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PIADAS E TIRAS EM QUADRINHOS : UMA APROXIMAÇÃO POSSÍVEL Paulo RAMOS (Universidade de São Paulo) ABSTRACT: Are the comic strips a kind of joke? That’s the main question this paper works to answer. Some examples comprove points in common. We discuss some theories about humor and argue that: 1) the two genres have more similarities than differences; 2) the comic strip works as a joke. KEYWORDS: humor; jokes; comic strips; comics; text Introdução As tiras em quadrinhos têm espaço garantido nos cadernos de cultura dos grandes jornais brasileiros. O tema em geral é o humor. A questão que levantamos neste artigo é: as tiras seriam uma forma de piada? Ou, pelo menos, funcionariam como piadas? Responder às perguntas não é tarefa das mais simples. Envolve mais a impressão que temos do que seja uma piada e uma tira e menos uma investigação científica sobre o assunto. A proposta é fazer essa investigação científica. Começamos a discussão com dois exemplos: o primeiro, uma piada; o segundo, uma tira. A idéia é observar o objeto de análise e verificar o que ele nos oferece para o debate. Feito isso, passamos a alguns estudos já realizados sobre o assunto. Fazemos possíveis aproximações teóricas e as aplicamos a novos exemplos. Antes da análise propriamente dita, uma ressalva ao leitor. Restringimos o corpus a piadas escritas. O dois exemplos com os quais trabalharemos foram extraídos de coletânea elaborada por Sarrumor (2003). A reprodução dos dois textos é fiel à forma como foram publicados originalmente. 1. Uma outra leitura da piada Um ladrão entra numa casa e encontra um casal dormindo. Ele põe uma faca no pescoço da mulher e diz: - Eu gosto de saber o nome das minhas vítimas antes de matá-las. Como você se chama? - Marlene! – responde a mulher. - Marlene! – diz o assaltante. – Esse é o nome da minha mãe! Eu vou te poupar. Ele se vira então para o marido e pergunta qual o nome dele. Assustado, o homem responde: - Meu nome é Rodolfo. Mas todos me chamam de Marlene!... O texto acima é uma piada? É. Por quê? Aí é que está a questão. As respostas em geral se restringem muito à percepção que temos do que seja uma piada. Simplesmente sabemos e ponto final. As características lingüísticas, que forneceriam o material para uma abordagem mais aprofundada, ficam em segundo plano. Propomos aqui uma outra leitura do trecho, uma leitura mais crítica. O objetivo é observar as poucas linhas e ver quais os elementos que elas fornecem para análise. O trecho é uma narrativa. Narrativa curta, por sinal. Há presença de um narrador em terceira pessoa, que tem a incumbência de observar e relatar a cena, como podemos verificar na primeira, segunda e sexta linhas. É ele que situa o espaço da história, uma casa, e que introduz ao leitor os personagens da trama, um ladrão e um casal. O casal, mais à frente, será apresentado como Rodolfo e Marlene. O tempo da ação não é evidenciado explicitamente. Pode-se inferir que seja à noite, em especial pelo fato de os moradores estarem dormindo. Os três personagens têm voz, mostrada por meio de discurso direto, visto nas linhas de três a cinco e sete. O enredo se pauta na invasão da casa. O fato de o invasor ser um ladrão nos permite supor que se trata de um assalto. O que lemos, no entanto, é uma ameaça de assassinato. O bandido encosta uma faca no pescoço da mulher e pergunta o nome dela. Ouve “Marlene” como resposta. Por ser o mesmo nome da mãe do suposto assaltante, ele opta por poupá-la. A vítima passa a ser, então, o marido, que dormia junto com ela. Mesma pergunta, qual era seu nome. Espera-se como resposta um substantivo próprio masculino, o que de Anais do 6º Encontro Celsul - Círculo de Estudos Lingüísticos do Sul

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PIADAS E TIRAS EM QUADRINHOS : UMA APROXIMAÇÃO POSSÍVEL Paulo RAMOS (Universidade de São Paulo) ABSTRACT: Are the comic strips a kind of joke? That’s the main question this paper works to answer. Some examples comprove points in common. We discuss some theories about humor and argue that: 1) the two genres have more similarities than differences; 2) the comic strip works as a joke. KEYWORDS: humor; jokes; comic strips; comics; text Introdução As tiras em quadrinhos têm espaço garantido nos cadernos de cultura dos grandes jornais brasileiros. O tema em geral é o humor. A questão que levantamos neste artigo é: as tiras seriam uma forma de piada? Ou, pelo menos, funcionariam como piadas? Responder às perguntas não é tarefa das mais simples. Envolve mais a impressão que temos do que seja uma piada e uma tira e menos uma investigação científica sobre o assunto. A proposta é fazer essa investigação científica. Começamos a discussão com dois exemplos: o primeiro, uma piada; o segundo, uma tira. A idéia é observar o objeto de análise e verificar o que ele nos oferece para o debate. Feito isso, passamos a alguns estudos já realizados sobre o assunto. Fazemos possíveis aproximações teóricas e as aplicamos a novos exemplos. Antes da análise propriamente dita, uma ressalva ao leitor. Restringimos o corpus a piadas escritas. O dois exemplos com os quais trabalharemos foram extraídos de coletânea elaborada por Sarrumor (2003). A reprodução dos dois textos é fiel à forma como foram publicados originalmente. 1. Uma outra leitura da piada

Um ladrão entra numa casa e encontra um casal dormindo. Ele põe uma faca no pescoço da mulher e diz: - Eu gosto de saber o nome das minhas vítimas antes de matá-las. Como você se chama? - Marlene! – responde a mulher. - Marlene! – diz o assaltante. – Esse é o nome da minha mãe! Eu vou te poupar. Ele se vira então para o marido e pergunta qual o nome dele. Assustado, o homem responde: - Meu nome é Rodolfo. Mas todos me chamam de Marlene!...

O texto acima é uma piada? É. Por quê? Aí é que está a questão. As respostas em geral se restringem muito à percepção que temos do que seja uma piada. Simplesmente sabemos e ponto final. As características lingüísticas, que forneceriam o material para uma abordagem mais aprofundada, ficam em segundo plano. Propomos aqui uma outra leitura do trecho, uma leitura mais crítica. O objetivo é observar as poucas linhas e ver quais os elementos que elas fornecem para análise. O trecho é uma narrativa. Narrativa curta, por sinal. Há presença de um narrador em terceira pessoa, que tem a incumbência de observar e relatar a cena, como podemos verificar na primeira, segunda e sexta linhas. É ele que situa o espaço da história, uma casa, e que introduz ao leitor os personagens da trama, um ladrão e um casal. O casal, mais à frente, será apresentado como Rodolfo e Marlene. O tempo da ação não é evidenciado explicitamente. Pode-se inferir que seja à noite, em especial pelo fato de os moradores estarem dormindo. Os três personagens têm voz, mostrada por meio de discurso direto, visto nas linhas de três a cinco e sete. O enredo se pauta na invasão da casa. O fato de o invasor ser um ladrão nos permite supor que se trata de um assalto. O que lemos, no entanto, é uma ameaça de assassinato. O bandido encosta uma faca no pescoço da mulher e pergunta o nome dela. Ouve “Marlene” como resposta. Por ser o mesmo nome da mãe do suposto assaltante, ele opta por poupá-la. A vítima passa a ser, então, o marido, que dormia junto com ela. Mesma pergunta, qual era seu nome. Espera-se como resposta um substantivo próprio masculino, o que de

Anais do 6º Encontro Celsul - Círculo de Estudos Lingüísticos do Sul

fato acontece: “Rodolfo”. A surpresa é o mesmo homem dizer, na seqüência, que todos o chamavam de Marlene. A frase final é a chave para provocar o humor, uma das características do gênero piada. A oposição Rodolfo / Marlene torna o desfecho da narrativa surpreendente. Dizer que todos o chamavam de Marlene é uma forma de ter o mesmo nome da mãe do ladrão e, assim como sua acompanhante, ter a vida poupada. Vale reforçar: a última fala, em especial o fato de Rodolfo querer ter o nome Marlene, é o que torna o texto engraçado junto ao leitor. 2. Uma outra leitura da tira

Assim como nas piadas, a tendência é ler a tira em quadrinhos, entender o humor sugerido e não questionar quais as causas do efeito cômico. Propomos fazer o mesmo caminho do primeiro exemplo, ou seja, observar o texto em si e verificar o que ele oferece para análise. Uma primeira característica salta aos olhos. Trata-se de um texto que alia elementos verbais e visuais. Os dois signos se somam no processo de condução da narrativa. É pela imagem que os dois personagens são apresentados. São caracterizados visualmente como dois meninos. Quem tem o conhecimento prévio (acesso a dados extra-texto assimilados cognitivamente) de que a história é de Chico Bento, criação do brasileiro Maurício de Sousa, percebe com facilidade que os protagonistas são dois caipiras que vivem no campo. Quem não domina tais informações busca pistas nas imagens. Ambos estão com chapéus de palha, mais usados em cidades pequenas do interior brasileiro. Outras “dicas”: os pés descalços, a barra da calça por fazer de um e o macacão do outro não combinam com os hábitos de uma cidade "grande", pelo menos não como a conhecemos. Um dos personagens está sentado no que provavelmente seja uma pedra. Abaixo dela, os contornos sugerem que o chão não seja de asfalto. Uma possível inferência é que seja de terra. Outra inferência é que o provável espaço da narrativa é uma área calma de um município do campo. Quanto às expressões faciais, elas também transmitem conteúdo, conteúdo que ganha reforço quando associado aos aspectos verbais. O narrador não aparece na tira. Os personagens, assim como na piada, interagem por meio de representações da fala. Os diálogos são feitos com o auxílio de balões, estruturas visuais de formato geralmente arredondado, com uma haste -chamada de rabicho por Santos (2002: 24)- afunilando na direção de quem fala. É a principal forma de os quadrinhos representarem o discurso direto. O conteúdo dos balões revela o nome dos personagens, Chico Bento e Zé Lelé, dado importante para quem não os conhecia previamente. O sobrenome de um deles faz referência à gíria lelé que, segundo Gurgel (1998: 290), pode ser vista como sinônimo de maluco. Pode-se inferir, portanto, que tal personagem não tenha atitudes das mais normais. Na condução da ação narrativa, os elementos verbais e visuais se somam. No primeiro quadrinho, Zé Lelé pede um chinelo. Como está em cima do que supomos ser uma pedra e descalço, é possível crer que o personagem não queira sujar os pés. Chico Bento questiona se se trata de um chinelo de dedos, nome popular das sandálias cujas tiras finas de borracha ou pano passam pelos dedos dos pés. O rosto dos personagens, sorridentes, não acusa nenhum problema de comunicação entre eles. No quadrinho seguinte, vemos os mesmos personagens em posições semelhantes. O rosto de Zé Lelé demonstra agora um ar de seriedade. Diz querer apenas o chinelo. Entendemos a fala quando lemos o último quadro: pede apenas o chinelo pelo fato de já ter dedos. Em outras palavras: infere -se que ele não entendeu que chinelo e chinelo de dedos seriam o mesmo calçado. Mais: o chinelo de dedos já viria com os dedos. A fala final é a chave para entender o humor pretendido. Comprova que Zé Lelé tem mesmo comportamento diferente do que teria um falante comum na mesma situação. Não se espera que alguém vá

fazer referência a um chinelo de dedos que já venha com dedos. O rosto de Chico Bento, demonstrando surpresa, espanto, corrobora a leitura inesperada. Tal qual as piadas, temos uma narrativa cuja fala final apresenta uma estratégia lingüística responsável pelo efeito de humor. 3. A tira é uma piada? A análise dos exemplos, o da piada e o da tira, sugere muitas semelhanças entre as duas produções textuais e uma diferença. São narrativas, têm o humor como mote central e propõem ao final uma situação inesperadamente engraçada por meio de recursos lingüísticos. A diferença reside nos elementos visuais presentes na tira e ausentes na piada produzida na forma escrita. Fica então a pergunta: são gêneros com as mesmas propriedades estruturais? A tira é uma forma de piada? Santos (2002) não responde diretamente as duas questões, mas aponta alguns caminhos. O autor entende que a tira humorística, como convencionou chamar, contém uma piada diária. Fundamenta seu ponto de vista tomando como base trabalho de Morin (1973). Ela não chegou a trabalhar com quadrinhos. O objeto de sua pesquisa foram vários textos escritos, cujo tema era o humor. A tradução brasileira os chamou de historietas cômicas. De forma bem resumida, seu trabalho concluiu que tais produções apresentam um modo sério e um modo jocoso. A graça surgia quando ocorria a passagem de um modo para o outro, feita com a ajuda de um elemento disjuntor, uma palavra ou trecho específicos que possibilitavam a leitura cômica. Cagnin (1975) não cita os estudos de Morin, mas se aproxima muito deles. O autor defende que as histórias em quadrinhos de humor, entre elas as tiras, possuem três etapas narrativas: uma situação inicial, um elemento que irá alterar o curso da narrativa e uma disjunção, geradora do sentido engraçado. A disjunção causaria uma função narrativa anormal, responsável pelo desfecho surpreendente e pelo teor cômico. No caso específico de tiras que usam os recursos verbais e visuais, Cagnin entende que tanto a imagem como a palavra podem funcionar como disjuntores. Ele reproduz um exemplo de cada situação, com disjuntor ora verbal, ora visual. Embora correta e relevante, sua análise é mais ilustrativa e se limita aos dois exemplos. Estudos especificamente sobre piadas chegam a conclusões semelhantes. Gil (1991; 1998) define a piada como um texto tendencialmente curto, dialogal, que tem por objetivo provocar efeito de humor. O que tornaria o gênero sui generis é a presença de uma estrutura própria para provocar o efeito de humor. Para a autora, haveria um antecedente, que introduziria uma narrativa verossímil, e um conseqüente , a conclusão surpreendente da narrativa. A mudança de uma parte para outra seria feita por um elemento mediador, um trecho lingüístico que permitiria a leitura humorística. Em síntese: cria-se uma situação verossímil apenas para torná-la inverossímil ao final. Possenti (2000) reforça o aspecto lingüístico das piadas. Interessa saber como se chegou ao humor. O texto permitiria dois cenários possíveis. O incongruente e inesperado é o que provocaria o efeito cômico. Mecanismos lingüísticos de várias ordens (fonológico, morfológico, lexical, inferência, para citar alguns) explicariam as estratégias envolvidas no processo de produção do sentido. O autor ressalta ainda que o texto de humor imporia ao leitor uma leitura única. Não fosse assim, simplesmente não entenderia o chiste. Outro trabalho importante sobre piadas é o desenvolvido por Raskin. O autor entende que o humor seria resultado de uma série de etapas, bem resumidas por Possenti (op. cit.: 22). O texto, essencialmente chistoso, teria dois scripts compatíveis. A mudança de um script bona-fide para outro, não bona-fide, é o que causaria a graça. A passagem de um modo ao outro seria feita por um gatilho, explícito ou não. Apesar das teorias expostas aqui terem sido bem resumidas, é possível perceber pontos em comum. Todas entendem que a piada é um texto de humor e que possui um desfecho inesperado. Há coincidência também na estratégia usada para provocar a comicidade. Haveria passagem de uma leitura “séria” para outra, não séria. Um trecho específico, de ordem lingüística, seria o responsável pela passagem para o modo jocoso. As diferenças, a nosso ver, estão no percurso teórico feito por cada autor e nas nomenclaturas utilizadas, em especial quanto à chave que permite levar à leitura engraçada. Morin chama de elemento disjuntor. Cagnin simplifica para disjuntor, mas acrescenta que ocorreria dentro de uma função narrativa anormal. O autor ressalta ainda que em determinados casos também a imagem pode levar à leitura cômica. Gil prefere elemento mediador. Para Raskin, é gatilho. Possenti não usa um termo próprio, embora ressalte a importância dos mecanismos lingüísticos como os responsáveis pela interpretação incongruente. Há caminhos teóricos diferentes, abordagens equivalentes. Os dois exemplos vistos anteriormente poderiam ser facilmente explicados sob as luzes das teorias apresentadas aqui. No primeiro caso, o da piada, a última fala permitiu a passagem da leitura “séria” para a “não séria”. O elemento disjuntor, mediador ou gatilho estaria no trecho “Mas todos me chamam de Marlene”. Recupera-se, por meio de

mecanismos coesivos, que o nome da pessoa é Rodolfo e que ser chamado de Marlene é a saída encontrada para ter a vida poupada pelo ladrão. Tal leitura é possível por meio de inferências textuais. No caso da tira, ocorre outra inferência. “Chinelo de dedos” pode ser entendido como um calçado comum (leitura “séria”) ou como um chinelo que já vem com dedos (leitura inesperada). O que permite tais interpretações é a passagem “Dedos eu já tenho”, que funciona como disjuntor. Nos dois exemplos, a explicação para o efeito de humor se baseou em elementos lingüísticos, outra característica levantada pelos estudos abordados, em especial no de Possenti. Até este ponto, a única diferença entre quadrinhos e piadas reside no signo visual, presente nas tiras. 4. O humor verbal Nas piadas, parece não haver controvérsia quanto à importância de mecanismos verbais para a geração do humor. Este exemplo só reforça a tese:

Um caipira chega na cidade e vê um elevador pela primeira vez. Fica biservando e vê uma velha tomar o elevador. Daí a pouco, o elevador volta e desce uma gatinha. O matuto se entusiasma: - Puxa, sô! Priciso trazer a minha véia aqui!

Novamente, narrativa curta, característica já indicada por Gil (1991; 1998). Há narrador (primeira, segunda e terceira linhas), espaço definido (um local próximo a um elevador, numa cidade), personagens (um caipira e duas mulheres, uma velha e outra chamada de “gatinha”). O protagonista, o caipira, fala por intermédio de discurso direto (quarta linha). Há uma tentativa estilística de caracterizar o modo de falar do caipira: “sô”; “priciso”; “véia” (formado a partir de velha). O mesmo faz o narrador ao se referir a ele: “biservando”. Há uma maior quantidade de inferências, se comparado ao primeiro exemplo deste estudo. Infere-se que o lugar de onde o caipira vem não tem elevadores. Ele demonstra ao mesmo tempo um desconhecimento de seu funcionamento e uma curiosidade por aquela novidade. Outras duas informações são sugeridas pelo texto. A “mulher velha” não é atraente. O oposto ocorreria com a “gatinha”, gíria de “menina bonita” (Gurgel: 265), pessoa jovem do sexo feminino caracterizada pela beleza e pelos atributos físicos. Todas essas inferências são fundamentais para entender a história. O caipira não sabe como o elevador funciona. Vê uma mulher velha e não atraente entrar no elevador. Pode-se supor que ela desceu num dos andares e outra pessoa, a gatinha, tomou seu lugar. Ao abrirem as portas, uma nova mulher aparece. Não haveria nada de interessante não fosse o fato de o caipira fazer uma leitura peculiar do equipamento: entram mulheres velhas e pouco atraentes, saem pessoas do sexo feminino em situação oposta.Tal interpretação só é possível pela frase final (que faz a passagem do modo “sério” para o “não sério”), na qual o protagonista diz precisar trazer a sua “véia”, possivelmente sua esposa. Provavelmente, pretende torná-la atraente como a gatinha. Assim como na primeira piada analisada, um trecho da frase final, de ordem lingüística, é fundamental para entender o humor. E, mais uma vez, a narrativa oferece um desfecho inusitado, bem diferente da expectativa criada pela história. 5. O humor visual Na tira do personagem Chico Bento, analisada anteriormente, pudemos perceber que: 1) as tiras utilizam elementos verbais e visuais no processo de composição da narrativa; 2) no cas o do exemplo, o aspecto verbal foi a chave para a passagem de uma leitura convencional para outra, não convencional, fonte do humor. Podemos generalizar o fato de as tiras terem como elemento disjuntor, mediador ou gatilho um recurso verbal? Ou vale a análise de Cagnin, em que ora há disjuntores verbais, ora visuais? Vejamos mais um exemplo de Maurício de Sousa:

A leitura da superfície textual tem de ser feita levando em conta os elementos verbais e visuais. Visualmente, percebemos que há três personagens, três garotos. Um, menor que os demais, chora; outro carrega dois balões de gás: o terceiro olha com semblante assustado o menino que chora. O leitor com informações extra-textuais percebe que o terceiro personagem é Cebolinha, uma das mais famosas criações de Maurício de Sousa. No entanto, não ter essa informação não é essencial para depreender o humor. Infere-se visualmente que o motivo do choro é o fato de o garoto não ter um balão de gás. Leitura que ganha reforço com a fala do personagem “Eu quero um balão”. No segundo quadro, Cebolinha atende o pedido e dá a ele dois balões. A surpresa é que entrega não os balões de gás, mas os balões de fala, que representavam o discurso direto do personagem. O menino, com rosto feliz, parece conter a tristeza, apesar de ainda apresentar algumas lágrimas. O último quadrinho contém a chave da passagem para o modo “não sério”. A diferença, neste caso, é que o elemento mediador, disjuntor ou gatilho não está nos mecanismos lingüísticos, mas nos visuais, tal qual propõe Cagnin. A cena em que Cebolinha carrega os dois balões de fala, segurando-os pelas hastes, é o que leva ao modo cômico. A partir de então, o leitor infere que a palavra balão pode se referir tanto aos balões de gás mostrados no primeiro quadrinho como aos balões de fala, numa leitura metalingüística. Há outros casos assim:

Outra vez, o personagem Cebolinha. Em sua única fala (“Tá bem, mãe!”), percebemos que ele interage com sua mãe. Ela não aparece de forma explícita; percebemos que existe por meio da fala de um balão, no primeiro quadrinho (“Cebolinha, apague o abajur!”). É introduzida ao leitor por meio dos recursos verbais. Ao se referir ao filho como “Cebolinha”, ela o apresenta àqueles que não têm conhecimento prévio de quem é a figura com cabelos espetados. O desenrolar da história se restringe à leitura dos elementos visuais. No segundo quadrinho, ele vai em direção ao abajur, atendendo ao pedido da mãe. Está segurando na mão direita um objeto que, até este ponto da história, não sabemos o que é. No terceiro quadrinho, a resposta: trata-se de uma borracha, usada para apagar o tal abajur. A ação só termina no último quadrinho. Alguns pontos merecem menção. A disjunção ou elemento mediador ou gatilho é exclusivamente visual. Temos informações verbais que são fundamentais para explicar o texto, mas a chave do humor, que leva ao modo cômico, ancora-se na imagem. O desfecho é inesperado, mas não tem início no último quadro, e sim no penúltimo. O fim da narrativa serve apenas para corroborar o que se passa no quadrinho anterior. Ao leitor, é necessário assimilar que Cebolinha porta uma borracha e que, a partir dos dados visuais, depreender o jogo polissêmico feito com a palavra “apagar”: apagar com borracha / apagar ou desligar a luz do abajur. 6. Considerações finais

Procuramos mostrar neste artigo que as piadas e as tiras de humor têm muitos elementos em comum. São narrativas, tendencialmente curtas. Ambas se pautam no humor e possuem estratégias semelhantes para gerar o efeito cômico junto ao leitor, como mostrou a análise dos estudos de Gil, Santos, Cagnin, Morin, Possenti e Raskin. Partem de um modo “sério” e, em determinado momento, um elemento lingüístico possibilita a passagem para um modo jocoso, surpreendente, inesperado. A leitura incongruente, inferida ao final, garantiria uma interpretação engraçada. Tanto tiras como piadas têm elemento disjuntor, mediador ou gatilho inferidos a partir de recursos verbais (como bem ilustram as duas piadas analisadas e a primeira tira, do personagem Chico Bento). Com base nos exemplos trabalhados, pudemos perceber que há mais semelhanças do que diferenças entre os dois gêneros. O ponto não coincidente é o visual, parte integrante da linguagem das histórias em quadrinhos. As imagens ajudam no processo de condução da narrativa. Mostram o cenário, os personagens (embora não seja regra, como visto no caso da segunda tira, em que a mãe de Cebolinha era apresentada apenas com a ajuda da fala de um balão). As imagens também podem funcionar como chave para a passagem do modo “sério” de leitura para o modo “não sério”, como indicava Cagnin (para autor, tanto imagem como texto funcionariam como disjuntores). Os exemplos das duas últimas tiras, do personagem Cebolinha, ilustram bem esse ponto. Nesses casos, houve tendência ao uso de menos diálogos, apesar de não ser possível uma generalização. Para um posicionamento teórico mais consistente, é necessária uma análise mais aprofundada do assunto. Podemos perceber, no entanto, que há muitas coincidências entre as duas formas de produção textual. As piadas e as tiras de humor obedecem às mesmas estratégias e apresentam semelhantes características. A diferença é que as tiras dão um passo além. Por usarem o recurso visual, não se restringem às estratégias verbais para provocar o efeito de humor. A imagem também pode atuar como fonte da comicidade. Haveria um elemento disjuntor / mediador / gatilho visual. Em suma: as tiras são uma forma de piada? Com base do exposto aqui, tendemos a crer que sim. Entre os dois gêneros, parece ser possível uma aproximação. RESUMO: as tiras de humor são uma forma de piada? É a principal questão que esse artigo procura responder. O texto mostra exemplos que comprovam a existência de pontos em comum. Defendemos que: 1) os dois gêneros têm mais semelhanças que diferenças; 2) a tira funciona como uma piada. PALAVRAS-CHAVE: humor; piadas; tiras de humor; histórias em quadrinhos; texto REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CAGNIN, Antônio Luiz. Os quadrinhos. São Paulo: Ática, 1975. GIL, Célia Maria Carcagnolo. A linguagem da surpresa . 1991. 220f. Tese (doutorado em Letras Clássicas e

Vernáculas) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo.

_____. Elementos essenciais da piada. In: ANTUNES, Letizia Zini (org.). Estudos de literatura e lingüística. São Paulo: Arte & Ciência; Assis: UNESP, 1998. p. 295-319.

GURGEL, J. B. Serra e. Dicionário de Gíria – O equipamento lingüístico falado do brasileiro. 5 ed. Brasília: edição do autor, 1998.

MORIN, Violette. A historieta cômica. In: BARTHES, Roland et al. Análise estrutural da narrativa. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 1973.

POSSENTI, Sírio. Os humores da língua – Análises lingüísticas de piadas .Campinas: Mercado de Letras, 2000.

SANTOS, Roberto Elísio dos. Para reler os quadrinhos Disney: linguagem, evolução e análise de HQs. São Paulo: Paulinas, 2002.

SARRUMOR, Laerte. As melhores mil (e cem) piadas do Brasil. São Paulo: Nova Alexandria, 2003.