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Ana Maria Martins Ferreira A Responsabilidade Civil dos Gerentes e Administradores pelo pagamento das coimas e multas imputáveis à sociedade Ana Maria Martins Ferreira outubro de 2015 UMinho | 2015 A Responsabilidade Civil dos Gerentes e Administradores pelo pagamento das coimas e multas imputáveis à sociedade Universidade do Minho Escola de Direito

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  • Ana Maria Martins Ferreira

    A Responsabilidade Civil dos Gerentes eAdministradores pelo pagamento dascoimas e multas imputáveis à sociedade

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    soc

    ieda

    de

    Universidade do MinhoEscola de Direito

  • outubro de 2015

    Dissertação de MestradoMestrado em Direito dos Contratos e da Empresa

    Trabalho efectuado sob a orientação daProfessora Doutora Maria Miguel Carvalho

    Ana Maria Martins Ferreira

    A Responsabilidade Civil dos Gerentes eAdministradores pelo pagamento dascoimas e multas imputáveis à sociedade

    Universidade do MinhoEscola de Direito

  • iii

    Agradecimentos

    À minha mãe, à minha avó Glória e à Céu pelo apoio incondicional,

    Ao Hugo, pela motivação e inspiração sem a qual este trabalho não se tornaria possível.

    À minha orientadora Sra. Professora Doutora Maria Miguel Carvalho pela disponibilidade e apoio.

  • iv

  • v

    Resumo

    A Responsabilidade Civil dos Gerentes e Administradores pelo pagamento das coimas e

    multas imputáveis à sociedade

    Este trabalho procurará fundamentalmente caracterizar a responsabilidade civil dos

    administradores relativamente à falta de pagamento pela sociedade de multas e coimas, nas situações

    em que tais coimas e multas são devidas pela sociedade por atos ou omissões imputáveis aos

    administradores.

    Assim, numa primeira parte, procederemos à caracterização do regime da responsabilidade civil

    dos administradores no ordenamento jurídico português, através duma explanação sobre a origem e

    evolução do governo das sociedades e pela caracterização dos deveres consagrados no artigo 64.º do

    Código das Sociedades Comerciais aprovado pelo Decreto-Lei n.º 262/86, de 02 de Setembro.

    Seguidamente, teceremos algumas considerações acerca dos modelos históricos da responsabilidade

    civil dos administradores, incluindo sobre o atual modelo Português e ainda sobre a destrinça entre

    administrador de facto e de direito.

    Posto isto, propomo-nos clarificar e especificar, particularmente, a responsabilidade civil dos

    administradores para com os credores sociais, prevista no artigo 78.º do CSC.

    Feita uma breve análise sobre os traços gerais da responsabilidade civil dos administradores

    para com a sociedade, sócios e terceiros, debruçar-nos-emos sobre a responsabilidade civil dos

    administradores pelas coimas e multas imputáveis à sociedade nos casos em que aquelas são devidas

    pela sociedade por atos ou omissões atribuíveis aos administradores. Em especial, abordaremos o caso

    específico do artigo 8.º do RGIT, dado o seu carácter controverso junto dos tribunais portugueses.

    Concludentemente, pretendemos analisar a possibilidade dos credores sociais (enquanto

    entidades aplicadoras das coimas e multas) recorrerem ao regime geral do artigo 78.º do CSC para

    serem ressarcidos pelos administradores das coimas e multas imputáveis à sociedade (nas referidas

    situações em particular) quando não exista norma expressa que consagre tal responsabilidade, como é

    o caso particular do artigo 8.º do RGIT que aqui vamos tratar.

    Palavras - chave: responsabilidade civil dos administradores; deveres legais; deveres contratuais;

    coimas; multas.

  • vi

  • vii

    Abstract

    Civil Responsibility of Managers and Administrators for the payment of the fines and

    penalties of the company

    This paper attempt to characterize the responsibility of administrators in relation of non-payment

    of fines and penalties by the company, in situations where such fines and penalties are owed by the

    company because of administrator’s acts or omissions.

    In the first part, we will proceed to the characterization of the civil liability regime of the

    administrators in the Portuguese legal system, through an explanation of the origin and evolution of

    corporate governance, by the description of the duties enshrined in article 64 of Código das Sociedades

    Comerciais approved by DL No. 262/86 of 02 September. Then, we will weave some considerations

    about historical models of civil liability of administrators, including the current Portuguese civil liability

    model of management and also discuss the distinction between fact administrators and law

    administrators.

    After this, we specify particularly the civil liability of the administrators towards the company's

    creditors, as foreseen in article 78 of CSC.

    Made a brief analysis of the general features of civil liability of administrators towards the

    company, shareholders and third parties, we shall dwell on the civil liability of administrators for fines and

    penalties attributable to the company. In particular we will focuses in the civil liability of administrators

    for the payment of fines and tax penalties in the sphere of article 8 of RGIT because of the controversial

    on Portuguese courts.

    Finally, we intend to examine the possibility of the company's creditors (as fines and penalties

    applicators entities) go to the general regime of article 78 of CSC to be reimbursed by the administrators

    of fines and penalties attributable to the company, when there is no express rule that enshrines such

    responsibility, as in particularly case of article 8 of RGIT that we will develop.

    Keywords: Civil responsibility of administrators; Legal duties; Contractual duties; Fines; Penalties.

  • viii

  • ix

    Índice

    Agradecimentos .................................................................................................................................. iii

    Resumo ............................................................................................................................................... v

    Abstract ............................................................................................................................................. vii

    Índice ................................................................................................................................................. ix

    Lista de Abreviaturas .......................................................................................................................... xi

    Introdução ........................................................................................................................................ 13

    1. Âmbito da Responsabilidade Civil dos Administradores nas Sociedades Comerciais ....................... 15

    1.1. Origem e evolução do Governo das Sociedades ...................................................................... 15

    1.2. Os deveres dos Administradores consagrados no artigo 64.º do CSC ...................................... 21

    1.2.1. Os deveres legais, contratuais e estatutários ................................................................... 21

    1.2.2. O dever de Cuidado ........................................................................................................ 30

    1.2.3. O dever de Lealdade ....................................................................................................... 37

    1.3. Breves considerações acerca dos modelos históricos da responsabilidade civil dos

    administradores ............................................................................................................................ 41

    1.4. O modelo português de responsabilidade civil dos administradores ........................................ 43

    1.5. A Administração de Facto e de Direito .................................................................................... 47

    2. A Responsabilidade civil dos administradores para com os credores sociais, em especial .............. 51

    2.1. Breves notas sobre a responsabilidade dos administradores para com a sociedade, sócios e

    terceiros ....................................................................................................................................... 51

    2.2.O pressuposto da ilicitude ....................................................................................................... 62

    2.2.1.O pressuposto da insuficiência patrimonial ....................................................................... 65

    2.2.2. A ação sub-rogatória dos credores sociais ....................................................................... 68

    2.2.3. Aplicação do n.º 3 e as remissões do n.º 5 do artigo 78.º do CSC ................................... 70

    2.2.4. Traços caraterizadores da natureza da responsabilidade civil para com os credores sociais

    ................................................................................................................................................ 72

    2.2.5. A tentativa de recurso ao instituto da desconsideração da personalidade jurídica para

    pagamento de dívidas aos credores sociais ............................................................................... 73

    3. A responsabilidade civil dos administradores pelo pagamento das coimas e multas imputáveis à

    sociedade: nas situações em que são devidas pela sociedade por atos ou omissões imputáveis aos

    administradores................................................................................................................................ 79

  • x

    3.1. Aspetos relevantes da responsabilidade penal dos administradores ........................................ 79

    3.2. A coima e a multa no âmbito da responsabilidade civil dos administradores ........................... 82

    3.3. O pagamento pelos administradores das coimas e multas tributárias imputáveis à sociedade . 87

    3.3.1. Os tipos de infrações fiscais e os seus pressupostos ....................................................... 87

    3.3.2. A responsabilidade pelas infrações tributárias das pessoas singulares e coletiva .............. 89

    3.3.3. A responsabilidade dos administradores pelo pagamento das coimas e multas tributárias

    imputáveis à sociedade ............................................................................................................. 91

    Notas Conclusivas: ......................................................................................................................... 101

    Bibliografia ..................................................................................................................................... 107

    Jurisprudência ............................................................................................................................ 113

    Sites ........................................................................................................................................... 116

  • xi

    Lista de Abreviaturas

    Cfr - Conferir

    CC - Código Civil

    CRP - Constituição da República Portuguesa

    CSC - Código das Sociedades Comerciais

    CIRE - Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas

    CPC - Código de Processo Civil

    CRC - Código do Registo Comercial

    CVM - Código de Valores Mobiliários

    CMVM - Comissão de Mercado de Valores Mobiliários

    CP - Código Penal

    IPCG - Instituto Português de Corporate Governance

    LGT - Lei Geral Tributária

    OCDE - Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico

    RGIT - Regime Geral das Infrações Tributárias

    STA - Supremo Tribunal Administrativo

    STJ - Supremo Tribunal de Justiça

    TCAN - Tribunal Central Administrativo Norte

    TRC - Tribunal da Relação de Coimbra

    TRE – Tribunal da Relação de Évora

    TRG - Tribunal da Relação de Guimarães

    TRL - Tribunal da Relação de Lisboa

    TRP - Tribunal da Relação do Porto

    Ss - Seguintes

  • xii

  • 13

    Introdução

    A temática da responsabilidade civil dos administradores, não é uma questão de cariz recente,

    todavia assume-se hodiernamente cada vez mais importante e pertinente no panorama nacional e

    internacional.

    Com efeito, na sequência do avanço tecnológico, da globalização em que vivemos e da

    consequente concorrência empresarial no âmbito económico, muitos problemas têm sido suscitados,

    designadamente quanto à responsabilização dos administradores no âmbito da relação de

    administração.

    Nesse sentido, a realidade do governo das sociedades, que surgiu na década de 70, abrange

    temas relacionadas com a organização e composição do órgão administrativo e sobre a problemática

    dos deveres dos administradores e a sua responsabilização. Ora, em face de tais problemas, a matéria

    relativa à responsabilidade civil dos administradores tem sido forçosamente alterada em diversos

    ordenamentos jurídicos estrangeiros, mas também na ordem jurídica portuguesa.

    Como tal, a principal preocupação destes ordenamentos bem como do governo das sociedades

    resume-se ao aperfeiçoamento da matéria relativa à administração e ao controlo das sociedades

    comerciais. Motivo pelo qual diversos ordenamentos têm dado uma especial atenção ao conjunto de

    normas respeitantes ao controlo, à administração e fiscalização das sociedades comerciais, de forma a

    evitar e prevenir comportamentos prejudiciais por parte dos administradores.

    A responsabilidade civil dos administradores existirá sempre que, no âmbito da administração

    da sociedade, ocorra por parte daqueles, através da prática de atos ou omissões, uma violação dos

    deveres legais ou contratuais ou a inobservância culposa das disposições legais ou contratuais, conforme

    dispõem os artigos 72.º n.º1 e 78.º n.º 1 do CSC.

    Deste modo, e uma vez que é da violação daqueles deveres que resultará a responsabilidade

    civil do administrador e a respetiva obrigação de indemnizar, impõe-se uma abrangente concretização e

    explicitação dos deveres já consagrados, de modo a evitar comportamentos prejudiciais dos

    administradores para com a sociedade, sócios, terceiros e credores sociais.

    Esta concretização dos deveres dos administradores torna-se imperiosa, uma vez que permitirá

    na apreciação dos casos concretos junto dos tribunais a existência de uma menor subjetividade.

    Ainda assim, é necessário que exista uma célere e eficaz responsabilização dos administradores

    aquando da violação daqueles deveres, razão pela qual a legitimidade para interpor as ações de

  • 14

    responsabilização e as causas de exclusão da responsabilidade do administrador têm sido um ponto

    importante de análise no ordenamento jurídico português.

    De acordo com o supra exposto propõe-se realizar uma dissertação sobre a temática da

    responsabilidade civil dos administradores pelas coimas e multas imputáveis à sociedade, nas situações

    em que as estas são devidas pela sociedade por atos ou omissões dos administradores. O presente

    trabalho será abordado numa perspetiva nacional, não obstante fazer algumas remissões para

    ordenamentos jurídicos estrangeiros, os quais também influenciaram o ordenamento jurídico português.

    Destarte, procurar-se-á essencialmente caracterizar o regime da responsabilidade civil dos

    administradores no ordenamento jurídico português, analisando especialmente o artigo 78.º do CSC,

    relativo ao regime da responsabilidade dos administradores para com os credores sociais.

    Por último, proceder-se-á à análise da responsabilidade civil pelo pagamento das coimas e

    multas imputáveis à sociedade nas referidas situações em particular. Neste âmbito abordaremos o caso

    específico da responsabilidade dos administradores pelo pagamento das coimas e multas tributárias

    imputáveis à sociedade.

    De um modo geral, indagar-se-á sobre se, não existindo normas especiais que consagrem a

    responsabilidade civil dos administradores pelas coimas e multas imputáveis à sociedade (nas situações

    em que as estas são devidas pela sociedade por atos ou omissões dos administradores), como é o caso

    do artigo 8.º do RGIT, poderão os credores, enquanto entidades aplicadoras das coimas e das multas,

    recorrer ao regime regra do artigo 78.º do CSC.

  • 15

    1. Âmbito da Responsabilidade Civil dos Administradores nas Sociedades Comerciais

    1.1. Origem e evolução do Governo das Sociedades

    A título de introito, reveste-se do maior interesse mencionar que a matéria relativa à

    responsabilidade civil dos administradores1 tem sido alvo de diversas alterações legislativas em muitos

    ordenamentos jurídicos estrangeiros, designadamente pelo direito anglo-americano.

    Os mencionados ordenamentos têm dado uma particular atenção ao conjunto de normas

    respeitantes ao controlo, à administração e fiscalização das sociedades comerciais, de forma a evitar e

    prevenir determinados comportamentos lesivos por parte dos administradores.

    Nesta senda, a legislação relativa a esta matéria tem sofrido uma forte influência por parte do

    direito germânico, pelo direito societário anglo-saxónico e, em especial, pelo direito anglo-americano,

    onde surgiu na década de ‘702 a denominada “corporate governance3”, que na língua portuguesa tem

    sido designada por governo das sociedades.4 Ao invés, Coutinho de Abreu5 sugere uma designação

    diferente para a expressão inglesa “corporate governance”. Este autor utiliza a expressão “governação

    das sociedades” ao invés de governo das sociedades, uma vez que “(…) governo está mais conotado

    com poder político-executivo e, também por isso, menos receptivo do que “governação” para significar

    (a par de administração) o controlo societário”6.

    1 Utilizamos o termo administradores ao longo desta obra num sentido amplo, querendo por isso, referirmo-nos aos titulares do órgão de administração,

    designados de gerentes nas Sociedades por Quotas e de administradores no caso das Sociedades Anónimas (Cfr. artigos 252.º e 390.º do Código das

    Sociedades Comerciais, doravante CSC)

    2 Já no ano de 1932, Berle e Means, acerca da problemática do controlo e da fiscalização das sociedades comerciais, apresentaram a temática da divisão

    entre a administração e a propriedade da sociedade. Cfr. António Menezes CORDEIRO, Manual de Direito das Sociedades-Das Sociedades em Geral, Vol.

    I,2.ªEd., Coimbra, Almedina, 2007, p.844.

    3 Para Jorge Manuel Coutinho de ABREU a designada “governação das sociedades”, correspondente à expressão inglesa “corporate governance” e pode ser

    definida como o “ complexo das regras (legais, estatutárias, jurisprudenciais, deontológicas), instrumentos e questões respeitantes à administração e ao

    controlo (ou fiscalização) das sociedades”. Cfr. Jorge Manuel COUTINHO DE ABREU, Governação das Sociedades Comerciais, 2.ªEd, Coimbra, Almedina,

    2010, p.7. e Jorge Manuel Coutinho de ABREU, Corporate Governance em Portugal, in Instituto de Direito das Empresas e do Trabalho, Miscelâneas, n.º

    6,Coimbra: Almedina, 2010, p. 9.

    No Relatório de CADBURY (1992), foi apresentada uma outra definição da “corporate governance”. Como tal, é definida naquele relatório como “o sistema

    pelo qual as sociedades são administradas e controladas” – Cfr- António Menezes CORDEIRO, Direito das Sociedades I, Parte Geral, Almedina, 2011, 3ª

    Edição, p. 891.

    4 Designação empregada pela Comissão do Mercado de Valores Mobiliários em 2007 nas Recomendações da CMVM sobre o Governo das Sociedades

    Cotadas, disponível in www.cmvm.pt. 5 Cfr. Jorge Manuel Coutinho de ABREU, Governação das Sociedades Comerciais…cit., p. 7 e 8.

    6 Ibidem.

  • 16

    Este movimento de governo das sociedades surgiu nos Estados Unidos da América (doravante

    EUA), em virtude de diversos casos de escândalos financeiros, em que eram intervenientes algumas

    sociedades, designadamente, no âmbito do caso Watergate7.

    O caso Watergate ocorreu na década de 70 nos EUA, e consubstanciou um escândalo político,

    o qual revelou que algumas sociedades tinham custeado de forma ilegal a campanha eleitoral do

    presidente americano Richard Nixon, bem como subornado alguns membros de governos estrangeiros.8

    Assim, constatou-se que os sistemas de controlo e direção das sociedades comerciais

    demonstravam-se insuficientes e com diversas falhas.

    Por isso mesmo, foram encetadas diligências no sentido de elaborar normas de boas práticas

    de governação.

    Com efeito, a American Bar Association e a American Law Institute promoveram uma

    investigação e debate acerca desta problemática. Na sequência de tais debates resultaram textos e

    códigos, os quais incluíam normativos que estabeleciam e recomendavam boas práticas para a

    governação das sociedades9 comerciais.

    Ainda na senda desta problemática, e mais recentemente, assistiu-se nos EUA a outros

    escândalos financeiros, como o caso Enron10 e WorldCom11. Consequentemente, tornou-se imperioso dar

    uma resposta a essas crises empresariais.

    Surgiu por isso, o “Sarbanes-Oxley Act of 2002”, que tinha como principais objetivos controlar

    os comportamentos dos administradores que pudessem ser lesivos para as sociedades comerciais.

    Este movimento do governo das sociedades difundiu-se ainda por toda a Europa, tendo-se

    iniciado primeiramente no Reino Unido, em virtude também de determinados escândalos financeiros.12

    Em toda a Europa foram criados textos que incluíam normas para a boa prática do governo das

    sociedades comerciais, nomeadamente, o Relatório Cadbury, no Reino Unido, o designado Rapport

    Vienot , de 1995, em França, os Princípios de Governação das Sociedades Comerciais apresentados

    7vCfr. Jorge Manuel Coutinho de ABREU, Governação das Sociedades Comerciais…cit., p. 9 e 10.

    8 Ibidem.

    9 Para mais desenvolvimentos ver Guillermo Guerra MARTIN, El gobierno de las sociedades cotizadas estadounidenses: Su influencia en el movimento de

    reforma del derecho europeo, Aranzadi, Cizur Menor, 2003, p. 185 e ss.

    10 Ver para mais desenvolvimentos Faith Stevelman KAHN, Bombing markets, subverting the rule of law: Enron, financial fraud, and Semptember 11, 2001,

    TRL, 2002, p. 1603 e ss.

    11A Empresa Enron empresa norte-americana que tinha como objeto a distribuição de energia, foi objeto de investigações, tendo sido comprovado que a

    mencionada empresa tinha praticado fraude fiscal, ao adulterar a sua contabilidade, designadamente, no que respeita aos lucros e dívidas da empresa.

    12São exemplos, designadamente, o caso Maxwell e Polly PeckInternational. Referidos por Jorge Manuel COUTINHO DE ABREU Governação das Sociedades

    Comerciais…cit., p.11.

    https://pt.wikipedia.org/wiki/Richard_Nixonhttp://www.wook.pt/authors/detail/id/1037444

  • 17

    pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE)13/14 e ainda o Deutsche

    Corporate Governance Kodex, de 2002, na Alemanha15.

    Note-se ainda que Portugal não foi exceção, tendo também sido alvo de diversas influências dos

    Princípios da “Corporate Governance”.

    Assim, a Comissão de Mercado de Valores Mobiliários (CMVM)16, apresentou as designadas

    “Recomendações da CMVM sobre o governo das sociedades cotadas”, as quais continham disposições

    que incidiam sobre a temática da “corporate governance”. Estas recomendações deram origem a

    diversos regulamentos, que foram surgindo em virtude da crise económica instalada no País, que

    impunha uma revisão sobre a matéria do governo das sociedades17.

    Por outro lado, foi publicado em Portugal o “Livro Branco sobre Corporate Governance18”. Este

    livro foi preparado com o objetivo de dar conhecimento à sociedade da matéria da “Corporate

    Governance”, bem como para divulgar os desenvolvimentos que estariam a ocorrer sobre essa matéria

    e assim gerar um debate público sobre aquele tema.

    O Instituto Português de Corporate Governance (doravante IPCG) criou o Código de Governo das

    Sociedades do IPCG, aprovado em 2013, que consubstancia uma alternativa ao Código da CMVM.

    Conforme resulta do preâmbulo do Código de Governo das Sociedades do IPCG, este tem como

    principal objectivo “(…)constituir, antes de mais, um instrumento de promoção de boas práticas de

    governo societário, correspondendo ao apelo de empresas nacionais e de uma vasta comunidade de

    interessados nas matérias de corporate governance”19.

    Foram assim surgindo em toda a Europa diversos textos, em forma de códigos que incluíam

    normas para a boa prática do governo das sociedades comerciais.

    13Estes princípios foram publicados em 1994, tendo posteriormente sido revistos em 2004 e podem ser consultados no site da OCDE em www.oecd.org..

    14 Filipe Barreiros refere que estes princípios abarcavam determinadas áreas: “ - Implementação das regras de um regime eficaz de:

    - Direitos dos accionistas e principais funções dos detentores do capital;

    - Tratamento equitativo dos accionistas;

    - Papel das diferentes partes interessadas no governo das empresas;

    - Transparência e difusão de informação;

    - Responsabilidade dos administradores;”Cfr. Filipe BARREIROS, Responsabilidade Civil dos Administradores…, cit., p.132 a 138.

    15 António MENEZES CORDEIRO, Manual de Direito das Sociedades…, cit., p. 846.

    16 A CMVM tem como principal objetivo (…) supervisionar e regular os mercados de instrumentos financeiros, assim como os agentes que neles atuam,

    promovendo a proteção dos investidores.”- Cfr. Atribuições da CMVM in www.cmvm.pt.

    17 Relativamente a esta matéria encontra-se actualmente em vigor o Regulamento da CMVM n.º 4 /2013, o qual pode ser consultado no site www.cmvm.pt.

    18Este documento encontra-se disponível in www.cmvm.pt e embora não vinculativo, consubstancia um código de boas condutas para as sociedades

    comerciais. Teve, designadamente como objectivo contribuir para o desenvolvimento do tema supra referido, indicando por isso um conjunto de boas práticas

    que, se forem aplicadas pelas sociedades comerciais contribuirão para a eficácia dos mecanismos de administração e fiscalização das sociedades comerciais.

    19 Cfr. Código de Governo das Sociedades do IPCG disponível in www.cgov.pt.

    http://www.cmvm.pt/http://www.cmvm.pt/

  • 18

    Todavia, estes códigos, em regra criados por iniciativa privada, não são juridicamente

    vinculativos, apresentando antes um caracter recomendatório20.

    COUTINHO DE ABREU refere que21 “(…) os administradores (ou, mais latamente, os managers),

    sem controlo-fiscalização dos accionistas, detendo o “controlo” (-domínio) de facto da empresa social,

    são muitas vezes tentados a gerir em proveito próprio e podem manter-se em funções ainda quando

    administram ineficientemente a sociedade – problema (em linguagem económica ) dos custos de

    agência(…)”.

    Em face dessas atuações e de forma a impedir que as mesmas aconteçam, têm sido

    apresentadas algumas medidas como:

    - o reforço dos deveres dos administradores, bem como do mecanismo de efetivação da sua

    responsabilidade aquando da violação daqueles deveres;

    - “intervenção maior dos investidores institucionais, renovação funcional e estrutural do conselho

    de administração (competências não só de gestão mas também de supervisão do conselho, vários

    comités, designadamente de auditoria, de nomeações e de remunerações – compostos somente por

    administradores não executivos”22.

    Algumas medidas para a boa prática de governação das sociedades comerciais utilizadas nos

    EUA23 têm sido utilizadas no nosso ordenamento jurídico. Podemos assim indicar como exemplos de

    algumas dessas medidas, o fortalecimento dos deveres de lealdade e de cuidado, a responsabilidade

    dos administradores, o reforço do “papel fiscalizador dos administradores não executivos

    independentes”24 e a transparência das contas da sociedade.

    Por outro lado, FILIPE BARREIROS refere que, hodiernamente, se pretende que as regras

    relativas à Corporate Governance advenham de códigos de boa conduta, de princípios e até de

    recomendações para que assim as sociedades comerciais possam adotar essas condutas desenvolvendo

    20 Entendem alguns autores que tais códigos podem ser fonte de usos societários, não obstante apresentarem um caracter meramente recomendatório.

    Neste sentido ver Jorge Manuel Coutinho de ABREU, Governação das Sociedades Comerciais…cit., p. 13 e Klaus J. HOPT, Direzione dell`impresa, controlo

    e modernizzazione del diritto azionario : La relazione della Commissione governativa tedesca sulla corporate governance, trad., RS, 2003, p. 211 e ss.

    21 Cfr. Jorge Manuel Coutinho de ABREU, Governação das Sociedades Comerciais…cit., pp. 15 e 16.

    22 Ibidem.

    23 A realidade das sociedades comerciais é diferente na Europa Continental em relação aos EUA. Como tal, as sociedades cotadas existem em menor número,

    “(…) a propriedade accionária está muito mais concentrada, há na maioria das grandes sociedades accionistas controladores;”, “os investidores institucionais

    possuem percentagem de acções cotadas assaz menor do que no RU ou nos EUA.” Ver Jorge Manuel COUTINHO de ABREU, Governação das Sociedades

    Comerciais…cit., pp. 15 e 16.

    24 Ibidem.

  • 19

    a sua autorregulamentação societária25. Todavia, o certo é que, tais códigos apresentam um carácter

    meramente recomendatório.

    Nestes termos e como ensina COUTINHO DE ABREU “(…) a adesão formal das sociedades ao

    texto pode não ser mais do que pretexto para tudo continuar substancialmente na mesma(…)26”.

    Assim sendo, relativamente à problemática da governação das sociedades comerciais,

    nomeadamente, quanto à necessidade de aperfeiçoar a matéria relativa à administração e ao controlo

    das sociedades comerciais, tem entendido alguma doutrina27 que se devem convocar medidas legislativas

    e não legislativas.

    A questão que se coloca é saber quais os instrumentos a que devemos recorrer para melhorar

    a matéria da administração e do controlo das sociedades. Deverá, por isso, ser dada prevalência à

    liberdade negocial, ou seja, à autorregulamentação societária através dos códigos de boa conduta? Ou,

    ao invés “(…) tendo em conta as assimetrias de informação e de poder no mercado, a inexistência de

    negociação e de contrato em muitas situações, a projecção (também) externa da máquina societária –

    continuar a reconhecer o papel regulador imprescindível da legislação (imperativa, também)?”28

    Alguns autores, de que destacamos, entre nós, COUTINHO DE ABREU, sustentam que deverá

    ser seguida esta última opção.

    Contudo na regulamentação destas matérias não deverá ser excluído o recurso aos códigos de

    boa conduta e à autorregulação societária. Porquanto, pode suceder que um mesmo sector temático

    demande a liberdade estatutária e a lei imperativa.

    As matérias relativas à escolha do sistema orgânico de governação societário 29 deverá ser

    deixada à liberdade estatutária.

    25 Cfr. Filipe BARREIROS, Responsabilidade Civil dos Administradores…, cit., pp.132 a 138.

    26 Cfr. Jorge Manuel Coutinho de ABREU, Governação das Sociedades Comerciais…cit., p. 20.

    27 Com este entendimento ver Cfr. Jorge Manuel Coutinho de ABREU, Governação das Sociedades Comerciais…cit., p. 31.

    28 Ibidem.

    29 Fundamentalmente existem dois tipos de sistemas, ou seja, o sistema monístico e o sistema dualista. O sistema monístico caracteriza-se por ter apenas

    um órgão que detém tanto o controlo como administração da sociedade. Este sistema é característico dos países anglo-saxónicos. Diferentemente o sistema

    dualista carateriza-se por ter dois órgãos, um que detém o controlo da sociedade e outro que detém administração da sociedade. O n.º 1 do artigo 278.º do

    CSC prevê que:

    “ 1 - A administração e a fiscalização da sociedade podem ser estruturadas segundo uma de três modalidades:

    a) Conselho de administração e conselho fiscal;

    b) Conselho de administração, compreendendo uma comissão de auditoria, e revisor oficial de contas;

    c) Conselho de administração executivo, conselho geral e de supervisão e revisor oficial de contas.”

    Não obstante no nosso ordenamento jurídico se afirmar que se permite os dois sistemas acima mencionados previstos na alínea a) e na alínea c) do referido

    artigo, COUTINHO DE ABREU tem um entendimento diferente. Com efeito, para aquele autor o sistema previsto na alínea a) é dualista, porquanto prevê-se

  • 20

    Ao invés a matéria relativa aos deveres dos administradores, bem como a matéria relativa à

    responsabilidade dos administradores deverá ser legalmente imperativa.

    Assim sendo, o referido autor entende que “Depois de uma primeira etapa em que sobressaíram

    respostas mais éticas que jurídicas (os”códigos”), a problemática da governação societária vem

    concitando (…) a conjugação de reformas legislativas, códigos recomendatórios e auto-regulação”30.

    Ainda nesta senda, incumbe mencionar que a Corporate Governance teve uma grande influência

    no nosso ordenamento jurídico, especialmente, na alteração do Código das Sociedades comerciais pelo

    DL n.º 76-A, de 29 de Março. Este diploma veio introduzir modificações nos normativos referentes aos

    deveres dos administradores e à administração e fiscalização da sociedade, bem como nas estruturas

    dos órgãos de administração e fiscalização no caso das Sociedades Anónimas.

    E, relativamente à responsabilidade civil dos administradores, fruto dos Princípios da Corporate

    Governance, existiram também algumas mudanças. Destacam-se, por isso, as mais significativas que

    foram a inclusão da “business judgmente rule” no artigo 72.º do CSC31, mais concretamente no seu n.º

    2 e ainda a elaboração de uma nova redação para o artigo 64.º que consagra de uma forma mais explícita

    os deveres fundamentais dos administradoress, ou seja, o dever de lealdade e o dever de cuidado.

    A matéria relativa à “Corporate Governance” tornou-se, por isso, importante para a vida

    societária.

    Em suma, e de acordo com MENEZES CORDEIRO poderemos referir que a Corporate

    Governance engloba duas vertentes. Por um lado a administração e a fiscalização da sociedade, ou seja,

    a sua organização e por outro lado as normas relativas ao funcionamento da sociedade, isto é, as normas

    referentes aos direitos e deveres dos administradores bem como as normas alusivas à gestão e

    fiscalização da sociedade e ainda os deveres atinentes às relações públicas32.

    dois órgãos, pese embora seja diferente do sistema dualista acima caracterizado. Na alínea c) defende que não se está perante o sistema dualista porquanto

    se prevê não dois mas três órgãos.

    Em face deste entendimento aquele autor designa o sistema previsto na alínea a) do mencionado normativo como sistema tradicional uma vez que

    “corresponde à (única) estrutura organizatória da administração e fiscalização que até ao CSC há muito vigorava entre nós” . Relativamente ao sistema

    previsto na alínea c) COUTINHO DE ABREU designa este sistema como de tipo germânico. Ver obra citada na nota de rodapé 26, p.36. 30 Cfr. Jorge Manuel Coutinho de ABREU, Governação das Sociedades Comerciais…cit., p. 33. Para mais desenvolvimentos acerca do modelo dualista ver.

    Paulo CÂMARA, [et. al.], Código das Sociedades Comerciais e Governo das Sociedades, Coimbra, Almedina, 2008, p.110 e ss.

    31 Que infra melhor se explicará.

    32 António Menezes CORDEIRO, Manual de Direito das Sociedades-…, cit., p. 842.

  • 21

    1.2. Os deveres dos Administradores consagrados no artigo 64.º do CSC

    1.2.1. Os deveres legais, contratuais e estatutários

    Os deveres dos administradores são a génese para a análise do objeto de estudo da presente

    dissertação, uma vez que é da sua violação que eventualmente resultará a sua responsabilidade civil e

    a respetiva obrigação de indemnizar.33

    A responsabilidade civil dos administradores existirá sempre que, no âmbito da administração

    da sociedade, ocorra por parte daqueles através da prática de atos ou omissões uma “ (…) preterição

    dos deveres legais ou contratuais (…)” e “(…) da inobservância culposa das disposições legais ou

    contratuais(…)”, conforme dispõem os artigos 72.º n.º1 e 78.º n.º 1 do CSC, respetivamente34.

    Ora, como se pode constatar pelos normativos referidos, a responsabilidade civil dos

    administradores deriva tanto da preterição de deveres legais como estatutários e contratuais.

    Assim, é possível agrupar de um modo geral os deveres dos administradores em dois grandes grupos,

    por um lado os deveres legais e por outro os deveres estatutários ou contratuais.

    Os deveres contratuais ou estatutários são todos aqueles deveres que resultam dos estatutos,

    das deliberações sociais e de contratos de administração.

    Como se mencionou, o n.º 1 do artigo 72.º do CSC consagra a expressão legal “deveres legais

    ou contratuais”.

    Em face desta terminologia poderemos concluir que estão aqui incluídos os deveres estatutários?

    Ou, ao invés, serão estes reconduzidos aos deveres contratuais?

    Primeiramente, apraz aludir que ao longo do CSC são feitas várias menções ao termo contrato35,

    nomeadamente, no artigo 9.º do CSC. Este dispositivo prevê um conjunto de menções que devem constar

    obrigatoriamente do contrato de sociedade, para a generalidade das sociedades.

    A constituição das sociedades não é feita somente através da celebração de um contrato, não

    obstante esta forma de constituição ser a regra 36.

    33 Conforme dispõe o artigo 72.º do CSC.

    34 Cfr. João LIMA, “A responsabilidade dos administradores de sociedades por quotas: análise ao Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 19 de Fevereiro

    de 2013”, in: Revista de Direito das Sociedades, Ano V, número 4, 2013, p. 862.

    35 Ver designadamente artigo 15.º n.º 1, 16.º n.º 1, 18.º n.º 1 e n.º 5 e artigo 19.º todos do CSC.

    36 Cfr. Jorge Manuel Coutinho de ABREU, Curso de Direito Comercial, Vol. II, 5.ªEd., Coimbra, Almedina, 2015, p. 90 e ss. Contudo as sociedades podem

    também ser constituídas por lei ou decreto-lei e aí o ato constituinte da sociedade é o ato legislativo. Podem ainda ser constituídas sociedades, no âmbito

    de processos de insolvência, resultantes do mecanismo previsto pelo artigo 199.º do CIRE. Neste caso o ato constituinte da sociedade reconduz-se na

    sentença homologatória do plano de insolvência conforme prevê a alínea a) do n.º 3 do artigo 217.º do CIRE.

  • 22

    Deste modo e uma vez que a sociedade nem sempre é constituída através de contrato,

    COUTINHO DE ABREU entende que se deve falar de ato constituinte, quando nos queremos referir ao

    ato que serviu de base à constituição da sociedade.

    A Lei de 22 de Junho de 1867 foi a primeira a regular, em Portugal, as sociedades anónimas, e

    já nessa lei, especialmente no artigo 4.º e seguintes se fazia alusão aos estatutos.

    Com as recentes alterações ao CSC pelo Decreto-Lei n.º 76-A/2006, aquele diploma passou a

    prever também a terminologia estatutos como sinónimo de contrato social ou até de ato constituinte.37

    Assim sendo, quando a lei faz menção expressa, especialmente, no artigo 72.º e 78.º do CSC a

    deveres legais ou contratuais cremos, e de acordo com o mencionado, que o legislador quis abranger

    tanto os deveres que resultam dos estatutos da sociedade como dos contratos de sociedade.38

    Os estatutos das sociedades comerciais podem assim impor e prever deveres que os

    administradores têm que cumprir no âmbito da administração da sociedade.

    Todavia, os estatutos não podem afastar normas legais imperativas.

    Refira-se, por isso, a título de exemplo que as normas reguladoras das sociedades anónimas

    têm natureza maioritariamente imperativa, motivo pelo qual não poderão ser afastadas pelos estatutos

    da sociedade.

    Os administradores têm ainda o dever de cumprir, o que resultar das deliberações dos sócios39

    tomadas em assembleia geral ou não, conforme dispõe o artigos 259.º do CSC para as sociedades por

    quotas. Quanto às sociedades anónimas os administradores apenas devem subordinação às

    deliberações dos acionistas nas situações em que a lei ou o contrato o determinarem conforme prevê o

    n.º 1 do artigo 405.º do referido diploma legal.

    A título de exemplo, podemos referir que os administradores têm que cumprir a deliberação

    sobre a propositura de uma ação social de responsabilidade nos termos do artigo 75.º do CSC.

    MENEZES CORDEIRO refere ainda que os administradores se encontram impedidos de executar

    deliberações dos sócios no caso em que aquelas ultrapassem o objeto social, conforme prescreve a parte

    final do n.º 4 do artigo 6.º do CSC, ou seja, “As cláusulas contratuais e as deliberações sociais que fixem

    à sociedade determinado objecto ou proíbam a prática de certos actos não limitam a capacidade da

    37 Cfr. Nomeadamente os artigos 288.º n.º 4, 377.º, n.º 5 alínea f) e artigo 413.º todos do CSC.

    38 Cfr. Ricardo COSTA e Gabriela Figueiredo DIAS, “Deveres Fundamentais” in Código das Sociedades em comentário, (coord. Coutinho de Abreu), Instituto

    de Direito das Empresas e do Trabalho, Códigos n.º 1,Coimbra, Almedina, Vol. I, 2013, pp. 729 e 730.

    39 Cfr. Artigos 53.º e ss. do CSC.

  • 23

    sociedade, mas constituem os órgãos da sociedade no dever de não excederem esse objecto ou de não

    praticarem esses actos”.

    Não obstante, as deliberações tomadas em assembleia consubstanciarem uma fonte dos

    deveres dos administradores, o certo é que, estes deveres tem como fundamento os estatutos, como

    podemos confirmar pelo prescrito nos artigos 259.º e 405.º n.º 1, ambos do CSC.

    No âmbito dos deveres estatutários e contratuais, existe controvérsia quanto à natureza da

    relação jurídica existente entre a sociedade e os administradores40. Não obstante a doutrina ter de um

    modo geral procurado reconduzir a situação jurídica a um contrato41.

    Todavia, os denominados “contratos de administração”, são também uma fonte de deveres dos

    administradores, deles derivando deveres contratuais.

    Nesse seguimento, celebrado um contrato entre a sociedade e o administrador podem nele ser

    incluídos deveres específicos, designadamente, o dever de estar diariamente presente na sede da

    sociedade um número mínimo de horas42.

    Diga-se, por último, que os deveres resultantes das fontes supra referidas não podem afastar as

    normas legais imperativas que consagrem deveres legais.

    Ora, incumbe agora tecer algumas considerações acerca dos deveres legais. Estes deveres são

    todos aqueles que resultam imediatamente da lei, como por exemplo do CSC, ou até de legislação avulsa.

    Conforme se referiu supra, existe uma fragmentação dos deveres legais ao longo do CSC, bem

    como em legislação avulsa, alterando-se tais deveres consoante o tipo de sociedade comercial.

    Podemos subdividir os deveres legais em dois grandes grupos consoante o seu conteúdo, ou

    seja, em deveres legais de conteúdo específico e de conteúdo genérico.

    40 A relação jurídica que se estabelece entre o administrador e a sociedade não foi sempre entendida como de natureza contratual, motivo pelo qual têm

    existido alguma controvérsia. Porém, para alguns autores como seja FILIPE BARREIROS, a natureza desta relação é contratual uma vez que é a própria lei a

    confirmar tal natureza, nos artigos 72.º n.º1 e 78.º n.º 1 do CSC. Com efeito, aqueles normativos prescrevem a responsabilidade civil dos administradores

    existirá sempre que, no âmbito da administração da sociedade, ocorra por parte daqueles através da prática de atos ou omissões uma “(…) preterição dos

    deveres legais ou contratuais(…)”e “(…) inobservância culposa das disposições legais ou contratuais.

    Para mais desenvolvimentos acerca da natureza jurídica da relação de administração Ver Jorge Manuel Coutinho de ABREU, Governação das Sociedades

    Comerciais…cit., p. 73 e ss, Raúl VENTURA, Novos Estudos sobre Sociedades Anónimas e sociedades em nome colectivo – Comentário ao Código das

    Sociedades Comerciais, Coimbra, Almedina, 2003 e António Menezes CORDEIRO, Manual de Direito das Sociedades: Das Sociedades em Geral, Vol. I, 2.ªEd.

    Coimbra, Almedina, 2007, p.857 e ss.

    41 Neste sentido ver A. Ferrer CORREIA, Lições de Direito Comercial, LEX, 1994, p. 227 e ss. Em sentido oposto ver António Menezes CORDEIRO, Manual de

    Direito das Sociedades-Das Sociedades em Geral”, Vol. I, 2.ªEdição, Coimbra, Almedina, 2007, o qual refuta o contratualismo puro no âmbito da natureza

    jurídica da relação de administração

    42 Ibidem.

  • 24

    Nesse sentido, os primeiros encontram o seu conteúdo especificadamente determinado na lei

    (por exemplo o dever de requerer a insolvência da sociedade nos termos do disposto no artigo 18.º e

    19.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, o dever de não praticar atos que

    consubstanciem o preenchimento dos crimes não societários, especialmente os previstos pelos artigos

    227.º, 227-A, 228.º e 229.º do Código Penal, os deveres prescritos no artigo 6.º n.º 4 do CSC, quanto

    ao dever de os administradores não praticarem atos que ultrapassem o objeto social da sociedade, o

    previsto no 65.º do CSC relativamente ao dever de apresentar e elaborar as contas do exercício anual da

    sociedade, bem como o dever de prestar informações aos sócios no caso das sociedades por quotas,

    conforme dispõe o artigo 214.º do CSC e aos administradores no caso das sociedades anónimas

    conforme prevê o artigo 288.º a 291.º do mesmo diploma legal)43.

    Nestes casos, os administradores estão vinculados à prática ou omissão de uma conduta, no

    âmbito da relação de administração, não dispondo por isso de qualquer discricionariedade na sua

    atuação.

    Para além destes, existem ainda os deveres legais de conteúdo genérico.

    Estes deveres têm sido objeto de alguma controvérsia, uma vez que dada amplitude dos seus

    conceitos é difícil a sua concretização, ocorrendo por isso diversas interpretações subjetivas.44

    Relativamente a estes deveres podemos destacar os deveres fundamentais dos administradores

    consagrados no n.º1 do artigo 64.º do CSC, os quais serão objeto de um estudo aprofundado, como

    procuraremos fazer infra.

    Aos administradores incumbe administrar e representar a sociedade, pelo que desse modo estão

    providos dos designados poderes-deveres.

    Para A. SANTOS JUSTO estes poderes-deveres “ São direitos acompanhados de deveres: o seu

    titular não é livre de exercer as inerentes faculdades ou poderes; é também obrigado actuar, porque em

    causa estão interesses que não são apenas seus”45.

    Por conseguinte, no âmbito da administração e representação da sociedade devem os

    administradores atuar no interesse da sociedade.

    43 Cfr. Filipe BARREIROS, Responsabilidade Civil dos Administradores: Deveres Gerais e a Corporate Governance, Coimbra, Coimbra Editora, 2011, pp. 74 e

    75.

    44 Idem p. 36 e ss.

    45 Cfr. A. Santos JUSTO, Introdução ao Estudo do Direito, 6.ªEd, Coimbra, Coimbra Editora, 2012, p.53.

  • 25

    No exercício das suas funções os administradores são confrontados com situações muito

    diferentes, motivo pelo qual a doutrina46 considera que consagrar um catálogo de deveres legais fechado

    não seria indicado.

    Os deveres legais de conteúdo genérico por contraposição aos deveres de conteúdo específico,

    são deveres que não comportam um conteúdo delimitado na lei, funcionando antes como diretrizes na

    atuação dos administradores. Motivo pelo qual a apreciação do seu cumprimento ou incumprimento por

    parte daqueles deve ser aferido de acordo com as circunstâncias do caso concreto, conforme se

    mencionará melhor infra.

    Estes deveres, de criação jurisprudencial, foram tendo consagração nalgumas leis estaduais

    relativas às sociedades comerciais, nomeadamente, nos Estados Unidos da América. Por influência do

    direito anglo-saxónico e dos Princípios de Corporate Governance, foram também tendo a sua

    consagração no direito romano-germânico, especialmente na Lei Alemã (no n.º 1 do § 84 da Aktiengesetz

    de 1937 e actualmente, n.º 1 do § 93 da "Aktiengesetz vom 6. September 1965 (BGBl. I S. 1089), das

    durch Artikel 198 der Verordnung vom 31. August 2015 (BGBl. I S. 1474) geändert worden ist", onde é

    mencionado que: “Die Vorstandsmitglieder haben bei ihrer Geschäftsführung die

    Sorgfalteinesordentlichen und gewissenhaften Geschäftsleiters anzuwenden. Eine Pflichtverletzung liegt

    nicht vor, wenn das Vorstandsmitglied bei einer unternehmerischen Entscheidung vernünftigerweise

    annehmen durfte, auf der Grundlage angemessener Information zum Wohle der Gesellschaft zu handeln.

    Übervertrauliche Angaben und Geheimnisse der Gesellschaft, namentlich Betriebs- oder

    Geschäftsgeheimnisse, die den Vorstandsmitgliedern durch ihre Tätigkeit im Vorstand bekannt geworden

    sind, haben sie Stillschweigen zu bewahren. Die Pflicht des Satzes 3 gilt nicht gegen übereiner nach §

    342b des Handelsgesetzbuchsanerkannten Prüfstelleim Rahmen einer von dieser durchgeführten

    Prüfung”47.

    De acordo com a primeira parte daquele preceito legal os administradores no exercício da sua

    atividade de gestão e representação têm de ter uma atuação diligente e prudente, atuando assim como

    um administrador criterioso e consciencioso.

    No direito anglo-americano o instituto da responsabilidade civil dos administradores

    consubstancia o melhor mecanismo de controlo daqueles. Têm, por isso, centralizado a regulamentação

    46 Designadamente Filipe BARREIROS, Responsabilidade Civil dos Administradores: Deveres Gerais e a Corporate Governance , cit., p. 37. 47 Cfr. “Aktiengesetz”, disponível in http://www.gesetze-im-internet.de

  • 26

    da responsabilidade dos administradores através da concretização e definição dos seus deveres gerais,

    designados nos Estados Unidos como “fiduciary duties”48.

    Como tal, nos Estados Unidos, os administradores são encarados como “fiduciaries”, estando

    no exercício da administração e representação da sociedade vinculados aos designados “fiduciary

    duties”, os quais surgiram por criação jurisprudencial.

    A influência que o direito anglo-americano teve nos ordenamentos jurídicos mundiais generalizou

    a investigação destes deveres gerais de conteúdo genérico em dois grandes deveres, o duty of care e o

    duty of loyalty.

    No direito anglo-americano os administradores no exercício das suas funções de representação

    e administração da sociedade devem assumir com a sociedade condutas rigorosas e de confiança.

    FILIPE BARREIROS entende que se pode qualificar como fiduciário “Aquele que exerce uma função de

    confiança, que depende dessa confiança e exige fidelidade e confiança”49.

    O primeiro daqueles direitos, o duty of care, é entendido como o“ (…) dever que os

    administradores têm de cumprirem com cuidado e diligência as obrigações derivadas das suas

    funções”50.

    Para FILIPE BARREIROS, este dever “ (…) deriva no fundo, da regra moral que impõe a todo

    aquele que assume uma função que comporta um risco de potencial provocação de danos a obrigação

    moral de cumprir o seu dever com diligência”51.

    Ao invés, o “duty of loyalty” significa que os administradores no exercício de representação e

    administração da sociedade, devem atuar no interesse da sociedade, bem como dos sócios ou acionistas,

    prevalecendo este interesse sobre os interesses de índole pessoal.

    Acresce ainda que, nos Estados Unidos, foi por criação jurisprudencial e com base no “duty of

    care”, consagrada, no âmbito da responsabilidade civil dos administradores, a regra da business

    judgment rule, prevista também no nosso CSC no artigo 72.º n.º 2. Esta regra prevê que: “ A

    responsabilidade é excluída se alguma das pessoas referidas no número anterior provar que actuou em

    termos informados, livre de qualquer interesse pessoal e segundo critérios de racionalidade empresarial”.

    48 Cfr. Filipe BARREIROS, Responsabilidade Civil dos Administradores: Deveres Gerais e a Corporate Governance, cit., pp. 38 e 39.

    49 Cfr. Filipe BARREIROS, Responsabilidade Civil dos Administradores: os Deveres Gerais e a Corporate Governance, cit., p. 39.

    50 Idem p. 41.

    51 Ibidem.

  • 27

    Sucede que, no direito norte-americano esta regra não é aplicável nos casos em que exista a

    preterição por parte dos administradores do dever de lealdade, pelo que nestas situações nos tribunais

    “(…) é sindicado o mérito da decisão de uma forma mais exaustiva52”.

    O objetivo da business judgment rule é, por isso, delimitar a responsabilidade civil dos

    administradores, eximindo-os, em determinadas situações, de uma eventual responsabilidade civil, não

    obstante a sua atuação ter produzido consequências negativas para a sociedade.

    Ora, o principal dever imposto aos administradores no âmbito da relação de administração é o dever de

    administrar e representar a sociedade, conforme se pode constatar pelo previsto, especialmente, nos

    artigos 192.º n.º 1, 252.º n.º 1, 405.º e artigo 431.º, todos do CSC53.

    Este dever de conteúdo genérico “(…) apenas encontra densidade, pela sua indeterminação e

    amplitude, com a identificação de deveres gerais de conduta, indeterminados e fiduciários, que, ainda

    sem conteúdo específico, concretizam o dever típico nas escolhas de gestão e asseguram a sua

    realização no modo de empreender a gestão”54.

    São por isso, dois deveres, previstos nas alíneas a) e b) do artigo 64.º do CSC.

    Dispõe o artigo 64.º do CSC, sob a epígrafe “Deveres Fundamentais” que:

    “1 - Os gerentes ou administradores da sociedade devem observar:

    a) Deveres de cuidado, revelando a disponibilidade, a competência técnica e o conhecimento da

    actividade da sociedade adequados às suas funções e empregando nesse âmbito a diligência de um

    gestor criterioso e ordenado; e

    b) Deveres de lealdade, no interesse da sociedade, atendendo aos interesses de longo prazo dos

    sócios e ponderando os interesses dos outros sujeitos relevantes para a sustentabilidade da sociedade,

    tais como os seus trabalhadores, clientes e credores.

    2 - Os titulares de órgãos sociais com funções de fiscalização devem observar deveres de

    cuidado, empregando para o efeito elevados padrões de diligência profissional e deveres de lealdade, no

    interesse da sociedade”.

    52Ibidem.

    53 Cfr. Mafalda dos Santos MONDIM, “O dever de Lealdade dos Administradores e o Desvio de Oportunidades de Negócio Societárias”, in: Questões de tutela

    de Credores e de Sócios das Sociedades Comerciais, Coimbra: Almedina, 2013, p.71.

    54 Cfr Ricardo COSTA e Gabriela Figueiredo DIAS, “Deveres Fundamentais” , cit., pp. 729 a 730.

  • 28

    Estes deveres têm sido objeto de estudo e alteração em virtude dos Princípios da Corporate

    Governance, uma vez que são o ponto de partida fulcral para aferir a responsabilidade civil dos

    administradores55.

    A origem deste preceito remonta ao ano de 1969, quando, no capítulo referente à

    responsabilidade civil dos administradores, no n.º 1, do artigo 17.° do Decreto-Lei n.° 49 381, de 15 de

    Novembro de 1969, foi consagrado que “Os administradores da sociedade são obrigados a empregar a

    diligência de um gestor criterioso e ordenado”.

    MENEZES CORDEIRO explica que esta regra foi inspirada na Lei Alemã no n.º 1 do § 93 da

    Aktiengesetz de 1965, tendo sido acolhida no artigo 64.° na versão anterior à alteração introduzida pelo

    Decreto – Lei 76-A/2006, de 29 de Março, sob a epígrafe “Dever de diligência”.

    A norma em análise já sofreu diversas alterações. No Decreto-Lei n.º 262/86, de 02 de

    Setembro, que aprovou o CSC já se previa no artigo 64.º que “Os gerentes, administradores ou directores

    de uma sociedade devem actuar com a diligência de um gestor criterioso e ordenado, no interesse da

    sociedade, tendo em conta os interesses dos accionistas e dos trabalhadores.”

    Posteriormente aquela norma foi alterada pelo Decreto-Lei n.º 280/87, de 08 de Julho, passando

    a constar que, “Os gerentes, administradores ou directores de uma sociedade devem actuar com a

    diligência de um gestor criterioso e ordenado, no interesse da sociedade, tendo em conta os interesses

    dos sócios e dos trabalhadores.”

    Sucede que, este normativo permitia interpretações muito diferentes no âmbito da

    responsabilidade civil dos administradores, bem como relativamente à concretização do interesse social.

    Em face desta problemática foram articulados em alíneas separadas o dever de cuidado e o dever de

    lealdade, explicitando-se naquelas alíneas, de uma forma mais clara, o conteúdo dos referidos deveres.

    O dever previsto no anterior artigo 64.º do CSC, ou seja, o dever de diligência de um gestor

    criterioso e ordenado deu origem, na nova redação, a uma diferenciação entre o dever de cuidado e o

    dever de lealdade.

    55Estes deveres foram já abordados pelos Princípios da OCDE sob o Governo das Sociedades em 2004, pese embora não de um modo concretizado, conforme

    agora se encontram previstos no artigo 64.º do CSC. Estes princípios tornaram-se uma referência internacional para as Sociedades Comerciais, pelo que já

    previam que “Os membros do órgão de administração devem agir com base em informações completas, de boa-fé, com a devida diligência e cuidado e no

    melhor interesse da empresa e dos seus accionistas.” – Cfr. “Os Princípios da OCDE sobre o Governo das Sociedades – 2004”, disponíveis in /www.oecd.org.

    http://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=524&tabela=leis&ficha=1&pagina=1&so_miolo=

  • 29

    Ora, para CARNEIRO DA FRADA, de acordo com a primeira versão daquele dispositivo legal, o

    dever de diligência do gestor criterioso e ordenado consubstanciava o “(…) o principal elemento

    caracterizador dos deveres que sobre ele impendiam, e, com ele, o principal padrão de aferição da

    licitude/ilicitude da conduta do administrador, ao passo que agora esse papel é atribuído aos deveres de

    cuidado e de lealdade. A diligência descrevia portanto deveres: permitia, nessa medida, a formulação

    autónoma, em torno dela, de um juízo de desconformidade da conduta dos administradores para efeito

    de responsabilidade. O art. 64 não era, de acordo com este entendimento, uma simples norma

    definitório-descritiva ou de enquadramento formal-sistemático: tinha conteúdo normativo próprio. Embora

    fosse uma proposição incompleta, já que não tinha acoplada qualquer sanção para a violação dos

    deveres do administrador” 56.

    Por outro lado, esta norma fornecia ainda o critério geral para aferir da culpa do administrador

    relativamente ao seu comportamento, “(…) imputando censura ou reprovação á possibilidade de poder

    ter actuado de maneira diferente, de acordo, com as circunstâncias concretas e em função desse critério

    mais exigente do «gestor criterioso e ordenado»57.

    Nestes casos de responsabilidade dos administradores o critério a utilizar é o do «gestor

    criterioso e ordenado», ao invés do critério utilizado no âmbito da responsabilidade civil, que é o da

    «diligência de um bom pai de família».

    Desse modo, e conforme se demonstrará, este artigo tem uma dupla função, na medida em que

    é através dele que se afere da ilicitude e culpa do administrador, no âmbito da sua responsabilidade civil.

    O artigo 64.º do CSC prevê assim os critérios gerais de atuação dos administradores.

    Por outro lado, o ordenamento jurídico português, acolheu no n.º 2 deste dispositivo uma regra

    de tendência anglo-saxónica.

    Assim o n.º 2 do artigo 64.º do CSC alarga de forma expressa o cumprimento do dever de

    lealdade e de cuidado aos órgãos de fiscalização.58

    Prevê-se para os titulares de órgãos sociais com funções de fiscalização um dever de cuidado, o

    qual tem que ser cumprido empregando para o efeito elevados padrões de diligência profissional e um

    56 Cfr. Manuel A. Carneiro da FRADA, “ A business judgment rule no quadro dos deveres gerais dos administradores” in: Nos 20 anos do Código das

    Sociedades Comerciais: Homenagem aos Profs. Doutor A. Ferrer Correia, Orlando de Carvalho e Vasco Lobo Xavier, Vol. III, Coimbra, Coimbra Editora, 2011,

    p. 39.

    57 Ibidem. 58 Paulo, CÂMARA, “O Governo das Sociedades e a Reforma do Código das Sociedades Comerciais”, in: Código das Sociedades Comerciais e Governo das

    Sociedades, Coimbra, Almedina, 2008, p.43.

  • 30

    dever de lealdade, que deve ser cumprido no interesse da sociedade, bem como um regime de

    responsabilidade.

    A consagração destes deveres para os referidos titulares veio permitir uma maior materialização

    da natureza ilícita de alguns comportamentos no âmbito da sua atividade.59

    Apraz ainda mencionar que, os deveres de cuidado e lealdade dos titulares de órgãos de

    fiscalização não foram objeto de separação, contrariamente aos deveres dos administradores previstos

    no artigo 64.º nº 1 do CSC.

    Da leitura do n.º 2 do referido preceito legal parece que os deveres de lealdade se encontram

    subjugados aos deveres de cuidado, uma vez que este dispositivo prevê que o cumprimento dos

    primeiros pressupõe elevados padrões de diligência profissional e deveres de lealdade.

    Todavia para RICARDO COSTA e GABRIELA F. DIAS60 tal interpretação não é correta.

    O n.º 2 do artigo 64.º do CSC deve ser interpretado e conjugado com o disposto nas alíneas a)

    e b) do mesmo artigo, assim, o dever de lealdade não deve ser entendido como um dever subalternizado

    ao dever de cuidado.

    Tanto que, não existe qualquer critério que aponte para uma hierarquização entre estes deveres,

    motivo pelo qual estão os deveres de cuidado e de lealdade dos titulares dos órgãos de fiscalização em

    regime de paridade.

    Refira-se, por último, que a violação dos deveres de cuidado e de lealdade é causa de destituição

    com justa causa dos administradores.61

    1.2.2. O dever de Cuidado

    Após as considerações tecidas apraz referir que a alínea a) do n.º 1 do artigo 64.º do CSC

    consagra o dever fundamental de cuidado, ou seja, os administradores devem respeitar no exercício das

    suas funções: “(…) Deveres de cuidado, revelando a disponibilidade, a competência técnica e o

    conhecimento da actividade da sociedade adequados às suas funções e empregando nesse âmbito a

    diligência de um gestor criterioso e ordenado (…)”.

    RICARDO COSTA e GABRIELA F. DIAS definem este dever como a (…) obrigação de os

    administradores cumprirem com diligência as obrigações derivadas do seu oficio-função, de acordo com

    59 Para mais desenvolvimentos ver. Ricardo COSTA e Gabriela Figueiredo DIAS, “Deveres Fundamentais” p. 751 e ss.

    60 Ibidem.

    61 Cfr. Artigos 257.º n.º 6, 403.º n.º 4 e 430.º n.º 2 do CSC.

  • 31

    o máximo interesse da sociedade e com o cuidado que se espera de uma pessoa medianamente

    prudente em circunstâncias e situações similares.”62

    Após a análise do preceito legal pudemos constatar que, no cumprimento deste dever, o

    legislador obriga os administradores a revelarem:

    - disponibilidade;

    - competência técnica; e

    - conhecimento da atividade da sociedade.

    Repare-se, todavia, que estas características a que a lei adstringe os administradores são

    aferidas por um padrão de diligência de um gestor criterioso e ordenado conforme estabelecido na parte

    final do referido normativo.

    O legislador forneceu um conjunto de critérios de aferição para a concretização do conteúdo do

    dever de cuidado. Como tal, os administradores no exercício das suas funções devem desempenhar as

    mesmas com zelo e cuidado, decidindo de acordo com critérios que permitam tomar uma decisão

    razoável. Devem para isso, aplicar os seus conhecimentos e competências técnicas, bem como estar

    informados do quotidiano das sociedades.

    Porém, para ARMANDO M. TRIUFANTE, no cumprimento deste dever não basta que o

    administrador “(…) se mostre diligente e zeloso, sendo indispensável que seja, simultaneamente, capaz,

    informado e competente.”63

    Este dever, implica ainda, que os administradores aquando da aceitação do cargo de

    administração afiram das suas capacidades pessoais no sentido de verificar se têm ou não condições

    para ocuparem aquela função.64

    Por outro lado, saber se um administrador cumpriu ou não este dever acarreta a consideração

    de outras circunstâncias, como, por exemplo, o tipo de sociedade em causa, o objeto social da sociedade,

    a formação académica do administrador e a sua experiência profissional.

    A delimitação deste dever de origem anglo-saxónica não é ainda hoje fácil, porquanto continua

    a ter um conteúdo genérico, sendo por isso necessário explicar e concretizar melhor o seu conteúdo.

    62 Ricardo COSTA e Gabriela Figueiredo DIAS, “Deveres Fundamentais”, cit., p. 730.

    63 Cfr. Armando Manuel TRIUFANTE, “Código das Sociedades Comerciais Anotado: Anotações a todos os preceitos alterados”, Coimbra: Coimbra Editora,

    2007, p. 64.

    64 Filipe Barreiros defende ainda que não devem apenas os administradores fazer esta autoavaliação, mas também “(…) aqueles (sócios) que tem capacidade

    para os designar(…)”Cfr. Filipe BARREIROS, Responsabilidade Civil dos Administradores: Deveres Gerais e a Corporate Governance, cit., p.55.

  • 32

    No cumprimento deste dever os administradores têm que revelar a disponibilidade, a

    competência técnica e o conhecimento da atividade da sociedade. No entanto, estas qualidades pessoais

    dos administradores, enquanto manifestações do dever de cuidado assumem-se como insuficientes, pelo

    que, para além delas, outras circunstâncias são importantes como se mencionou.

    No entendimento da doutrina nacional o elenco de manifestações do dever de cuidado prescrito

    na alínea a) do n.º 1 do artigo 64.º CSC não é de todo perfeito, porquanto existem outras manifestações

    daquele dever conforme se explicará, mas também porque aquele normativo “(…) após algumas

    precisões, acaba por remeter para a “diligência de um gestor criterioso e ordenado”, que é uma

    formulação das mais genéricas do dever de cuidado e abrangente daquelas precisões.”65

    Por isso, têm sido apontados mormente por COUTINHO DE ABREU66, como manifestações do

    dever de cuidado três subdeveres a que os administradores se encontram adstritos, a saber:

    - dever de controlo ou vigilância organizativo-funcional;

    - dever de atuação procedimentalmente correta; e

    - dever de tomar decisões razoáveis.

    Relativamente ao primeiro destes subdeveres apraz mencionar que se subdivide em dois

    deveres, no dever de vigilância (duty to monitor) e no dever de controlo (duty to inquiry).

    No cumprimento do dever de vigilância o administrador tem a obrigação de prestar uma especial

    atenção e de se informar relativamente à evolução da sociedade, designadamente, quanto aos seus

    aspetos económicos e financeiros. Tem também a obrigação de se informar com os demais sujeitos que

    exercem de algum modo funções de gestão na sociedade67.

    Os administradores devem manter-se sempre informados relativamente a todos os aspetos da

    sociedade que administram, de modo a evitar a tomada de decisões prejudiciais à sociedade.

    No que concerne à obtenção de informação da sociedade os administradores devem alcançar a

    mesma usando os seus próprios meios ou solicitando tal informação a terceiros.

    Relativamente ao dever de controlo, incindível do dever de vigilância, significa que os

    administradores devem, após o cumprimento do dever de vigilância, e tendo conhecimento de quaisquer

    circunstâncias que possa implicar danos para a sociedade, investigar os factos em causa68.

    65 Cfr. Jorge Manuel Coutinho de ABREU, Responsabilidade Civil dos Administradores de Sociedades, Instituto de Direito das Empresas e do Trabalho,

    Cadernos n.º5, Coimbra, Almedina, 2010, p. 19.

    66 Idem, pp.19 e 20.

    67 Por exemplo os administradores executivos.

    68 Os administradores não executivos estão também adstritos ao cumprimento do dever de controlo e vigilância dos administradores executivos. Cabe-lhes,

    por isso, um dever geral de vigilância e controlo da atuação dos administradores executivos, sob pena de o seu não cumprimento originar a responsabilidade

  • 33

    Em face do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 64.º do CSC, COUTINHO DE ABREU defende

    que, para este subdever, relevam aqui as circunstâncias subjetivas da “(…) disponibilidade e o

    conhecimento da actividade da sociedade(…)”69.

    O subdever de atuação procedimentalmente correta significa que os administradores devem

    preparar adequadamente as suas decisões, acedendo por isso a toda a informação disponível e

    necessária para que possam tomar uma decisão razoável e consciente.

    Na doutrina é defendido que os administradores devem “recolher e tratar a informação

    razoavelmente disponível em que assentará a decisão”70.

    Note-se, todavia, que aquela informação pode não estar livremente disponível, nem ser de fácil

    acesso. Nesse sentido NUNO C. LOURENÇO entende que aquela razoabilidade depende de algumas

    circunstâncias, determinantes para a tomada de decisão do administrador, designadamente, o tempo

    que aquele teve para tomar a decisão. Porquanto, poderá ser necessário o recurso a terceiros (como

    trabalhadores e consultores), bem como custos de obtenção da informação para a tomada da decisão.

    Defende ainda aquele autor que este dever consubstancia uma obrigação de resultado e não de

    meios71.

    Com efeito, o administrador está obrigado a preparar adequadamente as suas decisões,

    acedendo por isso a toda a informação disponível e necessária para que possa tomar uma decisão

    razoável e consciente. Por isso, está obrigado a assegurar que um determinado efeito, se produza, in

    casu, uma decisão razoável72.

    Incumbe agora tecer algumas considerações acerca do subdever de tomar decisões razoáveis.

    No âmbito negocial, por causa de diversas circunstâncias, a decisão a tomar pelo administrador

    é muitas vezes complexa, o que determina, que para estes casos, exista a designada “discricionariedade

    empresarial dos administradores”73.

    civil conforme prescreve o n.º 8 do artigo 407.º do CSC. Cfr. Nuno Calaim LOURENÇO, Os Deveres de Administração e a Business Judgment Rule, Coimbra,

    Almedina, 2011, p. 19.

    Estão ainda adstritos ao dever de cuidado de um modo geral e também ao dever de lealdade. Cfr. Paulo Rui Oliveira NEVES, Incompatibilidades e

    Independência, in: Código do Governo das Sociedades Anotado, Coimbra: Almedina, 2012, p. 144.

    69 Cfr Jorge Manuel Coutinho de ABREU, Responsabilidade Civil dos Administradores de Sociedades”, cit., p.19.

    70 Cfr. Idem, p. 21.

    71 Cfr. Nuno Calaim LOURENÇO, Os Deveres de Administração e a Business Judgment Rule, cit., p. 19.

    72 Este dever tem uma especial relevância relativamente à regra da business judgment rule consagrada no n.º 2 do artigo 72.º do CSC, uma vez que, o

    cumprimento deste dever poderá excluir uma eventual responsabilidade civil do adminsitrador, conforme infra melhor se explicará.

    73 Cfr. Jorge Manuel Coutinho de ABREU, Responsabilidade Civil dos Administradores de Sociedades”, cit., p.22.

  • 34

    Isto significa que os administradores possuem uma margem de discricionariedade na tomada

    de decisões. São muitas vezes confrontados com diversas opções de decisão, possuindo assim poder de

    escolha entre as várias alternativas de decisões razoáveis.

    Contudo, refira-se que os administradores não dispõem desta discricionariedade quando a lei,

    os estatutos da sociedade ou o contrato os obriguem a tomar aquela decisão.

    Posto isto, uma decisão razoável será aquela que melhor proteger os interesses societários, daí

    que a doutrina ensine que tomar uma decisão razoável no interesse da sociedade implica para o

    administrador duas obrigações.

    Conforme ensina NUNO C. LOURENÇO, uma dessas obrigações diz respeito à não dissipação

    do património da sociedade, assim, o administrador dissipa património da sociedade quando, por

    exemplo, compra um bem ou solicita um serviço que é inútil ao fim da atividade da sociedade.74

    Por outro lado, está ainda obrigado a evitar riscos exagerados para a sociedade, isto é, não pode

    tomar decisões que ponham em risco a subsistência da sociedade, como por exemplo, aplicar todo o

    património da sociedade na compra de ações altamente especulativas75.

    Este subdever encontra fundamento na circunstância da “(…) competência técnica(…)” do

    administrador, pois para este tomar decisões razoáveis terá que possuir alguns conhecimentos que lhe

    permitam tomar aquela decisão, tendo sempre em linha de conta os interesses societários, bem como

    o escopo da sociedade.

    Estando provido daquela característica, em princípio, o administrador não dissipa o património

    da sociedade e evita riscos desmedidos, uma vez que tomará decisões equilibradas, razoáveis e

    conscientes.

    Posto isto, no que aqui nos interessa, o dever de cuidado 76 irá relevar na averiguação da

    responsabilidade civil dos administradores em sede de ilicitude e culpa, porquanto “Os factos

    respeitadores dos deveres de cuidado que se descobrem na norma são ilícitos; e são culposos se a

    diligência nela prevista não é observada (culpa em abstracto)”77.

    74 Cfr. Nuno Calaim LOURENÇO Os Deveres de Administração e a Business Judgment Rule, cit., p. 21

    75 Cfr. Jorge Manuel Coutinho de ABREU, Responsabilidade Civil dos Administradores de Sociedades, cit., p. 23.

    76 Por último, e a título exemplificativo, cumpre dizer que quando existam deliberações dos sócios que, embora válidas, sejam desfavoráveis para a sociedade,

    cremos que os administradores se devem abster de executar tais deliberações com fundamento no dever de cuidado previsto pela alínea b) do n.º 1 do

    artigo 64.º CSC.

    77 Idem, p. 24.

  • 35

    Incumbe referir que o dever de cuidado se encontra articulado com o n.º 2 do artigo 72.º do

    CSC, relativamente à regra da business judgment rule, sobre a qual teceremos algumas considerações

    mais adiante.

    Todavia, diga-se, de forma breve, que esta regra tem como objetivo circunscrever a

    responsabilidade civil dos administradores, eximindo-os em determinadas situações de uma eventual

    responsabilidade civil, não obstante a sua atuação ter produzido consequências negativas para a

    sociedade.

    A exclusão da responsabilidade prevista por esta regra apenas se verificará nos casos de violação

    dos deveres de cuidado conforme se verá.

    Remetendo-nos novamente à alínea a) do n.º 1 do artigo 64.º do CSC urge agora tecer algumas

    breves notas sobre a existência ou não de um terceiro dever fundamental autónomo do dever de cuidado

    e do dever de lealdade.

    De acordo com a CMVM78 a alínea a) do mencionado dispositivo consagra, na sua primeira parte,

    uma “cláusula geral de actuação cuidadosa” e, na última parte, o “critério de actuação diligente que

    serve de bitola do cumprimento daquela”.

    O dever previsto no anterior artigo 64.º do CSC, ou seja, o dever de diligência de um

    administrador criterioso e ordenado deu origem, na nova redação daquele normativo legal, a uma

    diferenciação entre o dever de cuidado e o dever de lealdade.

    Conforme supra mencionado e de acordo com a primeira versão daquele dispositivo legal, o

    dever de diligência do gestor criterioso e ordenado consubstanciava o principal elemento que

    caracterizava os deveres que sobre o administrador incumbiam. Portanto, era a partir daquele dever que

    se aferia da ilicitude ou licitude da conduta do administrador.

    Hodiernamente essa aferição da conduta do administrador é feita, designadamente, através da

    averiguação do cumprimento dos deveres de cuidado e de lealdade.

    Não obstante, a bitola do “gestor criterioso e ordenado” estar prevista na parte final do referido

    normativo, entendemos que tal não significa que apenas está circunscrita ao dever de cuidado, ou que

    consubstancia um dever autónomo dos demais deveres fundamentais, como se verá.

    78 Cfr. Respostas à consulta pública n.º1/2006 sobre as alterações do Código das Sociedades Comerciais, www.cmvm.pt, ponto 2-A – Temas Gerais/Deveres

    e responsabilidade dos titulares de órgãos sociais.

    http://www.cmvm.pt/

  • 36

    No erudito entendimento de MENEZES CORDEIRO “a bitola de diligência, apesar de desgraduada

    para o final do artigo 64.º/1, a), conserva todo o seu relevo. Desde logo, em termos literais: “nesse

    âmbito” – portanto: o âmbito em que os administradores devem empregar a diligência de um gestor

    criterioso e ordenado – reporta-se às “suas funções”: não apenas aos deveres de cuidado. Obviamente:

    o administrador deve ser diligente na execução de todos os seus deveres e não, apenas, nos de

    cuidado”79.

    Com efeito, e como se referiu a bitola da diligência encontrava-se relacionada com todos os

    deveres que sobre o administrador incumbiam.

    Em face das considerações tecidas e dada a especial relação de confiança existente entre os

    administradores e a sociedade, cremos que o dever de diligência de um gestor criterioso e ordenado não

    poderá ser autonomizado dos demais deveres a que os administradores estão vinculados.

    Concludentemente, podemos referenciar que o cumprimento dos deveres a que aqueles se

    encontram adstritos é aferido por um padrão de diligência de um gestor criterioso e ordenado, deste

    modo os administradores devem ser diligentes e criteriosos no cumprimento de todos os seus deveres e

    não apenas no cumprimento do dever de cuidado80. Razão pela qual o dever de diligência é incindível

    daqueles deveres fundamentais, não sendo por isso, na nossa opinião, autonomizável.

    Diga-se por último, que este dever de diligência do gestor criterioso e ordenado previsto na parte

    final da alínea a) funciona também como critério de aferição da culpa do administrador em sede de

    responsabilidade civil, ao invés do que acontece com o dever de cuidado, que, uma vez não cumprido,

    releva em sede de ilicitude.

    79 Cfr. António Menezes CORDEIRO, “Os deveres fundamentais dos administradores de sociedades”, in:, “Jornadas em Homenagem ao Professor Doutor

    Raúl ventura: Reforma do Código das Sociedades, Coimbra: Almedina, 2007, p. 58.

    80 Em sentido contrário, FILIPE BARREIROS defende que o dever de diligência genérico que existia na anterior norma do artigo 64.º do CSC se desdobrou em

    três deveres, ou seja, no dever de cuidado ou de diligência em sentido estrito, no dever de diligência e no dever de lealdade. Defende por isso, a autonomização

    do dever de diligência, referindo que o mesmo está agora previsto na parte final da alínea a) do n.º 1 do artigo 64.º do CSC. Este autor refere ainda que este

    critério, mais exigente do que o designado critério do “bonus pater famílias” previsto na n.º 2 do artigo 487.º e n.º 2 do 799.º do CC, é relevante também

    para aferir a culpa dos administradores em sede de responsabilidade civil designadamente no que respeita à regra da business judgment rule. Cfr. Filipe

    BARREIROS, Responsabilidade Civil dos Administradores: Deveres Gerais e a Corporate Governance, cit., pp. 60 a 62.

  • 37

    1.2.3. O dever de Lealdade

    A primeira previsão expressa do dever de lealdade surgiu com a reforma do Código das

    Sociedades Comerciais em 2006, estando hodiernamente previsto na alínea b) do n.º1 do artigo 64.º do

    Código das Sociedades Comerciais, a qual consagra que os administradores devem observar:

    “Deveres de lealdade, no interesse da sociedade, atendendo aos interesses de longo prazo dos

    sócios e ponderando os interesses dos outros sujeitos relevantes para a sustentabilidade da sociedade,

    tais como os seus trabalhadores, clientes e credores”.

    O referido normativo determina que os administradores devem observar no âmbito da relação

    de administração com a sociedade, deveres de lealdade, os quais consubstanciam condutas exigíveis

    aos administradores enquanto fiduciários, uma vez que exercem para com a sociedade funções de

    confiança no interesse daquela.

    Por conseguinte, cumpre agora tecer algumas considerações acerca do conteúdo do dever de

    lealdade consagrado na alínea b) do artigo 64.º do CSC.

    Para COUTINHO DE ABREU o dever de lealdade pode ser definido como o “(…) dever de os

    administradores exclusivamente terem em vista os interesses da sociedade e procurarem satisfazê-los,

    abstendo-se portanto de promover o seu próprio benefício ou interesses alheios”81.

    Este dever decorre assim do princípio da boa-fé82 plasmado no n.º 2 do artigo 762.º do CC,

    relativamente ao cumprimento das obrigações83.

    Esta alínea prevê genericamente os deveres de lealdade, que podem ser reconduzidos, de acordo

    com COUTINHO DE ABREU, ao dever:

    - “de comportar-se com correcção quando contratam com a sociedade”;

    - “não concorrer com a sociedade que administram”;

    - “não aproveitar em benefício próprio oportunidades de negócio societárias, assim como bens

    e informações da sociedade”; e,

    - “não abusar do estatuto ou posição de administrador”84.

    Relativamente aos dois primeiros deveres, podemos afirmar que são deveres legais de conteúdo

    específico, uma vez que estão expressamente consagrados na lei, nomeadamente, os previstos no n.º 1

    81Cfr. Jorge Manuel Coutinho de ABREU, Responsabilidade Civil dos Administradores de Sociedades,2.ªEd., Coimbra, Almedina, 2010, p. 25.

    82 O Principio da Boa-fé é significa que “(…) no cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de

    boa-fé.”, João de Matos Antunes VARELA, Das obrigações em geral”, Vol. I, 10.ªEd., Coimbra: Almedina, 2010, pp. 125 e 126.

    83 Cfr. Pedro Caetano NUNES, Corporate Governance, Coimbra: Almedina, 2006, p. 87 e ss. 84 Cfr. Jorge Manuel Coutinho de ABREU, Responsabilidade Civil dos Administradores de Sociedades, cit., p. 27.

  • 38

    do artigo 397.º e 428.º do CSC (relativo à proibição de celebração de determinados negócios entre o

    administrador e a sociedade85).

    Os administradores estão proibidos de exercerem atividade concorrente com a sociedade que

    administram, salvo se dispuserem de consentimento para tal86/87.

    O n.º 2 do artigo 254.º do CSC expressa que se entende como atividade concorrente“(…)

    qualquer actividade abrangida no objecto desta, desde que esteja a ser exercida por ela ou o seu exercício

    tenha sido deliberado pelos sócios”.

    Quanto a este dever de conteúdo específico, COUTINHO DE ABREU chama atenção para