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Linguagem & Ensino, Vol. 4, No. 1, 2001 (113-140) Arquitetura da história em quadrinhos Vozes e linguagens Fernando Afonso de Almeida Universidade Federal Fluminense ABSTRACT: This paper discusses the use of iconic and verbal lan- guage in comic strips. Firstly, I discuss the various discoursal levels to which the voices that make up the narrative (author, narrator and characters) belong as well as the form such voices take at a superficial textual level. Secondly, I examine discoursal procedures whose mean- ing effects are due to their deviant nature: the transgression of discour- sal levels, that is, attributing to a particular level characteristics which are inherent to another; partial code transfer where criterion in one language is productively transferred to another. RESUMO: Este trabalho examina a utilização das linguagens icônica e verbal na construção da história em quadrinhos . Distinguem-se inici- almente os diferentes níveis discursivos a que pertencem as vozes que constroem a narrativa (autor, narrador e personagens) e a forma como elas aparecem na superfície do texto. Em seguida, serão apontados procedimentos discursivos cujos efeitos de sentido se devem sobretudo ao seu caráter transgressor: a transgressão das esferas discursivas, em que se atribui a uma instância características compatíveis com instân- cias discursivas de outro nível; a transferência parcial de códigos , onde um critério pertinente numa linguagem é transferido produtivamente para outra. Palavras-chave: história em quadrinhos, narração, linguagens. Keywords: comic strips, narration, languages.

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Linguagem & Ensino, Vol. 4, No. 1, 2001 (113-140)

Arquitetura da história em quadrinhos Vozes e linguagens

Fernando Afonso de Almeida Universidade Federal Fluminense

ABSTRACT: This paper discusses the use of iconic and verbal lan-guage in comic strips. Firstly, I discuss the various discoursal levels to which the voices that make up the narrative (author, narrator and characters) belong as well as the form such voices take at a superficial textual level. Secondly, I examine discoursal procedures whose mean-ing effects are due to their deviant nature: the transgression of discour-sal levels, that is, attributing to a particular level characteristics which are inherent to another; partial code transfer where criterion in one language is productively transferred to another. RESUMO: Este trabalho examina a utilização das linguagens icônica e verbal na construção da história em quadrinhos. Distinguem-se inici-almente os diferentes níveis discursivos a que pertencem as vozes que constroem a narrativa (autor, narrador e personagens) e a forma como elas aparecem na superfície do texto. Em seguida, serão apontados procedimentos discursivos cujos efeitos de sentido se devem sobretudo ao seu caráter transgressor: a transgressão das esferas discursivas, em que se atribui a uma instância características compatíveis com instân-cias discursivas de outro nível; a transferência parcial de códigos, onde um critério pertinente numa linguagem é transferido produtivamente para outra. Palavras-chave: história em quadrinhos, narração, linguagens. Keywords: comic strips, narration, languages.

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HISTÓRIA EM QUADRINHOS, UMA NARRATIVA FIGURATIVA

A expressão história em quadrinhos (HQ) será usada para se re-ferir a uma gama de produções de feições e formatos diversos, como a charge, a caricatura, o desenho humorístico, a história em quadrinhos propriamente dita, que Fresnault-Deruelle (1977, p. 12-13) identifica como narrativas figurativas. Nelas os recursos expressivos empregados possuem uma função prioritariamente narrativa. Seria o caso de uma charge, por exemplo. Distinguem-se, assim, narração figurativa e figu-ração narrativa. Nesta, ao contrário, a função principal dos recursos expressivos não seria narrar uma história. A narração seria um pretexto para a figuração e para a decoração, como a ilustração num tapete ou numa porcelana.

Para se situar o aparecimento da narrativa figurativa podem con-siderar-se, pelo menos, duas perspectivas diferentes.

A primeira procuraria localizá-la a partir do final do século XV. Com a invenção da tipografia com caracteres móveis, por Gutenberg, as imagens populares artesanais, produzidas e comercializadas já desde o final do século XIV, passaram a incorporar o texto escrito, como acon-teceu mais tarde com as imagens d'Épinal, em que as ilustrações consti-tuiam muitas vezes a própria base do texto narrativo. Já havia então a união das imagens com as palavras.

A segunda posição situaria o surgimento da narrativa figurativa no início deste século, como um fenômeno socio-cultural associado ao desenvolvimento da mídia e da imprensa escrita, em particular, sobre-tudo em certos países. A propósito de datas (FRESNAULT-DERUELLE, 1977, p. 10-23), enquanto a Europa manifestou, durante um período de algumas décadas, um claro desprezo em relação à HQ, considerada como uma arte menor destinada a crianças e pessoas de nível social baixo e sem cultura - a primeira HQ na França, "Zig et Pouce", surgiu em 1925, em Le Dimanche illustré - os Estados Unidos lhe reservaram uma melhor acolhida, tanto que os suplementos domini-cais de vários jornais do início do século continham HQ destinadas não somente às crianças, mas também aos adultos. Em 1905, surgia nos Estados Unidos a série "Little Nemo in Slumberland", de W. MacCay, considerada como uma primeira obra-prima do gênero, então, recém-nascido.

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Sem dúvida alguma, a HQ é um dos fenômenos culturais que me-lhor refletem a nossa época midiatizada, em que se verifica uma intera-ção muito direta e intensa entre dois fenômenos até certo ponto co-responsáveis pelos impulsos que movem e orientam boa parte da ativi-dade econômica das nossas sociedades: a criação de um "exército" de consumidores e a produção de objetos de consumo por ele condiciona-da, os quais, ao mesmo tempo, condicionam os hábitos desses consu-midores. O que é válido também para literatura: o livro, criando um público, produz leitores que, por sua vez, o condicionarão, lembra Umberto Eco (1993, p. 12).

Com efeito, uma das principais características das sociedades contemporâneas é o fato de grande parte do seu aparelho de produção estar voltado para o consumo das massas. Apesar do incômodo que a vizinhança dos seus dois termos pode provocar, a expressão cultura de massa engloba a maior parte dos fenômenos culturais da atualidade e (ECO, 1993, p. 11), o universo das comunicações é - reconheçamo-lo ou não - o nosso universo [...] Ninguém foge a essas condições.

Dentro deste panorama, começa a se aceitar a idéia de que a qua-lidade das narrativas, tenham elas um suporte verbal ou icônico, não depende do tipo de linguagem utilizada, do seu formato, da sua exten-são, do número de horas necessárias à sua leitura, mas daquilo que ela é capaz de propor e suscitar enquanto objeto de leitura. Não são poucos os romances que são consagrados em virtude da facilidade de fruição que oferecem aos seus leitores através da referência a situações e con-ceitos extrememente gastos e vulgarizados (ECO, 1993, p. 55); ao pas-so que certas histórias em quadrinhos, pelo motivo inverso, são consu-midas apenas por um público restrito e sofisticado.

A HQ é composta, via de regra, de uma ou de uma série de su-perfícies, de formato quase sempre quadrado ou retangular, exploradas graficamente, às quais se dá o nome de vinhetas ou quadrinhos. Delimi-tadas externamente por traços perpendiculares que recortam a página, as vinhetas são justapostas umas às outras. Essa justaposição funciona como fator de estruturação textual, pois indica a ordem de leitura, deli-neando o percurso do fluxo narrativo: a passagem de uma vinheta à seguinte deve ser feita, no nosso caso, no sentido horizontal, da esquer-da para a direita, e, no sentido vertical, de cima para baixo. Em países de língua árabe, ao contrário, a leitura dos quadrinhos é feita da direita para a esquerda; o que revela uma tendência, por parte da HQ, em ab-

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sorver códigos pertencentes a outras linguagens, incorporando-os às suas próprias regras. Com efeito, para linearizar o fluxo do seu texto, a narrativa figurativa estabelece o encadeamento dos seus enunciados de maneira semelhante àquele do discurso verbal escrito.

Com o intuito de facilitar a localização desta ou daquela vinheta dentro da narrativa, será usado o seguinte sistema de referenciação: as letras A, B, C, etc. indicam a seqüência horizontal a que pertence a vinheta. Assim, a letra A refere-se à seqüência situada no nível mais alto; a letra B, à seqüência situada logo abaixo, e assim por diante. Os números que se seguem à letra indicam, por sua vez, a posição da vi-nheta dentro da seqüência. A vinheta situada na extremidade esquerda da seqüência será identificada com o número 1, a seguinte com o núme-ro 2, e assim por diante. A referência C2, por exemplo, indicará a se-gunda vinheta da terceira seqüência horizontal de uma determinada página de HQ.

A NARRATIVA E SUAS INSTÂNCIAS DISCURSIVAS

Todo discurso pressupõe a existência de duas instâncias dis-cursivas sociais, o locutor e o destinatário. A narrativa, por sua vez, é um tipo de discurso específico em que, para relatar acontecimentos, o autor, instância discursiva extratextual, faz intervir o narrador, instância discursiva textual. Este assume supostamente a produção do relato que envolve os personagens. O narrador é a instância a quem cabe contar a história, assim o estabelece o jogo narrativo. O discurso que se lhe atri-bui relata os acontecimentos, descreve os ambientes, caracteriza os personagens, os aprecia, evidencia as suas atitudes. Hipoteticamente, o narrador conhece o personagem, o descreve, o critica, convive com ele se é o caso de um narrador-personagem; ao passo que o autor não, ele os inventa.

Na HQ, a função narrativa é exercida em grande parte através do desenho. Embora vez por outra o discurso do narrador se apresente sob a forma verbal, ele é materializado preferencialmente sob a forma icô-nica.

O narrador se situa no primeiro nível discursivo, ao qual Genette (1972, p. 238-239) dá o nome de extradiegético. Este termo designa

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uma situação ao mesmo tempo relativa à narrativa (diegético) e exterior a ela (extra). O narrador é extradiegético porque embora exista apenas em função da narrativa, não se inclui necessariamente dentro dela. O personagem é diegético pela razão inversa.

Os vestígios do autor não são observáveis diretamente na narrati-va mas através dela, uma vez que ele se esconde por trás do narrador, encarregado da narração. O autor intervém apenas indiretamente, nos bastidores, ao determinar de que forma e através de que recursos fará intervir o narrador, que assumirá o relato da história. Os vestígios a ele atribuídos revelam-se essencia lmente no estilo que singulariza o texto dentro do qual toma corpo a narrativa assumida pelo narrador, na ma-neira como se estrutura a história, no seu enfoque e na temática desen-volvida, quer ele use linguagem verbal ou icônica.

Os personagens, por sua vez, juntamente com seu comportamen-to e suas características, são o "conteúdo" com que se preenche a histó-ria, são objeto da narração. São também instâncias discursivas na medi-da em que a eles se atribui a produção de enunciados. Além de ilustrar o comportamento (enunciativo) dos personagens, esses enunciados podem dar origem a narrativas de segundo nível.

A presença, na superfície do texto, de sinais característicos da in-tervenção dessas três instâncias discursivas pode ser ressaltada na vi-nheta C2 da narrativa "Corinne" (BRETÉCHER, 1975, p. 61) reprodu-zida e traduzida adiante.

Em primeiro lugar, a economia obtida com a opção de se trans-crever o enunciado atribuído ao personagem em C2 utilizando-se letras de tamanho reduzido é uma marca do discurso do autor, que optou por sugerir desta forma o tom de voz baixo do personagem com o qual o caracterizou o narrador. Um leitor mais sensível à produtividade das estratégias estilísticas adotadas certamente se deleitaria ao perceber a superposição de marcas pertencentes a diferentes níveis discursivos num mesmo enunciado. Em vez de fazer intervirem separadamente o narrador e o personagem através de enunciados distintos, o autor fez uma condensação, vinculando o aspecto visual do enunciado verbal à instância discursiva do narrador e o seu aspecto semântico à instância discursiva do personagem. Outros recursos poderiam ter sido usados para se obter mais ou menos o mesmo efeito, embora sem a mesma economia. A faculdade de tal escolha não está na esfera dos persona-gens ou do narrador, mas são sinais do estilo (econômico) do autor.

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Fica assim estabelecido um distanciamento entre dois "textos" (ALMEIDA, 1999, p. 54): o texto da narrativa ou do conteúdo narrado e o texto da narração, que tem um caráter metadicursivo.

Em segundo lugar, o baixo volume "sonoro" com que a réplica teria sido articulada e o seu sentido caracterizam o comportamento do personagem da mãe e podem ser interpretados como indícios de uma atitude racista. São sinais vinculados à instância discursiva do narra-dor, que assim retrata a atitude do personagem.

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Figura 1 − CORINNE

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Tradução da Figura 1 − Corinne A1: Corinne, você já ficou na água dez minutos. Agora chega! A2: Sai da água Corinne, tá surda? A3: Corinne, você está com frio, não é? Vem botar a sua camis eta. B1: Corinne, você vai cortar os pés nas pedras. Depois não vem cho-rar no meu ombro. Tô te avisando! B2: Corinne, não está vendo que você está jogando areia em mim? B3: Corinne, você quer devolver imediatamente a bóia do garotinho, ela não é sua! C1: Vem cá, Corinne, vem cá com a mamãe... C2: Já te disse que não queria ver você brincando com os meninos árabes! C3: Não passe da barraca laranja Corinne! D1: Corinne, guarda as suas fôrmas, a garotinha vai pegar elas...e depois não vou comprar outras, está avisada! D3: Mas você não é capaz de brincar direito em vez de ficar o tempo todo grudada na barra da minha saia?

Em terceiro lugar, o caráter perlocutório1 do enunciado é caracte-rístico do discurso do personagem: sob o pretexto de estar lembrando à pequena algo que ela já lhe teria dito (Eu já te disse...), a mãe está, na verdade, recriminando a sua atitude e proibindo-lhe um certo compor-tamento. Diga-se de passagem, um exame baseado no aspecto estrita-mente formal desse enunciado certamente conduziria a um equívoco. Embora estruturalmente ele aponte para a introdução de uma narrativa de segundo nível ao relatar uma atitude enunciativa da própria mãe (Já te disse) e ilustrá-la com o enunciado que teria sido proferido na situa-ção descrita (não quero ver você brincando com os meninos árabes), trata-se, na verdade, de uma atitude de repreensão à menina por parte da mãe e não de um relato. 1 Um ato de fala é elocutório quando " a enunciação da frase constitui em si própria um certo ato (uma certa transformação das relações entre os interlocutores)". Por exe m-plo, o ato de perguntar em 'Quem chegou?', o de aconselhar em 'No seu lugar eu não sairia agora.' Um ato de fala é considerado perlocutório "na medida em que a enuncia-ção serve para fins mais longínquos... Assim, ao interrogar alguém, podemos ter por fim ajudá-lo, embaraçá-lo, fazer-lhe acreditar que consideramos a sua opinião, etc.". Ver Ducrot e Todorov, Dicionário das Ciências da Linguagem , p.401 e 402.

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Observa-se sempre entre as diferentes instâncias discursivas uma hierarquia traduzida por uma relação de inclusão ou uma pressuposta consciência unívoca: atribui-se ao autor consciência da existência do narrador e dos personagens que ele próprio criou; o narrador, por sua vez, teria conhecimento da existência dos personagens, caso contrário como descrevê-los? Mas esse conhecimento não é recíproco. Qualquer ultrapassagem das fronteiras existentes entre os níveis discursivos cons-titui uma transgressão e tem como conseqüência um efeito burlesco ou fantástico, como ocorre por exemplo em Jacques le fataliste , de Dide-rot, onde, em algumas passagens, o narrador estaria supostamente diri-gindo-se ao leitor. É o que se percebe também na charge de Jacovitti reproduzida adiante (Figura 2), com a qual Fresnault-Deruelle (1977, p. 173) ilustra os casos em que uma mesma réplica pode ser atribuída a diferentes personagens.

Ao tentar levantar uma pequena valise excessivamente pesada, o protagonista exclama, diante do fato de os oito personagens que o ob-servam não fazerem nada para ajudá-lo: Bando de imprestáveis! Como está pesada! Vem então a réplica, que é proferida de maneira fragmen-tada pelos oito personagens, cada um deles articulando um segmento: 1) Nós... 2) ...só... 3) ...estamos... 4) ...aqui... 5) ...para... 6) ...preencher... 7) ...este... 8) ...desenho...

Figura 2 − JACOVITTI

Os oito personagens justificam sua recusa em ajudar o outro per-sonagem (plano diegético), com argumentos que manifestam uma cons-ciência do plano extratextual: fazem explicitamente referência ao dese-nho e à função a eles atribuída pelo autor, consciência esta que somente poderia existir no nível extratextual. Esta subversão da relação entre os

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dois universos se faz, evidentemente, em prejuízo do mundo extratextu-al, que se percebe desta forma como que à mercê do mundo diegético e a ele vulnerável. Há, por conseguinte, uma “desestabilização” da posi-ção do leitor.

Uma narrativa organiza, portanto, um tecido de relações que se estabelecem entre as instâncias discursivas, que se articulam em dife-rentes níveis. E é a partir do texto narrativo enquanto espaço discursivo que é possível perscrutar e analisar a maneira como se estabelecem essas relações que dão a todo texto a sua singularidade (GENETTE, 1972, p. 73-74). A narrativa deve ser o ponto de partida para o estudo dessas relações, que podem ser investigadas num sentido ascendente, em direção ao ato de narração que a produz e, num sentido descenden-te, em direção à história narrada.

A FUNÇÃO NARRATIVA DAS LINGUAGENS ICÔNICA E VERBAL

Do ponto de vista da precedência das vozes, ou da hierarquia narrativa, os discursos verbal e icônico vinculados ao narrador mantêm entre si uma relação de paridade, na medida em que uma e outra lin-guagem são a manifestação de uma mesma instância narrativa. Assim sendo, eles se complementam e se alternam; não há entre eles uma rela-ção de dependência ou de inclusão, mas um revezamento. É outro, po-rém, o tipo de relação existente entre o discurso icônico do narrador e o discurso verbal dos personagens. Este inclui-se no primeiro, como seu desdobramento, pois ilustra o comportamento enunciativo dos per-sonagens representados iconicamente pelo narrador. Quando o narra-dor é também um personagem, o autor mantém a diferenciação dos respectivos enunciados da seguinte forma. O discurso verbal do narra-dor é transcrito dentro de um filete de forma retangular, e o do perso-nagem, dentro de um balão, geralmente ligado ao personagem enuncia-dor por um apêndice. O discurso icônico do narrador transcreve-se diretamente sobre a superfície da vinheta , ao passo que o do persona-gem é transcrito dentro de balões. Esses procedimentos são ilustrados pelos quadrinhos reproduzidos a seguir (Figura 3), extraídos de Les chemins de la gloire, T.2: Un jeune homme ambitieux (BUCQUOY &

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HULET, 1986, p. 19) e de Les inhibés (BRETÉCHER, 1975, p. 20), respectivamente.

Figura 3 − Narrador/personagem

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Muitas vezes, o discurso icônico do narrador é complementado por enunciados verbais do tipo:

a) "Naquela manhã ele pressentiu que algo de muito importante esta-va para lhe acontecer" b) "Enquanto isto, numa pequena cidade a poucos quilômetros dali" c) "Voltou então à sua memória a cena que presenciara semanas an-tes" d) "Quatro anos depois".

A freqüência com que um autor de HQ faz uso de enunciados verbais para materializar o discurso do narrador é uma característica do seu estilo. O principal objetivo e a principal vantagem desses enuncia-dos é balizar o desenrolar do enredo para o leitor, explicitando verbal-mente conteúdos cuja representação visual poderia ser problemática. Expressam-se desta forma fenômenos subjetivos e vagos como o co-nhecimento intuitivo de um acontecimento (a), assim como desloca-mentos espaciais e temporais do foco narrativo (b). Torna-se possível, por outro lado, além da simples relação de sucessividade, o estabeleci-mento de outros tipos de relação cronológica entre os momentos repre-sentados em duas vinhetas consecutivas, como, por exemplo, a simulta-neidade (b), a anterioridade (c), a descontinuidade (d). Assim utiliza-dos, o verbal e o icônico são cooperantes na narrativa, contribuindo cada um a seu modo na tarefa de representação. As lacunas deixadas pelo icônico podem ser preenchidas pelo verbal e vice-versa.

Entretanto, uma das principais características da HQ é o fato de ela se deixar interpretar de modo mais rápido do que a narrativa verbal. Com efeito, a linguagem icônica (ALMEIDA, 1997a, p. 100) possui um grau de codificação específica relativamente baixo, pois é interpretada através de códigos perceptivos e códigos de reconhecimento . São códi-gos de que estamos acostumados a fazer uso para a interpretação do mundo empírico. Assim sendo, o uso do verbal na narração de primeiro nível tenderia a reduzir a fluidez da narrativa; o que faz com que certos autores explorem intensamente o icônico, para poderem assim prescin-dir do verbal.

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Os enunciados em situação de solilóquio - aqueles que são liga-dos ao personagem enunciador por pequenos balões e que corresponde-riam a "réplicas silenciosas" - podem, por sua vez, ser vistos de duas formas. Por um lado, são enunciados vinculados ao personagem, pois a ele estão formalmente ligados. Por outro lado, constituem recursos de que pode lançar mão o autor que preferir não sobrecarregar o discurso verbal do narrador. De fato, sendo, por definição, constituído ao mesmo tempo de enunciados não formulados efetivamente e portanto inacces-síveis aos outros personagens, o discurso em solilóquio comunica ao leitor informações supostamente conhecidas do personagem enuncia-dor. Assim sendo, a sua principal função pode ser a de camuflar uma narração, dissimulando-a: na maioria das vezes, a reflexão em voz alta é uma convenção sempre capaz de tornar o personagem compreensível (FRESNAULT-DERUELLE, 1977, p. 174). Freqüentemente o soliló-quio é um procedimento através do qual o autor como que transfere a função narrativa do narrador para o próprio personagem que seria obje-to da narração, como ilustram as três primeiras vinhetas de "Fabliottes", de Anne-Marie Simond (apud MONDIN e al.,1981, p. 38-39) reprodu-zidas e traduzidas a seguir (Figura 4). Trata-se de uma cena em que a personagem toma o trem em viagem de férias, deixando para trás o marido que deverá ficar sozinho em Paris por quinze dias.

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Figura 4 − FABLIOTTES

Tradução de Fabiottes: A1: ...Quinze dias sem mim. Benoît vai paquerar feito um louco. Deve estar achando ótimo eu estar viajando antes dele... A2: ... A chegada do verão é mais um ano que passou. Estou com quarenta anos. Rugas nos olhos. Que horror. Estou envelhecendo... A3: ...Se conseguir descolar um homem antes da chegada do Benoît, é que ainda sou jovem...

PREDOMINÂNCIA DO ICÔNICO SOBRE O VERBAL

Embora eles se revezem durante o exercício narrativo, há alguns motivos para se acreditar na predominância do icônico sobre o verbal nas HQ.

Primeiramente, o enunciado icônico necessita de uma superfície suficientemente ampla que permita sua articulação e sua interpretação. É ele que determina a divisão da página da HQ em vinhetas, contenham elas uma parte verbal ou não. A vinheta é a unidade narrativa mínima da HQ, assim como a frase é a unidade narrativa mínima do texto ver-

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bal. O tamanho dos quadrinhos é sempre compatível com a sua explo-ração gráfica. Sua justaposição estabelece uma seqüencialidade narrati-va.

Em segundo lugar, observa-se na HQ que a quantidade de infor-mações obtidas através da interpretação da camada icônica é, na maio-ria das vezes, nitidamente superior àquela fornecida pela camada ver-bal. Isto porque, ao representar o conceito “casa” por exemplo (ALMEIDA, 1997b), o icônico evidencia características perceptivas do objeto representado (quantidade de portas, janelas e andares, tipo de telhado, posição em relação ao observador, tamanho, cor, etc.), ao pas-so que o verbal fornece uma representação abstrata do conceito.

Uma terceira razão é que boa parte dos enunciados verbais, pelo fato de estarem caracterizando um comportamento enunciativo dos personagens representados pela camada icônica, a esta encontram-se subordinados.

Por último, verifica-se na HQ uma tendência a se iconicizarem enunciados verbais. Por exemplo, as orações incisas utilizadas para destacar as réplicas dos personagens (...disse ele...; ...pensaram elas...) são substituídas por balões acompanhados de apêndices (discurso pro-ferido) ou de balõezinhos (solilóquio). O contorno desses balões equi-vale a enunciados verbais vinculados ao narrador, cuja representação foi iconicizada.

Em suma, pode ser atribuído ao icônico um maior peso na deter-minação do formato das narrativas figurativas, uma participação quanti-tativamente maior na comunicação das informações, uma função con-textualizadora, na medida em que os enunciados verbais freqüentemen-te ilustram o comportamento (enunciativo) dos personagens representa-dos visualmente e uma tendência a assumir o lugar de enunciados ver-bais.

TRANSFERÊNCIAS ENTRE O ICÔNICO E O VERBAL:

Quando um certo modo de articulação de recursos expressivos característic o de uma determinada linguagem é transferido produtiva-mente para outra linguagem dizemos que há uma transferência parcial de códigos.

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Um fator importante para que essa transferência ocorra é o fato de o enunciado verbal adquirir materialidade e plasticidade quando transcrito. Ele passa a apresentar também uma organização plástica, visual, que é explorada de maneira intensa e produtiva por certos auto-res, dando origem às transferências. Via de regra as transferências sali-entam para o leitor a presença indireta do autor no texto, aproximando-os. Ao mesmo tempo elas ofuscam a figura do narrador e o processo de narração propriamente dito.

Trata-se de casos onde, por exemplo, o verbal é explorado iconi-camente; ou onde os recursos icônicos são utilizados para representar atritos (estrelas), enunciados verbais como xingamentos (cobras e lagar-tos) etc; ou onde a representação dos ruídos é transcrita foneticamente (ex.: splash, buuum, crac, toc-toc, etc.). Daí resulta evidentemente uma economia, pois, o icônico “toma o lugar” de enunciados verbais (ou ruídos) que, sem essas transferências, precisariam ser formulados, como ilustram as vinhetas extraídas respectivamente de Bretécher (1979, p. 64), Bretécher (1978, p. 39) e Reiser (1980, p. 43) e reproduzidas a seguir (Figura 5):

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Figura 5 −MÃE E FILHA

As duas primeiras vinhetas, retiradas da narrativa intitulada “In-teriores”, representam a situação em que, logo após tomar conhecimen-to da gravidez da mãe, o personagem da filha reage dizendo-lhe: Você vai ter a criança? -E daí?, retruca a mãe. -Na sua idade? insiste a filha. -Não estou pedindo a sua opinião, conclui a mãe. Estou apenas te in-formando. A transcrição do enunciado verbal À ton âge? (Na sua ida-de?) em caracteres de tamanho avantajado sugere ao leitor a idéia de que o enunciado foi proferido em voz alta, realçando por conseguinte a surpresa e a indignação da filha diante da atitude da mãe que manifesta a intenção de ter a criança. A articulação própria ao código icônico, em que o volume dos objetos é sugerido através, entre outras coisas, da

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dimensão dos traços que os representam, é transferida produtivamente para o código verbal como uma indicação de volume sonoro. Evita-se, assim, o uso de um enunciado verbal vinculado ao narrador que explic i-tasse a atitude da filha, como por exemplo: “bradou a filha com surpre-sa, indignada”.

Na terceira vinheta, extraída da narrativa “História sensacionalis-ta”, está representada uma mulher parcialmente deitada de costas sobre uma mesa. Entre as suas pernas abertas e suspensas no ar está encaixa-do um homem cuja cabeça está à altura da sua. O nariz dele, oculto atrás do dela, e as bocas juntas, na mesma altura, indicam que eles estão se beijando. As letras MMMOOUUHH, realçadas pelo seu grande for-mato e por alguns traços mais ou menos verticais, representam foneti-camente o indiscreto ruído provocado pelo beijo que eles trocam.

Na quarta vinheta, retirada da narrativa “À la vie et à la mort”, dois grandes balões delimitam o território reservado à transcrição dos enunciados verbais produzidos pelos personagens. O enunciado verbal à esquerda se traduz por Vou lhe pedir um favor. O conteúdo do outro balão não teria sido proferido, como indicam os balõezinhos que o vin-culam ao personagem enunciador. Nele estão representadas cédulas de dinheiro. Interpretando-se seqüencialmente, da esquerda para a direita, os sinais observados na vinheta, entende-se que o desenho contido no segundo balão representa o resultado das inferências obtidas pelo se-gundo personagem a partir da interpretação do enunciado verbal do primeiro, que anunciou a intenção de lhe fazer um pedido, sem no en-tanto revelar de que se tratava. O autor obteve desta forma uma produ-tividade expressiva importante. Por meio de um processo metonímico, o conceito “dinheiro” representado iconicamente dentro do balão reser-vado ao verbal traz à tona uma estrutura proposicional (verbal) do tipo: Já entendi, ele vai me pedir dinheiro.

A ENUNCIAÇÃO DO TÍTULO

Convém inicialmente definir a situação do título do ponto de vista enunciativo. Em se tratando de um enunciado, a que instância discursiva estaria ele vinculado?

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O título faz parte de um conjunto de dados periféricos ao texto, o paratexto , que Compagnon (1979, p. 328) compara a uma vitrine, que permite um certo julgamento do volume sem que se tenha feito a sua leitura. Retomando-se a distinção entre os três níveis de instâncias discursivas - extratratextual, extradiegético e diegético - verifica-se que um certo número de elementos ou enunciados situam-se exclusivamen-te no nível extratextual, pois participam apenas do universo do leitor e do autor. Os principais deles são o título da obra e o nome do autor.

Enquanto enunciado, via de regra, o título é produzido pelo au-tor, podendo esta autoria ser de certa forma compartilhada pelo editor. Por outro lado, o público a que se destina é formado por um conjunto mais vasto do que o conjunto dos leitores (GENETTE,1987, p. 72) pois ele engloba, às vezes a título muito ativo, pessoas que não lêem neces-sariamente, ou inteiramente, mas que participam da sua divulgação, e, logo, da sua “recepção”.

O título encontra-se numa zona de fronteira entre a ficção e a rea-lidade. Ele se liga ao mesmo tempo à instância do comunicante (autor) que concebeu e construiu a narrativa a partir da organização de recursos expressivos, à obra enquanto material publicado, de existência concreta, verificável, consumível, e ao universo ficcional criado cuja comunica-ção é o objetivo da narrativa. Não há entre o narrador e o título a mes-ma relação que se verifica entre o narrador e a narrativa. Ao contrário, o título tem precedência sobre o narrador e reforça a hierarquia da rela-ção autor/narrador, hierarquia esta que está na base da delimitação dos mundos extratextual e extradiegético. Reconhece-se inicialmente o título da obra e, através deste e do nome do autor, a instância autoral. Título e nome do autor estão numa zona paratextual, em torno da narra-tiva.

O título não é parte da narrativa propriamente dita, mas um re-curso de que se serve o autor para batizar o seu texto e torná-lo facil-mente referenciável. A sua principal função é, certamente, permitir a identificação da obra:

[...] a nossa época "midiática" multiplica em torno dos textos um tipo de discurso que o mundo clássico ignorava, e a fortiori a Antigüidade e a Idade Média, tempos em que os textos circulavam freqüentemente

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quase em estado bruto, sob a forma de manuscritos desprovidos de qualquer fórmula de apresentação (GENETTE, 1987, p. 9).

Situando-se na periferia do texto propriamente dito, o título tem também uma função por assim dizer introdutória, por constituir-se um "posto de fronteira" que dá acessso ao território textual. Ademais, a instância discursiva do autor, à qual se encontra vinculado, pode, atra-vés dele, indicar, salientar, sugerir aspectos do texto, apreciá -lo, classi-ficá-lo, como, por exemplo, em Zadig ou la Destinée, histoire orientale , de Voltaire, ou em Madame Bovary, moeurs de province, de Flaubert, ou em Ulysses, de Joyce. São vários os tipos de relação que o leitor é levado a estabelecer entre o título e a obra (La cantatrice chauve, de Eugène Ionesco, La disparition, de Georges Perec, O Nome da Rosa, de Umberto Eco).

Na HQ igualmente, o título reveste-se muitas vezes de um caráter de menção, constituindo-se, por um lado, um indício de distanciamento por parte do autor em relação aos comportamentos e situações represen-tados, por outro, um fator que revigora a sua relação e o seu contrato com o leitor. Esse piscar de olhos contribui de modo decisivo para o estabelecimento de uma cumplicidade entre os dois termos da relação autor/leitor. Em vez de simplesmente denominar uma narrativa, o título pode estar expressando uma visão sobre ela.

O fato de alguns títulos serem à primeira vista impertinentes se-manticamente suscita uma interpretação que restabeleça a pertinência que eles, como qualquer enunciado, a princípio possuem. E é dentro de um contexto mais amplo que esse contraste ou desvio pode adquirir sentido. A menção, enquanto procedimento distanciador que sinaliza em direção à não adesão ao sentido literal, surge como parâmetro para a interpretação desses enunciados e revela que a natureza do sentido é dependente do contexto e da situação que rodeia a interlocução. Ao interpretante caberá encontrar a pertinência do título, explorando-o produtivamente a fim de verificar as relações existentes entre os conte-údos enunciados e outros discursos produzidos anteriormente. E ao fazê-lo, certamente estará aproximando-se do ponto de vista do comu-nicante, reforçando a cumplicidade existente entre eles.

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A ICONICIZAÇÃO DOS TÍTULOS

Se é verdade que o título de uma obra, seja ela musical, pictórica ou

literária, é, via de regra, um enunciado verbal, observa-se, no entanto,

que na HQ muitas vezes ele se apresenta com uma configuração que o

provê de iconicidade, de espessura, de plasticidade. Essa invasão da

escrita pelo desenho, essa sobreposição de características icônicas àqui-

lo que seria estritamente verbal, tende a reforçar a pertinência do título

na produção de sentidos. Ao participar ao mesmo tempo da articulação

icônica, o título contribui também com indícios de outra ordem que

não a verbal. A sua interpretação passa a ser alimentada também

por sinais de natureza icônica. Observe-se a narrativa “L’homme

à principes” (BRETÉCHER, 1975, p. 57), reproduzida acima e

traduzida a seguir (Figura 6).

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Figura 6 − HOMEM DE PRINCÍPIOS

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Tradução de O homem de princípios A1: -Há momentos em que me sinto incapaz de continuar vivendo na podridão decadente desta civilização do lucro em constante contra-dição com as minhas mais sagradas opiniões. A2: - Eu me recuso a beber esse café por causa do imperialismo a-mericano que sufoca o Brasil! B1: -Me recuso a usar lã enquanto a Austrália recusa a imigração das pessoas de cor! B2: -Doravante, não consumirei mais algodão por causa da deterio-ração dos termos do acordo com a Índia e a África... C1: -Odeio a idéia de pisar em couro espanhol por causa do Fran-co... C2: -e não quero mais saber de têxteis sintéticos por causa dos gi-gantescos trustes do petróleo! Pronto! D1: - Você tem toda razão Maurice... se todo o mundo fizesse como você as coisas mudariam! -Cuidado para não se resfriar! -Eu te sirvo um uísque com ou sem gelo? D2: -O uísque é distilado pela companhia que fabricava a talidomida e que se recusou a indenizar as famílias...mas a partir de uma certa idade é difícil de assumir um estado de revolta integral por mais de dois minutos...

A representação das letras do título não se faz através de traços simples e contínuos mais ou menos grossos, mas através de traços du-plos que se seguem paralelamente a uma certa distância e que são liga-dos nas extremidades. As superfícies assim delimitadas, cujas formas correspondem às das letras, são recortadas internamente por traços ho-rizontais e verticais, estes mais curtos do que aqueles e em posições alternadas, procedimento este usado geralmente para se caracterizar a representação de uma edificação feita com tijolos.

Uma vez identificadas as principais características do conteúdo representado pela camada icônica do título, a etapa seguinte consiste em se buscar a pertinência das informações que elas podem fornecer para a interpretação do título como um todo e da narrativa sobre a qual este se reflete.

A construção de tijolos salienta, entre outras, as noções de soli-dez, resistência, trabalho e edificação. Algumas dessas informações vão

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participar do contexto (ou conjunto de hipóteses) global que será utili-zado para a interpretação da camada verbal do título e da narrativa co-mo um todo, alimentando-a, como que por osmose. Constituem indícios importantes para o reconhecimento, por parte do leitor, de um olhar distanciado e irônico do autor sobre o personagem designado pela ca-mada verbal do título.

De fato, após a leitura da narrativa, apesar de ser visto como um indivíduo:

a) se não de um nível cultural elevado, pelo menos bastante in-formado, a julgar pelos problemas internacionais mencionados;

b) supostamente de esquerda, ou pelo menos com posicionamen-to anti-imperialista, devido à sua crítica às relações de exploração e de dominação entre as nações, e à discriminação racial em certas socieda-des;

o "homem de princípios" é definido como um indivíduo incoe-rente. Se num dado momento manifesta com clareza e convicção o firme propósito de não compactuar com tipos de relação e práticas que diz abominar, ele demonstra logo em seguida a sua volubilidade e a inconsistência do seu posicionamento pretensamente esclarecido e en-gajado numa reação transformadora. A revolta radical transforma-se rapidamente numa inconseqüente constatação de impotência e numa leviana resignação, como se se tratasse de uma breve performance ou encenação imprevista. E os seus princípios, que pareciam possuir a solidez de uma construção de tijolos, revelam-se extremamente frágeis.

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Figura 7 − OS CRÍTICOS

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Tradução de Os críticos D2: -Muito ruim! Nenhum distanciamento, nenhum brechtismo... no nível da “mise-en-scène” há um total desencontro em relação ao tex-to... D3: -Nada foi interiorizado...ainda por cima, politicamente, é bastan-te duvidoso...é mais um que cai no mais reacionário poujadismo...em suma é um teatro à francesa! -Completamente.

O conteúdo verbal do título fica como que iluminado pelo seu aspecto icônico. Reforça-se, assim, o seu caráter de menção, que é não apenas um dizer, mas um certo olhar (irônico) sobre esse dizer. De fato, a leitura da narrativa revela que a atitude do "homem de princípios", característica daquilo que se costumava chamar de "esquerda festiva", está em desacordo com os princípios que ele acaba de pregar, o que ele próprio teria reconhecido quando, sob o olhar complacente dos outros personagens, conclui na última vinheta que a partir de uma certa idade é difícil assumir um estado de revolta integral por mais de dois minu-tos.

Em "Les critiques" (BRETÉCHER, 1975, p. 38), reproduzida e traduzida acima, o contorno superior da base das letras do título apre-senta saliências pontiagudas voltadas para cima. Três tipos de relação parecem orientar a interpretação desse aspecto icônico, evidenciando a sua pertinência: uma relação analógica motivada visualmente pelas saliências pontiagudas que se associam a dentes, uma relação metoní-mica ligando dentes a lobo e lobo a agressividade, e uma relação meta-fórica fazendo a identificação de críticos a lobos. Uma vez feitas estas associações, as proeminências estariam representando dentes de ani-mais carnívoros que se expõem em situação de ataque, o que poderia ser entendido como uma alusão à ferocidade dos críticos de arte a quem se confia a avaliação de obras e espetáculos inéditos, e cuja reputação, generalizando-se, é de uma severidade injustificada. Com efeito, a nar-rativa mostra o comportamento de dois personagens, os críticos a que se refere o título certamente, que, apesar de "chorarem de rir" durante

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um espetáculo, manifestam à sua saída uma apreciação radicalmente negativa a propósito daquilo que viram.

A iconicização dos títulos em Les Frustrés parece constituir uma transgressão, na medida em que perturba ou reorganiza a distribuição dos recursos expressivos entre as instâncias discursivas. De fato, con-forme afirmamos anteriormente, o icônico nas HQ é, por excelência, a linguagem do narrador: é o veículo da narração extradiegética (exceto quando utilizado em balões ligados a personagens). O seu uso na articu-lação do título confere a este enunciado do autor, mas sem sobrecarre-gá-lo verbalmente, um certo caráter narrativo semelhante àquele obser-vado em Tudo o que Você Sempre Quis Saber Sobre o Sexo e Tinha Medo de Perguntar, de Woody Allen, ou Moi, Pierre Rivière, ayant égorgé ma mère, ma soeur et mon frère, de Foucault.

São três as principais conseqüências da articulação icônica dos tí-tulos. A primeira é o enriquecimento do título no tocante à sua capaci-dade de sugerir informações. A segunda é a confirmação da prioridade da linguagem icônica em relação à verbal, enquanto recurso expressivo. A terceira é que o título, enquanto elemento do paratexto, intensifica a aproximação entre o comunicante e o interpretante, ambos de caráter extratextual. A relação entre eles estabelecida através da narrativa esta-rá, neste caso, reforçada pelo aspecto icônico do título, que tende a realçar a visão distanciada do autor em relação aos comportamentos representados. À maneira de um foco de luz, o título sugere um prisma particular a partir do qual a narrativa pode ser apreciada.

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