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TEMA 126 R.TEMA S.Paulo nº 36 junho 2000 P.126-147 *Doutora em Comunicação e Artes. Diretora de Pesquisa e Extensão nas Faculdades Teresa Martin. Autor e Texto Author - Text Zenaide Bassi Ribeiro Soares * ARTE COTIDIANA: ARTE COTIDIANA: ARTE COTIDIANA: ARTE COTIDIANA: ARTE COTIDIANA: A MAGIA DO CINEMA A MAGIA DO CINEMA A MAGIA DO CINEMA A MAGIA DO CINEMA A MAGIA DO CINEMA DAILY ART: THE MAGIC OF MOVIES Este trabalho trata do papel do cinema no contexto cultural da cidade de São Paulo, no seu período de metropolização. The present work refers to the role of the cinema in the cultural context of São Paulo city during its metropolisation period. Modernismo. Metrópole. Cinema. Sedução. Modern Art. Metropolis. Cinema. Charm. ABSTRACT RESUMO PALAVRAS-CHAVE KEY WORDS

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TEMA 126

R.TEMA S.Paulo nº 36 junho 2000 P.126-147

*Doutora em Comunicação e Artes. Diretora de Pesquisa e Extensão nas Faculdades Teresa Martin.

Autor e TextoAuthor - Text

Zenaide Bassi Ribeiro Soares *

ARTE COTIDIANA:ARTE COTIDIANA:ARTE COTIDIANA:ARTE COTIDIANA:ARTE COTIDIANA:A MAGIA DO CINEMAA MAGIA DO CINEMAA MAGIA DO CINEMAA MAGIA DO CINEMAA MAGIA DO CINEMA

DAILY ART: THE MAGIC OF MOVIES

Este trabalho trata do papel do cinema no contexto culturalda cidade de São Paulo, no seu período de metropolização.

The present work refers to the role of the cinema in the culturalcontext of São Paulo city during its metropolisation period.

Modernismo. Metrópole. Cinema. Sedução.

Modern Art. Metropolis. Cinema. Charm.

ABSTRACT

RESUMO

PALAVRAS-CHAVE

KEY WORDS

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Zenaide Bassi Ribeiro Soares

o final do século XIX começou a delinear-se a faceo final do século XIX começou a delinear-se a faceo final do século XIX começou a delinear-se a faceo final do século XIX começou a delinear-se a faceo final do século XIX começou a delinear-se a facemetropolitana de São Paulo. A eletricidade, ametropolitana de São Paulo. A eletricidade, ametropolitana de São Paulo. A eletricidade, ametropolitana de São Paulo. A eletricidade, ametropolitana de São Paulo. A eletricidade, a

expansão industrial, a compactação das áreas edificadas,expansão industrial, a compactação das áreas edificadas,expansão industrial, a compactação das áreas edificadas,expansão industrial, a compactação das áreas edificadas,expansão industrial, a compactação das áreas edificadas,as modernas avenidas, os bondes elétricos e uma radicalas modernas avenidas, os bondes elétricos e uma radicalas modernas avenidas, os bondes elétricos e uma radicalas modernas avenidas, os bondes elétricos e uma radicalas modernas avenidas, os bondes elétricos e uma radicalmudança nas formas de lazer iriam conferir à cidade umamudança nas formas de lazer iriam conferir à cidade umamudança nas formas de lazer iriam conferir à cidade umamudança nas formas de lazer iriam conferir à cidade umamudança nas formas de lazer iriam conferir à cidade umafeição dinâmica, surpreendente.feição dinâmica, surpreendente.feição dinâmica, surpreendente.feição dinâmica, surpreendente.feição dinâmica, surpreendente.

A introdução de diversões mecânicas transfiguravaA introdução de diversões mecânicas transfiguravaA introdução de diversões mecânicas transfiguravaA introdução de diversões mecânicas transfiguravaA introdução de diversões mecânicas transfiguravaos costumes e a cidade. Fonógrafos, lanternas mágicas,os costumes e a cidade. Fonógrafos, lanternas mágicas,os costumes e a cidade. Fonógrafos, lanternas mágicas,os costumes e a cidade. Fonógrafos, lanternas mágicas,os costumes e a cidade. Fonógrafos, lanternas mágicas,panoramas, presépios movimentados, caleidoscópiospanoramas, presépios movimentados, caleidoscópiospanoramas, presépios movimentados, caleidoscópiospanoramas, presépios movimentados, caleidoscópiospanoramas, presépios movimentados, caleidoscópiosexcitavam a curiosidade das pessoas, que se tornavam,excitavam a curiosidade das pessoas, que se tornavam,excitavam a curiosidade das pessoas, que se tornavam,excitavam a curiosidade das pessoas, que se tornavam,excitavam a curiosidade das pessoas, que se tornavam,cada vez mais, ávidas por novidades. Em 1898, em suacada vez mais, ávidas por novidades. Em 1898, em suacada vez mais, ávidas por novidades. Em 1898, em suacada vez mais, ávidas por novidades. Em 1898, em suacada vez mais, ávidas por novidades. Em 1898, em suaedição de 9 de janeiro, o jornal edição de 9 de janeiro, o jornal edição de 9 de janeiro, o jornal edição de 9 de janeiro, o jornal edição de 9 de janeiro, o jornal O Comércio de São PauloO Comércio de São PauloO Comércio de São PauloO Comércio de São PauloO Comércio de São Pauloanunciava uma seção de cinema, ressaltando oanunciava uma seção de cinema, ressaltando oanunciava uma seção de cinema, ressaltando oanunciava uma seção de cinema, ressaltando oanunciava uma seção de cinema, ressaltando osurpreendente realismo das imagens em movimento.surpreendente realismo das imagens em movimento.surpreendente realismo das imagens em movimento.surpreendente realismo das imagens em movimento.surpreendente realismo das imagens em movimento.

A essência do moderno se consubstanciava noA essência do moderno se consubstanciava noA essência do moderno se consubstanciava noA essência do moderno se consubstanciava noA essência do moderno se consubstanciava nomovimento. O carnaval também agitava as ruas Direita, Sãomovimento. O carnaval também agitava as ruas Direita, Sãomovimento. O carnaval também agitava as ruas Direita, Sãomovimento. O carnaval também agitava as ruas Direita, Sãomovimento. O carnaval também agitava as ruas Direita, SãoBento, Quinze de Novembro e Largo da Sé, com multidõesBento, Quinze de Novembro e Largo da Sé, com multidõesBento, Quinze de Novembro e Largo da Sé, com multidõesBento, Quinze de Novembro e Largo da Sé, com multidõesBento, Quinze de Novembro e Largo da Sé, com multidõesse acotovelando para assistirem a batalhas de confete ese acotovelando para assistirem a batalhas de confete ese acotovelando para assistirem a batalhas de confete ese acotovelando para assistirem a batalhas de confete ese acotovelando para assistirem a batalhas de confete eserpentina e desfiles de carros alegóricos.serpentina e desfiles de carros alegóricos.serpentina e desfiles de carros alegóricos.serpentina e desfiles de carros alegóricos.serpentina e desfiles de carros alegóricos.

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DAILY ART: THE MAGIC OF MOVIES

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Em 1898, no Parque Bois de Bologne, antiga Chácarada Floresta, na Ponte Grande, havia festividades combandas de música, corridas de bicicleta, regatas, corridasde saco, corridas de patos no Tietê. No final do século XIX,os jornais O Estado de São Paulo e O Comércio anunciavamvendas de fonógrafos e cinematógrafos, que exibiamfotografias animadas. Fonógrafos estavam em grande moda,disseminados em todos os cantos da cidade. Fotógrafosabriam “stúdios”, colocavam anúncios em jornais,freqüentavam os jardins públicos. Jogos de boliche,temporadas circenses, espetáculos de ilusionismo, retretasestavam em todos os lugares.

Na cidade movimentada, circulavam bondes puxadosa burro, crescia o número de confeitarias e de cafés-concerto, como expressão de novo estilo de vida e novasopções de lazer. O maxixe tomava conta da cida-de,conforme registra o jornal O Comércio de São Paulo, emsua edição de 13 de fevereiro de 1898. O carnaval, queapresentava máscaras de todos os tipos, confetes coloridose serpentinas legítimas de Paris era animado por valsas,polcas, tangos, habaneras, mazurcas e maxixes, nos bailesdos teatros Polytheama e São José, em 1897. Em 1898, osbailes carnavalescos foram precedidos por sessões decinematógrafo, que desde janeiro vinha sendo anunciadonos jornais como “maravilhoso aparelho que reproduz osmovimentos da vida”

Agora, São Paulo tendia ao gosto francês no comer,no vestir e até nas cantigas de roda. O que as meninasricas aprendiam em francês chegava às crianças pobres, àpopulação das ruas de modo distorcido, procurandoconservar-se o som e não o significado das palavras,conforme registrou a pesquisadora Elza Dellier Gomesestudando as cantigas de roda:

“ Où est la Marguerite?

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Oh gai! Oh gai! Oh gai!Où est la Marguerite?Oh gai, franc cavalier!”

Que é da MargaridaOlê, Olê, OláQue é da MargaridaOlê seu cavaleiro!

A Europa era a moda. Ernani Silva Bruno faz citaçõesde Alessandro D’ Atri que, em 1895, contava sobre o vai-vém dos paulistas à capital da França. As relaçõescomerciais e financeiras com êsse país, a própria tendênciaao gôsto francês no vestir, no comer, na educação física eum bocado também na moral, faziam de São Paulo umpedaço de Paris. Mas havia muito mais que isso. Domville-Fife, em 1910, escreveu que passeando pela avenida Tira-dentes, com sua fileira de árvores e suas carruagens,flanqueada por casas e mansões, imaginou-se em Paris.Na rua de São Bento e no Largo do Rosário, recebia su-gestões de Londres; e aproximando-se do distrito do Tietê -“o East End de São Paulo” - julgava-se entre as docas deLisboa ou do Porto. Alguns anos mais tarde, Paul Adamachava que o centro da cidade, com suas ruas estreitasatulhadas de bondes e automóveis, seus edifícios e seusmagazines limpos, lembrava certos aspectos de Londres.

No final do século XIX os teatros multiplicavam-seem São Paulo. Surgiram o “ Teatro Minerva, o ProvisórioPaulistano, o Ginásio Paulistano e o de VariedadesPaulistanas, todos inferiores no entanto ao São José, quevinha do período anterior e se incendiou em 1898”,conforme relata Ernani Silva Bruno(1953:26). Pelo TeatroProvisório, construído em 1873, desfilaram os mais famososcantores e atores da Itália, França, Espanha e Portugal: aelite de São Paulo tinha na Europa seu paradigma cultural.

O Teatro São José havia sido inaugurado em 1864.

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Nessa época eram raros os concertos musicais em SãoPaulo, sendo, porém, comuns as serenatas, feitas porestudantes de direito. As serenatas em geral ficavam a cargode um quarteto: flauta, violino, violão e clarinete, conformeregistrou Silva Bruno (1953:893).

A música popular era ouvida na cidade desde aprimeira parte do oitocentismo. “Na área em queestacionavam os mercadores e quitandeiros, os caboclosdas redondezas cantavam de noite as suas modinhas ebatucavam a toque de viola (...) Ouviam-se também depoisdo recolhimento de algumas procissões, junto as Igrejasde São Bento ou do Rosário, o ruído seco do reque-reque,o som rouco e soturno dos tambus, das puítas e dosurucungos que, com a marimba solitária, formavam acoleção dos instrumentos africanos conhecidos em nossaterra”. Era ao som desses instrumentos que os negrospaulistanos cantavam e dançavam seus batuques, suascongadas e moçambiques, seus caiapós. Referindo-se afesta dos caiapós, Álvares de Azevedo, que tanto havialamentado o silêncio de São Paulo, confessou-se “atordoadocom o barulho dos malditos tambores”.

Nessa época havia ainda o predomínio das festasreligiosas, como as das Folias do Espírito Santo, ondetamborins eram utilizados. O piano, porém, já se insinuavapela cidade, afirmando-se inclusive como símbolo deeducação refinada e ascenção social.

A intensificação do gosto pelo piano indicava aformação de um novo tipo de interesse musical, que seacentuou com a presença em São Paulo de companhiaslíricas, vindas do Rio de Janeiro ou do exterior e que seapresentavam no Teatro São José, que funcionou até 1898,quando desapareceu num incêndio.

Com o incêndio do Teatro São José a tradição teatralda cidade ficou a cargo do Politeama, todo de zinco, comforma circular, porque antes fora construído para abrigar o

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circo de Frank Brown. Situado na Avenida São João, tinhatrinta e um camarotes, doze frisas, duzentas varandas eplatéia para quinhentos e setenta e quatro cadeiras”,segundo informa Edmundo Amaral, citado por Ernani SilvaBruno.

Com o século XX, chegavam à São Paulo, em maiode 1900, os bondes elétricos que transfiguravam a paisagemda cidade e enchiam os jornais de anúncios, em que seincluiam programas elegantes como visitas ao ClubeTrianon. De quinze em quinze minutos, havia bondes paraa Paulista, anunciava o Diário Popular. Em 1903, iniciavam-se as obras de construção do Teatro Municipal, dirigidaspor Ramos de Azevedo, Domício e Claudio Rossi. Quandofoi inaugurado, em 1911, disse Aureliano Leite que o TeatroMunicipal era considerado o edifício mais importante detodo o Estado. “Sobranceiro no vale do Anhangabaú, êlese destacava esplêndidamente, visto do viaduto do Chá ouda rua Líbero Badaró, com o parque emoldurando-lhe umadas fachadas”.

A pintura decorativa desse teatro esteve a cargo deOscar Pereira da Silva, “a quem se devem as três telas queocupam o centro do teto, no salão de festas e também deMoselli Pusello, de Giusepe Pangella e de SebastiãoSparapani. Antes, Almeida Júnior pintara nos forros internosda Catedral da Sé, então restaurada, painéis representandoNossa Senhora, na Capela-Mor, e a conversão do padroeiroSão Paulo no corpo do edifício.

O interesse pelas artes plásticas traduziu-se pelainstalação, em 1911, da Pinacoteca do Estado. Nada, porém,fascinava as multidões mais que o cinema. Salas de exibiçãodisseminavam-se por todos os cantos da cidade e, diantedas bilheterias, filas intermináveis de pessoas bemarrumadas, muito bem vestidas e penteadas, aguardavam,ansiosas, o instante de entrarem na sala.

Com o início do século XX, já se consolidava o jeito

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apressado de viver em São Paulo. As mudanças que seoperavam no estilo de vida de grandes cidades brasileirascomo São Paulo e Rio de Janeiro provocavam polêmicas.Em 1909, o cronista João do Rio escrevia:

“Já nada se faz com tempo. Agora faz-se tudopor falta de tempo. Todas as descobertas dehá vinte anos à esta parte, tendem a apressaros fatos da vida. O automovel, essa delícia,e o fonógrafo, esse tormento, encurtando adistância e guardando as vozes para não seperder tempo, são bem os símbolos daépoca.”

O cronista ironizava a nova espécie humana que surgia,e a que classificava de “homus cinematograficus”, e comparandoeste com o homem do século passado dizia que, no seu jeitoapressado de agir, realizava em dois meses mais do que seuantecessor conseguia realizar em dez anos. Descrevia a novaespécie da seguinte maneira:

“Nós somos uma delirante sucessão de fitascinematográficas. Em meia hora de sessãotem-se um espetáculo multiforme eassustador cujo título geral é: ‘Precisamosacabar depressa’. O homem-cinematográficoacorda pela manhã desejando acabar comvárias coisas e deita-se à noite pretendendoacabar com outras tantas. É impossível falardez minutos com qualquer ser vivo sem tera sensação de que ele vai acabar algumacoisa. O escritor vai acabar o livro, o repórtervai acabar com o segredo de uma notícia, ofinanceiro vai acabar com a operação, (...)”.

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Inquietava-se com as alterações que se introduziamnas noções de tempo, comparadas ao “bom tempo deantanho em que os nossos avós, sem relógios assegurados,sem a pressa de acabar, nos preparavam esse tempovertiginoso.” Na vertígem desse novo tempo, João do Rioantevia desilusões e catástrofes:

“Uns acabam pensando que encheram o tem-po, que o mataram de vez. Outros desespera-dos vão para o hospício ou para os cemitérios.A corrida continua. E o Tempo também, oTempo insensível e incomensurável, o Tempoinfinito para o qual todo o esforço é inútil, oTempo que não acaba nunca! É satanicamentedoloroso. Mas que fazer?”

Monteiro Lobato, anos mais tarde, investiria contraos que tinham saudade do passado: “para eles o homem éa corrupção do macaco; o automóvel é a corrupção docarro de boi; o telefone é a corrupção do moço derecados.” Em seu texto A influência americana, Lobato tece

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louvores à tecnologia desenvolvida pelos norte-americanos,dizendo:

“Se a cidade funciona, isso o deve aoengenho do povo que lhe deu o presentemáximo: a velocidade. A velocidade notransporte da carga, a velocidade notransporte do pensamento. E que lhe dá,com os maravilhosos espetáculos da artemuda, uma lição de moral, que se foraaceita, tiraria ao Rio o seu aspecto deaçougue do crime passional.”

Referia-se ao caráter lúdico do cinema norte-americano, com o lirismo de suas histórias de amor, suasbelíssimas atrizes e confessa seu próprio deslumbramento“com o encanto da sereia de olhos de gata que é a GloriaSwanson”, chegando ao ponto de colocar o próprio cinemada época como elemento positivo de influência no com-portamento agressivo de segmentos da população. Exal-ta, com ironia e bom humor o cotidiano urbano dos pas-sadistas, que assacavam contra os Estados Unidos,ressaltando a influência que já sofriam, no seu dia-a-dia,com o advento da tecnologia norte-americana difundida nopaís: “No dia em que mo apresentaram estava ele num bara sorver regaladamente um ‘ice cream soda’, muito bemposto em seu terno de Palm Beach. Viera da Tijuca debonde, estivera no escritório a ditar cartas à datilógrafa,tinha falado três vezes ao telefone e dado um pulo aoLeblon, numa Buick de praça, para concluir um negócio.Depois do ‘ice’ iria ao Capitólio ver a Gloria Swanson naFolia. O ‘ice’ refrescou-lhe as tripas; o terno de Palm Beachtornou-lhe suportável o peso do calor; o bonde o trouxerada Tijuca em trinta minutos por três tostões; as cartas feitasnuma Remington impediram que sua má letra fosse dar

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orígem a atrapalhações comerciais; as telefonadaspouparam-lhe uma trabalheira insana; a Buick permitiu-lhevoar agradavelmente até o Leblon em minutos; o cinema iafechar o seu dia com uma complexa e deleitosa impressãode arte e beleza.”

Em 1912, a cidade de São Paulo contava com quarentae cinco cinemas. Os programas cinematográficos versavamsobre vistas da cidade, inaugurações, festascomemorativas, eventos esportivos. Filmes trazidos pelaPathé Filmes e exibidos em 1907, eram entre outros “CriadaRelaxada”, “Cão Justiceiro”, “Herança Difícil”. Em 1911, osjornais registravam a apresentação de filmes da Biograph,ligada à Trust, controlada por Thomas Edison.

A Companhia Cinematográfica Brasileira tinhaexclusividade, para todo o país, do sistema colorido da PathéFrères, que era francesa. Esse sistema era conhecido comoPathécolor, e concorria com vantagem com o inglêsKinemacolor, que exigia, para exibição, projetores especiaise adaptações cromáticas.

A Companhia Cinematográfica Brasileira querepresentava a Pathé, distribuindo, vendendo e alugandofilmes, dispunha, em 1913, de importante rede de cinemasem que se incluiam, em São Paulo, os cinemas Iris, Bijou,Radium, Teatro Rio Branco, Pavilhão Campos Elísios, Smart,Ideal, Teatro Colombo, Marconi e Pathé Palace. Em 1913, oPathé Palace, situado na Praça João Mendes, era o maisluxuoso dos cinemas, com sessões diárias. Nessa época,artistas populares, em São Paulo, eram Max Linder, AndréDeed e Bigodinho (Charles Prince) - período em que o gostopela comédia era muito acentuado.

Outros cinemas foram considerados luxuosos, comoos cines República (na Praça da República), o Royal (naRua Sebastião Pereira) e o Paramount (na AvenidaBrigadeiro Luís Antonio). Além de luxuoso e confortável, oParamount tornou-se, em 1929, o pioneiro do cinema falado

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em São Paulo. Mas o luxo era sempre transitório, a todoinstante novas salas surgiam, no centro, generalizando-sesessões corridas do meio dia à meia noite. Nos bairrostambém crescia o número de cinemas: nos anos cinqüentacom população equivalente a cerca de um terço da atual,São Paulo contava com mais de 400 cinemas, com salasimensas, que viviam lotadas.

No final dos anos vinte, ao longo dos anos trinta, foimuito prestigiado o Cine Santa Helena, localizado emluxuoso prédio, predominantemente art-nouveau, situadona Praça da Sé. Decadente, funcionou até ao longo dosanos sessenta, quando ocorreu sua demolição para cederespaço à construção do Metrô de São Paulo.

Um dos mais belos cinemas paulistanos foi o CineRosário, inaugurado em 1929. “Primeira sala paulistana ater poltronas estofadas, o Rosário caracterizou-se pelo fatode nunca ter exibido fitas em programas duplos. As portaseram de cristal; o revestimento de mármore de carrara. Adecoração incluía pó de ouro, púrpura e bronze. Umexemplo era o teto de estuque, trabalhado a ouro de ondedesciam diversos pendentes. As paredes eram todasforradas de espelhos. Os assentos, em estilo Luís XV,possibilitavam a leitura confortável de jornais e revistasestrangeiros, conforme registrou o jornal O Estado de SãoPaulo, em sua edição de 13 de outubro de 1995.

A revista “A Cigarra” documentou com fotos este belocinema, que funcionava no térreo do Edifício Martinelli, aolado de Largo São Bento e contou, na sua inauguração,com a presença do Príncipe de Gales, que visitava o país.Considerado cartão postal da cidade nos anos trinta, essecinema funcionou até 1955, tendo sido reconhecido comoum marco de luxo do centro velho, ao lado de cinemascomo o Ipiranga e o Marrocos.

Com suas portas de cristal e teto com ouro, cenáriode contos-de-fada o esplendor desse cinema refletia a magia

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e o brilho de Hollywood com seu star system que enchiamas telas do mundo todo com figuras humanas tãoextraordinariamente perfeitas que ficava difícil delimitar aszonas do real e do imaginário, da verdade e da ficção. Oescritor Ignácio de Loyola Brandão foi, também, presa desseencantamento:

“Que lugar mágico era aquele, onde todasas pessoas tinham dentes brancos,branquissimos, luminosos, brilhantes? Nãohavia uma só cárie, uma obturação, umdente encavalado. Os dentistas deHollywood eram feiticeiros, faziam milagresnas bocas. Ou, então, quem quer quenascesse naquela terra era privilegiado,semideus, príncipe.”

O cinema seduzia as massas que se auto-seduziamna cidade sedutora. São Paulo era um imã, atraindo gentede todos os cantos do país e do mundo. Não parava decrescer, verticalizar-se e difundir para o país o modelo daverticalização construtiva como símbolo de progresso emodernidade. São Paulo, porém, não crescia só para alto,crescia para os lados; os vazios urbanos foram sepreenchendo, estruturando a Grande São Paulo.

O processo de estruturação da Grande São Paulo,com o crescimento dos subúrbios e arredores através deintenso retalhamento do solo, configura-se basicamente apartir do primeiro quartel do século XX. É, contudo, a partir1940 que ocorreu o que Jurgen Richard Langebuch (1971)chamou de “metropolização recente”. Esse crescimentomaterializou-se através de três processos:

I - Compactação da área edificada.

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II - Expansão da área edificada sobre porções dosarredores que não tinham conhecido umdesenvolvimento urbano expressivo.

III - Expansão da área edificada sobre porções dosarredores significativamente suburbanizados,compreendendo a absorção territorial denumerosos núcleos suburbanos.

Entre 1915 e 1940, iniciara-se a metropolização. “Odesenvolvimento de subúrbios residenciais anteriormenteapenas incipiente, agora se inicia de modo amplo, e ganhacorpo”, ao mesmo tempo em que se acelerava aindustrialização suburbana, registrou Langebuch. A ferrovia,na época o melhor meio de transporte de carga e depassageiros, comandava o processo de industrializaçãosuburbana. A partir de 1940, a circulação rodoviária passoua apoiar de forma crescente o desenvolvimento suburbanoenquanto a maioria dos núcleos urbanos fundia-se, atravésde loteamentos e ocupação das áreas intermediárias vazias.O crescimento vertical da cidade passou a ser intenso emvárias partes, inclusive nos subúrbios, conferindo à SãoPaulo feição própria, dinâmica, compacta e contínua. Essacontinuidade na verticalização acabou por atribuir a SâoPaulo uma característica distinta de Nova York, onde osaltos edifícios concentram-se em Manhattan.

Metrópole superedificada, São Paulo virou “esfingede cimento e aluminio”, como disse, no poema, AllenGinsberg. Embora não falasse sobre São Paulo é como sefosse, porque há reconhecido mistério e fascínio nasgrandes cidades, no movimento, na multidão, comoregistrou Edgar Allan Poe:

“ Era uma das artérias principais da cidade eregurgitava de gente durante todo o dia. Mas,

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ao se aproximar o anoitecer, a multidãoengrossou e, quando as lâmpadas seacenderam, duas densas e contínuas ondasde passantes desfilavam pela porta. Naquelemomento particular do fim do dia eu nuncame encontrara em situação similar e, por isso,o mar tumultuoso de cabeças humanasenchiam-me de uma emoção deliciosamenteinédita”.

Como Allan Poe, também Guilherme de Almeidaolhava a multidão “com minucioso interesse, as inúmerasvariedades de figuras, traje, ar, porte, semblante e expressãofisionômica”, que viviam em São Paulo (Cosmópolis:1962):

“O homem carregava um sorriso para simesmo: como um pensamento. Não vianinguém, ninguém o via. Ia, apenas ia (...) Eatrás dele, e na frente dêle e com êle, ecomo êle iam outros e outros panos prêtos:iam, apenas iam, mais iam sempre, comouma porção de destinos, direitos e devagar,cheios de sorrisos para si mesmos, comopensamentos; sem ver ninguém, ninguémos vendo (...) Homens diferentes eindiferentes. Sírios alourados de Beirute, deDamasco (...) árabes morenos regougandoa sua linguagem de consoantes secas (...)Egipcios sutis, laboriosos, com umaesperteza de fellah no andar ...”

A cidade é expressão material das infinitaspossibilidades trazidas pelo progresso: espaço queengendrou novas maneiras de sentir, olhar, perceber, viver.Ali, como diz Baudelaire, a “população se mata esperando

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as maravilhas a que o mundo lhe parece dar direito; sentecorrer sangue purpúreo em suas veias e lança um longoolhar carregado de tristezas, para a luz do sol e para asombra dos grandes parques”.

A sedução é grande. Sabe-se que a cidade encerraperigo, todos querem salvar-se, mas a ameaça iminente dorisco não inibe um passo, um gesto. O encanto da cidadese impõe, de início como presença abstrata, depois comoforça concreta. A cidade é sedução e desejo: palco damodernidade.

Rolos de fumaça, máquinas velozes, multidãocompacta: o observador encantado admira o pulsarincessante da cidade, e quer incorporá-la a si, para integrar-se no esfusiante progresso que ela prenuncia, como espaçoda modernidade. O poeta modernista Menotti Del Picchiaqueria que a cidade atropelasse o bucolismo parnasiano,para introduzir vigor urbano à nova poesia:

“Queremos luz, ar, ventiladores, aeroplanos,reivindicações obreiras, idealismos, motores,chaminés de fábricas, sangue, velocidade,sonho, na nossa arte. E que o rufo de umautomovel (...) espante da poesia o últimodeus homérico, que ficou anacronicamentea sonhar na era do Jazz-band e do cinema,com a flauta dos pastores de Arcádia ...”.

“Na era do cinema”, expressão da modernidade napoesia de Menotti del Picchia, o cinema engendrou novapoesia, onde o homem urbano esperava tudo o que o“mundo moderno”, revelado pela nova cultura tinha a lheoferecer: ou seja a felicidade. A promessa sedutora estavaali nas ruas, nos cartazes dos cinemas. Acessível a todos,

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a felicidade.Nem tudo, porém, é fácil na cidade. Pelo contrário.

Na metrópole, o caminho tem de ser aberto a golpes defaca: o que pressupõe, como diz Marshall Berman (1986),corpos animais retalhados, devorados. Viver é dificil, comodemonstra Guilherme de Almeida falando sobre São Paulo:

“O trabalho e o descanso em promiscuidade.Trabalho nas sapatarias, nas fábricas de sandáliase alpercatas, com seu cheiro adstringente detanino e seu chio fino de roldanas e polias decouro. Descanso nos cafés abarrotados degrupos imóveis olhando das portas, ou bebendoa sua aguardente...”

Sobre São Paulo também falou Alcântara Machado,tendo o cuidado de reproduzir o ritmo frenético da vidaurbana com os elementos que o compõem: o motor, ocarro, o transporte coletivo, como o bonde na época, oburburinho, o tumulto, a aglomeração humana, asmassas de transeúntes, a algazarra, o caráter efêmerodas ruas, o futebol, a forte presença italiana na cidade,as canções napolitanas, o confronto das torcidas doPalestra Itália (Palmeiras) e do Corinthians, registrandoainda o grito de guerra da torcida corinthiana no finaldos anos vinte:

Aleguá - guá - guáAleguá - guá - guá

hurra! hurra! Corinthians!

Alcântara Machado conta a história de Gaetaninho járevelando a influência do cinema no seu modo de narrar:os fatos são ordenados em imagens, passam ao leitor anítida impressão de estar “vendo” um filme, no decorrer doato de leitura. Os acontecimentos se sucedem,

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simultaneamente, como nos fotogramas de um filme. Afragmentação da narrativa se equiparada à fragmentaçãoda intriga no cinema (fotomontagem) poderia ser chamadade cenas-fragmentos. Nessa obra ele também consegueuma comunhão com o tempo histórico, a cidade e o cinema.

As perversões também estão ali, são os preconceitosraciais e nacionais, eufemizados, as mágoas do dia-a-dia, otrabalho pesado, os sonhos impossíveis, a morte. Mas,acima das perdas, as luzes da cidade fascinam. O que falta,o cinema põe-repõe. Concretiza o mito de Narciso, quetendo perdido a irmã gêmea resignou-se à sua falta atravésde um atraente engano que o confortava no seu desgosto.Mesmo sabendo que não era a irmã a quem via nas águas,adquiriu o hábito de mirar-se nas fontes.

A memória é luta contra a morte; na cidade, resistecontra a tecnologia que arquiva o passado, para ressaltar onovo, fazendo apologia do existente. Na cidade, sucedem-se as ruínas de tudo que o novo tenta soterrar, enfrentandosempre a resistência da memória:

“Novos palácios, pedras, velhos subúrbios,tablados, tudo para mim se transforma emalegoria e mais do que as rochas pesam emmim as mais caras lembranças”.

Se o autor desse poema, Baudelaire, refletia sobreParis e seus mistérios, onde se decantavam as mais novase típicas realizações materiais e espirituais da sociedademoderna, quem falou sobre São Paulo foi Guilherme deAlmeida, descrevendo os vários povos, que, em busca denovas condições de vida e trabalho, formam seu povo,transformando em poesia seu caráter cosmopolita:

“Rosa-dos-Ventos. Alto da Moóca. É aqui em cimaque moram todos os ventos de São Paulo. Rua doOratório: que não é rua e não tem nenhum oratório.

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Uma subida alongada, cansada, arrastada. Vai, não vai... Em segunda: não vai. Em primeira: vai. Foi. Pronto!O bairro húngaro de São Paulo. (...) E passam casas.Pequenas. Pequeníssimas. Terrenos de seis metrospor trinta. Construídas lá no fundo. Apenas o essencial:cozinha e quarto (cozinha, principalmente). Aqui, nafrente, jardinzinho ...” (10 de março de 1929)

“E o auto passou rente da sobrecasaca larga. E asobrecasaca foi se afinando de perfil, para alargar-se de novo, logo depois, vista de frente. Cara a caracom a primeira cara do ghetto paulistano. Cara? -Barba: barba e nariz. O primeiro Judeu. Andava comum vagar digno da sua sobrecasaca” (31 de março de 1929)

“Tudo confuso. Esthônia (com “h”?) ... Lettônia (com“tt”?)... Lituânia (...) tudo confuso. E a confusão escurada minha geografia caminha comigo, no lusco-fusco

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de um crepúsculo dúbio, pelos barulhos da RuaGuaicurus, caminho de Vila Anastácio.” (7 de abril de 1929)

“Aqui, onde começa e acaba o Japão de São Paulo.Começa e acaba de repente. Porque é pequeno,pequenino, pequenininho este Japão: e assim são todosos Japões possíveis. Concentração absoluta: Rua Condede Sarzedas, tôdas de casas sem fisionomia como ascaras da multidão ...” (17 de março de 1929)

Falando sobre a Mooca, o Bom Retiro, a Vila Zelina, aLiberdade e sobre tantos outros bairros, Guilherme deAlmeida fez uma colagem, mostrando os vários rostos dacidade, sua heterogeneidade social, onde até uma linguagemnova se criou e foi registrada por Juó Bananére (pseudônimode Marcondes Machado), autor de La divina increnca. Juóregistrou a fala paulistana da época, em que se misturavamo dialeto caipira e termos e construções arrevesadas deestrangeiros, em especial italianos, onde o produto finalreproduzia várias línguas mal faladas que, no entanto,atingiam magnífica expressividade, bem ao gosto dosmodernistas. O caráter sedutor de tantas falas e de tantasfaces encontra-se em São Paulo, onde se incluem, na suapaisagem humana, cortiços, favelas, biscateiros, mendigos,ladrões, bêbados, escroques. São Paulo, cheia decontrastes já foi definida como “Belíndia” uma soma deBélgica, na riqueza, e India na miséria. Dizem que contémdentro de si uma Suíça e uma Biafra, que se confrontamtodos os dias, que se negam e se complementam ...

São Paulo, apelidada “Sampa” pelo baiano CaetanoVeloso, já foi vista por muitos olhares, lembrada em muitasmemórias, sempre instigando, dividindo, alertando,seduzindo. Estrela, ela própria, de tantas músicas e de tantos

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filmes nacionais, São Paulo de tantos cinemas ajudoutambém a recontar a história hollywoodiana da indústria dasedução e do engano, que estabelecia uma síntese doonírico com o real para transmitir, de forma ritualizada, ootimismo messiânico da conquista da felicidade.

O escritor João Antonio fala do ritual que envolvia ocinema na cidade de São Paulo, que, então, lhe parecia tãomágica como um filme:

“Entrar no cine Santa Cecília tinha um pesode gravidade igual ao clima gótico de umaigreja católica às seis da tarde (...) O SantaCecília ficava bem na curva dos bondes quedesciam a Praça Marechal Deodoro parapegar, na volada, os lados do Pacaembu,cortar flechando, ganhar a Igreja dasPerdizes e descer, em ponto nove, a AvenidaÁgua Branca, cantando nos trilhos. Havia umquê mágico para um passeador naquelescantões de Santa Cecilia e Barra Funda ...”

O Cine Santa Cecília também ficou na memória deMarcos Rey:

“A matinê não tinha o tamanho duma tela; eratodo o cinema, o imenso e rococozíssimoSanta Cecília, o Santa, para nós, com suatumultuosa sala de espera, sua escadaria demármore, que levava ao balcão e os compridoscorredores acarpetado da platéia ...”

Na memória da cidade feita de taipa, dor, pedra, ruínase metáforas, persistem, também, as lembranças do cinema,ponte misteriosa que unia personagens e es pectadores

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num jogo de sedução, onde conforme diz Baudrilhardcitando Descombes: “a pessoa seduzida encontra no quea seduz, o único objeto de sua fascinação, a saber, seupróprio ser todo feito de encanto e sedução, a imagemamável de si mesmo...” Ao se entregarem à contemplaçãoda obra fílmica, contemplando seu próprio sonhomaterializado, muitos moldaram seu próprio comportamento,a partir da tela, moldando o comportamento da cidade, queos moldava. Como registrou no poema, falando sobre acidade e o cinema, a escritora Renata Pallotini:

Cinema São Paulo...........................................................

domingos e fitas-em-sérieÀs treze horas e trintaA rua ficava comprida

as crianças ficavam em fila..........................................................

Cinema São Paulo.Alí eu tinha nascido

aquela era a minha cidadeaquilo era o meu esquemacontinuado e sempre novo

repetido e esperadoa verdade era na tela

...........................................................(Renata Pallotini)(Renata Pallotini)(Renata Pallotini)(Renata Pallotini)(Renata Pallotini)

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BIBLIOGRAFIABIBLIOGRAFIABIBLIOGRAFIABIBLIOGRAFIABIBLIOGRAFIAALMEIDA, Guilherme. Cosmópolis:

São Paulo/29. São Paulo:Nacional.1962.

BAUDRILLARD, Jean. Da sedução.Campinas: Papirus,1992.

BERMAN, Marshall. Tudo que é sólidodesmancha no ar. São Paulo:Companhia das Letras, 1986.

BRUNO, Ernani Silva. História etradições da cidade de São Paulo.Rio de Janeio: José Olympio,1953.

MACHADO, António de Alcântara.Novelas Paulistanas. Rio de Janeiro:José Olympio,1979.

SOARES, Z.enaide Bassi R. A Cidade e oCinema. São Paulo: Cliper,1999.