aportes teóricos da psicologia histórico-cultural para a

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ATOS DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO - PPGE/ME ISSN 1809-0354 v. 9, n. 1, p. 106-126, jan./abr. 2014 DOI http://dx.doi.org/10.7867/1809-0354.2014v9n1p106-126 APORTES TEÓRICOS DA PSICOLOGIA HISTÓRICO-CULTURAL PARA A EDUCAÇÃO ESCOLAR DE ADOLESCENTES 1 CONTRIBUTIONS OF PSYCHOLOGY HISTORICAL-CULTURAL FOR EDUCATION OF TEENAGERS ANJOS, Ricardo Eleutério dos [email protected] UNESP – Araraquara RESUMO O presente artigo apresenta a concepção de adolescência a partir dos pressupostos da psicologia histórico-cultural, bem como sua contribuição à educação escolar nesta fase do desenvolvimento humano. Considerando-se que, para Vigotski, a adolescência é um momento privilegiado tanto pelo desenvolvimento do pensamento por conceitos, como pela formação da concepção de mundo e desenvolvimento da autoconsciência, a hipótese deste trabalho é a de que a educação escolar pode contribuir decisivamente, por meio do ensino do conhecimento sistematizado, para o desenvolvimento psicológico dos adolescentes, no sentido da superação dos limites dos conceitos cotidianos. Para tanto, este artigo apresentará a premente necessidade da superação das concepções naturalizantes evidenciadas pelas correntes liberais em psicologia. Essas concepções de adolescência contrastam com o ponto fulcral no qual Vigotski e colaboradores concentraram suas pesquisas, a saber, a formação dos conceitos como um salto qualitativo no desenvolvimento psicológico nesta fase por eles chamada “idade de transição”. PALAVRAS-CHAVE: Adolescência. Pensamento conceitual. Psicologia histórico- cultural. Educação escolar. ABSTRACT This article aims to present the conception of adolescence from the assumptions of cultural-historical psychology as well as their contribution to school education at this stage of human development. Considering that, for Vygotsky, adolescence is a privileged moment in both the development of thinking by concepts such as the formation of the world conception and development of self- consciousness, the working hypothesis is that school education can decisively contribute, by through the teaching of systematic knowledge for the psychological development of adolescents in order to overcome the limits of everyday concepts. Therefore, this paper will present the urgent need to overcome the naturalizing 1 Este artigo é parte integrante da pesquisa de mestrado do autor e contou com o apoio financeiro da CAPES.

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Aportes teóricos para educação escolar de adolescentes II

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  • ATOS DE PESQUISA EM EDUCAO - PPGE/ME ISSN 1809-0354 v. 9, n. 1, p. 106-126, jan./abr. 2014 DOI http://dx.doi.org/10.7867/1809-0354.2014v9n1p106-126

    APORTES TERICOS DA PSICOLOGIA HISTRICO-CULTURAL PARA A

    EDUCAO ESCOLAR DE ADOLESCENTES1

    CONTRIBUTIONS OF PSYCHOLOGY HISTORICAL-CULTURAL FOR

    EDUCATION OF TEENAGERS

    ANJOS, Ricardo Eleutrio dos

    [email protected]

    UNESP Araraquara

    RESUMO O presente artigo apresenta a concepo de adolescncia a partir dos pressupostos da psicologia histrico-cultural, bem como sua contribuio educao escolar nesta fase do desenvolvimento humano. Considerando-se que, para Vigotski, a adolescncia um momento privilegiado tanto pelo desenvolvimento do pensamento por conceitos, como pela formao da concepo de mundo e desenvolvimento da autoconscincia, a hiptese deste trabalho a de que a educao escolar pode contribuir decisivamente, por meio do ensino do conhecimento sistematizado, para o desenvolvimento psicolgico dos adolescentes, no sentido da superao dos limites dos conceitos cotidianos. Para tanto, este artigo apresentar a premente necessidade da superao das concepes naturalizantes evidenciadas pelas correntes liberais em psicologia. Essas concepes de adolescncia contrastam com o ponto fulcral no qual Vigotski e colaboradores concentraram suas pesquisas, a saber, a formao dos conceitos como um salto qualitativo no desenvolvimento psicolgico nesta fase por eles chamada idade de transio. PALAVRAS-CHAVE: Adolescncia. Pensamento conceitual. Psicologia histrico-

    cultural. Educao escolar. ABSTRACT This article aims to present the conception of adolescence from the assumptions of cultural-historical psychology as well as their contribution to school education at this stage of human development. Considering that, for Vygotsky, adolescence is a privileged moment in both the development of thinking by concepts such as the formation of the world conception and development of self-consciousness, the working hypothesis is that school education can decisively contribute, by through the teaching of systematic knowledge for the psychological development of adolescents in order to overcome the limits of everyday concepts. Therefore, this paper will present the urgent need to overcome the naturalizing

    1 Este artigo parte integrante da pesquisa de mestrado do autor e contou com o apoio financeiro da

    CAPES.

  • ATOS DE PESQUISA EM EDUCAO - PPGE/ME ISSN 1809-0354 v. 9, n. 1, p. 106-126, jan./abr. 2014 DOI http://dx.doi.org/10.7867/1809-0354.2014v9n1p106-126 107

    conceptions evidenced by the liberal trends in psychology. These conceptions of adolescence contrast with the focal point in which Vygotsky and colleagues focused their research, namely the formation of concepts as a quantum leap in psychological development at this stage they call "age of transition." KEYWORDS: Adolescence. Conceptual thinking. Cultural-historical psychology. School education.

    INTRODUO

    Os conhecimentos hegemnicos em psicologia do adolescente, bem como

    sua contribuio educao escolar dessa fase do desenvolvimento humano, esto

    embasados em concepes biolgicas, naturalizantes, abstratas e patologizantes.

    Estes pressupostos sobre a adolescncia contrastam com o ponto fulcral no qual

    Vigotski2 e colaboradores concentraram suas pesquisas, a saber, a formao dos

    conceitos como um salto qualitativo no desenvolvimento psicolgico nesta fase, por

    eles chamada idade de transio.

    No campo psicolgico, Stanley Hall (1844-1924) foi um dos precursores na

    pesquisa sobre adolescncia. Este pesquisador denomina este perodo que, para

    ele compreende dos 12 aos 24 anos, de segundo nascimento, por se tratar do

    perodo em que se manifestam os traos mais desenvolvidos essencialmente

    humanos. Hall defendia a ideia de que a ontognese repete a filognese e, no caso

    da adolescncia, tal fase representaria o perodo em que a espcie humana

    encontrava-se em transio e turbulncia. Isto explicaria as tenses e sofrimentos

    psicolgicos que caracterizam os adolescentes. Segundo Griffa e Moreno (2010) e

    tambm Palacios e Oliva (2004), Hall teria afirmado, em sua obra Adolescence, de

    1904, que a adolescncia corresponde ao momento da evoluo da espcie humana

    que representa a passagem da selvageria ao mundo civilizado.

    Este trabalho no tem como objetivo detalhar as concepes naturalizantes

    sobre a adolescncia, pois esta temtica foi analisada por Bock (2004), Mascagna

    (2009), Ozella (2003), entre outros. No entanto, indica-se um claro exemplo que

    legitima a assero acima, ou seja, a de que a psicologia naturalizou e patologizou a

    2 O nome Vigotski encontrado na literatura de vrias formas, tais como Vygotsky, Vygotski,

    Vigotskii. A grafia Vigotski ser padronizada neste artigo, porm, quando se tratar de referncia a uma obra especfica, ser utilizada a forma que fora registrada no original.

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    adolescncia. Trata-se da teoria da Sndrome da Adolescncia Normal de Knobel,

    que defende a naturalizao do desenvolvimento humano ao considerar as

    caractersticas encontradas em adolescentes como um fator normal e inerente a

    esta fase de desenvolvimento.

    Knobel (1992) afirma que os comportamentos dos adolescentes so

    semipatolgicos, entre eles esto: a tendncia grupal; a necessidade de

    intelectualizar e fantasiar; crises religiosas; desestruturao temporal; a evoluo

    sexual desde o autoerotismo at a heterossexualidade; atitude social reivindicatria;

    contradies sucessivas em todas as manifestaes; separao progressiva dos

    pais; constante flutuao do humor e do estado de nimo. Para este autor, a no

    manifestao destes comportamentos semipatolgicos que sinalizaria um

    fenmeno anormal no adolescente.

    A psicologia tradicional, desta forma, considera a adolescncia como uma

    fase natural do desenvolvimento, fase esta, repleta de problemas e conflitos

    inerentes ao ser humano. Com isso, desconsiderou todo o processo histrico e

    social que constitui a adolescncia. O aspecto social considerado apenas um meio

    que impede ou auxilia o desenvolvimento de algo que intrnseco natureza

    humana. Infelizmente no perdeu sua atualidade a constatao feita por Vigotski,

    nos anos de 1930, de que a psicologia considera a adolescncia como uma fase

    caracterizada por tormentos, problemas emocionais e conturbaes vinculadas

    sexualidade. Entre todas as mudanas que ocorre na infncia adolescncia,

    Vigotski (1996) identificou que as teorias psicolgicas de sua poca destacavam

    apenas o ponto mais superficial e visvel, qual seja: a mudana do estado

    emocional.

    Esta ideia reforada e legitimada pela psicanlise e, consequentemente,

    esta concepo ficou impregnada na definio dos adolescentes por livros, teorias,

    a mdia, profissionais das reas das Cincias Humanas, e incorporada pela

    populao e pelos prprios adolescentes (OZELLA, 2003, p. 19).

    Observa-se em tempos hodiernos, como tambm no passado, que as

    mudanas ocorridas na adolescncia so explicadas de forma metafsica e

    subjetivista. Freud, por exemplo, dizia que na adolescncia o indivduo

    experimentava um retorno ao Complexo de dipo e que deveria super-lo por meio

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    do afastamento de seus pais, a fim de escolher um objeto sexual socialmente aceito

    (PALACIOS; OLIVA, 2004).

    Por outro lado, observa-se tambm que a adolescncia explicada apenas

    por uma concepo biologizante. Esta unilateralidade biolgica, que considera a

    adolescncia uma fase de perturbaes vinculadas sexualidade, influenciada

    pelos estudos das mudanas corporais ocorrentes na puberdade. Porm, a

    puberdade, de acordo com Palacios e Oliva (2004), apenas um dos lados da

    moeda que explica a adolescncia, pois se trata do conjunto de mudanas fsicas

    que transformam o corpo infantil em um corpo adulto capacitado para a reproduo

    biolgica da espcie.

    Nesta fase, ou seja, entre os 10 aos 17 anos, ocorrem vrias mudanas

    corporais como hormnios-estmulos (hormnios gonadotrficos da hipfise anterior

    ou hormnios sexuais como a testosterona, estrgenos e progesterona oriundos das

    gnadas sexuais), produzindo vulos ou espermatozoides, bem como o aumento do

    pnis e dos testculos no rapaz e o aumento do tero e da vagina na mulher.

    Segundo Griffa e Moreno (2010), estes so os caracteres sexuais primrios. Alm

    dos caracteres sexuais primrios, ocorre tambm o desenvolvimento dos caracteres

    sexuais secundrios que se constituem no aumento das mamas, por conta do

    desenvolvimento glandular e distribuio de gorduras, mudanas da voz,

    crescimento de pelos no pbis e nas axilas, mudanas estas que ocorrem de

    maneira distinta de acordo com o sexo, incluindo, tambm, o aparecimento da barba

    no homem.

    Elkonin (1960) chama a ateno sobre um ponto importante, qual seja: que a

    psicologia tradicional tenta explicar todas as caractersticas dos adolescentes,

    incluindo as psicolgicas, somente por motivos biolgicos, ligando as

    particularidades de sua personalidade com o fato da maturao sexual. Segundo o

    autor, a maturao sexual, como todos os outros aspectos do desenvolvimento

    fsico, embora incluam particularidades fundamentais no desenvolvimento psquico,

    no tm uma influncia determinante na formao da personalidade do adolescente.

    importante que se diga que as mudanas biolgicas ocorridas na

    adolescncia, ou em qualquer outra fase do desenvolvimento humano, no podem

    ser negadas ou negligenciadas, pois as relaes entre o biolgico e o social no ser

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    humano so de incorporao daquele por este e no de eliminao ou mesmo

    separao entre ambos. Discordar das concepes naturalizantes no significa

    negar as influncias da materialidade orgnica do corpo humano na vida de uma

    pessoa. Da a importncia do materialismo histrico-dialtico para o que se prope:

    uma correta compreenso desses fenmenos.

    Portanto, o nvel alcanado pelas possibilidades fsicas, volitivas e morais na

    adolescncia cria, segundo Elkonin (1960), as premissas necessrias para que

    mude fundamentalmente a situao do adolescente na sociedade. Para este autor,

    indubitvel que, por exemplo, a apario dos caracteres sexuais secundrios, como a mudana do timbre da voz dos meninos, a apario do pelo no pbis, a formao das glndulas mamrias nas meninas, faz com que os prprios adolescentes entre si e os adultos no os considerem mais como crianas. Este um dos momentos fundamentais que determinam a nova situao do adolescente entre os adultos que os rodeiam e tem uma influncia indubitvel na formao de sua personalidade. No menos significao tem a apario do desejo sexual. (ELKONIN, 1960, p. 539).

    Destarte, as multideterminaes que esto ligadas vida do adolescente

    determinam sua vida psquica. Fica evidente, por meio do excerto acima, que a

    formao psquica do adolescente no oriunda diretamente do processo de

    maturao sexual, mas sim, de vrias outras influncias como a situao social que

    o rodeia, a complexidade da atividade escolar, a ampliao das relaes sociais, a

    crescente independncia, bem como as novas exigncias feitas a ele pelos adultos.

    Ozella (2003), aps sua pesquisa sobre qual o significado que os psiclogos

    do adolescncia, verificou que, na maioria dos profissionais entrevistados, houve

    o predomnio da viso liberal de ser humano, que teria como caractersticas

    principais uma concepo que analisa a vida a partir de caractersticas

    originariamente individuais, bem como uma naturalizao e eternizao do tipo

    burgus como representando a realizao da essncia humana.

    Bock (2004) e tambm Mascagna (2009) evidenciaram esta mesma

    concepo de adolescncia ao analisarem alguns textos em livros e revistas

    publicados para professores e pais de adolescentes. Mascagna (2009, p. 26), ao

    analisar artigos sobre o tema adolescncia na base de dados cientficos Scielo,

    chama a ateno para um interessante ponto:

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    Qualquer estudante e/ou pesquisador que fizer uma pesquisa na Scielo a fim de compreender a adolescncia se apropriar das teorias idealistas sobre o tema em questo ou as reforar. Tambm pudemos observar o quanto as teorias biologicistas esto no meio acadmico e como essa viso naturalizante do homem disseminada cientificamente como verdade. A viso biologicista de adolescncia universaliza o desenvolvimento psicolgico em fases naturais e inerentes ao prprio homem.

    Outra abordagem que exerce relevante papel na atualidade e, principalmente,

    no campo da educao, a Epistemologia Gentica de Jean Piaget. Mostrando que

    um dos postulados essenciais da teoria de Piaget o de que a aquisio de

    conhecimentos socialmente existentes no produz desenvolvimento cognitivo,

    Vigotsky (1995, p. 123) se contrape a teoria asseverando que:

    O ensino uma das principais fontes de conceitos da criana em idade escolar, e tambm uma poderosa fora que direciona o seu desenvolvimento. Determina o destino de sua evoluo mental completa. Deste modo, os resultados do estudo psicolgico dos conceitos infantis podem aplicar-se aos problemas do aprendizado de uma forma muito diferente daquela imaginada por Piaget.

    Isto quer dizer que o ensino ser a fora propulsora do desenvolvimento

    psquico e da formao dos conceitos cientficos no adolescente escolar. Conforme

    Vigotski (2006, p. 114), o nico bom ensino o que se adianta ao

    desenvolvimento.

    O ponto que justifica o tema deste artigo est contido nas consideraes

    acima e fica evidente a necessidade de apresentar uma concepo de adolescncia

    numa abordagem histrico-cultural. Ou seja, uma concepo de adolescncia que

    supere a viso idealista, naturalista, biologizante e patologizante.

    2 A ADOLESCNCIA NA CONCEPO DA PSICOLOGIA HISTRICO-

    CULTURAL

    No mbito do presente estudo, tomar-se- como foco especfico a importncia

    da educao escolar na promoo do desenvolvimento do adolescente. Entretanto,

    no se ignora a existncia de outra realidade, a do adolescente que, vivendo no

    campo ou na cidade, no esteja inserido na escola.

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    A psicologia histrico-cultural considera que a adolescncia, como fase do

    desenvolvimento psicolgico, tem sua origem na histria das transformaes pelas

    quais passaram as sociedades, ou seja, as transformaes dos modos de produo.

    Um primeiro ponto a ser considerado o de que a adolescncia surgiu em

    consequncia de um determinado grau, historicamente alcanado, de complexidade

    da vida social.

    Em determinadas sociedades, por exemplo, o indivduo ao chegar

    puberdade, passava por certos rituais de iniciao que o legitimavam como adulto.

    Aris (1978) comenta que, at o sculo XVIII, o indivduo passava da condio de

    criana para adulto sem necessariamente viver a condio da adolescncia. Este

    indivduo participava da vida adulta, crescia misturado com os adultos e aprendia os

    comportamentos sociais por meio do contato direto com eles. Segundo o autor, foi

    somente a partir do sculo XIX que a adolescncia passou a ser considerada uma

    fase distinta da infncia e da vida adulta.

    Neste mesmo sculo, as crianas se incorporavam ao mundo do trabalho em

    algum momento entre os sete anos e o comeo da puberdade. Poucas crianas

    estudavam. Somente os filhos das classes altas e, as que estudavam, tinham em

    mdia de 10 ou 12 anos. Geralmente, no estavam agrupadas em nveis de idades

    diferenciados, nem permaneciam muito tempo no sistema educacional. Foi no final

    do sculo XIX, devido revoluo industrial, que houve uma notvel mudana neste

    contexto acima citado, pois, com a industrializao, a formao e os estudos

    passaram a ser importantes. Porm, isso s ocorrera com os filhos das classes

    mdias e altas. Os filhos de operrios, mesmo em idades muito precoces,

    continuaram por longo tempo no mundo do trabalho (ARIS, 1978; ISAMBERT-

    JAMATI, 1966).

    De acordo com Bock (2004), devido revoluo industrial, ocorreram grandes

    mudanas no modo de viver dos indivduos. O avano tecnolgico trouxe em seu

    bojo a exigncia de capacitao profissional para que o indivduo pudesse adentrar

    no mundo do trabalho. Com isso, outra exigncia ocorreu, a saber, um considervel

    prolongamento do tempo de formao, obviamente, reunindo os adolescentes por

    mais tempo na escola. Em razo disso, afirma a autora, os adolescentes teriam

    comeado a se distanciar dos pais e, consequentemente, formado um novo grupo e

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    construdo uma nova fase de desenvolvimento. Para Bock (2004, p. 41), a

    adolescncia refere-se, assim, a esse perodo de latncia social constituda a partir

    da sociedade capitalista, gerada por questes de ingresso no mercado de trabalho e

    extenso do perodo escolar, da necessidade do preparo tcnico.

    Alm da discusso que Bock realiza, importante destacar que o citado

    distanciamento dos pais no fora causado apenas pela insero do adolescente na

    escola, nem o prolongamento desta fase de transio fora reflexo do prolongamento

    do tempo de escolaridade. Isso, reiterando, aconteceu apenas com as camadas

    privilegiadas da sociedade, ou seja, com a burguesia. Isambert-Jamati (1966) afirma

    que, durante muito tempo, a maior parte da populao foi separada de seus pais,

    devido ao contrato anual de trabalho dos jovens rurais, ou devido aprendizagem

    junto de um artfice distante. Esta autora assevera que tais rupturas eram

    praticamente definitivas e tais compromissos, bem como a entrada ao exrcito,

    convento ou seminrio, frequentemente aconteciam a partir dos 12 ou 13 anos de

    vida. Enquanto a industrializao do sculo XIX obrigou as classes inferiores a uma

    infncia muito curta, causando a dissociao das famlias de classe operria por

    serem compelidas a enviarem seus filhos para o trabalho a partir dos oito anos de

    idade, a burguesia, por sua vez, ofereceu longos estudos para seus filhos, no

    objetivo de prepar-los para os negcios econmicos.

    No objetivo deste artigo apresentar um levantamento das pesquisas nos

    campos da histria e da sociologia sobre a adolescncia. Essas poucas e rpidas

    menes a discusses sobre as circunstncias histrico-sociais que levaram ao

    surgimento da adolescncia tm to somente a inteno de registrar a conscincia

    da complexidade dessa temtica. Um pressuposto central deste estudo o de que a

    adolescncia um fenmeno produzido pela histria das sociedades divididas em

    classes sociais.

    A adolescncia, para a psicologia histrico-cultural, portanto, no pode ser

    reduzida apenas a um processo de mudanas biolgicas, naturais, caracterizadas

    por consequentes sndromes devido aos hormnios que esto flor da pele.

    Vygotski (1996) afirma que os cientistas biologistas equivocam-se, com grande

    frequncia, ao considerar o adolescente um ser apenas biolgico, natural.

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    O adolescente , sobretudo, um ser histrico e social (VYGOTSKI, 1996). Isso

    no significa, entretanto, que Vigotski e outros psiclogos dessa corrente

    desconsiderassem ou secundarizassem a importncia da materialidade biolgica no

    desenvolvimento psicolgico humano. O carter histrico e social do psiquismo

    humano estrutura-se sobre a base dos processos neurofisiolgicos e qualquer

    psicologia que desconsidere esse fato estar fora do campo cientfico. Portanto, a

    evoluo biolgica no est paralisada, nem a espcie humana cristalizou-se a partir

    de sua vida em sociedade. O que ocorreu foi que as leis biolgicas e as

    caractersticas determinantes do desenvolvimento humano pautadas na

    hereditariedade no so mais as foras motrizes do desenvolvimento humano, pois

    cederam lugar s leis scio-histricas.

    Vygotski (1996) afirma que os interesses so a chave para entender o

    desenvolvimento psicolgico do adolescente, pois se constituem, em maior escala, o

    contedo do desenvolvimento social e histrico do que simplesmente o aspecto

    biolgico. Tal assero legitima o carter cultural e histrico na formao do

    indivduo. Os velhos interesses da infncia vo desaparecendo e surgem novos

    interesses. Para Vigotski, o processo de extino dos velhos interesses e o

    desenvolvimento dos novos , particularmente, um processo longo, sensvel e

    doloroso. Para este autor, existem perodos de crise no desenvolvimento humano e

    a perda dos interesses que antes orientavam a atividade do indivduo provoca a

    necessidade de uma viragem. No obstante, as crises que o adolescente enfrenta

    marcam o surgimento de uma nova forma de pensar.

    Vygotski (1996) prope uma superao da ideia hegemnica sobre o

    contedo e a forma do pensamento do adolescente. De acordo com o autor, a

    psicologia tradicional defendia que no havia nada novo no pensamento do

    adolescente em comparao ao pensamento de uma criana de tenra idade. A

    psicologia tradicional, portanto, no explicou as causas e as caractersticas da crise

    da adolescncia, pois postulava que o pensamento do adolescente se fortalecia,

    crescia e se incrementava, porm, no aparecia nenhuma operao intelectual nova.

    Entre todas as mudanas que ocorrem na infncia adolescncia, estas

    correntes psicolgicas citadas por Vigotski destacavam apenas o ponto mais

    superficial e visvel, qual seja: a mudana do estado emocional. Para o autor, isto

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    significa olhar o fenmeno de cabea para baixo. Ele destaca que, ao contrrio do

    que afirmavam essas teorias, a criana de tenra idade um ser eminentemente

    emocional, ao passo que o adolescente, sobretudo, um ser pensante.

    Vygotski (1996, p. 49), ento, faz a seguinte afirmao em relao a essa

    inverso realizada pelas teorias psicolgicas por ele criticadas:

    O desenvolvimento sucessivo de tal ponto de vista conduz banal concepo que deseja reduzir toda a maturao psquica do adolescente a uma elevada emotividade, a impulsos, imaginaes e demais produes romnticas da vida emocional. O fato de que o perodo da maturao sexual seja um perodo de potente auge no desenvolvimento intelectual, que pela primeira vez o pensamento ocupe, neste perodo, o primeiro plano, no s passa despercebido com semelhante formulao, mas parece at misterioso e inexplicvel.

    Vygotski (1996) identificou que as teorias psicolgicas predominantes nas

    primeiras dcadas do sculo XX negavam o surgimento de novas formas de

    pensamento na adolescncia. Estas teorias defendiam que todas as mudanas no

    pensamento do adolescente resumiam-se a um avano ulterior pelas vias j

    traadas no pensamento da criana, ou seja, tanto no adolescente quanto na criana

    de tenra idade, a forma de pensar era a mesma, havendo mudanas apenas no

    contedo do pensamento. Estabelecia-se, dessa maneira, uma ruptura entre forma e

    contedo de pensamento. Diante desta viso dualista e metafsica, a psicologia

    tradicional defendia que a diferena entre a criana e o adolescente resumia-se ao

    fato de que as mesmas formas do pensamento tm contedos diferentes.

    Vigotski considera tosca e primitiva a viso contida nessas teorias, para as

    quais os novos contedos da vida do adolescente, por mais importantes e

    revolucionrios que sejam, em nada alterariam as formas de pensar, que seriam

    como um recipiente no qual novos contedos seriam introduzidos sem provocar

    modificao do prprio recipiente. Contrapondo-se a essa viso, Vigotski afirma que

    tanto os contedos como as formas de pensamento desenvolvem-se histrica e

    dialeticamente. Em outras palavras, tanto na histria social da humanidade como no

    desenvolvimento psicolgico individual surgem funes psicolgicas novas e

    superiores, indispensveis ampliao dos horizontes culturais coletivos e

    individuais. Nesse momento de seu texto, Vygotski estabelece uma forte relao

    entre a unidade contedo e forma, das relaes entre pensamento e linguagem e

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    das relaes entre as funes psquicas elementares e superiores (VYGOTSKI,

    1996).

    Esta nova forma de pensamento que caracteriza a adolescncia a formao

    de conceitos. Para Vigotski, o pensamento por conceitos o passo a uma forma

    nova e superior de atividade intelectual, um modo novo de conduta e a chave de

    todo o problema do desenvolvimento do pensamento. A formao de conceitos, na

    adolescncia, se encontra no centro do desenvolvimento do pensamento e trata-se

    de um processo que representa na realidade as autnticas mudanas

    revolucionrias tanto no contedo como nas formas de pensamento. (VYGOTSKI,

    1996, p. 58).

    De acordo com os resultados de suas pesquisas, Vigotski (2010,1996)

    evidencia que o desenvolvimento do pensamento por conceitos atravessa vrios

    estgios, quais sejam: o estgio do sincretismo; o estgio do pensamento por

    complexos; e os conceitos propriamente ditos. Na primeira infncia at a idade pr-

    escolar, a criana opera cognitivamente com agrupamentos sincrticos, pensamento

    por complexos e com pseudoconceitos. Segundo o autor, a forma superior de

    pensamento conceitual se tornar possvel apenas na adolescncia. E acrescenta

    que somente pelo pensamento por conceitos que a cincia, a arte e demais

    produes sociais podero ser apropriadas de forma aprofundada.

    Neste contexto, Vigotski (2010) analisou especialmente a formao de dois

    tipos de conceitos e das relaes entre eles, a saber, os conceitos cotidianos e os

    conceitos cientficos. Os conceitos cotidianos so formados na educao no

    escolar que ocorre na prtica cotidiana, ao passo que os conceitos cientficos

    desenvolvem-se a partir do ensino escolar.

    Duarte (2000, p. 86) explica que, para Vigotski, os conceitos cientficos, ao

    serem ensinados criana atravs da educao escolar, superam por incorporao

    os conceitos cotidianos, ao mesmo tempo em que a aprendizagem daqueles ocorre

    sobre a base da formao destes. Ao operar com os conceitos cotidianos ou

    espontneos, a criana no tem conscincia destes conceitos, pois sua ateno est

    sempre centrada no objeto a que o conceito se refere e no no prprio ato de

    pensamento. Ao operar com os conceitos cientficos, a criana comea

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    simultaneamente a operar sobre o objeto ao qual o conceito se refere e sobre o

    prprio conceito, isto , o prprio ato de pensar sobre o objeto.

    Vigotski (2010, p. 293-294) ressalta que Marx definiu com profundidade a

    essncia de todo o conceito cientfico: Se a forma da manifestao e a essncia das

    coisas coincidissem imediatamente, toda cincia seria desnecessria. No conceito

    cientfico, portanto, o adolescente pode refletir sobre o que no est ao alcance dos

    conceitos cotidianos e pode conhecer a essncia do objeto ou fenmeno dado. E a

    educao escolar tem um papel fundamental neste processo, ou seja, na mediao

    entre os conceitos espontneos e os conceitos cientficos.

    Destarte, o trabalho educativo possibilita ao indivduo ir alm dos limites dos

    conceitos cotidianos. Tais conceitos, como mencionado, so superados por

    incorporao pelos conceitos cientficos e, como afirmou Vygotski (1996, p. 200), o

    pensamento conceitual produz o desenvolvimento da personalidade e da concepo

    de mundo do adolescente.

    3 A EDUCAO ESCOLAR DE ADOLESCENTES

    A cincia, a arte, a filosofia e demais produes do gnero humano podem

    ser apropriadas de forma aprofundada somente por meio do pensamento por

    conceitos, ou seja, somente a partir da adolescncia (VYGOTSKI, 1996). Esse

    raciocnio pode ser dividido em dois pontos: o primeiro seria o de que o

    conhecimento dos processos essenciais da realidade s possvel quando o

    indivduo torna-se capaz de pensar por conceitos; o segundo raciocnio refere-se a

    quando o indivduo, na ontognese, desenvolve o pensamento por conceitos e, para

    Vigotski, a partir da adolescncia.

    A adolescncia um perodo propcio para se operar o processo de

    apropriao das mais diversas esferas da vida cultural. Porm, como afirma Vigotski,

    este processo s acontece no momento em que o adolescente assimila

    corretamente esse contedo. Quando Vigotski fala sobre assimilar um contedo,

    isso implica uma transmisso precedente deste contedo mediada por aes de

    ensino. Se, para Vigotski, os conceitos cientficos so produtos da educao

    organizada, isto refora ainda mais a importncia da escola como mediadora entre o

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    cotidiano e o no cotidiano na formao do indivduo, como tambm postulou Duarte

    (1996).

    na primeira infncia que se encontra a raiz para o desenvolvimento dos

    processos que possibilitam a formao dos conceitos, porm, as funes

    psicolgicas, necessrias para a formao do pensamento conceitual, desenvolvem-

    se de maneira plena somente na fase de transio, ou seja, na adolescncia. Para

    Elkonin (1960), as exigncias do meio social impostas ao adolescente, bem como as

    novas responsabilidades a ele confiadas, so fatores determinantes no

    desenvolvimento psquico nesta idade. O nvel alcanado pelas possibilidades

    fsicas, intelectuais, volitivas e morais da criana cria as premissas necessrias para

    que mude fundamentalmente a situao do adolescente na sociedade.

    Este autor identificou que, na escola Sovitica, as disciplinas transmitidas aos

    adolescentes diferenciavam-se muito daquelas transmitidas aos escolares de menor

    idade. Devido ao maior grau de complexidade nas disciplinas escolares, as leis

    gerais da realidade comearam a ocupar um lugar importante, manifestadas no

    sistema de conceitos de cada cincia. Ou seja, as disciplinas escolares transmitidas

    aos adolescentes, segundo Elkonin (1960), exigiam que estes aprendessem muitos

    conceitos abstratos, que se apoiam no conhecimento dos objetos concretos, mas, ao

    mesmo tempo, saem desses limites. Segundo o autor,

    Decisivamente, a abstrao do concreto distinta nas diferentes disciplinas: em umas maior (na geometria, na lgebra, na gramtica), em outras, menor (na histria, na geografia). Todavia, seja o que forma o carter da conexo que h entre os conceitos abstratos e os objetos concretos, o mais tpico e novo que contm os conhecimentos que adquire o adolescente a abstrao do concreto. (EKONIN, 1960, p. 536-537).

    Alm disso, o desenvolvimento da linguagem tem um enorme significado para

    o desenvolvimento psquico dos adolescentes. A assimilao das formas mais

    complexas de oraes com a utilizao de diferentes conjunes (embora, porm,

    que, porque, entretanto, etc.), particpios e gerndios, etc. criam uma base para

    designar variadas dependncias complexas entre os objetos e fenmenos (relaes

    causais, funcionais, condicionadas, etc.) que so objeto de estudo das matemticas,

    da histria, da geografia, da fsica e de outras matrias. (ELKONIN, 1960, p. 541-

    542).

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    A formao de conceitos uma das causas fundamentais de todas as

    mudanas que se produzem no pensamento do adolescente. O ser humano no

    conseguiria dominar os processos mais complexos e profundos da realidade sem o

    pensamento conceitual que se d a partir das relaes recprocas entre pensamento

    e linguagem. Segundo Vygotski (1996, p. 71) o pensamento por conceitos revela os

    profundos nexos da realidade, revela as leis que a regem [...]. O desenvolvimento

    do pensamento conceitual permite que o adolescente tenha o profundo

    conhecimento da realidade interna, ou seja, o mundo de suas prprias vivncias.

    Vygotski (1996, p. 73) afirma que graas ao pensamento por conceitos

    chegamos a compreender a realidade, a dos demais e a nossa prpria. Para o

    autor, o pensamento por conceitos a nova forma de pensamento que difere o

    adolescente das crianas menores e essa a revoluo que se produz no

    pensamento e na conscincia do adolescente.

    Porm, essa revoluo no acontece naturalmente, espontaneamente, no

    fruto de maturao biolgica seno da apropriao de objetivaes genricas mais

    elaboradas, como a cincia, a arte e a filosofia. Em suas pesquisas, Elkonin (1960)

    afirma que umas das particularidades dos interesses do adolescente seu carter

    ativo, conduzindo, algumas vezes, ao desprezo dos conhecimentos cientficos e

    tcnicos por consider-los sem significado prtico. A escola, deste modo, deve

    produzir necessidades de conhecimento sistematizado nos alunos. Para que isso

    seja feito, no trabalho educativo, deve-se deixar claro que o conhecimento, no incio

    da atividade humana, foi produzido a partir de necessidades prticas e cotidianas,

    porm se libertou de uma dependncia imediata deste cotidiano por meio da cincia,

    da arte e da filosofia.

    Por outro lado, Vygotski (1996, p. 67) comenta sobre o carter contraditrio

    do adolescente e, embora Elkonin possa estar certo em relao a esse pragmatismo

    do adolescente, Vigotski menciona que o adolescente tambm tem inclinao para

    ideias metafsicas e romnticas.

    Vygotski identificou que alguns autores da poca, como Blonski, constataram

    que, por um lado, o adolescente manifestaria interesse pela matemtica, pela fsica

    e pela filosofia, numa busca de compreenso racional e lgica do mundo, mas, por

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    outro, revelaria um romantismo das ideias, no sentido de idealismo, de dificuldade

    de lidar com a realidade.

    Alguns desses autores tentaram explicar essa contradio por causas

    biolgicas, mas Vigotski discorda deles e explica pela anlise do processo de

    desenvolvimento do adolescente. Ou seja, pela contradio entre a nova forma de

    pensamento que est em desenvolvimento (o pensamento por conceitos) e o fato de

    que esse novo estgio ainda muito instvel e o adolescente no consegue, a

    princpio, lidar com tudo o que deseja. O adolescente est aprendendo a pensar por

    conceitos e seria demais exigir que ele j pensasse dialeticamente e, por isso, acaba

    demonstrando uma unilateralidade de pensamento: ou isso ou aquilo.

    Vygotski (1996, p. 68) mostra que existe uma contradio entre o que se

    apresenta ao adolescente nesse descortinar-se de um mundo mais amplo para ele e

    as possibilidades de seu pensamento, que est dando um salto gigantesco no

    sentido do pensamento por conceitos, mas ainda no para o pensamento dialtico.

    Para o autor, existe uma insuficincia de dialtica no pensamento do adolescente.

    Ressalta-se, neste momento, o desafio da educao escolar de adolescentes,

    pois o pensamento dialtico no est amplamente difundido na sociedade e nos

    campos das cincias, da filosofia e das artes. E, por consequncia disso, o

    adolescente raramente se depara com esses modelos.

    Destarte, ao contrrio das pedagogias contemporneas que defendem o

    cotidiano e a espontaneidade como pressupostos indispensveis educao

    escolar, considera-se que o trabalho educativo deve diferenciar-se do cotidiano. A

    escola deve afastar o aluno da vida cotidiana e formar um espao diferenciado

    para o estudo do conhecimento sistematizado, possibilitando a ampliao das

    necessidades do indivduo para alm daquelas limitadas esfera da vida cotidiana e

    daquelas pautadas apenas nas competncias de alunos e professores, a fim de

    suprir as necessidades do capital. Este afastamento no significa, de maneira

    alguma, fuga realidade. Trata-se da construo das mediaes entre a prtica

    cotidiana e a teoria, de maneira que aquela no seja guiada pura e simplesmente

    pelo pragmatismo imediatista e esta no se transforme em pura especulao

    metafsica e at mesmo transcendente.

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    O trabalho educativo, portanto, realiza uma mediao, na formao do

    indivduo, entre os conceitos cotidianos e os conceitos cientficos, no cotidianos.

    Diante de tal importncia que tem a educao escolar neste processo, fica evidente

    a urgncia da superao das ideias propagadas pelas pedagogias contemporneas

    baseadas no lema aprender a aprender. Segundo Duarte (2010, p. 37), uma ideia

    muito difundida pelas pedagogias contemporneas a de que o cotidiano do aluno

    deve ser a referncia central para as atividades escolares; na perspectiva dessas

    pedagogias so considerados contedos significativos e relevantes para o aluno

    aqueles que tenham alguma utilidade prtica em seu cotidiano.

    Duarte (2001) denomina de pedagogias do aprender a aprender as que,

    neste contexto da relao entre educao escolar e conhecimento, apresentam uma

    viso negativa sobre a transmisso do conhecimento cientfico por parte da escola,

    limitando este conhecimento e atrelando-o ao cotidiano. Encontra-se tambm uma

    descaracterizao do professor, que promove as interaes necessrias com os

    estudantes, mediadas pelo processo de apropriao do conhecimento. Ou seja, a

    indispensvel participao do professor no entendida como transmisso de

    conhecimento, como ensino, sendo reduzida a uma espcie de acompanhamento da

    aprendizagem que ocorreria de forma autnoma desde o incio do processo

    educativo. No limite, trata-se do postulado segundo o qual o aluno deve aprender

    sozinho, aprender a aprender.

    Ou seja, quanto menos o professor ensinar, melhor a aprendizagem pelo

    aluno. So pedagogias que defendem a limitao do indivduo s esferas da vida

    cotidiana. Esse processo pode ser considerado alienante, que, segundo Duarte

    (1996) e Heller (1991), se d quando o indivduo impedido de se apropriar das

    esferas de objetivaes genricas no cotidianas, objetivaes genricas para-si.

    Estas pedagogias mostram-se sintonizadas com a ideologia da classe dominante.

    Dentre elas esto o construtivismo, a pedagogia do professor reflexivo, a pedagogia

    das competncias, a pedagogia dos projetos e a pedagogia multiculturalista.

    (DUARTE, 2010, p. 33).

    Entende-se que, a partir de uma perspectiva histrico-cultural, a escola deve

    socializar o conhecimento. Porm, esta uma lgica socialista e, por isso, nunca

    estar confortvel numa sociedade capitalista (SAVIANI, 2008). O capitalismo

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    defende uma educao para todos, porm, com a ressalva implcita e, algumas

    vezes explcita, de que a educao para a classe trabalhadora seja diferente.

    Um exemplo desse pensamento, embora no seja o debate fulcral deste

    trabalho, mas faz-se necessrio devido ao contexto desta discusso, a poltica do

    Banco Mundial (BM) para a socializao do conhecimento para pases como o

    Brasil. O BM defende a adequao do ensino superior ao mercado de trabalho, alm

    de que seja adaptado s diferentes classes sociais. Prope uma universidade de

    excelncia, voltada pesquisa, destinada aos cidados das classes superiores.

    Incentiva a existncia de uma universidade para formar profissionais para o mercado

    de trabalho, cidados de classe mdia. E, por ltimo, prope escolas

    profissionalizantes destinadas aos egressos do ensino mdio e voltadas aos

    cidados das classes subalternas (LEHER, 2001).

    No estranho o fato de o trabalhador desejar que seu filho aprenda na

    escola tudo o que ele no teve oportunidade de aprender. A estranheza, portanto,

    reside no fato de que os prprios intelectuais que foram formados pela escola (e que

    auferem seus estipndios na escola) estabeleam e ou defendam pedagogias que

    impedem a socializao do conhecimento para todas as classes sociais.

    O adolescente aquele que, num futuro prximo, escolher uma profisso e

    comear a preparao para uma atividade profissional. Tanto a escola, quanto a

    famlia, ou melhor, a sociedade em geral, exigir-lhe- tal postura. O problema reside

    na forma como a educao escolar vem tomando em relao a esta questo.

    Martins (2004) chama a ateno para o fato de que as polticas educacionais tm se

    centrado no treinamento de indivduos a fim de satisfazer os interesses do mercado.

    Obviamente que o assunto sobre a insero do indivduo no mercado de trabalho

    deve estar na pauta da educao escolar, porm, conforme afirma a referida autora,

    a reduo da educao formao de competncias que deve ser objeto

    premente de anlise crtica, posto o empobrecimento que incide sobre os fins

    educacionais, convertidos em meios para uma, cada vez maior, adaptao passiva

    dos indivduos s exigncias do capital (MARTINS, 2004, p.53).

    A tarefa da educao escolar no consiste apenas em formar indivduos para

    o mercado de trabalho. Isso seria muito pouco. Os conhecimentos cientficos

    produzidos ao longo da histria do desenvolvimento humano, quando transmitidos

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    pelo professor e apropriados pelos alunos, contribuem, decisivamente, para o

    desenvolvimento geral do indivduo, de sua personalidade.

    4 CONSIDERAES FINAIS

    Considerando-se que, para a psicologia histrico-cultural, a adolescncia

    um momento privilegiado tanto pelo desenvolvimento do pensamento por conceitos,

    como pela consequente formao da concepo de mundo e desenvolvimento da

    autoconscincia, a hiptese deste trabalho a de que a educao escolar pode

    contribuir decisivamente, por meio do ensino do conhecimento sistematizado, para o

    desenvolvimento psquico e para a formao da personalidade dos adolescentes no

    sentido da superao dos limites da vida cotidiana.

    Diante da especificidade da educao escolar, qual seja: a socializao do

    conhecimento sistematizado (SAVIANI, 2008), este artigo defende que a prtica

    pedaggica caracterizada pela transmisso de contedos clssicos, o saber

    sistematizado, pode proporcionar o desenvolvimento psquico do aluno, conduzindo-

    o ao processo de superao por incorporao das funes psicolgicas

    espontneas s funes psicolgicas voluntrias, ao favorecer o salto qualitativo

    para o pensamento conceitual.

    Nesse ponto, uma pergunta se nos apresenta: a escola tem executado seu

    papel na transmisso de conhecimentos clssicos, sistematizados, para que haja a

    formao dos verdadeiros conceitos cientficos e no dos pseudoconceitos? Pois

    bem, a assimilao dos conceitos cientficos comea com as explicaes do

    professor. Luria (1990) afirma que o desenvolvimento do pensamento por conceitos

    depende das operaes tericas que a criana aprende na escola.

    O autor explicita que, quando o professor sistematiza e programa a

    transmisso do conhecimento cientfico, tal processo resulta na formulao de

    conceitos cientficos e no cotidianos. Pode-se fazer aquela pergunta de outra

    maneira, qual seja: seria possvel dizer que as pedagogias hegemnicas tm

    produzido nos alunos os pensamentos por conceitos? Segundo Duarte (2006; 2010),

    a resposta seria no, pois estas pedagogias reduzem o ensino ao cotidiano do aluno

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    e descaracterizam o papel do professor como responsvel pela transmisso do

    conhecimento clssico.

    Se a adolescncia um perodo particularmente importante na formao da

    concepo de mundo, para a manifestao da autoconscincia, importante que a

    educao escolar supere o limiar da cotidianidade, supere a lgica do capital, supere

    pressupostos superficiais, imediatistas e fragmentados. E, tratando-se de educao

    escolar, esta superao deve ocorrer a partir da educao infantil. Pois, ao que

    parece, o grande problema enfrentado no mbito da educao escolar de

    adolescentes que esse momento de viragem explicita objetivamente o produto

    oculto da formao antecedente.

    RICARDO ELEUTRIO DOS ANJOS Psiclogo, mestre e doutorando em Educao Escolar pela UNESP/Araraquara. Integrante do Grupo de Pesquisas cadastrado no CNPq com o ttulo "Estudos Marxistas em Educao", ligado ao Departamento de Psicologia da Educao da UNESP. Professor de Psicologia Escolar e Educacional na UNOESTE.

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