c. s. lewis; j. r. r. tolkien - o dom da amizade

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COLIN DURIEZ O dom da amizade Tolkien e C.S. Lewis Tradução de Ronald Kyrmse Tolkien.p65 5/10/2006, 12:00 3

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Page 1: C. S. Lewis; J. R. R. Tolkien - O Dom Da Amizade

COLIN DURIEZ

O dom da amizade

Tolkien e C.S. Lewis

Tradução de Ronald Kyrmse

Tolkien.p65 5/10/2006, 12:003

Page 2: C. S. Lewis; J. R. R. Tolkien - O Dom Da Amizade

Título original: Tolkien and C.S. Lewis: the gift offriendship

Copyright © 2003 by Colin Duriez

Direitos de edição da obra em língua portuguesa noBrasil adquiridos pela Editora Nova Fronteira S.A.Todos os direitos reservados. Nenhuma parte destaobra pode ser apropriada e estocada em sistema debanco de dados ou processo similar, em qualquerforma ou meio, seja eletrônico, de fotocópia, grava-ção etc., sem a permissão do detentor do copirraite.

1ª edição

EDITORA NOVA FRONTEIRA S.A.Rua Bambina, 25 – Botafogo – 22251-050Rio de Janeiro – RJ – BrasilTel.: (21) 2131-1111 – Fax: (21) 2537-2659http://www.novafronteira.com.bre-mail: [email protected]

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonteSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

D961d Duriez, Colin, 1947-O dom da amizade – To-lkien e C.S.

Lewis / Colin Duriez ; tradução de RonaldKyrmse. – Rio de Janeiro : Nova Fronteira,2006

Tradução de: Tolkien and C.S. Lewis :the gift of friendshipApêndicesInclui bibliografiaISBN 85-209-1911-1

1. Tolkien, J. R. R. (John Ronald Reuel),1892-1973. 2. Lewis, C. S. (Clive Staples),1898-1963. 3. Tolkien, J. R. R. (John RonaldReuel), 1892-1973 – Amigos e companhei-ros. 4. Lewis, C. S. (Clive Staples), 1898-1963 – Amigos e companheiros 5. Litera-tura inglesa – História e crítica 6. Escritoresingleses – Séc. XX – Biografia. I. Título.

CDD 820.9CDU 821.111.09

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Aos irmãos

Ian, Barbara, Stephen,

Elizabeth, Paul, Julian

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Sumário

Prefácio 9

1 Os anos de formação (1892-1925) 15

2 Encontros de mentes e imaginações:“Tolkien e eu falávamos de dragões...” (1926-1929) 47

3 Um mundo em forma de História: “Mythopoeia” (1929-1931) 77

4 Os anos 1930: O contexto da ortodoxia imaginativa 99

5 Surge o Inklings: Amizade compartilhada? (1933-1939) 123

6 Duas viagens para lá e de volta outra vez:The Pilgrim’s Regress e O hobbit (1930-1937) 139

7 Espaço, tempo e o “novo O hobbit” (1936-1939) 153

8 A 2ª Guerra Mundial e depois:Charles Williams chega a Oxford (1939-1949) 171

9 O guarda-roupa de um professor e anéis mágicos(1949-1954) 197

10 Surpreendido por Cambridge e desapontado pelaalegria (1954-1963) 219

11 Adeus às Terras da Sombra (1963-1973) 245

12 O dom da amizade: “Quem o teria merecido?” 257

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Apêndice A: Uma breve cronologia de J.R.R. Tolkien e C.S. Lewis 277

Apêndice B: A duradoura popularidade de J.R.R. Tolkien eC.S. Lewis 291

Agradecimentos 301

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Prefácio

Faz muito tempo que tenho consciência da amizade entre J.R.R.Tolkien e C.S. Lewis, desde a primeira vez em que, como estu-dante, li a autobiografia deste último. Mas ao escrever este livrosurpreendi-me descobrindo o quanto essa amizade foi extrema-mente forte e persistente, a despeito dos atritos e dos pontosbaixos que talvez se deva esperar que ocorram ao longo de quasequarenta anos. Até onde sei, este é o primeiro livro que focalizaprimariamente sua notável associação, literária e também pessoal.

J.R.R. Tolkien, é claro, é um nome bem conhecido no mun-do todo, por causa da fenomenal popularidade de seu livro OSenhor dos Anéis, e especialmente desde a trilogia de filmes dePeter Jackson. De fato, todo um país, a Nova Zelândia, onde osfilmes foram rodados, tornou-se a “Terra-média”. Hobbits, orcs,Mordor e um anel mágico quase não precisam mais ser expli-cados em muitos pubs, escolas e campi ao redor do globo.

Menos conhecida é a importante e complexa amizade deTolkien com C.S. Lewis, seu colega acadêmico em Oxford. Tol-kien reconheceu que sem o persistente encorajamento de seuamigo, ele jamais teria terminado O Senhor dos Anéis. Esta gran-de história, juntamente com os temas conexos de O Silmarilllion,teria permanecido apenas como um passatempo pessoal. A qua-lidade de sua amizade literária convida-nos a fazer comparações

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com as de William Wordsworth e Samuel Taylor Coleridge,William Cowper e John Newton, e G.K. Chesterton e HilaireBelloc. O Barbárvore de Tolkien, o ent que criou, foi inspiradopor Lewis, em especial sua voz profunda e às vezes enfática: Brm,hum!

C.S. Lewis também desfruta de grande popularidade emtodo o mundo, em particular pela sua série de livros infanto-juvenis As crônicas de Nárnia. Como enfatiza o título da série, ofoco dessas histórias é um outro mundo imaginário. Ao criaresse mundo para as crianças, ele estava imerso no desenrolardos eventos da Terra-média, que Tolkien lia para ele à medidaque os capítulos de O Senhor dos Anéis estavam sendo escritos.Sua primeira história de Nárnia, O leão, a feiticeira e o guarda-roupa, se tornou um importante filme dirigido por AndrewAdamson, cujas obras anteriores incluem Shrek.

Não era apenas a dívida de Lewis com Tolkien que era enor-me. Toda a ficção de Lewis, depois que os dois se conheceram naUniversidade de Oxford em 1926, leva a marca da influência deTolkien, seja em nomes que usou, seja na criação de convincen-tes mundos de fantasia. O próprio Tolkien pode ser reconhecidono personagem central das histórias de ficção científica de Lewis,o dr. Elwin Ransom. Foi Tolkien quem ajudou a persuadir Lewis,por muitos anos ateu, de que as afirmações da história cristã,humildemente ambientada na Palestina do século I, não deveri-am ser ignoradas, por apelar tanto ao intelecto quanto à imagi-nação. Foi também Tolkien quem mais tarde persuadiu Lewis aaceitar uma cátedra que lhe foi oferecida pela Universidade deCambridge, depois que ele a recusara não uma, mas duas vezes.Lewis lecionara em Oxford por quase trinta anos, mas em trêsocasiões fora preterido para uma cátedra nessa instituição.

A amizade entre Tolkien e Lewis durou desde pouco de-pois de se conhecerem, em 1926, até a morte de Lewis, em 1963.Como em todas as amizades, especialmente as que duram

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tanto assim, houve altos e baixos. Com Lewis e Tolkien, umclaro esfriamento ocorreu nos anos finais, apesar de as seme-lhanças que os uniam terem sido sempre mais fortes que asdiferenças que os separavam.

Merecidamente, Tolkien e Lewis foram individualmente as-sunto de importantes biografias. Na composição deste estudodo seu relacionamento, tenho uma enorme dívida com os bió-grafos principais — Humphrey Carpenter, Walter Hooper, o fa-lecido Roger Lancelyn Green, George Sayer e Andrew Wilson.Também há muitos estudos significativos sobre facetas das suasvidas e obras, incluindo o relato sobre os primeiros anos de vidade Lewis feito por David C. Downing e o estudo de Tom Shippeysobre Tolkien como filólogo. O tamanho de minha bibliografiadá uma indicação da enorme quantidade de estudos disponí-veis, proporcionando uma fascinante visão de aspectos de suasobras profissionais, seus escritos e sua ficção. Tentar capturar afugidia e complexa amizade — que se estende por tantos anos desuas vidas — impôs a necessidade de seleção. Como parte desseprocesso, criei vinhetas no começo da maioria dos capítulos, eocasionalmente em outros lugares. Elas são breves reconstruçõesimaginárias de momentos centrais da história de suas vidas e desua amizade, baseadas nos fatos que foram documentados. Opulso vivente de sua amizade, de fato, transparece tanto na suaprodução ficcional quanto em referências passageiras em diári-os, cartas e nas reminiscências dos amigos. Qualquer relato daamizade deve manter os olhos bem abertos para seus escritos,bem como para os acontecimentos e os principais relacionamen-tos de suas vidas. Ao escrever este livro, tentando uma aborda-gem de tão amplo espectro, admirei-me com algumas das afir-mativas enganosas que têm sido feitas com autoridade,afirmativas que não podiam passar incontestes. Cito um impor-tante dicionário de literatura do século XX (pouparei os ruborese não darei seu nome): “Lewis era [...] um misógino, sendo de

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opinião de que as mentes das mulheres são intrinsecamente in-feriores às dos homens. Não é de surpreender que seus relacio-namentos com as mulheres fossem problemáticos em sua maio-ria.” O autor do verbete obviamente não tinha consciência dabenevolência de Lewis para com as crianças refugiadas em suacasa durante a guerra, de como cuidou da mãe adotiva por maisde trinta anos, de como acolheu dois enteados, de suas meticu-losas respostas àqueles que lhe escreviam com seus problemas,de suas doações à caridade — os exemplos poderiam multipli-car-se. Quanto à sua visão das mentes femininas, basta ler o quediz sobre a inteligência de Joy Davidman, notar sua amizade comDorothy L. Sayers, uma das melhores mentes teológicas de suageração, ou observar como mudou seu argumento contra o na-turalismo depois de debater com a filósofa Elizabeth Anscombepara se perceber que a afirmação é seriamente enganosa. Umerro adicional ocorre mais adiante no mesmo verbete do dicio-nário: “Lewis e Tolkien, a despeito de sua amizade, desprezavamcada um o que o outro escrevia para crianças.” Tolkien não gos-tava de As crônicas de Nárnia (achava que estavam maculadas dealegoria), mas não desprezava as histórias. Quanto a Lewis, elenunca deixava de elogiar O hobbit, reconhecendo logo após suapublicação que provavelmente se tornaria um clássico da litera-tura infanto-juvenil.

Mencionei minha enorme dívida com o trabalho minucio-so dos grandes biógrafos de Lewis e Tolkien. É claro que hámuitas outras dívidas a reconhecer, não sendo menores as exis-tentes com as muitas pessoas — numerosas demais para no-mear — que me incentivaram a continuar explorando essa ami-zade singular. Essas pessoas vêm de diversos países — Inglaterra,Irlanda, Estados Unidos, Espanha, Itália, Suécia e Polônia. Fo-ram particularmente importantes para mim a Tolkien Societyno Reino Unido; o Wade Center e sua equipe sempre útil, e ahospitalidade da sra. Mary Bechtel em Wheaton, Illinois; a C.S.

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Lewis Society da Universidade de Oxford; e amigos de St. Luke’sem Thurnby. Obrigado, Lyn Hamilton, por guiar-me na caóti-ca zona urbana de Birmingham num dia úmido de ventania,enquanto buscávamos os vestígios dos lugares da infância deTolkien — e por ler o manuscrito. Obrigado da mesma forma avocê, David C. Downing, cujas percepções são sempreesclarecedoras, por lê-lo. Walter Hooper, obrigado por seu in-centivo ao projeto (apesar de você provavelmente, como é suacaracterística, não ter consciência do quanto foi útil). Apresso-me em acrescentar que quaisquer erros que ainda restem sãomeus próprios. Com escritores como Lewis e Tolkien, natural-mente existe um formidável conhecimento de suas obras entreleitores comuns, e por isso peço-lhes para serem pacientes comminhas falhas. O que pode parecer ocasionalmente umadesconcertante omissão é simplesmente a necessidade de nãosobrecarregar meu livro com detalhes que pertencem com pro-priedade a um estudo mais especializado. (Ainda não sei sebalrogs têm asas, a despeito da excelente visualização no filmeA Sociedade do Anel, mas acho que descobri por que os hobbitscomem fish and chips1. Da mesma forma, não estou totalmentecerto de por que Lewis não contou a Tolkien sobre seu casa-mento com Joy Davidman, apesar de fornecer as melhores ra-zões que consegui descobrir, e simplesmente não sei se Lewistinha intimidades físicas com sua mãe adotiva, mas duvido.)Obrigado ao Leicester Writers Club pelo estímulo e pela cama-radagem. Obrigado também, Jan-Erik Guerth, meu editor, porajudar-me a prosseguir na jornada, e por seu incentivo e seusconselhos sempre sábios.

COLIN DURIEZ

Leicester, fevereiro de 2003

1 Peixe frito com batatas fritas, um apreciado prato popular na Inglaterra. (N.T.)

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Os Anos de Formação

(1892-1925)

Dois meninos estão agachados à beira de um aterro ferroviárioem Birmingham, meio ocultos na selvagem abundância de suasflores e capins. O mais alto tem uns nove anos de idade, e seuirmão Hilary tem dois anos a menos. É um dia modorrento noalto verão de 1901, quando o próprio tempo está de férias. Osúnicos sons são de um bonde ocasional na extensão semi-urba-na por trás deles, onde moram, ou o guincho de vagões de car-vão sendo manobrados na carvoeira perto da estação de trens deKing’s Heath. O mais velho está mostrando ao irmão uma plan-ta minúscula e colorida que descobriu na entrelaçada vegetaçãorasteira. Então vem o augúrio que estavam aguardando: as len-tas e rítmicas rajadas de um trem a vapor que se aproxima delesvindo do Sul. Eles se põem de pé para enxergarem melhor a luzi-dia locomotiva negra que emerge da tênue névoa de calor, tendoatrás de si a curva de seus numerosos vagões de carvão. Este tremvem dos vales de mineração de Gales do Sul2, a mais de 150 qui-

2 Região ao sul do País de Gales, que faz fronteira com o Meio-Oeste da Ingla-terra. (N.E.)

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lômetros de distância, trazendo um carvão rico e úmido paraalimentar os fogos da revolução industrial que já expandiuBirmingham a um tamanho quatro ou cinco vezes maior do quenos noventa anos anteriores, e que logo a expandirá ao dobrodisso. À medida que os vagões de carvão passam com estrondomuito perto deles, fazendo o chão tremer, o menino mais velhoobserva atentamente os nomes que trazem no flanco, como fezmuitas vezes antes, excitado pela beleza numinosa de topônimosque ainda não consegue pronunciar, nomes como Blaen-Rhondda, Maerdy, Senghenydd, Nantyglo e Tredegar. O nome domenino é John Ronald Reuel Tolkien, e a família e os amigos oconhecem por Ronald ou John Ronald.

Quase setenta anos depois, em 1970, J.R.R. Tolkien revelaparte do significado desse encontro com os topônimos galesesem uma entrevista que concede à BBC. De muitas maneiras,essa epifania de menino assinala o nascimento das histórias deseu mundo inventado da Terra-média3, um mundo de hobbits,elfos e seres mais obscuros, como orcs e dragões. Naquela en-trevista, Tolkien explica seu fascínio pelos topônimos: “O galêssempre me atraiu pelo estilo e som, mais que qualquer outralíngua; apesar de no começo eu só o ver em carros de carvão,sempre quis saber do que se tratava.” Explica que, ao escrever,invariavelmente começa por um nome. “Dê-me um nome e eleproduz uma história, normalmente não o inverso.” Diz quedentre as línguas modernas o galês, e mais tarde o finlandês,foram a maior inspiração de suas obras, incluindo O Senhordos Anéis. O galês, de fato, inspiraria um dos dois ramos prin-cipais das línguas élficas que inventou, e muitos dos nomes desua mitologia, como Arwen, Anduin, Rohirrim e Gwaihir.

3 Terra-média não é o nome de todo o mundo secundário criado por Tolkien,mas sim de um dos seus continentes — mais ou menos equivalente à Europa —onde se desenrola, por exemplo, o enredo de O Senhor dos Anéis. (N.T.)

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Deixamos os irmãos naquele aterro ferroviário, com o fu-

turo diante deles, e planamos depressa, como um pássaro, aci-ma de Birmingham. Agora vemos a vasta intromissão da cida-

de nos pequenos campos verdes e nos bosques das WestMidlands4 da Inglaterra — o Condado de Tolkien. Enxerga-

mos como somente um balonista ocasional enxergou: estradaspoeirentas irradiando ondulantes da cidade, atravessando as

variadas tonalidades da intrincada colcha de retalhos da Ingla-terra rural. Rios e canais cortam os suaves morros e as brandas

ondulações em direção ao rio Severn ao Sul. Mesmo no calordo verão, este verde refresca os olhos. Voamos por sobre o co-

ração da cidade apinhada e depois seguimos a principal ferro-via rumo ao Norte, ignorando seus numerosos ramais, e aca-

bamos alcançando Crewe, depois o canal Mersey e o alvoroçodo porto de Liverpool, e o verde Mar da Irlanda. Aventurando-

nos para o Oeste, a Ilha de Man passa por baixo de nós, e logodepois a Península de Ards no norte da Irlanda, as montanhas

Mourne em nosso horizonte ao Sul. Esta é a região da Nárniade Lewis, o mundo que inventará em anos vindouros, inspira-

do pela Terra-média de Tolkien. Assim como Ulster, que passadebaixo de nós, esse mundo de Nárnia terá uma costa oriental,

e, no interior, uma paisagem como o Condado de Down, compântanos e charnecas ao Norte e montanhas ao Sul. Seguimos

contornando a península até Belfast Lough, cheio de navios,como de costume, com a cidade reluzindo ao longe. Os gran-

des guindastes das docas de Harland and Wolff — à época osmaiores estaleiros do mundo — podem ser vistos agora, e na-

vios imponentes como o Olympic e mais tarde o Titanic to-mam forma graças ao labor de engenheiros habilidosos e

inventivos.

4 Meio-Oeste. (N.T.)

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Mais ou menos ao mesmo tempo em que Tolkien está fasci-nado pelos topônimos galeses nos carros de carvão, Clive StaplesLewis, bem mais jovem, tem sua própria epifania. Seu irmão WarrenLewis, de seis anos, entra correndo no quarto de crianças deDundela Villas, uma casa robusta bem próxima às margens deBelfast Lough, não longe das docas de Harland and Wolff. Traz atampa de uma lata de biscoitos cheia de musgo, flores e gravetospara mostrá-la, orgulhoso, ao irmão menor. Este é o primeiro en-contro com a beleza que Lewis relembrará mais tarde, uma expe-riência crua e “incuravelmente romântica”. Ela permite que ele,ainda com menos de três anos de idade, veja de um modo novo ojardim lá fora, onde ele e o irmão “Warnie” brincam. Pois Warrentransformou a tampa em um jardim-miniatura de mentirinha,revestindo-a cuidadosamente com musgo e espetando flores egravetos na terra com arte. Até ali, ele e o irmão brincaram em seujardim real, ignorando até mesmo a forma das folhas. Agora Lewisvê seu jardim, e o mundo natural ao seu alcance infantil, atravésda criação de Warren. “Isso me deu consciência da natureza”, lem-bra ele mais tarde em Surpreendido pela alegria, “não de fato comoum depósito de formas e cores, mas como algo fresco, orvalhoso,vigoroso, exuberante.” Sua importância aumentará ainda mais nalembrança, transformando-se em uma imagem de paraísoinalcançável, um meio de capturar um anseio inconsolável que elechamará de “alegria” ou Sehnsucht5, e que se torna um claro fiocondutor que perpassa toda a sua obra. Na verdade, o jardim debrinquedo do irmão contribui para sempre com sua imaginaçãodo Paraíso. A epifania de Lewis marca o começo de um processohabitual de “ver desde” — olhar desde as lembranças, a literaturaou qualquer outra lente para apanhar a qualidade, sempre fugidiamas inconfundível, de alegria e beleza que ele busca sem cessar.Passar-se-ão muitos anos — na verdade quase metade de sua vida

5 “Saudade” ou “nostalgia” em alemão. (N.T.)

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— até que encontre algo concreto e satisfatório o bastante quepossa ser verdadeiramente visto através dessas experiências que en-gendram a alegria. É nesse ponto que relutantemente admite queestava errado ao crer que Deus não existe, ou ao crer que ele émeramente uma força manifesta na natureza. Descobre que Deusé mesmo a fonte de nossa existência. Como dirá Lewis: “Ele é ocentro opaco de todas as existências, a coisa que simples e inteira-mente é, a fonte da fatualidade.”6

Tolkien e Lewis continuarão a ter infâncias notavelmentedominadas pela imaginação. Lewis, em Belfast, criará (com o ir-mão Warren) um mundo de animais falantes chamado Boxen eAnimal Land, enquanto Tolkien, nas Midlands inglesas, inventa-rá línguas e sucumbirá ao feitiço de idiomas existentes como ogalês e o finlandês, e, mais tarde, o antigo gótico. Significativa-mente, ambos perderão as mães; Lewis, aos nove anos, Tolkien,aos doze. Tolkien já perdeu o pai; isso foi numa idade em que amemória apenas começava a se organizar o suficiente para pro-duzir lembranças; Lewis alienar-se-á do pai pela morte da mãe epelo que sentirá, na época, ser um banimento para a Inglaterra,para um infeliz internato. Tanto Tolkien quanto Lewis começa-rão a escrever a sério durante a 1ª Guerra Mundial, em que Lewisserá ferido e Tolkien perderá dois de seus amigos mais íntimos.

u

Tolkien nasceu em 3 de janeiro de 1892 em Bloemfontein, Áfricado Sul, e foi o primeiro filho dos cidadãos ingleses Arthur Reuel

6 A vinheta baseia-se em referências de Tolkien aos carros de carvão, em cartas eentrevistas. A linha ferroviária ainda passa perto dos fundos de sua casa, WestfieldRoad, nº 86, mas a estação de King’s Heath desapareceu. O relato sobre o jardimde Warren na lata de biscoitos e seu significado encontra-se em Surpreendidopela alegria, de C.S. Lewis, p. 3-4. “Ele é o centro opaco de todas as existênci-as[...]”: C.S. Lewis, Milagres, capítulo 11.

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Tolkien e Mabel, nascida Suffield. Arthur Tolkien nascera emBirmingham em 1857 e viajara à África do Sul para juntar-se aoBank of Africa numa ascensão de carreira, e acabou numa im-portante filial em Bloemfontein, a mais de mil quilômetros daCidade do Cabo. Mabel também nascera em Birmingham, mastreze anos depois, em 1870. Sua família vinha originariamentede Evesham, Worcestershire, onde Hilary, irmão mais novo deTolkien, acabou se estabelecendo como hortelão. Tolkien iria iden-tificar-se com as West Midlands rurais, em especial comWorcestershire, e com a família da mãe, os Suffield, mais do quecom os urbanos Tolkien. Em Bloemfontein a família morava “so-bre o banco na rua Maitland: para além ficavam as planícies po-eirentas e sem árvores da estepe”. Uma carta de Mabel Tolkienaos sogros descreve o bebê Tolkien como parecendo-se com “umafada” quando usava babados e sapatos brancos e um avental. Elatambém o descreve, na mesma carta, como “ainda mais elfo”quando despido. Em 17 de fevereiro de 1894, nasceu Hilary ArthurReuel, o que proporcionou a Tolkien um companheiro que per-maneceu após a morte de seus pais, um paralelo nos anos deinfância ao companheirismo de Lewis e seu irmão Warnie.

Em abril de 1895, Mabel Tolkien e os filhos zarparam pa-ra a Inglaterra em consideração à saúde de Tolkien. O garotodava-se mal com o calor de Bloemfontein. Arthur Tolkien fi-cou para trás, absorto em suas responsabilidades profissionais.Os três foram morar com os pais de Mabel e sua irmã Jane, naminúscula casa da família na Ashfield Road, King’s Heath,Birmingham. Tolkien ficou confuso com a mudança, e às vezesesperava ver a varanda da Bank House em Bloemfontein proje-tando-se da casa dos Suffield. Muitos anos depois recordou:“Ainda me lembro de descer a rua em Birmingham e me per-guntar o que teria acontecido à grande sacada, o que aconteceucom o terraço.” Também era uma estranha novidade ver pelaprimeira vez uma árvore de Natal após o “calor estéril, árido”.

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Veio então uma notícia que mudou a família mais do quea geografia, e que por conseqüência iria mergulhá-la na pobre-za. A 15 de fevereiro de 1896 Arthur Tolkien faleceu, após breveconvalescença, de febre reumática e hemorragia grave. Comapenas 39 anos de idade, foi sepultado no antigo cemitério naesquina das ruas St. George’s e Church em Bloemfontein. Ofuneral já havia acontecido quando Mabel recebeu as informa-ções que preenchiam as secas palavras do telegrama. A famílianão tinha dinheiro nem para pensar em visitar o túmulo a mi-lhares de quilômetros de distância.

Naquele verão a família, consternada, mudou-se para a ruaGracewell, nº 5, um chalé vistoso e de bom tamanho, semi-destacado, quase em frente à beira do lago do Moinho deSarehole, que ficava então cerca de um quilômetro e meio forada cidade de Birmingham. Apesar de próximos à cidade, esta-vam no próprio coração da Warwickshire rural. Com cavalos ecarroças apenas, estava “há muito tempo na quietude do mun-do, quando havia menos barulho e mais verde”. Para Tolkienesse se tornou seu lar, associado a lembranças da mãe que logohaveria de perder: “O Condado é muito parecido com o tipo demundo em que primeiro tomei consciência das coisas[...] Se asua primeira árvore de Natal é um eucalipto murcho e se vocênormalmente se aborrece com calor e areia — então [...] bemna idade em que a imaginação está se abrindo, encontrar-se derepente num tranqüilo vilarejo de Warwickshire, acho que issoengendra um amor especial pelo que se poderia chamar de pai-sagem inglesa das Midlands centrais, baseada em boa água,pedras e olmos e riozinhos tranqüilos e assim por diante, e éclaro, gente rústica em volta.” O Moinho de Sarehole (aindaconservado na Birmingham de hoje) produziu uma impressãoespecial em sua imaginação: “Havia um velho moinho que real-mente moía grãos de milho com dois moleiros, um grande lagocom cisnes, uma cova de areia, um maravilhoso pequeno vale

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com flores, algumas casas de aldeia antiquadas e, mais adiante,um riacho com outro moinho.” Tolkien apelidou o aterrorizantefilho do moleiro de “O Ogro Branco”. As crianças locais, des-confiadas dos seus cabelos compridos (costumeiros para me-ninos de classe média), zombeteiramente chamavam Tolkien eHilary de “raparigas”. (Tipicamente, Tolkien ficou fascinadocom a denominação.) Em uma carta, Tolkien fala do velhomoleiro e do filho infundindo-lhe terror e espanto quando eragarotinho. Em outra carta escreveu sobre passar os anos de in-fância “no ‘Condado’ numa era pré-mecânica”. Acrescentou queera um hobbit de fato, porém não no tamanho. Como oshobbits, apreciava jardins, árvores e terras cultivadas que nãofossem mecanizadas. Também ele fumava cachimbo e gostavade comida simples. Nos insípidos meados do século XX ousavausar coletes ornamentais. Gostava de cogumelos recém-vindosdo campo e de expressar seu senso de humor muito básico, quealguns achavam enfadonho. Também registrou que se deitavatarde e, quando podia, levantava-se tarde. Como os hobbits,viajava pouco. Em O Senhor dos Anéis escreveu sobre um moi-nho na Vila dos Hobbits, localizado à margem do Água, que foidemolido e substituído por uma construção de tijolos que po-luía o ar e a água.

Pode ter sido por volta dessa época que começou outra im-portante característica de sua imaginação: seu sonho recorren-te com uma grande inundação, uma onda verde. Eventualmente,após uma longa gestação, essa parte de suas lembranças foi in-corporada ao mesmo mundo imaginado onde ficava o Conda-do, a Terra-média. O sonho tornou-se o relato ficcional deTolkien sobre a destruição de Númenor, seu mito de Atlântida.

Em 1900 Tolkien ingressou na King Edward’s School, umaescola primária que então ficava perto da estação New Street,Birmingham, com as mensalidades pagas por um tio. Nesse tem-po, Mabel Tolkien e sua irmã May foram recebidas na Igreja

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Católica Romana a despeito de uma dolorosa oposição de suafamília protestante e dos sogros Tolkien, o que resultou numapobreza aflitiva que não era costumeira para Mabel. Mudaram-se do ambiente rural para um lugar logo no interior do perí-metro urbano, em Moseley, um pouco mais perto do Oratóriode Birmingham. Fundado pelo cardeal Newman em 1859, estese tornara o lar espiritual de Mabel. O visionário John HenryNewman (1801-1890) muito fizera para revitalizar o catolicis-mo romano, levando sua erudição de Oxford, sua imaginaçãoe sua independência para a vida daquela Igreja. Moseley ficavana linha de bonde até o centro da cidade, o que facilitou aTolkien o transporte até a escola. No ano seguinte os Tolkientiveram de mudar-se outra vez, para uma fileira de casas dan-do de fundos para uma ferrovia perto da estação de King’sHeath, e foi lá que Tolkien descobriu os trens de carvão por-tando nomes galeses. Mais tarde mudaram-se para uma casacaindo aos pedaços na Oliver Road (hoje demolida como partedas melhorias da zona central), no distrito de Edgbaston, apouca distância a pé do oratório e perto da represa. O horizon-te era dominado por duas torres que ainda existem. Os histo-riadores locais afirmam que foram a inspiração para as torresde Gondor na Terra-média de Tolkien, Minas Morgul e MinasTirith, mas não se assemelham a elas. Uma é Perrott’s Folly7,com 29 metros de altura, talvez a construção mais esquisita deBirmingham, erguida em 1756. A outra é a torre da Usina Hi-dráulica Vitoriana. Por um tempo os irmãos Tolkien deixarama King Edward’s School e se matricularam na escola do pró-prio Oratório, St. Philip’s, onde as mensalidades eram meno-res. Em 1903, no entanto, Tolkien obteve uma bolsa de estudosda King Edward’s, a apenas três quilômetros de sua casa emEdgbaston, e voltou a estudar ali no outono. Tolkien fez a pri-

7 “Insensatez de Perrott”. (N.T.)

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meira comunhão naquele ano, marcando sua devoção à fé ca-

tólica romana da mãe.

Através do seu contato com a St. Philip’s School, Mabel e

os filhos conheceram o padre Francis Xavier Morgan, que iria

transmitir a Tolkien alguns dos ideais de educação do cardeal

Newman. Francis Morgan era um pároco ligado ao Oratório,

e trabalhara com Newman. O padre Morgan proporcionou

amizade, conselhos e dinheiro à família desprovida de pai.

Como os meninos freqüentemente estavam doentes e a mãe

estava desenvolvendo diabetes, ele lhes possibilitou mudarem-

se para o bonito chalé do Oratório, perto do retiro rural do

Oratório no vilarejo próximo de Rednal, bem no interior de

Worcestershire, no verão de 1904. Ali a atmosfera rural era como

a de Sarehole. Mabel morreu lá alguns meses mais tarde e o

padre Morgan, agora tutor dos meninos, assumiu a responsa-

bilidade por eles. Ajudou-os financeiramente, encontrou alo-

jamento para eles em Birmingham e levou-os a viagens de fé-

rias. Inicialmente os irmãos Tolkien mudaram-se para viver com

sua tia Beatrice, irmã de Mabel, na Stirling Road, Edgbaston.

Compartilhavam o quarto do andar superior na sombria casa

dela, que tinha uma ampla vista de miríades de telhados, com

chaminés de fábricas ao longe.

Tolkien lembrava-se da mãe como mulher de grandes dons,

beleza e espírito. Ela estava profundamente familiarizada, per-

cebeu ele, com o sofrimento e a dor. Ele acreditava implicita-

mente que sua morte prematura, aos 34 anos, fora precipitada

pela “perseguição” de sua fé católica romana pelos parentes não-

conformistas. O impacto de sua morte sobre os irmãos, acu-

mulado à perda anterior do pai, mal pode ser imaginado. “Foi

a minha mãe”, escreveu Tolkien, “que me ensinou (até eu obter

uma bolsa de estudos), a quem devo meus gostos pela filologia,

em especial das línguas germânicas, e pelo romance.” Aqui, “ro-

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mance” significava para Tolkien histórias e poesias que davamum relance de outros mundos, e que apelavam diretamente àimaginação por sua estranheza e maravilha.

Mabel Tolkien foi sepultada no cemitério da Igreja Católi-ca Romana de S. Pedro em Bromsgrove, não longe de Rednal.Tolkien recordou: “Testemunhei (compreendendo pela meta-de) os sofrimentos heróicos e a morte prematura, em extremapobreza, de minha mãe, que me conduziu à Igreja; e recebi aespantosa caridade de Francis Morgan. Mas apaixonei-me peloSantíssimo Sacramento desde o começo[...]”

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Clive Staples Lewis nasceu em 29 de novembro de 1898, nosabastados arredores de Belfast, no norte da Irlanda, filho deAlbert J. Lewis (1863-1929), um advogado sênior empregadodo Conselho da Cidade de Belfast e de outras entidades, e deFlorence (Flora) Augusta, nascida Hamilton (1862-1908). Am-bos os pais gostavam de escrever histórias, e Flora publicouuma em The Household Journal de 1889 com o título de “A Prin-cesa Rosetta”. O irmão de Lewis, Warren Hamilton Lewis, nas-ceu em 16 de junho de 1895. Logo depois de aprender a falar, ojovem Lewis insistiu em ser chamado “Jacksie” — e “Jack” elepermaneceu para os amigos íntimos e a família pelo resto davida (apesar de, conforme o costume, os amigos de Lewis emOxford normalmente se chamarem pelos sobrenomes, ou porapelidos. Lewis era simplesmente chamado de “Lewis”; Tolkien,freqüentemente de “Tollers”8). A História do início de sua vida,de sua conversão do ateísmo ao cristianismo e de sua consciên-cia da alegria e do anseio por uma realização exterior a si pró-

8 “Toller” significa sineiro, aquele que fabrica ou toca sinos e também significacobrador. (N.E.)

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prio está contada na sua autobiografia Surpreendido pela ale-gria (1955) e sua alegoria The Pilgrim’s Regress [O retorno doperegrino] (1933). A família Lewis freqüentava a igreja anglicanade S. Marcos, Dundela, onde o pai de Flora, Thomas Hamilton,era pároco. O pai de Albert, Richard Lewis, era sócio de umaempresa de construção naval de Belfast, um evangélico preo-cupado com as condições sociais da classe operária.

Em 1905 a família Lewis mudou-se para sua casa recém-construída, “Little Lea” [“Pequena Campina”], nos arredoresde Belfast. A casa tornou-se parte importante da infância deLewis.

A Casa Nova é quase que um personagem principal emminha história. Sou um produto de longos corredores,quartos vazios e ensolarados, silêncios porta adentro noandar de cima, sótãos explorados a sós, ruídos distantesde caixas d’água e canos gorgolejantes, e do ruído do ventosob as telhas. Também de infindos livros[...] Havia li-vros no estúdio, livros na sala de visitas, livros no guar-da-roupa, livros (na frente de outros livros) na grandeestante no patamar da escada, livros num quarto de dor-mir, livros empilhados até a altura de meus ombros nosótão da caixa d’água, livros de todos os tipos refletindotodas as etapas transitórias dos interesses de meus pais,livros legíveis e ilegíveis, livros adequados a crianças elivros muito enfaticamente inadequados[...] Sempre tivea mesma certeza de encontrar um livro que me fosse novocomo um homem que caminha no campo tem de encon-trar uma nova folha de capim.

Lewis forneceu-nos um retrato de si mesmo no períodoanterior à morte da mãe. Escrito em seu diário em dezembrode 1907, ele foi registrado nos Lewis Family Papers [Registrosda família Lewis], meticulosamente compilados na década de

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1930 por Warren Lewis, e intitula-se Minha vida, por Jacks Lewis.Ali escreve sobre “Papy”, sendo naturalmente o senhor da casa.No seu pai, registrou, as características dos Lewis eram inten-samente marcadas — o mau humor e a natureza sensível. Suamãe era como a maioria das mulheres de sua idade, observou:“corpulenta, cabelos castanhos, óculos, principalmente ocupa-da em tricotar”. Ele próprio, acreditava, era semelhante à maio-ria dos garotos da sua idade, e confessava: “Sou como Papy,mal-humorado, lábios grossos, magro e geralmente usandomalha.”

Menos de dois meses depois, Flora Lewis foi submetida auma severa cirurgia de câncer. Em maio de 1908 ela levou Lewisconsigo até Lane Harbour para uma visita de convalescença.Mas a cirurgia não teve sucesso para deter a invasão do câncer,e ela faleceu em 23 de agosto, no aniversário de Albert Lewis.Albert perdera o pai pouco antes no mesmo ano, e seu irmãoJoseph morreria duas semanas depois. Além da dor, assumiu oencargo de cuidar sozinho dos dois filhos. Lewis falou da perdaem Surpreendido pela alegria: “Com a morte de minha mãe,toda a felicidade assentada, tudo o que era tranqüilo e confiáveldesapareceu de minha vida. Haveria de vir muita diversão,muitos prazeres, muitas pontadas de alegria; porém mais nadada antiga segurança. Agora era mar e ilhas; o grande continen-te afundara como Atlântida.”

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Pouco menos de três anos antes do nascimento de Tolkien, a 21de janeiro de 1889, sua futura esposa, Edith Bratt, nascera emGloucester. Sua mãe Frances então voltou com Edith à área deBirmingham, indo morar em Handsworth como mãe solteira.Edith foi criada pela mãe e por Jennie Grove, prima desta. A mãejamais revelou o nome do pai de Edith. Foi por causa dos infor-

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túnios de sua infância, e dos de Tolkien, que os dois se encontra-ram, se apaixonaram e acabaram se casando, apesar de essasmesmas circunstâncias inevitavelmente trazerem tensões e cons-trangimentos ao seu romance e às suas vidas entrelaçadas.

Em 1903, no ano em que Tolkien obteve a bolsa de estudosna King Edward’s School, morreu Frances, mãe de Edith Bratt.Edith foi mandada à Dresden House School em Evesham, onderecebeu uma educação musical e desenvolveu seu talento e gostopelo piano. Passaram-se alguns anos antes que ela voltasse aBirmingham.

Por volta de 1907 Edith completou o ensino no internato.Seu tutor legal Stephen Gateley obteve-lhe um alojamento emDuchess Road, nº 37, Birmingham, no lar da família Faulkner.A sra. Faulkner era ativa na paróquia do Oratório, e conhecidado padre Morgan. No ano seguinte ele buscou para os irmãosórfãos Tolkien uma moradia mais adequada do que a tiaBeatrice podia proporcionar, e decidiu que a sra. Faulkner po-deria oferecer isso. Foi assim que Tolkien, aos 16 anos, conhe-ceu Edith Bratt, com 19, e tornaram-se amigos e aliados contra“A Velha Senhora”. Logo ele se apaixonou. Edith era bonita,pequena e esbelta, com olhos cinzentos. O padre Morgan (comoo rei Thingol na história de Tolkien sobre Beren e Lúthien, em“O Silmarillion”) reprovou esse amor assim que o descobriu.Temia que Tolkien se distraísse dos estudos e preocupou-se como fato de Edith não ser católica romana. Ordenou a seu tutela-do não se encontrar com Edith até completar 21 anos. Edithacabou se mudando para Cheltenham, perto do lar original desua mãe, indo morar com amigos idosos da família, “tio e titiaJessop”. Durante esse período, acabou noivando com GeorgeField, um fazendeiro de Warwickshire.

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Algumas semanas após a morte da mãe, em setembro de 1908,Lewis foi matriculado na Wynyard School, Watford,Hertfordshire. Seu irmão entrara nessa escola em maio de 1905.Lewis achou difícil suportar o regime da Wynyard, aprenden-do muito pouco para satisfazer sua mente faminta. “O únicoelemento estimulante do ensino”, registra em Surpreendido pelaalegria, “consistia em algumas bengalas bastante usadas pen-duradas na cornija da lareira, de ferro verde, da única sala deaula.” Assim como a perda da mãe, o sofrimento causado porum diretor de escola à beira da insanidade (mais tarde atesta-da) aproximou ainda mais os dois irmãos.

Misericordiosamente, a escola fechou no período de verãode 1910, e em setembro Lewis foi matriculado no CampbellCollege, a apenas um quilômetro e meio de “Little Lea”, ondeficou até novembro, quando foi retirado da escola por estardesenvolvendo sérias dificuldades respiratórias. Estas não fo-ram aliviadas pelo fato de que a essa altura Lewis, como o ir-mão, era fumante inveterado às escondidas. Na verdade, na pri-mavera de 1911 Warren armou-se de coragem e pediu ao paipermissão para fumar. Após o fracasso da experiência noCampbell College, Lewis, nas pegadas de Warren, foi enviado aMalvern nas Midlands inglesas, lugar famoso como estância desaúde, em especial para os que sofriam de problemas pulmo-nares. Foi matriculado como aluno na Cherbourg House (que,em Surpreendido pela alegria, mencionou como “Chartres” paraocultar sua identidade), uma escola preparatória perto doMalvern College onde Warnie estudava. Lewis lá ficou até ju-nho de 1913. Durante esse tempo, abandonou a fé cristã de suainfância a favor do materialismo (que mais tarde, em seu livroMilagres, chamou de “naturalismo”) e buscou consolo em suavida imaginativa.

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Enquanto Tolkien freqüentava a King Edward’s School, no ve-rão de 1910 formou com vários amigos um grupo de discussãocom interesses literários, cujos principais membros além deTolkien eram Geoffrey Bach Smith, Robert Quilter “Rob” Gilson(filho do principal professor da King Edward’s School) eChristopher Wiseman. O grupo chamou-se inicialmente TeaClub (T.C.)9, e mais tarde Barrovian Society (B.S.)10, pois o sa-lão de chá das lojas Barrow’s na rua Corporation, perto da es-cola, tornara-se o lugar de reunião predileto. Isto foi combina-do nas iniciais T.C.B.S. Geoffrey Bach Smith comentou algunsdos poemas precoces de Tolkien, incluindo seus versos origi-nais sobre Earendil (então grafado “Earendel”). Foi por voltada época de formação do clube que Tolkien começou a inven-tar o que chamava de línguas “particulares”, já sendo hábil emlatim e grego. Os amigos de Tolkien apreciavam seu interessepelas sagas nórdicas e pela literatura inglesa medieval.

De acordo com o biógrafo autorizado de Tolkien,Humphrey Carpenter, Christopher Wiseman e Tolkien compar-tilhavam o interesse pelo latim e grego, pelo rúgbi, e o deleitede discutir qualquer coisa sob o sol. Wiseman também simpa-tizava com as experiências de Tolkien com línguas inventadas,pois ele próprio estava estudando os hieróglifos e o idioma doantigo Egito.

Depois que Tolkien saiu da escola para Oxford em 1911, osquatro continuaram a se encontrar e a se escrever, até que aguerra destruísse sua associação. A T.C.B.S. deixou uma marcapermanente no caráter de Tolkien, que ele capturou na idéia de“sociedade”, como a Sociedade do Anel. Mais tarde, a amizadecom C.S. Lewis ajudaria a satisfazer essa importante faceta desua natureza.

9 “Clube do Chá” (N.T.)10 “Sociedade Barroviana”. (N.T.)

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