aredth e marx violencia

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:: Verinotio - Revista On-line de Educação e Ciências Humanas. Nº 5, Ano III, Outubro de 2006, periodicidade semestral – ISSN 1981-061X. ANTINOMIAS DO PENSAMENTO DE HANNAH ARENDT: ACERCA DAS SUAS CRÍTICAS A KARL MARX. Ronaldo Gaspar * Resumo As análises de Hannah Arendt sobre o pensamento de Karl Marx destacam- se por sua complexidade e, num certo aspecto, pioneirismo intelectual. Este artigo analisa sua crítica à conceituação marxiana de trabalho e as repercussões desta mesma crítica sobre questões decisivas como a política e o papel da violência no processo revolucionário. Palavras-chave: Hannah Aredt, Karl Marx, trabalho, política, violência; Antinomies of Hannah Arendt's thought: concerning its criticism to Karl Marx's thought. Abstract The analysys of Hannah Arendt about Karl Marx's thought outstands for its complexity and, in a certain way, for its intellectual pioneeirism. This article analyzes her criticism of the marxian conceptualization of work, as weel as the repercussions of this criticism on decisive issues as politics and the role of violence in the revolutionary process. Keywords: Hannah Aredt, Karl Marx, work, politics, violence. 1 Ao longo de sua desconcertante obra, primordialmente centrada na tentativa de iluminar as características e os fundamentos da política no mundo

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Estudos sobre a violencia

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  • :: Verinotio - Revista On-line de Educao e Cincias Humanas. N 5, Ano III, Outubro de 2006, periodicidade semestral ISSN 1981-061X.

    ANTINOMIAS DO PENSAMENTO DE HANNAH ARENDT:

    ACERCA DAS SUAS CRTICAS A KARL MARX.

    Ronaldo Gaspar*

    Resumo

    As anlises de Hannah Arendt sobre o pensamento de Karl Marx destacam-

    se por sua complexidade e, num certo aspecto, pioneirismo intelectual. Este artigo

    analisa sua crtica conceituao marxiana de trabalho e as repercusses desta

    mesma crtica sobre questes decisivas como a poltica e o papel da violncia no

    processo revolucionrio.

    Palavras-chave: Hannah Aredt, Karl Marx, trabalho, poltica, violncia;

    Antinomies of Hannah Arendt's thought: concerning its criticism to Karl Marx's thought.

    Abstract

    The analysys of Hannah Arendt about Karl Marx's thought outstands for its

    complexity and, in a certain way, for its intellectual pioneeirism. This article

    analyzes her criticism of the marxian conceptualization of work, as weel as the

    repercussions of this criticism on decisive issues as politics and the role of violence

    in the revolutionary process.

    Keywords: Hannah Aredt, Karl Marx, work, politics, violence.

    1

    Ao longo de sua desconcertante obra, primordialmente centrada na

    tentativa de iluminar as caractersticas e os fundamentos da poltica no mundo

  • contemporneo, Hannah Arendt (1906-75) dedicou algumas significativas e

    influentes passagens crtica do marxismo, especialmente do pensamento

    marxiano. Num dos temas analisados nessas passagens, ela criticou duramente a

    abordagem marxiana acerca do papel da violncia nos momentos de transio de

    uma sociedade a outra, isto , nos momentos revolucionrios. Nessas crticas,

    enfocou prioritariamente aqueles aspectos que, segundo pensa, demonstram que

    em Marx h uma glorificao da violncia na poltica. Esta glorificao, presente

    em toda a obra de Marx, estaria manifesta com toda sua fora numa frase contida

    em O capital, na qual ele afirma que A violncia a parteira de toda velha

    sociedade que est prenhe de uma nova (Marx, 1985[II], p. 286). Considerada

    sintomtica do pensamento poltico marxiano, Arendt afirma que nesta frase est a

    negao do logos, do discurso, a forma de relacionamento que lhe [ violncia]

    diametralmente oposta e, tradicionalmente, a mais humana (1972, p. 50). Ambas,

    glorificao da violncia e negao do discurso (portanto, da democracia),

    resultariam da identificao que Marx teria efetuado entre ao e violncia. Para

    que pudesse chegar a tais resultados em suas anlises, Marx teria infundido na

    ao os procedimentos tpicos da esfera produtiva especialmente da atividade

    produtiva de bens durveis. a esta relao entre trabalho, poltica e violncia

    nos pensamentos de Hannah Arendt e Karl Marx que vamos dedicar nossa anlise.

    Antes, porm, de analisarmos melhor o contedo das afirmaes e das

    crticas de Hannah Arendt, necessrio enfatizarmos que no se leva adiante

    uma anlise profunda sobre a poltica revelia, ou melhor, sem o sustentculo de

    uma teoria mais ou menos consistente acerca dos fundamentos do ser social (em

    seus prprios termos, da condio humana). Nesse sentido, deve-se recordar que,

    para Arendt, dentre os aspectos importantes que as atividades constitutivas da vita

    activa as quais est a ao, a atividade prpria da esfera poltica

    desempenham na conformao do ser social encontra-se na distino entre

    aquelas que reproduzem o homem como ser vivo e, portanto, dotado de

    necessidades biolgicas e materiais, em relao quelas que o reproduzem como

    membro do gnero humano, ou seja, as que atendem suas demandas de

    2

  • indivduo-social. E, de acordo com o corpus de sua reflexo, pode-se presumir que

    nas diferenas existentes na natureza dessas atividades e nas influncias de

    umas sobre outras que, respectivamente, erguem-se a grandeza antiga e a

    misria moderna da vida poltica. Por isso, neste momento inicial, necessrio

    nos dirigirmos ao edifcio principal de seu complexo terico, para dele extrairmos

    aqueles elementos que nos permitam analisar e entender adequadamente sua

    singular viso acerca do trabalho (e da fabricao) e das caractersticas,

    potencialidades e limites da ao poltica em geral especialmente no mundo

    contemporneo. Somente partindo deste edifcio, de seus fundamentos e

    peculiaridades, que poderemos entender o exato sentido de sua concepo

    acerca da violncia na poltica e, por meio dela, da crtica que desfia ao

    pensamento de Marx.

    I. Vita activa

    Em inmeras obras Hannah Arendt debruou-se no desvendamento das

    bases da poltica contempornea. No entanto, foi em A condio humana que ela

    desenvolveu aquilo que em seu pensamento mais se aproxima, em termos

    lukacsianos, de uma anlise ontolgica do ser social; portanto, nesta obra ela

    analisou mais profundamente as bases da poltica e as inter-relaes desta com

    as outras atividades humanas. Foi nela, tambm, que explicitou a importncia

    decisiva da distino entre as trs atividades constitutivas da vita activa[1] (trabalho,

    fabricao e ao) para a explicitao dos fundamentos da prtica poltica. E se

    fcil entender porque, em seu edifcio conceitual, o trabalho (labor) e a fabricao

    (work) possuem um papel prioritrio na produo dos fundamentos materiais da

    vida social, a mesma facilidade no se repete quando analisamos como, na

    atualidade, estas atividades interferem negativamente na forma e no contedo da

    atividade prpria da esfera poltica isto , na ao. Em razo disso, uma anlise

    sria da poltica contempornea deve contemplar as mltiplas relaes entre

    essas atividades e as determinaes delas decorrentes.

    3

  • Naquilo que diz respeito ao trabalho e fabricao, Arendt acredita que

    ambas as atividades, apesar de serem constitutivas da esfera das necessidades,

    possuem diferenas significativas entre si. E, analisando estas categorias em sua

    pureza prtica, observa que, enquanto o trabalho satisfaz demandas biolgicas da

    vida humana, produz bens de consumo no-durveis e que, por isso, est

    envolvido num processo cclico e interminvel da produo material , a

    fabricao consiste naquela atividade responsvel pela produo das demandas

    materiais da vida humana que escapam dimenso meramente biolgica, em

    seus termos, os bens de consumo durveis. Por conseguinte, ao contrrio do

    trabalho, atividade cclica, interminvel, repetitiva e cujo resultado so produtos

    desprovidos de durabilidade e da identidade do produtor, a fabricao constitui-se

    originalmente de atividades cujo incio, meio e fim so perfeitamente delineados e

    cujos resultados, alm de durveis, expressam a individualidade de quem os

    produziu. Entre outras coisas, isto significa que, comparada ao trabalho, a

    fabricao constitui uma atividade mais humana (porque se encontra mais distante

    da mera reproduo biolgica). evidente que, pelas caractersticas

    discriminadas, e antes do advento da indstria, a fabricao identificava-se

    atividade artesanal.

    Ademais, na condio de atividade produtora do mundo humano objetivo,

    duradouro e comum a todos, a fabricao tambm fundamental para a vida

    pblica, para a liberdade, pois se o termo pblico significa o prprio mundo, na

    medida em que comum a todos ns e diferente do lugar que nos cabe dentro

    dele (Arendt, 1998, p. 52), a fabricao e seu produto, a obra fundamental

    para sua existncia. E isto porque aquilo que pblico

    tem a ver com o artefato humano, com a fabricao das mos humanas, com os

    negcios realizados entre os que, juntos, habitam o mundo feito pelo homem.

    Conviver no mundo significa essencialmente ter um mundo de coisas interposto

    entre os que nele habitam em comum, como uma mesa se interpe entre os que

    4

  • se assentam ao seu redor; o mundo, como todo intermedirio, ao mesmo tempo

    separa e estabelece uma relao entre os homens (Arendt, 1998, p. 52).

    Num primeiro momento, fundamental entender que nem mesmo a

    percepo do importante papel da fabricao e, evidentemente, da obra, em razo

    do carter humano (e no meramente fisiolgico) daquela e da durabilidade desta

    para a sustentao material dos assuntos humanos concede ao Homo faber as

    qualificaes necessrias para participar da vida pblica, da vida poltica. Na

    verdade, esta percepo da importncia da fabricao para a vida pblica serve

    como um contraponto ainda mais ntido condio inferior do trabalho e sua

    problemtica valorizao no mundo moderno. E isto porque, sendo os produtos do

    trabalho objetos de consumo rpido, ligados s necessidades vitais (biolgicas) e

    sustentados por uma atividade incessante, ela v na atual valorizao desta

    atividade (trabalho) os fundamentos do produtivismo contemporneo, cuja

    caracterstica central a de submeter cada vez mais aspectos da produo

    inclusive, a prpria fabricao[2] e da ao sua lgica, sua racionalidade.

    Assim, em relao ao mundo moderno,

    O ponto [central] no que, pela primeira vez na histria, os trabalhadores tenham

    sido admitidos com direitos iguais na esfera pblica, mas sim que ns quase

    obtivemos sucesso em nivelar todas as atividades humanas ao denominador

    comum de assegurar as coisas necessrias vida e de produzi-las em abundncia

    (Arendt, 1998, p. 126).

    No difcil, a partir do exposto, perceber que no crescente predomnio

    do trabalho, marcado pela racionalidade produtivista e por prticas vinculadas s

    necessidades vitais, que se assenta sua viso de que fundamental distinguirmos

    esta atividade (o trabalho) da fabricao, dado que a construo de um verdadeiro

    espao pblico implica a delimitao de um espao social especfico para o

    trabalho, em sua separao da fabricao e na valorizao das atividades que

    possam fornecer sustentculo quele espao, esfera pblica[3] fabricao e

    ao. Por conseguinte, somente a fabricao produz as condies objetivas da

    5

  • vida efetivamente humana, produz uma espcie de segunda natureza que

    possibilita e d forma objetiva s relaes entre os homens, ou seja, fornece a

    base material que transcende as demandas fisiolgicas e, ao mesmo tempo, as

    individualidades humanas (histrica e espacialmente), sedimentando a vida em

    sociedade, a prpria vida humana[4].

    A subsuno da produo dos objetos durveis[5] lgica e s demandas

    do Animal laborans ou seja, ao inesgotvel ciclo produo-consumo implica o

    declnio de um mundo humano objetivo e durvel, de um mundo imprescindvel

    para o desenvolvimento de uma vida efetivamente humana, tanto no mbito

    individual/familiar quanto no coletivo/poltico. Em razo disso, numa sociedade que

    valoriza o trabalho em detrimento da fabricao e, com isso, faz que as prticas e

    ideais que regem o trabalho predominem na produo de objetos, o mundo

    objetivo torna-se cada vez mais desqualificado para sustentar a prpria vida

    humana[6].

    J sabemos, entretanto, que as atividades da vita activa no se resumem

    ao trabalho e fabricao. H, tambm, a ao, a mais elevada de suas

    atividades. Sinteticamente, podemos defini-la como a nica atividade livre e a

    mediadora par excellence da plural relao homem-homem, cujo ambiente de

    exerccio a esfera poltica. por meio da ao e do discurso que a explicita (isto

    , que torna possvel o debate para aclarar e legitimar a prpria finalidade e os

    meios da ao do agente ou agentes polticos) que os homens relacionam-se

    como seres livres, no vinculados a demandas materiais e, portanto, no tendo

    por objeto de sua atividade o mundo material, mas a si mesmos (indivduos e

    gnero humano) e a suas autopostas preocupaes com os bens comum e

    individual.

    Ainda no que diz respeito ao, Arendt observa que, se a esfera poltica

    relaciona os homens como iguais, sendo cada individualidade dotada dos mesmos

    direitos que as outras primordialmente, dos direitos de agir e discursar , este

    6

  • relacionamento s possvel porque, apesar de iguais em direitos, os homens so

    diferentes entre si:

    Se os homens no se distinguissem, se cada ser humano no diferisse de todos

    os que existiram, existem ou viro a existir, eles no necessitariam da fala ou da

    ao para se fazerem entender. Sinais e sons seriam suficientes para comunicar

    suas necessidades e desejos imediatos e idnticos (Arendt, 1998, p. 176).

    Se, portanto, sob a condio de igualdade jurdica, os homens se

    relacionam de fato apenas porque so diferentes entre si, por meio do discurso e

    da ao que esta diferena pode vir tona, visto que com palavras e atos que

    nos inserimos no mundo humano; e esta insero como um segundo

    nascimento, no qual confirmamos e assumimos o fato nu, bruto, do nosso

    aparecimento fsico original (Arendt, 1998, pp. 176-7). Tal nascimento, em vez de

    produzir algo que pr-ideado, pode ser refeito e/ou consertado, alm de carregar

    em si as marcas do indivduo que o plasmou, resultando numa produo annima,

    irreversvel e que, alm do mais, traz em si forte dose de imprevisibilidade, j que

    a pluralidade de indivduos, o debate de idias e a realizao destas nos negcios

    humanos (isto , no em objetos, mas em indivduos dotados de razo) no

    permitem o controle sobre os resultados da ao nos mesmos moldes a que est

    sujeito, por exemplo, o objeto nas mos do arteso.

    esta insegurana em relao aos seus resultados que, desde a

    Antigidade, segundo Arendt, motiva os seres humanos a tomarem a fabricao

    por modelo para a ao. Esta substituio da ao pela fabricao ou, o que d

    no mesmo, uma ao inspirada no modus operandi da fabricao visando a

    aumentar o controle sobre os negcios humanos, no uma caracterstica

    especfica da modernidade; h muito a fabricao constitui uma espcie de

    modelo desvirtuador da atividade tpica da esfera poltica, da ao[7]. E, a este

    respeito, o mundo moderno se destaca pelo fato de ter passado a valorizar as

    atividades que, nas pocas anteriores, eram relegadas a um plano secundrio,

    como o trabalho e a fabricao. De acordo com Arendt, mesmo que, em inmeros 7

  • casos, tomassem a fabricao por modelo para a ao, as pocas anteriores

    modernidade valorizavam a ao e a contemplao como atividades propriamente

    humanas o homem era reconhecido como Animal rationale. No mundo moderno,

    as coisas tomaram outro rumo:

    a convico de que o homem pode conhecer somente aquilo que ele faz, de que

    suas capacidades supostamente superiores dependem da fabricao e de que ele

    , portanto, primariamente um Homo faber e no um Animal rationale, trouxe

    tona as implicaes muito mais antigas da inerente violncia em todas as

    interpretaes das esferas de negcios humanos como uma esfera de fabricao

    (Arendt, 1998, p. 228).

    Assim, alm de ressaltar uma suposta confuso entre trabalho e fabricao,

    permitindo o predomnio daquele em espaos antes restritos apenas atividade

    do arteso e, atravs dele, a subsuno dos ideais e prticas do Homo faber aos

    do Animal laborans , Arendt enfatiza que o mundo moderno tambm acabou

    confundindo a fabricao com a ao, o que fez com que a primeira se tornasse o

    modelo da prxis poltica, da ao. Nessa substituio da ao pela fabricao

    (Arendt, 1998), o Animal rationale cedeu seu lugar ao Homo faber ou melhor,

    incorporou as caractersticas deste e, com isso, a ao passou a ter como

    principal referncia o modus operandi da fabricao (work), da atividade produtiva

    da obra[8]. Isso significa que a racionalidade orientada para a adequao de meios

    a fins determinados, pr-ideados ou seja, a racionalidade que deve conduzir a

    organizao dos meios de acordo com um modelo (mental, conceitual) a ser

    objetivado , tpica da fabricao, tambm est presente de maneira decisiva na

    ao, na prxis poltica do mundo moderno. Ou seja, justamente na ao, que

    (ou, ao menos, deveria ser) a atividade humana que estabelece a relao entre

    indivduos livres e iguais na esfera pblica, na vida poltica.

    Enfim, essa substituio da ao pela fabricao expressa que a violncia,

    to necessria ao Homo faber em sua luta para arrancar da natureza os

    elementos (os materiais) sobre os quais incide sua atividade e, com isso, adequ-

    8

  • los a fins no-naturais, torna-se tambm necessria e valorizada nesta atividade

    (uma espcie de ao corrompida) que toma a fabricao por modelo.

    II. Poltica e violncia

    Ao considerar a violncia detentora um papel decisivo na fabricao e, por

    meio dela, na ao, especialmente na transio de uma formao social a outra,

    Arendt considera a poltica no mundo moderno s voltas com um problema

    fundamental: toma por caracterstica da ao aquilo que, na verdade, constitui

    caracterstica da fabricao. E justamente no cerne dessa confuso conceitual

    que, segundo ela, o pensamento de Marx se encontra mais, constitui um caso

    exemplar. Sendo assim, deixemos que, nesse aspecto decisivo, Arendt fale por si

    mesma:

    A afirmao de Marx de que a violncia a parteira de toda velha sociedade

    prenhe de uma sociedade nova, ou seja, de toda mudana histrica ou poltica,

    somente sintetiza a convico dominante em toda a era moderna e deduz as

    conseqncias de sua crena mais ntima, de que a histria feita pelo homem

    do mesmo modo que a natureza feita por Deus.

    Como tem sido persistente e bem sucedida a transformao da ao em

    modalidade da fabricao, facilmente atestada por toda terminologia da teoria e

    do pensamento poltico, a qual torna quase impossvel discutir esses assuntos sem

    que se utilize a categoria de meios e fins e se raciocine em termos de

    instrumentalidade (Arendt, 1998, pp. 228-9).

    Num artigo de 1953, intitulado Religio e poltica, logo aps apoiar-se em

    Karl Mannheim para ressaltar a dimenso ideolgica do marxismo e desqualificar

    a abordagem acerca da relao entre ser e conscincia por este preconizada[9],

    Arendt diz:

    9

  • A relutncia de Marx em levar a srio o que cada poca diz sobre si e imagina

    ser derivava de sua convico de que a ao poltica era basicamente violncia, e

    que a violncia era a parteira da histria. Tal convico no se devia ferocidade

    gratuita de um temperamento revolucionrio, mas tem seu lugar na filosofia da

    histria de Marx, que sustenta que a histria, representada pelos homens na

    modalidade da falsa conscincia, isto , na modalidade das ideologias, pode ser

    feita pelos homens, tendo eles plena conscincia do que esto fazendo.

    justamente esse lado humanista dos ensinamentos de Marx que o levou a insistir

    no carter violento da ao poltica: ele via o fazer da histria em termos de

    fabricao; o homem histrico era para ele basicamente Homo faber. A fabricao

    de todas as coisas feitas pelo homem implica necessariamente alguma violncia

    que incidir sobre a coisa que se torna a matria bsica do que foi fabricado

    (Arendt, 2002, pp. 62-3).

    Marx, assim, teria compreendido a histria como resultado do fazer

    humano, como resultado de atos teleolgicos que, nos moldes da atividade

    artesanal da fabricao , fazem do Homem e no dos homens o arteso

    consciente de sua histria (cf. Canovan, 1998). como se Marx tivesse

    transformado o processo histrico, resultante de mltiplas interaes dos seres

    humanos entre si (e, simultaneamente, destes com a natureza) num processo

    instrumental. Ou, dito de outro modo, como se, tal qual um Hegel materialista,

    ele concebesse a prpria sociedade como um ser demirgico, dotado de

    capacidades e formas de atuao semelhantes quelas do indivduo singular, que

    substitusse o Esprito e o seu processo de sua autoconscientizao pelos

    prprios homens ou pelo Homem e seus atos de fazer a histria, de

    fabricar a sociedade ideal (comunista). Neste caso, a conscincia de classe

    cumpriria o mesmo papel que a hegeliana astcia da Razo. De qualquer modo,

    em ambos os casos no so exatamente os homens em sua multiplicidade de

    experincias e expectativas que agem, em parte, de maneira coordenada e

    consciente e, em parte, conflitiva e inconscientemente; mas, ao contrrio, o

    Homem, a humanidade unificada, que age de maneira coordenada, consciente e

    controlada, como se fosse o arteso do mundo.

    10

  • A viso marxista da atividade revolucionria seria, ento, o resultado da

    imputao inconsciente de qualidades da fabricao ao, a qual, por meio da

    violncia[10] e orientada pelos mesmos critrios de meios e fins que regem a

    fabricao, faria os homens efetuarem o parto da nova sociedade, cujo rebento

    encontra-se emaranhado nas ntimas contradies da velha formao social. Seria

    justamente esta exaltao da violncia, da ltima ratio, tpica das relaes entre

    os brbaros e caracterstica da condio do escravo[11], a demonstrao de que

    em Marx predomina uma hostilidade antitradicional ao discurso, busca do

    consenso, poltica (Arendt, 1972, p. 50).

    Nesse contexto, o pensamento poltico de Marx representa, segundo Arendt,

    o fim de uma trajetria do pensamento poltico tradicional, iniciada pelas filosofias

    de Plato e Aristteles. Pois com esses pensadores a filosofia teria, num duplo

    salto, se distanciado dos assuntos humanos, onde reina a confuso e a iluso,

    para retornar a eles ilustrada pela razo, isto , para [esta, a razo] impor seus

    padres aos assuntos humanos (Arendt, 1972, p. 44); fato altamente positivo, que

    teria demarcado o incio de uma fecunda relao entre a filosofia e os assuntos

    humanos, entre ela e a poltica. Enquanto com Marx, desgraadamente, teria

    acontecido o oposto, visto que ele repudiou a Filosofia, para poder realiz-la na

    poltica (Arendt, 1972, p. 44). Para ele, em vez de a filosofia permanecer uma

    espcie de reflexo sistemtica e crtica constituda, de certo modo, apartada do

    processo histrico, ela passou a emanar da prpria histria, ou antes a

    conscincia poltica [deriva] da conscincia histrica (Arendt, 1972, p. 114). E,

    ainda segundo Arendt, um dos fundamentos desta concepo reside na

    identificao, estabelecida no mundo moderno, entre sentido e fim. Por meio dela,

    o sentido, como termo que expressa o significado de um acontecimento portanto,

    resultante de uma explicao post factum , foi transformado em fim, de

    significado de acontecimentos passados passou a pr-idear situaes futuras.

    Com isso, as aes individuais e instrumentais (realizadas com a finalidade de...)

    que explicam o processo de trabalho e seus resultados passaram a servir de

    modelo para a explicao do porqu de o indivduo (e/ou a sociedade) ser o que

    11

  • e, portanto, executar esta atividade (e/ou possuir tais caractersticas) i.e., como

    se o presente fosse a manifestao aqui e agora da necessidade imanente de

    atos passados. Enfim, ao considerar as sociedades modernas degradadoras do

    sentido em fim, Arendt avalia que o marxismo, parte integrante desta modernidade,

    levou esta degradao s ltimas conseqncias e, assim, transformou a histria

    em teleologia.

    Pois bem, se, ainda segundo Arendt, a teoria da histria como fabricao

    no exclusiva do pensamento marxista, mas constitui uma caracterstica do

    pensamento poltico moderno, aquele se distingue

    de todas as demais teorias em que a noo de fazer a histria encontrou abrigo

    somente [pelo] fato de apenas ele ter percebido que, se se toma a histria como o

    objeto de um processo de fabricao ou elaborao, deve sobrevir um momento

    em que esse objeto completado, e que, desde que se imagina ser possvel fazer

    a histria, no se pode escapar conseqncia de que haver um fim para a

    histria (Arendt, 1972, p. 114).

    Para que, ento, os marxistas respondem aos apocalpticos que

    advogam o fim das ideologias e da histria se, com um golpe de mo, o prprio

    Marx eliminou a ambas? Nesta viso, tal como o objeto que, inicialmente pr-

    ideado na cabea do arteso, completa seu ciclo de produo, torna-se objetivo,

    finda, a histria chegaria ao seu fim com a realizao da filosofia pelo proletariado

    nos invertidos termos hegelianos, seria este o momento da autoconscientizao

    do Esprito, da plena identificao entre conceito e objeto, entre pensamento e

    realidade , fato que demarcaria o controle da vida humana nos mesmos moldes

    em que o arteso domina a matria a ser plasmada e lhe fornece uma forma final.

    Mas se Marx tratado como uma espcie de Hegel materialista, certo que

    as idias de ambos no so idnticas. Tanto que, em oposio sua

    predecessora hegeliana, a coruja de Minerva marxiana no ala vo somente ao

    crepsculo, ela capta conceitualmente as condies em que este pode ocorrer e,

    12

  • assim, auxilia na sua realizao. Outrossim, mais importante do que saber se esta

    caracterstica do pensamento de Marx adequadamente entendida por Arendt,

    saber que, para ela, esta caracterstica expressa um determinismo que torna

    suprflua qualquer discusso sobre as finalidades e o contedo dos processos

    sociais, dado que a histria fabricada, modelada como se fosse um objeto pelo

    proletariado demirgico, torna a palavra, o discurso, um mero instrumento de

    justificao ideolgica de idias preconcebidas a serem materializadas. Foi

    partindo desses pressupostos que Arendt pde afirmar:

    O que era ento inexplicvel na histria [a saber, os mltiplos interesses

    conflitantes que tornam a ao poltica ineficaz no alcance de seus objetivos e a

    existncia de um sentido no processo histrico] passa agora a ser visto como o

    reflexo de um significado que seguramente era tanto um produto humano quanto o

    desenvolvimento tcnico do mundo. O problema de humanizar os assuntos

    poltico-histricos resumia-se, conseqentemente, em descobrir como dominar

    nossas prprias aes assim como dominamos nossa capacidade produtiva, ou,

    em outras palavras, como fazer histria assim como fazemos outras coisas. Uma

    vez que isso seja alcanado, com a vitria do proletariado, no precisaremos mais

    de ideologias /.../ Mas at l todas as aes polticas, preceitos legais e

    pensamentos espirituais continuaro escondendo os motivos inconfessos de uma

    sociedade que somente finge agir politicamente, mas que, na verdade, faz

    histria, ainda que de uma maneira inconsciente, isto , no-humana (Arendt,

    2002, p. 63).

    No constituindo a esfera do pleno exerccio do debate de idias entre

    indivduos livres e iguais indivduos que, por meio do uso intenso da palavra, do

    discurso, do mtuo esclarecimento, estabelecem consensos mais ou menos gerais

    sobre os fundamentos e as finalidades da ao , a poltica atual constitui um

    simulacro da poltica autntica. Tal como a entende Arendt, esta constitui uma

    esfera (pblica) que, antes de qualquer outra coisa, deve estar apartada da

    violncia, na medida em que esta nega a palavra, o discurso, o debate e, portanto,

    a ao. Definindo, assim, o que so meios e fins, o que essencial e o que

    imposio extrnseca poltica, Arendt, reitera que o poder de fato a essncia

    13

  • de todo governo, mas no a violncia (Arendt, 1994, p. 40). Por conseguinte,

    sendo de natureza instrumental, a violncia, como todos os meios, /.../ sempre

    depende da orientao e da justificao pelo fim que almeja. E aquilo que

    necessita de justificao por outra coisa no pode ser a essncia de nada (Arendt,

    1994, p. 41). O poder encontra sua legitimidade no passado, a violncia se

    justifica pelas conseqncias futuras; aquele pela sua constituio, esta pelos

    seus objetivos. Em razo disso, a violncia pode ser justificvel, mas nunca ser

    legtima (Arendt, 1994, p. 41). Enfim, ao vincularem a violncia ao poder, as

    concepes polticas hegemnicas, dentre elas o marxismo, demonstram a

    incompreenso de que aqueles so, na verdade, opostos; onde um domina

    absolutamente, o outro est ausente (Arendt, 1994, p. 44).

    Para no cindir a argumentao crtica e, com isso, torn-la

    demasiadamente prolixa, retornaremos mais adiante a estas afirmaes de

    Hannah Arendt sobre poltica e violncia. Por ora, aps termos descrito algumas

    categorias centrais do pensamento arendtiano e, em especfico, os fundamentos

    de sua crtica relao entre poltica e violncia em Marx, passemos, na mesma

    seqncia de idias desenvolvida at aqui, ao confronto dessas reflexes com

    aquelas que, a nosso ver, correspondem adequadamente tanto ao corpo quanto

    ao esprito da obra marxiana.

    III. Marx: trabalho, histria e violncia na poltica

    Consideramos desnecessrio demonstrar ad nauseam como a concepo

    de trabalho em Marx difere substancialmente daquelas atividades que Arendt

    denomina pelos vocbulos trabalho e fabricao, pois, para o nosso objetivo,

    basta que o realizemos apenas em suas linhas gerais. Assim, em primeiro lugar

    necessrio relembrar que, ao contrrio da concepo arendtiana, na obra de Marx

    o trabalho no consiste numa atividade que nos vincularia mais ao mundo dos

    animais do que ao dos seres humanos propriamente ditos. Para ele, muito distante

    14

  • de qualquer iluso acerca de uma vida sem trabalho[12], esta atividade constitui um

    momento efetivamente fundante e fundamental da vida humana, sem a qual, a

    sim, no nos distinguiramos em absolutamente nada dos prprios animais[13]. Em

    termos precisos, podemos dizer que o animal no se relaciona com a natureza,

    ele apenas vive nela, sua parte integrante[14]; no se distinguindo dela como um

    ser consciente, o animal , portanto, incapaz de estabelecer uma mediao

    regulada, conscientemente controlada com a natureza (Marx, 1985, p. 149),

    apenas respondendo com maior ou menor labilidade s determinaes e s

    constantes mudanas de seu hbitat. O ser humano, por sua vez, age de maneira

    pr-ideada em sua atividade metablica, pois em todos os momentos do processo

    de trabalho lhe exigida a vontade orientada a um fim (Marx, 1985, p. 150).

    Assim, o sujeito que trabalha no apenas efetua uma transformao da forma da

    matria natural; realiza, ao mesmo tempo, na matria natural seu objetivo, que ele

    sabe que determina, como lei, a espcie e o modo de sua atividade e ao qual tem

    de subordinar sua vontade (Marx, 1985, p. 150). No sendo, portanto, a mera

    expresso de determinaes ou epifenmenos biolgicos, o trabalho uma

    atividade na qual, inevitavelmente, entrelaam-se o pensar e o fazer, a

    conscincia e a ao, com aquela orientando esta para transformar a matria com

    vistas a dar-lhe uma forma adequada satisfao de alguma necessidade

    humana. A idia, mediada pelo trabalho, cristaliza-se no objeto, objeto que, longe

    de ser meramente natural, a manifestao material da subjetividade humana,

    posto que s existe em razo desta. Tanto que, no final, temos que o trabalho

    est objetivado e o objeto trabalhado (Marx, 1985, p. 151); num mesmo ato, a

    subjetividade exteriorizou-se e a materialidade tornou-se subjetiva[15]. E, claro,

    como esta objetivao resultado de aes conscientes, o metabolismo dos

    homens em relao natureza muito mais dinmico, mutante, do que aquele

    efetuado pelos animais, resultando em formas materiais e sociais

    permanentemente alteradas, ocorrendo a mesma coisa com a prpria

    subjetividade humana.

    15

  • Sendo uma atividade humanamente produtiva, o trabalho no apenas a

    relao do homem com a natureza, tambm uma relao que ocorre entre os

    prprios homens e, verdadeiramente como trabalho, s existe a partir desta

    relao. Ainda em sua juventude, num texto seminal para a elaborao de suas

    reflexes posteriores, Marx nos diz que o homem s um ser consciente, quer

    dizer, a sua vida constitui para ele um objeto porque um ser genrico.

    Unicamente por isso que sua atividade surge como atividade livre (Marx, 1985,

    p. 165). Se no fosse um ser social, genrico, produto e produtor de si e do

    gnero, o ser humano no possuiria as faculdades (conscincia, linguagem) sem

    as quais, paradoxalmente, o prprio trabalho no existiria. E que, simultaneamente,

    como dissemos, permitem o aprimoramento e a expanso das fronteiras da vida

    humana (individual e coletiva) para muito alm daquelas a que esto restritos os

    seres vivos naturais[16].

    Nesse caso, parece-nos bvio que completamente irrelevante saber se

    uma atividade produtiva resulta em produtos mais ou menos durveis por

    exemplo, em alimentos ou objetos do mobilirio para classific-la como estando

    mais prxima ou mais distante da vida propriamente humana. Seja numa

    sociedade especfica ou ao longo da histria humana, um produto pode durar mais

    ou menos tempo devido a um sem-nmero de fatores, tais como os materiais e a

    tecnologia empregados, as relaes sociais sob as quais foi produzido, as classes

    e/ou grupos sociais que o utilizaro definindo, por exemplo, a velocidade e o

    perfil de sua obsolescncia, ou seja, se esta real, materialmente efetiva, ou

    socialmente condicionada , entre outros, e no apenas devido maior ou menor

    proximidade da reproduo biolgica dos indivduos. A rigor, a produo de um

    alimento ou medicamento por meio de procedimentos complexos e sofisticados,

    mas cujo consumo quase imediato (para Arendt, produto do trabalho),

    certamente expressa nveis mais elevados de humanizao do que a produo de

    uma tosca mesa de madeira que perdura sculos, passando de gerao a

    gerao (Marx, 1985, produto da fabricao).

    16

  • Essas observaes acerca da relao entre as atividades produtivas e a

    durabilidade de suas produes no significa, em hiptese alguma, que a

    durabilidade ou no de um produto seja irrelevante para os indivduos e a

    sociedade em geral, at mesmo porque os produtos so elementos constitutivos e

    condicionantes de certas caractersticas dos processos de produo e reproduo

    das formaes sociais. Significa apenas que per se ela no relevante para

    mensurar o nvel de humanizao da atividade e das qualificaes subjetivas nela

    envolvidas. Assim, nas sociedades capitalistas, por exemplo, saber se um

    determinado objeto constitui parte do maquinrio ou da edificao (capital fixo) ou,

    ento, se apenas insumo, matria-prima ou meio de subsistncia (capital

    circulante) significativo prioritariamente em razo de que as propores de seus

    respectivos usos e o seu perodo de rotao afetam, de maneira decisiva, as taxas

    de lucro do capital investido. Alm do mais, o fato de um valor de uso aparecer

    como matria-prima, meio de trabalho ou produto, depende totalmente de sua

    funo determinada no processo de trabalho, da posio que nele ocupa, e com a

    mudana dessa posio variam essas determinaes (Marx, 1985, p. 152).

    Quase desnecessrio dizer que tal posio tambm varia de acordo com o nvel

    de desenvolvimento das foras produtivas e das relaes sociais que constituem a

    sociedade em questo. Em sntese, se no podemos definir um objeto como

    sendo o resultado de uma atividade inferior ou superior na hierarquia das

    atividades humanas (da vita activa arendtiana) devido sua durabilidade[17] ou

    sua proximidade da reproduo biolgica ( manuteno e reproduo do corpo),

    qualquer tentativa de mensurao sob este prisma nos parece completamente

    arbitrria, inclusive, claro, a que se funda na distino arendtiana entre trabalho

    e fabricao.

    Enfatizar estas caractersticas do trabalho tambm importante porque,

    contrariamente s qualificaes inerentes a ele e fabricao que, de acordo com

    Arendt, esto diretamente relacionadas s qualidades do Animal laborans e do

    Homo faber, no pensamento marxiano inexiste qualquer meno a uma essncia

    a-histrica do trabalho, isto , uma essncia que, revelia da forma societria em

    17

  • que a atividade se realiza, imprime subjetividade daquele que o executa

    inelutveis qualificaes. Muito ao contrrio. As anlises marxianas so

    profundamente ancoradas na historicidade dos fenmenos naturais e sociais,

    negando qualquer essencialismo em relao ao trabalho ou a qualquer outra

    atividade, bem como ao indivduo ou grupo de indivduos que o executa. Para

    Marx, a essncia humana no uma abstrao inerente ao indivduo singular.

    Em sua realidade, o conjunto das relaes sociais (Marx, 1987, p. 13). Por

    conseguinte, em aberta oposio s proposies arendtianas, afirmamos que o

    produtivismo no constitui uma caracterstica inerente ao trabalho que, com a

    ascenso deste esfera pblica, teria transbordado as fronteiras da vida privada e

    se generalizado socialmente , mas sim uma caracterstica que possui suas razes

    nas formas de sociabilidade vigentes no mundo contemporneo, sejam estas

    formas capitalistas ou ps-capitalistas[18]. Dito de outro modo, se o trabalho

    assalariado, alienado, constitui cada vez mais a forma predominante da atividade

    produtiva e reprodutiva dos indivduos nestas sociedades, tal desventura no

    decorre de uma essncia que seja inerente a ele tanto quanto s formas pretritas

    de trabalho e que tenha se desvencilhado na atualidade das amarras que

    limitavam sua expanso. A raiz deste fenmeno reside no fato de o capital

    constituir a relao social bsica das sociedades assinaladas, generalizando

    aquela forma de trabalho. E, a propsito do essencialismo produtivista do trabalho,

    em vrias passagens de sua obra Marx nos mostrou as diferenas existentes

    entre as sociedades antigas e as modernas sociedades capitalistas. Numa dessas

    passagens, ele lembra que:

    Entre os antigos no encontramos uma nica investigao a propsito de qual a

    forma de propriedade etc., que seria a mais produtiva, que geraria o mximo de

    riqueza. A riqueza no constitua o objetivo da produo /.../. A pesquisa sempre

    era sobre qual o tipo de propriedade que geraria os melhores cidados (Marx,

    1975, p. 80, grifos nossos).

    Mesmo em seu mbito estritamente privado, a propriedade no estava

    relacionada prioritariamente aos interesses egostas do indivduo, mas eram os 18

  • interesses deste e, portanto, o uso que fazia daquela que estavam

    circunscritos e condicionados pelos interesses da comunidade da qual fazia parte,

    por mais restrita que esta fosse em relao populao total. Desse modo, nestas

    formaes sociais, as atividades produtivas no eram movidas por uma inerente

    racionalidade produtivista, uma racionalidade cujo suposto transbordamento das

    fronteiras privadas e o estabelecimento do domnio sobre as outras atividades

    caracterizariam segundo Arendt o mundo moderno. Em relao a este, sua

    principal caracterstica consiste na centralidade, na generalizao e no crescente

    predomnio do capital no conjunto das relaes sociais. Enfim, justamente esta

    centralidade do capital, e suas conseqncias, que produz o assalariamento

    generalizado dos indivduos e a subsuno da reproduo socioeconmica como

    um todo lgica produtivista.

    Numa pequena digresso, visando apenas a estreitar as margens de ao

    das leituras vulgares do marxismo, necessrio ressaltar que esta afirmao da

    centralidade do capital nas relaes sociais contemporneas e do espraiamento

    de sua influncia pela totalidade social no implica reducionismo econmico. Na

    verdade, ela significa apenas a explicitao de caractersticas inerentes ao capital,

    cuja tendncia a subsumir a multiplicidade de dimenses da vida humana sua

    lgica acumulatria, expansionista, um fato incontestvel, ontologicamente

    enraizado e racionalmente apreensvel, e no um grave equvoco terico de um

    pensamento incapaz de atentar para a complexidade do real. nesse sentido que,

    comentando a famosa proposio de Marx, segundo a qual No a conscincia

    dos homens que determina o seu ser, mas, ao contrrio, o seu ser social que

    determina sua conscincia[19] (Marx, 1982, p. 25), Lukcs afirma: nesse trecho, o

    mundo das formas de conscincia e seus contedos no visto como um produto

    direto da estrutura econmica, mas da totalidade do ser social. A determinao da

    conscincia pelo ser social, portanto, entendida em seu sentido mais geral

    (Lukcs, 1979, p. 41) e no como expresso direta, mecnica e restrita dos

    processos econmicos.

    19

  • Neste tpico, at o momento, detivemo-nos nas distintas concepes

    acerca do trabalho presentes em Arendt e Marx. O caso, porm, que, apesar de

    significativas, tais concepes no circunscrevem sua influncia s fronteiras

    econmicas, mas extravasam a economia e deitam razes na totalidade de suas

    reflexes sobre a vida humana. Assim, se Arendt tem razo em afirmar que para

    Marx o trabalho e a fabricao, apesar da irrelevncia desta distino (trabalho x

    fabricao) no quadro conceitual marxiano tratado como uma atividade

    teleolgica, cujas relaes que estabelece com as outras atividades constitutivas

    da vida humana so fundamentais para delinear as caractersticas da totalidade

    social, nada justifica sua transposio de elementos caractersticos do trabalho

    (concreto) para a concepo de histria marxiana. No entanto, justamente isto

    que ela faz ao afirmar que, em Marx, a histria entendida como um processo

    similar ao da fabricao, do artesanato, um processo que, contemporaneamente,

    exige a interveno consciente de um sujeito demirgico o proletariado para

    plasmar a nova forma societria tal como o arteso faz com sua matria-prima. E,

    igualmente, ao afirmar que, do mesmo modo que a materializao do objeto pr-

    ideado expressa o fim do processo gerido pelo arteso, a realizao da sociedade

    pr-ideada pelo proletariado significaria o fim da histria.

    Ora, uma das questes mais complexas do pensamento social, fruto de

    inmeras polmicas, teorias e tratados ao longo dos ltimos sculos

    especialmente aps o advento da sociologia , a articulao das aes

    individuais e a reproduo da totalidade social. E mesmo certos da impossibilidade

    de adentrar no emaranhado de questes suscitado pelo tema, no podemos omitir

    a informao de que uma leitura criteriosa dos textos marxianos demonstra, sem

    grande dificuldade, a improcedncia das crticas de Hannah Arendt. De modo

    algum condiz com o esprito da obra marxiana a identificao da reproduo

    social como um todo e nem dos processos de transio de uma forma societria a

    outra ao modus operandi do trabalho. O que no significa, por sua vez, que a

    instabilidade econmica e social no fosse objeto de suas preocupaes. A bem

    da verdade, sendo o primeiro a entender a centralidade do trabalho e suas

    20

  • conseqncias na produo e reproduo da vida humana, Marx se assenhoreou,

    desde os Manuscritos de 1844, de conhecimentos suficientemente significativos

    para criticar, em relao quele aspecto inicialmente citado das relaes entre

    indivduo e sociedade, tanto o materialismo vulgar quanto o idealismo. Assim, em

    vez da naturalizao da histria humana ou da arbitrariedade da vontade e da

    razo, em suas obras encontramos uma profunda e ponderada afirmao dos

    seres humanos como autoprodutores de sua prpria histria e, simultaneamente,

    uma crtica hipostasia das potencialidades da razo e das foras humanas nesta

    autoproduo. Invariavelmente, suas anlises reiteram que Os homens fazem

    sua prpria histria, mas no a fazem como querem; no a fazem sob

    circunstncias de sua prpria escolha e sim sob aquelas com que se defrontam

    diretamente, legadas e transmitidas pelo passado (Marx, 1986, p. 17, grifos

    nossos). Nos dias atuais, no difcil perceber como, por si s, esta frase nos

    mostra quo distante o realismo marxiano se encontra do politicismo voluntarista e

    da realpolitik que, cada qual ao seu modo, como faces de uma mesma moeda,

    dominam os discursos polticos e econmicos em voga.

    Ainda no que diz respeito questo do sujeito demirgico e do finalismo

    histrico, necessrio que se entenda que, mesmo em sua fastidiosa reproduo

    cotidiana, o trabalho sempre um ato de criao; criao no apenas de coisas

    novas, de objetos que emergem da materialidade natural sob uma forma

    humanamente apropriada, mas criao da prpria subjetividade humana, que se

    renova a partir das experincias possibilitadas pelos meios e resultados de sua

    produo e pelas relaes sociais que os envolvem. Tendo em mente esta

    dinmica intrnseca atividade vital dos seres humanos e, ao mesmo tempo, o

    carter que, para Marx, a totalidade do real[20] assume como concreto pensado

    (Marx, 1982, p. 15), nem a mais poderosa das inteligncias humanas, tampouco o

    concurso delas sob a forma do coletivo partidrio, pode, em termos conceituais,

    apreender, subsumir absolutamente o real ao pensamento e, muito menos,

    sujeitar as prprias relaes sociais a um controle assemelhado ao das tcnicas

    produtivas.

    21

  • Decerto, esta iluso hegeliana, expressa no postulado da identificao final

    entre sujeito e objeto, entre o conceito e o real, no compartilhada por Marx, cuja

    rejeio est explcita numa passagem de A sagrada famlia em que faz

    consideraes sobre o sentimento do amor, em crtica a certas formulaes de

    Edgar Bauer. Numa frase elucidativa, anunciando um aspecto de sua concepo

    sobre a histria que, diga-se de passagem, o acompanhar pelo resto da vida, ele

    ironicamente afirma que, em sua crtica aos romances de uma certa Madame Von

    Paazlow, Edgar Bauer, profundamente influenciado pela mstica e pela fraseologia

    hegeliana, combate no apenas a concepo de amor que ali se manifesta, mas

    sim toda doao viva, todo imediato, toda experincia sensvel, ou, de modo mais

    geral, toda experincia real, da qual no se pode saber, antes da hora, nem de

    onde ela vem, nem para onde vai (Marx, 1987b, p. 25). Por isso, antes desta

    observao, Marx nos diz que o amor s mereceria o interesse da crtica

    especulativa [isto , de Edgar Bauer e outros crticos especulativos] se a gente

    pudesse construir a priori sua origem e seu fim (Marx, 1987b, p. 25). Como isto

    no possvel, ao idealista de inspirao hegeliana s resta, tal como fez o

    prprio mestre, Hegel, negar a histria concreta, real, incerta, possvel, pela

    histria do Esprito, das idias, enfim, pela certeza, pelo necessrio, pela lgica e

    seu mtodo que se movem de modo autnomo, visto que constituem a forma e o

    contedo do prprio Esprito em movimento. Enfim, para Marx, a necessidade

    histrica ou seja, as determinaes sociais no substitui a ao dos homens

    em seu processo de autoconstruo, mas a condiciona, limitando e abrindo

    possibilidades especficas em situaes especficas.

    Na anlise das sociedades capitalistas em condies estveis, normais,

    de funcionamento econmico, Marx demonstra como, apesar de originria de atos

    individuais orientados para fins conscientes, a anarquia uma caracterstica

    intrnseca a esta forma societria. Nela, paradoxalmente, processos produtivos

    altamente controlados resultam em crises econmicas peridicas, crises que

    nucleiam a incontrolabilidade da reproduo social como um todo. assim que,

    22

  • em seus comentrios acerca das diferenas entre a diviso manufatureira e a

    diviso social do trabalho, ele nos diz expressamente:

    a lei do valor das mercadorias [nas sociedades capitalistas] determina quanto de

    todo tempo de trabalho disponvel a sociedade pode despender para produzir cada

    espcie particular de mercadoria. Todavia, essa constante tendncia das

    diferentes esferas de produo de se colocar em equilbrio atua apenas como

    reao contra a contnua eliminao desse equilbrio. A regra que se segue a priori

    e planejadamente na diviso do trabalho dentro da oficina atua na diviso do

    trabalho no interior da sociedade apenas a posteriori, como necessidade natural,

    interna, muda, perceptvel nas flutuaes baromtricas dos preos do mercado,

    subjugando o desregrado arbtrio dos produtores de mercadorias /.../ a diviso

    social do trabalho confronta produtores independentes de mercadorias, que no

    reconhecem nenhuma outra autoridade seno a da concorrncia, a coero

    exercida sobre eles pela presso de seus interesses recprocos, do mesmo modo

    que no reino animal o bellum omnium contra omnes preserva mais ou menos as

    condies de existncia de todas as espcies (Marx, 1985, p. 280).

    Outrossim, num pequeno texto em que condensa alguns aspectos centrais

    de suas pesquisas sobre a ontologia do ser social, e perseguindo criteriosamente

    as reflexes marxianas, Lukcs observa que todo evento social decorre de

    posies teleolgicas individuais mas, em si, de carter puramente causal

    (Lukcs, 1978, p. 10). E, mais frente, complementa:

    O processo global da sociedade um processo causal, que possui suas prprias

    normatividades, mas no jamais objetivamente dirigido para a realizao de

    finalidades. Mesmo quando alguns homens ou grupos de homens conseguem

    realizar suas finalidades, os resultados produzem, via de regra, algo que

    inteiramente diverso daquilo que se havia pretendido (Lukcs, 1978, pp. 10-1).

    Quanto aos processos revolucionrios, em primeiro lugar, importante

    entender que, por mais profundas, conscientes e abrangentes que as aes de

    indivduos, partidos etc. possam ser neste momento, elas no so capazes de

    eliminar o hiato existente entre o carter teleolgico dos atos individuais e a

    23

  • casualidade que marca a reproduo da sociedade como um todo. Isto acontece

    porque a revoluo social no consiste na consubstanciao plena e acabada da

    idia, mas no processo pelo qual os seres humanos, ou melhor, parcelas

    significativas de certas classes e/ou grupos sociais, aproveitam circunstncias

    sociais extremamente favorveis para, em atos conscientes, mas nunca

    controlveis nos moldes do processo de trabalho, dar vazo a tendncias

    objetivas do desenvolvimento histrico-social. Novamente, em Lukcs que

    encontramos um tratamento exemplar deste aspecto do pensamento marxiano.

    Em sua Ontologia do ser social, ele afirma:

    Sabemos que o movimento ontolgico objetivo no sentido de socialidades cada

    vez mais explicitadas no ser social composto por aes humanas; ainda que as

    decises humanas singulares entre alternativas no levem, no desenvolvimento da

    totalidade, aos resultados visados pelos indivduos, o resultado final desse

    conjunto no pode ser inteiramente independente desses atos singulares. Essa

    relao deve ser formulada, em sua generalidade, com muita cautela: e isso

    porque a relao dinmica entre os atos singulares fundados sobre alternativas e o

    movimento de conjunto se apresenta de modo bastante variado ao longo da

    histria, ou seja, diferente nas diversas formaes e, em particular, nas diversas

    etapas de desenvolvimento e de transio. claro que impossvel, neste local,

    tentar esboar um quadro, por mais breve que seja, das inmeras variaes que

    tal relao pode apresentar. Bastar dizer, por um lado, que nas situaes de

    transio revolucionria o peso das tomadas de deciso de grupos humanos (que

    so naturalmente snteses de decises individuais) objetivamente muito maior do

    que nos perodos em que uma formao se desenvolve de modo tranqilo e

    consolidado. E disso resulta que as decises singulares tm o seu peso

    aumentado. (Lukcs, 1979, p. 125)

    Em segundo lugar que, apesar das inequvocas diferenas entre os atos

    individuais e/ou coletivos do trabalho e a reproduo social total, no estranha

    ao pensamento marxiano a preocupao com a construo de formas societrias

    mais justas, fraternas e, ao mesmo tempo, menos assoberbadas pela instabilidade

    oriunda de fenmenos naturais ou sociais, especialmente aqueles de origem

    econmica. Na verdade, o estabelecimento de um certo controle do processo

    24

  • social de produo por parte dos produtores auto-organizados nunca esteve

    ausente das reflexes de Marx. Ao contrrio, so os representantes do capital que,

    historicamente, criticam as pretenses ampliao do controle sobre os

    processos econmicos, utilizando-se, para isso, dos dogmas liberais que vem

    uma supresso dos direitos e da liberdade individuais em todo e qualquer controle

    destes processos. Quanto a isto, o prprio Marx denunciou:

    A mesma conscincia burguesa, que festeja a diviso manufatureira do trabalho, a

    anexao do trabalhador por toda a vida a uma operao parcial e a subordinao

    incondicional dos trabalhadores parciais ao capital como uma organizao do

    trabalho que aumenta a fora produtiva, denuncia com igual alarido qualquer

    controle e regulao consciente do processo social de produo como uma

    infrao dos inviolveis direitos de propriedade, da liberdade e da genialidade

    autodeterminante do capitalista individual. muito caracterstico que os mais

    entusisticos apologistas do sistema fabril no saibam dizer nada pior contra toda

    organizao geral do trabalho social alm de que ela transformaria toda a

    sociedade numa fbrica. (Marx, 1985, p. 280)

    Se o horizonte intelectual a partir do qual a classe burguesa e seus

    idelogos enxergam o mundo no ultrapassa, como no poderia deixar de ser, os

    limites da reproduo do capital, obviamente toda e qualquer proposta de

    interveno socioeconmica que, de algum modo, impea a reproduo social tal

    qual ela existe sob a gide e a centralidade do capital significa, aos seus olhos,

    uma injustificada interferncia sobre tendncias inerentes natureza humana

    (lembremos que a naturalizao das relaes sociais um trao distintivo do

    pensamento burgus desde suas origens). Sendo os limites de sua reflexo os

    limites da reproduo do prprio capital, aquela interferncia s pode assumir,

    para ela (a classe burguesa), formas compatveis com aquelas existentes nesta

    ordem social por conseguinte, tudo o mais no passa de utopia.

    No sculo XX, esta concepo foi evidentemente reforada por inmeras

    experincias de planejamento que, a Leste e a Oeste, do socialismo real ao

    nazismo, apesar de sua multiplicidade de contedos e formas, caracterizaram-se 25

  • pelo carter autocrtico e pela manuteno da centralidade do capital nas

    relaes sociais e isto mesmo naqueles pases em que a prpria burguesia foi

    drasticamente expropriada e, com isso, numericamente reduzida ou praticamente

    desapareceu[21]. Igualmente mantida a centralidade do capital, tambm os pases

    capitalistas centrais (liberais e democrtico-burgueses) e suas experincias de

    regulao socioeconmica nas dcadas subseqentes ao ps-guerra no

    resultaram em sociedades humanamente exemplares, apesar de sua drstica

    reduo da pobreza e do desemprego. Para Arendt, a ineficcia destas

    experincias em constituir sociedades capazes de permitir o desabrochar pleno da

    humanidade do homem se assentou, principalmente, no fato de o trabalho e sua

    lgica produtivista continuarem a ocupar o centro do cenrio social, tornando a

    ao e a poltica meras coadjuvantes e, assim, ofuscando a esfera pblica com

    seu brilho duvidoso. Por isso, para ela, qualquer tentativa de controle social

    passou a se apresentar como uma aberrao societria, e as proposies

    marxianas sobre o planejamento econmico assumiram o pavoroso status de

    regulao social global, de controle dos processos histrico-sociais nos mesmos

    moldes do processo de trabalho. E, como corolrio desta avaliao, que a

    consolidao deste estado de coisas significaria, apocalipticamente, a prpria

    redeno universal.

    O fato, porm, que tal leitura no corresponde ao esprito e, muito menos,

    ao prprio corpo (o texto) da obra marxiana. NA ideologia alem, refutando as

    acusaes de utopismo endereadas ao movimento comunista, Marx e Engels

    salientaram que o comunismo no /.../ um estado que deve ser estabelecido,

    um ideal para o qual a realidade ter que se dirigir. Denominamos comunismo o

    movimento real que supera o estado de coisas atual (Marx; Engels, 1987a, p. 52).

    O comunismo no algo que, oriundo dos desejos e da vontade, torna-se

    realidade, mas a resoluo positiva das tendncias do desenvolvimento histrico,

    do prprio movimento do real. Outrossim, longe de assumir a pretenso hegeliana

    de ser o fim da histria, a encarnao societria ltima da vida humana, o

    comunismo a forma necessria e o princpio do futuro imediato, mas o

    26

  • comunismo no constitui em si mesmo o objetivo da evoluo humana a forma da sociedade humana (Marx, 1989, p. 205, os grifos em negrito so

    nossos). Superar o capital, o Estado e as restries que ambos impem ao

    desenvolvimento humano so as finalidades de uma revoluo (e de uma

    sociedade) comunista, fato que no implica, no entanto, adentrar no paraso (o

    comunismo como forma societria ltima e redentora da humanidade) ou, pior, no

    fim da histria[22].

    Por fim, retornando questo da violncia e, no contexto do pensamento

    marxiano, ao seu significado num processo revolucionrio, emancipatrio isto ,

    capaz de implementar a construo de condies superiores de liberdade e

    desenvolvimento humanos , atentemos para o fato de que, em Marx, a afirmao

    ou a negao da violncia no se baseiam no puro arbtrio ou, no primeiro caso,

    numa concepo anti-humanista acerca dos fundamentos da emancipao[23],

    mas anlise concreta do real e no discernimento das caractersticas que podem ou

    no favorecer a eliminao/amenizao das desumanidades da vida humana.

    Para Marx, a prpria existncia da poltica j uma evidncia das contradies

    que atravessam as sociedades nas quais ela se faz presente. Assim,

    contrariamente a Arendt, que visualiza na poltica uma esfera de explicitao das

    caractersticas propriamente humanas, ele a considera uma das expresses da

    limitao desta; no , portanto, uma das ou a principal atividade sob a qual os

    homens podem manifestar-se plenamente, mas, justamente, uma clara

    manifestao da incapacidade destes ainda no se manifestarem como tal.

    Em sua radicalidade, o pensamento marxiano em nada se assemelha aos

    extremismos e fundamentalismos contemporneos, pois, longe de pregar a

    violncia em geral, abstrata, como meio exclusivo de viabilizar a emancipao,

    Marx apenas demonstra como as relaes socioeconmicas e polticas do

    capitalismo, marcadas pelo radical antagonismo de posies e de interesses entre

    a burguesia e o proletariado, no apenas impedem como, de fato, sob pena de os

    revolucionrios naufragarem em seus propsitos, exigem tambm o uso da fora

    27

  • material o que no significa, de maneira alguma, o desmerecimento e a

    utilizao puramente ocasional e acessria do uso da fora das idias e de

    recursos persuasivos. Num ilustrativo trecho de seu realismo intelectual, o

    revolucionrio alemo afirma, de modo enftico:

    certo que a arma da crtica no pode substituir a crtica das armas, que o poder

    material tem que ser derrocado por meio do poder material, mas tambm a teoria

    se converte em poder material to logo se apodera das massas. E a teoria capaz

    de se apoderar das massas quando argumenta e demonstra ad hominem, e

    argumenta e demonstra ad hominem quando se torna radical. Ser radical atacar

    o problema pela raiz. Mas a raiz, para o homem, o prprio homem (Marx, 1987, p.

    497).

    Por certo, negando a violncia e afirmando meios propriamente humanos

    (palavra, discurso, convencimento, concrdia) para a superao das diferenas, o

    discurso no-revolucionrio, no-violento, humanista, parece, primeira vista,

    muito mais elevado, nobre, do que aquele (estigmatizado como anti-humanista)

    que afirma a violncia (um meio desumano) como uma ao necessria no

    encaminhamento da resoluo dos profundos conflitos que atravessam as

    sociedades de classes. Neste caso, ao contrrio do discurso, a violncia parece

    ser a negao dos prprios fins almejados. Porm, h que perguntar: como um

    discurso e uma prtica verdadeiramente humanos, voltados superao dos

    constrangimentos impostos ao desenvolvimento multifacetado das

    individualidades e da coletividade dos homens e, portanto, dotados de finalidades

    ticas tendentes universalizao, podem afirmar-se num mundo desumano,

    mundo no qual os indivduos, mediados pelas classes sociais, opem-se em

    campos de interesses essencialmente inconciliveis? Como se pode afirmar

    plenamente uma ao que possua como fundamento o homem como sujeito de

    sua histria se, nas condies atuais, este ainda luta arduamente para abandonar

    sua condio de predicado, no tanto da natureza, mas das foras que ele prprio

    colocou (e cotidianamente coloca) em movimento? Como esperar pelo improvvel

    convencimento do outro (antagnico em termos socioeconmicos, polticos e

    28

  • culturais) pelo discurso se os urgentes problemas a serem enfrentados dizem

    respeito, pura e simplesmente, a questes vitais dos indivduos das classes

    subalternas e, em certos casos, prpria sobrevivncia da espcie humana?[24]

    Nestas circunstncias, a negao da violncia como um dos meios (jamais o nico)

    de superar problemas vitais da nossa existncia coletiva no atuaria, ao contrrio

    das intenes postuladas, como impossibilidade de resoluo destes e, portanto,

    no se consubstanciaria em resultados ainda mais desumanos, podendo inclusive,

    atualmente, culminar na prpria eliminao da espcie?

    No atual estgio do desenvolvimento humano, por mais que as cincias

    naturais e a tecnologia nos impressionem com suas faanhas, demonstrando o

    crescente senhorio dos homens em relao natureza, as relaes sociais ainda

    escapam clamorosamente ao nosso controle. Sob a forma do capital, este objeto-

    sujeito que nucleia as relaes sociais das mais diversas sociedades do mundo

    contemporneo, a dinmica da reproduo social vive sombra da

    incontrolabilidade (Mszros, 2002). E se no apenas pelas produes

    materiais que mensuramos o desenvolvimento da nossa espcie, no podemos

    afirmar que os seres humanos j adquiriram o status de plenos sujeitos de seus

    processos metablicos, pois, apesar destes no serem produes de objetos

    inertes, mas dos prprios homens, tais processos subordinam-se aos imperativos

    da incontrolvel expanso do capital, e no satisfao das necessidades

    humanas. Por conseguinte, nas sociedades contemporneas, nas quais o capital

    o sujeito, os homens atuam apenas como predicados daquele burgueses,

    trabalhadores etc. , isto , como suas mscaras sociais (Marx, 1985).

    Nos Grundrisse, Marx reflete sobre como a relao entre os homens e suas

    produes permite mensurar o nvel de desenvolvimento humano. Numa

    penetrante passagem sobre o tema, lemos:

    O nexo [social, isto , aquilo que vincula os indivduos mutuamente] um produto

    dos indivduos. um produto histrico. Pertence a uma determinada fase de

    29

  • desenvolvimento da individualidade. A alienao e a autonomia com que esse

    nexo [no caso atual, o valor de troca, o dinheiro] existe frente aos indivduos

    demonstra somente que estes ainda esto em vias de criar as condies de sua

    vida social em lugar de inici-la a partir dessas condies. O nexo criado

    naturalmente entre os indivduos colocados em condies de produo

    determinadas e estreitas. Os indivduos universalmente desenvolvidos, cujas

    relaes sociais enquanto relaes prprias e coletivas esto j submetidas a seu

    prprio controle coletivo, no so um produto da natureza, mas da histria (Marx,

    1973, pp. 89-90).

    Nas sociedades capitalistas e ps-capitalistas, os processos metablicos

    sociais no foram submetidas ao controle coletivo. Ao contrrio, assentados sob a

    centralidade do capital, os indivduos e a coletividade encontram-se submetidos

    aos imperativos deste; por isso, de certo modo, ainda somos produto da natureza,

    e no da histria. Nessa condio, no apenas os produtos do trabalho ganham

    vida, adquirindo poderes sobre os prprios produtores e, com isso, exigindo a

    interveno universal de uma potncia autnoma e sedutora, o dinheiro (o

    equivalente geral das mercadorias), mas, extravasando o aspecto estritamente

    econmico, sob as mais diversas formas e nos mais diversos aspectos da vida

    social, as relaes entre as classes e entre os indivduos necessitam da

    permanente interveno de uma fora externa, mediadora e legitimadora de suas

    relaes recprocas: o Estado. Assim, os antagonismos, insuperveis no mbito

    da sociedade civil, assumem a forma abstrata de normas jurdico-polticas

    universais; normas que nada mais so do que a expresso alienada e fetichizada

    das prprias relaes sociais. Sob estas relaes alienadas e alienantes, os

    homens ainda no se colocam como sujeitos propriamente ditos de sua histria,

    mas, tal como o aprendiz de feiticeiro, como objetos de suas prprias magias, das

    foras que colocaram em movimento e sobre as quais perderam (ou no

    adquiriram) o controle; agem, portanto, como homens desumanos, ou ao menos

    homens que no humanizaram plenamente os fundamentos de sua existncia.

    O entendimento disto pressuposto fundamental para que tambm se

    compreenda que, no caso dos processos revolucionrios comunistas, a violncia 30

  • neles contida isto , a violncia revolucionria no atenta contra a afirmao

    do homem enquanto tal, mas constitui um dos meios necessrios reapropriao

    pela sociedade civil daqueles poderes que, em algum momento do decurso

    histrico, foram alienados no Estado e, nesta condio, voltam-se, inclusive

    violentamente, contra a maioria daqueles que coexistem sob a dominao deste

    (Marx, 1987b). Isto porque, longe de ser a expresso da vontade, do consenso

    resultante do discurso, o poder poltico o resumo oficial do antagonismo na

    sociedade civil (Marx, 1989b, p. 160). Como o Estado no pode suprimir os

    antagonismos sob os quais se assenta (Marx, 1987b, p. 513), estes acabam por

    ser velados sob uma forma aparentemente universal e destacada dos interesses

    das classes dominantes, o prprio Estado e seus dispositivos jurdico-polticos.

    Por isso, a to apregoada igualdade que caracteriza os homens na vida poltica

    no , de forma alguma, a expresso da supresso de suas desigualdades

    reais[25], mas a confirmao destas sob a forma da igualdade poltica, isto , a

    estreita igualdade sob o estreito ponto de vista poltico.

    Neste caso, a igualdade poltica emancipa a sociedade como um todo da

    ciso entre cidados e no-cidados e, com isso, suprime todos os meios

    jurdico-polticos que mantinham os privilgios para corpus especficos da

    sociedade , para, ao seu modo, instituir uma nova e mais profunda ciso, aquela

    que transforma a todos os indivduos das sociedades modernas em membros de

    duas esferas distintas e, sob certos aspectos, antagnicas, ainda que

    complementares: a vida privada e a vida pblica; ser social genrico e indivduo

    concreto.

    O Estado poltico acabado , pela prpria essncia, a vida genrica do homem em

    oposio sua vida material. Todas as premissas desta vida egosta permanecem

    de p margem da esfera estatal, na sociedade civil, porm, como qualidade

    desta. Onde o Estado poltico j atingiu seu verdadeiro desenvolvimento, o homem

    leva, no s no plano do pensamento, da conscincia, mas tambm no plano da

    realidade, da vida, uma dupla vida: uma celestial e outra terrena, a vida na

    comunidade poltica, na qual ele se considera um ser coletivo, e a vida na

    31

  • sociedade civil, em que atua como particular; considera outros homens como

    meios, degrada-se a si prprio como meio e converte-se em joguete de poderes

    estranhos /.../ O homem, em sua realidade imediata, na sociedade civil, um ser

    profano. Aqui, onde passa ante si mesmo e frente aos outros por um indivduo real,

    uma manifestao carente de verdade. Pelo contrrio, no Estado, onde o homem

    considerado como um ser genrico, ele o membro imaginrio de uma

    soberania imaginria, acha-se despojado de sua vida individual real e dotado de

    uma generalidade irreal (Marx, 1991, pp. 26-7).

    Para recompor a unidade dos seres humanos, para que estes ajam real e

    imediatamente como seres unitrios isto , no como cidados ou indivduos

    privados (burgueses, trabalhadores), mas como homens , no basta uma

    revoluo que os emancipe da violncia contida na poltica, liberando esta res

    publica decada de todo trao de coero, mas uma na qual a prpria poltica seja

    eliminada[26]. necessria, portanto, uma ao poltica que os emancipe da

    prpria poltica, visto que a mera existncia desta pressupe a usurpao, a

    violncia. Pois, se est fora de dvida que a plena emancipao poltica,

    consubstanciada nos modernos Estados democrtico-burgueses, permite que a

    ao poltica de dominao seja muito mais sutil e consentida do que sob a

    vigncia de restries expresso individual, no se pode afirmar de forma

    alguma que ela nega que o poder poltico seja inerentemente violento.

    Ainda sobre o tema, importa observar que a violncia no constitui a

    essncia do poder poltico porque, em si e por si, este a origina, mas porque o

    prprio poder poltico ratifica uma violncia original, gentica, perante a qual a sua

    violncia atua apenas como serva, a saber, a violncia contida na relao entre

    dominantes e dominados, entre exploradores e explorados. Sendo a dominao

    de uns homens sobre outros em si mesma violenta, os meios institucionais que a

    perpetuam tambm no podem deixar de s-lo, pois aquilo que perpetua a

    violncia sempre, de algum modo, violncia. E se a afirmao de Arendt,

    segundo a qual aquilo que necessita de justificao por outra coisa no pode ser

    a essncia de nada (Arendt, 1994, p. 41), possui algum significado, este somente

    32

  • pode ser o de que, sendo a manifestao oficial de antagonismos que o

    antecedem e o fundamentam, o poder poltico no constitui essencialmente as

    relaes sociais, mas sim uma esfera secundria de atividades, passvel de

    supresso e, portanto, descartvel no curso do desenvolvimento humano.

    improcedente, portanto, afirmar que, como poder poltico, o poder

    dispensa a violncia; sendo poder de uns homens sobre outros, ele somente se

    faz respeitar, mesmo que em ltima instncia, por possuir mecanismos de

    violncia, meios de coero. Nas palavras de Marx e Engels, O poder poltico o

    poder organizado de uma classe para a opresso de outra (1998, p. 59). Numa

    revoluo comunista, os meios violentos, ao invs de negar suas finalidades,

    viabilizam-na, pois esto em consonncia com o nvel de desenvolvimento

    humano alcanado e em condies de superar positivamente contradies to

    profundamente enraizadas; contradies diante das quais a esperana de uma

    resoluo discursiva, puramente dialogada, apresenta-se, esta sim, como

    desumanidade, visto que claramente irresolutiva e perpetuadora do status quo.

    Para os fundadores da filosofia da prxis, a organizao do proletariado

    como classe dominante, a centralizao dos instrumentos de produo nas mos

    do Estado e, com isso, o rpido desenvolvimento das foras produtivas s

    podero resultar, a princpio, por intervenes despticas no direito de

    propriedade e nas relaes de produo burguesas (Marx; Engels, 1998, p. 58).

    Isto no deve ocorrer para que o proletariado instaure novas relaes de

    dominao de classe e, para mant-las, perpetue o poder poltico, mas, ao

    contrrio,

    Se o proletariado, em sua luta contra a burguesia, se organiza forosamente como

    classe, se por meio de uma revoluo se converte em classe dominante e como

    classe dominante destri, juntamente com essas relaes de produo, as

    condies de existncia dos antagonismos entre as classes, destri as classes em

    geral e, com isso, sua prpria dominao como classe (Marx; Engels, 1998, p. 59).

    33

  • Por conseguinte, a declamada alma social da revoluo poltica (Marx,

    1987b) , de fato, nas revolues comunistas, a substncia que faz da ao

    poltica uma luta contra a prpria poltica e, desse modo, contra toda e qualquer

    forma de alienao estatal. As tentativas em contrrio, como, sob as mais variadas

    formas, vimos tantas vezes acontecer ao longo do sculo XX, s podem resultar

    em novos e perigosos fracassos. Estes, talvez, imperdoveis e incontornveis.

    Quanto a isso, importante relembrar que

    O intelecto poltico poltico exatamente na medida em que pensa dentro dos

    limites da poltica. Quanto mais agudo ele , quanto mais vivo, tanto menos

    capaz de compreender os males sociais /.../. O princpio da poltica a vontade.

    Quanto mais unilateral, isto , quanto mais perfeito o intelecto poltico, tanto mais

    ele cr na onipotncia da vontade e tanto mais cego frente aos limites naturais e

    espirituais da vontade e, conseqentemente, tanto mais incapaz de descobrir a

    fonte dos males sociais (Marx, 1987b, p. 514).

    Para finalizar, vejamos como, numa precisa abordagem da relao poltica-

    violncia, Ruy Fausto argumenta que postular uma prtica humana (no

    violncia etc.) num universo inumano (o do capitalismo e em geral de todo o pr-

    socialismo) implica aceitar se tornar cmplice d este universo inumano

    (Fausto, 1983, p. 32). Para ele, a contraposio entre humanismo e anti-

    humanismo s pode levar irresoluo do problema, pois tanto a postulao

    humanista de uma prtica plenamente humana num universo desumano quanto a

    rejeio anti-humanista de toda referncia ao homem (tanto no nvel dos meios

    quanto dos fins) impedem, cada qual a seu modo, a superao do atual estado de

    coisas(Fausto, 1983, p. 32). Em suas prprias palavras:

    A poltica marxista no deve ser definida nem como um humanismo, nem como um

    anti-humanismo: ela deve ser definida e pensada em termos de supresso

    (Aufhebung), de negao (no sentido dialtico) do humanismo /.../. Assim,

    negamos o homem (a no violncia etc.) para que ele no negue a si prprio. (Se

    no fosse esse o caso, no o negaramos.) Assumimos a negao (dialtica), para

    no sofrer a negao (vulgar). E na medida em que a negao dialtica contm a

    34

  • contradio com efeito, se negamos o homem o conservamos ao mesmo tempo

    (ou se se quiser, a violncia de que partimos aqui no a violncia do anti-

    humanismo que expulsa a no violncia, mas a violncia-que-suprime-a-no-

    violncia: que portanto afetada de no violncia) poderamos dizer que

    assumimos a contradio para no nos contradizer (Fausto, 1983, p. 33).

    Assim, ao contrrio de Hannah Arendt, para quem o humanismo de Marx,

    caracterizado pela qualificao do homem como sujeito histrico, senhor do seu

    prprio destino, transfigura-se em seu oposto (anti-humanismo) devido aos meios

    empregados em sua senhoridade, temos aqui a afirmao da coerncia da relao

    entre meios e fins no pensamento poltico marxiano. Neste, afirma-se que, em vez

    de serem negados pela ao violenta, a plena realizao dos princpios do

    humanismo tambm se faz, nesse caso (o das sociedades capitalistas e ps-

    capitalistas), por meio dela. Meios e fins encontram-se, assim, numa relao

    dialtica, a qual incorpora e supera a oposio lgico-formal que, a princpio, os

    torna incompatveis[27].

    IV. guisa de concluso

    Uma obra extensa e complexa como a de Arendt e, claro, como a de

    Marx exige uma investigao longa, exaustiva e criteriosa, portanto, algo ainda

    distante das pretenses que nos levaram a escrever este texto. Lendo as obras de

    Hannah Arendt, no difcil verificar quo controversas so afirmaes acerca do

    pensamento de Marx ali contidas (do mesmo modo que tambm o so aquelas

    que no dialogam ao menos explicitamente com o marxismo). Aqui, por meio

    da anlise de algumas dessas controversas e crticas afirmaes, especialmente

    sobre o papel da violncia nos processos revolucionrios, objetivamos contribuir

    de maneira criteriosa para a referida investigao desentranhando alguns

    aspectos criticados do pensamento de Marx do invlucro ideolgico no qual foram

    envolvidos pela leitura arendtiana.

    35

  • Se, primeira vista, as motivaes e os objetivos desta reflexo parecem

    ser puramente acadmicos, uma observao mais atenta concluir que, sem

    dvida, ela se relaciona com o curso dos movimentos emancipatrios do trabalho.

    Por um lado, porque, aps dcadas de experincias social-democratas e

    estalinistas (e suas variantes, maostas, guevaristas etc.) frustradas e do

    solapamento de suas bases estruturais pela reestruturao produtiva e pelo

    neoliberalismo, tais movimentos ainda no se reorganizaram em conformidade

    com as novas exigncias histrico-sociais e, do mesmo modo, ainda no se

    reencontraram com a nica corrente terica que pode fornecer os fundamentos

    intelectuais adequados para a orientao de suas aes: o marxismo. Por outro,

    porque as crticas de Arendt, alm de contriburem para obliterar o pensamento

    marxiano, inauguraram a vertente de crticas categoria trabalho tal qual

    formulada pelo pensador alemo. Sob este aspecto, suas idias encontraram eco

    em dois dos mais influentes crticos de Marx na atualidade, Jrgen Habermas e

    Andr Gorz. Apenas estes ilustres discpulos constituem motivos suficientes para

    o pensamento de Arendt ser objeto de muitos estudos por acadmicos e

    revolucionrios.

    Por fim, se, como diz o historiador ingls Eric Hobsbawm, o breve sculo

    XX foi uma era dos extremos, nele assistimos aos movimentos do trabalho

    caminharem das esperanas despertadas pelo assalto aos cus efetuado pelos

    revolucionrios russos ao vertiginoso declnio da Unio Sovitica. Neste imenso

    imbrglio prtico e terico, o pensamento de Marx tanto foi criticado, lido sob

    mltiplos ngulos, abandonado e, inclusive, declarado morto incontveis vezes;

    no obstante isto, seus elementos centrais tm resistido e, mais do que nunca,

    demonstrado vitalidade analtica e revolucionria[28]. Assim, uma investigao

    sistemtica da obra de Arendt importante no apenas para demonstrar suas

    prprias fragilidades intrnsecas, mas, principalmente, para implodir os

    argumentos de suas equivocadas crticas a Marx, visto que entender o verdadeiro

    sentido (a letra e o esprito) da obra marxiana crucial para que as prximas

    ondas revolucionrias no sejam apenas hericos assaltos aos cus, mas uma

    36

  • verdadeira conquista de novas terras e ares sociais. E se, de algum modo, o texto

    que aqui finda suscitou no leitor o interesse por estas questes, ele, certamente, j

    cumpriu a funo para a qual foi produzido.

    V. REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS:

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    37

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    ______ Para alm do capital. So Paulo, Boitempo, 2002.

    Notas:

    38

  • * Professor de sociologia no curso de pedagogia da Universidade Camilo Castelo

    Branco (Unicastelo) e em diversos cursos da Faculdade Diadema (FAD). [1] Dimenso prtica da existncia, oposta, no discurso arendtiano, sua dimenso

    terica, a vita contemplativa. [2] Os ideais do Homo faber, o fabricante do mundo, que so a permanncia, a

    estabilidade e a durabilidade, foram sacrificados em benefcio da abundncia, o

    ideal do Animal laborans. Ns vivemos numa sociedade de trabalhadores porque

    somente o trabalho, com sua inerente fertilidade, capaz de produzir a

    abundncia. (Arendt, 1998, p. 126) [3] O problema que, como vimos, com a civilizao industrial /.../, os artesos,

    que tinham a dimenso do Homo faber, converteram-se em Animal laborans, e

    isto veio a dificultar, com o peso da necessidade, a terceira experincia bsica [a

    ao] (Lafer, 1979, p. 30). [4] A vida humana, na medida em que a criadora do mundo, est engajada num

    constante processo de reificao; e o grau de mundaneidade das coisas

    produzidas, cuja soma total constitui o artifcio humano, depende de sua maior ou

    menor permanncia neste mundo (Arendt, 1998, p. 96). [5] Na terminologia da autora, objetos de uso, em oposio aos objetos de

    consumo, produzidos pelo trabalho. 7] O exaspero ante a tripla frustrao da ao a imprevisibilidade dos resultados,

    a irreversibilidade do processo e o anonimato de seus autores quase to

    antigo quanto a histria escrita (Arendt, 1998, p. 220). [8] A ao logo passou a ser, e ainda , quase exclusivamente entendida em

    termos de fazer e fabricar, exceto que o fazer, por causa de sua mundaneidade e

    inerente indiferena vida, era agora visto como apenas outra forma de trabalho,

    como funo mais complicada mas no mais misteriosa do processo vital (Arendt,

    1998, p. 322). [9] De modo mais especfico, Arendt questiona a observao de Marx e Engels

    segundo a qual, para uma anlise adequada de uma sociedade, no se parte

    daquilo que os homens dizem, imaginam ou representam, e tampouco dos

    homens pensados e imaginados para, a partir da, chegar aos homens de carne e

    39

  • osso; parte-se dos homens realmente ativos e, a partir de seu processo de vida

    real, expe-se tambm o desenvolvimento dos reflexos ideolgicos e dos ecos

    desse processo de vida (Marx; Engels, 1986, p. 37). [10] No se pode fazer uma mesa sem matar uma rvore (Arendt, 2002, p. 62). [11] Pois, como vimos, a ao a atividade que, no mbito de sua reflexo,

    corresponde condio da pluralidade, da racionalidade e da liberdade

    efetivamente humanas, e no violncia e necessidade. [12] Segundo Arendt, Marx almeja um mundo sem trabalho, um mundo no qual a

    produtividade do trabalho tornar-se- to grande que o trabalho, de alguma forma,

    abolir a si mesmo (Arendt, 1972, p. 45). Porm, no isto que afirma o prprio

    Marx. Em O capital ele nos diz que o trabalho atividade orientada a um fim para

    produzir valores de uso, apropriao do natural para satisfazer a determinadas

    necessidades humanas, condio universal do metabolismo entre o homem e a

    Natureza, condio natural eterna da vida humana e, portanto, independente de

    qualquer forma dessa vida, sendo antes igualmente comum a todas as suas

    formas sociais (Marx, 1985, p. 153). [13] No mais abrangente e sistemtico estudo sobre o papel do trabalho na

    constituio do ser social, intitulado A ontologia do ser social, estudo que, a nosso

    ver, vai ao encontro do esprito das formulaes marxianas, o marxista hngaro

    Georg Lukcs considera o trabalho a protoforma da prxis social (Lukcs, 1979). [14] O animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital. No se

    distingue dela. a sua prpria atividade (Marx, 1989, p. 164). [15] /.../ o objeto do trabalho a objetiv