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So Paulo Law School of Fundao Getulio Vargas DIREITO GV

Research Paper Series Legal Studies Paper n. 94

As trilhas de Anne-Marie Slaughter na defesa da interdisciplinaridade

entre Direito Internacional e Relaes Internacionais

The interdisciplinary perspective on International Law and International

Relations by Anne-Marie Slaughter

Michelle Ratton Sanchez Badin1 So Paulo Law School of Fundao Getulio Vargas (DIREITO GV)

Lucas Tasquetto da Silva2 University of So Paulo

Nathalie Suemi Tiba Sato3

University of So Paulo

March 2014

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1 Professora em tempo integral da DIREITO GV. Agradeo aqui s oportunidades de ensino da disciplina Ordem Jurdica Internacional, no curso de graduao da Direito GV em 2010 e 2011, que me levaram a um estudo mais sistematizado da relao entre Direito e Relaes Internacionais; estendo os agradecimentos aos meus alunos nestes perodos pela pacincia e pelo engajamento de alguns no aprendizado conjunto. No desenvolvimento deste debate acadmico, agradeo, primeiramente, aos meus coautores, que toparam esta empreitada, a Evandro Menezes, que sempre compartilhou a curiosidade interdisciplinar, a Deisy Ventura e Manuela Viana, sempre interlocutoras. A verso final deste artigo tambm no teria sido possvel sem a assistncia de Marcel Ichiro Bastos Kamiyama.2 Doutorando em Relaes Internacionais. Pesquisador-bolsista da Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo (Fapesp). Foi pesquisador do Ncleo de Direito Global da Escola de Direito de So Paulo da Fundao Getulio Vargas (Direito GV).3 Mestranda em Relaes Internacionais. Pesquisadora-bolsista da Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior (Capes). Foi pesquisadora do Ncleo de Direito Global da Direito GV.

Lucas Tasquetto

Lucas Tasquetto

Lucas da Silva Tasquetto

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Resumo: Este artigo consiste em uma resenha crtica sobre a reflexo de Anne-Marie

Slaughter para uma aproximao interdisciplinar entre Direito Internacional e Relaes

Internacionais. Slaughter tem sido apontada, internacionalmente, como uma das protagonistas

neste debate acadmico, e sua obra indicada como uma das mais influentes na academia dos

Estados Unidos da Amrica, no sculo XX. Em tempos de aproximao entre juristas e

internacionalistas no Brasil, o artigo procura contribuir com a contextualizao da produo

da autora, bem como elucidar os momentos de influncia das suas atividades em outros

centros de discusso e produo. A proposta principal deste artigo , assim, favorecer um

mapeamento histrico e contextualizado da chamada para o debate interdisciplinar entre

Direito Internacional e Relaes Internacionais, a partir dos trabalhos de um de seus pivs na

academia nos Estados Unidos.

Palavras-chave: Interdisciplinaridade; Direito Internacional; Relaes Internacionais;

Liberalismo.

Abstract: This article consists of a critical review of Anne-Marie Slaughters works

claiming for an interdisciplinary approach between International Law and International

Relations. Slaughter has been identified internationally as one of the protagonists in this

academic debate, and her work was appointed as one of the most influential in the academy of

the United States of America in the twentieth century. In times of an increasing integration of

IR academics and those from the law field in Brazil, we aim at contributing with a better

contextualization Slaughters work in the US academy. The main objective of this paper is

thus to encourage a historical and contextual mapping of the call for interdisciplinary debate

between International Law and International Relations, from the works of one of its pivots in

the US academy.

Keywords: Interdisciplinary. International Law. International Relations. Liberalism.

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Sumrio

1 Introduo _______________________________________________________________ 4

2 Um primeiro olhar das Relaes Internacionais para o Direito: mapeamento histrico e a identificao de uma agenda dupla _________________________________________ 6

3 O Direito Internacional se fazendo relevante para as Relaes Internacionais: a agenda cruzada e suas contribuies ________________________________________________ 11

4 Da teoria prtica: as Relaes Internacionais como instrumento e os juristas como arquitetos _______________________________________________________________ 16

5 Um balano pragmtico aps vinte anos de debate_______________________________ 18

6 O legado da trilha de Slaughter: apostas e crticas _______________________________ 20

Referncias _______________________________________________________________ 23

4

[...] law informed by politics is the best guarantee of politics informed by law. (SLAUGHTER, 1993, p. 239)

1 Introduo

No incio dos anos 1990, foi lanada nos Estados Unidos uma chamada no mbito dos

estudos em Relaes Internacionais para um debate interdisciplinar com a rea do Direito

Internacional. Anne-Marie Slaughter, autora que se tornou referncia forte no Brasil com

estudos sobre globalizao em especial, o livro A New World Order , foi e tem sido at

hoje uma das protagonistas desse movimento. E os quatro artigos analisados aqui podem ser

descritos como os principais espaos nos quais ela conduziu esse debate.

Essa produo resultado direto da trajetria pessoal de Anne-Marie Slaughter. Uma

acadmica com dedicao exclusiva que passou por universidades centrais no debate de

Direito e Relaes Internacionais nos Estados Unidos, contando com uma formao dupla nas

duas disciplinas. Atualmente, Slaughter professora em tempo integral na Woodrow Wilson

School of Public and International Affairs, em Princeton, onde j figurou como diretora

(2002-2009). Em sua formao e atuao acadmica passou por universidades americanas

(Harvard e Chicago) e inglesas (Oxford). Aps essa trajetria ascendente na academia, em

2009, Slaughter foi convidada para assumir o cargo de Director of Policy Planning no

Departamento de Estado dos Estados Unidos, onde ficou at 2011. Todas essas experincias,

sobretudo a advinda desta ltima posio da autora, influenciaram fortemente a produo de

Slaughter no campo de um debate para a interdisciplinaridade.

Nos quatro textos analisados, Slaughter no apenas conclama a necessidade de dilogo entre

as duas disciplinas que, segundo a autora, compartilham vocbulos comuns e apresentam produes

complementares, mas tambm apresenta agenda para o debate. Slaughter, nos quatro textos, indica

as suas sugestes e reas temticas para o debate interdisciplinar entre Direito Internacional e

Relaes Internacionais. Neste sentido, importante considerar que Slaughter se filia Teoria

Liberal e deliberadamente se assume como uma representante da mesma na academia de Relaes

Internacionais, linha que se constri em discordncia com alguns dos pressupostos bsicos da Teoria

Realista, predominante desde o ps-guerra, quais sejam: (i) os estados so atores fundantes do

sistema internacional, comportando-se como atores racionais, unitrios e idnticos; (ii) as

preferncias dos estados so permanentes; e (iii) a estrutura anrquica do sistema internacional

promove tal grau de incerteza e desconfiana que leva os estados a atuarem sempre em uma

5

rationale de soma-zero (ALVAREZ, 2001, p. 183). Essa batalha com a Teoria Realista atribuda a

Slaughter, por Alvarez, em um debate direto no campo do Direito Internacional4, enquanto seu

parceiro Andrew Moravcsik o faz no campo da Cincia Poltica/ Relaes Internacionais.

Nesses termos, pode-se adiantar que a perspectiva Liberal de Slaughter influencia tanto os

recortes analticos e metodolgicos em seus textos como as suas propostas de agenda comum para

as reas de Direito Internacional e Relaes Internacionais. Tambm no se pode ignorar que, na

corrente de teorias de Relaes Internacionais que reestabelecem o dilogo com o Direito5, a

vertente Liberal favorece at mesmo a chamada para essa agenda interdisciplinar e a confiana na

contribuio recproca para as reas de seus trabalhos conjuntos. Na apresentao da evoluo dos

trabalhos de Slaughter, a seguir, contudo, no se deve deixar de considerar esses pontos.

Outro ponto a observar que Slaughter e seus trabalhos so apresentados aqui como

pivs de um debate muito mais amplo no contexto da academia dos Estados Unidos. Esse

perodo de vinte anos foi alimentado com a interlocuo com muito acadmicos, em espaos

bastante relevantes do debate cientfico estadunidense, como se poder observar em algumas

referncias complementares apresentadas neste mesmo artigo.

Objetiva-se, portanto, apresentar a evoluo da reflexo de Anne-Marie Slaughter a partir

da sua primeira provocao por estudos entre as duas disciplinas, contextualizando os momentos

da produo da autora, bem como elucidando os momentos de influncia das suas atividades em

outros centros de discusso e produo. Na condio de uma breve retrospectiva deste debate na

obra de Slaughter, este artigo se atm a trazer as principais concluses apresentadas em cada texto

e uma anlise sucinta sobre tais concluses. Ainda que suas posies especficas exijam cuidados,

conforme apontado na sequncia do texto, a proposta principal deste artigo nada mais do que

favorecer um mapeamento histrico e contextualizado da chamada para o debate interdisciplinar

entre Direito Internacional e Relaes Internacionais, a partir dos trabalhos de um de seus pivs

na academia estadunidense.

4 No mesmo sentido, o artigo publicado por Simpson (2001, p. 539) que se prope a fazer uma distino entre dois tipos de liberalismo que permeiam o debate no Direito Internacional: um liberalismo clssico, o qual procura preservar a tolerncia, a diversidade e flexibilidade junto a uma descrena em relao a uma verdadeira moral e que preservaria neste sentido a pluralidade e a diversidade entre os estados no sistema internacional; e outra linha do liberalismo, tambm conhecida como neoliberalismo, que est embasada em uma dogmtica liberal e prescritiva e que, neste sentido, seria antiplural. O autor faz uma referncia explcita ao trabalho de Slaughter como vinculado a esta ltima vertente do liberalismo no Direito Internacional (SIMPSON, 2001, p. 539), e ainda qualifica a crtica de Alvarez a Slaughter neste contexto (SIMPSON, 2001, p. 541).5 E.g., Igor Medina de Souza (2006, p. 103), ao trabalhar os dilogos entre as Relaes Internacionais e o Direito Internacional, considera ao menos trs grandes teorias que apresentam colaboraes entre tericos da poltica internacional e juristas internacionais: o Institucionalismo, o Liberalismo e o Construtivismo, com um dilogo de crescente profundidade de uma teoria para a outra.

6

2 Um primeiro olhar das Relaes Internacionais para o Direito: mapeamento

histrico e a identificao de uma agenda dupla

No primeiro artigo de Slaughter, de 1993, a autora lana o debate entre Direito Internacional

e Relaes Internacionais, a partir de dois diagnsticos importantes: o de que as reas recorreriam a

vocbulos comuns (e talvez no propriamente a categorias comuns), e o de que os acadmicos de

cada rea trabalhariam cada vez mais em torno de temas comuns em que potenciais contribuies

poderiam existir (SLAUGHTER, 1993, p. 205).

O debate acadmico nos Estados Unidos na rea de Relaes Internacionais provocou

a publicao desse primeiro trabalho por Slaughter, mas a prpria autora reconheceria, vinte

anos mais tarde (SLAUGHTER, 2013), que aps seu doutorado em Relaes Internacionais

(em Oxford) e sua experincia de ensino em Direito (em Harvard), ela perceived a more

vibrant and interesting set of debates taking place among IR [international relations] scholars

than among my international law (IL) colleagues. Ao trazer como subttulo de seu artigo a

ideia de agenda dupla, a autora procura identificar no que coincidem as agendas e como

super-las.

Um primeiro passo dado pela autora foi identificar que um ponto de convergncia de

preocupaes das duas disciplinas poca era o efeito das regras no Direito Internacional, ou

seja, em que medida as regras promoviam mudanas nos comportamentos dos atores

(SLAUGHTER, 2013, p. 220 e ss.). Slaughter problematiza que a ausncia de um dilogo

explcito ou sistematizado para tratar de um mesmo assunto teria origens histricas no carter

suprfluo, ou mesmo completamente desnecessrio, que as Teorias de Relaes Internacionais

leia-se Realismo e Neorrealismo teriam atribudo ao Direito Internacional, desde o ps-

guerra.

Esse desafio realista, representado pelo ceticismo de autores como George Kennan e

Hans Morgenthau, e, mais recentemente, pela teoria dos regimes promovida por Kenneth

Waltz e fundada em pressupostos equivalentes (SLAUGHTER, 1993, p. 206), teria catalisado

a produo nas reas at os anos 1990. De forma que muito do que se teria produzido tanto

em Direito Internacional quanto em Relaes Internacionais poderia ser entendido como uma

resposta ou como um refinamento a esse desafio.

Slaughter se props nesse primeiro artigo a apresentar um breve levantamento

histrico das influncias e respostas do Direito Internacional e das Relaes Internacionais,

particularmente no debate acadmico nos Estados Unidos, para identificar possveis formas de

7

superao do que denomina desafio realista e da barreira na agenda dupla para um debate

efetivamente interdisciplinar (SLAUGHTER, 1993, p. 226).

Sob a perspectiva do Direito Internacional, o desafio realista teria provocado os

juristas internacionalistas no sentido de provarem a relevncia do Direito Internacional em um

contexto em que o Direito no teria lugar no mundo. Nessa perspectiva realista, as nicas leis

relevantes seriam as leis da poltica, e a poltica seria a disputa por poder6.

No conjunto de respostas lanadas pelos juristas, Slaughter mapeia teorias que teriam

procurado reconceitualizar o Direito Internacional em relao poltica internacional, de

modo a relacionar as disciplinas sem sacrificar por completo nenhuma delas. E, nesse

exerccio, a autora (SLAUGHTER, 1993, p. 209-214) destaca a reconceitualizao da relao

entre Direito Internacional e poltica, com base em trs frentes no universo jurdico dos

Estados Unidos: (i) o Direito Internacional como uma poltica pblica (MCDOUGAL;

LASSWELL, 1943), que preconizava pela reinveno da jurisprudncia internacional, no qual

advogados internacionalistas poderiam usar dados empricos e a compreenso terica em

poltica e outras disciplinas para questionar e criticar o direito existente; (ii) o Direito

Internacional como uma poltica pblica sistmica (FALK, 1968), apropriando-se do debate

anterior, mas agregando o reconhecimento da importncia de entender o Direito como

expresso dos valores sociais e polticos; e, por fim, (iii) a linha do pragmatismo e do

processo legal (CHAYES; ERLICH; LOWENFELD, 1968), cujo corolrio seria a coleta de

evidncias empricas demonstrando a influncia determinante do Direito Internacional e dos

juristas na resoluo de crises internacionais especficas.

De outro lado, Slaughter argumenta que os cientistas polticos preferiram contestar o

desafio realista por intermdio da busca de vrias linhas e da construo de teorias

sistmicas abstratas de comportamento estatal. No prprio campo da Cincia Poltica,

Slaughter (1993, p. 214-219) identifica reaes Teoria Realista que predominava desde o

momento imediatamente posterior Segunda Guerra Mundial. Depois de Morgenthau, uma

srie de tericos de Relaes Internacionais buscou refinar o Realismo como uma teoria de

poltica internacional. De acordo com a autora, o que veio a ser chamado de Realismo

Estrutural ou Neorrealismo sistematizou o sistema internacional, ou seja, procurou analisar

6 Curioso notar que este tambm um trao marcante no ensino e na pesquisa do Direito Internacional no Brasil, que reconhece a disciplina como um direito sem sano e, nos currculos de graduao, chega a ser apontada como perfumaria jurdica. O que estaria de encontro com a primeira frase do artigo de Slaughter (1993, p. 205) em referncia aos esforos de Richard Falk em liberating the discipline of international law from its own futility.

8

em que medida a poltica interferia no Direito mas ainda manteve o Direito fora de sua

equao enquanto elemento estrutural do sistema (SLAUGHTER, 1993, p. 215).

Paulatinamente, os estudos nessa rea teriam passado de uma preocupao com

instituies formais para uma nfase nos processos institucionais, com questes mais gerais em

torno de como as organizaes internacionais funcionam em um processo ampliado de

governana internacional. O problema com esse exerccio neorrelista era explicar a continuidade e

a relativa fora das instituies internacionais mesmo aps o significativo declnio da hegemonia

dos Estados Unidos. Para tanto, uma linha de realistas estruturais, representada por Waltz,

desenvolveu a teoria de regimes, que parte explicitamente das premissas neorrealistas, aceitando a

ideia dos estados como atores egostas e racionais e reconhecendo o comportamento estatal como

determinante primordial da estrutura do sistema internacional. Waltz, assim, teria inaugurado a

linha institucionalista que, paradoxalmente, abriria a frente de um possvel dilogo entre Direito

Internacional e Relaes Internacionais.

Slaughter (1993, p. 218) identifica, no entanto, que teria sido Robert Keohane quem

teria dado um passo alm nessa abordagem e elaborado uma teoria funcional dos regimes, que

explicaria seu papel e continuidade na poltica internacional como resultado de clculos

racionais dos estados participantes. Para Slaughter, ao asseverar a funo das instituies de

ajudar os governos a perseguirem seus objetivos mediante a cooperao, mas no determinar

o que eles devem fazer, Keohane redescobre o Direito Internacional, ainda que se recuse a

reconhec-lo (SLAUGHTER, 1993, p. 219). Essa abordagem de Keohane passou a ser

intitulada Institucionalismo Neoliberal7. Ainda que com linguagens e foco em geral

divergentes, esse momento visto pela autora como o instante em que cientistas polticos

passam a explicar a funo e o valor do Direito Internacional em suas pesquisas em termos

muito similares queles utilizados pelos prprios juristas.

Ainda no campo das teorias de Relaes Internacionais, as oportunidades para

colaborao interdisciplinar se expandem ainda mais quando, crtica racionalista de

Keohane relativa ao Neorrealismo, segue-se tambm uma ento emergente crtica

7 Ressalta-se que o rompimento com as premissas realistas no to radical. A aproximao com o Realismo se d com a substituio da noo de harmonia por cooperao, que considera a possibilidade potencial de ocorrncia de conflitos. A cooperao no deve ser considerada como ausncia de conflitos, mas sim como reao ao potencial conflito. Ademais, se no Liberalismo o foco de anlise era a unidade, aps a obra de Waltz que consolida o Neorrealismo, os neoliberais passam tambm a assumir os pressupostos metodolgicos estruturalistas, incluindo a o estado, porm sob a feio de maximizador de utilidade/cooperao. Da mesma forma assume-se a ideia de anarquia, porm com outro contedo. Para os neoliberais, a anarquia no cria somente constrangimentos, mas tambm incentivos para a cooperao, expressos na forma de instituies, tendo em vista a ausncia de uma autoridade central.

9

construtivista, cuja abordagem considera de forma mais explcita o papel das normas jurdicas

internacionais na determinao do comportamento dos estados8. Nesse quadro, Slaughter se

arrisca na tentativa de delinear as linhas em andamento no incio dos anos 1990, nos Estados

Unidos, para um possvel dilogo interdisciplinar fundado no Institucionalismo: (i) a distino

de regimes legais de regimes no legais (YOUNG, 1992); (ii) teorias sobre a relevncia do

desenho organizacional (KRATOCHWILL; RUGGIE, 1986); (iii) o debate sobre efetividade

ou compliance (CHAYES; CHAYES, 1993a, 1993b); e (iv) o debate sobre tica internacional

(FRANCK, 1990; BRILMAYER, 1989). Slaughter preconiza um avano da agenda

institucionalista, mas ainda a aponta como insuficiente por identificar certas lacunas

intransponveis para o completo dilogo entre o Direito Internacional e as Relaes

Internacionais (SLAUGHTER, 1993, p. 225-226).

Com efeito, na terceira parte do artigo, Slaughter (1993, p. 226) assume uma posio

mais normativa conduzindo definio da agenda Liberal como um novo paradigma mais

completo para o dilogo interdisciplinar. Esse passo uma marca que se consolida e passa a

se afirmar nos seus trabalhos seguintes sobre a interdisciplinaridade. A autora sempre procura

fazer uma descrio do estado da arte do debate, mapear e qualificar as principais linhas e, ao

final, analisar e propor uma agenda sob a perspectiva das premissas do Liberalismo.

Slaughter (1993, p. 227) argumenta que a alternativa representada pelo Liberalismo

seria capaz de dar conta de evidncias e fatores excludos dos modelos anteriores, tais como:

indivduos, corporaes, organizaes no governamentais, ideologias polticas e econmicas,

ideias, interesses, identidades e interdependncia. A Teoria Liberal estaria assim, a seu ver,

abrindo poca uma agenda para a reconceitualizao do papel do Direito na poltica

internacional, sob algumas vertentes: (i) no debate sobre direito constitucional comparado e

ordem internacional, que reconheceria a importncia do direito constitucional domstico

como determinante do comportamento estatal9; (ii) no quadro terico para o direito

transnacional; (iii) em uma anlise liberal do direito internacional pblico, com um novo olhar

comparativo entre os diferentes regimes; e tambm (iv) em uma vertente preocupada em

8 De modo geral, tem-se como grande premissa do Construtivismo a realidade como uma construo social, de forma que esta seria construda pelos agentes na interao entre eles, ou seja, suas preferncias e interesses no estariam condicionados simplesmente pela estrutura. Igor Medina de Souza (2006, p. 145-148), por exemplo, sustenta que o enfoque construtivista ampliaria o campo de anlises para a conciliao entre os estudos sobre a poltica internacional e aqueles sobre Direito Internacional, sobretudo ao potencializar um debate interdisciplinar a partir de uma dimenso mais crtica.9 Tema que foi objeto de estudo especfico da autora em trabalho posterior (SLAUGHTER; BURKE-WHITE, 2006).

10

repensar as regras do jogo, incluindo a reviso de conceitos tradicionais como soberania,

fronteira e territrio.

Portanto, o artigo de 1993 traz como contribuio primordial o anncio da

aproximao entre as disciplinas e evidencia-o com um mapeamento qualificado das linhas

tericas em que se concentrou a maior parte da produo nas reas de Direito Internacional e

Relaes Internacionais durante quarenta anos da histria acadmica dos Estados Unidos

que influenciou significativamente a produo no Brasil e outros pases. Slaughter, ao final do

texto, se insere em uma vertente terica Liberal, mas conclui que tanto o caminho do

Institucionalismo como o da Teoria Liberal so respostas poderosas no campo da Cincia

Poltica que reconhecem a importncia do Direito Internacional e que podem gerar

colaboraes interdisciplinares em benefcio tanto das Relaes Internacionais como do

prprio Direito Internacional (SLAUGHTER, 1993, p. 238). Nesse marco, Slaughter destaca

que o contexto acadmico nunca fora to benfico para o estabelecimento dessa colaborao

interdisciplinar.

Este primeiro artigo de Slaughter foi considerado e referenciado como one of the

canonical calls para o debate interdisciplinar entre Direito Internacional e Relaes

Internacionais, junto com uma publicao de Kenneth Abbott em 1989 (DUNOFF;

POLLACK, 2012, p. 8)10 11.

10 Apesar de o enfoque deste artigo ser mapear a evoluo da reflexo produzida por Slaughter, inegvel que estes trabalhos so resultados de um debate mais amplo nos Estados Unidos sobre a relao entre Direito Internacional e Relaes Internacionais. De forma que mesmo a produo de Slaughter e Abbott j estava em dilogo poca. Em abril de 1992, Kenneth Abbott e Anne-Marie Slaughter participaram do painel do 86o encontro anual da American Society of International Law (ASIL) intitulado International Law and International Relations Theory: Building Bridges, o primeiro como presidente da mesa e a segunda como uma das debatedoras. Oran R. Young e Robert Keohane completaram a mesa apresentando seus comentrios como cientistas polticos. 11 Cf. ABBOTT, 1989. O artigo de Abbot analisa alguns pontos do Direito Internacional e sua importncia para as Teorias de Relaes Internacionais, porm, diferentemente do texto de Slaughter (1993) no tem a preocupao de lanar um marco no debate da academia norte-americana sobre a relao entre as duas disciplinas. A preocupao de Slaughter com uma agenda sobre esse debate confirmada por sua subsequente produo e acompanhamento do debate na rea. Alm dos textos indicados neste artigo como marcos desse debate, Slaughter organizou uma srie de debates na academia norte-americana a partir dessa agenda e.g. Legal Theory in Ferment: What International Legal Theory Can Learn from International Relations Theory, 94o Encontro Anual da ASIL, 2000; Debate on the Theme: Legalization of International Relations, 96o Encontro Anual da ASIL, 2002; Harvard Law School Seminar on International Law and International Relations, 1995. Destaca-se ainda o grupo interdisciplinar formado por Slaughter, Judith Goldstein, Miles Kahler e Robert Keohane, poca professores da Harvard Law School, Stanford University, California University e Duke University, respectivamente, para o estudo do fenmeno da legalizao dos regimes internacionais. A cooperao resultou na edio Goldstein et al., 2000.

11

3 O Direito Internacional se fazendo relevante para as Relaes Internacionais12:

a agenda cruzada e suas contribuies

A partir da publicao e com base no primeiro artigo de Slaughter, o debate sobre a

relao entre Direito Internacional e Relaes Internacionais desenvolveu-se ao longo da

dcada de 1990 nos Estados Unidos. Centros relevantes do mundo acadmico, como a

American Society of International Law, a International Law Association e a International

Studies Association, promoveram debates coletivos e grupos de trabalhos com acadmicos

das duas disciplinas13, e publicaes intituladas com referncias s duas reas foram

lanadas14. Pontos crticos sobre o debate interdisciplinar apresentados nesse livro recebem

uma ateno especial por Slaughter em seu segundo artigo da srie aqui analisada. O foco do

novo texto de 1998 foi em como construir uma escola transdisciplinar.

Em 1998, Slaughter publicou em coautoria com Tulumello e Woods esse novo artigo

com a proposta de analisar a literatura interdisciplinar, publicada entre 1993 e 1998, e abrir uma

agenda comum, propondo-se a ir alm do levantamento histrico e do mapeamento da produo

nas disciplinas, com a defesa do Liberalismo como escola mais completa para o dilogo. Este

artigo de 1998 tem duas contribuies diferenciadas para o debate entre Direito Internacional e

Relaes Internacionais: foca na produo em Direito Internacional e na necessidade de sua

reconceitualizao pelas teorias de Relaes Internacionais; e lana a proposta de um campo

compartilhado entre as disciplinas para um trabalho conjunto a joint discipline15.

Majoritariamente, as propostas procuram indicar que o campo da interdisciplinariedade no

pode ser um fim em si mesmo (SLAUGHTER et al., 1998, p. 385)16.

12 A expresso apresentada por Slaughter, Tulumello e Wood (1998, p. 378) bringing law to bear tem filiao em um jargo da academia norte-americana, com a inteno de indicar a relevncia do Direito, no caso, o Direito Internacional, para a rea de Relaes Internacionais. Slaughter, Tulumello e Wood (1998) citam inclusive o artigo de Nicholas Onuf e James Taulbee (1993), Bringing Law to Bear on International Relations Theory Courses, um artigo que problematiza o fato de a disciplina de Direito Internacional no mais integrar o grupo de disciplinas oferecidas nos cursos de Relaes Internacionais, nos Estados Unidos, e a necessidade de retom-la no currculo. 13 Em 1992, no 33o encontro anual do International Studies Association (ISA) foram organizados diversos paineis com foco no Direito Internacional, tal como o painel intitulado International Law: Why are we on the outside looking in?. Em 1998, Michael Byers, ento professor da Duke University, organizou o encontro anual do ramo britnico da International Law Association em torno do tema Direito Internacional e poltica internacional, que contou com a apresentao de textos escritos por acadmicos das duas reas. Alm dessas associaes acadmicas, na dcada de 1990, universidades como Harvard e Yale passaram a promover em seus departamentos de direito e de relaes internacionais conferncias e seminrios sobre Direito Internacional e Poltica Internacional. 14 Vale aqui destacar a obra coletnea de Beck et al. (1996).15 O termo joint discipline foi cunhado por Abbott (1992), e originalmente contava com a proposta de uma agenda comum sobre cooperao internacional, cf. ABBOTT (1992). SLAUGHTER et al. (1998, p. 383) creditam a expresso a Abbott porm apresentam a proposta de expandir o seu contedo.16 A respeito, v. nota de rodap 25.

12

Slaughter refora, portanto, o interesse no dilogo interdisciplinar, pautando-se em

problemas cada vez mais comuns s duas disciplinas: (i) a recorrncia a vocbulos e conceitos

comuns e a necessidade de enfrentamento dos mesmos desafios s anlises tradicionais das

reas; (ii) a complexificao dos fenmenos da globalizao e da transnacionalizao, e a

preocupao comum sob formas possveis de governana; (iii) o debate sobre as vantagens do

clssico duo hard law e soft law e seus riscos; e (iv) novamente a agenda sobre efetividade ou

compliance (SLAUGHTER et al., 1998, p. 370).

Esse interesse mtuo entre as disciplinas lido em Slaughter, Tulumello e Wood

(1998) como resultado de respostas aos desenvolvimentos no ambiente externo que juristas e

internacionalistas buscam explicar e moldar, ao mesmo tempo que pode ser entendido

tambm em termos de uma dinmica intelectual interna a cada rea. Sob a perspectiva das

Relaes Internacionais, esse interesse teria se ampliado, ao longo da dcada de 1990, em

razo de trs movimentos tericos que se cruzam em alguma medida: o fato de o

Institucionalismo ter se estabelecido como um paradigma terico dominante na academia

norte-americana; a retomada no interesse pelas instituies, a partir da Escola Inglesa e de

especialistas norte-americanos em organizaes internacionais; e a emergncia do

Construtivismo, junto com a Teoria Liberal, que valoriza as estruturas do sistema

internacional, o que inclui o Direito. E, sob a perspectiva do Direito Internacional, foco

central do artigo, pode-se entender o recurso s Teorias de Relaes Internacionais como uma

forma de sanar o dficit de realidade do Direito (SLAUGHTER et al., 1998, p. 371-379).

Considerando, portanto, a importncia de ir alm da apresentao de uma disciplina

outra, Slaughter, Tulumello e Wood (1998) propuseram-se a identificar as formas como os

juristas estavam utilizando as teorias de Relaes Internacionais e as pesquisas empricas em

seus estudos, assim como as respostas proposta do debate interdisciplinar. A clara distino

dos dois campos de ensino e pesquisa e as particularidades de seus mtodos certamente no

algo to evidente em outros ambientes acadmicos como no dos Estados Unidos, e isso

reconhecido no texto. Nesse sentido, os autores indicam, primeiramente, algumas reaes

mais resistentes no campo jurdico chamada ao debate, a partir do artigo de Slaughter

(1993), sob os argumentos: (i) de que o debate entre Direito Internacional e Relaes

Internacionais fora incorporado desde sempre nas produes acadmicas de ambas as

13

disciplinas17, (ii) de que o Direito j percebera esta relao antes da chamada pontual no

texto de Slaughter (1993)18 ou (iii) de que haveria riscos nessa aproximao dados os

pressupostos assumidos por ambas as disciplinas19, ou, ainda, de que o Direito no poderia ser

tomado apenas como mais uma das variveis das teorias de Relaes Internacionais20.

Slaughter, Tulumello e Wood (1998) dedicam-se, no entanto, a explorar os trabalhos

no campo do Direito Internacional que poderiam aportar novas frentes de dilogo ou outras

perspectivas sobre o prprio Direito aos tericos em Relaes Internacionais. H trs

vertentes de questionamento pelo Direito da forma com que as Relaes Internacionais o

interpretam que so salientadas pelos autores. Todas essas vertentes esto, porm, centradas

naquela que pode ser qualificada como principal contribuio dos internacionalistas

estadunidenses no campo do Direito Internacional: a teoria de direito como fruto de um

processo internacional de deciso que relaciona as estruturas domsticas do Estado e as

internacionais. Essas referncias esto centradas nos trabalhos lanados por Abram Chayes,

Thomas Erlich e Andreas Lowenfeld, da Universidade de Harvard, em 1967, e na sua

complementao e reviso pela Escola de New Haven (Universidade de Yale), representada,

em grande medida, nos trabalhos de Harold Koh, que traz a dimenso transnacional e a

relevncia do domstico para o internacional.

Sinteticamente, as trs vertentes apresentadas por essa perspectiva procedimental do

Direito Internacional destacam que: (i) os processos de criao, interpretao e aplicao do

Direito Internacional tm um impacto causal prprio nas relaes internacionais, que vai alm

17 Esta uma referncia muito presente na Escola Inglesa de Relaes Internacionais que prima pela anlise histrica e uma relao com algumas orientaes tericas da filosofia e do campo da Teoria da Justia. A este propsito, ver Hurrell (2000).18 Os autores Slaughter, Tulumello e Wood (1998, p. 378) fazem uma referncia irnica como disputa por espao ao apresentar esta reao como We thought of it first, e trazem as referncias aos trabalhos de Lynne Jurgielewicz e Shiyna Murase, assim como produo de John Ruggie nos anos 1970. Cf. JURGIELEWICZ, 1996; MURASE, 1995; e RUGGIE, 1975. 19 A principal reao aqui seria a referncia comum a preceitos liberais que so pressupostos de ambas as disciplinas e que por vezes corrompem suas anlises e propostas normativas. Nesse sentido, os autores citam Outi Korhonen (nota de rodap 77), mas tambm possvel aqui agregar os trabalhos dos historiadores do Direito Internacional, como Martti Koskenniemi e Liliana Obregn. No mesmo sentido, Anghie e Chimni (2003, p. 97), ao colocaram que, apesar de usarem muitos dos elementos que so encontrados nas abordagens de RI/DI, no subscrevem viso e s recomendaes geradas por esse modelo de abordagem.20 As Teorias de Relaes Internacionais, sobretudo na academia dos Estados Unidos, na definio das relaes de causa e efeito baseiam-se nos mtodos das Cincias Sociais em que se qualificam as variveis dependentes e independentes. Sobre esse mtodo, v. KELLSTEDT e WHITTEN (2009). Slaughter, Tulumello e Wood (1998, p. 379) baseiam-se explicitamente na reao de Michael Byers ao trabalho desenvolvido por John Setear aplicando a Teoria Institucionalista ao funcionamento dos tratados internacionais.

14

daquele que a Teoria dos Regimes consegue captar21; (ii) o Direito Internacional tambm seria

um aspecto constitutivo na formao dos atores e de seus interesses no sistema internacional,

diferentemente do aspecto instrumental e normativo atribudo ao Direito pela Teoria dos

Regimes ao considerar que as aes dos Estados, no mbito internacional, esto orientadas

por interesses fixos22; e, ainda, a partir de uma das principais contribuies do Direito

Internacional como processo, (iii) a importncia de tambm se considerar o direito domstico

e outras regras transnacionais e seus efeitos para as relaes internacionais23.

Ao contrastar tais contribuies da rea do Direito Internacional para as Teorias de

Relaes Internacionais, Slaughter, Tulumello e Wood (1998) enfatizam justamente a reduo

do elemento racional (do Estado) no processo de deciso internacional. Os juristas indicariam

que as regras internacionais no esto sujeitas a mudanas apenas por resposta s variaes no

interesse imediato dos Estados; outros componentes da ordem internacional, como a

expectativa de comportamentos futuros de outros atores, tambm podem interferir (BYERS,

1997).

Os autores sustentam que, ao procurarem conscientemente desafiar, complementar ou

desenvolver as ideias e tcnicas de Teorias de Relaes Internacionais por essas linhas, os

juristas internacionalistas do um passo alm dos estudiosos em Relaes Internacionais, os

quais tm o Direito mais como objeto a partir das lentes das Teorias de Relaes

Internacionais. Ao final desse segundo artigo, os autores avanam com a proposta para uma

agenda colaborativa de pesquisas de modo a formar uma joint discipline24. Essa proposta dos

autores chega a ser bastante ousada na medida em que pretende avanar nas fronteiras entre as

disciplinas e no na apropriao dos conhecimentos de uma rea pela outra, identificando os

temas comuns em que ambas j possuem reflexes postas25.

21 Nesse sentido, os autores invocam o trabalho de Lynne Jurgielewicz, que resume a importncia da Teoria dos Regimes (como uma Teoria de Relaes Internacionais), como useful, but inadequate para analisar o Direito Internacional, no caso especfico, na rea de meio ambiente (SLAUGHTER et al., 1998, p. 380).22 Um dos exemplos apresentados pelos autores foi baseado no trabalho de Martti Koskenniemi (1996) sobre a sua experincia no Conselho de Segurana quando da crise Iraque-Kuwait, ao identificar o quanto o discurso jurdico moldou e transformou a posio e os interesses dos Estados. 23 Slaughter, Tulumello e Wood (1998, p. 383) fazem um jogo de palavras interessante na contribuio dessa perspectiva para as Teorias de Relaes Internacionais: This bottom-up approach complements the traditional focus on domestic implementation of international rules and confronts political scientists and international lawyers alike with new worlds to conquer, or at least to analyze.24 Assim como em 1993, Slaughter aqui se inspira no trabalho de Kenneth Abbott, v. nota de rodap 15.25 Essa metodologia permite ento evitar os vcios de um debate interdisciplinary, tal como condenado em Robert Beck (2009, p. 15), cf. BECK (2009). A abordagem de Slaughter, Tulumello e Wood (1998) aproxima-se mais, portanto, do conceito de transdisciplinaridade que advoga pela formao de um campo de conhecimento nico. Sobre transdisciplinaridade, Nicolescu (1999) advoga que esta ocorre quando se superam os trs nveis da interdisciplinaridade: grau de aplicao (resultados de uma disciplina apropriados por outra), grau epistemolgico (vocbulos e mtodos de uma disciplina passam a ser aplicados por outra disciplina) e grau de

15

Slaughter, Tulumello e Wood (1998, p. 384) identificam, ento, trs campos temticos

em que as duas disciplinas compartilham dos mesmos pressupostos: no debate sobre

governana global; nos estudos sobre a importncia de valores comuns, refletidos no papel

dos atores, de suas identidades, seus interesses e todas as estruturas sociais, no sistema

internacional; e nas pesquisas sobre a relao entre os nveis domstico e internacional e suas

interferncias, ampliando o estudo do internacional para relaes entre Estados e

sociedades. A partir desses trs marcos, os autores apresentam seis assuntos especficos em

que ambas as reas podem colaborar: (i) a conceituao dos sistemas internacionais mais

eficientes, com a preocupao de identificar quais estruturas especficas encaminham ou

respondem melhor a determinadas questes colocadas no mbito internacional; (ii) a

proposio dos melhores procedimentos domsticos para as relaes internacionais, com

vistas a propor tipos de estruturas internas mais adequadas e eficientes na coordenao dos

interesses internos com as demandas e aes no mbito internacional; (iii) compreenso e

avano na definio dos preceitos comuns s disciplinas, de forma a identificar como

elementos-chave do sistema so constitudos (tais como os atores, as estruturas sociais e os

mecanismos de poder); (iv) a compreenso das transformaes das estruturas constitutivas das

relaes internacionais, sobretudo na sua referncia ao estado enquanto elemento central; (v) a

compreenso de como e quanto os novos agentes do sistema internacional especialmente os

agentes subnacionais diferem dos agentes tradicionais (estados); e, por fim, (vi) a proposta

para anlise sobre como se pode aprofundar a relao entre os planos domstico e

internacional, por meio de instituies e relaes mais permanentes.

Essa frente de colaborao traada pelos autores a partir de novas tendncias de

anlise tanto nas Relaes Internacionais como no Direito Internacional que ainda hoje so

tidas como vanguardistas em suas posies. De um lado, no campo de Relaes

Internacionais, os autores referem-se s teorias do Liberalismo, do Institucionalismo, do

Construtivismo e, no limite, do Racionalismo, destacando sempre suas contribuies para se

ampliar o espectro de anlise sobre o funcionamento do sistema internacional. De outro lado,

no campo do Direito Internacional, a principal frente de dilogo estabelecida com a teoria

do Direito Internacional como processo e suas prprias derivaes, mas tambm so

enquadradas produes que se qualificavam como parte do movimento sobre Novas

abordagens sobre o Direito Internacional ainda que o dilogo com esta ltima linha no

gerao de novas disciplinas (gera-se uma especialidade pela importao dos mtodos de outra disciplina, mantendo-se a referncia da disciplina primria).

16

tenha se estabelecido de forma explcita como uma referncia a uma escola, mas apenas com

citaes indiretas em notas de rodap26.

No artigo de 1998, Slaughter amplia o conjunto de abordagens a partir das Relaes

Internacionais e do Direito Internacional, a partir dos quais identifica agendas comuns entre as

disciplinas. O chamado para uma joint discipline foi algo que influenciou significativamente o

Direito Internacional, que passou a ver este debate sobre interdisciplinaridade/

transdisciplinaridade como um mtodo do Direito Internacional27 algo que se fortalece no

argumento presente na produo de Slaughter em 2000.

4 Da teoria prtica: as Relaes Internacionais como instrumento e os juristas

como arquitetos

O terceiro texto de Slaughter (2000) analisado compreende o material preparado para

seu curso na Academia de Direito Internacional de Haia sobre International Law and

International Relations. O material foi preparado com vistas ao dilogo com estudantes de

Direito, que, portanto, pretenderiam conhecer a relevncia das Teorias de Relaes

Internacionais e compreender melhor o papel do Direito nessa relao interdisciplinar.

Slaughter (2000, p. 21, 27), j na abertura dos textos, enquadra as teorias de Relaes

Internacionais como tecnologias disponveis para o jurista, que podem auxili-lo na construo de

um mapa mental sobre o funcionamento do sistema internacional. Mas, mais do que um guia para

definir o seu caminho aquele do jurista , Slaughter se preocupa em atribuir ao jurista um papel

mais atuante na realidade social, e, ento, tambm coloca as teorias de Relaes Internacionais

como um instrumento para que o jurista possa avanar at onde quer chegar ou onde entende

26 A esse respeito so marcos no debate os trabalhos de David Kennedy e Martti Koskenniemi. Cf. KENNEDY, 1987; KENNEDY, 1994; e KOSKENNIEMI, 1989.27 Essa perspectiva alimentada por outra linha de debate conduzida por Abbott e Slaughter no final da dcada de 1990 sobre mtodos em Direito Internacional. Nesta linha de debate, esses acadmicos procuraram compreender como os juristas na rea internacional definiam o direito e o seu papel na construo da realidade distanciaram-se assim, conscientemente, do que tradicionalmente foi estudado como mtodo em Direito Internacional (tcnicas para se definir a coerncia e a racionalidade do Direito Internacional). Nesta esteira, em Ratner e Slaughter (1999), os prprios autores enquadraram o debate sobre a interdisciplinaridade que alimentaram ao longo dos anos 1990 como um dos mtodos em Direito Internacional, ao lado de seis outros mtodos que indicam como relevante para o debate poca: i) o positivismo jurdico; ii) a escola procedimental de New Haven; iii) a do Direito Internacional como processo; iv) os estudos crticos em Direito; v) a filosofia feminista; e vi) o debate sobre Direito e Economia (RATNER; SLAUGHTER, 1999, p. 293). E esta passou a ser uma relao reproduzida posteriormente pela academia nos Estados Unidos, tal como em Dunnof e Pollack (2012), Shaffer e Ginsburg (2012).

17

necessrio chegar28. Como um curso destinado a estudantes que almejam traar uma carreira

internacional ou voltada para o sistema internacional, Slaughter reconhece que a construo dessa

agenda no visa apenas a fomentar o debate acadmico, mas sobretudo orientar as aes prticas de

juristas e polticos em geral (SLAUGHTER, 2000, p. 190). E, nesse contexto, assegura, em sua

retrica, s Relaes Internacionais o papel de um dos recursos mais essenciais para a prtica do

jurista (SLAUGHTER, 2000, p. 29).

No material do curso, Slaughter compromete-se a apresentar aos seus estudantes (i)

trs principais linhas de Teorias de Relaes Internacionais (Realismo, Institucionalismo e

Liberalismo); (ii) trs situaes especficas (sobre interveno humanitria, sobre o papel de

ONGs na formao do Direito Internacional e sobre a reforma do sistema de soluo de

controvrsias da OMC) em que as lentes das teorias das Relaes Internacionais so aplicadas

de forma elucidativa aos alunos de Direito; e (iii) uma sntese, mas tambm uma nova agenda,

sobre o debate interdisciplinar entre Direito e Relaes Internacionais.

A agenda no incio dos anos 2000, de acordo com Slaughter, poderia ser traada a partir

de cinco assuntos: uma anlise sobre o poder; uma anlise sobre a relao entre instituies

formais e instituies no formais, a partir das categorias do direito; a igualdade mas a diferena

na prtica entre os institutos de soft law e de hard law; a produo para verificar o quanto o

regime faz a diferena nas relaes; e as evidncias de que as polticas domsticas so muito

relevantes para o sistema como um todo (SLAUGHTER, 2000, p. 190). De acordo com

Slaughter, todas estas seriam preocupaes que permeiam o Direito e que chamam a sua ateno

para os limites de suas concepes formais e seu mtodo predominantemente dogmtico.

Slaughter contextualiza seus exemplos com referncia aos trabalhos de John Ruggie,

Sikkink, Michael Byers, Stone Sweet, Kratochwil e Toope, os quais se preocupam em indicar

como o Direito regula, mas tambm em como constitui a realidade descrita (SLAUGHTER,

2000, p. 55-188). Aps a anlise dos casos, Slaughter se inspira em Stephen Krasner para

reiterar o papel instrumental das teorias de Relaes Internacionais: The task of political

scientists is primarily to explain what is and thereby to hint at what might be (p. 234). E, na

sequncia, seguindo suas fontes de inspirao a partir da cincia jurdica, conclui que, se [...]

the world itself must be imagined before it can be built (p. 235), cabe aos juristas a posio

de arquitetos do sistema, a partir dos diagnsticos apresentados pelos cientistas polticos ou

das teorias de Relaes Internacionais.

28 Slaughter assim sintetiza esta relao: [] an effort to understand the realm of the possible and expand the realm of the probable (2000, p. 28).

18

5 Um balano pragmtico aps vinte anos de debate

Nestes ltimos vinte anos desde a publicao dos artigos cnones da chamada para o

debate interdisciplinar (ABBOTT, 1989; SLAUGHTER, 1993), a produo acadmica neste

campo se proliferou para alm das fronteiras dos Estados Unidos. O livro recentemente

publicado por Dunoff e Pollack trouxe a proposta de registrar esse processo e avaliar o valor

agregado pelo debate compreenso do Direito pelas Relaes Internacionais (DUNOFF;

POLLACK, 2013, p. 4). A coletnea com contribuies de vinte e oito autores, das duas

disciplinas e com diferentes abordagens, inclui um artigo de Slaughter.

Slaughter (2013), em uma posio de homenageada29, retoma o debate entre a relao

interdisciplinar entre Direito e Relaes Internacionais, mas a partir de outro contexto. No

mais como uma contribuio acadmica, mas como um relato sobre a experincia de

vivenciar o processo de formulao da poltica estadunidense no Departamento de Estado e a

influncia que verificou das disciplinas na funo de uma funcionria de estado.

Slaughter, aps os vinte anos de debate, no se preocupa em seu artigo em responder

s crticas s suas perspectivas na conduo do debate interdisciplinar. Ao contrrio, a autora

refora i) seu enfoque excessivamente Liberal, ii) a perspectiva de mtodo-objeto na relao

entre Relaes Internacionais e Direito Internacional e iii) a aposta no potencial transformador

exclusivamente do Direito, reforando o vis positivista sobre as Relaes Internacionais.

O enfoque Liberal j evidente na nova agenda de dilogo que a autora prope.

Slaughter indica trs novos eixos que desafiam a lgica das Relaes Internacionais e do

Direito e precisam de contribuies conjuntas entre as disciplinas: i) um direito da

humanidade que englobaria diferentes situaes nas quais os indivduos so sujeitos diretos

de Direito Internacional, tanto como sujeitos de proteo e detentores de obrigaes, ii) atores

privados com funes pblicas, assunto que compreende as parcerias pblico-privadas e a

noo de governo como uma plataforma para congregar e conectar atores pblicos e privados

e atores privados entre si, e iii) os temas de liberdade e segurana no espao virtual.

Em tom de depoimento, Slaughter registra a importncia que o trabalho da academia

assumiu para conduo efetiva da poltica externa, na gesto Obama, em reforo ao que j

ocorria em administraes prvias (SLAUGHTER, 2013, p. 614). Este registro orienta a

29 E isso inclui uma srie de crticas s suas abordagens e alguns enfoques de seus artigos publicados sobre a interdisciplinaridade, v. DUNNOFF e POLLACK (2013).

19

principal preocupao presente no artigo que a contribuio que cada disciplina pode ofertar

outra.

E, apesar de Slaughter reconhecer neste seu ltimo texto que os juristas estariam em

melhores condies de responder quelas novas questes, a partir de tcnicas jurdicas (tais

como analogia, precedente, categorizao, recategorizao, ruptura e reconceituao), os

estudos em Relaes Internacionais tambm poderiam agregar s atividades dos juristas. Essa

nova aposta estaria nos trabalhos empricos desenvolvidos no mbito das Relaes

Internacionais, o que evidencia, por parte da autora, uma compreenso do Direito mais como

uma disciplina profissional do que acadmica. Slaughter assegura que os juristas podem se

valer dos estudos empricos nas Relaes Internacionais para responder a uma pergunta ou

incrementar um argumento, determinando qual o impacto que diferentes categorizaes

jurdicas tm para um dado objetivo de poltica pblica (SLAUGHTER, 2013, p. 624).

Observa-se, assim, que a aposta na interseo prtica e intelectual, e at na integrao,

entre o Direito Internacional e as Relaes Internacionais continua, apesar de Slaughter

pontuar que as Teorias de Relaes Internacionais teriam se tornado muito restritas, devido a

sua obsesso com questes metodolgicas que ignoram a qualidade ruim dos dados empricos

(SLAUGHTER, 2013, p. 624)30.

O que se acentua nesse artigo de 2013 algo j presente em 2000 o status de

instrumento de mudana atribudo ao Direito Internacional, ou melhor, a seus operadores: o

que os juristas pensam e escrevem pode influenciar diretamente o campo que eles estudam;

obras acadmicas em Direito podem virar lei e moldar o estudo e a prtica futuros do direito;

e isso tambm molda a realidade que as Relaes Internacionais estudam31. Essa forma de

30 As crticas a uma hegemonia dos mtodos quantitativos que se comea a desenhar no campo das Relaes Internacionais, especialmente nos Estados Unidos, vm tambm de outros autores. John Mersheimer e Stephen Walt (2013, p. 29) apontam que cada vez mais os jovens acadmicos vo sendo treinados para usar estatstica como abordagem metodolgica primria, negligenciando abordagens tericas. Os autores apontam fragilidades nessa tendncia em torno da baixa qualidade de muitos dos dados em Relaes Internacionais, e da importncia que muitos do campo ainda atribuem para fenmenos que nunca ou raramente aconteceram. Benjamin Cohen (2010, p. 888), por sua vez, ao destacar os efeitos do que chama de economicismo na Economia Poltica Internacional, tambm chega a uma anlise semelhante ao apontar para uma ntida perda de ambio da disciplina nos Estados Unidos. Como o modelo cientfico depende da disponibilidade de dados confiveis, a pesquisa tenderia a se afastar de questes que no possuem os nmeros necessrios, automaticamente marginalizando questes amplas que no podem ser reduzidas a um conjunto manejvel de regresses ou anlises de estudo de caso. Robert Keohane (2009, p. 34), em relao a essa nova Economia Poltica Internacional, aduz que a mesma presta muito pouca ateno forma como interesses so construdos e como polticas so sujeitas a processos de difuso internacional, sendo notavelmente relutante a focar nas grandes mudanas que se do na poltica internacional.31 Slaughter (2013, p. 623) exemplifica estas posies: [] the extent to which the law chooses to merge physical and virtual space has enormous implications for whether IR scholars choose to study state action in virtual space (cyber war, cyber espionage, censorship, spreading false information and assuming false identities, etc.) the same way that they study state action on the high seas or in space.

20

compreender o Direito tem, contudo, relao com as principais teorias do Direito

Internacional com as quais Slaughter dialoga, oriundas basicamente das escolas de Harvard e

Yale, quais sejam: a do Direito Internacional como processo e a escola procedimental de New

Haven.

Essa abordagem sobre o carter normativo do Direito e tambm das prprias teorias de

Relaes Internacionais traos que, segundo Slaughter, so iluminados pelo dilogo

interdisciplinar (SLAUGHTER, 2013, p. 624) parece ser o nico momento em que

Slaughter procura responder a crticas apresentadas ao seu movimento iniciado nos anos 1990

para um dilogo entre as disciplinas32. No mais, desta ltima contribuio, restou apenas o

comprometimento de Slaughter com o debate: In sum, twenty years on, I remain committed

to the intellectual and practical intersection and even integration on IL [International Law]

and IR [International Relations] scholarship and practice.

6 O legado da trilha de Slaughter: apostas e crticas

Um legado inegvel de Slaughter foi nomear os dilogos e trabalhos entre as reas

como uma nova abordagem metodolgica intitulada Direito Internacional e Relaes

Internacionais (DUNOFF; POLLACK, 2013, p. 3-4). Essa foi uma iniciativa que partiu de

um diagnstico mas que se beneficiou da oportunidade na carreira de Slaughter. A partir de

sua formao em ambas as reas, Slaughter, em seus textos de 1993 e 1998 mais claramente,

parece procurar articul-las tambm com o propsito de criar um novo espao para si na

academia parte de um movimento de profissionalizao e criao de nichos acadmicos

muito forte na academia estadunidense33. Da tambm a forte crtica de que tal abordagem

seria relevante exclusivamente no contexto da academia nos Estados Unidos34.

32 Aqui Slaughter procura responder s crticas apresentadas por alguns construtivistas e tambm por alguns juristas tal como Koskenniemi (2001 e 2009).33 Em outro contexto, referindo-se ao apelo dos mtodos quantitativos, Mearsheimer e Walt (2013, p. 39) do conta desse fenmeno de profissionalizao da academia. Assim como em outras atividades profissionais, tambm as disciplinas acadmicas procurariam salvaguardar sua autonomia e maximizar o prestgio e benefcios materiais para os seus membros. Um dos meios para tanto a tentativa de criao de abordagens mais especializadas. 34 Robert Beck, por exemplo, argumenta que no Reino Unido no houve e no h uma diviso entre Direito Internacional e Relaes Internacionais to pronunciada quanto nos Estados Unidos. Entre os acadmicos de Direito Internacional e de Relaes Internacionais da Escola Inglesa no haveria desconfiana, embrancing the role of law, rules and norms in international society, often proclaiming themselves to be working in Grotian tradition (BECK, 2009, p. 14). Cf. tambm KOSKENNIEMI, 2000, p. 30. Esse perfil do debate vinculado academia dos Estados Unidos muito evidente na prpria celebrao por Bederman (2006, p. 48) dos cem anos

21

Dado este primeiro passo, a partir de seu texto de 1998 e cada vez mais presente,

Slaughter passa a avanar para um enfoque mais prtico, com um dilogo terico mais

restrito. Aps 2000, Slaughter assumiu posies administrativas e de liderana, seja na

academia, seja no setor pblico, o que naturalmente reduziu o seu envolvimento com o debate

acadmico, a partir de quando ela argumenta um envolvimento seu com a

interdisciplinaridade na prtica (SLAUGHTER, 2013, p. 624). Slaughter limitou-se ao debate

cientfico sobre a interdisciplinaridade, portanto, apenas entre os anos 1990-2000, o que

justifica a ausncia de uma srie de respostas desejveis a crticas que lhe foram apresentadas

posteriormente sua chamada e que ganharam mais fora a partir do reconhecimento que o

debate interdisciplinar assumiu a partir do sculo XXI.

notvel, tambm, no encaminhamento do seu trabalho sobre o debate

interdisciplinar, que a sua perspectiva terica Liberal aparece de maneira cada vez mais

totalizante, pautando e ao mesmo tempo limitando o desenho das questes que mereceriam a

abordagem conjunta de Direito Internacional e Relaes Internacionais35. Slaughter no

fomentou apenas uma agenda interdisciplinar, ela tambm reforou o Liberalismo como teoria

das Relaes Internacionais e sua capacidade explicativa do mundo. Nesse sentido, as

propostas de agenda de trabalho interdisciplinar, assim como as perguntas que lana em seus

textos de 1998, 2000 e 2013, so todas orientadas para preocupaes especficas do

Liberalismo. No mesmo sentido, Slaughter enfatiza o seu dilogo nos termos da potencial

interdisciplinaridade com estudos no campo do Direito Internacional que favoream ou

dialoguem melhor com tal linha terica das Relaes Internacionais. Nesse quadro, observa-

se, a partir dos trabalhos aqui selecionados de Slaughter, o que qualificamos como um ganho

endgeno e uma perda exgena.

A sua contribuio endgena foi dentro do campo da Teoria Liberal. Slaughter

fortaleceu, com o dilogo interdisciplinar, o papel do Direito no campo dessa linha terica das

Relaes Internacionais. A autora conseguiu evidenciar que o Direito possui um papel mais

complexo do que de mero objeto de estudo, ao lhe conferir um papel normativo, com

potencial transformador da realidade social. Essa contribuio no se faz, contudo, sem um

prejuzo exgeno para o debate interdisciplinar dentro das teorias de Relaes Internacionais.

Considerando Slaughter como um piv do debate nos Estados Unidos nos anos 1990, seus

da publicao do American Journal of International Law, apresentando que uma das contribuies intelectuais mais significativas nesse ambiente teria sido esse enfoque na questo metodolgica do Direito Internacional, incluindo a referncia aos trabalhos publicados por Slaughter (1993 e 1998) naquele peridico.35 Ver nota de rodap 4.

22

trabalhos e propostas estigmatizaram o debate interdisciplinar como parte do campo das

teorias Liberais. Ponto este que foi colocado em questo por outras linhas tericas com

perspectivas de dilogo interdisciplinar, sobretudo a partir dos anos 2000.

Em seu texto de 2013, Slaughter procura desvencilhar o debate Liberal do debate

interdisciplinar, contextualizando outras Teorias de Relaes Internacionais, como o

Institucionalismo e o Construtivismo (SLAUGHTER, 2013, p. 615-617). Mas, aqui,

novamente, restringe-se s teorias positivistas das Relaes Internacionais36, desconsiderando

teorias crticas nos campos das Relaes Internacionais e do Direito que tambm se colocaram

diante do debate interdisciplinar37.

Por fim, outro ponto a ser considerado quanto produo de Slaughter nos artigos

aqui analisados que sua iniciativa parte de campos bastante demarcados na academia

estadunidense: as teorias de Relaes Internacionais e o Direito Internacional, tais como

elaborados nesse contexto. Foi, portanto, uma reflexo a partir de instrumentos e conceitos

sobre o sistema global, seus agentes relevantes e suas formas de interao, a partir de um

contexto que o dos Estados Unidos38.

O balano final deste artigo, portanto, tambm requer uma contextualizao local, na

academia brasileira, sobre este debate e o caminho percorrido por Slaughter na agenda

interdisciplinar. possvel observar que pensar hoje uma agenda interdisciplinar no Brasil ,

certamente, dialogar com uma abordagem j aberta no campo pela produo acadmica

estrangeira. Por outro lado, tambm verdade que o contexto brasileiro distinto nestes dois

campos de estudo Relaes Internacionais e Direito Internacional. Estas so disciplinas e

reas de pesquisa, no Brasil, ainda muito dependentes das categorias oriundas do debate

cientfico estrangeiro, que carecem no apenas de categorias especficas mas de estudos

contextualizados. Por isso, a leitura da contribuio de Slaughter sobre o debate

interdisciplinar, a partir dos trpicos, requer mais do que ateno para o chamado

interdisciplinar, tendo em vista as particularidades acima apontadas na agenda e nas propostas

dessa autora.

36 As respostas da Teoria Liberal s possibilidades interdisciplinares entre Relaes Internacionais e Direito Internacional tm sofrido severas crticas. Ainda que o Liberalismo considere a capacidade transformadora do Direito no sistema internacional, ele a faz com base em uma agenda limitada, que refora a excluso de temas caros aos pases em desenvolvimento. Assim, ao tomar a economia global como dada, o Liberalismo ignoraria o papel do Direito na criao de regimes assimtricos, ao mesmo tempo que advogaria por uma poltica intervencionista, com a expanso de redes de tcnicos a implementar as melhores prticas (SOUZA, 2011, p. 25-26).37 Ver referncias da nota 19.38 Ver nota de rodap 34.

23

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