paulo ramos_histÓrias em quadrinhos

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    Histrias em quadrinhos: gnero ou hipergnero?

    (Comics: genre or hypergenre?)

    Paulo Ramos

    Universidade Metodista de So Paulo (UMESP)

    [email protected]

    Abstract: This text defends the idea that is difficult ally practice and theory about genre theories.

    There are different genres that share common caractheristics. This is the case of comics. They

    have the concept called hypergenre, name created by Maingueneau. It would be a big mark that

    has common elements of different genres, like cartoons and comic strips.

    Keywords: Genre, hypergenre, comics, cartoon, comic strips

    Resumo: Esta comunicao parte da premissa de que nem sempre simples transpor para a prtica

    o conceito de gnero. H grupos de textos que, embora possuam gneros prprios e autnomos,

    esto ligados por um eixo comum, que d a eles unidade e coeso. Entende-se que seja o caso das

    histrias em quadrinhos. Elas configurariam um caso do que Maingueneau chamou de

    hipergnero. Seria um grande rtulo que abriga caractersticas comuns de diferentes gneros

    autnomos ligados rea, como as charges e as tiras cmicas.

    Palavras-chave: gnero, hipergnero, histrias em quadrinhos, charge, tiras cmicas.

    Definindo o problema

    Figura 1. Classificados, de Laerte

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    mailto:[email protected]:[email protected]
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    A histria acima, de Laerte, abriu a prova de Lngua Portuguesa e Literatura dovestibular de 2006 da PUC-SP (Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo). O texto -informava a questo - foi extrado do jornal Folha de S.Paulo do dia 21 de outubro de2006. O teste trazia o seguinte enunciado:

    Segundo o dicionrio Antnio Houaiss, charge desenho humorstico, com ou sem legendaou balo, geralmente veiculado pela imprensa e tendo por tema algum acontecimento atual,que comporta crtica e focaliza, por meio da caricatura, uma ou mais personagensenvolvidas.

    Os organizadores da prova (feita na forma de testes) queriam saber a quem se

    dirigia a crtica do desenho, rotulado como charge. A resposta correta era a alternativae: a crtica seria falha na educao das crianas que, longe daqueles que podem educ-las, precocemente jogam, bebem e fumam.

    Na parte de Biologia da mesma prova da PUC-SP, havia outro teste com uma

    histria em quadrinhos. Era do personagem Garfield, de Jim Davis, tambm extrada daFolha de S.Paulo (do dia 9 de setembro de 2006):

    Figura 2. Garfield, de Jim Davis

    O enunciado da questo dizia: Na tira de quadrinhos, faz-se referncia a um vermeparasita. Sobre ele, foram feitas cinco afirmaes. Assinale a nica correta.Coincidentemente, a resposta tambm era a alternativa e: Ao ingerir ovos do parasita, oser humano passa a ser seu hospedeiro intermedirio, podendo apresentar cisticercose.

    Uma mesma prova, aplicada por uma mesma universidade e num mesmo dia,

    apresenta aos candidatos duas questes sobre um texto semelhante, inclusive no formato,porm com terminologias completamente diferentes. Um teste chama o texto de charge. Aoutra questo afirma ser uma tira de quadrinhos. A questo no informa, mas ambos forampublicados na mesma pgina do caderno de cultura do jornal Folha de S.Paulo, emboraem datas distintas.

    O que torna, ento, um uma tira de quadrinhos (nome sugerido no exame) e outrouma charge? Por que o uso de dois termos distintos para se referir a eles.

    Esse caso ilustra com propriedade a confuso que gira em torno do universo dosgneros associados s histrias em quadrinhos. O que exatamente uma charge? E umcartum? E uma tira? Todos so quadrinhos? E os quadrinhos, ento, o que seriam? Como

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    sintetiza Mendona (2002, p.197), distinguir esses gneros dficil, mesmo para osprofissionais da rea.

    H uma zona nebulosa na regio que envolve todas essas nomenclaturas. Adificuldade em perceber as caractersticas de cada um dos textos tem fomentado umaclassificao indiscriminada e pouco criteriosa no uso dos termos, como visto nas questes

    da PUC-SP. Isso pode criar expectativas diferentes de leitura e trazer confuso no processode compreenso textual.

    Entendemos que exista um campo maior, um hipergnero chamado quadrinhos, queabriga diferentes gneros autnomos, unidos por elementos comuns. A proposta desteartigo iniciar uma discusso sobre o assunto. Dizemos iniciar porque temos plenacincia de que a questo no se esgota nestas pginas.

    Os gneros do discurso de Bakhtin

    Bakhtin (e os demais autores que compem seu crculo) tem o mrito de abordar os

    gneros levando em conta tanto as produes literrias quanto os no-literrias, ao contrriodo que historicamente ocorreu a respeito do tema. Aos lingistas e estudiosos do texto, essaabordagem abriu novas perspectivas e dominou a fundamentao de vrias reas dascincias humanas, no s lingsticas.

    Para o autor russo, a lngua vista como uma atividade essencialmente dialgica,que analisa os sujeitos da interao como seres scio-historicamente situados. Essesdiferentes processos de comunicao ocorrem com o auxlio de gneros do discurso,definidos por ele como tipos relativamente estveis de enunciados (BAKHTIN, 2000, p.279).

    Nas palavras de Faraco (2003, p. 112), ao dizer que os tipos so relativamente

    estveis, Bakhtin est dando relevo, de um lado, historicidade dos gneros; e, de outro, necessria impreciso de suas caractersticas e fronteiras. E acrescenta (op. cit., 2003, p.113): Desse modo, Bakhtin articula uma compreenso dos gneros que combinaestabilidade e mudana; reiterao ( medida que aspectos da atividade recorrem) eabertura para o novo ( medida que aspectos da atividade mudam).

    Como se v, a constituio do gnero na atividade interacional no algo fixo, mutvel e se molda situao discursiva. um equilbrio entre elementos recorrentes edifusos, que podem, inclusive, consolidar outro gnero. A esse processo Bakhtin (1998, p.82) chama deforas centrpetas (de estabilidade) eforas centrfugas (de mudana).

    Cada enunciao concreta do sujeito do discurso constitui o ponto de aplicao seja das

    foras centrpetas, seja das centrfugas. Os processos de centralizao e descentralizao, deunificao e de desunificao cruzam-se nesta enunciao, e ela basta no apenas lngua,como sua encarnao discursiva individualizada, mas tambm ao plurilingismo, tornando-se seu participante ativo.

    Brando (2001, p. 38) v no raciocnio das foras uma tenso que leva scaractersticas de estabilidade do gnero, ameaadas por constantes pontos de fuga, quelevam a uma instabilidade genrica. Essa relao, embora malevel, levaria a um equilbrio,

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    necessrio para a situao comunicativa. Como resume o autor russo, numa citaofreqentemente lembrada quando o assunto abordado, se no existissem os gneros dodiscurso e se no os dominssemos, se tivssemos de cri-los pela primeira vez no processoda fala, se tivssemos de construir cada um de nossos enunciados, a comunicao verbalseria quase impossvel (BAKHTIN, 2000, p. 302). nesse equilbrio que seriam

    evidenciadas algumas caractersticas comuns aos gneros. Cada um possuiria uma estruturacomposicional, um tema e um estilo.

    Na prtica, as idias de Bakhtin colocam o tema nas atividades humanas, quaisqueratividades, e no s nas literrias, como j comentado. E traz, como conseqncia, umapluralidade de gneros nas prticas interativas. Essas idias influenciaram uma srie deestudos lingstico-textuais sobre o assunto, ora se aproximando teoricamente do autorrusso, ora reavaliando seus conceitos.

    Outro olhar sobre os gneros

    Marcuschi (2005, p. 17-33) comenta que houve inicialmente uma tendncia deabordar os enunciados relativamente estveis, na definio de Bakhtin, com os olhosvoltados ao carter da estabilidade. Hoje, a tendncia se volta ao relativamente dadefinio, ao aspecto malevel e no-rgido dos gneros numa situao scio-comunicativa.

    Existe uma grande diversidade de teorias de gneros no momento atual, mas pode-se dizerque as teorias de gnero que privilegiam a forma ou a estrutura esto hoje em crise, tendo-se em vista que o gnero essencialmente flexvel e varivel, tal como o seu componentecrucial, a linguagem. Pois, assim como a lngua varia, tambm os gneros variam, adaptam-se, renovam-se e multiplicam-se. Em suma, hoje, a tendncia observar os gneros pelo seulado cognitivo, evitando a classificao e a postura estrutural. (MARCUSCHI, 2005, p. 18)

    Maingueneau um dos autores que abordou esse lado malevel dos gneros. Eletrabalhou a questo em dois momentos tericos. No primeiro (2002), defende que umgnero do discurso (termo usado por ele) no se limita apenas organizao textual,embora seja um de seus elementos. H outras caractersticas, igualmente pertinentes edefinidoras: finalidade, lugar e momento onde ocorre, suporte material (televiso, dilogo,rdio, jornal), o estabelecimento de parceiros coerentes com a situao (o autor chama deparceiros legtimos).

    Neste ltimo caso, acrescenta que o locutor e o interlocutor travam um contratocomunicativo, uma espcie de jogo, e que exercem papis definidos na situaocomunicativa. Um mdico atendendo um paciente, por exemplo. A pessoa enferma est noconsultrio para se tratar de alguma molstia (finalidade). Era esperada no consultrio ouno hospital (lugar e momento). O canal o dilogo oral (correspondente ao suportematerial). O fato de um ser mdico e outro, paciente torna a situao coerente. Um exerce,ali, o papel de autoridade de sade; o outro, de enfermo. um acordo, pressuposto, nodeclarado (contrato, que faz parte do jogo comunicativo).

    O autor francs v o gnero do discurso atrelado a uma cena enunciativa. Para ele, asituao de comunicao funciona tal qual uma encenao. So trs as cenas:

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    (01) Cena englobante - a que define o tipo de discurso a que pertence a situao comunicativa. Podeser, por exemplo, religioso, poltico, publicitrio.

    (02) Cena genrica - o gnero do discurso a que pertence a situao de comunicao. A cena genrica,aliada englobante, define o quadro cnico do texto.

    (03) Cenografia - a forma como o quadro cnico transmitido. Em outras palavras: a prpria cena daenunciao.

    As trs cenas podem ocorrer ao mesmo tempo. Maingueneau afirma que h umatenso, um conflito entre elas. O resultado dessa articulao emerge no texto. Um exemplodo autor torna mais fcil o entendimento dos trs conceitos. uma carta feita em 1988 peloex-presidente francs Franois Mitterand, ento candidato reeleio. Foi publicada naimprensa. Um trecho:

    Meus caros compatriotas,

    Vocs o compreendero. Desejo, nesta carta, falar-lhes da Frana. Graas confiana que

    depositaram em mim, exero h sete anos o mais alto cargo da Repblica. No final dessemandato, no teria concebido o projeto de apresentar-me novamente ao sufrgio de vocs seno tivesse tido a convico de que nos restava ainda muito a fazer juntos para assegurar anosso pas o papel que dele se espera no mundo e para zelar pela unidade da Nao.(MAINGUENEAU, 2002, p. 91)

    Segundo o modelo de Maingueneau, a cena englobante o discurso poltico, em queos parceiros interagem num espao-tempo eleitoral. A cena genrica a das publicaes. Acenografia a da correspondncia particular prpria de uma carta.

    Para o autor, nem todos os gneros permitem cenografias diferentes. Por isso,defende a idia de um continuum. Num extremo, h os textos que dificilmente permitemuma mudana na cena genrica, como uma receita mdica. No outro extremo, esto oscasos que permitem uma gama diferenciada de cenografias, caso, por exemplo, daspublicidades. Entre os dois plos, estariam os gneros que tendem a usar uma cenografiamais rotineira. O autor ilustra com o caso dos guias tursticos.

    O conceito de hipergnero

    Num segundo momento terico (2004, 2005, 2006), Maingueneau acrescentou maisalguns elementos a esse modelo de gnero do discurso. O autor distinguiu os gneroschamados institudos dos conversacionais. Estes tm um modelo muito instvel edependente da relao entre os interlocutores. Aqueles se aproximam mais das situaes

    convencionais de gnero e podem ser de duas ordens, rotineiros e os autorais. Os rotineirosapresentam situaes comunicativas relativamente constantes. Os parmetros que osconstituem resultam na verdade da estabilizao de coeres ligadas a uma atividade verbaldesenvolvida numa situao social determinada (op. cit, 2006, p. 239). O autor d comoexemplos a entrevista radiofnica, o debate televisivo, entre outros.

    Os gneros autorais ocorrem com o auxlio de uma indicao paratextual do autorou do editor. Quando se atribui esse ou aquele rtulo a uma obra, indica-se como se

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    pretende que o texto seja recebido, instaura-se de maneira no negociada- um quadro paraa atividade discursiva desse texto (op. cit., 2006, p. 238-239). Se dizemos, por exemplo,que um texto de cinco pginas um ensaio, ele tende a ser visto assim pelo leitor. Mas omesmo texto pode ser rotulado como artigo ou resenha. A forma lexical utilizada

    influenciaria na forma de o leitor interpretar o gnero.

    Com base nesses princpios, Maingueneau detalha o continuum proveniente daarticulao entre cena genrica e da cenografia. So quatro tipos:

    (1) Gneros institudos tipo 1 - Gneros institudos que no admitem variaes. Ex.: carta comercial.

    (2) Gneros institudos tipo 2 - H maior presena autoral, mas ainda h orientaes que moldam asituao de comunicao. Ex.: telejornal.

    (3) Gneros institudos tipo 3 - A grande caracterstica que no h uma cenografia especfica. Hdiferentes cenografias, conforme a inteno. Ex.: anncios publicitrios.

    (4) Gneros institudos tipo 4 - So os casos dos gneros autorais, aqueles com relao aos quais aprpria noo de gnero problemtica. Ex.: uso de rtulos como meditao ou relato.

    Os rtulos podem influenciar tambm, segundo o autor, os aspectos formais dotexto, interpretativos, ou ambos. O uso deles constitui o que chamou de hipergneros. O

    trecho em que Maingueneau fundamenta o conceito um pouco extenso, mas sintetiza compreciso o assunto:

    No caso dos rtulos que se referem a um tipo de organizao textual, mencionamos emprimeiro lugar aquilo a que demos o nome de hipergneros. Trata-se de categorizaescomo dilogo, carta, ensaio, dirio etc. que permitem formatar o texto. No setrata, diferentemente do gnero do discurso, de um dispositivo de comunicaohistoricamente definido, mas um modo de organizao com fracas coeres queencontramos nos mais diversos lugares e pocas e no mbito do qual podem desenvolver-seas mais variadas encenaes da fala. O dilogo, que no Ocidente tem estruturado umamultiplicidade de textos longos ao longo de uns 2.500 anos, um bom exemplo dehipergnero. Basta fazer com que conversem ao menos dois locutores para se poder falar dedilogo. O fato de o dilogo - assim como a correspondncia epistolar- ter sido usado demodo to constante decorre do fato de que, por sua proximidade com o intercmbioconversacional, ele permite formatar os mais diferentes contedos. (op. cit., 2006, p. 244)

    Pode-se dizer que h, ento, dois nveis de rotulaes, as prprias aos gnerosautorais e as que interferem na formatao do texto, caso dos hipergneros. Seguindo oraciocnio de Maingueneau, essa interpretao lana um novo problema para os estudiososdo assunto: distinguir as tipologias de gneros que vm dos usurios das que soelaboradas pelos pesquisadores (2006, p. 233). Esse ponto levantado tambm porChandler (s.d.), quando afirma que as classificaes acadmicas divergem dasclassificaes do pblico. H vrios casos que poderiam servir de exemplo.

    Nas grandes livrarias, comum classificar as obras por gneros ou categorias:literatura estrangeira, literatura brasileira, filosofia, sociologia, humor, educao,quadrinhos etc. Mas como classificar, digamos, um livro paradidtico sobre histrias emquadrinhos? Em que seo ficaria? Educao ou quadrinhos? J houve um caso assim. A

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    obra foi encontrada ora numa, ora noutra, ora numa terceira, humor. Um poss velcomprador, que desconhea o contedo do livro, poderia ser influenciado pela rotulao daseo na hora da leitura, mesmo que a leitura das pginas no confirmasse a impressoinicial.

    A discusso sobre o rtulo est ligada s expectativas de autor/falante e,

    principalmente, leitor/ouvinte. Como registra Pinheiro, (2002, p. 274), essas expectativas,em geral, no esto explicitadas no texto, mas podem ser projetadas para dentro do textopelo leitor, com base nas pistas ou marcas deixadas pelo escritor. Bazerman (2005, p. 22),em outra perspectiva terica, tem leitura semelhante:

    Compreender esses gneros e seu funcionamento dentro dos sistemas e nas circunstnciaspara as quais so desenhados pode ajudar voc, como escritor, a satisfazer as necessidadesda situao, de forma que esses gneros sejam compreensveis e correspondam sexpectativas dos outros.

    Gneros e hipergnero nos quadrinhos

    Em outra pesquisa (RAMOS, 2007), estudamos diferentes formas de produesligadas s histrias em quadrinhos. A premissa da anlise foi observar os textos como soproduzidos e a forma como so vistos na prtica e na teoria para, ento, formular umpossvel quadro de anlise do assunto, de modo a entender como funciona cada gnero dentro da situao scio-comunicativa. Encontramos algumas tendncias:

    (01) vrios gneros utilizam a linguagem dos quadrinhos; o caso da charge, do cartum, dos diferentesgneros autnomos das histrias em quadrinhos (entendidas aqui como um gnero integrante de um rtulomaior homnimo) e das tiras (entre eles, as tiras cmicas);

    (02) predomina a seqncia textual narrativa, que tem nos dilogos um de seus elementos constituintes;

    (03) h personagens fixos ou no; alguns dos trabalhos se baseiam em personalidades reais, como ospolticos;

    (04) a narrativa pode ocorrer em um ou mais quadrinhos e varia conforme o formato do gnero,padronizado pela indstria cultural;

    (05) em muitos casos, o rtulo, o formato e o veculo de publicao constituem elementos queacrescentam informaes genricas ao leitor, de modo a orientar a percepo do gnero em questo;

    (06) a tendncia de uso de imagens desenhadas, mas ocorrem casos de utilizao de fotografias para

    compor as histrias.

    Encontramos tambm produes que no se aproximam do modo estvel do gnero.Um caso so as tiras cmicas que no possuem humor, parecem mais contos ou poemasfeitos na forma grfica. Nesse caso, seriam um exemplo concreto do relativamente dadefinio bakhtiniana e poderiam ser o ensaio de um novo gnero.

    Com base no levantamento, pudemos constatar que existem elementos comuns aos

    diferentes gneros estudados, entre os quais se destacam dois: predominncia da seqncia

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    narrativa, representada em um ou mais quadros, e uso da linguagem grfica das histriasem quadrinhos (como os bales). Esses elementos antecipam informaes genricas aoleitor e ajudam no processo de identificao e leitura dos diferentes gneros quecompartilham tais caractersticas. Quadrinhos ou histria em quadrinhos seria um grandertulo, que agregaria diferentes gneros comuns.

    H um dilogo possvel entre essa leitura e a noo de hipergnero conceituada porMaingueneau. Um grande rtulo, denominado histria em quadrinhos ou somentequadrinhos, une diferentens caractersticas comuns e engloba uma diversidade de gnerosafins. Rotulados de diferentes maneiras, utilizam a linguagem dos quadrinhos para comporum texto narrativo dentro de um contexto scio-comunicativo.

    Os gneros dos quadrinhos

    Podem ser abrigados dentro do hipergnero chamado quadrinhos os cartuns, ascharges, as tiras cmicas, as tiras cmicas seriadas, as tiras seriadas e os vrios modos de

    produo das histrias em quadrinhos. Expomos a seguir, de forma bem resumida, asprincipais caractersticas de produo de cada um deles e de como tendem a ser vistos peloleitor e pelo produtor.

    A charge um texto de humor que aborda algum fato ou tema ligado ao noticirio.De certa forma, ela recria o fato de forma ficcional, estabelecendo com a notcia umarelao intertextual (ROMUALDO, 2000). Os polticos brasileiros costumam ser grandefonte de inspirao (no por acaso que a charge costuma aparecer na parte de poltica oude opinio dos jornais). Um exemplo:

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    Figura 3. Charge de Cludio de Oliveira

    A charge foi publicada no jornal paulistano Agora nos meses iniciais do primeiro

    mandato do presidente Luiz Incio Lula da Silva (o primeiro mandato dele foi de 2003 a2006). O texto usa o humor para fazer uma crtica poltica econmica adotada por Lulana poca. A brincadeira se baseia na premissa de que as medidas propostas por ele paramanter a inflao sobre controle (alta na taxa de juros e reduo na oferta de crdito parainibir o consumo) so as mesmas do governo anterior, administrado por FernandoHenrique Cardoso. Ao seguir o mesmo modelo econmico, Lula se torna FernandoHenrique, como mostrado na ltima cena do desenho.

    O leitor, para entender o texto, deveria recuperar os dados histricos da poca einferir que os personagens mostrados na charge so caricaturas dos dois presidentes. Otema do humor presente na narrativa, como se v, est atrelado ao noticirio poltico doincio do ano de 2003.

    No estar vinculado a um fato do noticirio a principal diferena entre a charge eo cartum. No mais, so muito parecidos. Para ilustrar essa distino, veja a imagem a

    seguir, feita pelo argentino Quino:

    Figura 4. Cartum de Quino

    A cena mostra vrias marcas de carimbo na mesa, no cho e na parede. Seriam asmuitas tentativas de matar a aranha at que ela fosse definitivamente derrubada (comoindica a posio dela no cho, no canto direito inferior do desenho). Mesmo sendomostrado em apenas um quadro, o cartum consegue sintetizar uma seqncia entre umantes e um depois, elementos mnimos da estrutura narrativa. Infere-se que o antes seriam adescoberta da aranha na parede e as vrias carimbadas; o depois, a cena em si, tal como foidesenhada.

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    importante observar que o humor advm de uma situao corriqueira: a tentativade matar uma aranha. No se trata de um assunto do noticirio jornalstico. No custareforar: essa a principal diferena entre charge e cartum.

    O formato to presente na composio da tira que foi incorporado ao nome dognero. A mais conhecida e publicada a tira cmica, tambm chamada por uma srie de

    outros nomes, como tira de quadrinhos, j apresentada no incio deste captulo. Por ser amais difundida, muitas vezes vista como sinnimo de tira, interpretao da qualcompartilhamos. A tira cmica a que predomina nos jornais brasileiros e tambm damaioria dos pases.

    A temtica atrelada ao humor uma das principais caractersticas do gnero tiracmica. Mas h outras: trata-se de um texto curto (dada a restrio do formato retangular,que fixo), construdo em um ou mais quadrinhos, com presena de personagens fixos ouno, que cria uma narrativa com desfecho inesperado no final.

    O gnero usa estratgias textuais semelhantes a uma piada para provocar efeito dehumor. Essa ligao to forte que a tira cmica se torna um hbrido de piada e

    quadrinhos, como demonstramos em outro estudo (RAMOS, 2007). Por isso, muitos arotulam como sendo efetivamente uma piada. Os dois exemplos lidos no in cio deste artigopodem servir de exemplo de tira cmica.

    Apesar de a tira cmica ser a forma mais conhecida, no o nico gnero de tiraexistente. H pelo menos dois outros: as tiras cmicas seriadas e as tiras seriadas.

    As tiras seriadas (podem ser chamadas tambm de tiras de aventuras), como oprprio nome sugere, esto centradas numa histria narrada em partes. um mecanismoparecido com o feito nas telenovelas. Cada tira traz um captulo dirio interligado a umatrama maior. Se as tiras forem acompanhadas em seqncia, funcionam como uma histriaem quadrinhos mais longa. muito comum o material ser reunido posteriormente na forma

    de revistas ou livros. pertinente observar que, isoladamente, tais tiras seriadas formam um gnero

    autnomo, com diferentes temticas, que produzido e lido em captulos. Mas, quandoorganizadas em seqncia em livro, ficam mais prximas das histrias em quadrinhosconvencionais do que de tiras seriadas propriamente ditas. Merece meno tambm queesse gnero quase inexiste no Brasil, embora j tenha sido muito popular no pas. Ainda produzido nos Estados Unidos e, at alguns anos atrs, na Argentina tambm.

    A tira cmica seriada fica na exata fronteira que separa a tira cmica da tira seriada.Trata-se de um texto que usa elementos prprios s tiras cmicas, como o desfechoinesperado da narrativa, que leva ao efeito de humor, mas, ao mesmo tempo, a histria produzida em captulos, assim como ocorre com a tira de aventuras. Se reproduzida emseqncia em um livro, pode ser lida tambm como uma histria em quadrinhos maislonga.

    Essa histria em quadrinhos mais longa, como temos chamado, a base de umasrie de outros gneros. Em comum, esses textos tm a caracterstica de serem publicadosem suportes que permitem uma conduo narrativa maior e mais detalhada. o que ocorrecom as revistas em quadrinhos, com os lbuns (nome dado a edies parecidas com livros)

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    e com a pgina dominical (termo usado para definir as histrias de uma pgina spublicadas em geral nos jornais).

    A diversidade de gneros, nesse caso, est atrelada a uma srie de fatores, como ainteno do autor, a forma como a histria rotulada pela editora que a publica, a maneiracomo a trama ser recebida pelo leitor, o nome com o qual o gnero foi popularizado e que

    tornou o gnero mais conhecido junto ao pblico. um assunto complexo e que precisa de um estudo mais aprofundado. Mas podem-

    se ver algumas tendncias. Parece haver um maior interesse em rotular tais gneros pelatemtica da histria: super-heris, terror, infantil, detetive, faroeste, fico cientfica,aventura, biografia, humor, mang (nome dado ao quadrinho japons e a seus diferentesgneros), ertica, literatura em quadrinhos (adaptaes de obras literrias), as extintasfotonovelas, o jornalismo em quadrinhos (reportagens feitas na forma de quadrinhos).

    Seguramente h mais temas possveis e outros mais ainda surgiro. Mas oimportante frisar que cada um pode constituir um gnero autnomo, publicado emdiferentes formatos e suportes.

    Olhando para a frente

    O estudo dos gneros uma herana da anlise literria. A transio para alingstica-textual e, por conseqncia, para prticas comunicativas no literrias se deveuprincipalmente s idias de Bakhtin e de seu crculo, que lanaram novas luzes sobre otema. Os gneros esto num constante processo de tenso, alguns mais estveis, outros comelementos novos. Como define Bakhtin, so tipos relativamente estveis de enunciados. Hestabilidade, mas ela relativa. So o que o autor russo chamou de foras centrpetas (deestabilidade) e centrfugas (de mudana). Esse equilbrio gera o gnero, usado na situaointerativa e manifestado no texto.

    A conseqncia dessa perspectiva que evita a anlise dos gneros de um ponto devista apenas descritivo, como afirma Marcuschi (2005). preciso acrescentar outroselementos. As caractersticas do texto so um dos pontos necessrios anlise genrica,mas no os nicos. H o local, o momento, os parceiros envolvidos, o suporte, enfim, umagama de informaes que interferem na utilizao dos gneros, assim como postulaMaingueneau. Entendemos que tais caractersticas se tornam mais ou menos relevantesdadas as circunstncias particulares de uso de cada um dos textos. So situaes queprecisam ser investigadas caso a caso. H gneros com tendncia a uma estabilidade maiore outros com tendncia a uma estabilidade menor.

    O termo rotulao, de Maingueneau, mostra que o nome utilizado pelo produtor dedeterminado gnero (que o autor francs chama de gnero autoral) interfere na maneira deler/ouvir do(s) interlocutor(es). O hipergnero daria as coordenadas de formatao textualde vrios gneros, que compartilhariam tais elementos. Uma carta teria uma estruturaoprpria (cabealho, texto em primeira pessoa, cumprimentos finais, assinatura) e poderiaser usada em diferentes gneros: carta pessoal, carta comercial, carta de admisso deemprego.

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    Vemos o mesmo raciocnio na rea de quadrinhos. Um hipergnero antecipariainformaes textuais ao leitor e ao produtor e funcionaria como um guarda-chuva paradiferentes gneros, todos autnomos, mas com caractersticas afins.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

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    do romance. 4 ed. Trad. Aurora Fornoni Bernardini et al. So Paulo: Editora daUNESP/Hucitec, 1998. p. 71-210.

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