa, ante todo, la obra independientemente considerada del hecho de su creación por el artista, la cual puede permanecer luego idéntica a si misma a lo largo de las múltiples reproducciones o interpretaciones que se puedan hacer de ella. Nietzsche no piensa en el arte como figura de una verdad ontológica que no es una ficción ni el producto de la subjetividad del artista. .”(MECA, 1989, p. 68).

o mundo e a vida são concebidos por Nietzsche sob a perspectiva da totalidade

de forças em movimento de criação e recriação constante de si. A perspectiva se

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caracteriza pelo olhar humano inserido na imanência do mundo em que está inserido

como artista que observa a vida, a existência e observa a si mesmo participando de

seu jogo constitutivo. A cada olhar abre-se uma infinidade de possibilidades de

interpretação, de cores, formas, luzes e sombras, mas que sob outras perspectivas

podem se alterar significativamente no instante seguinte, mudando o mundo, a vida em

sua totalidade. O que significa que para Nietzsche não pode haver “(...) continuidad

ninguna del ser en el tiempo, puesto que, simplemente, no existe el ser sino el flujo del

devenir como caos. Si afirmamos seres o formas invariables es porque no podemos

percibir el continuo devenir como condición de toda cosa.” (MECA, 1989, p. 68/69).

Talvez se possa dizer que na perspectiva nietzschiana o ser é o mundo na forma como

ele se apresenta a cada momento em seu constante movimento de devir, na própria

dinâmica das forças que o constituem em cada instante do eterno retorno do mesmo.

Portanto, o perspectivismo de Nietzsche não se constitui como epistemologia.

“(...) segundo a qual o conhecimento varia de acordo com o ponto de vista, mas na

doutrina ontológica de que não há um ponto de vista exterior ao mundo – ou seja, um

mundo do Ser, de substâncias e essências, de identidade e permanência.” (ROCHA,

2003, p. 17). O mundo é para Nietzsche uma monstruosidade de forças em constante

combate, num incessante superar-se a si mesmo, um eterno retorno de forças vitais,

partícipe de devir dionisíaco de permanente criação e recriação de si mesmo, um

mundo extramoral, sem início nem fim, sem objetivo, sem meta ou finalidade.1 Enfim,

uma extensão oceânica de forças que em seus limites se derramam na vastidão de um

universo em que cintila uma infinidade de corpos celestes que a partir de suas

intensidades de forças mantêm o cosmo em constante equilíbrio vital. Assim, a vida

humana apresenta-se como parte e partícipe deste jogo abissal de forças cosmológicas.

A vida em sua totalidade e especificamente a vida humana é impulso lúdico, de criação

e recriação de si mesmo no continuum fruir da existência.

1 Nietzsche nos coloca diante de paradoxos que potencializam o mal-estar de nossa condição

humana, na medida em que se torna complexo compreender esta postura filosófica se não se aceita a

imanência, mas ao aceitá-la nos colocamos diante da morte, da historicidade em sua contingencialidade, de

nos vermos forçados a admitir o sem sentido da vida, da existência como seu sentido primeiro.

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Nesse sentido, a grande política em Nietzsche (e na ontologia da potência de

Agamben, reside no humano a potência de ser como potência), apresenta-se como o

desvencilhamento de toda e qualquer tarefa imposta sobre os seres humanos na

conformação da existência em estruturas predeterminadas de mundo, mas como a

possibilidade de não realização de tais tarefas históricas, mantendo-se em constante

abertura, em constante expectativa diante das possibilidades que a vida pode assumir

conforme a dinâmica do jogo existencial em curso e as apostas que podem ser feitas.

A grande política manifesta-se como a contínua manifestação do desejo de experienciar

o mundo, a vida sobre outras perspectivas lúdicas, criativas, artísticas.

Sob tais pressupostos, compete à grande política preparar as condições

necessárias para a afirmação do além-do-homem como destino da humanidade.

A grande política é o esforço de instituir uma educação dionisíaca, que permita à

humanidade potencializar os espíritos livres, seres humanos com força e capacidade

suficientes para suportar o fato de que a vida é vontade de poder, é constante e intenso

combate de forças como condição de superação de si. “O importante para Nietzsche,

é que se permita a um tipo humano o espaço para cultivar a grandeza e a experiência

na vida e atuação humanas.”(PERSON-ANSELL, 1997, p. 171).

Num mundo concebido como uma grandiosidade de forças sem início nem

fim, desprovido de um sentido predeterminado, sem finalidade a atingir, no qual se

manifesta, por obra da vontade de poder imanente ao mundo em toda sua potencialidade

a vida submetida à dinâmica temporal do eterno retorno, alicerçada na presentidade e

na intensidade do instante vital, exige do homem uma aposta nos valores da terra, na

imanência de uma vida que se coloca na intensidade do jogo no instante existencial em

curso, ciente de que não haverá outra oportunidade de viver e jogar com a vida.

“Heráclito era inacreditável como homem; e quando ele foi visto dando atenção ao jogo

de crianças barulhentas, pensava ali algo que nenhum mortal havia pensado nas

mesmas circunstâncias – o jogo de Zeus, dessa grande criança do mundo, e a

brincadeira eterna de destruir e formar mundo.” (NIETZSCHE, 2007, p. 27).

A forma-de-vida que se requer para suportar tal condição é a do artista trágico.

Somente concebendo a vida em sua dimensão trágica, perpassada por forças que

estão acima da capacidade de compreensão e determinação humanas e que envolvem

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o reconhecimento do sofrimento, da dor, e da morte (o que desautoriza a crítica que se

faz à Nietzsche, de uma estetização da existência que desconhece os limites e percalços

da mesma) é que se torna possível tomar a vida nas próprias mãos, fazendo dela uma

obra de arte em curso durante a própria vida. “A arte é mais poderosa do que o

conhecimento, pois é ela que quer a vida, e ele alcança apenas, como última meta, – o

aniquilamento.” (NIETZSCHE, 2007, p. 30).

Portanto, a grande política apresenta-se em Nietzsche num triplo movimento

que se constitui inicialmente numa crítica à estrutura metafísica ocidental em seus

anseios moralizantes de apequenamento do homem, transformando-o em animal de

rebanho. Estratégia perpetuada na modernidade diante da morte de Deus e da

elevação de novas transcendências que pudessem conferir ao homem sustentabilidade

e garantia de sentido e finalidade à existência humana. Num segundo momento, a

grande política está imbricada na concepção de mundo e de vida como vontade de

poder. Compete a ela garantir as condições indispensáveis para que, com a morte do

homem e o advento do além-do-homem, a humanidade possa tomar o mundo, a

existência, a vida sob outras perspectivas. O que significa dizer que compete à

grande política investir numa educação potencializadora de espíritos críticos,

criativos, livres, artísticos, dançantes, com coragem suficiente de deparar-se com a

condição trágica da existência. E num terceiro momento, a afirmação inconteste da

forma-de-vida trágica em sua intensidade artística e lúdica. é sob esses aspectos de

afirmação de um sim incondicional e artístico em relação à vida que Nietzsche toma

como referência comparativa com a modernidade e a necessidade de se instaurar a

grande política, os gregos do período trágico do mundo antigo. “A arte grega (...)

diante dos horrores da condição efêmera da existência, experimentados com uma

intensidade maior do que a de outras civilizações, os gregos criaram, pela abundância

e pela força das miragens artísticas, um modo de tornar a vida desejável e justificada.”

(SUSSEKIND, 2007, p.14).

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13.3 AGAMBen: A PoLÍtICA-qUe-VeM e A ProFAnAção DAs ForMAs-De-VIDA-qUe-VeM

A forma-de-vida-que-vem em Agamben está intimamente vinculada à política-

que-vem, como posicionamento crítico diante das formas biopolíticas perpetradas

pelo Ocidente, a partir das cisões e fraturas originárias que constituem, sob o

fundamento da linguagem, o mundo humano. Em sua obra “Il sacramento del

linguaggio: archeologia del giuramento (Homo sacer II,3), 2008, Agamben chama a

atenção para a necessidade de se questionar o estatuto privilegiado que a linguagem

sempre teve em nossa cultura. Em si mesma ela não representa nada além da

multiplicidade de linguagens utilizadas pelas diversas espécies de seres vivos em seu

esforço de sobrevivência. O que torna a linguagem humana algo decisivo é o fato de

ela ser o fundamento do ser falante, do ser humano. E é a partir do fato do humano

constituir-se a partir da linguagem que lhe permite pronunciar o mundo a sua volta,

transformando-o num ser ético e político, num ser de relações que necessita do outro,

do plural como condição de constituição do mundo.

é hora talvez de questionar o prestígio que a linguagem teve e tem na nossa cultura, enquanto instrumento de potência, eficácia e beleza incomparáveis. No entanto, considerada nela mesma, ela não é mais bela que o canto dos pássaros, não é mais eficaz que os sinais trocados entre si pelos insetos, não é mais potente que o rugir do leão ao afirmar seu domínio. O elemento decisivo que confere à linguagem humana suas virtudes peculiares não está no instrumento em si mesmo, mas no lugar que ele deixa ao falante, na predisposição interna em forma de cavidade que o locutor deve, toda vez, assumir para poder falar. Isto é: na relação ética que se estabelece entre o falante e sua língua. O homem é o vivente que, para falar, deve dizer “eu”, ou seja, deve “tomar a palavra”, assumindo-a e fazendo-a própria. (AGAMBEN, 2008, p. 97).2

2 È forse tempo di mettere in questione il prestigio di cui il linguaggio ha goduto e gode nella nostra

cultura, in quanto strumento di potenza, efficacia e bellezza incom parabili. Eppure, considerato in se stesso,

esso non è più bello del canto degli uccelli, non è più efficace dei segnali che si scambiano gli insetti, non più

potente del ruggito con cui il leone afferma la sua signoria. L’elemento decisi vo che conferisce al linguaggio

umano le sue virtù peculia ri non è nello strumento in se stesso, ma nel posto che es so lascia al parlante, nel

suo predisporre dentro di sé una forma in cavo che il locutore deve ogni volta assumere per parlare. Cioè:

nella relazione etica che si stabilisce fra il parlante e la sua lingua.(Tradução nossa).

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Porém, em relação às formas-de-vida-que-vem, decorrentes da política-que-

vem, duas observações se fazem necessárias. A primeira é que, enquanto escrevemos

estas linhas, o filósofo italiano dá sequência às suas investigações, à escritura de seus

textos, às suas conferências, o que significa dizer, que Agamben pode alterar, esclarecer

melhor o que já disse, como pode modificar suas concepções, ou mesmo, acrescentar

ao que já foi dito, outras perspectivas analíticas. Portanto, corremos o risco de apontar

a arte como forma-de-vida-que-vem em Agamben e, no curso dos acontecimentos,

não ver confirmada pelo filósofo nossa proposição. A segunda observação refere-se

ao caráter da crítica que atribuímos a Agamben. A crítica em Agamben não se vincula

ao lugar comum que parte do pressuposto que ela é um dos momentos do movimento

dialético de superação do negativo, anunciando uma nova possibilidade de apreensão

da realidade. Mas, posiciona-se na potencialização do negativo, como forma de

paralisar o movimento crítico do pensamento em contínuo movimento de esvaziamento

e perda de sua potencialidade em ato, na afirmação de uma nova verdade.

Dessa forma, em nosso entendimento, a crítica em Agamben assume um

caráter de intensa experiência como forma de potencialização do pensamento, como

abertura ao mundo em sua forma originária. “A cisão entre poesia e filosofia testemunha

a impossibilidade da cultura ocidental de possuir plenamente o objeto do conhecimento

(pois o problema do conhecimento é um problema de posse, e todo problema de

posse é um problema de gozo, ou seja, de linguagem),”(AGAMBEN, 2007/c, p. 12)3.

3 Em função de fazermos ao longo do artigo citações de quatro obras de Agamben publicadas no

Brasil em 2007, utilizaremos na citação, após o ano uma letra do alfabeto, indicando as diferentes obras na

seguinte ordem:

a) GIORIGO ABAMBEN. La potencia del pensamiento. Traducción de Flavia Costa y Edgardo

Castro. Buenos Aires: Adriana Hidalgo, 2007.

b) GIORIGO ABAMBEN. Lo abierto: el hombre y el animal. Traducción de Flavia Costa y Edgardo

Castro. Buenos Aires: Adriana Hidalgo, 2007.

c) GIORIGO ABAMBEN. estÂnCIAs – a palavra e o fantasma na cultura ocidental. Tradução de

Selvino José Assmann. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.

d) GIORIGO ABAMBEN. Arte, Inoperatividade, Política. In: CARDOSO, Rui Mota. Política – Politics. Giorgio Agamben; Giacomo Marramao; Jacques Rancière; Peter Sloterdijk. Crítica do Contemporâneo – Conferências internacionais serralves. Portugual, 2007. p. 17-49.

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[ 192 ]

Assim, toda realização de potência é, nesse sentido, busca de potência em não se

encerra nos limites e reducionismos do conhecimento objetivo do mundo.

O acesso ao que se torna problemático nessas perguntas é impedido pelo esquecimento de uma cisão que se produziu desde a origem em nossa cultura e que se costuma aceitar como a realidade mais natural e que cai, por assim dizer, por si mesmo, quando realmente é a única coisa que de fato mereceria ser interrogada. Trata-se da cisão entre poesia e filosofia, entre palavra poética e palavra pensamente, e pertence tão originalmente à nossa tradição cultural que já no seu tempo Platão podia declará-la “uma velha inimizade”. De acordo com uma concepção que está só implicitamente contida na crítica platônica da poesia, mas que na idade moderna adquiriu um caráter hegemônico, a cisão da palavra é interpretada no sentido de que a poesia possui o seu objeto sem o conhecer, e de que a filosofia o conhece sem o possuir. A palavra ocidental está, assim, dividida entre uma palavra inconsciente e como que caída do céu, que goza do objeto do conhecimento representando-o na forma bela, e uma palavra que tem para si toda a serenidade e toda a consciência, mas não goza do seu objeto porque não o consegue representar. (AGAMBEN, 2007/c, p. 12).

Em Agamben a política-que-vem vincula-se a uma perspectiva messiânica4,

alicerçada numa concepção de tempo que resta. Ou seja, de uma representação do

tempo que paralisa na imanência do acontecimento, o “agora do instante”, permitindo,

por um lado, desvencilhar-se da representação de tempo cronológico, cuja lógica

opera a partir da contínua sucessão progressiva e plana dos instantes vitais,

impossibilitando a experiência vital da potência do pensamento. Neste sentido, a tarefa

da política-que-vem, em Agamben, procura prefigurar o gesto de tornar inoperante a

máquina antropológica que funda o humano e o inumano, separando-o da animalidade,

4 Entre as várias criticas, que se pode dirigir ao pensamento de Agamben, a partir de seus esforços

de se desvincular da pretensão presente numa das variáveis da filosofia da história e, que caracteriza em certo

sentido a modernidade em seu curso progressista, em seu anseio de apresentar propostas inovadoras, ou, as

melhores respostas, para os velhos problemas humanos é a sua recaída num momento utópico messiânico

como forma de redenção do passado no presente, de transformar o presente na condição temporal sine

qua non, para restabelecer os vínculos originários do mundo humano. Tal perspectiva filosófica pretende

paralisar o curso da história e, as implicações decorrentes do estabelecimento da máquina antropológica e

governamental, que se materializa nas estratégias biopolíticas de racionalização e administração da vida e

da morte na contemporaneidade. Tal postura o torna um pensador intimamente vinculado aos pressupostos

do marxismo messiânico de Walter Benjamin.

Page 193: Capital_Social Com ISBN

[ 193 ]

mas mantendo-o numa zona de indecidibilidade vital. A política-que-vem procura paralisar a máquina antropológica esvaziando o sentido e a finalidade de suas categorias antagônicas articuladas na dinâmica de constituição das relações de poder biopolíticas constitutivas do ocidente. “La máquina antropológica del humanismo es un dispositivo irónico que verifica la ausencia para Homo de una naturaleza propia, manteniéndolo suspendido entre una naturaleza celeste y una terrena, entre lo animal y lo humano; y por ello, siendo siempre menos y más que si mismo. (AGAMBEN, 2007/b, p. 63).

Se a política-que-vem em Agamben vincula-se a uma concepção temporal messiânica, soma-se a esta condição uma tonalidade melancólica que reforça a ideia de uma paralisação dos ímpetos reformistas e revolucionários que compõem a máquina política e governamental na qual se insere parte significativa do pensamento filosófico e utópico ocidental moderno. Ou seja, para além de uma paralisia do pensamento, o que a perspectiva melancólica do pensamento de Agamben propõe é a revisão dos fantasmas, das aparências que consumiram parte significativa das energias ocidentais em sua decifração e tentativa de superação utópica.

Portanto, a política-que-vem poderá suscitar uma forma-de-vida-que-vem a partir de sua imanência desvinculada das estruturas políticas e jurídicas que configuram a máquina biopolítica e governamental do Ocidente. “No contexto moderno o que se afirma é exatamente a soberania do Estado, concretizada pelas formas jurídicas.” (MILOVIC, 2009, p.111). Agamben procura mostrar que a modernidade com toda sua aposta na razão e em suas derivadas utopias políticas não conseguiu pensar outras possibilidades temporais e políticas a partir das quais a vida pudesse ser potencializada. A tarefa da política-que-vem consiste em abandonar, profanar as categorias políticas que ocuparam a centralidade da cena política até os dias de hoje. é devolver à política seu uso comum, sua condição potencial de abertura ao mundo, a existência, desvinculada da violência soberana legitimada pelo direito que aprisiona a vida na forma-de-vida nua matável e (ou) sacrificável.

Es posible incluso que, si pretendemos estar a la altura de las tareas absolutamente nuevas que están ante nosotros, tengamos que decidirnos a abandonar sin reservas los conceptos fundamentales con los que hasta ahora hemos representado los sujetos de lo político (el hombre y el ciudadano con sus derechos, pero también el pueblo soberano, el trabajador, etc.,) y a reconstruir nuestra filosofía política a partir únicamente de esa figura. (AGAMBEN, 2001, p.22)

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[ 194 ]

Dessa forma, o sentido messiânico da política como Agamben a concebe, tem

a potência de realizar-se, mantendo aberto o campo das possibilidades potenciais

imanentes da vida, contrapondo-se, ao sentido teleológico assumido pela máquina

política e governamental que se constituiu no ocidente aprisionando a vida em sua

condição de nudez. “A imanência da vida aparece assim como a alternativa da vida

nua. Pensar a política no plano dessa imanência é o projeto de Agamben. Aqui talvez

reapareça uma nova política sem política, porque se trata de uma política que não

representa ou realiza certa teleologia.” (MILOVIC, 2009, p. 112).

é tarefa da política-que-vem, como condição potencial das formas de vida-

que-vem profanar, devolver ao uso comum, a condição imanente no tempo que resta,

a vida nua sacralizada pelos dispositivos políticos, jurídicos e econômicos que se

constituíram no Ocidente. Profanar significa também tornar inoperante a operosidade

dos dispositivos biopolíticos que foram secularizados, incidindo diretamente sobre a

vida nua na contemporaneidade. Portanto, a condição da profanação exige, que se

reconheça que os dispositivos políticos, jurídicos e econômicos que constituem a

máquina governamental e biopolítica do Ocidente derivam de conceitos teológicos

secularizados e, sob tal perspectiva, revestidos de caráter teleológico e escatológico,

submetendo a vida a imperativos de finalidade estabelecidos a partir das relações de

poder em curso no contexto civilizatório. Porém, a secularização é apenas a condição

moderna advinda dos fundamentos humanistas, prioritariamente da matriz judaico-

cristã, constituindo nossa forma de ser e estar no mundo.

A secularização é uma forma de remoção que mantém intactas as forças que se restringe a deslocar de um lugar a outro. Assim, a secularização política de conceitos teológicos (a transcendência de Deus como paradigma do poder soberano) limita-se a transmutar a monarquia celeste em monarquia terrena, deixando intacto o seu poder. (AGAMBEN, 2007/a, p. 68).

Portanto, a profanação é um gesto da política-que-vem, na medida em que

implica tornar disponíveis as formas de vida que foram profanadas, indisponibilizadas

pela sacralização dos dispositivos de poder em curso, remetendo-as a modelos

presentes na esfera do sagrado. A profanação desativa os dispositivos de poder, torna-

os inoperantes, devolvendo o que foi confiscado ao uso comum, a sua condição

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[ 195 ]

originária. Ou sob outra variável argumentativa, as formas de vida-que-vem virão no

bojo dos movimentos políticos profanatórios, a partir dos inúmeros dispositivos

presentes na sociedade do espetáculo e do controle, que caracterizam a

contemporaneidade, na captura e reprodução de vida nua, possibilitando a afirmação

da vida em sua imanência absoluta.

O gesto profanatório inerente à política-que-vem implica a dessacralização dos

dispositivos de individuação e subjetivação que constituem as identidades societárias,

as tarefas históricas, as finalidades existências que se impõem sobre a vida dos

indivíduos na ocidentalidade. O sujeito/indivíduo dessubjetivado, profanado, devolvido

ao uso comum, apresenta-se na forma de um sujeito/indivíduo messiânico. Essa

postura existencial apresenta-se desprovida de pretensões de realização de promessas

de salvação num futuro próximo, de transformação deste mundo num outro mundo

possível a concretizar-se no esgotamento temporal em andamento, de sua ansiosa

crença na técnica, na economia como transcendências salvifícas de existências

reduzidas à vida nua. O gesto profanatório que institui o sujeito messiânico, permite-

lhe contemplar a vida e tomá-la em suas mãos como o artista toma em suas mãos o

pincel, as tintas, o quadro, a escultura, como obra de arte a ser contemplada e

melhorada no curso de uma vida em relação com outras vidas.

A profanação implica, por sua vez, uma neutralização daquilo que profana. Depois de ter sido profanado, o que estava indisponível e separado perde sua aura e acaba restituído ao uso. Ambas as operações são políticas, mas a primeira tem a ver com o exercício do poder, o que é assegurado remetendo-o a um modelo sagrado; a segunda desativa os dispositivos do poder e devolve ao uso comum os espaços que ele havia confiscado. (AGAMBEN, 2007/a, p. 68).

A partir das perspectivas do pensamento de Agamben, aqui apresentadas,

talvez se possa dizer, que no estado atual de sua obra a forma-de-vida-que-vem,

vincula-se à arte, manifestando as possibilidades da política-que-vem em sua

condição profanatória, tornando inoperante a operosidade dos dispositivos que se

constituíram na estrutura metafísica ocidental até dias atuais. A arte concebida como

modus operandi das formas de vida-que-vem torna-se assim a possibilidade de

restituir à vida sua potencial abertura para as possibilidades de tornar-se aquilo

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[ 196 ]

que se é no tempo que resta, na pura imanência de uma vida, desvinculada dos

imperativos biopolíticos teleológicos e dos dispositivos que a aprisionam e consomem

suas energias vitais. Talvez tenhamos no tempo que nos resta uma possibilidade de

conceber e viver a vida a partir da multiplicidade de cores, dos jogos de luzes e

sombras que no átimo de uma vida liberada do peso monocromático dos dispositivos

que a aprisionam, pode oferecer.

A arte é em si própria constitutivamente política, por ser uma operação que torna inoperativo e que contempla os sentidos e os gestos habituais dos homens e que, desta forma, os abre a um novo possível uso. Por isso, a arte aproxima-se da política e da filosofia até quase confundir-se com elas. Aquilo que a poesia cumpre em relação ao poder de dizer e a arte em relação aos sentidos, a política e a filosofia têm de cumprir em relação ao poder de agir. Tornando inoperativas as operações biológicas, econômicas e sociais, ela mostra o que pode o humano, abrem-no a um novo, possível uso. (AGAMBEN, 2007/d, p. 49).

ConsIDerAçÕes FInAIs

Portanto, a grande política em Nietzsche, ao conceber o mundo e a vida como

vontade de poder, articulando-os com a concepção de tempo como eterno retorno do

mesmo, remete a conceber vida como obra de arte resultante do reconhecimento e da

aceitação da dimensão trágica da existência em sua totalidade. A perspectiva trágica

apresenta-se assim como condição ontológica, política e ética da existência, na medida

em que se apresenta como constituinte do humano e do mundo, apresentando-se no

instante existencial em curso. Trágica é toda a vida que se dá conta do profundo

silêncio que a envolve. A situação de abandono à que esta submetida na imensidão do

cosmo e, mesmo assim, coloca-se em jogo, quer fazer a experiência vital na busca da

felicidade, do bem viver, resultante do compartilhamento com outros seres humanos

que também se apresentam tragicamente na existência. “(...) aqui a beleza triunfa

sobre o sofrimento inerente à vida, a dor é, em certo sentido, mentirosamente apagada

dos traços da natureza.” (NIETZSCHE, 1992, p. 102).

Agamben, por seu turno, nos propõe partir de uma concepção de vida lançada

originariamente na imanência absoluta, tomá-la como arte no tempo que nos resta, no

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[ 197 ]

tempo de agora. A arte se apresenta assim, como o substrato ontológico, político e

ético a partir da qual podemos, no tempo de agora, retomar o mundo e a vida sobre

outras possibilidades e potencialidades. A exigência que se impõe a todo e qualquer

artista no ato de execução de sua obra é que, desde seus primeiros traços ele a

vivencie intensamente. O que importa é a intensidade da experiência que se pode fazer

no ato de qualquer movimento no instante em que o artista está trazendo à vida sua

obra. Dessa forma, no tempo que nos resta o que importa fazer é desvencilharmo-nos

dos dispositivos de produção de subjetividades. Ou seja, paralisar a máquina

antropológica, biopolítica, governamental e econômica que suga incessantemente as

energias vitais, impedindo o desabrochar de experiências vitais em jogo na conformação

de um mundo que possa se apresentar potencialmente como arte.

reFerênCIAs

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Page 199: Capital_Social Com ISBN

[ 199 ]

14 o DIsCUrso “soBre” o CIneMA DoCUMentAL

Lucio Flávio Giovanella1 solange Leda Gallo2

14.1 A noVeMBrADA

Esta forma de discursividade documental fílmica faz a tecedura com as redes

de memória do jornalístico e do político como a tessitura está no uso de materiais

jornalísticos em branco e preto entrelaçados a materiais coloridos da textualidade

cinematográfica. Estamos tomando “tecedura e tessitura” conforme formulação de

Neckel3.

O atravessamento do discurso jornalístico no filme curta-metragem A novembrada, de Eduardo Paredes, intensifica o sentido do político, legitimando esses

sentidos presentes no filme. Essa produção cinematográfica catarinense articula de

1 Mestre em Ciências da Linguagem – Unisul-SC.2 Doutora em Linguística – Unicampo-SP Coordenadora Adjunta do Programa de Pós Graduação

em Ciências da Linguagem Unisul-SC.3 [...] a tecedura, o tecer dos dizeres no fio do discurso, na trama dos sentidos. A tecedura está

no jogo polissêmico e no interdiscursivo. A tecedura mobiliza a memória discursiva. Usa as noções de

formação discursiva e préconstruido. Sua heterogeneidade constitutiva. A tecedura tece uma teia com a

qual somos tecidos discursivamente. [...] No caso da imagem, Tecedura representa a rede de filiações de

memória a outras imagens e ou materialidades [...]. A teia é tramada pelos esquecimentos constitutivos 1

e 2 formulados por Pêcheux. (NECKEL, 2010). [...] A tessitura, a estrutura das diferentes materialidades

discursivas ancoradas no artístico [...]. Tessitura do funcionamento musical, como aquilo que ordena o

andamento, os compassos, as notas etc. Assim como no funcionamento musical a tessitura estaria para a

estrutura do dizer (visual/sonoro/gestual/verbal). (NECKEL, 2010)

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[ 200 ]

diferentes formas o político próprio da linguagem e do político, como processo

de identificação.

O discurso “sobre”, em seu maior ou menor grau, materializa um modo de

documentar que pode tender ao autoritarismo, ou à polêmica. Na análise discursiva

procuramos compreender os sentidos que se fazem no entremeio e se constituem na

contradição. Neste caso aqui analisado a contradição está na tessitura de diferentes

discursividades (do jornalístico e do fílmico) produzindo um sentido de continuidade,

sem interrupção.

O filme A novembrada reconstrói o evento político de mesmo nome, a partir de

quatro lugares sociais: os estudantes, os jornalistas, a população de Florianópolis, pelo

lado da sociedade civil; e do lado do Estado ditatorial e seus colaboracionistas, a

posição-sujeito político personificada pelos personagens do governador, policiais

militares e presidente. Ou seja, em um primeiro lugar social estão os estudantes que

organizaram as manifestações; em segundo, o lugar social dos jornalistas do jornal

local que faziam a cobertura da visita do general; no terceiro lugar social, a população

da cidade de Florianópolis, que participou do acontecimento “Novembrada” e dos atos

posteriores pela libertação dos estudantes. Finalmente, no quarto lugar social está o

general João Figueiredo e seus correligionários. Há uma dicotomia que se constitui em

duas posições-sujeito, a ditadura de um lado e a população civil de outro.

Na segunda parte do filme, em que se observa um efeito de sentido de

documentário, esse efeito é resultante do funcionamento do discurso “sobre”.

Conforme Mariani (1998, p. 61):

Do nosso ponto de vista, o discurso jornalístico, sobretudo na sua forma de reportagens, funciona como uma modalidade de discurso ‘sobre’, pois coloca o mundo como objeto. A imprensa não é o ‘mundo’, mas deve falar sobre este mundo, retratá-lo, torná-lo compreensível para os leitores. O cotidiano e a história apresentados de modo fragmentado nas diversas seções de um jornal, ganham sentido ao serem ‘conectados’ interdiscursivamente a um já-lá dos assuntos em pauta. E essa interdiscursividade pode ser reconstruída através da análise dos processos parafrásticos presentes na cadeia intertextual que vai se construindo ao longo do tempo. é por aí a nossa compreensão do discurso jornalístico ter como característica atuar na institucionalização social dos sentidos. E com isto estamos afirmando, em decorrência, que o discurso jornalístico

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[ 201 ]

contribui na constituição do imaginário social e na cristalização da memória do passado, bem como na construção da memória do futuro.

Aqui o discurso “sobre” funciona legitimando o que está sendo contado através

do fílmico. Busca-se essa legitimação por meio de fotografias jornalísticas em preto e

branco, fazendo aderir os sentidos do fílmico aos sentidos do jornalístico.

Imagem 1: Cenas do filme curta-metragem A Novembrada

Além disso se produz a simulação de um ponto de vista do sujeito-jornalista do

evento “novembrada”, que estava sob forte censura, deixando latente a identificação

do leitor. Desse modo, a mídia, aí, tem o efeito de testemunha, aquela que denuncia.

Esse efeito produzido pelo filme legitima a mídia, como cúmplice do desejo do povo.

Há uma dobradura do efeito de sentido de uma discursividade sobre a outra, ou seja,

o fílmico legitima o sentido do jornalístico, que por sua vez legitima os sentidos do

fílmico. Há uma imbricação dessas duas materialidades4. A cena que produz o efeito

de “um fato real” é tecida a partir dessas duas memórias, a memória do jornalismo e

a memória do cinema. Cada uma delas tem uma materialidade especifica. é com esses

tecidos (jornalístico e cinematográfico) que se faz a textualidade composta de

4 A noção de “imbricação material de diferentes materialidades significantes” encontra-se em

LAGAZZI, S. A Materialidade Significante em Análise. In: TFOUNI, L.V., MONTE-SERRAT, D.M., CHIARETTI, P.

(Orgs.). A Análise do Discurso e suas Interfaces. São Carlos: Pedro & João Editores, 2011.

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[ 202 ]

fotografias de um registro histórico e uma voz em off narrando cenas criadas

ficcionalmente. Nas imbricações das materialidades é que se produz o sentido.

O fílmico não estabelece uma relação interdiscursiva de confronto, mas sim de aliança

entre o jornalístico e o cinematográfico. A relação entre essas duas discursividades é

de complementaridade.

14.2 CrUZ e soUsA, o PortA Do Desterro

No filme longa metragem Cruz e sousa, o Poeta do Desterro, de Sylvio Back,

a imbricação do político no tecido fílmico produz-se por meio do silêncio, no “não

dito”. O filme traz uma obra poética que não está visivelmente interpretada. Há um

silêncio interpretativo, o que faz com que a obra apareça de certo modo e não de outro,

o que produz um efeito de fidelidade à narrativa cinematográfica especificamente criada

para a poesia, respeitando a autoria de Cruz e Sousa. Este filme se inscreve na estética

simbolista, o filme todo é permeado por essa estética. O efeito do político está no gesto

de interpretação cinematográfico que dá a voz ao Poeta Cruz e Sousa. Ao recitar as

poesias, minimiza-se a determinação da função autor do sujeito-diretor, pela ausência

do explicativo: não há um dizer “sobre” a obra, silencia-se quase tudo o que não é a

poesia. O que se vê são as poesias declamadas e encenadas. Essa é a narrativa desta

obra, em completa similaridade com o tema abordado. A autoria está na escolha dos

poemas e das encenações. A narrativa é construída a partir de uma seleção de poemas

a serem declamados em uma determinada ordem.

Há poucos momentos, no filme, que se explicita a passagem de uma posição-

sujeito poeta para uma posição-sujeito personagem.

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Imagem 2: Cenas do filme longa-metragem Cruz e Sousa, o poeta do Desterro

Essa passagem está metaforizada no filme, por exemplo, em uma das cenas

iniciais quando há a incorporação de um “espírito” no corpo do ator. Kadu se torna o

“cavalo” de Cruz e Sousa, num ritual com sangue. No documentário que traz uma obra

constituída por outra materialidade, por mais que a obra tenha notoriedade, seu sentido

é reconstruído pelo documentário. De outro modo, nesse caso, a poesia de Cruz e

Sousa prescinde de apresentação. Não há construção de um discurso “sobre” a obra,

que já tem um modo de circulação, um modo de interpretação, um modo próprio de

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[ 204 ]

produzir sentido. Não há a sobredeterminação do sentido da obra através de um texto

“sobre”, no sentido indicado por Mariani (1998, p. ??):

Consideramos o discurso jornalístico como uma modalidade de discurso sobre. Um efeito imediato do falar sobre ‘e tornar objeto aquilo sobre o que se fala. Por esse viés, o sujeito enunciador produz um efeito de distanciamento – o jornalista projeta a imagem de um observador imparcial – e marca uma diferença com relação ao que é falado, podendo desta forma, formular juízos de valor, emitir opiniões etc., justamente porque não se ‘envolveu’ com a questão. [...] Os discursos sobre são discursos que atuam na institucionalização dos sentidos, portanto, no efeito de linearidade e homogeneidade da memória. Os discursos sobre são discursos intermediários, pois ao falarem sobre um discurso de (discurso de origem), situam-se entre este e o interlocutor, qualquer que seja. De modo geral, representam lugares de autoridade em que se efetua algum tipo de transmissão de conhecimento, já que o falar sobre transita na co-relação entre o narrar/descrever um acontecimento singular, estabelecendo sua relação com um campo de saberes já reconhecido pelo interlocutor.

A interpretação se relaciona ao recorte da obra que é mobilizado. Procuramos

compreender esse gesto de interpretação da obra, e não somente o efeito de sentido

produzido como fílmico. Salla (2010) formula a noção de fílmico como sendo o efeito

discursivo de fecho, de unidade, de um todo, por oposição à noção de cinematográfico

como sendo relativo às partes de um filme:

Esses elementos se materializam por processos discursivos que, quando inscritos no discurso cinematográfico, resultam em uma unidade fílmica. Assim, o cinematográfico é uma instância discursiva que se realiza por diferentes processos, enquanto o fílmico é o seu efeito de unidade, de fecho.

Em análise do discurso procura-se questionar os a priori, assim, mesmo não

sendo considerado documentário no modo como tem circulado, Cruz e sousa, o Poeta do Desterro é um documento, no sentido de que é o documento de uma obra.

é nesse sentido que estamos considerando documentário, não porque obedece a um

certo modo de circulação determinado pelo discurso fílmico documental. Ou seja, para

a AD, o sujeito da linguagem está sempre já lá onde a ideologia o alcança, sempre

significando pela via da interpretação pronta para significar, e o trabalho de análise

incide sobre essa obviedade, restituindo, na medida do possível, a materialidade desse

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[ 205 ]

sentido. Portanto, nessa perspectiva, o documentário ou a ficção, por serem formas

discursivas igualmente inscritas na história, são relativizáveis. Neste caso diremos que

Cruz e sousa, o Poeta do Desterro é um documentário que não “direciona” uma

interpretação por meio de uma posição explícita, o sentido da obra documentada. Não

há essa voz mediadora.

Imagem 3: Cenas do filme Cruz e Sousa, o poeta do Desterro

Há uma autoria, mas esse gesto de interpretação se produz de modo a

evidenciar a autoria de Cruz e Sousa. Todo o tecido audiovisual procura deixar os

sentidos abertos, na mesma proporção da própria poesia de Cruz e Sousa. A poesia,

por sua natureza artística, não fecha os sentidos, a poesia é um tecido todo vazado no

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[ 206 ]

qual o leitor pode entrar e sair por muitos lugares, a tessitura não fecha. é difícil atribuir-

se um sentido de unidade, um sentido único, porque a poesia tem essa característica

de poder assimilar muitos sentidos. Essa é uma das características do discurso

artístico, aqui materializado na poesia. O filme procura manter esta característica. Uma

voz explicativa silenciaria a poesia.

Para fazer um documento sobre poesia, o que se pode fazer senão mostrar a

poesia? Ao falar “sobre”, noticia-se a poesia. O filme que aqui analisamos funciona

diferentemente de um documentário, metamorfoseia-se no próprio objeto que está

sendo documentado.

Ele faz o audiovisual se amoldar ao poético, não perdendo a amplitude do

sentido, a heterogeneidade. Não comprime, não fecha. é polissêmico.

Nos poucos momentos em que o filme mostra a biografia do poeta, há um

vislumbre da entrada do ator no personagem, quando então fica marcada a interpretação

do poeta Cruz e Sousa pelo tecido cinematográfico. é um autor que tem uma biografia,

que nasceu em um lugar etc. São esses os raros momentos em que se tem o que

poderia ser considerado mais “próprio” do documentário. A imbricação material de

tessitura e tecedura, nesses casos, se produz nas fotos de época, nas músicas e

outros elementos.

é um elemento documental, por exemplo, um cartão postal, que é um postal

ligado à história da biografia de Cruz e Sousa.

Imagem 4: Cenas do filme Cruz e Sousa, o poeta do Desterro

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[ 207 ]

No filme A novembrada é muito mais determinante o discurso “sobre” do que

em Cruz e sousa, o poeta do Desterro. A consequência disso é que o segundo filme

não tem efeito de documentário, ou, esse efeito é quase nulo. Não se assume a posição

de construir um discurso “sobre”, ao contrário, procura-se fazer a obra poética falar,

sem falar sobre a obra. Nesse caso do filme Cruz e sousa, o poeta do Desterro, temos

um exemplo de um documento produzido sobre uma obra, com baixo grau de assunção

dessa posição-sujeito do discurso “sobre” e, por consequência, o efeito de

documentário é bem menor do que no filme A novembrada.

ConsIDerAçÕes FInAIs

Para finalizar gostaríamos, ainda, de relacionar a materialidade dos documentos

que originaram as interpretações fílmicas aqui analisadas, com o tipo de interpretação

produzida. Ou seja, no caso do filme A novembrada, o documento de origem é um

material jornalístico, enquanto no caso de Cruz e Sousa, o poeta do Desterro, o material

de origem é uma obra poética. Assim, o gesto de interpretação fílmica corresponde a

essa materialidade, redobrando-a no tecido audiovisual. O discurso “sobre” já está na

matéria que origina o filme A novembrada, assim como o discurso artístico já está na

matéria que origina o filme Cruz e Sousa, o poeta do Desterro.

Essa análise, portanto, traz subsídio para pensarmos no documentário de uma

perspectiva discursiva. Lançamos mão de muito mais do que a forma. Nossa

abordagem ultrapassa também o conteúdo, a temática. Permite estabelecer um critério

discursivo para refletir sobre o documentário, e esse critério tem a ver com o grau de

aproximação com um discurso “sobre”. Quanto mais determinante é essa posição de

sujeito que faz um discurso “sobre”, maior é o efeito de documentário.

Page 208: Capital_Social Com ISBN

[ 208 ]

reFerênCIAs

BACK, Sylvio. Cruz e sousa, o Poeta do Desterro. Rio De Janeiro: 7 Letras, 2000.

BACK, Silvio; GIOVANELLA, Lúcio Flávio. Cruz e souza. o Poeta do Desterro. 1999. (Obra de artes visuais/Cinema).

LAGAZZI, S. “O recorte significante na memória”. In: INDURSKY, F.; FERREIRA,M.C.; MITTMAN, S. (Org.). O discurso na Contemporaneidade. Materialidades e Fronteiras. III seAD – seminário de estudos em Análise do Discurso. Porto Alegre: UFRGS, 2007.

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GALLO, Solange Leda. Da escrita à escritoralidade: um percurso em direção ao autor online. In: RODRIGUES, Eduardo Alves; SANTOS, Gabriel Leopoldino dos; CASTELLO BRANCO, Luiza Katia Andrade. Análise de Discurso no Brasil: pensando o impensado sempre. Uma homenagem a Eni Orlandi. Campinas, SP: Editora RG, 2011. 512p. [este texto: pp. 411-423]. ISBN: 9788561622312.

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MARIANI, Bethania. o PCB e a imprensa: os comunistas no imaginário dos jornais (1922-1989). Campinas/SP. UNICAMP. Rio de Janeiro: Revan, 1998.

NECKEL, Nadia Regia Maffi. tessitura e tecedura: movimentos de compreensão do discurso artístico no audiovisual. 2010. Tese (Doutorado). Campinas, 2010.

PAREDES, Eduardo . novembrada. 1998. (Obra de artes visuais/Cinema).

PêCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma critica a afirmação do obvio. São Paulo: UNICAMP, 1988.

SALLA, Mara: Lendo Filmes e o poeminha do contra – O fechamento do cinematográfico na simultaneidade do fílmico. (Dissertação Mestrado) – PPGCL – Unisul/Palhoça, 2010. Disponível em <www.unisul.br/linguagem>.

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o HIstÓrICo e o PoLÍtICo

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15os JornAIs DA InDePenDênCIA: o esPeLHo DA Corte

Giovanna Benedetto Flores1

A história da imprensa brasileira está relacionada diretamente com a

colonização portuguesa no Brasil, mediante a política linguística e a importância

dessa política para a constituição dos sujeitos e a produção de sentidos do discurso

jornalístico, principalmente a relação entre língua e jornalismo nos processos de

significação de uma nacionalidade brasileira. Portanto, esta pesquisa tem por

proposta pensar parte da história da imprensa brasileira, não apenas como relato de

acontecimentos, com datas e nomes que marcaram momentos importantes do

Brasil, mas também para compreender como o jornalismo contribuiu no processo de

significação de transformar o Brasil-colônia em nação e como foi a relação entre

Brasil e Portugal no projeto de independência.

Nosso estudo consiste na análise discursiva de alguns periódicos do século

XIX, especialmente os jornais editados entre 1821 e 1823, que produzem sentidos e

que participam da definição do brasileiro.Os periódicos selecionados para análise

são: A O Conciliador do Reino Unido, Correio do Rio de Janeiro, Reverbero

Constitucional Fluminense, O Espelho e O Macaco Brasileiro. Os periódicos dessa

época são importantes para compreender o processo de independência no que

concerne à mídia, por trazerem marcadas características desse momento e posições –

sujeitos aí constituídas.

1 Jornalista e docente do Programa de Pós Graduação em Ciências da Linguagem e do curso

de Comunicação Social da Unisul, pesquisadora da Revista Laboratório Ciência em Curso e do Núcleo

Discurso, Cultura e Mídia. Mestre em Ciências da Linguagem e Doutora em Linguística pela Unicamp-SP.

[email protected]

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[ 212 ]

Para esse trabalho, estaremos analisando o jornal O Espelho, que começou a

circular em 01 de outubro de 1821, no Rio de Janeiro. Esse periódico era editado pelo

professor e militar Manuel de Araújo Ferreira Guimarães, que era mais conservador e

representava a imprensa áulica2.

A partir disso, proponho refletir sobre o discurso jornalístico e sua articulação

com a política do momento, tendo como base teórica a Análise do Discurso e a História

das Ideias Linguísticas

A História das Ideias Linguísticas é um projeto articulado entre a França e o

Brasil, cujo objetivo é “tratar a questão da língua, dos instrumentos tecnológicos a ela

ligados e de sua relação com a história de um povo que a fala” (GUIMARãES e

ORLANDI, 1996:09). Portanto, ao relacionar a história da língua no Brasil, com a

constituição da sociedade, estamos pensando a relação língua, nação e estado e suas

especificidades que constituem a nossa nacionalidade.

Para a Análise do Discurso3, interessa compreender a história dos processos

de produção de sentidos, vinculados aos diferentes lugares ocupados por sujeitos na

formação social a que pertencem. “Sujeito e sentido se constituem ao mesmo tempo,

na articulação da língua com a história, em que entram o imaginário e a ideologia”.

(ORLANDI, 2001:99, 100). Portanto, esses sujeitos são interpelados pela relação com

a história e com o inconsciente, que é a relação com o dizer do outro. Dito de outra

maneira, esse sujeito, da AD, não controla o seu dizer por conta da sua relação com o

inconsciente e a ideologia, em que a linguagem não funciona por estruturas lógicas

conhecidas. A ideologia interpela os indivíduos em sujeitos, sem que eles se deem

conta de tal interpelação. Segundo Pêcheux (1988), não há sujeito sem ideologia,

desse modo, ao dizer algo, o sujeito está se significando, está tomando posição no

discurso, está se inscrevendo em redes históricas e sociais de produção de sentidos.

Entendemos discurso como efeito de sentidos entre locutores (ORLANDI, 2005, p.21),

2 Áulica: Próprio do cortesão, palaciano. novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, 2. ed.

Nova Fronteira,1986.3 Doravante AD.

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ou seja, ao dizer, o sujeito significa a partir das imagens que ele próprio produz sobre

o lugar social onde fala em meio aos jogos das relações históricas de forças.

Desse lugar teórico, entendemos que o discurso jornalístico trabalha na

construção de sentidos que determinam o que pode ou não ser notícia. E é nessa

seleção que as clivagens são produzidas, determinando o que vai (ou não) ser

disponibilizado para a interpretação. Vale salientar que essa clivagem já é uma “prévia”

interpretação totalmente determinada pelas condições de produção do discurso

jornalístico. O jornalismo utiliza alguns critérios para considerar um fato, um

acontecimento como notícia: a atualidade, o interesse do público, a veracidade e

facilidade de assimilação (MEDINA, 1988, p.20), e esses critérios são assumidos

pelos sujeitos-jornalistas como “verdades tácitas”, podendo ser somente aquelas,

naquele momento.

Para Mariani:

A verdade, então, nada mais é do que uma direção de sentido (ou uma certa interpretação), datado historicamente, que se impõe como literal. E é como discurso dessa verdade, ligado, portanto, a instâncias de poder, produzindo determinados sentidos para os acontecimentos, como um modo de funcionamento específico e com mecanismos enunciativos próprios que o discurso jornalístico constrói sua identidade, leva a crer na literalidade de seus relatos e contribui na disseminação de certas interpretações.(MARIANI, 1998, p.82)

Podemos entender discursivamente o acontecimento a partir do que Guimarães

(2002) nos ensina:

A temporalidade se configura por um presente que abre em si uma latência de futuro(...) sem a qual não há acontecimento de linguagem, sem a qual não é significado, pois sem ela (a latência de futuro) nada há aí de projeção, de interpretável. (...) A temporalidade do acontecimento constitui o seu presente e um depois que abre o lugar dos sentidos, e um passado que não é lembrança ou recordação pessoal dos fatos anteriores. O passado é, no acontecimento, rememoração de enunciações, ou seja, se dá como parte de uma nova temporalização, tal como a latência de futuro. é nessa medida que o acontecimento é a diferença na sua própria ordem: o acontecimento é sempre uma nova temporalização, um novo espaço de confiabilidade de tempos, sem a qual não há sentido, não há acontecimento de linguagem, não há enunciação. (GUIMARãES, 2002, p.12)

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No discurso jornalístico, o acontecimento tem um caráter de notoriedade,

dentro de um contexto social, histórico e cultural, enquanto os critérios de noticibilidade

são conjuntos de valores-noticias4 que determinam se um acontecimento, um assunto,

pode se tornar uma notícia. Para Bordieu (1977):

os jornalistas têm seus óculos particulares através dos quais vêem certas coisas e não outras, e vêem de uma certa maneira as coisas que vêem. Operam uma seleção e uma construção daquilo que é selecionado. O princípio da seleção”. é a busca do sensacional, do espetacular (BORDIEU; 1997, p.12)

Por outro lado, isso não significa que o jornalista tem interesse de recortar o

sentido. Ao contrário, essas determinações “prévias” são assimiladas e assumidas

como “obviedades” por todos os sujeitos (re)produtores desse discurso (autocensura).

A informação geralmente já é um recorte previamente definido pela linha editorial do

veículo, que determina o que pode ou não ser noticiado. Normalmente o recorte tem

por objetivo tornar a informação mais atraente, mais facilmente consumível, como

uma mercadoria, controladas pelos proprietários das empresas de comunicação, as

quais estão sujeitas a muitos interesses.

As técnicas” de redação de notícias tem como objetivo construir o mito da

informação jornalística, responsabilizando os próprios jornalistas “pelo relato mais ou

menos fidedigno dos fatos” (Mariani, 1998), que resulta num “poder dizer” que nada

mais é que a manipulação da linguagem pela instituição, sem que se tenha controle

Conforme Mariani:

enquanto prática social, o discurso jornalístico, funciona em várias dimensões temporais simultaneamente: capta, transforma e divulga acontecimentos, opiniões e idéias da atualidade, ou seja, lê o presente ao mesmo tempo em que organiza um futuro e assim legitima, enquanto passado, a memória, a leitura desses mesmos fatos do presente, no futuro. (MARIANI, 2003, p.33)

Nesse âmbito, pensamos sobre a imprensa brasileira no século XIX, em especial

o jornal O Espelho.

4 Sobre valores-notícias ver Traquina, 2005:77.

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15.1 o esPeLHo DA Corte

Na segunda metade do ano de 1821, quando inicia a circulação no Rio de

Janeiro do periódico O Espelho, editado pelo militar e professor Manuel de Araújo

Ferreira Guimarães1, segundo a história do jornalismo, os ânimos começam a ficar

exaltados entre os redatores/escritores dos jornais. Segundo esses historiadores, o

periódico trava uma ferrenha disputa política com alguns redatores, em especial os do

O Reverbero Constitucional Fluminense e do Correio do Rio de Janeiro. Dentro desse

discurso, O Espelho demonstrava o desejo da permanência do sistema político

totalmente dependente de Portugal, ao contrário dos outros dois periódicos que

marcavam posição a favor da emancipação do Brasil.

Com conteúdo editorial que abordava notícias da Europa, movimentação

marítima e também assuntos ligados à Corte, como as sessões e os artigos debatidos

na Assembléia Constituinte, em Lisboa, correspondências e artigos de ofícios, O

Espelho, como o próprio nome já referencia, procurava “espelhar” os jornais oficiais

do Reino, servindo de observatório de outros periódicos, trazendo notícias da Gazeta

da França e da Inglaterra, produzindo assim um sentido de totalidade, ou seja, tudo que

era importante para a Corte saber estava nesse periódico, como o próprio redator

afirma no início da edição n.º 10 “... oferecemos aos nossos leitores o que nos pareceu

mais digno de especial contemplação ...”

Temos lido Gazetas Inglesas vindas no último Paquete, e Francesas chegadas de Bordeaux, umas e outras datadas até 6 de outubro, e oferecemos aos nossos leitores o que nos pareceu mais digno de especial contemplação, afim de estarem completamente ao conhecimento do estado da Europa naquela época. (O ESPELHO, n.10, 05 de dezembro de 1821)

Esse periódico traz na sessão “Notícias Estrangeiras” informações sobre a

Espanha, Inglaterra e América, mas deixa de fora da sessão notícias sobre Portugal,

marcando que Portugal e Brasil eram uma só nação. Interessante observar que o

1 Manuel Ferreira de Araújo Guimarães foi o segundo redator do periódico Gazeta do Rio de

Janeiro, entre 1813 e 1821, substituindo o frade português Tibúrcio José da Rocha.

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redator trata as questões relativas ao Brasil e a Portugal como se fossem em outro

continente, nem o Europeu, no caso de Portugal, e nem a América, em se tratando de

Brasil, como podemos observar na edição de n.º 9, de 28 de novembro de 1821: a

sessão de notícias estrangeiras tem os seguintes títulos: Espanha – Madri, 9 de

setembro – (por via extraordinária), e outro título “América – Paris, 17 de setembro”,

em que trata, no caso da América, sobre a guerra na Colômbia.

Madri 9 de setembro (por via extraordinária) A agitação continua. Os Ministros mandaram a sua demissão a Santo Ildefonso, o que não embaraça os Clubistas da Fontana d ‘Oro de declamarem contra eles, por motivo de mandarem Riego para Lerida. A deputação permanente das Cortes se reuniu para redigir uma representação ao Rei.

América – Paris 17 de setembro. o Monitor púbica a relação seguinte: A 28 de junho a nau Colosse, a bordo da qual tinha o seu pavilhão o Chefe da esquadra Jurien, e que é comandada por M. Rosamel, Capitão de Mar e Guerra, partiu da Bahia de S. Pedro da Martinica com a fragata Galathie, comandada por M. Collet, Capitão de Mar e Guerra, e a goleta l’Hirondelle, comandada por M. Ropert, Capitão Tenente. “Esta divisão se dirigiu sobre margarita, e a 30 de junho deu fundo huma lagoa distante de terra, diante do forte de la Galere. No dia seguinte, foram mandados dois oficiais a terra, onde souberam que os habitantes haviam recusado fornecer o seu contingente de mil homens, que requerera o Presidente da República, e que seu chefe Arismendi, querendo satisfazer a este pedido, fora despojado da Ilha, e fugira para Barcelona, a 5 de Maio passado, na goleta independente Lê nouveau Congrés”. (O ESPELHO, n.9, 28 de novembro de 1821)

Podemos observar nesses fragmentos que existe uma memória funcionando

que coloca o Brasil e reino de Portugal como uno, como um reino sólido. Portanto, vir

para a colônia era como estar em Portugal, por isso não havia a diferença territorial de

onde estaria a corte. Não diziam “estar na colônia”, mas sim em Portugal, num esforço

para apagar o lugar.

Nesse periódico, as notícias sobre Portugal e Brasil estão numa única sessão

separada das notícias estrangeiras. Ainda nessa edição n. 9, a primeira notícia traz

informações copiadas das Gazetas de Lisboa, que tratam das sessões da Assembleia

Constituinte, os artigos e leis que estavam sendo aprovados em Lisboa para todo o

Reino Unido, ou seja, ao reproduzir a sessão da Assembleia Constituinte, o jornal traz

o assunto mais importante no momento político em todo o reino, produzindo desse

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modo um discurso sobre, que Mariani (1998: 60) define como “discursos intermediários,

pois ao falarem sobre um discurso de (discurso-origem) situam-se entre este e o

interlocutor, qualquer que seja”2. Dito de outra forma, ao trazer as sessões da

Constituinte, o periódico busca se aproximar do leitor, mantendo um certo distanciamento

ao descrever/relatar as sessões, isto é, o redator “mascara um apagamento da

interpretação em nome dos fatos que falam por si”(MARIANI, 1998:62), ou seja, o

periódico relata o acontecimento como forma de tornar público o trabalho da

Constituinte, sem dar opinião, apenas reproduzindo a Gazeta de Lisboa.

o Espelho também reproduziu em suas edições os artigos e correspondências

que saiam na Gazeta do Rio de Janeiro, jornal oficial da Corte, que segundo Lustosa

(2000:68) “era apenas uma versão adaptada da Gazeta de Lisboa, e se limitava a

traduzir os artigos publicados na imprensa mais conservadora da Europa”. Era também

no O Espelho que o Príncipe Regente, D. Pedro, escrevia de forma direta ou indireta

quando o redator reproduzia artigo por ele escrito e publicado na Gazeta do Rio de

Janeiro.

Com o titulo de “PEDRO AOS FLUMINENSES”, a edição n.º 2 de 10 de outubro

de 1821, reproduz uma carta escrita por D. Pedro e publicada na Gazeta do Rio de

Janeiro de 6 de outubro, que reafirma o juramento que fez em 26 de fevereiro.

Que delírio é o vosso? Quais são os vossos intentos? Quereis ser perjuros ao Rei, e à Constituição? Contas com a minha Pessoa, para fins que não são provenientes, e nascidos do Juramento, que Eu, Tropa e Constitucionais prestamos no memorável dia 26 de fevereiro? De certo não querei; estais iludidos, estais enganados, e em uma palavra, estais perdidos, se intentareis uma outra ordem de coisas, se não seguireis o caminho da honra, e da glória, em que já tendes parte, e do qual vos querem desviar cabeças esquentadas, que não tem um verdadeiro amor de El Rei Meu Pai, o Senhor D. João VI, que tão sabia como prudentemente nos rege, e regerá, enquanto Deus lhe conservar tão necessariamente como preciosa vida; que não tem Religião, e que se cobrem com peles de cordeiros, sendo entre a sociedade lobos devoradores, e esfaimados. Eu nunca serei perjuro, nem à Religião, nem à Constituição, sabei o que Eu vos declaro em nome da Tropa, e dos Filhos legítimos da Constituição, que vivemos todos unidos: sabei mais, que declaramos guerra desapiedada, e cruelíssima a todos os

2 Grifo do autor.

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[ 218 ]

perturbadores do sossego Público, a todos os Anti-Constitucionais, que estão cobertos com o manto da segurança individual, em muito mais, a todos os Anti-Constitucionais desmascarados. Contai com o que eu vos digo, porque quem vo-le diz é fiel à Religião, ao Rei e a Constituição, e que por todas essas três Divinas coisas, estou, sempre estive, e estarei pronto a morrer, ainda que fosse só, quanto mais tendo Tropas, e verdadeiros Constitucionais, que me sustem, por amor, que mutuamente repartimos, por sustentarem Juramento tão cordial, e voluntariamente dado. Sossego Fluminenses. PRINCIPE REGENTE (o ESPELHo, n.2, 10 de outubro de 1821).

Nessa carta podemos ver as marcas do discurso político atravessado pelo

discurso religioso, em que D. Pedro usa expressões como “se cobre com peles de

cordeiros...”, expressão que está na bíblia3 que fala de pessoas que querem se passar

por corretas para alcançar objetivos desonestos e até criminosos. Esse discurso do

Príncipe Regente negocia o tempo todo com o bem e o mal, o verdadeiro e falso,

também através de marcas como “ser perjuros ao Rei e à Constituição”, ou seja, ao

questionar o leitor se ele pretende não cumprir o juramento prestado durante o

movimento de 26 de fevereiro, D. Pedro invoca a lealdade para com a nação portuguesa

e para com a colônia como inquestionáveis, primordial para manter a ordem pública.

Nessa carta, D. Pedro traz também as marcas do discurso fundador do Brasil,

mediante a reafirmação da necessidade de ser “fiel à Religião, ao Rei e a Constituição.”,

mobilizando memória sobre a primeira carta escrita por Pero Vaz de Caminha ao chegar

no Brasil, em 1500, em que enfatiza que os índios não tinham leis, reis e religião

porque no alfabeto deles, não existiam as letras L (leis), F (fé)e R (rei), portanto, não

eram civilizados como os europeus.

D. Pedro intitula a carta apenas como “Pedro aos Fluminenses”, como se

qualquer Pedro pudesse estar ali representado e se dirigindo ao povo do Rio de Janeiro.

Esse título traz sentidos que remete ao cidadão comum, e não que tenha sido escrito

pelo Príncipe Regente. é uma maneira de aproximação com o cidadão, de marcar que

D. Pedro está próximo ao povo, que pactua com suas ideias.

3 Na Bíblia a expressão é: “Guardai-vos de falsos profetas. Eles vem disfarçados de ovelhas mas

por dentro são lobos arrebatadores”. (MATEUS, 7 , 15-16)

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Em janeiro de 1822, O Espelho publica um artigo da Junta de Governo de São

Paulo, que solicita ao Príncipe Regente, que desconsidere a ordem da Constituinte,

que determina o seu imediato retorno à Portugal4. Nesse artigo, publicado na Gazeta

do Rio de Janeiro e copiado no Espelho, a pedido do próprio Príncipe Regente, os

autores entendem que Portugal e Brasil formam uma única nação, a “Nação

Portuguesa”, enfatizam também o “Pacto Nacional” e pedem ao Príncipe que fique

no Brasil “Não só para nosso bem, mas até para a independência e prosperidade

futura do mesmo Portugal”.

Na sessão de 6 de Agosto passado disse o Deputado das Cortes, Pereira do Carmo, (e disse uma verdade eterna), que a Constituição era o pacto social, em que se expressavam e declaravam as condições, pelas quais uma Nação se quer constituir em Corpo Político; e que o fim desta Constituição é o bem geral de todos os indivíduos, que devem entrar neste pacto social. Como pois ousa agora uma mera facção da grande Nação Portuguesa, sem esperar a conclusão desse solene pacto Nacional, atentar contra o bem geral da parte principal da mesma, qual o vasto e riquíssimo Reino do Brasil, despedaçando-o em míseros retalhos (...) Este inaudito despotismo, este horroroso perjúrio político, de certo não o merecia o bom e generoso Brasil. Mas enganam-se os inimigos da ordem nas Cortes de Lisboa, se se capacitam que podem ainda iludir com vãs palavras, e ocos fantasmas o bom sizo dos honrados Portugueses de ambos os Mundos. (...) Sim, Augusto Senhor, é impossível que os habitantes do Brasil, que forem honrados, e se prezarem de ser homens, e normente os Paulistas, possam jamais consentir em tais absurdos e despotismos: sim, Augusto Senhor, V.A.R. deve ficar no Brasil, quaisquer que sejam os projetos da Constituinte, não só para o nosso bem geral, mas até para a independência, e prosperidade futura do mesmo Portugal. (O ESPELHO, n.16, 11 de janeiro de 1822).

Nesse artigo fica marcado que para muitos cidadãos da colônia portuguesa,

havia somente uma nação, e que essa nação é portuguesa, independente do território

onde está situada. A necessidade da permanência de D. Pedro na colônia tinha como

argumento a condição da união com Portugal, por meio do pacto Nacional, ou seja,

não era de interesse dos autores do artigo que representavam a Província de São Paulo

4 é o episódio do Fico, de 9 de janeiro de 1822, que D. Pedro declara que ficará no Brasil, através

da celebre frase: ‘Como é para o bem de todos, a felicidade geral da Nação, estou pronto, diga ao Povo que

fico’. (o espelho, n. 16, 11 de janeiro de 1822)

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a partida de D. Pedro, e o argumento para sua permanência era o de que já que se

tratava de uma única nação Brasil/Portugal, não se justificava a saída. Para os autores,

quando se referem “à independência, e prosperidade futura do mesmo Portugal”,

reafirmam a proposta de permanecerem unidos, e que a prosperidade de Portugal

depende do Brasil, ou seja, da colônia que produzia muitas riquezas e tinha acordos

mercantis com a Inglaterra e outros países da Europa.

Independência ou morte! Com esse enunciado, O Espelho abre a edição 88 de

20 de setembro de 1822, com um artigo sobre o Grito do Ipiranga dado pelo Príncipe

Regente treze dias antes, dia 7 de setembro. Nesse artigo, o redator justifica a ação de

D. Pedro, afirmando que a Constituinte que estava sendo elaborada em Lisboa, esquecia

os direitos dos brasileiros.

INDEPENDêNCIA OU MORTE! Eis o grito acorde de todos os Brasileiros. Esta a voz da razão, supremo magistrado dos povos e dos Príncipes, segundo a bela expressão de Mably. Depois de um juramento condicional (ainda que não fosse explícita a condição indispensável de não se opor à prosperidade de cada um) conduziu sobre o Brasil uma aluviam de Decretos injustos e cruéis; depois de uma facção arrogante, que prevaleceu no Congresso da Nação, atropelando deveres inauferíveis do Cidadão, sacrificou no seu orgulho e à sua ambição a união dos dois hemisférios, e os estreitos laços de parentesco e de amizade; desmascarados seus ardilosos projetos de quebrar a Coroa, que o Mais Amado dos Reis, o Senhor D. João VI, pusera grato sobre a cabeça do Brasil, Coroa, que as luzes do Século, e a virilidade que lhe davam suas riquezas e sua representação, tornavam de absoluta necessidade, era indispensável que a América Portuguesa abrisse os olhos às fatais consequências de seu demasiado sofrimento.(O ESPELHO, n.88 de 20 de setembro de 1822)5.

Nesse artigo, o redator Manuel Guimarães, quando se refere ao Brasil e

Portugal, usa a expressão Nação, mas quando se refere somente ao Brasil, ele

considera como país. Para ele, a nação é Portuguesa e independe da situação política/

administrativa. Dito de outro modo, para esse redator do O Espelho, quando se trata do

Reino Unido de Portugal e Algarves, os sentidos aí colocados são de nação, mas

quando se trata de um território independente, é país.

5 Grifo do autor.

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No enunciado “Independência ou Morte”, Guimarães (2003:29) entende que

há um “efeito de sentido que significa a força do Imperador e não da Constituinte, e

nem do povo”. Segundo o autor, esse enunciado está mais ligado aos proprietários,

comerciantes portugueses e brasileiros radicados no Brasil. Foram eles que pediram a

convocação de uma Assembleia Constituinte independente para o Brasil, em junho de

1822. Entretanto essa convocação não teve desdobramento imediato. Dito de outra

forma, ao enunciar Independência ou Morte!, D. Pedro reafirma o compromisso com

a elite portuguesa e brasileira que viviam no Brasil e que queriam não ser mais

dependentes de Portugal.

A “Independência” não é uma declaração de guerra, mas a afirmação de sobrevivência, não necessariamente física, mas como classe social. Ou seja, a enunciação inaugural da nação brasileira é uma enunciação sobre a sobrevivência dos proprietários de terras. Por essa via podemos retornar a um enunciado Independência e Morte!, em que a morte (até mesmo a física) é de brasileiros, aqueles excluídos da afirmação do Imperador, e não se trata da vontade do Imperador, mas do lugar histórico-social que ocupava. (GUIMARãES, 2003, p.30).

Na edição de n. 90, de 27 de setembro de 1822, portanto após a declaração da

independência, O Espelho traz a carta que D. João VI enviou a D. Pedro, ainda em

agosto de 1822, e que foi publicada na Gazeta do Rio de Janeiro um dia antes. Nessa

edição, o jornal também publica a resposta de D. Pedro ao rei de Portugal. Nela D.

Pedro justifica a sua declaração de independência, afirmando que a Assembleia

Constituinte, em Lisboa, não atendia aos anseios dos brasileiros, nem dava voz aos

deputados do Brasil contrários às leis que estavam sendo votadas em Portugal.

V.M. manda-me, que digo!!! Mandam as Cor tes por V.M, que Eu faça executar, e execute seus Decretos: para Eu os fazer executar, e executa-los era necessário, que nós Brasileiros livres obedecessemos à facção: respondemos em duas palavras – Não QUErEMos. (...) Firme nestes inabaláveis princípios, digo (tomando Deus por testemunha, e ao mundo inteiro) a essa cáfila sanguinária, que eu como Príncipe Regente do Reino do Brasil, e seu Defensor Perpétuo: ei por bem Declarar todos os Decretos preteridos dessas facciosas, horrorosas, maquiavélicas, desorganizadoras, hediondas e pestíferas Cor tes, que ainda não mandei executar, e todos os mais, que fizeram para o Brasil, nulos, írritos, inexequíveis, e como tais com um Voto absoluto, que é sustentado pelos Brasileiros todos, que unidos a mim me ajudarão a dizer, de

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[ 222 ]

Portugal, nada, nada, não queremos nada. (O ESPELHO, n. 90, de 27 de setembro de 1822).6

Podemos observar a partir desse recorte e como já dissemos anteriormente,

que D. Pedro assume mais de uma posição-sujeito. Quando ele contesta a Constituinte

que está sendo elaborada em Lisboa, ele assume a posição-sujeito maçon, contrapondo-

se a Corte de Lisboa. Com esse movimento, a Corte é dividida em duas: uma Corte de

D. João VI, que está em Portugal e quer o domínio sobre o Brasil, centralizado em

Lisboa e que deseja a volta de D. Pedro. A outra Corte fica aqui no Brasil, na figura de

D. Pedro, que quer a independência daquela Corte Portuguesa. No momento em que

ele mesmo propõe a independência, funda uma nova discursividade para a própria

Corte, que é assumida pelo jornal O Espelho. Ou seja, O Espelho vem do lugar da

censura prévia, com a discursividade homogênea da Formação Discursiva7 dominante,

que é a Corte anterior a independência. O periódico acompanha os movimentos de D.

Pedro, que vai se deslocando de posição, de uma Formação Discursiva Corte

Portuguesa para uma outra Formação Discursiva: a Corte Brasileira. Dessas diferentes

posições-sujeito, produz-se a contradição. Como o jornal mantem-se sob a forma

dominante da FD da Corte e essa se desloca de Portugal para o Brasil, o jornal vai

textualizando os movimentos desse deslocamento: o periódico vai negando as próprias

regras da lei, que determinam o que pode ou não ser dito nos jornais, mas, ao mesmo

tempo, é autorizado por essa nova Corte. A contradição está presente aí, nesse ponto,

porque o jornal não se desautoriza ao negar a lei, porque ele ainda está autorizado pela

figura do Príncipe Regente. O Espelho continua na Corte, mas numa “outra” Corte, na

Corte brasileira. O Brasil, nesse sentido, nasce como Corte, ou seja, uma Corte que

apenas se liberta da Corte Portuguesa. Dito de outra forma, a autorização para essa

nova discursividade se explica porque a figura do Príncipe Regente ainda tem seus

efeitos, porque foi ele quem assumiu a dissidência. Seguir o deslocamento das FDs de

D. Pedro ainda confere ao jornal a autoridade da Corte, ao mesmo tempo que confere

6 Grifo do autor.7 Segundo Pêcheux (1988) formação discursiva é aquilo que, numa formação ideológica dada,

isto é, a partir de uma posição dada numa conjuntura dada, determina o que pode e deve ser dito.

Doravante FD.

Page 223: Capital_Social Com ISBN

[ 223 ]

uma brasilidade. D. Pedro não tinha saída, ou pedia a independência e se mantinha

como Príncipe, assumindo a monarquia ou outro fazia e ele ia embora, perdendo

completamente o controle. Ou seja, o destino de O Espelho poderia ter sido diferente,

se tivesse sito outro a conquistar a independência, porque isso significa justamente,

talvez por hipótese, não ter o deslocamento da Corte portuguesa para a Corte brasileira,

mas ter a ressignificação dessas relações de força que configuram um determinado

tipo de Estado. Muito provavelmente encontraríamos outras textualidades.

reFerênCIAs

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16As MetÁForAs ConCeCPtUAIs soBre DesenVoLVIMento DIrCUrso LULA: UMA LeItUrA DA LÓGICA DIsCUrsIVA

Andréia da silva Daltoé1

IntroDUção

Eu fui comer pão, a primeira vez, com sete anos de idade.

Eu sou de uma terra onde, se as pessoas não morrem até completar

um ano de idade, já é um milagre. E eu não morri, cheguei a Presidente da República.

(Lula, 2003)2

Desde que Luiz Inácio Lula da Silva3 assumiu a Presidência do País em 2002,

até o fim de seu segundo mandato em 2010, tem nos chamado a atenção o modo

como seu discurso passou a representar uma determinada singularidade no meio

político. De forma particular, nosso interesse se volta às metáforas produzidas por este

sujeito, designadas aqui por Metáforas de Lula (ML), pelo modo como, durante este

espaço-tempo, intelectuais, jornalistas, representantes políticos etc. se debruçaram

sobre esta marca do discurso de Lula (DL), procurando comumente extrair-lhes o

sentido que, supostamente, elas encobririam.

1 Professora de Língua Portuguesa na UNISUL. Especialista em Linguística aplicada ao ensino

de Língua Portuguesa/UNISUL. Mestre em Ciências da Linguagem/UNISUL. Doutoranda em Estudos da

Linguagem: Análises Textuais e Discursivas do Programa de Pós-Graduação em Letras/UFRGS.2 Lula em entrevista concedida durante o Fórum em Davos, Suíça, publicada pela Folha on line em

26/01/2003: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u45213.shtml>. Acessado em 20/01/2011.3 A partir de agora, Luís Inácio Lula da Silva será representado por Lula.

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[ 226 ]

Fomos percebendo, então, que tais discussões sobre as ML apontavam, em

sua maioria, para um estranhamento que só poderia fazer sentido à luz de um imaginário

de língua política ideal, que não compreende a legitimidade das ML no mundo

logicamente estabilizado da língua política brasileira.

Para nosso trabalho, o artigo de Tony Berber Sardinha aponta para um desses

estranhamentos, por isso o interesse em investigar de que modo o autor compreende

as ML. Como sua pesquisa se filia à proposta teórica da Metáfora Conceptual de Lakoff

e Johnson, neste primeiro momento, apresentaremos algumas discussões sobre esta

teoria; em seguida, trazemos o estudo de Sardinha para, então, finalizar este artigo

com uma proposta de leitura à luz da Análise do Discurso (AD) de linha francesa,

subsidiada por Michel Pêcheux.

16.1 A ProPostA DA MetÁForA ConCePtUAL eM GeorGe LAKoFF e MArL JoHnson

Os norte-americanos George Lakoff e Marl Johnson, inseridos no campo

teórico da Linguística Cognitiva, têm se dedicado, desde a década de 1970/1980, ao

estudo da metáfora. Para investigar o tratamento oferecido por esses autores ao tema,

escolhemos trabalhar a obra Metaphors we live by4 (1980), na sua versão em português

Metáforas da vida cotidiana (2002), em que Lakoff e Johnson apresentam a proposta

da Metáfora Conceptual5.

Lakoff e Johnson consideraram que, desde Aristóteles, os estudos sobre

metáfora restringiam-na apenas a uma questão de linguagem, faltando, portanto,

considerá-la em seu valor cognitivo. Ou seja, já é possível dizer que, para os autores,

4 Usaremos neste estudo a obra publicada em Língua Portuguesa, em 2002: Metáforas da vida

cotidiana. Para os tradutores Zanotto (et al), a obra é considerada o marco de um programa inovador de

pesquisa sobre metáfora.5 Conforme Sardinha (2008), este termo do inglês foi traduzido para o português também como

conceptual e não conceitual.

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[ 227 ]

linguagem e cognição são duas esferas distintas e que devem, conjuntamente, ser

convocadas para o estudo que pretendem realizar sobre a metáfora.

Para Lakoff e Johnson, nosso sistema cognitivo se organiza predominantemente

a partir de conceitos metafóricos, por isso afirmam que entender a metáfora é entender

nosso próprio processo de compreensão do mundo. Para os autores:

[...] o fato de nosso sistema conceptual ser inerentemente metafórico, o fato de compreendermos o mundo, de pensarmos e de agirmos em termos metafóricos e o fato de as metáforas não poderem ser simplesmente compreendidas, mas também poderem ser significativas e verdadeiras – todos esses fatos sugerem que uma teoria adequada do sentido e da verdade só pode ser baseada na compreensão. (2002, p. 292).

é desse modo que, para os autores, a metáfora equivale à maneira como o

sistema cognitivo organiza as formas de representar as coisas à nossa volta,

principalmente aquelas que não encontram seu equivalente no emprego literal da língua.

é nessa perspectiva que os autores de Metáforas da vida cotidiana trabalham

em torno da seguinte hipótese: “se estivermos certos, ao sugerir que esse sistema

conceptual é em grande parte metafórico, então o modo como pensamos, o que

experienciamos e o que fazemos todos os dias são uma questão de metáfora” (2002,

p. 46). Ou seja, para eles, mesmo quando falamos cientificamente, objetivamente,

lançamos mão de expressões metafóricas que representam, na língua, a base

conceptual metafórica de nosso modo de pensar.

Assim, tentando mostrar que a metáfora não está presente apenas nas situações

de linguagem figurada, Lakoff e Johnson vão tentar se afastar do entendimento de

metáfora como própria apenas da emoção, resultado de uma subjetividade dos poetas

(como entendido pelo senso comum). Dirão, portanto, os autores que a metáfora,

como esforço da imaginação, não é destituída de racionalidade, pois, segundo eles,

quando nos utilizamos da metáfora, estamos empregando uma “racionalidade

imaginativa” (2002, p. 303), o que aponta para o modo como os autores vão limpando

o caminho para tentar, da maneira mais objetiva possível, oferecer à metáfora um

tratamento racional, o que convém à abordagem científica que desejam lhe dar.

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A proposta de Lakoff e Johnson é, então, demonstrar como se dá a formação

da metáfora na mente humana, com base no que chamaram de Teoria da Metáfora

Conceptual, no sentido de que a cognição humana seria orientada por esta base

(conceitual), essencialmente metafórica. A partir desta organização cognitiva, Lakoff e

Johnson consideram possível sistematizar os conceitos abrigados em nossa mente a

partir de expressões linguísticas que lhes são correspondentes. Para tanto, quando os

autores utilizam a palavra metáfora estão designando o nosso aspecto cognitivo, que

seria a metáfora conceptual (registrada, na obra, sempre em letras maiúsculas), e

quando utilizam expressão metafórica (registrada em letras minúsculas), estão se

referindo à manifestação linguística desta metáfora conceptual.

Considerando que “nosso sistema conceptual é, em grande parte, estruturado

metaforicamente” (2002, p. 193), e que as expressões metafóricas reproduzem este

sistema, estamos diante de duas considerações a respeito desta teoria: primeiro, para

Lakoff e Johnson, a metáfora está na base do pensamento, como origem dos dizeres

possíveis; segundo, esta base conceitual encontra seu equivalente na língua por meio

das expressões que a representam. Portanto, esta relação que os autores estabelecem

entre o que se pensa e o que se realiza na língua é uma relação de literalidade entre

pensamento e linguagem, já que, para eles, “a comunicação é baseada no mesmo

sistema conceptual que usamos para pensar e agir, a linguagem é uma fonte de

evidência importante de como é esse sistema” (grifo nosso) (2002, p. 46).

O objetivo de Lakoff e Johnson é, então, sistematizar o processo de

correspondência entre metáfora conceptual e expressões metafóricas, considerando

que, desta maneira, estão sistematizando a própria cognição humana. Portanto, para

eles, há uma origem dos dizeres, e esta origem preexiste à nossa existência no mundo.

Para melhor entender esta proposta, vejamos algumas expressões metafóricas do livro

em questão:

Veja a que ponto nós chegamos.

Nós estamos numa encruzilhada.

Nossa relação não vai chegar a lugar nenhum.

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Para Lakoff e Johnson, essas expressões metafóricas são todas equivalentes

linguísticos da metáfora conceptual “AMOR é UMA VIAGEM1” (2002, p. 24). Ou seja,

haveria, portanto, várias e diferentes expressões que poderiam reproduzir uma mesma

metáfora conceptual. Aliás, Lakoff e Johnson defendem que só falamos algo como

Nosso amor chegou ao fim da linha, porque, em nossa mente, estaria armazenado o

conceito metafórico de que AMOR é UMA VIAGEM. Resumindo, para os autores, “as

metáforas como expressões linguísticas são possíveis precisamente por existirem

metáforas no sistema conceptual de cada um de nós” (2002, p. 48), e isto se dá em

convencionalidade, caso contrário, não se poderia conceber que todos entendemos

amor como uma viagem.

é deste modo que Lakoff e Johnson, procurando sistematizar a cognição

humana, tentarão mapear nossa estrutura de pensamento (metafórico), construindo,

para isso, padrões de referência que licenciam expressões linguísticas equivalentes.

Por este ponto de vista, só seria possível dizer Preciso vencer esta discussão, porque

há, em nosso sistema cognitivo, a metáfora conceptual “DISCUSSãO é GUERRA”2.

é isso que querem dizer Lakoff e Johnson quando justificam que “definimos nossa

realidade em termos de metáforas e então começamos a agir com base nelas” (2002,

p. 260), o que acaba representando, a nosso ver, a linguagem como abrigada em um

sistema cognitivo independente dos sujeitos e de suas ações.

é dessa maneira que se fundamenta a Teoria da Metáfora Conceptual: a

partir de uma matriz cognitiva de sentido, a qual valida, legitima, licencia, permite

formas diferentes de se expressar. Os autores até chegam a considerar que esta

1 Na obra, Lakoff e Johnson diferenciam as metáforas conceptuais das expressões linguísticas que

as representam pela letra maiúscula. Somente as conceptuais são escritas assim. Vamos manter a proposta.2 Notemos como, para esta concepção de metáfora, aqui em específico no caso de DISCUSSãO é

GUERRA, Lakoff e Johnson precisam considerar a homogeneidade no sentido: “Mesmo que você não tenha

jamais em sua vida exeperienciado uma luta física, muito menos provavelmente uma guerra, você ainda

concebe discussões e discute de acordo com a metáfora DISCUSSãO é GUERRA, porque tal metáfora faz

parte do sistema conceptual da cultura na qual você vive. Todas as discussões consideradas ‘racionais’,

aquelas que se enquadram no ideal de DISCUSSãO RACIONAL, não são apenas concebidas em termos

de guerra, mas quase todas contêm, de maneira subjacente, as táticas ‘irracionais’ e ‘desleais’ que as

discussões racionais, em sua forma ideal, não deveriam apresentar” (2002, p. 136).

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convencionalidade dos sistemas globais varie de cultura para cultura, todavia, mesmo

neste caso, podemos perceber que, para sua proposta, os sentidos ainda não escapam

a uma normatização, o que os autores consideram possível por se reproduzirem em

forma de ritual:

[...] estamos constantemente realizando rituais, desde rituais casuais como: fazer o café da manhã [...] até às mais solenes práticas religiosas. [...]. Cada ritual é um aspecto repetido, coerentemente estruturado e unificado de nossa experiência. Ao praticá-los, damos estrutura e sentido a nossas atividades, minimizando o caos e a disparidade em nossas ações. (2002, p. 352-353).

Para Lakoff e Johnson, portanto, os sistemas metafóricos globais não são

iguais em todas as culturas, mas em cada uma se consolidam como uma repetição.

é isso que eles chamam de gestalt experiencial, uma categoria das experiências de

uma determinada cultura, que, segundo os autores, “normalmente servirá como um

pano de fundo para a compreensão de algo que experienciamos como um dos aspectos

dessa gestalt” (2002, p. 283).

A partir do “pano de fundo” dos chamados sistemas globais (gestalts), vimos

que, para os autores, essas experiências humanas só podem ser consideradas como

a priori, reforçando ainda mais que quando os autores falam de homem e linguagem

estão falando de coisas distintas e que não se interferem. Nessa perspectiva, podemos

dizer que as diferenças entre as culturas acaba sendo tomada por uma condição

determinista, já que, para Lakoff e Johnson,

Cada cultura deve definir uma realidade social na qual as pessoas tenham papéis que façam sentido para elas e em termos dos quais possam agir socialmente. Não seria surpreendente que a realidade social definida por uma cultura afetasse sua concepção de realidade física. O que é real para um indivíduo como membro de uma cultura é produto tanto de sua realidade social como da maneira como ela molda a sua experiência do mundo físico. (2002, p. 244).

A questão da coerência, em Lakoff e Johnson, aparece justamente a partir

destas gestalts, que serviriam de parâmetro para determinar se uma expressão

metafórica é coerente ou não, dentro do que eles chamam de teoria da coerência

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[ 231 ]

(2002, p. 288), que trataria tanto do ponto de vista gramatical quanto do ponto de vista

semântico das expressões metafóricas.

Desse modo, quando Lakoff e Johnson dizem considerar a “metáfora essencial

à compreensão humana e um mecanismo de criação de novos sentidos e de novas

realidades em nossas vidas” (2002, p. 306), precisamos entender esta afirmação a

partir de um desejo de sistematização destes novos sentidos e não como uma

possibilidade de a metáfora poder significar e significar-se de diferentes maneiras a

partir de seu uso. Trata-se de um uso apreendido em sua regularidade, para que a

proposta teórica de mapeamento das metáforas conceptuais se efetive.

Dessa maneira, por mais que Lakoff e Johnson procurem mostrar que a

metáfora só faz sentido a partir de seu uso, em situações de interação humana, vimos

que essas condições são suprimidas por um padrão conceptual que orienta nossas

ações e nossas palavras, como resultado de uma categorização ligada a uma ideia de

intencionalidade do sujeito.

Nesta proposta, o sentido é predeterminado sempre em relação a um sistema

global metafórico, o que possibilita, para os autores, o mapeamento de expressões

metafóricas, o que, segundo nosso ponto de vista, só é possível desde que se exclua

daí toda a exterioridade que perpassa a linguagem. Entendemos que, a partir do que a

teoria de Lakoff e Johnson se propõe, de fato, é necessário segurar os sentidos em

um “mundo semanticamente normal”, considerando-se que, neste processo de

mapeamento das metáforas, nada falharia. Isto só é possível porque, para os autores,

cada cultura consolida suas experiências por meio de rituais e “cada ritual é um aspecto

repetido, coerentemente estruturado e unificado de nossa experiência [...]. O ritual

constitui uma parte indispensável da base experimental de nossos sistemas metafóricos

culturais” (2002, p. 353-354).

Precisamos, portanto, concordar que, para que a proposta de sistematização

teórica que Lakoff e Johnson apresentam sobre nosso cognitivo se torne viável, é, de

fato, mesmo necessário não só partir desta ideia de ritual, como também (e

principalmente) considerá-lo como um ritual sem falhas.

Passemos, agora, a investigar se este mesmo ritual se confirma em Sardinha.

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16.2 o CAso Do DEsENVoLVIMENto nAs MetÁForAs De LULA

Baseando-se na proposta de Lakoff e Johnson, Sardinha3, no artigo As

Metáforas de Lula e na perspectiva da Linguística de Corpus: O caso do

desenvolvimento (2010), por meio da ferramenta da Linguística de Corpus4, coletou

um certo número de ML com o objetivo de mapear os conceitos que a palavra

desenvolvimento assumia no DL.

Vale ressaltar que Sardinha, tanto quanto Lakoff e Johnson, entende metáfora

a partir da sua origem etimológica grega: transferência, transporte, mas não a

restringe a um recurso figurativo, isto porque considera que a metáfora é empregada

em inúmeras situações que não só a poética, o que já é pressuposto no próprio título

de Metáforas da vida cotidiana de Lakoff e Johnson (2002). Para Sardinha, as

“metáforas conceptuais são [...] maneiras de que nossa mente dispõe para lidar

com a vida ao nosso redor, o nosso cotidiano. As metáforas passam a ser recursos

corriqueiros, que qualquer um coloca em prática, independente de seu nível de

instrução” (2010, p. 166).

Num primeiro momento, isso poderia nos leva a pensar que a metáfora passaria,

então, a receber um olhar mais complexo do que comumente acontece quando ela é

trabalhada apenas como figura de linguagem. Todavia, vamos percebendo que a

proposta da Metáfora Conceptual vai tentar organizá-las em uma certa regularidade,

em que não só a língua e os sentidos precisam ser considerados a partir de um

conjunto de saberes homogêneos, como também o sujeito passa a ser visto como

autônomo em relação aos usos que faz desses saberes.

3 Texto publicado na Revista D.E.L.T.A., 26:1, 2010.4 Conforme Sardinha, “a Linguística de Corpus se ocupa da coleta e análise de corpora, que são

coletâneas de textos ou transcrições de fala armazenados em arquivo de computador (2004). Os corpora

são coletados especificamente para serem alvo de pesquisa linguística” (2008, p. 100). Em relação ao

trabalho com as metáforas, Sardinha coloca esta ferramenta como auxiliar, já que, segundo ele, “o analista

de metáfora, por sua vez, precisa identificar significados metafóricos. Contudo, não há, ainda, tecnologias

para fazer isso automaticamente em corpora” (grifo nosso) (2008, p. 101).

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[ 233 ]

Em relação às ML, Sardinha considera-as como expressões que ajudam a

“‘guiar’ a “compreensão do interlocutor para um desfecho desejado” (2010, p. 164),

o que aponta para um processo de comunicação em que o sujeito é considerado como

estrategista de seu discurso. Neste caso, as ML representariam uma das estratégias

de Lula em explicar, conforme Sardinha, temas complexos a uma população em grande

parte iletrada.

Considerando as ML nesta perspectiva, Sardinha utiliza-se da Linguística de

Corpus5, área de estudo que se ocupa da coleta e exploração de corpora eletrônicos,

para recortar dizeres de Lula em que o item lexical desenvolvimento aparece. Destes

dizeres, Sardinha seleciona, daí pessoalmente, os que têm, conforme ele mesmo

diz, potencial metafórico, já que, segundo o autor, “os programas de que dispomos

para manuseio de corpora são inadequados para identificação de metáforas” (2010,

p. 171).

A partir desta coleta, o autor procurará relacionar/equacionar as metáforas

linguísticas, que, para o autor, representam as palavras empregadas no texto de modo

metafórico, às metáforas conceptuais, que, por sua vez, exprimiriam um conceito

mental. No caso das ML, Sardinha vai coletar dizeres em que apareça a palavra

desenvolvimento e relacioná-los a um plano cognitivo, que seria o plano da metáfora

conceptual. Destes dois tipos de metáforas, Sardinha vai eleger a metáfora linguística

como “unidade primordial de análise” (2010, p. 167), dada a sua concretude. Ou seja,

é na língua que se encontra a base do sentido, pois, para o autor, “principalmente, na

evidência linguística, constatamos que a maior parte de nosso sistema conceptual

ordinário é de natureza metafórica” (grifo nosso) (2002, p. 46).

Sardinha considera que este mapeamento realizado nas ML pode mostrar como

o presidente conceitualiza aspectos importantes da vida nacional, já que, para o autor,

“como as metáforas conceptuais são em grande parte usadas inconscientemente,

nossa análise pode começar a mostrar como o presidente inconscientemente articula

5 Conforme Sardinha, Linguística de Corpus é uma área que se ocupa da coleta e análise de

corpora, ou conjuntos de dados linguísticos (textos e trascrições de fala) armazenados em arquivo de

computador (2010, p. 170-171).

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[ 234 ]

aspectos de seu governo” (2010, p. 171). Nessa investigação, a partir das ocorrências

da palavra-chave desenvolvimento, Sardinha chega a três conceitos metafóricos

predominantes neste discurso, que seriam as metáforas conceptuais VIAGEM,

CONSTRUçãO e ORGANISMO6, por considerar exemplos, no DL, como:

1. Caminho do desenvolvimento.

2. Modelo de desenvolvimento.

3. Ciclo de desenvolvimento.

Conforme Sardinha, Lula só pode enunciar tais dizeres, porque, em sua mente,

estão presentes as metáforas conceptuais DESENVOLVIMENTO é VIAGEM,

DESENVOLVIMENTO é CONSTRUçãO e DESENVOLVIMENTO é ORGANISMO, que

autorizariam os dizeres 1, 2 e 3, respectivamente, reafirmando, que, para o autor, “as

metáforas funcionam na nossa mente. Embora sejam usadas na linguagem, por

qualquer um, desde cedo, elas são ditas porque existem na nossa mente, como meios

para naturais para estruturar nosso pensamento” (2007, p. 14).

Para Sardinha, esses três conceitos “equacionam desenvolvimento com um

processo longo, construído, planejado e gerado pelo governo e são veiculados em um

discurso de características marcadamente interacionais (como revelaram as principais

palavras-chave do corpus)” (2010, p. 188).

Nessa perspectiva, podemos verificar que o estudo das ML, em Sardinha,

restringe-se a um trabalho de equivalência entre o que é dito e o que é pensado, a partir

de uma proposta de sistematização cognitiva, que considera a Metáfora Conceptual

como um tipo de processamento mental.

Sendo assim, tanto o estudo de Sardinha quanto o de Lakoff e Johnson

inscrevem-se na mesma perspectiva teórica que pressupõe a ligação linear entre o

aspecto cognitivo e as expressões que lhe servem de “tradução” como regularidade do

pensamento, restando ao sujeito, nesta proposta, dominar um sistema conceptual

6 Na proposta teórica de Lakoff e Johnson, assim como em Sardinha, as metáforas conceptuais

são grafadas em letras maiúsculas, para diferenciá-las das expressões metafóricas, ou metáforas linguísticas,

que não grafadas em minúsculas.

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[ 235 ]

homogêneo. Isso seria possível, para este modelo, porque se parte do pressuposto de

que nossas formas de pensar são reguladas por sistemas metafóricos globais, sobre

os quais “expressões, como todas as outras palavras e itens lexicais frasais da língua,

são fixadas por convenção” (grifo nosso) (2002, p. 123). Ou seja, é pressuposto

pensar que os sentidos estão abrigados na mente, num sistema homogêneo e

normatizado, independentemente do sujeito e da linguagem.

Acontece, porém, que pensar os sentidos a partir de um uso, regulado por

convencionalidade, não representa considerar a língua a partir das experiências

humanas, mas sim a partir de sua estrutura interna. Ora, parte-se do pressuposto de

que sempre que se empregar uma expressão metafórica, esta se torna coerente se

corresponder a um equivalente do tipo TEMPO é DINHEIRO, AMOR é VIAGEM, FELIZ é

PARA CIMA. Vale dizer que, para os autores, esta situação representa a convencionalidade

das gestalts experienciais, consideradas a partir de um padrão de sentidos. Nesse

mesmo entendimento, em um outro estudo de Sardinha (2008), o autor afirma que:

[...] as metáforas conceptuais são representações mentais dos conceitos e portanto residem na mente dos indivíduos e são compartilhadas por pessoas de uma mesma cultura. As metáforas conceptuais circulam verbalmente por meio de metáforas linguísticas ou expressões metafóricas, que são o correlato verbal das metáforas conceptuais. (2008, p. 97-98).

Como autônomo em relação ao uso da língua e competente em relação a este

trabalho de equivalências entre o pensar e o dizer, o papel do sujeito, nesse contexto,

fica subordinado a um trabalho intencional de correlação entre metáforas conceptuais

e expressões metafóricas a partir de gestalts experienciais que, conforme Lakoff e

Johnson, lhe são dadas pelos rituais de cada cultura.

Portanto, podemos dizer que, para a pesquisa que Sardinha propõe, também

será necessário considerar a língua como este ritual em que nada falha.

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[ 236 ]

16.3 As ML À LUZ DA AnÁLIse Do DIsCUrso: qUAnDo o rItUAL FALHA

Vimos que, para o estudo da metáfora em Lakoff e Johnson, não são as

experiências humanas que determinam o dizer, mas um sistema cognitivo que

determina nossos pensamentos e ações, ou seja, que determina a realidade para os

sujeitos.

Para pensar a metáfora do ponto de vista da AD, porém, a inversão desta

proposta é decisiva: em AD, nenhum ato de linguagem preexiste ao processo discursivo

que o coloca em jogo. E é somente quando este jogo se materializa na língua, em sua

iminência e instabilidade de uso, que se pode considerar a produção do sentido

determinado por um exterior que lhe é próprio.

Foi possível verificar que, para Lakoff e Johnson, um mundo semanticamente

normal intervém como condição necessária para conceber as metáforas conceptuais

como modo de organização da mente humana, cuja função é orientar as expressões

linguísticas advindas daí. Concepção esta também assumida por Sardinha (2007) pelo

modo como concebe estas metáforas a partir de uma norma cultural. Todavia, em

Pêcheux, “essa necessidade universal de um ‘mundo semanticamente normal’” (2006,

p. 34) interessa somente como efeito do processo de interpelação que o sujeito sofre

para ocupar seu lugar no dizer, a partir do qual se constitui a língua, como evidência de

sentido, e o sujeito, como origem de seu discurso.

Assim, enquanto Lakoff e Johnson partem do pressuposto de que os conceitos

sobre a realidade já se encontram na mente humana para guiar nossa forma de pensar

e de agir, para Pêcheux os sentidos partem de um exterior, pois eles se fazem no

processo de interação discursiva, sem que isso possa ser apreendido por ritualizações

homogêneas de uma cultura, já que, conforme Gadet e Pêcheux (2004), a língua é

sempre precária como representante do real, pois o real da língua é o impossível. Por

esse motivo, para Pêcheux, não descobrimos o real, “a gente se depara com ele, dá de

encontro com ele, o encontra” (2006, p. 29).

Segundo Pêcheux, em Semântica e Discurso (1988), “o real existe,

necessariamente, independente do pensamento e fora dele, mas o pensamento

Page 237: Capital_Social Com ISBN

[ 237 ]

depende, necessariamente, do real, isto é, não existe fora do real” (1988, p. 255). Isso

representa a não simetria entre real e pensamento e, consequentemente, a não simetria

entre pensamento e linguagem, embora ambos se impliquem. Para Pêcheux, não se

está diante de duas regiões, “o que torna sem efeito a questão de saber qual das duas

regiões ‘contém’ a outra e em que condições (e em que espaço) se pode tentar fazê-

las coincidir” (1988, p. 255).

Real e pensamento, são, portanto, de naturezas distintas, que se atravessam,

sem que uma domine a outra, por isso, conforme Pêcheux, não há coincidência

entre estas duas instâncias “na medida em que o real como necessário (a

‘necessidade-real’) determina o real como pensamento (a ‘necessidade-pensada’) e

isso como se se tratasse da mesma necessidade” (1988, p. 256). Trata-se aqui do

que Pêcheux chamou como o primado do ser sobre o pensamento, numa proposta

de que “o real determina as formas de existência do pensamento” (1988, p. 256),

diferentemente do que vimos em Lakoff e Johnson, para os quais o pensamento é

que age sobre as ações humanas.

Com isso, vamos confirmando que o mundo semanticamente normal de Lakoff

e Johnson e o mundo semanticamente normal em Pêcheux são tomados a partir de

concepções de língua, de sentido e de sujeito bastante distintas. Enquanto, para

aqueles, este mundo intervém como pano de fundo predeterminado, em que nada

falha, para Pêcheux, este mundo intervém apenas como efeito de evidência, o que não

encobre as falhas deste ritual. Assim, de modo paradoxal, o mundo semanticamente

normal de Lakoff e Johnson atua como uma moldura das formas de pensamento,

orientando, de maneira determinista, a linguagem. Um determinismo que, em nada, se

confunde com as determinações que atravessam um discurso em Pêcheux, segundo

o qual “o interdiscurso não intervém jamais como uma globalidade, um ‘todo’ gestaltista

onipresente em sua causalidade homogênea” (grifado) (1988, p. 263). Este modo de

pensar o interdiscurso vai ao encontro da noção de cultura em De Nardi (2007), que,

do ponto de vista discursivo, compreende a cultura como o resultado de movimentos

sociais e históricos que a sustentam, ao mesmo tempo em que a impedem de entrar

num circuito alucinante e alienante de uma cultura homogênea.

Page 238: Capital_Social Com ISBN

[ 238 ]

Senso assim, as ML colocam em risco tanto a ideia de um interdiscurso

gestaltista como de uma cultura autônoma, pelo modo como, na movimentação dos

sentidos que provocam, abrem espaço para uma outra maneira de enunciar no cenário

da política brasileira. Por isso, para nós, o estudo destas metáforas não poderia,

portanto, restringir-se a um mapeamento lexical, com o objetivo de sistematização de

determinados conceitos, pois acreditamos que seu funcionamento aponta para uma

discussão mais complexa e abrangente.

Tentando esclarecer isto, voltemos ao caso do item desenvolvimento nas ML,

agora, porém, analisando uma ML recortada por nós como uma Sequência Discursiva

de Referência (SDr):

sDr: “O Brasil, há muito tempo, era como se fosse uma planta encruada. Aquela que você planta e não cresce, porque talvez as pessoas que estivessem adubando ela, estivessem jogando fertilizante no tronco, quando deveria jogar o fertilizante na área da copa, para ela poder absorver melhor as vitaminas necessárias. [...] Habitualmente no Brasil, alguns comiam a massa e o chantili do bolo e, para a grande população, ficava aquele chumbinho de enfeite que colocam em cima do bolo.” (Lula, Notícias Uol Online, 18/03/2008).

Se tomarmos como base a proposta de Sardinha, a ML acima não seria

capturada por um software da Linguística de Corpus ao buscar o item lexical

desenvolvimento. No entanto, situando-nos no campo teórico da AD, em que a língua

é apenas pista de um funcionamento mais amplo, podemos verificar, no funcionamento

da SDr acima, também alguns efeitos de sentido que desenvolvimento assume no

DL, neste caso, representado a partir de uma distribuição de renda mais igualitária

no País.

Nesta ML, é possível verificar o modo como o sujeito enunciador deste discurso

se relaciona com os dois interlocutores: as pessoas que/alguns, que sempre usufruíram

dos bens materiais, os que sempre puderam comer o melhor do bolo, e a grande

população, que sempre precisou se contentar em comer as sobras, ou enfeite do bolo.

Sendo assim, embora o item desenvolvimento não se explicite no plano da língua, ele

não deixa de produzir sentidos ali, quando o sujeito enunciador coloca em jogo, nesta

metáfora, as relações de desigualdade entre um grupo e outro (os que comem e os que

não comem o bolo), o que impede qualquer forma de desenvolvimento.

Page 239: Capital_Social Com ISBN

[ 239 ]

16.4 ALGUM eFeIto De ConCLUsão

Foram as ML que nos aproximaram de uma leitura de Sardinha, e isso nos

levou aos estudos de Lakoff e Johnson. Interessou-nos, num primeiro momento,

encontrar uma proposta de pensar a metáfora para além do espaço do poético, como

se restringe seu tratamento na literatura em geral. Todavia, fomos percebendo que, a

partir dos postulados da AD, esta abertura ainda não nos permitia as respostas

esperadas, já que a Teoria da Metáfora Conceptual constrói-se em torno de relações de

equivalência entre expressões linguísticas e organização mental.

Por isso, objetivamos, com a SDr trazida aqui, ilustrar o modo como entendemos

as ML a partir de um funcionamento mais complexo, que, inclusive, pressupõe o

linguístico, mas que não o toma como base do sentido. é considerando a língua como

pista de uma exterioridade histórico-ideológica que nossa leitura não poderia se

aproximar de qualquer proposta de mapeamento cognitivo, cuja base seriam as

expressões linguísticas.

Filiando-nos ao campo da AD, o interesse pelas ML passa a ser outro: o modo

como o funcionamento desta materialidade aponta para uma determinada singularidade

do DL, que pode nos ajudar a investigar como acontece aí uma mexida nas fileiras do

sentido no cenário da política brasileira e, por isso, apontar para o funcionamento de

um ritual – que falha.

Page 240: Capital_Social Com ISBN

[ 240 ]

reFerênCIAs

LAKOFF, George; JOHNSON, Mark. Metáforas da vida cotidiana. Campinas, SP: Mercado das Letras, 2002.

DE NARDI. Fabiele Stockmans. Um olhar discursivo sobre língua, cultura e identidade: reflexões sobre o livro didático para o ensino de espanhol como língua estrangeira, 2007. Tese (Doutorado em Teorias do Texto e do Discurso). Curso de Pós-Graduação em Letras, Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS.

GADET, Françoise; PêCHEUX, Michel. A língua inatingível: o discurso na história da linguística. Trad. Bethania Mariani; Maria Elizabeth Chaves de Mello. Campinas: Pontes, 2004.

PêCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas/SP: Editora da UNICAMP, 1988.

PêCHEUX, Michel. o discurso: estrutura ou acontecimento. Campinas, SP: Pontes Editores, 2006.

SARDINHA, Tony Berber. Metáfora. São Paulo: Parábola, 2007.

SARDINHA, Tony Berber. Lula e a metáfora da conquista. revista Linguagem em (Dis)curso, v. 8, n. 1, jan./abr., 2008.

SARDINHA, Tony Berber. As metáforas do presidente Lula na perspectiva da Linguística de Corpus: o caso do desenvolvimento. revista D.e.L.t.A., 26:1, 2010.

Page 241: Capital_Social Com ISBN

teCnoLoGIAs

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[ 243 ]

17 sUJeIto, sentIDos e eAD

regina Aparecida Milléo de Paula1

IntroDUção

Trazer à pauta discussões sobre Educação a Distância (EAD) é relevante tendo

em vista a necessidade de se garantir o avanço nos estudos e nas pesquisas que

contribuam para a construção de subsídios ao processo de formação do professor que

atua em EAD, percebendo neste processo a necessidade de orientar e colaborar para

a construção de um caminho que possui campo fértil a ser estudado e teorizado.

Ao desenvolver este estudo pretendo refletir sobre uma experiência vivida em

dois cursos oferecidos nesta modalidade, atuação esta que se iniciou em 2005 quando

fui convidada para corrigir redações que faziam parte do processo seletivo/vestibular

do Curso Normal Superior, Licenciatura para as Séries Iniciais do Ensino Fundamental

na modalidade EAD, oferecido pela Faculdade Educacional da Lapa, com sede na

cidade da Lapa, no Estado do Paraná. Nessa ocasião, entrei em contato com cerca de

7.000 redações produzidas por candidatos de diversos estados brasileiros. Foi uma

experiência enriquecedora, pois em diversos momentos tinham-se depoimentos,

narrativas de vida, expectativas e sonhos enunciados nestas redações. Esse contato

permitiu-me conhecer quem eram estes futuros acadêmicos, um conhecimento

superficial, porém inegavelmente um conhecimento muito maior do que os profissionais,

equipe pedagógica e professores que iriam trabalhar efetivamente no curso, possuíam

até então.

1 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem – UNISUL/SC. Bolsista

CAPES.

Page 244: Capital_Social Com ISBN

[ 244 ]

Logo em seguida, fui convidada para fazer as revisões em materiais didáticos

utilizados nas teleaulas: slides; estudos dirigidos e revisão do material impresso –

apostilas de cada uma das disciplinas que eram disponibilizados aos acadêmicos – e

comecei também a revisar as avaliações, uma vez que a instituição detectava aí

problemas de diversas ordens.

A convite da instituição, participei como professora assistente, posteriormente

assumi uma disciplina como titular e, então, passei a ter um pequeno contato com

alunos durante interatividade síncrona nas teleaulas e assíncrona em fóruns da

disciplina. Mais tarde, fui convidada para ser autora de apostila/material impresso.

Na sequência, fui convidada para ser Coordenadora Acadêmica desse curso.

Posteriormente, o Curso Normal Superior encerrou-se e não foi mais oferecido e

transformou-se em Licenciatura em Pedagogia. Assumi a Coordenação de Avaliação

desse curso que teve sua primeira turma em 2007 e as inquietações tornavam-se

muito mais numerosas. Eu entrava em contato direto com tutores presenciais, alunos

por e-mail e telefone e detectava angústias diversas, desde dificuldades relativas a

recursos tecnológicos até autogerenciamento de aprendizagem, mas principalmente

geradas pelo desconhecimento sobre aqueles e daqueles que seriam os principais

agentes do processo de aprendizagem: os alunos.

Nesses e desses contatos percebia o que Maia e Mattar (2007) ressaltam em

seus estudos sobre EAD: Muitos autores, os grandes ícones da EAD contemporânea,

têm apontado que a falta do estudo teórico prejudica o desenvolvimento da educação

a distância.

Dessa forma, o presente estudo delineia-se e apresenta-se na tentativa de servir

a um aprofundamento teórico e constituir-se em fonte de reflexão para o professor.

Cabe ressaltar que não se pretende tender para uma posição pessimista ou

otimista em relação à EAD, não se trata neste estudo de demonstrar-se a favor ou

contra as mudanças, transformações ou diferenças que decorrem desta modalidade,

tem-se sim como norteadoras do texto a ser produzido, e consequentemente

apresentado as considerações de orlandi:

Page 245: Capital_Social Com ISBN

[ 245 ]

Tal como tenho observado nos discursos que falam da ciência na contemporaneidade, faz presença constante o interativo, as máquinas, a memória e etc., pondo-se questões sobre a distância entre o laboratório (onde se faz ciência), e a escola (onde ela chega). Em geral o tom é pessimista ou otimista demais. Eu prefiro mudar de tom: entre essa posição que fala, de um lado, numa visão mais catastrófica (a ciência destruiria a relação equilibrada do homem com a natureza), e de outro, uma outra posição, deslumbrada, que fala no “admirável mundo novo”, vou me situar em um ponto que não está nem em um lugar e nem no outro, está na história. Na perspectiva da história, essas dimensões não são nem de catástrofe e nem tampouco de deslumbramento: elas fazem apelo às condições de vida reais, exequíveis e que se dão dentro de certas perspectivas, na produção da sociedade na história. Vou, então, explorar esses assuntos, refletir sobre a maneira como são tratadas as novas tecnologias da linguagem e a ciência, trazendo para a reflexão um aspecto discursivo fundamental, o político. (ORLANDI, 2004, p. 130)

Dessa forma, pretende-se neste estudo discutir os efeitos de sentido, relação

entre interlocutores, discursividades e, portanto, observar esta relação, buscando

compreender o funcionamento dos processos discursivos. Nessa perspectiva, os

sentidos se constituirão nesta/desta relação, sujeito e sentido constituindo-se ao

mesmo tempo têm sua corporalidade articulada no encontro da materialidade da

língua com a materialidade da história (ORLANDI, 2005b, p.09).

Saliento que essa relação está atravessada pelas novas tecnologias e observada

numa modalidade de ensino que se configura no heterogêneo, no plural, no coletivo,

no relacional, no diverso, no múltiplo, ou seja, uma modalidade que permite, assim

como a presencial, refletir acerca da dimensão política da linguagem: os sujeitos são

produzidos em processos em que funciona a determinação histórica. Então, que espécie de sujeito e de sentidos a eAD produz? Trata-se de pensar a EAD nesta

conjuntura discursiva.

Essa atuação na EAD motivou a procura por bases teóricas da área de

conhecimento escolhida e preparou terreno para novos contatos e uma interlocução

mais qualificada com outras áreas afins, vinculadas à própria natureza da AD, como

disciplina de entremeio, a qual possibilita a articulação entre a Linguística, o Materialismo

Histórico e a Psicanálise.

Page 246: Capital_Social Com ISBN

[ 246 ]

Em linhas gerais, sabe-se que a EAD é uma forma de educação em que os

alunos e o professor não se encontram, continuadamente, um na presença do outro. O

que denota que a maior parte da comunicação professor-aluno se realiza por meio de

uma tecnologia. No caso do curso em questão essa tecnologia/ferramenta usada é a

webtutoria, um dos métodos de ensino e forma de interação que não está isento de

limitações. A distância do professor e colegas, por exemplo, pode provocar sensação

de isolamento em alguns alunos que, às vezes, pode ser seguida por sensação de

impotência ou de abandono, que é a principal causa de desistência dos cursos.

Testa e Freitas em seus textos: “Fatores importantes na gestão de programas

de educação a distância via Internet: a visão dos especialistas e Gestão de programas

de educação a distância via Internet: O que é importante na visão de especialistas?”

(2004) enunciam considerações a respeito dos aspectos mencionados no parágrafo

anterior. No primeiro texto, analisam entrevistas de alunos e apresentam a necessidade

de motivação constante por parte de tutores, professores, profissionais que entram em

contato direto ou indireto com alunos, como um dos fatores importantes a serem

considerados pelos gestores dos programas de educação a distância; no segundo, os

autores caracterizam como débil a participação de alguns alunos nos canais

disponibilizados, denotando a necessidade de uma mudança cultural e de uma

adaptação dos alunos do ambiente presencial para o virtual.

As tecnologias de informação e comunicação têm sido amplamente aplicadas

na área da educação, situando o ensino a distância como um modelo cada vez mais

difundido e adotado como resposta às necessidades de capacitação e aprimoramento

de recursos humanos. Assiste-se, assim, à renovação de um debate intenso nas mais

diversas frentes, em torno da interatividade na EAD.

Discutem-se metodologias, criam-se modelos, rejeitam-se ou aprovam-se

determinados encaminhamentos teóricos como demonstrativos do estado e estágio

em que o uso da tecnologia serve (ou não) para oportunizar a interatividade na

Educação a Distância. Mesmo dentro exclusivamente do âmbito científico, não tem

sido menos forte o debate, já que, igualmente, não têm sido poucas as tentativas de se

indicar uma definição e proposta para um atendimento pedagógico que possa

ultrapassar e diminuir as distâncias e o isolamento dos alunos nos diferentes espaços

Page 247: Capital_Social Com ISBN

[ 247 ]

e tempos, garantindo estratégias de aprendizagem necessárias para atender às diversas

solicitações (SARAIVA, 1996).

Esta é uma face promissora, ao menos efervescente do debate. No presente

estudo, busca-se pensar a EAD sob o enfoque teórico e metodológico da Análise do

Discurso Francesa, o que permitirá melhor compreender os aspectos da linguagem e

dos sujeitos relacionados à EAD.

17.1 o enUnCIADo toMADo CoMo eXeMPLAr

A presente análise será realizada, inicialmente, a partir de um recorte discursivo

em/no e do enunciado produzido por uma acadêmica do Curso de Licenciatura em

Pedagogia na modalidade de Educação a Distância oferecida pela FAEL – Faculdade

Educacional da Lapa, Paraná em parceria com a UNITINS – Fundação Universidade do

Tocantins de Palmas, Tocantins, e o sistema Educacional EADCON, parceira tecnológica

das IES.

Como a determinação dos aspectos sociais é fundamental para se iniciar uma

análise, é preciso esclarecer que a acadêmica cursava na ocasião o primeiro período

do mencionado curso, em julho de 2007. O enunciado tomado como exemplar é

encontrado no Ambiente Virtual de Aprendizagem do Portal do Curso denominado

Webtutoria, ambiente em que a participação do aluno tem caráter avaliativo a partir de

um questionamento apresentado pelo professor em segundo encontro da disciplina

(Print screen da Webtutoria em anexo); questionamento este com proposição

argumentativa. Após a leitura da questão dada para Webtutoria, o representante do

grupo deve reunir-se com os demais elementos e elaborar uma resposta à questão

proposta que deverá ser postada pelo representante do grupo no portal, em espaço

próprio para webtutoria da disciplina em questão. A questão deverá ser respondida em

grupo e com consulta, sendo posteriormente avaliada pelo Webtutor. O webtutor

avaliará a resposta dada pelo grupo e a pontuará fazendo comentários pertinentes à

nota aferida.

Page 248: Capital_Social Com ISBN

[ 248 ]

Portanto, o espaço em questão é destinado às postagens (inserções em

portal) de respostas à questões feitas pelo professor titular da disciplina, porém é

utilizado não só para este fim pela acadêmica em questão, como também por vários

outros alunos, para desabafos, congratulações aos professores, depoimentos de

vida, reclamações, já que é um canal de resposta eficiente, rápido e direto com a

instituição. A equipe de webtutores, tutores a distância – professores da FAEL e

UNITINS, têm prazos preestabelecidos para analisar, corrigir e pontuar as respostas.

Os canais criados para as demais fins são: e-mail ([email protected]);

call-center; requerimentos via correio, nos quais os interlocutores não são

necessariamente professores e, devido ao número considerável deste tipo de

mensagem, não são respondidos tão rapidamente.

Outra razão pela qual os alunos se utilizam da webtutoria é a de que o professor

titular oportuniza a participação para que o aluno envie dúvidas quanto às considerações

teóricas expostas em teleaula e (ou) encontradas em material impresso – apostila,

também oportuniza que ele envie suas inferências sobre a temática estudada para que

o professor, também cadastrado como webtutor, acesse e use algumas delas durante

as teleaulas, o que faz com que o aluno assista em teleaula ao vivo, na expectativa de

ouvir uma menção, tanto de suas respostas dadas em avaliação, quanto de inferências,

dúvidas e perguntas feitas. O professor geralmente nomina o aluno, polo presencial,

região e estado que as enviou.

Tal prática gera expectativa dos acadêmicos quanto aos nomes que serão

citados, já que o professor os fala ao vivo, além de parabenizar, enfatizar fazendo com

que o autor da participação sinta-se, de certa forma, conhecido e reconhecido por

todos os alunos, cerca de dez mil, que assistiam àquela teleaula em diversas regiões

do Brasil.

O enunciado em questão é:

prof. paulo, pelo amor de DEUs, mande um alô, para a nossa turma em Nossa senhora do socorro em sergipe, para a gente saber que nós existimos. pois ainda ninguém nos mandou um alô. Estamos adorando a sua aula. obrigado.

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Figura1: Print Screen de Ambiente Virtual de Aprendizagem/AVA – Webtutoria- Perspectiva da Coordenação de Curso em acompanhamento e supervisão de Webtutoria

Fonte: Ambiente Virtual de Aprendizagem/AVA – Webtutoria – Portal do Curso de Licenciatura em Pedagogia – FAEL

Esse enunciado apresenta uma riqueza de possíveis recortes discursivos a

serem estudados como: a palavra Deus em letras maiúsculas; o sujeito da enunciação

ora marcado por “a gente” ora por “nós”.

Quando se escolhe um texto/fala de um aluno num AVA como corpus discursivo,

escolhe-se analisar esta “fala” visando “ multiplicar as relações entre o que é dito (em

tal lugar), e dito assim e não de outro jeito, com o que é dito em outro lugar e de outro

1 No presente artigo, por questões notadamente éticas, opta-se por manter em oculto os nomes

tanto do aluno quanto do webtutor.

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[ 250 ]

modo, a fim de se colocar em posição de “entender” a presença de não-ditos no

interior do que é dito”. (PêCHEUX, 2008, p.44)

o referido texto/fala permite amparar os objetivos propostos a serem alcançados

no estudo em questão, pois, optando por uma abordagem discursiva, a discussão não

pretende abordar só a forma, mas também o discurso e os efeitos de sentido e os

sujeitos que circulam neste discurso.

17.2 sUJeIto e sentIDo nUMA PersPeCtIVA DIsCUrsIVA

Propor uma análise que empreende sua caminhada na seara da AD pressupõe

a assunção de que os aspectos linguísticos e históricos determinam e instituem uma

relação constitutiva na produção de sentido que se realiza no processo de

interlocução.

Assim, optar por compreender o processo de constituição da subjetividade e a

consequente abordagem da noção de sujeito é uma opção que leva à releitura de

conceitos advindos da Linguística, já que não se desconsidera a análise dos

mecanismos de enunciação; do Materialismo Histórico, visto que atenta-se nos

aspectos das formações sociais e suas transformações; tendo como recorrente desse

constructo teórico a compreensão do necessário respaldo dos pressupostos teóricos

sobrevindos de Lacan quando este estuda a subjetividade.

Esse é o cenário teórico-investigativo da AD, teoria com um quadro

epistemológico que se apresenta constituído de uma relação de vários lugares teóricos

buscando seus fundamentos em outras áreas de conhecimento.

Tal relação possibilita perceber que a linguagem é gestada entre a história e a

ideologia e permite o entendimento do funcionamento dos processos de significação.

Dessa forma, o texto é aqui um objeto simbólico que organiza a relação da língua com

a historicidade, e “compreender como o texto funciona, como ele produz sentidos, é

compreendê-lo enquanto objeto linguístico histórico é explicitar como ele realiza a

discursividade que o constitui.” (ORLANDI, 2005a)

Page 251: Capital_Social Com ISBN

[ 251 ]

A historicidade é constitutiva do sentido, não enumeração sucessiva de fatos,

não história no sentido cronológico, mas de processo ininterrupto de produção de

sentidos, de alteração e fixação, não superficial e linear, pois para alguns, o já dito é

fechamento de mundo. Porque delimita, imobiliza. No entanto, também se pode

pensar que aquilo que se diz, uma vez dito, vira coisa do mundo: ganha espessura, faz

história. E a história traz em si a ambiguidade do que muda e do que permanece.

(ORLANDI, 1996, p. 09)

Desta forma, o objeto da análise do discurso não é a língua, mas o discurso

como “objeto sócio-histórico em que o linguístico intervém como pressuposto”.

(ORLANDI, 2005a), assim, o discurso não existe isolado, é pelas relações de sentido

entre um discurso e outros discursos que os efeitos de sentido brotam. Os sentidos

são história e, portanto, construídos socialmente. Dito de outro modo: é na formulação

que a linguagem ganha vida, que a memória se atualiza, que os sentidos se decidem,

que o sujeito se mostra e se esconde. Momento de sua definição: corpo e emoções

da/na linguagem. Sulcos no solo do dizer. Trilhas. Materialização da voz dos sentidos,

do gesto da mão em escrita, em traço, em signo. (ORLANDI, 2005b, p.09)

Esse movimento implica uma abordagem sob o ponto de vista de que o

funcionamento da linguagem não se constitui em mera transmissão de informações,

de uma comunicação vetorial entre locutores ideais em situações em que não se

considera a possibilidade de imperfeição deste e neste processo; como também

implica reconhecer que o dizer não se inaugura no sujeito, ou melhor, o processo de

produção de sentido não se inicia no dizer do sujeito. Sendo o sujeito, na concepção

discursiva, concebido como “o lugar determinado na estrutura social” (PêCHEUX,

1990, p. 82) que funciona no processo discursivo por meio do que a AD chama de

[...] formações imaginárias. Assim não são os sujeitos físicos nem os seus lugares empíricos como tal, isto é, como estão inscritos na sociedade, e que poderiam ser sociologicamente descritos, que funcionam no discurso, mas suas imagens que resultam de projeções. São essas projeções que permitem passar das situações empíricas – os lugares dos sujeitos – para posições dos sujeitos no discurso. Essa é a distinção entre lugar e projeção. (ORLANDI, 2005b, p. 140)

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[ 252 ]

Um sujeito social 2. Sendo social este sujeito, os sentidos inscritos em seu

dizer e não originados por ele são determinados ideologicamente. Define-se ideologia

aqui como o processo de produção de um imaginário, isto é, produção de uma

interpretação particular que apareceria, no entanto como a interpretação necessária e

que atribui sentidos fixos às palavras, em um contexto histórico dado. (RODRIGUEZ,

1998, p.51)

Dessa forma, o sujeito convocado pela AD não está na origem do dizer, já que

para esta teoria o indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia e é assim que a

língua faz sentido (PêCHEUX, 1975 apud ORLANDI, 2005b, p. 17), tal interpelação é

da ordem do inconsciente.

A constituição do sentido e a identificação do sujeito configuram-se na formação

discursiva. Nela o sujeito adquire identidade e o sentido adquire unidade, especificidade,

limites que o configuram e o distinguem de outros, para fora, relacionando-o a outros,

para dentro. Essa articulação entre um fora e um dentro são efeitos do próprio

processo de interpelação. (ORLANDI, 2007)

Assim, o sentido se constitui no interior de uma formação discursiva, não há

outra possibilidade de constituição, pois a interpelação ideológica se dá por meio da

formação discursiva. O que implica que o sujeito inscrito em uma formação discursiva

utilize-se de palavras diferentes, mas que no processo de interlocução representam-

se com o mesmo sentido; tal afirmação não pode deixar transparecer que uma

formação discursiva existe por si só, isolada. Isto é, o/um sentido só é possível da/

na relação com/entre formações discursivas, nesta/desta relação que se tem o lugar

dos sentidos possíveis, na relação com outras formações discursivas que se

encontram os outros sentidos. Não há um centro, que é o sentido literal, e suas

margens, que são os efeitos de sentido. Só há margens. Por definição, todos os

sentidos são possíveis e, em certas condições de produção, há a dominância de um

deles. (ORLANDI 1996, p.144)

2 Noção discutida por Freda Indursky em sua obra: A fala dos quartéis e as outras vozes.

Campinas: Unicamp, 1997.

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[ 253 ]

Dessa maneira, o sujeito ao dizer inscreve sua formulação no repetível histórico

(interdiscurso), historicizando seu dizer.

Dessa forma, interessa para AD tanto o que foi dito e quanto o que foi silenciado,

interessa conhecer/reconhecer o está subentendido pelo dito. Nas palavras de Orlandi

(2005a, p.85): “Entre o dizer e o não dizer desenrola-se todo um espaço de

interpretação no qual o sujeito se move”.

17.3 sUJeIto, sentIDos e eAD

Pode-se dizer que a análise que se pretende não diz respeito apenas às teorias

da comunicação e informação, nem apenas às teorias da educação, nem só da

tecnologia, o que se pretende é um estudo que tem uma outra perspectiva que nem é

a tecnológica nem é a educacional, uma perspectiva discursiva que vai trazer para o

cenário um conhecimento da produção do sentido e da produção do sujeito,

principalmente, a questão da identidade por meio da história, da ideologia e do próprio

contexto social.

Todos esses elementos vão ser considerados no momento da aprendizagem,

então, é possível que esta abordagem possa resultar em considerações que não foram

teorizadas pelas teorias da educação ou pelas teorias que estudam as tecnologias da

informação e da comunicação.

O foco que aqui se pretende, portanto, não são os aspectos tecnológicos ou

pedagógicos envolvidos na EAD, nem sua condição de interatividade, conectividade,

mas pensar a EAD nesta conjuntura discursiva, ou seja, como instância produtora de

novos sentidos, embora, como apresentado nos subitens anteriores, reconheça-se

a estreita ligação com a dimensão pedagógica e tecnológica envolvidas nesta

modalidade.

O que se procura levar em conta é a historicidade na construção do sujeito

neste ambiente (AVA), ambiente que, do ponto de vista discursivo, não é somente o

suporte da linguagem, mas elemento constitutivo do sentido. (GALLO, 2011)

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[ 254 ]

reFerênCIAs

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Page 255: Capital_Social Com ISBN

[ 255 ]

18teCnoLoGIA soCIAL CoMo FAtor PArA o DesenVoLVIMento reGIonAL

Gilmar Luis Mazurkievicz1

18.1 FAtores De DeCIsão AtUAIs

o momento global, caracterizado por alterações climáticas, crises econômicas

e políticas governamentais, faz com que todos os envolvidos em gestão, sejam

publicas ou privadas, incorporem esses fatores nos seus processos de decisão. Dado

que essas situações vão ter reflexos no cenário futuro é importante a aproximação

entre instituições científicas e empresas e a sociedade, bem como compartilhar

informações de forma a promover o desenvolvimento regional sustentável, que surge

como um aspecto determinante para a criação de oportunidades a vários níveis na

nossa sociedade.

A cidade surgiu há mais de 3500 anos a.C., porém o processo de urbanização

moderno apenas se desencadeou no séc. XVIII, em consequência da Revolução

Industrial, e partir disso a cidade tem assumido um crescente papel, e atualmente a

população mundial é urbana, com tendência a aumentar. A urbanização é, por um lado,

o deslocamento das populações das zonas rurais para os centros urbanos e, por outro,

a atividade de criar num território infraestruturas, como estradas, água, luz e esgoto e

serviços urbanos de transporte, educação, saúde e ocorre uma substituição das

atividades primárias pela indústria e serviços.

1 Coordenador, Professor e pesquisador da Universidade do Contestado, Especialista em Sistemas

de Informações, Especialista em Educação a Distância, Mestre em Ciência da Computação, Doutorando em

Educação Científica e Tecnológica. [email protected]

Page 256: Capital_Social Com ISBN

[ 256 ]

Nas últimas décadas, tem ocorrido um crescimento das cidades muitas

vezes desordenado e com degradação ambiental e até do patrimônio histórico.

As consequências deste processo que afetam diretamente a população com o

subemprego, desigualdade social, exclusão social, criminalidade, e habitação

inadequada. Se antes as políticas de desenvolvimento regional e planejamento

passavam pelo melhoramento de infraestruturas e reduzir as assimetrias internas de

desenvolvimento entre litoral e interior e facilitar a integração das economias, hoje os

desafios que se colocam são promover os fatores de competitividade regional e

valorizar os sistemas produtivos regionais.

Nessa perspectiva, devemos olhar para o desenvolvimento a partir dos recursos

locais existentes e não pensar apenas nos possíveis projetos multinacionais criadores

de emprego e riqueza. Cada vez mais é necessário olhar para o potencial local, sejam

eles recursos naturais, produtos tradicionais locais, saberes, entre outros. Para isso é

necessário criar estratégias de desenvolvimento regionais por forma a criar condições

favoráveis ao incremento do dinamismo empresarial e institucional e, sobretudo à

formação da massa crítica indispensável a uma mobilização eficaz, gerando e fixando

riqueza e oportunidades de emprego, a partir das potencialidades regionais. Mas que

isso ocorra é importante o envolvimento das entidades públicas e privadas e da

sociedade em geral, mediante uma adequada criação e coordenação das políticas

públicas e de uma crescente parceria dos diversos atores da sociedade civil com os

objetivos estratégicos para desenvolvimento.

18.2 CIênCIA, teCnoLoGIA e soCIeDADe

Vivemos hoje em um mundo notadamente influenciado pela ciência e tecnologia.

Tal influência é tão grande que podemos falar em uma autonomização da razão científica

em todas as esferas do comportamento humano. Essa autonomização resultou em

uma verdadeira fé no homem, na ciência, na razão, enfim, uma fé no progresso

(BERNARD e CROMMELINCK,1992). As sociedades modernas passaram a confiar na

ciência e na tecnologia como se confia em uma divindade. A lógica do comportamento

Page 257: Capital_Social Com ISBN

[ 257 ]

humano passou a ser a lógica da eficácia tecnológica e suas razões passaram a ser as

da ciência (BAZZO, 1998).

Ao contrário da “ciência pura”, a abordagem Ciência-Tecnologia-Sociedade (CTS) possui uma relação muito mais próxima com os saberes da população que não pertence aos meios acadêmicos. Dentro dessa concepção, a ciência também deixa de ser exclusividade de um público restrito que se relaciona diretamente com ela para fazer parte do cotidiano da população não acadêmica. “Como todos sabemos, a conceitualização CTS presta especial atenção a modos de articular ciência/tecnologia com a sociedade e com situações que permitam debates éticos e culturais. Demarcasse de ópticas vincadamente acadêmicas e aproxima-se de ópticas baseadas nas realidades quotidianas. é particularmente sensível ao estabelecimento de novas relações entre o ser e o saber. Afasta-se da racionalidade científica, típica positivismo, e abre caminho à construção de novas racionalidades. Com esta construção não se trata de incorporar uma “nova” racionalidade – racionalidade CTS – noutras, nem de amalgamar as lógicas científica, tecnológica e socioambiental, mas de convocar diferentes matrizes de racionalidade (científica,tecnológica, social, cultural, etc.), questioná-las, dialogar com todas, mas diferenciar- se delas.” (SANTOS, 2005: 150)

Sant’Anna, em Ciência e sociedade no Brasil, defende a tese central de que a

sociedade brasileira jamais equacionou o problema da C&T como fator de

desenvolvimento, não se estabelecendo, por conseguinte, uma relação dinâmica,

recíproca, entre os sistemas produtivos e científicos, ou seja, a falta de vinculo entre

ciência e sociedade é característica da história brasileira. E que por muitos anos

sempre permaneceu a ideia que o país deveria abrir mão do desenvolvimento

tecnológico autônomo, considerando que uma análise do custo-benefício indicava

como mais “rentável” a importação de tecnologia. Temos, assim, no Brasil, uma

situação circular: o tipo de tecnologia adotada pela maioria das empresas faz com que

os técnicos necessários para a sua “manipulação, preservação ou adaptação” tenham

sua formação limitada a essas linhas de pesquisa, não havendo pesquisadores que

pudessem fazer emergir conhecimentos autônomos. Dessa forma, as empresas ficam

presas à tecnologia importada, sem o desenvolvimento de tecnologias alternativas.

Page 258: Capital_Social Com ISBN

[ 258 ]

18.3 teCnoLoGIA soCIAL

Até há bem pouco tempo, a energia mais utilizada pelo Homem era a chamada

energia convencional, que assenta na utilização de combustíveis fósseis. Mas esses

recursos estão ficando limitados, muito difíceis de repor e, como é do conhecimento

geral, provocam impactos negativos no ambiente e na sociedade e que acarretam

custos socioeconômicos. Os principais impactos ambientais são a deterioração da

camada de ozônio,efeito de estufa etc. Outro impacto negativo, não menos relevante,

é a criação de dependência econômica dos países não produtores das matérias-

primas, pois a sua distribuição geográfica não é homogênea.

Para Santos e Mortimer:

O desenvolvimento tecnológico tem ocorrido de maneira desordenada, sobretudo ao atender muito mais os interesses de mercado do que as reais necessidades humanas. O desenvolvimento científico e tecnológico tem exercido uma poderosa influência sobre o comportamento humano. Os hábitos de consumo, as relações humanas, o modo de vida, as relações de trabalho, as crenças e valores são cada vez mais resultantes de demandas do desenvolvimento tecnológico. As decisões sobre C&T estão, normalmente, sob a responsabilidade de tecnocratas que detêm conhecimentos específicos e dados não acessíveis aos cidadãos. Em geral, eles trabalham a serviço de grandes grupos econômicos e podem omitir informações relevantes que seriam de interesse da população em geral. Esse sistema precisa ser questionado e uma nova forma de controle pela sociedade precisa ser estabelecida, de modo a serem criados mecanismos em que grupos de ativistas possam cada vez mais ter acesso às informações relevantes sobre as consequências do desenvolvimento tecnológico.

Nesse contexto, e assistindo a um rápido crescimento no consumo energético,

o homem teve a necessidade de encontrar energias alternativas àquelas que são

esgotáveis, para suprimir as suas necessidades e eliminar os problemas ambientais.

Vivemos em uma época controversa em que todos os dias somos confrontados com

decisões pessoais e sociais que podem interferir no futuro de nossa sociedade

(FIGUEIREDO, 2006). Tal alternativa implicou optar por um novo modelo baseado na

eficiência e na poupança energética e na implementação das energias renováveis, pois

estas são uma fonte de energia ilimitada dado que a sua utilização “hoje” não implica

a diminuição da sua disponibilidade “amanhã”. Concordamos com Valério e Bazzo

Page 259: Capital_Social Com ISBN

[ 259 ]

(2007), entendemos que não se pode delegar apenas aos cientistas e tecnólogos a

competência para ditar os rumos de toda uma sociedade.

A tecnologia Social vem agregando diversos expressões mais um dos conceitos

surge a partir de tecnologia apropriada (TA), desenvolvido por Mahatma Ghandi na

Índia, entre os anos de 1924 e 1927, que revolucionou o processo de fiação manual,

como forma de lutar contra as injustiças sociais prevalentes naquele país. O trabalho

de Ghandi despertou a consciência política de milhões de indianos, mostrando-lhes a

necessidade de autodeterminação das comunidades e, também, de implementar um

processo de desenvolvimento que privilegiasse o saber social, popular, e as soluções

nativas – em vez do conhecimento importado, sempre distante da realidade cotidiana

dos cidadãos e, por vezes, contrário a essa realidade. As ideias propostas por Ghandi

implicavam a contínua melhoria dos processos e técnicas tradicionais, a adaptação

das tecnologias modernas (TM) à realidade local, aos requisitos de segurança e saúde

das pessoas e de preservação do meio ambiente, além do estímulo ao uso das

pesquisas e experimentos científicos na solução dos problemas mais importantes e

imediatos. A base de todo este trabalho, contudo, era a intensa participação das

comunidades afetadas na busca de soluções para os seus problemas, assim como

o aproveitamento dos diferentes saberes, informações e experiências acumuladas

pelos cidadãos. As ideias de Ghandi, pouco a pouco, começaram a influenciar as

comunidades excluídas de países próximos à Índia, como a China, por exemplo.

Mais tarde, foram incorporadas, melhor desenvolvidas e sistematizadas por Ernest

Frederich Schumacher, economista alemão radicado na Inglaterra. Ele criou a

expressão tecnologia intermediária – também chamada de tecnologia popular – para

identificar um tipo de tecnologia que, por suas características, seria mais apropriada

aos países pobres. Essas características eram as seguintes: a) baixo custo operacional;

b) simplicidade funcional; c) facilidade de manejo; d) eficácia na solução dos problemas

cotidianos; e) uso em pequena escala; f) replicabilidade, isto é, a possibilidade de ser

aplicada em outros contextos sociais com a mesma eficácia. Foram essas mesmas

características que fundamentaram o conceito de tecnologia social (TS) em sua

gênese, no Brasil, visto como estratégia eficaz para gerar e sustentar a autodeterminação

das comunidades excluídas em seu processo de desenvolvimento.

Page 260: Capital_Social Com ISBN

[ 260 ]

Em seminário sobre tecnologias sociais promovido pela Fundação Banco do

Brasil em 2004, foi construída uma definição coletiva em que as tecnologias sociais

são um “conjunto de técnicas e procedimentos, associados a formas de organização

coletiva, que representam soluções para a inclusão social e melhoria da qualidade

de vida”.

As várias expressões utilizadas para tecnologia social são tecnologia

intermediária, tecnologia apropriada, tecnologia popular, tecnologia alternativa,

tecnologia comunitária, tecnologia da escassez, tecnologia de baixo custo, tecnologia

socialmente apropriada, tecnologia ambientalmente apropriada, tecnologia humana

e outras, de menor aceitação. Com algumas diferenças mas todos com o apresentam

métodos, processos, estratégias ou procedimentos de baixo custo e fácil aplicação,

eficazes, de pequena escala e facilmente replicáveis. Com o objetivo sempre de

buscar soluções apropriadas aos diferentes contextos socioeconômicos, culturais e

ambientais prevalentes nas comunidades carentes dando ênfase ao saber popular,

as alternativas e necessidades das comunidades e a participação destas no processo

de planejamento, execução, monitoramento e avaliação das ações voltadas ao seu

próprio desenvolvimento.

As Tecnologias Sociais devem ser dotadas de racionalidade técnica, que é

essencial para que aumentem as chances de serem legitimadas e ganharem força no

circuito administrativo. Um dos grandes fatores e importantes pontos é aliar a pesquisa

e a extensão universitária às práticas populares, para que as tecnologias sociais sejam

legitimadas cientificamente, por isso as pesquisas desenvolvidas pelas universidades

devem ter o caráter de contribuir para o desenvolvimento local, numa época de

globalização da economia, cultura e políticas. De acordo com Buarque (1999).

o desenvolvimento local dentro da globalização é uma resultante direta da capacidade dos atores e da sociedade locais se estruturarem e se mobilizarem, com base nas suas potencialidades e a sua matriz cultural, para definir e explorar suas prioridades e especificidades, buscando a competitividade num contexto de rápidas e profundas transformações. No novo paradigma de desenvolvimento, isto significa,antes de tudo a capacidade de ampliação da massa crítica e da informação. (BUARQUE, 1999)

Page 261: Capital_Social Com ISBN

[ 261 ]

A tecnologia social dentro do movimento CTS, insere-se mediante a orientação

da ciência, tecnologia mais inclusão social para o bem-estar da população, priorizando

as necessidades que não chegam a se constituir em demandas para o mercado,

baseando-se em princípios democráticos.

18.4 DesenVoLVIMento reGIonAL sUstentÁVeL

A Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, 1987,

conhecida como Comissão Brundtland, estabeleceu traços básicos para a noção e

princípios fundamentais, relata que é o “desenvolvimento que atende às necessidades

do presente sem comprometer a possibilidade de as gerações futuras atenderem as

suas próprias necessidades.” Sendo assim um conceito abrangente baseado em três

grandes dimensões – o ambiental, o econômico e social – que devem funcionar

integradas em sintonia com a gestão global do negócio. Desta maneira possam

contribuir para o desenvolvimento sustentável, e deixa claro que as empresas podem

prosperar na medida em que colaborem para a prosperidade da sociedade por meio da

inovação e pesquisa, da criação de novos bens e serviços capazes de atender aos

desafios atuais.

Dessas possibilidades de desenvolvimento entre empresas e sociedade, Milton

Santos diz que:

é a partir do espaço geográfico que se dá a solidariedade orgânica; tais atividades, não importa o nível, devem sua criação e alimentação às ofertas do meio geográfico local […] na verdade, mudadas as condições políticas, é nesse espaço banal que o poder público encontraria as melhores condições para sua intervenção. Trata-se, aqui, da produção local de uma integração solidária, obtida mediante solidariedades horizontais internas, cuja natureza é tanto econômica, social e cultural como propriamente geográfica. A sobrevivência do conjunto, não importa que os diversos agentes tenham interesses diferentes, depende desse exercício da solidariedade, indispensável ao trabalho, e que gera a visibilidade do interesse comum (SANTOS, 2000, p. 110).

As pesquisas realizadas pelo Instituto Pólis sobre o tema do desenvolvimento

local, a análise das experiências estudadas, permitem salientar, em concordância com

Page 262: Capital_Social Com ISBN

[ 262 ]

Milton Santos, a importância da estrutura social local para sustentar as iniciativas

de desenvolvimento local. Segundo essas pesquisas, “o histórico de participação

político-social das comunidades envolvidas e seu grau de organização e envolvimento

com as iniciativas parecem constituir fatores preponderantes para o êxito” (FRANçA,

2002, p. 6).

As tecnologias sociais são processos que ao mesmo tempo com conhecimentos

e tecnologias atuais, bem como antigas intenções – a superação da pobreza. é verificar

possibilidades concretas inspiradas no saber popular com auxílio de pesquisadores

das universidades e comunidade científica, e também o desenvolvimento regional por

meio de negócios que geram emprego e renda a comunidades carentes.

O apoio pelas empresas e governo por meio de políticas públicas viabilizam a

economia solidaria e promovem as condições para que as comunidades menos

favorecidas, micros e pequenos e empreendedores rurais ou urbanos possam ter para

implementar seus projetos e negócios, mediante a construção de caminhos e propostas

comuns, focalizados na resolução de problemas concretos. é dessa maneira que

poderemos avançar na inclusão social e desenvolvimento sustentáveis.

Mas para que isso se concretize de fato, a adoção de novas políticas públicas

requer um trabalho de pesquisa que permita sistematizar, analisar, debater e difundir

o que nos ensinam as experiências em seu conjunto com discussão da produção

do conhecimento.

O desenvolvimento sustentável para ser uma obra de cidadania deve quebrar o

paradigma tradicional das maiorias dos governos locais, em benefício de suas elites,

para ações transformadoras e democratizantes com a participação decisiva das redes

de solidariedade e de cidadania construídas na sociedade civil e com isso promover a

inclusão social.

As tecnologias sociais, além de ser uma possibilidade para determinados

problemas, podem impulsionar ideias e alternativas de negócios, produtos e serviços

que se originam das experiências inovadoras e necessidades da região para alavancar

o desenvolvimento regional de forma sustentável.

Page 263: Capital_Social Com ISBN

[ 263 ]

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Page 265: Capital_Social Com ISBN

[ 265 ]

19BIoDEsIGN, DA InteGrAção De sABeres À VALorIZAção DA CULtUrA LoCAL: UMA eXPerIênCIA Do

MestrADo eM DesenVoLVIMento reGIonAL DA UtFPr

Arminda Almeida rosa1 Clariana M. Werkauser Bressiani2

Andréia Mesacasa3 Maria de Lourdes Bernartt4

“Biodesign, da integração de saberes à valorização da cultura local” consiste

em um dos estudos realizados no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento

Regional da UTFPR campus Pato Branco. O caráter interdisciplinar do referido Programa

possibilitou o desenvolvimento deste estudo que integra a cultura regional às expressões

artísticas vivenciadas por meio do biodesign.

A ferramenta de criatividade biodesign define-se por sua estreita ligação com

a observação da natureza em suas formas e sistemas para solucionar problemas

de design, ou seja, atua como fonte de inspiração para o desenvolvimento de

novos produtos.

1 Mestranda em Desenvolvimento Regional pela UTFPR, campus de Pato Branco – PR. Bolsista

CAPES. Licenciada em Ciências Plenas com Habilitação em Ciências Ensino Fundamental e Química Ensino

Médio. [email protected] Mestranda em Desenvolvimento Regional pela UTFPR, campus de Pato Branco – PR. Tecnóloga

em Administração Rural. [email protected] Mestranda em Desenvolvimento Regional pela UTFPR, campus de Pato Branco – PR. Bolsista

CAPES. Bacharel em Moda com Habilitação em Estilismo. [email protected] Doutora em Educação. Docente do Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Regional

da UTFPR campus Pato Branco. [email protected]

Page 266: Capital_Social Com ISBN

[ 266 ]

Para tanto, o presente artigo aborda em primeira instância a contextualização e

conceituação do termo biodesign, intrínseco ao método ecodesign e alicerçado com o

discurso sustentável da atualidade. Em um segundo momento, aborda a conexão

existente entre cultura e criatividade expressas por meio do biodesign, bem como sua

integração ao território como lugar de saberes materiais e imateriais.

Na sequência, a interdisciplinaridade é descrita, bem como a prática exercida

pelos projetos com esta característica. Para finalizar, a metodologia da Pedagogia da

Alternância é definida juntamente com as possibilidades de inserção da ferramenta

biodesign no contexto dos Centros de Formação por Alternância com vistas à

valorização do local.

19.1 BIoDEsIGN: ConteXto e ConCeIto

A ênfase no desenvolvimento sustentável transcorrida no cenário da

modernidade colocou em pauta os métodos de produção dos artefatos industriais,

sendo estes vinculados a práticas insustentáveis em longo prazo. Desse modo, o

design, concebido como uma “atividade criativa que tem como objetivo estabelecer as

múltiplas qualidades dos objetos, processos, serviços e seus sistemas em todo o seu

ciclo de vida” (ISCID, 2010) também passou a integrar o universo permeado pelo

discurso sustentável em voga na atualidade.

Nesse quadro, inúmeros fatores passaram a integrar o contexto da produção

industrial. Na década de 1990, foi introduzido o método ecodesign definido como:

Modelo projetual orientado por critérios ecológicos, este termo sintetiza um vasto conjunto de atividades projetuais que tendem a enfrentar os temas postos pela questão ambiental partindo do ponto inicial, isto é, do redesenho dos próprios produtos. (MANZINI & VEZZOLI, 2008, p. 17)

Sob essa perspectiva, as atividades de design podem ser direcionadas para

inúmeras ações que contemplem desde o tratamento da poluição, passando pela

interferência nos processos produtivos que geram tal poluição, até o redesenho dos

produtos, a fim de integrar a perspectiva ambiental no desenvolvimento de produtos.

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[ 267 ]

Juntamente com o ecodesign localiza-se o biodesign, considerado uma ferramenta de

criatividade que envolve o “estudo e aplicação dos princípios básicos dos componentes

da natureza, utilizados para resolver, por analogia, o design de produtos industriais na

investigação dos sistemas biológicos e bioquímicos.” (GOMES FILHO, 2006, p. 24)

Segundo Drack (apud SOARES, 2008), tanto o biodesign como o ecodesign

são métodos que pretendem melhorar os sistemas técnicos. Apesar de não estarem

sistematicamente interligados, estes métodos têm muito em comum, pois o

ecodesign, ao considerar o ciclo de vida do produto durante a fase de design,

transcreve o ciclo de utilização e reutilização de todos os materiais existentes na

natureza. Já o biodesign, entendido como uma possibilidade de mudança no conceito

atual de sustentabilidade de produção, traduz um objetivo do ecodesign. O mesmo

pode ser considerado como uma ferramenta de criatividade do ecodesign, na medida

em que se caracteriza pela pesquisa de mecanismos biológicos que possam

contribuir para o design de produtos sustentáveis.

Com efeito, os designers podem encontrar inspiração em aspectos exteriores

aos tradicionalmente adotados pelo design. A observação da natureza constitui uma

fonte de novos conceitos para os produtos industriais, consistindo em um objeto de

inspiração baseada no conhecimento biológico. Sobretudo o olhar dos designers para

a natureza integra um dos princípios do design ecológico definidos por Todd (apud

SOARES, 2008) que afirma que “o design deve refletir o biorregionalismo”, ou seja,

concorda com a ideia de se trabalhar com os recursos pertencentes a uma determinada

região geográfica com vistas à valorização da biodiversidade, bem como dos saberes

acumulados pelas gerações que nele habitam.

Conforme Yeang (apud SOARES 2008), algumas características dos sistemas

naturais podem ser reproduzidas e aplicadas no processo de design, tais como: a) nos

sistemas naturais não existem resíduos, os resíduos de uma espécie são os alimentos

de outra; b) os materiais e nutrientes circulam e transformam-se continuamente; c)

grande parte dos fluxos de energia nos ecossistemas é consumida nos processos de

decomposição, reciclando resíduos para a sua reutilização; d) as toxinas concentradas

não são armazenadas e transportadas em grandes quantidades, mas são sintetizadas

e utilizadas apenas por certos organismos; e) um organismo biológico responde aos

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estímulos externos, como temperatura, umidade e disponibilidade de recursos; f) os

sistemas naturais são dinâmicos e orientados pela informação; g) um organismo

biológico é capaz de atuar em atividades independentes, no entanto todos os sistemas

vivos comunicam e partilham recursos entre si; g) cada membro de um ecossistema

realiza várias funções, interligando-se com outros membros. A cooperação e a

competitividade estão interligadas. As trocas de energia e recursos que ocorrem nos

ecossistemas são sustentados pela cooperação.

Desse modo, esses princípios naturais podem servir de base para o processo

de design de produtos sustentáveis na medida em que consistem em premissas

fundamentais do ecodesign.

Sob essa perspectiva, o biodesign é uma abordagem tecnologicamente

orientada para aplicar as lições de design da natureza, consistindo em uma alternativa

viável em relação ao design tradicional, reducionista e linear, pois o mesmo não se

limita a gerar melhorias incrementais nas práticas e hábitos, mas ambiciona estimular

a criatividade e a inovação na pesquisa de novas formas de realizar produtos.

19.2 BIoDEsIGN: entre A CULtUrA e A CrIAtIVIDADe

O desenvolvimento de produto combina elementos metódicos e criativos.

Nesse sentido, a criatividade é necessária para gerar novas ideias para produtos novos

ou já conhecidos. Para Dowlen (apud SOARES 2008), criatividade pode ser definida

como a capacidade de fazer ou inventar algo novo, tanto uma nova solução para um

problema, como um novo método ou dispositivo, ou uma nova forma ou objeto

artístico. Por meio da criatividade pode nascer algo concreto, como um produto, mas

também algo abstrato, como uma ideia. Segundo Gomes (2001), a criatividade é um

elemento-chave no processo de design na medida em que os designers constituem-se

em agentes culturais, com capacidade para interferir na cultura de uma nação.

Conforme Ostrower (1977, p. 17), a cultura pode ser entendida como as

“formas materiais e espirituais com que os indivíduos de um grupo convivem, nas

quais atuam e se comunicam, e cuja experiência coletiva pode ser transmitida através

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[ 269 ]

de vias simbólicas para a geração seguinte”. Nesse sentido, os designers tendem a

atuar apoiados nos saberes adquiridos com suas experiências e valores culturais,

fundamentadas no ambiente cultural no qual estão inseridos.

Sob essa perspectiva, a experiência é fundamental para a criatividade, contudo,

a inspiração eleva a qualidade da criação a um nível diferente. As ferramentas criativas

encorajam o utilizador a pensar em soluções de forma diferente, além de motivar novas

formas de pensamento. Dentro desse contexto, o processo criativo do designer no

desempenho do seu trabalho, designadamente a criação de um novo produto, é

facilitado com o recurso a analogias.

Para Baxter (2001), analogia é uma forma de raciocínio, em que as propriedades

de um objeto são transferidas para um outro objeto diferente, mas com certas

propriedades em comum. Assim, uma corda pode lembrar uma cascavel, quando

estiver enrolada no chão, ou uma rampa de escape para emergências, quando estiver

pendurada numa janela, ou uma ponte, quando estiver amarrada em dois postes.

Existem muitas maneiras de usar as analogias no processo criativo. Elas sugerem a

exploração de novas funções, novas configurações e novas aplicações de um produto.

Segundo Schild et al (apud SOARES, 2008), o uso de analogias é um princípio

básico do biodesign, pois a partir de uma função técnica que precisa ser realizada, ou

um novo produto a ser desenvolvido, os designers procuram na natureza por sistemas

com funções similares, em seguida transferem os atributos estruturais ou subsistemas

do sistema biológico para o sistema técnico que necessita ser desenvolvido. Dessa

forma, a utilização de analogias faz com que o problema original seja transferido para

um nível abstrato. Quando a solução é encontrada, ela é traduzida e adaptada à área do

problema original.

Desse modo, o biodesign pode considerar-se uma ferramenta criativa de

ecodesign, na medida em que se caracteriza por uma pesquisa sistemática de

mecanismos biológicos que possam contribuir para o design de produtos sustentáveis.

Não obstante, a natureza, principal fonte de inspiração para o biodesign, integra os

recursos existentes em um território, caracterizado por elementos culturais, materiais

e imateriais.

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[ 270 ]

19.3 BIoDEsIGN e terrItÓrIo

Conforme Saquet (2007, p. 24), “cada sociedade produz seus territórios e

territorialidades, em consonância com suas normas, regras, valores, com suas

atividades cotidianas”. Segundo o autor, território significa natureza e sociedade,

economia, política e cultura, ideia e matéria, identidade e representações.

Em nível complementar, Dematteis afirma que

O território é compreendido como uma construção social, com desigualdades (entre níveis territoriais, que variam do local ao planetário), com características naturais (clima, solo...) relações horizontais (entre as pessoas, produção, circulação...) e verticais (climas, tipos de culturas, distribuição do habitat...) isto é, significa uma complexa combinação particular de certas relações territoriais. (apud SAQUET, 2007, p. 57)

Dematteis concentra sua abordagem sobre o território nas dimensões sociais,

nas dinâmicas da economia, da política e da cultura, evidenciando o espaço geográfico

como meio no qual são representadas as relações dos indivíduos com a sociedade e

com mundo.

De modo semelhante, Rullani (apud SAQUET, 2007) afirma que o território

significa enraizamento, identidade e conexão, recursos ambientais e infraestrutura,

relações cotidianas, conhecimentos, experiências e lugar de vida.

Dessa forma, cada lugar precisa ser pensado em específico, como pertencente

a uma rede global em articulação. Destaca-se também a concepção de lugar que

pode ser compreendido como “contexto, mediação entre o particular e o universal,

e como componente de nosso sentido de identidade; como território e territorialidade

construídos histórica e geograficamente, pela relação efetiva entre os sujeitos e

destes com o ambiente de vida cotidiana.” (SAQUET, 2007, p. 109) Os recursos

específicos de um local, no qual se enquadram o conhecimento e os atores locais,

são a chave para viabilizar o desenvolvimento sustentável. Dentro dessa perspectiva,

o território constitui uma unidade ativa de desenvolvimento, que integra recursos

específicos intransferíveis de uma região para outra. Os recursos podem ser materiais,

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como jazidas, fauna e flora ou imateriais, como o saber fazer, ligado a história e a

cultura local.

Esses recursos resultam de uma história longa, de uma acumulação de

memória, de uma aprendizagem coletiva cognitiva, ou seja, surgem de processos

interativos carregados de cultura, de saber local. A emergência de tais recursos resulta

de costumes, de uma cultura elaborada num espaço de proximidade geográfica e

cultural por meio da reciprocidade. Eles constituem os territórios e possibilitam a

construção de uma argumentação que destaca a importância dos produtos com

identidade para o desenvolvimento. Os elementos dos quais fazem parte os costumes,

os valores e as crenças são compartilhados pelo grupo e produzem sua identidade

construída historicamente e que pode ser expressa de modo material e imaterial. Dentre

os elementos formadores da identidade que diferenciam os territórios, destacam-se a

arquitetura, paisagens, fauna, flora, pessoas, fatos históricos, vestimentas, idioma,

musica, dança, culinária, festas, artesanato, entre outros.

Nesse sentido, a associação do biodesign ao biorregionalismo envolve a

interação entre o mundo material, onde está localizada a natureza, e a imaterialidade,

lugar dos saberes e da cultura.

19.4 A VALorIZAção DA Arte e DA CULtUrA LoCAL Por MeIo DA InterDIsCIPLInArIDADe e DA PeDAGoGIA DA ALternÂnCIA

O surgimento de um “trabalho em parceria”, sem ser um “ato de vontade”,

busca por uma construção coletiva de conhecimentos a partir da ferramenta biodesign

e os instrumentos propostos pela Pedagogia da Alternância. A Interdisciplinaridade,

aqui entendida, como proposta viabilizadora dos princípios da criatividade e da

diversidade de culturas e capacidades artísticas de sujeitos, que fazem parte de um

processo de formação em alternância, e como princípio mediador entre as diferentes

disciplinas, sem ser reduzida a um denominador comum, abarcando, ao máximo, as

potencialidades de cada ciência, especialmente das ciências da natureza.

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Segundo Leff (2007, p. 38), a interdisciplinaridade surge de uma necessidade

de articulação prática de conhecimentos, constituindo “um dos efeitos ideológicos

mais importantes sobre o atual desenvolvimento das ciências”, pois se apresenta

“como o fundamento de uma articulação teórica”. Nessa óptica, Demo (1998), quando

se refere à interdisciplinaridade na pós-graduação, propõe a “realização de teses em

grupos”, visto que há ocorrência de pesquisas em equipe, que demandam estudos sob

várias perspectivas e pesquisadores de diferentes áreas.

Nessa abordagem, a interdisciplinaridade pode ser entendida como uma

condição fundamental do ensino e da pesquisa na sociedade contemporânea. De

acordo com Leis (2005), deve ser rejeitada qualquer tentativa de definição conceitual,

por se tratar de algo que não dispõe de uma definição apenas, existindo várias reações

interdisciplinares possíveis para um mesmo desafio do conhecimento. O autor sugere

ainda que esse conceito se aproxima de uma procura de equilíbrio entre a análise

fragmentada e a síntese simplificadora.

Neste artigo, o diálogo com a interdisciplinaridade não tem um enquadramento

conceitual definido. A discussão apresentada tem caráter experimental, como uma

prática pedagógica em fase de desenvolvimento, sem definições perfeitas. (LEIS,

2005). Jantsch e Bianchetti (2002) fazem um comparativo com o trabalhador

especializado e o sujeito capaz de projetar, executar e avaliar, sendo uma necessidade

do próprio capitalismo na atualidade da existência de trabalhadores menos parciais.

Com base nesses autores, assumimos neste trabalho uma visão de processo

interdisciplinar como “princípio mediador entre as diferentes disciplinas, não podendo

jamais ser elemento de redução a um denominador comum, mas elemento teórico-

metodológico da diferença e da criatividade.” Nesse sentido, a construção de projetos

encontra caminhos diversos no conhecimento das mais variadas ciências, quando o

diálogo procede de forma interdisciplinar.

Na abordagem de Floriani (2004), a experiência interdisciplinar está apoiada no

confronto entre saberes diferentes e organizados, desenhando estratégias de pesquisa

no âmbito do meio ambiente e desenvolvimento. Sabe-se, pois, que o que se pretende

fazer é construir uma metodologia capaz de compreender o que existe no universo.

Não é nada novo, se se partir do pressuposto que todo o trabalho das ciências é um

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ato de “tentar” entender a natureza e suas relações. Se, por natureza, o ser humano é

um ser curioso, racional, e vive de mudanças de paradigmas, assim, sendo constituindo

a ciência normal, a construção de projetos que tange o interdisciplinar é emergente.

Nesse ponto há necessidade de mudança de vocabulário para dar conta de novas

propostas, bem como a de buscar resultados não esperados.

De acordo com Burall (apud SOARES, 2008), uma abordagem interdisciplinar

é altamente desejável para maximizar a performance ambiental dos produtos artísticos

e com identidades culturais. Desse modo, a interdisciplinaridade se faz necessária no

estudo do ecodesign e da ferramenta de criatividade biodesign, uma vez que a questão

predominante no ecodesign diz respeito à integração de todos os sistemas feitos pelo

homem com os sistemas naturais e os processos na biosfera de forma artística, que

cada sujeito possa assim explorar suas potencialidades e criatividade.

Um tanto paradoxo é pensar que os projetos interdisciplinares surgem de

disciplinas, no entanto, a discussão se inicia em uma única disciplina, mas para se dar

conta da sua natureza complexa, faz-se necessário que as demais disciplinas, nas

suas abordagens, encontrem em seus conceitos a explicação para os fatos. Para tanto,

todo o projeto requer uma pesquisa, e essa não se dá ao acaso. Nessa pesquisa, as

disciplinas vão surgindo, e aos poucos, a interdisciplinaridade vai permeando o objeto

de estudo. Tomando como exemplo o meio ambiente, contendo componentes naturais,

tendo normalmente a abordagem física, química e biológica. Assim como os seres

humanos poderão ser analisados por meio da psicologia, sociologia, também pela

física, química e biologia. Ainda poderia abordar a temática histórica, geológica e

geográfica. Pela presença do ambiente, o biodesign pode ser visto como um espelho

natural, onde se instalam cores, formas, saberes e interações. Uma vez que o biodesign

lida com a aplicação das estruturas, procedimentos e princípios de sistemas biológicos,

converteu-se num campo interdisciplinar que combina a biologia com engenharia e

arquitetura. (SOARES, 2008)

Para dar conta do interdisciplinar, são apontados dois métodos por Japiassú,

sendo distintos e complementares: o método da tarefa, que se orienta para os

empreendimentos humanos e da história, e que se aplica à procura de um objeto

comum aos vários conhecimentos, culminando com a prática; e o método da reflexão

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interdisciplinar, que faz menção à reflexão sobre os saberes já constituídos e tem

como objetivo estabelecer juízo e discernimento. (ALVES et al., 2004).

Assim se constitui a proposta da Pedagogia da Alternância. Desde sua

idealização até a atualidade, é possível evidenciar realidades sendo transformadas nas

Casas Familiares Rurais (CFRs). Quando essa pedagogia é assumida, partindo de um

compromisso de todos a olhar os seus Instrumentos Pedagógicos, passando a ser,

portanto, o fio condutor das atividades desenvolvidas. Ressalta-se aqui na discussão

de Minayo (1994) sobre a proposta de Gusdorf, que trata do projeto interdisciplinar

como um dos grandes eixos da história do conhecimento evocando a “colocação em

comum”, em lugar da “justaposição de saberes”. Nesse sentido, partindo dessa

Pedagogia, que possibilita facilmente os trabalhos a partir de projetos interdisciplinares,

o educador propicia aulas investigativas e propõe o rompimento do estudo baseado

em um currículo linear. Dessa forma, os sujeitos envolvidos desde cedo nesse processo

educacional, adotarão como possibilidade de pesquisa futura, e ampliarão seu

raciocínio superando suas dificuldades. E sem reduzir-se a um denominar comum,

objetiva explorar as potencialidades de cada ciência, compreendendo os limites de

cada uma, sendo acima de tudo, “o princípio da diversidade e da criatividade”.

Conforme ressalta Lombardi (org) (2003), a educação deve assumir o papel de

construção de uma crítica que permita aos trabalhadores a discussão sobre qual

sociedade estão vivendo e seus limites e em qual gostariam de viver. Nesse sentido, é

possível reaprender lições, revalorizar o desvalorizado, apropriando-se da natureza

nos seus bens naturais, em presença da biodiversidade, com forte inclusão da

sustentabilidade. (FLORIANI, 2000).

19.5 PeDAGoGIA DA ALternÂnCIA: ArtICULAnDo ConHeCIMentos CIentÍFICos e sABeres LoCAIs

A interdisciplinaridade é uma prática que integra a dinâmica da Pedagogia da

Alternância inserida nos CEFFAs – Centros Familiares de Formação por Alternância,

nesse sentido, os mesmos se constituem em locais próprios para a integração de

saberes de diversas áreas.

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A Pedagogia da Alternância surgiu no sudoeste da França em 1935, (GIMONET,

2007) onde um grupo de agricultores insatisfeitos com o sistema educacional vigente,

preconizou uma metodologia voltada à formação humana integral de jovens rurais,

proporcionando um novo olhar para a qualificação sem deixar de lado seu meio familiar

de origem.

O povo do campo tem uma raiz cultural própria, um jeito distinto de trabalhar,

incluindo diferentes maneiras de viver e de se relacionar com o tempo, espaço, meio

ambiente e organização da família. Nesses moldes, a formação por alternância consiste

em um método no qual coexistem o tempo de ensino aprendizagem no espaço

educativo e o tempo de vivências práticas no meio rural familiar. Seus conteúdos

preconizam a inserção da família rural e suas potencialidades no meio educacional,

proporcionando diferentes maneiras de ver, julgar, agir e contribuir para o

desenvolvimento do meio socioprofissional dos jovens e suas famílias, “a alternância

é um verdadeiro sistema de formação que se constrói partindo da hipótese de que os

saberes locais podem gerar progresso, mas além do nível local.“ (GARCIA-

MARIRRODRIGA, 2009, p.167)

A Pedagogia da Alternância trabalha com quatro pilares contendo meios e

finalidades. Os meios se constituem como a “alternância” um método pedagógico, a

“associação” formada por pais, famílias, profissionais e instituições, as finalidades

“formação integral” por meio de um projeto profissional e “desenvolvimento do meio”

socioeconômico, humano, político. Sua metodologia é voltada a instrumentos que

possibilitam uma troca de conhecimentos entre propriedade e espaço educativo

partindo de um Plano de Formação construído pelas famílias, monitores e conselho

de administração.

O Plano de Formação propõe temas geradores que demonstram o que deve ser

estudado pelos jovens durante o período letivo. No que se refere à maneira de se

trabalhar este método, busca-se seguir alguns instrumentos chamados de “caderno de

alternância “contato individual” “plano de estudo”, “colocação em comum”, “visita

de estudo”, “visita a propriedade“, “curso”. Nesse contexto, o trabalho de construção

documental a partir de um plano quadro que não é fixo, que se reconstrói

permanentemente e se desenvolve partindo de um eixo diretor, demonstra uma trama

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articulada que contribui para que o conjunto de ações estejam conectadas entre si,

buscando uma inter-relação entre teoria e prática adaptada a uma realidade concreta

do meio de vivência.

Contudo, um Plano de Formação constituído de bases concretas e bem

estruturadas, exige um grau de interdisciplinaridade amplo e bem internalizado por

seus construtores. Os temas geradores (aspectos de interesse a serem estudados

pelas famílias) como metodologia adequada, trazem em evidência problemas e debates

esquecidos pela estrutura vigente do currículo escolar disciplinar.

Não obstante, essa metodologia desperta nas famílias uma autoestima e

valorização pessoal que transcende a técnica, uma capacidade de gerir condições que

lhes proporcionem a busca de necessidades e possibilidades de concretizarem seus

ideais. Soma-se a isso o fato de que os indivíduos, influenciados pelo progresso

consumista, tornam-se adaptados a uma realidade sem iniciativas. De modo análogo,

o modelo dominante de desenvolvimento coloca em xeque os valores e saberes

construídos pelas comunidades locais, fazendo com que a padronização do

conhecimento prevaleça no ambiente escolar, tornando os educandos indivíduos

influenciados por saberes fragmentados. Para tanto,

é necessário aplicar uma pedagogia sistêmica, que articule a vida e a escola, partindo da realidade familiar, social, cultural e profissional. Que integra os elementos curriculares com as necessidades e os objetivos dos jovens para permitir-lhes construir um projeto profissional de vida. (PUÍG, 2009, p. 62).

Nesse sentido, a valorização dos saberes e da cultura locais pode ser promovida

por meio da inserção de algumas práticas pedagógicas que atuem de forma integral,

ou seja, sejam intermediadas pela Pedagogia da Alternância, além de atuarem

diretamente com as experiências adquiridas no trato com o meio em que vivem.

O homem do campo se relaciona com a natureza em vários níveis vitais para a

sua sobrevivência, desse modo, obteve um controle limitado sobre a mesma, uma vez

que depende desta para a produção de alimentos, fornecimento de medicamentos e

tratamento de resíduos. Assim, ao estudar e analisar os processos formais e

construtivos da natureza, o homem do campo soluciona muitos de seus problemas

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vitais. Sob esse aspecto, a inserção do biodesign no Plano de Formação constitui-se

em uma alternativa para valorizar saberes adquiridos pelos mesmos ao longo do

tempo, saberes estes conectados à cultura e ao ambiente natural.

19.6 o BIoDEsIGN InserIDo no PLAno De ForMAção Dos CeFFAs

A construção de um modelo educativo interdisciplinar capaz de evidenciar a

cultura local oriunda do Plano de Formação demonstra um esforço do CEFFAs para

garantir um contexto formativo que preconize a participação das famílias por meio da

pesquisa participativa.

os educandos dos CEFFAs caracterizam-se por estar em constante contato

com o meio natural, buscando nele soluções para questões cotidianas. Desse modo,

de acordo com uma perspectiva interdisciplinar que integra conhecimentos das áreas

de Ciências da Natureza (Física, Química e Biologia) e Linguagens, Códigos e suas

Tecnologias (Artes, Design), à vivência cotidiana e que leva em conta o desenvolvimento

sustentável, evidencia-se uma oportunidade de inserção do estudo do biodesign. Este,

compreendido como ferramenta criativa, possui uma abordagem orientada a aplicação

das lições do design da natureza, sendo esta utilizada como modelo, vista como

propulsora para a criatividade.

Além disso, a inserção do biodesign nos CEFFAs apresenta alguns componentes

pedagógicos possíveis de serem trabalhados, tais como: a) o incentivo à descoberta;

b) a orientação para determinados comportamentos; c) a apresentação dos conteúdos

de forma interativa e visualmente atrativa.

Desse modo, os educandos devem apreciar a natureza, tanto do ponto de vista

artístico como científico, envolvendo um processo mental sofisticado, capaz de

manipular vários tipos de informação, mesclá-los num conjunto de ideias coerentes e,

finalmente, concretizar algumas dessas ideias por meio de produtos.

Sob essa perspectiva, a inserção do biodesign no Plano de Formação dos

Centros de Formação por Alternância realça a possibilidade de se trabalhar com a

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análise dos recursos locais ancorados no território compreendido no meio rural. Esses

recursos podem ser específicos, responsáveis pela formação da identidade cultural de

uma sociedade, ou podem ser recursos da biodiversidade incluindo produtos finais

como nozes, castanhas e frutos, matérias-primas como óleos essenciais, pigmentos,

látex, resinas, gomas, plantas medicinais, fibras; produtos da fauna; madeiras; além de

serviços gerados a partir de elementos da biodiversidade. Vale ressaltar que eles estão

relacionados à manutenção e à valorização de práticas e saberes das comunidades, e

com a qualidade de vida e do ambiente. (KRUCKEN, 2009)

A natureza é uma fonte infinita de inspiração criativa. Logo, o biodesign, como

ferramenta de criatividade, é fundamental na visualização de oportunidades para

agregar maior valor aos recursos, uma vez que estes são originados em um determinado

território e ecossistema, a partir de modos de saberes relacionados com o cultivo, o

processo de fabricação, as receitas e formulações. (KRUCKEN, 2009)

Dessa forma, o biodesign aspira à participação na natureza no processo de

valorização de produtos locais e por isso constitui uma maior contribuição para a

preservação do meio, na medida em que, uma transição para a sustentabilidade,

mediada pelo design, requer uma abordagem sistêmica e interdisciplinar da natureza e

da cultura, dentro de um sistema dinâmico e interligado.

ConsIDerAçÕes FInAIs

o presente artigo versou sobre a integração de saberes e valorização da

cultura local por meio do biodesign, constituindo-se em um dos estudos realizados

no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional da UTFPR campus

Pato Branco.

A partir das ideias expostas anteriormente compreende-se a necessidade de

tratar os assuntos ligados à valorização da cultura local de forma interdisciplinar. Nesse

sentido, a Pedagogia da Alternância praticada nos CEFFAs desenvolve um contexto de

religamento de práticas e hábitos que a modernidade desfez, em que o diálogo está em

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contínuo confronto com o mundo atual, propondo uma valorização do local intermediado

pela interdisciplinaridade.

Sobretudo, a integração de saberes e a valorização da cultura local por meio do

biodesign, além de promoverem o estudo dos contextos de vida dos educandos,

funcionam como facilitadora da aprendizagem, à medida que integram diversas áreas

do conhecimento e permitem o desenvolvimento de competências e mudanças de

comportamentos, pois aprender por meio do biodesign é uma forma de educação para

o desenvolvimento sustentável.

reFerênCIAs

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