a representação do real em rubem fonseca

Upload: cristina-diaz

Post on 07-Jul-2018

218 views

Category:

Documents


1 download

TRANSCRIPT

  • 8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA

    1/86

    UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

    A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA:

     Agosto entre o histórico e o policial

    LEONARDO BARROS MEDEIROS

    Rio de Janeiro

    2013

  • 8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA

    2/86

    A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA:

     Agosto entre o histórico e o policial

    Leonardo Barros Medeiros

    Dissertação apresentada ao Programa dePós-graduação em Letras Vernáculas da

    Universidade Federal do Rio de Janeiro

    como parte dos requisitos necessários à

    obtenção do título de Mestre em Letras

    Vernáculas (Literatura Brasileira).

    Orientador: Prof. Dr. Alcmeno Bastos

    Rio de Janeiro

    2013

  • 8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA

    3/86

  • 8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA

    4/86

    A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA:

     Agosto entre o histórico e o policial

    Leonardo Barros Medeiros

    Orientador: Professor Doutor Alcmeno Bastos

    Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras

    Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos

    requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Letras Vernáculas (Literatura

    Brasileira).

    Examinada por:

     ___________________________________________________Presidente, Prof. Dr. Alcmeno Bastos – UFRJ

     ___________________________________________________Prof.ª Dr.ª Suzana de Sá Klôh – UCP

     ___________________________________________________Prof. Dr. Godofredo de Oliveira Neto – UFRJ

     ___________________________________________________Prof. Dr. José Luís Jobim – UERJ (Suplente)

     ___________________________________________________Prof.ª Dr.ª Anélia Montechiari Pietrani – UFRJ (Suplente)

    Rio de Janeiro2013

  • 8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA

    5/86

  • 8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA

    6/86

     

    Agradeço aos professores que me acolheram e preparam para esse momento, em especial,meu orientador, Alcmeno Bastos pela leituraatenta e crítica deste trabalho.

    Agradeço também à CAPES pela bolsaconcedida.

    À Renata Portella pela amizade construídadesde os dias da graduação.

    E aos amigos que conquistei na UFRJ.

  • 8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA

    7/86

     

     A literatura é diferente da vida porque a vida écheia de detalhes, mas de maneira amorfa, eraramente ela nos conduz a eles, enquanto aliteratura nos ensina a notar – a notar comominha mãe, por exemplo, costuma enxugar aboca antes de me beijar; o som da britadeiraque faz um táxi londrino quando o motor adiesel está em ponto morto; os riscos

    esbranquiçados numa janela velha de couroque parecem estrias de gordura num pedaçode carne; como a neve fresca “range” sob os

     pés; como os bracinhos de um bebê são tãorechonchudos que parecem amarrados comlinha. Essa lição é dialética. A literatura nosensina a notar melhor a vida; praticamos issona vida, o que nos faz, por sua vez, ler melhoro detalhe na literatura, o que, por sua vez, nos

     faz ler melhor a vida.

    James Wood 

  • 8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA

    8/86

    RESUMO 

    MEDEIROS, Leonardo Barros. A representação do real em Rubem Fonseca:  Agosto entre o histórico e o policial. Rio de Janeiro: 2013.

    Dissertação (Mestrado em Letras Vernáculas) – Faculdade de Letras, UniversidadeFederal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.

    A representação da realidade como instrumento da criação literária é uma tendênciagradativa no cenário literário universal. Tal fenômeno pode ser percebido por meio da

     propagação, pelo mercado editorial, de romances biográficos, históricos, bem como de biografias, memórias e confissões.O amálgama da história à ficção é o tema gerador desta pesquisa que procuraestabelecer um limite entre essas duas forças na produção literária de Rubem Fonseca,especialmente em Agosto (1990).

    Rubem Fonseca exibe uma peculiaridade no que tange à temática, que é a de,geralmente, apresentar aspectos criminais. Sua produção ficcional, em contos eromances, vem sendo distinguida pela crítica, mesmo que de modo inconcluso, tendoem vista tratar-se de um escritor contemporâneo, em processo de produção – seu últimoromance foi publicado em 2011.Esta dissertação propõe visualizar a história como suporte para a criação literária, e paratanto escolhemos o romance Agosto, que versa sobre os dias que antecederam o suicídiodo presidente Getúlio Vargas, como o mais representativo desta tendência ficcional deRubem Fonseca. Com esse intuito, apresentamos um levantamento das principaisreferências históricas: alusões, ao longo da trama, a cenários reais, a personalidadesimportantes da década de 1950, a jornais e revistas em circulação na época e a filmes

    que foram exibidos naquele momento.

    PALAVRAS-CHAVE: Rubem Fonseca – Agosto – História e Literatura

  • 8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA

    9/86

    ABSTRACT

    MEDEIROS, Leonardo Barros. A representação do real em Rubem Fonseca:  Agosto entre o histórico e o policial. Rio de Janeiro: 2013.

    Dissertação (Mestrado em Letras Vernáculas) – Faculdade de Letras, Universidade

    Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.

    The representation of reality as a tool of literary creation is a gradual trend in universalliterary scene. This phenomenon could be realized by means of propagation, the

     publishing market, biographical novels, histories and biographies, memoirs andconfessions.The amalgam of history to fiction is the theme of this generating research that seeks toestablish a boundary between these two forces in the literary production of RubenFonseca, especially in Agosto (1990).Ruben Fonseca displays a peculiarity in regard to the theme, which is to generally

     provide criminal aspects. His fictional production, in stories and novels, has beenhonored by critics, even so inconclusive in view that this is a contemporary writer, inthe production process - his last novel was published in 2011.This paper proposes visualize the story as support for literary creation, and for thatchose the novel in August, which is about the days leading up to the suicide of PresidentGetúlio Vargas, as the most representative of this trend fictional Ruben Fonseca. To thisend, we present a survey of the main historical references: allusions, along the plot, the

    real scenarios, the important personalities of the 1950s, the newspapers and magazinesin circulation at the time and the films that were shown at the moment.

    KEY-WORDS: Rubem Fonseca – Agosto – History and Literature

  • 8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA

    10/86

    SUMÁRIO

    APRESENTAÇÃO.......................................................................................................p.11

    1. RUBEM FONSECA E SUA POSIÇÃO NA FICÇÃO BRASILEIRA: OBRA,FORTUNA CRÍTICA E CONSTANTES TEMÁTICAS ......................................... p.13

    1.1 A recepção crítica da obra fonsequiana ................................................................p. 17

    1.2 As linhas de força de Rubem Fonseca .................................................................. p.19

    2. A DIMENSÃO POLICIAL EM RUBEM FONSECA ....................................... . p. 37

    2.1 O detetive ............................................................................................................. p. 40

    2.2 Inovações no gênero ............................................................................................ p. 43

    2.3 Entrecruzamentos/amálgamas de linguagens ....................................................... p.46

    3. A DIMENSÃO HISTÓRICA EM RUBEM FONSECA........................................p. 49

    3.1 

    Gênese do romance histórico ............................................................................... p.513.2  Em torno do romance histórico: tradição/antecedentes na literatura brasileira ... p.55

    3.3 O caso Rubem Fonseca ........................................................................................ p. 57

    4. AGOSTO E O RELATO HISTÓRICO .................................................................. p.61

    4.1 O comissário Mattos e o altruísmo de uma utopia desvairada ............................p. 63

    4.2 A união de duas histórias ...................................................................................... p.68

    4.3 As marcas registradas ........................................................................................... p.69

    CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................... p.76

    REFERÊNCIAS ........................................................................................................ p. 78

  • 8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA

    11/86

    APRESENTAÇÃO

    O presente estudo faz uma análise da obra de Rubem Fonseca dando ênfase aoromance  Agosto  (1990). Além de apresentar o autor, características e produção,

    escolhemos enfocar a questão da fronteira entre o fato e a ficção na obra em destaque e,

    também, fazer breves estudos sobre os gêneros do romance policial e do romance de

    matéria de extração histórica.

    Sabemos que tanto a narrativa policial quanto o romance histórico são

    consequências da proliferação de narrativas advinda da popularização dos folhetins

    durante a primeira metade do século XIX. Nesse contexto, os últimos dois séculos

    viram desenvolver-se e se popularizar uma série de narrativas híbridas que colocam suas

    ações em tempos passados ou que tentam resolver crimes ou outros enigmas. O

    cruzamento dessas duas modalidades tem sido constante, seja com o simples objetivo de

    divertir o leitor, seja na tentativa de, ao enredá-lo nos meandros do labirinto narrativo e

    seus mistérios, mostrar que pelo exercício da leitura ele pode aprender algo sobre o

    mundo que o rodeia e poder escapar de suas armadilhas. Em  Agosto, vemos esse

    objetivo alcançado em suas páginas que misturam o Rio de Janeiro à figura de GetúlioVargas e às agruras do personagem fictício Mattos.

     No primeiro capítulo do estudo, denominado Rubem Fonseca e sua posição na

    ficção brasileira, propomos apresentar as linhas de força da produção fonsequiana com

    o intuito de, mais tarde, apontá-las na obra em análise. Esse levantamento dá ao trabalho

    um caráter mais objetivo, por fazer uma pesquisa atenta e minuciosa, por meio de

    extração de fragmentos de obras para a comprovação das proposições, das

    características mais pontuais de Rubem Fonseca. Antes de apontarmos essas

    características, tecemos breves comentários sobre a biografia do autor, com o intuito de

     posicionar o leitor em sua obra, para, em seguida, construirmos um aparato crítico da

    obra fonsequiana que servirá de respaldo para as futuras análises. Nesse capítulo

     podemos ver que as marcas mais expressivas em sua obra encontram-se na linguagem

    utilizada, enxuta de metáforas; a representação citadina, o Rio de Janeiro como espaço

     preferido para compor os enredos, é a presença constante, lá é onde os crimes ocorrem,

    onde a vida se transforma e onde nada é estático; a crítica social; a presença da

  • 8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA

    12/86

    oralidade; a suspensão do juízo moral; a constante solidão dos personagens que os

    transforma em sujeitos amargurados e violentos; a violência que é estruturante da

    composição narrativa opera como um elemento de caracterização do personagem e,

    também, define o desfecho da trama, suas tensões e conflitos; e o sexo, como um dos

    grandes temas abordados na obra de Rubem Fonseca.

     No capítulo seguinte A dimensão policial de Rubem Fonseca , fazemos um breve

    histórico do gênero policial, desde Os crimes da rua Morgue até a literatura brasileira

    contemporânea. Nesse capítulo, afirmamos que desde a Bíblia temos relatos do interesse

    de se registrar o desejo da investigação, que é o cerne do gênero, para depois

    apresentarmos a constante inovação em sua estrutura. O papel do detetive é salientado

    com o intuito, de no último capítulo, servir de aparato para análise do protagonistaMattos. As inovações do gênero e as construções híbridas com a linguagem

    cinematográfica, biográfica e histórica são apontadas por serem características

    marcantes do romance em análise. Ao estudar o fenômeno, não podemos deixar de lado

    uma constatação muito simples: a proliferação desse tipo de narrativa nos mais variados

    suportes é devido ao gosto do ser humano, seja pelo mistério, seja pela tentativa de

    desvendar situações misteriosas. Em outras palavras, as narrativas policiais fazem parte

    de nossa realidade e de nosso cotidiano. Estudá-las, pois, é uma das funções – tarefa emmuitos aspectos também prazerosa – da academia. Tal compromisso, desafio ao mesmo

    tempo, motivou a escolha do tema.

    Em A dimensão histórica em Rubem Fonseca¸ com a mesma intenção dos

    capítulos anteriores de servir como respaldo para o último, apontamos como se dá a

    relação entre o ficcional e o factual para a tessitura de romances. Alguns romances,

    conhecidos do público leitor, são apontados para exemplificar esse fenômeno literário.

    Mostramos a origem do gênero com as obras de Homero e as epopeias clássicas, de tal

    forma que as relações entre a literatura e a história ficaram mais evidentes com o

    surgimento de diversas narrativas de matéria de extração histórica no Romantismo. As

    origens nacionais são pontualmente apresentadas com a intenção de proporcionar ao

    leitor um breve histórico da produção do gênero no Brasil, e, para finalizar o capítulo,

    apresentamos outros casos, além de  Agosto, na produção artística de Rubem Fonseca,

    tais como os romances O selvagem da ópera, O doente Molière e alguns contos.

  • 8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA

    13/86

    Esses capítulos servirão de estudos propedêuticos para o capítulo final Agosto e

    o relato histórico em que propomos fazer uma análise da obra em questão, ressaltando a

    característica histórica do romance. Algumas questões nortearão o capítulo: Após

    leituras cautelosas de romances em que a história está inserida na narrativa, chegamos

    às questões de como se dá a fronteira entre o fato e a ficção? A literatura cumpre a

    função de duplicar o registro histórico? Ou ela preenche uma lacuna? Quais os efeitos

    que os fatos podem produzir na ficção? Qual a relação da literatura com a realidade?

    Elas serão respondidas ao longo do texto, irão conduzir o estudo para o resultado e

    carregam em si a intenção da investigação. A obra em questão será analisada em

    seguida com base em críticas e fragmentos da mesma para, em seguida, tecermos um

     perfil do protagonista, em que apresentamos alguns fatores constituintes de seu caráter.

    O enlace das duas histórias, a da investigação de Mattos e a da trama envolvendo

    Getúlio Vargas, é ponderado em seguida com a apresentação do instrumento de unção

    das duas. Ao final da análise, fazemos, apoiados no estudo de Bastos (2007) sobre o

    romance histórico, um levantamento das principais “marcas registradas” encontradas em

     Agosto com o registro de fragmentos da obra para ilustração.

    Ao concluir o trabalho, percebemos que o autor, ao produzir o romance, trafega

    em dois gêneros distintos: o romance policial e o de extração de matéria histórico. Essainovação híbrida concorre para o sucesso da obra, prendendo o leitor nas tramas

    conduzidas por Mattos, encerradas com a reprodução da fatídica cena no Palácio do

    Catete.

    Esperamos que esse trabalho contribua para as futuras pesquisas sobre Rubem

    Fonseca, sobre  Agosto ou sobre os gêneros pontuados nas páginas que seguirão, bem

    como possa suscitar outros olhares para o mesmo foco, com novos aparatos críticos que

    o estudo, pois sabemos da incapacidade de esgotamento temático presente na obra

    literária que, conforme disse Umberto Eco (2003), está em constante movimento.

  • 8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA

    14/86

     

    1.  RUBEM FONSECA E SUA POSIÇÃO NA FICÇÃO BRASILEIRA:

    OBRA, FORTUNA CRÍTICA E CONSTANTES TEMÁTICAS

    Rubem Fonseca não aparece na mídia, não tem foto no jornal, não dá entrevistas.

    Gosta do anonimato, preserva sua intimidade, e quando as pessoas o reconhecem nas

    ruas como escritor ele se apresenta com outro nome. Essa postura vem desde 1963 e

    mesmo quando ganhou maior notoriedade, a partir de 1976 até os dias atuais, mantêm-

    se esquivo da mídia.

     Nascido em Juiz de Fora, formou-se em Direito e foi atuar, aos 27 anos, como

    comissário de polícia no 16º Distrito Policial, em São Cristóvão, no município do Rio

    de Janeiro. Agiu apenas nove meses nas ruas como policial, permanecendo na

    corporação desde 31 de dezembro de 1952 até 26 de junho de 1954. Pereira (2009: 26),

    sobre a passagem de Rubem na polícia, diz que “é incrível que apenas nove meses como

     policial tenham sido constantemente alardeados como responsáveis  pelas intricadas

    tramas policiais criadas pelo autor, ou, no mínimo, pela maior veracidade atribuída a

    elas”.

    O trabalho como comissário de polícia proporcionou a Fonseca um amplo

    conhecimento sobre o cotidiano delinquente. Sobre essa influência da vida de Rubem

    Fonseca em suas publicações, Figueiredo (2003: 22) diz que:

    Principalmente nos contos escritos nas décadas de 60 e 70, a delegaciaé um espaço privilegiado na ficção de Rubem Fonseca (...). Osregistros policiais são como fragmentos da realidade que remetem

     para um quadro mais geral no qual as perguntas ficam sem resposta.Pode-se, então, ler alguns contos do autor como páginas extraídas deum grande livro de ocorrências.

    O conto “Livro de Ocorrências”, por exemplo, em que essa influência é

     perceptível desde o nome, apresenta analogia com o cotidiano de uma delegacia. Nessa

  • 8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA

    15/86

    narrativa, a trama é feita sobre três ocorrências que contêm elementos policiais.

    Vejamos um trecho:

    O investigador Miro trouxe a mulher à minha presença. Foi o marido,

    disse Miro. Naquela delegacia de subúrbio era comum briga demarido e mulher. Ela estava com dois dentes partidos na frente, oslábios feridos, o rosto inchado. Marcas nos braços e no pescoço(FONSECA, 2005: 254).

    Como percebemos no fragmento acima, Rubem Fonseca instaura em sua

    literatura uma peculiaridade no que tange ao tema, que é a de, geralmente, ser formada

     por aspectos criminais. Ora o cotidiano de uma delegacia, ora a violência de criminosos

    são apontados em seus enredos.

     Nesse sentido, percebemos que a obra de Rubem Fonseca está inserida em

    estética de tendência denunciadora da realidade chamada por uns teóricos de realismo

    feroz1, ou de hiper-realismo2, por outros de neo-realismo violento3 ou, ainda, de pseudo-

    realismo4. Preferimos, aqui, enquadrá-lo, tal qual a tese de Lajolo et Zilberman (2006:

    55), de estética do  soco-no-estômago, nomenclatura que aglutina as tendências acima

    em determinado espaço de tempo da produção literária. A propósito dessa estética, asautoras revelam que:

    O livro-soco no estômago resulta de uma tomada de posição por parteda literatura brasileira, que, desde a década de 30, e talvez antes, como Naturalismo do final do século XIX, foi assumindo crescentementeuma ótica social, voltada à revelação das mazelas do país. Nos anos70 do século XX, essa tendência assumiu conotação anti-establishment : os padrões dominantes estavam fortementerelacionados à ditadura militar e à euforia desenvolvimentista.

    As autoras reforçam que essa tendência atual de se fazer literatura possui sua

    expressão mais completa nos livros de Rubem Fonseca, afirmando que a estética

    fonsequiana:

    1 Conforme MOISÉS, 2005: 587.2

     Conforme BARBIERI, 2003: 81.3 Conforme BOSI, 2006: 423.4 Conforme FIGUEIREDO, 2003: 28.

  • 8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA

    16/86

    (...) discute a justiça social – ou sua falta – num meio que semoderniza e progride tecnologicamente, mas acirra as clivagens entreos grupos dominantes e os carentes de poder, levando estes últimos àmarginalidade ou à revolta (Idem: 55).

    Sobre sua estreia no mundo das letras, Silva (1996: 12) diz que:

    Rubem Fonseca estreou desafiando os poderes censórios ao trazer para a prosa de ficção um modo violento de narrar, aliterário, talvezno sentido  gauche  em face de certas normas que a tradição literáriaconsagrou, que fixa e recupera temas como as sexualidades tidas porilegítimas, o recurso à luta armada como forma mais à mão para aresolução dos conflitos e, sobretudo, os problemas sociais e

     psicológicos gerados em nossas grandes concentrações urbanas.

    Publicou Os prisioneiros  (1963),  A coleira do cão  (1965),  Lúcia McCartney 

    (1967), O homem de fevereiro ou março (1973), O caso Morel  (1973), Feliz Ano Novo 

    (1975). Em 1976, depois de ter vendido 30.000 exemplares de  Feliz Ano Novo, foi

    censurado5 sob a alegação de que seu livro exteriorizava matéria contrária à moral e aos

     bons costumes, sendo assim, proibida a publicação e a circulação em todo território

    nacional e, ainda, determinada a apreensão de todos os exemplares postos à venda,

     permanecendo 13 anos nessa condição. Após, lançou no mercado os livros, O cobrador  

    (1979),  A grande arte  (1983),  Bufo & Spallanzani  (1986), Vasta emoções e

     pensamentos imperfeitos  (1988),  Agosto  (1990),  Romance negro e outras histórias 

    (1992), O selvagem da ópera  (1994), O buraco na parede (1995),  Histórias de amor

    ( 1997),  Do meio do mundo prostituto só amores guardei no meu charuto  (1997),

    Confraria de espadas  (1998), O doente Molière  (2000), Secreções, excreções e

    desatinos  (2002),  Diário de um Fescenino  (2003),  Mandrake: a bíblia e a bengala(2006), O romance morreu (2007), O seminarista (2009),  José (2011),  Axilas e outras

    histórias indecorosas  (2011) e antologias reunindo seus contos. Realizou roteiros

    cinematográficos, tais como: “Relatório de um homem casado”, “A extorsão”,

    “Stelinha”, “A grande arte”, “Bufo & Spallanzani”. Por sua vasta obra, recebeu

    inúmeros prêmios literários, destacando-se o Jabuti, o Juan Rulfo e o Camões. Sua

     produção literária recebeu adaptações para o teatro e televisão. Obteve traduções, dentre

    outras, para o inglês, francês, espanhol, alemão, sueco, italiano.5 Censura publicada na Portaria de nº 8.401-B, de 15 de dezembro de 1976.

  • 8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA

    17/86

     

    1.1 A RECEPÇÃO CRÍTICA DA OBRA FONSEQUIANA

    A produção de Rubem Fonseca é distinguida pela crítica e estudada pela

    academia. Sobre o escritor contemporâneo, Wood (2011: 42) diz que:

    O romancista, portanto está sempre trabalhando pelo menos com trêslinguagens. Há a linguagem, o estilo, os instrumentos de percepçãoetc. do autor; há a suposta linguagem, o suposto estilo, os supostosinstrumentos de percepção etc. do personagem; e há o quechamaríamos de linguagem do mundo – a linguagem que a ficçãoherda antes de convertê-la em estilo literário, a linguagem da falacotidiana, dos jornais, dos escritórios, da publicidade, dos blogs e dose-mails. Nesse sentido, o romancista é um triplo escritor, e oromancista contemporâneo sente ainda mais a pressão dessatriplicidade, devida à presença onívora do terceiro cavalo dessa troica,a linguagem do mundo, que invadiu nossa subjetividade, nossaintimidade.

    Rubem Fonseca encaixa-se nesse tipo de escritor “prejudicado” pelos tempos

    atuais em que a agilidade e o formato da informação atrapalham seu conteúdo

    colocando o autor em constante movimento.

    Apresentamos aqui algumas críticas sobre a escrita de Rubem Fonseca. Moisés

    (2005: 588) afirma que Fonseca é “elevado à categoria de um dos nossos mais bem-

    dotados ficcionistas contemporâneos (...) e que desfruta hoje de um merecido renome

    nacional e internacional”. Por outro lado, Martínez (2005: 10) diz que “Nenhum escritor

    é mais cinematográfico que Fonseca. A passagem de uma cena a outra é feita sem

    explicações, de maneira natural”. Barbieri, em  Ficção impura: prosa brasileira dosanos 70, 80 e 90  (2003: 29), considera “Rubem Fonseca, um dos escritores de maior

  • 8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA

    18/86

    repercussão nas últimas décadas, o protótipo do escritor inserido no mercado”. Pelo seu

    êxito, o escritor é conhecido pela crítica como o maldito, conforme afirma Viegas:

    O sucesso, fato sociológico e estatístico, deve ser relacionado com a

    situação cultural em que a obra surge. Rubem Fonseca é um maldito que está em moda. Não vende aquilo que o público espera, masoferece algo que o seu público esperava. Representa indivíduosmalditos numa linguagem violenta, despida de metaforização (1996:132).

    Outros dizem que escreve no domínio do medo, como é caso de Tomáz Eloy

    Martinez na introdução dos 64 contos de Rubem Fonseca:

    Fonseca instala o medo ou o Mal no próprio interior da linguagem,cada uma de suas palavras é como uma nota musical arrancada dasinfonia do Mal. A exemplo dos poetas, ele faz as palavras tocarem a

     borda extrema de seus sentidos. Lendo-o sente-se o poder dedissuasão ou de perversão que até a mais surrada palavra podecomportar. Muito poucos conseguiram, como ele, criar um

     personagem com dois ou três traços, urgir tramas cujas costuras não seveem (in: FONSECA, 2005: 10).

    Barbieri (2003) o coloca ao lado de grandes autores do cânone nacional:

     Na ficção contemporânea brasileira, podem-se identificar váriasmaneiras que dão continuidade à tradição machadiana; masdificilmente se encontrará, depois de Marques Rebelo e NelsonRodrigues, outro da envergadura de Rubem Fonseca. Este soube

     penetrar, com agudo olhar, a complexidade da sociedade carioca,desvelando suas contradições, misérias e grandezas (p. 104).

    A obra de Rubem Fonseca é conhecida pelo peculiar tom realista. Para Moisés

    (2005: 587), “realismo feroz, cruel, que não cede ante os gestos mais violentos ou as

     palavras de baixo calão”. Segundo Bosi (2006: 423), Rubem Fonseca segue a “linha do

    neo-realismo violento” sendo um explorador do “universo urbano e marginal”. O

    mesmo Bosi afirma que:

    Há os [autores] que submetem percepções e lembranças à luz daanálise materialista clássica, dissecando os motivos, em geral

     perversos, dos comportamentos de seus personagens que ainda trazem

  • 8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA

    19/86

    a marca de tipos sociais. É o caso de Rubem Fonseca, que vem dosanos 60 e demonstrou força e fôlego nas páginas cruéis (2006: 436).

    Outros críticos também se debruçaram sobre as páginas de Rubem Fonseca,

     porém a amostra que se apresenta supre a necessidade do estudo. Ao longo da análise

    traremos para o diálogo os supracitados e outros para o embasamento teórico desta

    dissertação.

    1.2 AS LINHAS DE FORÇA DA FICÇÃO DE RUBEM FONSECA

    A obra de Fonseca é banhada pela diversidade temática, abrangendo temas bem

    identificáveis, tais como o erotismo e a violência urbana são os mais estudados. A

    seguir, propomos observar algumas linhas de força que nutrem a narrativa de Rubem

    Fonseca, e para ilustrar tais observações apresentamos alguns trechos de suas narrativas.

    A escrita fonsequiana, embora seja muito variada em seu conteúdo, extensão,

    composição de personagens e desenvolvimento da trama, possui em si algumas

    características que os leitores assíduos já se acostumaram e procuram encontrar em suas

     páginas.

    A importância de se apresentar essas constantes temáticas aqui é para

    mostrarmos como elas se apresentam ao longo do romance em análise que mais à frente

    se apresentará. Pretendemos apontar brevemente as principais características

    fonsequianas para que também o leitor deste estudo, possa adentrar no seu mundo

    ficcional.

    1.2.1 A linguagem fonsequiana

  • 8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA

    20/86

     

    Há na totalidade das obras de Rubem Fonseca características predominantes na

    temática, na escrita, na linguagem. Como disse Aristóteles (2007: 43) na  Poética

    Clássica, “A excelência da linguagem consiste em ser clara sem ser chã”. Desse modo,

    Fonseca trabalha com a linguagem, aglutina outras situações e possibilidades, tudo

    converge sua obra para o literário. Uma das características principais é a forma como

    escreve apresentando uma linguagem enxuta e sem rodeios. Fonseca, dessa maneira,

    entra diretamente no cerne da questão abordada, como ressaltou Viegas (1996:131):

    As narrativas de Rubem Fonseca, assim como de outros autorescontemporâneos, têm como projeto recuperar um modo de contar,

    lançando mão de uma linguagem despida de metáforas ou eufemismoscomo recurso para falar do homem atual.

    Esse recurso linguístico, o da linguagem enxuta, adotado por Fonseca pode ser

    exemplificado por meio do conto “Cidade de Deus”, em que o autor narra a relação

    sexual de Zinho e Soraia de forma incisiva, em que não há nenhum pudor ao narrar o

    fato, nenhuma transferência de sentido para termos menos agressivos ou nenhum

    atenuante para suas ideias: “Foram para a cama. Zinho era rápido e rude e depois defoder a mulher virava as costas para ela e dormia. Soraia era calada e sem iniciativa”

    (FONSECA, 1997: 11).

    Sobre o efeito que essa linguagem seca provoca no leitor, Martinez diz que:

    Tudo que leio de Fonseca produz em mim um assustador efeito derealidade. Ele escreve com a liberdade de um falcão, ou de um abutre,mas as palavras que desfia tecem um desenho do qual o leitor jamais

    consegue se desvencilhar, como acontece com as moscas capturadas pela voracidade da aranha (in: FONSECA, 2005: 14).

    Sua descrição é realizada à base de pinceladas fortes no sentido em que relata os

    fatos de sua ficção, o que proporciona ao leitor inexperiente um certo estranhamento ou,

    até mesmo, o faz suspender sua leitura. A crueza é bastante acentuada no conto

    “Laurinha”, em que o protagonista e o personagem Manoel torturam o estuprador e

  • 8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA

    21/86

    assassino da filha e sobrinha: a cena é transmita ao leitor sem nenhuma preocupação de

    não o chocar:

    Agarrei os colhões de Duda e cortei lentamente, ouvindo os gritos

    lancinantes dele. Peguei o saco escrotal dele com os dois testículos e joguei na lata de lixo. (...) Em seguida, com as barras de ferro,quebramos os cotovelos, depois as costelas, depois a clavícula, semprecom um intervalo entre uma coisa e outra. Com um martelo partitodos os dentes dele. (...) O puto morreu coberto de merda, mijo esangue (FONSECA, 2006: 94-96).

    A ausência de metáforas em Rubem Fonseca traz para as páginas de sua obra um

    relato real da sociedade apresentando, certas vezes, personagens marginalizados por ela.

    Sobre a linguagem fonsequiana, Barbieri (2003: 65) aponta que:

     No repertório de inovações da linguagem literária, resultantes de seucontato com o cinema, não há dúvida de que o nome de RubemFonseca é dos mais representativos, não só por se tratar de um escritorligado à produção de filmes, fornecedor de argumentos e preparadorde roteiros, mas sobretudo porque, em seus contos e romances, adotacom sucesso invenções da sintaxe cinematográfica.

    Os diálogos que permeiam a trama são perfeitamente funcionais, pois promovem

    no leitor a contextualização necessária à compreensão do que é narrado. No conto “O

    caso de F. A.”, cuja história nos é mostrada por meio de diálogos, pode-se compreender

    melhor essa afirmação: 

    “Sou louco por mineira”, disse para Magda, depois.

    “Aqui não tem mineira nenhuma”.

    “Puxa, que azar. Só tem vocês quatro?” perguntei.

    “Você gosta de variar não é” (FONSECA, 1987: 62).

     Nesse conto em específico, o conteúdo total da narrativa só é apreendido por

    meio dos diálogos que o permeiam e pela utilização de verbos dicendi. É pela

     permanente conversa entre os personagens da trama que percebemos que o protagonista pretende resgatar uma prostituta novata do lugar onde ela mora.

  • 8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA

    22/86

    Como vimos brevemente, uma das principais marcas de Fonseca é o modo que

    assume sua escrita nas narrativas. Essa intimidade com a linguagem proporcionou ao

    escritor uma marca registrada de sua produção literária e é por meio dela que o autor

    apreende o real em sua literatura.

    1.2.2 A representação da cidade

    A cidade é o ambiente mais utilizado por Rubem Fonseca para ambientar suas

    narrativas. Lá é onde os crimes ocorrem, onde a vida se transforma e onde nada éestático. O autor divide com João do Rio, Lima Barreto, Marques Rebelo, Nelson

    Rodrigues e outros o título de cronista do Rio de Janeiro, por retratar a cidade

    maravilhosa minuciosamente em suas narrativas. Tavares (1997:5), sobre a

    representação da cidade em Rubem Fonseca, diz que:

    Um papel de destaque é dado à cidade, vista não só como um objetodo desejo e do encontro, como também enquanto espaço da violência

    e do desencanto. Mais que documentos, seus escritos são registros eexperimentos de uma nova estética, ainda insuficientemente estudada.

    A escolha pelo grande centro urbano dá-se para amparar suas narrativas em  pano

    de fundo que se assemelha ao que é narrado. A cidade grande em tempos atuais deixou

    de ser um lugar cortês: há uma falência nos processos de cortesia contidos na urbe, por

    conta da marginalidade, pois a violência animaliza o homem e retira dele os distintos

    traços civilizatórios, gerando o medo, a invisibilidade, a exclusão. E é com grandefrequência que encontramos personagens desenhados por essa marca da urbe. Bastos

    (2012:11), em análise da obra de Rubem Fonseca, diz:

    A presença do Rio de Janeiro nos seus contos e romances é muitomais que simples referência geográfica. Embora não faltem, e até pelocontrário, sejam abundantes, as indicações precisas de logradouros

     públicos, de bairros, de edifícios etc., o ambiente  carioca éconstituído, sobretudo, pela aparição de tipos sociais marcantes. Essestipos vivem, quase sempre, situações-limites. São rufiões, prostitutas,

     pivetes, camelôs, policiais, desempregados. Em comum, a despeito desua diversa condição social, todos parecem dotados de uma aguda

  • 8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA

    23/86

    consciência de que vivem num espaço físico-social determinado,inconfundível em sua tipicidade.

    Os sujeitos dessa sociedade tornam-se individualistas, bem como os personagensfonsequianos. Os espaços excluídos do Rio de Janeiro são resgatados por Rubem

    Fonseca para serem transformados em cenários que permitem prazer e dor. Gomes

    (1994: 149), sobre essa divisão permitida pelos grandes centros urbanos, em análise do

    conto “A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro” de  Romance negro e outras

    histórias, diz que:

    As fronteiras imaginárias (do Rio de Janeiro) tornam-se reais com

    mais visibilidade e contundência. Assiste-se às manifestaçõesexplosivas, ao vazio de autoridade e ao aumento dos crimes, expressãoclara da cidade dividida. São aspectos que desembocam nas diversasformas de violência que atravessam toda a sociedade e constituem umdos núcleos temáticos recorrentes de R. Fonseca.

    O conto analisado por Gomes apresenta-se um mapa das principais ruas e vielas

    do centro da cidade do Rio do Janeiro, essa narrativa é um exemplo da temática que ora

    apontamos neste estudo:

    Desde os anos 40, quase ninguém morava mais nos sobrados das principais ruas do centro, no miolo comercial da cidade, que podia sercontido numa espécie de quadrilátero, tendo como um dos lados otraçado da avenida Rio Branco, o outro uma linha sinuosa quecomeçasse na Visconde de Inhaúma e continuasse pela MarechalFloriano até a rua Tomé de Souza, que seria o terceiro lado, efinalmente o quarto lado, um percurso meio torto que tivesse início naVisconde do Rio Branco, fechando o espaço (FONSECA, 2005: 361).

     Nesse conto, Rubem Fonseca desenha no papel a cidade que se esconde: os

     becos, as prostitutas, os mendigos. O Rio de Janeiro é a cidade preferida por Fonseca

     para ambientar suas narrativas, pois concentra em si particularidades propícias para o

    autor pós-moderno. Todo o cotidiano frenético e veloz, os personagens marginais e a

    alta sociedade em um mesmo espaço geográfico, o secular e o moderno transitam na

    cidade carioca.

  • 8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA

    24/86

     

    1.2.3 A crítica social

    Grande parte da obra fonsequiana é tecida com a linha da crítica social. Sua

    crítica percorre várias camadas sociais. Temos, por exemplo, um exemplo que é

    realizado no conto “Betsy” de  Histórias de amor , em que é narrada a história de uma

     personagem que está morrendo e o seu companheiro se põe ao lado da cama a esperar

     por esse momento derradeiro:

    Betsy esperou a volta do homem para morrer (...). No dia em que ohomem chegou, Betsy teve o derrame e ficou sem comer. Vinte diassem comer, deitada na cama do homem. Os especialistas consultadosdisseram que não havia nada a fazer. Betsy só saia da cama para beberágua (FONSECA, 1997: 9).

     Na cama, o homem relembra momentos vividos junto da protagonista. A morte

    chega. O companheiro coloca o corpo na caixa de papelão do liquidificador. Nesse

    instante o leitor percebe que a moribunda era uma cadela, a Betsy que dava nome ao

    conto. A crítica realizada por Fonseca nesse conto é velada e sutil, debate-se a questão

    daqueles que tratam os animais como se fossem pessoas. Essa crítica diverge da

    estética, já apontada neste estudo, de Rubem Fonseca.

    Ao contrário dessa crítica dissimulada que permeia as páginas de Rubem

    Fonseca está a crítica aberta à sociedade que não enxerga as mazelas da população. Por

    isso o destaque em personagens marginais, em suas vidas breves e vazias, em seuscasebres à espera de mudança: “Morávamos no mesmo morro, mas em casas diferentes.

    Ele comprou para mim a casa onde moro que tem quarto, sala, banheiro, cozinha e uma

    laje onde fica o tanque de lavar e onde posso apanhar o sol, se quiser” (FONSECA,

    2006: 49). 

     No fragmento acima, do conto “Guiomar”, de  Ela e outras mulheres, Fonseca

    explora um personagem com sua moradia precária, muito próxima a outras, que deseja

  • 8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA

    25/86

    melhorar sua vida. Sobre uma das funções que a literatura assume, Welleck e Warren

    (1962: 117) dizem que: 

    A literatura tem uma função social – ou utilidade –, que não pode ser

     puramente individual. Assim, uma grande maioria das questõessuscitadas pelo estudo da literatura são, pelo menos em última análiseou implicitamente, questões sociais.

    Dada sua função, Rubem Fonseca a explora em seus personagens e meios em

    que vivem com o intuito de revelá-los para uma sociedade que os veem transparentes.

    1.2.4  A oralidade

    Outra marca concreta na literatura de Fonseca é a presença da oralidade na sua

    escrita. Em “O caso de F.A.”, já citado aqui, o texto é todo dramatizado por meio de

    trinta diálogos face a face e de quatorze telefônicos, envolvendo cerca de vinte e cinco

     pessoas, durante apenas três dias. De sua estrutura narrativa aparecem apenas os verbos

    dicendi  (respondeu, disse, respondi, perguntei), em repetição característica da

    linguagem oral:

    “A cidade não é aquilo que se vê do Pão de açúcar. Na casa daGisele?”“Foi”, respondeu F.A.“Aquela francesa é mesquinha e ruim. E também uma trepada demerda. Dizem.”

    “Eu dou qualquer dinheiro”, disse F.A.“Hum”, respondi.“Você disse que o dinheiro compra tudo. Eu gasto o que for preciso”,disse F.A.“Sei. Continua.” (FONSECA, 1987: 55).

    O conto contém em sua totalidade mais diálogos do que narração. Sobre o conto

    Urbano afirma que:

  • 8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA

    26/86

    Acentua-se, pois, quantitativamente, a reprodução recriada da línguaoral em situações de comunicação de variada natureza em diferentesmomentos. A linguagem situacional, nesse sentido, aparece no diálogocom contato direto e imediato ou na conversa telefônica, onde hácontato imediato, mas não face a face (URBANO, 2000: 242).

    Tal reprodução também pode ser notada pela fala da personagem Gisele, dona de

    um prostíbulo, que apresenta um sotaque francês, como se percebe pela vibração

    acentuada dos erres. O narrador indica a existência do sotaque no início do diálogo e,

    também, apresenta no texto a duplicação da consoante e a supressão da vogal para

    caricaturar a personagem:

    “Alô”. Um sotaque francês forte.“Quem fala aqui é Paulo Mendes”.“Pardon, mas não sei de quem se trata”.“Sou amigo do Orlandino”.“Ah, oui, como está Orrlandim?”.“Ele está bem mandou um abraço para... a senhora”.“Muito obrigad” (Idem: 59).

    Desse modo, a oralidade torna-se presente na obra fonsequiana, não só pelos

    elementos fonéticos, mas também pelo uso de interjeições e de vocábulos obscenos.

    Como ainda, pelos recursos gráficos,pela repetição de erres, exclamação, interrogação,

    reticências. E, ainda, pelo apelo à pragmática, como podemos ver na fala: “Vou deixar

    vocês sozinhos. O verde”, disse Gisele desaparecendo em seguida (Ibiden: 61).

    Ao pronunciar a frase “O verde”, o leitor percebe que se trata do quarto, ou seja,o cômodo para onde os personagens vão é o quarto verde. O leitor decodifica essa

    ordem dada pela Gisele por meio dos pressupostos presentes no texto e pelo contexto no

    qual se situa o personagem.

    Outra evidência, na narrativa fonsequina, do uso da oralidade é a presença de

     palavrões, de gírias, de expressões do léxico próprio das camadas populares da

    sociedade e de vocábulos obscenos. Podemos exemplificar com: “gatuno”, “a dona”,

    “mulherio”, “parrudo”, “traseiro” (para nádegas), “quebrar o galho”, “o raio da mulher”,

  • 8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA

    27/86

    “o ovo no cu da galinha”, “viado”, “porra”, “puta que pariu”, “pra caralho”, “filho da

     puta”, dentre outros.

    Sobre a utilização da gíria, sua presença é bem mais discreta que o uso de

     palavrões, algo que o leitor não acostumado com a leitura de Rubem Fonseca sente-se

    agredido ao primeiro contato com sua obra. Sobre o uso constante dessa linguagem,

    Pereira (2000: 114) diz que Rubem Fonseca:

    Ao centrar-se, prioritariamente, na reprodução de um jargão profissional usado tanto por bandidos quanto por policiais eadvogados criminalistas, essas expressões remetem quase sempre àquestão da morte ou da prisão. Assim, “ficar em cana”, “tira”,“queima de arquivo” ou “presuntos para desovar” constituem alguns

    exemplos de um socioleto que, estando desvinculado das leis sociais egramaticais, contraditoriamente, adere a elas.

    O uso constante desses recursos linguísticos colabora para a construção de uma

    linguagem que aproxima o leitor das constantes temáticas abordadas por Rubem

    Fonseca. Talvez a aproximação da oralidade nas narrativas fonsequianas deu-se pelo o

     papel de roteirista desenvolvido pelo escritor ao longo de sua carreira.

    1.2.5 A suspensão do juízo moral

     Na literatura de Rubem Fonseca nem sempre o mocinho exerce a função de tal.

    E às vezes o bandido é produtor de benefícios para os outros. Essa característica, aqui,

    denominaremos de a suspensão do juízo moral. Essa ruptura dos paradigmas foi

    designada pelo teórico russo Mikhail Bakhtin de carnavalização. Segundo Soares (2007:

    72) “a carnavalização identifica-se pela inversão de valores, pela subversão cultural, por

    uma atitude de dessacralização, ou seja, pela apresentação do mundo às avessas”.

    Apresentamos dois contos para exemplificar essa particularidade da obra fonsequiana.

  • 8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA

    28/86

    O primeiro é sobre o personagem Paulo Mendes, investigador, protagonista do conto

    “Mandrake” (2005), em que chantageia um banqueiro para não revelar um fato

    desabonador a seu respeito. O outro é do personagem narrador de “Belinha”, conto de

     Ela e outras Mulheres (2006), que é um matador profissional que, ao receber o pedido

    de Belinha para matar o pai, a mata. O personagem realiza esse ato por acreditar que

    uma pessoa que deseja a morte do próprio pai não merece viver. Lucas (1971: 119) diz

    que: “Cada conto de Rubem Fonseca reflete mais do que a crise da sociedade: traz a

    crise do eu na sociedade. Daí tanta criatura unidimensional, tantos caracteres cindidos,

    tanta esperança esmagada”.

    E para exemplificar essa crise do eu cabe trazer para a análise mais dois contos

    representativos dessa linha de força, pertencentes à obra  Feliz Ano Novo, que são“Passeio noturno – Parte I” e “Passeio noturno – Parte II”. O protagonista dos contos é

    um sujeito de classe média-alta que para aliviar a tensão cotidiana, sai com seu carro

     pelas ruas da cidade atropelando inocentes:

    Ela só percebeu que eu ia para cima dela quando ouviu o som da borracha dos pneus batendo no meio-fio. Peguei a mulher acima dos joelhos, bem no meio das duas pernas, um pouco mais sobre aesquerda, um golpe perfeito, ouvi o barulho do impacto partindo os

    dois ossões, dei uma guinada rápida para a esquerda, passei como umfoguete rente a uma das árvore e deslizei com os pneus cantando, devolta para o asfalto (FONSECA, 1993: 50).

    O fragmento retirado de “Passeio noturno – Parte I”, representa o momento em

    que o protagonista atropela sua primeira vítima. Após o ocorrido, ele retorna para seu

    lar, mais calmo, dá boa noite para seus familiares e vai descansar para “um dia terrível

    na companhia” (p. 50). Os contos em voga representa a inversão de valores, apontadaacima por Soares com indício de carnavalização, vivenciadas por uma sociedade

    materialista e cultuada pelo o personagem principal. O resultado desse comportamento é

    angústia e solidão, tão presentes nos personagens fonsequianos. Sobre a inversão dos

    valores em personagens fonsequianos, Figueiredo (2003: 20) diz que:

    São indivíduos que se deparam, a todo instante, com essa ausência defundamento e de critérios que lhes permitam julgar-se e julgar o quese passa ao seu redor – no entanto, se já não conseguem crer nos

    valores criados pela cultura ocidental, tampouco deles se libertaram para criar novos parâmetros.

  • 8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA

    29/86

     

     Nesse mundo recriado por Fonseca encontra-se o personagem da alta sociedade

    em sua crueza, expondo a face oculta de sua vida doméstica. A cidade, mais uma vez,

    apresenta-se como o lugar da barbárie, obedecendo à lógica da sobrevivência. A cidadedos destituídos de humanidade promove a incomunicabilidade, a dureza e o tédio,

    gerando o atrofiamento de todas as faculdades humanas.

    1.2.6 A solidão

    A maioria dos personagens fonsequianos são sujeitos solitários que vivem à

    espera de alguma troca, como afirma Figueiredo (2003: 39):

    Rubem Fonseca destaca, como marca da vida contemporânea, asolidão decorrente de dificuldade de comunicação efetiva com o outro,

     já que as relações humanas acabam se realizando segundo a mesma leique rege a comunicação de massa, ou seja, a absolutização de uma

     palavra sob a máscara formal da troca.

     Nos personagens de Rubem Fonseca percebemos um sujeito que luta contra

    todos (eu x os outros), reinando, assim, o individualismo. Muitas vezes, a única forma

    de diálogo entre esses personagens é o sexo furtivo. Essa solidão é bem delineada no

    conto “O anão” de O buraco na parede:

    Fiquei sozinho, sem a mulher que eu amava loucamente, sem Sabrinaque estava enterrada no Caju e sem o único amigo que eu tinha nomundo que era o anão morto dentro da mala e a noite caiu e como eunão tinha mais o retrato dela para olhar fiquei olhando a mala até diaraiar, quando então peguei a mala a fiquei andando com ela na sala deum lado para o outro (FONSECA, 1995: 83).

    À noite, o protagonista agoniza em seu apartamento, sem rumo, esperando o dia

    amanhecer como uma falsa promessa de um encontro que não há desde que perdeu sua

    amante, sua namorada e seu amigo. Essa individualização gera o embrutecimento do

  • 8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA

    30/86

    homem pela ausência das relações interpessoais. Daí surgem os personagens marginais,

    ladrões, assassinos, pois ao perder o convívio com o outro esse sujeito sente a

    necessidade de destruí-lo.

    Um exemplo dessa solidão marcada na narrativa de Fonseca está em um de seus

    últimos romances O Seminarista  em que o protagonista vive o isolamento na sua

    infância em um seminário religioso e na vida adulta, por conta de sua profissão:

    Era uma casa modesta. Na sala havia uma televisão pequena, um sofáe uma mesa redonda com duas cadeiras.“Você é casado?”“Solteiro.”“Tem mãe?”

    “Como assim?”“Muito simples. Você tem mãe?”“Ela morreu quando eu era pequeno. Fui criado pela minha avó.”“E a namorada? Tem?”“Namorada? Ninguém quer namorar alguém como eu” (FONSECA,2009: 24).

    José, o protagonista, vive as agruras da solidão até encontrar uma namorada que

    o faz abandonar sua carreira de matador por aluguel. Surge então a esperança de uma

    companheira para sua vida. Mas o romance é interrompido pelo assassinato de sua

    amada, ação essa que faz com que ele retorne para a vida da solidão e do crime.

    A ficção de Fonseca encena o vazio existencial de sujeitos que, ante a

    impossibilidade de levar adiante uma vida de virtudes, transformam-se em indivíduos

    errantes ou amargurados.

    1.2.7 A violência

    Abordaremos, a seguir, o tema da violência e do sexo presentes na literatura

    fonsequiana, não a deixando por último por acaso, e sim, possivelmente, por se tratar

    das características mais relevantes da produção de Rubem Fonseca.

    Sobre a censura do livro Feliz Ano Novo, Figueiredo afirma que:

  • 8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA

    31/86

    O alvo principal dos censores foi a tematização da sexualidade.Acusaram o autor de pornografia, de atentado à moral e aos bonscostumes, e usaram como prova, o uso dos palavrões, enquanto o quede fato incomodava no livro e incomoda, ainda, é a variação, a cadaconto, de pontos de vista sobre a violência levando o leitor a ver arealidade de diferentes ângulos (2003: 28).

    A mira dos censores estava apontada corretamente para o propósito de Rubem

    Fonseca: o sexo e a violência. De todas as características pontuadas neste capítulo,

     percebe-se claramente que obra de Fonseca é sitiada pela violência e pelo sexo. De

    imediato trataremos de abordar a temática da violência e, por conseguinte, a do sexo.

    Começaremos citando um trecho de “O cobrador”, para pontuar como é trabalhada a

    temática da violência:

    Ela estava grávida, ele disse apontando a mulher, vai ser o nosso primeiro filho. Olhei a barriga da mulher esguia e decidi sermisericordioso e disse, puf, em cima de onde achava que era o umbigodela, desencarnei logo o feto. A mulher caiu emborcada. Encostei orevólver na têmpora dela e fiz ali um buraco de mina (FONSECA,2005: 278).

     Neste conto, o protagonista cobra da sociedade tudo aquilo que lhe falta. Aqui o

     personagem violento luta contra todos os homens da cidade que o cerca, em  tentativa

    inútil de obter a instantânea solução para suas necessidades. Sobre a violência, Lins

    (1990: 14) diz que:

     Nasce onde não há acordo sobre regras e princípios, onde se apaga aideia de corpo social, com tudo o que a metáfora orgânica implica naordem do simbolismo da interdependência do direito e das liberdades,

    dos teres e deveres. A violência é o termo que aplicamos paradesignar, na sociedade, fenômenos que se destacam do deslocamentoda consciência coletiva.

     Na obra fonsequiana, de certo modo, todos os personagens contracenam com a

    violência: ora são acometidos por ela, ora a cometem. Podemos também visualizar esta

    temática presente no trecho do conto “Jéssica”:

  • 8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA

    32/86

    Agarrei Jéssica pelos cabelos e comecei a esmurrar o rosto dela.Quebrei primeiro o seu nariz, depois o maxilar, depois boca, fazendoos dentes saltarem para fora, em seguida quebrei os ossos que ficamdebaixo dos olhos, e arrebentei os ossos das orelhas (FONSECA,2006: 67).

    A violência em Rubem Fonseca não possui forma única, ela é trabalhada de

    todos os ângulos possíveis, sob diversas óticas. Tal violência é manifestada por meio da

    linguagem, da escrita, da descrição das cenas, dos diálogos, das intervenções realizadas

     pelo narrador.

    Viegas (1996: 132) afirma que “Rubem Fonseca vitaliza o assunto da violência,

    apesar do desgaste sofrido a partir da nossa convivência diária com a própria violência”.

    Assim age, com frieza, o personagem, outrora mencionado, de “Passeio Noturno – Parte

    I” e “Passeio Noturno – Parte II”, ambos contos de Feliz Ano Novo. Para distrair-se de

    um dia tumultuado, ele atropela as pessoas nas ruas por sadismo.

    Outro exemplo marcante dessa linguagem violenta se dá por meio do próximo

    exemplo retirado do conto, também já mencionado, “O anão” de O buraco na parede 

    (1995).

    Agarrei o anão pelo pescoço e levantei ele no ar e ele se debateu e mefez cambalear pela sala batendo nos móveis até cairmos no chão e eucoloquei os joelhos no peito dele e apertei até minhas mãos doerem eeu ver que ele estava morto. E depois apertei de novo o pescoço dele ecoloquei o ouvido no peito dele para ver se o coração batia e aperteide novo e de novo e de novo e passei o resto da noite apertando o

     pescoço dele (FONSECA, 1995: 82).

    A utilização frequente da conjunção “e” (11 vezes no fragmento) proporciona à

    narrativa uma ideia de velocidade das ações violentas cometidas pelo protagonista. A

    sede do protagonista pela violência é tão exagerada que chega a ser compulsiva, pois até

    mesmo depois de a vítima estar morta ele ainda continua “o resto da noite apertando o

     pescoço” dela.

    Como notamos, os contos de Rubem Fonseca são permeados pela violência, seja

    a de um assassinato, seja a de um latrocínio, seja a de um estupro. Em  Feliz Ano Novo,

  • 8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA

    33/86

    no conto que dá nome ao livro, é narrada uma história em que os três assaltantes

    invadem uma casa, onde festejava o dia de ano novo, em São Conrado, na cidade do Rio

    de Janeiro. Lá eles assaltam, estupram e assassinam os participantes da festa. Dois

    homens são assassinados somente para comprovar uma tese dos bandidos, a de que se

    alguém levar um tiro próximo de uma parede, teria seu corpo preso nela:

    Atirei bem no meio do peito dele, esvaziando os dois canos, aqueletremendo trovão. O impacto jogou o cara com força contra a parede.Ele foi escorregando lentamente e ficou sentado no chão. No meio do

     peito dele tinha um buraco que dava para colocar um panetone(FONSECA, 2003: 19).

    O primeiro personagem que é assassinado não adere à parede, mas o segundo

    fica, pois havia no fundo uma porta de madeira.

    A violência em Rubem Fonseca não está presente somente nos acontecimentos,

    mas também, no texto. O leitor inexperiente sente-se agredido ao ler os textos de

    Fonseca. Desse modo, a violência aqui não é só vista como tema, ela é igualmente

    caracterizada pela linguagem, ou seja, a linguagem utilizada nas narrativas fonsequianas

    é portadora da violência. Os contos poderiam ser narrados da mesma forma, mas comuma descrição menos agressiva. Sobre a violência em Rubem Fonseca, Figueiredo

    (2003: 19) afirma que:

    Focalizada de diferentes ângulos e em suas nuances mais sutis, aviolência, no universo ficcional do autor, é vista como uma constantehistórica, disseminando-se pelas mais diversas dimensões docomportamento humano, podendo, por isto mesmo, ser sempre

     justificada, explicada, em nome do processo civilizatório, doscostumes, dos direitos, ou mesmo da busca do conhecimento.

    Assim sendo, a violência possui um papel importante no interior das narrativas

    fonsequinas, pois a ação violenta é um elemento estruturante da composição narrativa,

    ela opera como um elemento de caracterização do personagem e também define o

    desfecho da trama, suas tensões e conflitos.

    Rubem Fonseca, ao explorar a violência, dá ao corpo textual maiorverossimilhança ao que é narrado. Como vimos anteriormente, suas narrações são

  • 8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA

    34/86

    ambientadas em cenários que representam o mundo policial e, por isso, não há como

    desvincular a temática aqui abordada daquilo que está se narrando. De tal forma que a

    violência decorre das várias formas de poder que os personagens buscam exercer sobre

    os demais.

    1.2.8 O sexo

    E não é só no que tange à violência que o leitor se sente agredido, o tema do

    sexo também o acomete. No romance O Caso Morel  (1973), Rubem Fonseca permeia anarrativa com diversos trechos com descrições minuciosas de cenas de sexo:

    Mandei Joana sentar na beira da cama de pernas abertas e comecei a beijar o seu corpo. A boceta de Joana estava fria, molhada de água,com um leve gosto de sabão. Aos poucos foi esquentando até quecomeçou a ficar salgada. Joana deitou-se. Esticou as mãos procurandoas minhas. “Entra dentro de mim... quero que você faça tudo comigo!”Joana queria ser espancada, aviltada, sodomizada, queria ter o rostolambuzado pelo meu sêmen. Fiz a sua vontade (FONSECA, 1973:

    43).

    Em “Diana” conto de Ela e outras mulheres, Diana procura um homem para ter

    com ela um orgasmo. Na madrugada, ela encontra Manoel em café e os dois vão para o

    apartamento dela:

    Depois de lamber seus seios e a sua vagina, eu a fui penetrando

    lentamente e dando uns tapas no seu rosto, sem muita força, masmesmo assim sua face ficou vermelha. (...) Senti sua vagina ir secontraindo e logo um líquido abundante inundou o meu pênis(FONSECA, 2006: 35).

    Em “Joana”, do mesmo livro, o protagonista tem problemas com as sua relações

    sexuais, pois só obtém prazer com mulheres belas. Até que encontra uma mulher feia,

    mas atraente:

  • 8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA

    35/86

    A boceta de Joana era apertada e sugante, quente, úmida. Prolonguei omais que pude o prazer daquela penetração. Ela gozou com um ardortão incandescente e deu um grito tão agudo que eu perdi o controle egozei também. Confesso que foi uma das maiores trepadas da minhavida (Idem: 76).

    Já no conto “Carpe Diem” de  Histórias de amor , a descrição de uma cena de

    sexo entre os personagens principais é relatada com maior sutileza:

    Roberto morde as bochechas de Paula, abraça o corpo dela como umurso, ela abre caminho para que ele entre no corpo dela, meu amor dizque adora foder comigo, rolam pela cama larga, ele fica em cima, elafica em cima, diz que me ama, ele diz tudo o que ela quer que elediga, e quando ele goza um trem de ferro passa por cima dele e eleurra como um animal ferido de morte (FONSECA, 1997:117).

    A frequente existência deste tema nos contos de Rubem Fonseca é que o sexo

    acaba por ser a única troca possível dos personagens, a comunicação existente entre

    eles, tendo em vista que são personagens marcados pela solidão. A descrição de cenas

    eróticas e libidinosas relaciona-se com a condição de vida que possuem os personagens

    fonsequianos.

    Encerramos este primeiro capítulo com a citação de Barbieri (2003: 82), sobre a

    imoralidade em Rubem Fonseca: “A “imoralidade” ou “incitamento” dos contos de

    Rubem consiste em mostrar, à luz forte de uma linguagem hiper-realista, episódios de

    violência moral, física, política e social, que compõem o quadro de nossa crônica

    diária”.

    E para compor tal quadro, Fonseca utiliza-se das características que acima foramdetalhadas por meio de trechos de sua obra, que são: a influência do trabalho como

    comissário ou seja, os aspectos criminais existentes na obra; a linguagem crua e enxuta;

    utilização de diálogos; a crítica social; a presença da oralidade na narrativa, tanto pelos

    elementos e recursos gráficos, quanto pelo uso da pragmática; a carnavalização; a

    violência no plano da narração, da linguagem, da moralidade; e da temática do sexo.

    Rubem Fonseca instaura na literatura contemporânea um discurso ausente de

    metáforas. Sua linguagem possui marca própria capaz de provocar no leitor inexperiente

  • 8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA

    36/86

    certo desconforto e até mesmo repulsa pelo texto. Por fim, suas narrativas encenam

    trajetórias de pessoas comuns, anti-heróis, anônimos habitantes da urbe que

    contracenam com personagens marginais, corrupção, violência e erotismo exacerbados.

    É assim que surgem suas narrativas: sob o signo da transgressão.

  • 8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA

    37/86

     

    2. A DIMENSÃO POLICIAL EM RUBEM FONSECA

    Desde  Assassinatos da rua Morgue  (1841) até  Agosto (1990), muito se passou

    na literatura policial. Pretendemos neste capítulo discorrer sobre o romance policial, principalmente o realizado por Rubem Fonseca, e apresentar como o método

    cientificista do final do século XIX, utilizado por Poe, por meio da dedução das pistas

    oferecidas ao leitor, é questionado no século XX e XXI.

    O relato policial com o intuito de desvendar um crime de qualquer espécie é

    talvez impossível de se descobrir sua gênese. Mas sabemos que está presente desde os

     primeiros escritos do homem. A mitologia, a Bíblia, os romances de aventuras, hoje em

    dia o noticiário jornalístico, as novelas, em todos esses veículos e em outros tantos, o

    tema do desvendar um crime torna-se assunto. Sobre o conceito de romance policial,

    Reimão (1983: 8) diz que:

    Toda narrativa policial apresenta um crime, um delito, e alguémdisposto a desvendá-lo, mas nem toda a narrativa em que esseselementos aparecem pode ser classificada como policial. Isto porquealém da presença destes elementos é preciso uma determinada formade articular a narrativa, de construir a relação do detetive com o crime

    e com a narração.

     Na Bíblia, o livro de Daniel (14, 1-17) relata uma investigação em quarto

    fechado, tal qual Poe nos mostra muitos séculos depois. O rei Ciro questiona Daniel

    sobre ele não cultuar o ídolo Bel. Daniel argumenta que não idolatra algo criado pelas

    mãos dos homens, mas somente Deus. Ciro diz que Bel é um deus vivo, pois recebe

    toda noite oferendas que são consumidas na madrugada. Daniel questiona o fato peranteo rei que o condena à morte caso não comprove o seu raciocínio.

  • 8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA

    38/86

    Dessa forma, o profeta leva o rei ao templo de Bel e junto com os sacerdotes

    coloca as oferendas ao pé do ídolo. A porta do templo é lacrada com o selo real, mas

    antes, que isso acontecesse, Daniel, secretamente, espalhara cinzas no chão da câmara.

    Os sacerdotes, aqueles que verdadeiramente comiam as oferendas, não se abalaram

    diante do ocorrido, pois eles entravam por uma abertura secreta debaixo da mesa. Ao

    nascer do dia, o Rei Ciro, Daniel e os sacerdotes conferem o lacre da porta e abrindo o

    quarto fechado deparam-se com o sumiço dos alimentos ali depositados no dia anterior.

    Daniel mostra para o rei as pegadas deixadas no chão pelos sacerdotes, seus filhos e

    esposas, escapando assim da morte anunciada:

    Mas Daniel pôs-se a rir e impediu o rei de entrar mais adiante. “Olha ochão, disse-lhe. De quem são esses passos?” “Vejo de fato, respondeuo rei, passos de homens, de mulheres e de crianças”. E uma cóleraviolenta apoderou-se dele. Então mandou prender os sacerdotes,mulheres e filhos, os quais lhe mostraram as entradas secretas poronde se introduziam para vir consumir o que havia na mesa.

    Como vimos, a narrativa investigativa é desde, os primórdios, abordada pelos

    escritores. Refletir sobre o mistério do quarto fechado leva-nos a textos conhecidos

    como: Assassinatos da rua Morgue, de Edgar Allan Poe, O grande mistério de Bow, deIsrael Zangwill, e  Borges e os orangotangos eternos, de Luís Fernando Veríssimo, em

    que os crimes também ocorreram dentro de salas fechadas, façanha que dificulta as

    investigações.

    Muitos outros autores, os quais seria maçante aqui mencionar, colocaram como

     primeiro e, algumas vezes, principal mistério em seus romances policiais o quarto

    fechado. O crime realizado nesse lugar muitas vezes redundava em jogo de adivinhação,

    quase em quebra-cabeças. Sobre o gênero, Pellegrini (2009: 81) diz que:

    O romance policial sempre esteve associado, em todo o mundo, aoentretenimento (talvez seja esse o motivo de sempre ter sido visto commaus olhos por boa parte da crítica). Isso permitiu, modernamente,que inúmeros autores e muitos editores se tornassem milionários

     produzindo esse tipo de artigo (claro que não no Brasil), parece quesabendo satisfazer exatamente algumas necessidades subjetivas doleitor. Há várias tentativas de explicação de tais necessidades, que vãodesde a estranheza e atávica atração humana pelo mistério, pela

    violência, pela sordidez, presentes em muitos textos, até o gosto peloespírito dedutivo necessário para o deslinde das tramas, passando pelo

  • 8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA

    39/86

     prazer da introdução da aventura e do drama na monotonia da vida damaioria dos escritores.

    Todos os itens supracitados exercem nos leitores certa ansiedade, e isso pareceser o que os atrai para a leitura do romance policial. No Brasil, em 1920, surgiu o nosso

     primeiro folhetim policial: O mistério. Escrita por quatro autores, Coelho Neto, Afrânio

    Peixoto, Medeiros e Albuquerque e Viriato Corrêa, a obra foi lançada primeiramente em

    capítulos pelo jornal A Folha e mais tarde editada em livro. Reimão (2005: 14) sobre O

    mistério aponta que:

    Observe-se que o fato de O mistério  ter sido escrito em regime de

     parceria – cada autor escrevia seu capítulo e o próximo autor deveriacontinuar daí, sem um planejamento detalhado prévio, nem a

     possibilidade de uma revisão uniformizadora final – confere a essanarrativa um caráter lúdico, um certo aspecto de ‘irresponsabilidade’,de ‘brinquedo’.

    Desde sua origem, o gênero associa-se à uma literatura feita para as massas, não

    somente pelo tratamento ficcional como também pelo mercado editorial. Nas últimas

    décadas, os escritores retomaram o gênero policial como dispositivo de sedução do público leitor. O mistério o atrai e o prende nas páginas dos livros. Algumas editoras

    estão até produzindo coleções específicas voltadas para esse tipo de narrativa.

    Poderíamos aqui elencar uma série de autores que enveredaram pelo caminho da

    literatura policial, mas acreditamos que isso seria uma grande digressão do estudo se

    apresenta. Por isso apontaremos brevemente algumas características do gênero.

    Geralmente, nas narrativas policiais apresenta-se um crime e há alguém disposto

    a desvendá-lo. E o que prende o leitor no romance policial são o raciocínio, o mistério e

    a tentativa de se descobrir o autor dos crimes.

    Sobre a invenção do romance policial, Reimão (1983: 19) diz: “A própria

    invenção do gênero policial é, na verdade, consequência de uma nova concepção de

    literatura proposta por Poe; é essa a concepção que fará com que Poe consiga imaginar

    uma novela policial , isto é, uma combinação de ficção com raciocínio e inferências

    lógicas”.

  • 8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA

    40/86

    Ao longo da história deste gênero, podemos perceber que ele foi ajustando-se

    diante do público que se alterava. A renovação do gênero está no desenvolvimento

    simples das práticas apresentadas por Poe. Sobre a técnica da representação do enigma,

    Boileau & Narcejac (1991:12) dizem que:

    O enigma experimenta uma metamorfose: torna-se crime misterioso para nosso prazer; o cientista transforma-se em detetive; a presença deum assassino terrível conduz à noção de vítima ameaçada. Mas essadramatização, no plano do jogo, longe de ser o resultado de umainvenção, provém do movimento espontâneo da inteligência quereflete sobre seus próprios produtos. O criminoso, a vítima, a lógica dainvestigação, tudo isso estava implicitamente contido no movimentonatural da razão que se esforça em compreender as coisas.

    E é essa razão que prenderá o leitor nas páginas do romance policial, que é uma

    espécie de narrativa em que se expõe uma investigação e que contém no mínimo três

    elementos fundamentais: o criminoso, a vítima e o detetive. Essa narrativa respalda-se

    sobre um assassinato, ação central da trama. Normalmente, o assassino é um

     personagem que deve ser encontrado pelo narrado e pelo leitor. Propomos a seguir fazer

    uma análise de um elemento desse trinômio essencial para a construção da narrativa

     policial.

    2.1 O DETETIVE

    Sabemos que a gênese do romance policial data de 1841, quando Edgar Allan

    Poe publicou em uma revista o conto “Assassinatos da rua Morgue”. Segundo Reimão

    (1983:12) “Poe é a narrativa-enigma por excelência e, além disso, abriu a possibilidade

    do surgimento de outros tipos de narrativa policial”. Poe é célebre pela sua genialidade

     para criar narrativas de suspense com uma finalidade hipnótica que nos leva a entrar no

    clima de terror psicológico.

    Conforme Medeiros e Albuquerque (1979: 9):

  • 8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA

    41/86

    Podemos constatar, portanto, que o romance policial teve sua origemno romance de aventuras. Ele é, por assim dizer, um desdobramento,uma vez que seus autores foram obrigados a procurar uma nova formade se expressar, na qual não apenas a ação fizesse sentir e o herói nãofosse necessariamente um lutador, um guerreiro ou um espadachim.

    O herói do romance policial chega à solução pela inteligência, e nuncausando a força e somente a força. Esta, algumas vezes, entra noquadro geral do romance, mas apenas como um detalhe adicional esecundário. A inteligência é tudo ou, pelo menos, o fator principal.

    Após o sucesso de Edgar Allan Poe com seu detetive dotado de inteligência e

    raciocínio, diversos outros autores optaram por escrever romances policiais: Sir Arthur

    Conan Doyle, Agatha Christie, Umberto Eco, Jô Soares, Tony Belloto, Luiz AlfredoGarcia-Roza, dentre tantos. Como podemos ver, distintos autores, de diferentes épocas e

    nacionalidades, adotaram o romance policial para a sua criação literária.

    De Dupin até aos dias atuais surgiram dezenas de detetives – homens, mulheres

    e até crianças, de diversas classes sociais – que marcaram a literatura de modo geral,

    cada um com suas características: excêntricos, racionais, científicos, amorais, violentos,

    mulherengos, sedutores. E como protagonistas do romance, eles procuram desvendar os

    mistérios e os crimes que fazem parte da trama narrativa.

    Rubem Fonseca adota o gênero como o principal em suas narrativas. Sobre essa

     preferência, Figueiredo (2003:44) diz:

     No caso dos romances de Rubem Fonseca, a opção pelo gênero policial vem reiterar o ângulo de visão que prioriza a violência como o princípio básico da vida urbana (...). A dissolução dos valoreshumanos, a generalização do crime, que se estende ao mundo dos

    negócios, às esferas institucionais, o romantismo nostálgico dodetetive, que perde a imunidade, o enfoque pirandelliano da verdadesão traços presentes no texto do autor.

    O detetive nas narrativas policiais exerce o papel de protagonista. É ele que irá

    conduzir o leitor e convidá-lo a desvendar as pistas encontradas ao longo das páginas.

    Alguns detetives necessitam de um auxiliar para suas investigações. Bem como é o caso

    do famoso personagem Watson, amigo e narrador de Holmes. Albuquerque (1979: 87)

  • 8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA

    42/86

    em seu livro O mundo emocionante do romance polical  escreve um capítulo sobre os

    auxiliares dos detetives, segundo ele:

    A solução final, fruto de brilhante dedução do herói, era, na maior

     parte das vezes, auxiliada direta ou indiretamente por um ajudante quetanto podia ser uma amigo; uma secretária; um empregado; ou aindaum “faz tudo”. Embora diferentes em suas funções há uma tônicaentre eles: são todos mais ou menos infantis, obtusos. A solução domistério é alcançada pelo detetive, muitas vezes, através de umaobservação fortuita de seu auxiliar; o leitor inteligente e observador

     poderá também chegar ao mesmo resultado. No entanto, o auxiliarapresentará sempre uma verdadeira obstrução cerebral, só entendendoo fato depois dele ser exaustivamente explicado pelo herói.

    Como o detetive é uma mente dedutiva que, por meio de pistas, sinais e indícios,

    reconstrói a história do crime e encontra o responsável, é necessário que exista alguém

    que refaça os passos que ele deu para chegar até o culpado, evidenciando sua

    genialidade em descobrir o crime.

    Cada vez que há um segredo, cada vez que há algo a ser desvendado,

    indiferentemente se houve ou não um crime, nas narrativas fonsequianas, e surge um

     personagem disposto a desvendá-lo, há ali o cerne do detetive. Seja o cineasta que segueos passos de Isaak Bábel em Vastas emoções e pensamentos imperfeitos. Seja um

    narrador que queira reconstruir os fatos da vida de Carlos Gomes em O selvagem da

    ópera. Ou seja um personagem que quer entender a relação entre uma carta encontrada

    no Mercado de Pulgas de Viena e a vida do pintor Egon Schiele no conto “A santa do

    Schöneberg” de O romance negro. 

    Rubem Fonseca insere no inconsciente coletivo inúmeros detetives. Quiçá o

    mais famoso seja Mandrake, que apareceu pela primeira vez no conto “O caso de F.A.”;

    em Lúcia McCartney, que volta em “O dia dos namorados”, conto de Feliz Ano Novo, e

    no conto “Mandrake”, de O cobrador ; surge como protagonistas dos romances  A

    Grande Arte;  E do meio do mundo prostituto só amores guardei no meu charuto; em

     Mandrake, a bíblia e a bengala e em outros contos. O sucesso do personagem foi tão

    estrondoso que ele foi transformado em uma série televisiva produzida pelo canal HBO

    Brasil em parceria com a Conspiração Filmes: “Meu nome é Mandrake. Sou um

    advogado criminalista. O caso que vou relatar comprova, como disse alguém cujo nome

  • 8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA

    43/86

    não recordo, que a verdade é mais estranha que a ficção porque não é obrigada a

    obedecer ao possível” (FONSECA, 2005: 7).

    O personagem é produto do meio em que vive e trabalha. Não podemos traçar

    suas características físicas, só sabemos que ele é alto e magro. Isso ocorre, porque

    Mandrake é o narrador e não se preocupa em se descrever exteriormente. Seu nome de

     batismo é Paulo Mendes, vive no Rio de Janeiro, seu escritório fica na Cinelândia, é

    advogado criminalista e trabalha basicamente com crimes de extorsão e estelionato.

    Gosta de vinhos portugueses e charuto. Enfim, Mandrake é o detetive que tem a função

    de aproximar o leitor no mundo ficcional e transformá-lo em caçador de pistas

    aleatórias.

     Nos contos de Rubem Fonseca, a incidência de personagens detetives é menor

    que nos romances. Isso ocorre, porque nos romances há a possibilidade de se trabalhar

    com raciocínios extensos. Essa elaboração de ideias torna-se algo difícil nos contos,

    devido à sua brevidade e à sua concisão, características exigidas pelo gênero. A

     presença desse tipo de personagem ocorre em alguns contos longos de Rubem Fonseca,

    como é o caso de “A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro” de Romance Negro. Nos

    contos mais breves o que se narra é a transgressão dos personagens, o crime, o mistério.

    Dessa forma dá-se um enfoque no criminoso, protagonista de tantos contos.

    Persistem na literatura de Rubem Fonseca algumas semelhanças com literaturas

    como a de Sir Arthur Conan Doyle, pois, em ambos autores, o enigma inicial apresenta-

    se por um crime brutal que gera toda uma atmosfera de mistério e tensão percorrendo

    todo o romance.

    A imagem do detetive vem ao longo dos anos sofrendo inúmeras transformaçõesem sua caracterização. Ele nunca está satisfeito com o trabalho concluído. Ele está

    sempre disposto a começar de novo, a rever as provas, a emendar um mistério com o

    outro, o que prova que, de alguma forma, nem ele mesmo está convencido da solução

    do enigma.

    2.2 INOVAÇÕES NO GÊNERO

  • 8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA

    44/86

     

     No que tange a uma linha estrutural da narrativa policial brasileira, Rubem

    Fonseca é um precursor de todo um movimento de novos escritores, tais como: Marçal

    Aquino, Patrícia Melo, Ana Miranda. O uso que Fonseca faz do gênero é  sui generis, 

     pela adaptação à sua poética. De tal forma que os traços do gênero policial ficam a

    serviço do estilo de Rubem Fonseca e, não o contrário.

    Pereira (2000: 21), sobre o romance policial realizado por Rubem Fonseca, diz:

    O autor tem várias obras com edições esgotadas, o que demonstra suacapacidade de lidar com um público não acostumado à narrativa dotipo policial, principalmente quando a mesma sobrevive à custa demodificações do próprio gênero. O êxito de recepção desses relatos,

     pelo leitor comum ou especializado, parece que se origina na tripla possibilidade discutida por Jauss: a experiência estética envolve percepção, cognição e catarse.

    Desde o surgimento do Romance Policial até os dias que seguem, muito coisa

    mudou. Segundo Todorov (1970: 95), “o romance policial por excelência não é aquele

    que transgride as regras do gênero, mas o que a elas se adapta”. Talvez a principal

    diferença que tenha ocorrido esteja na descentralização da figura do detetive, que antes

    era um profissional, metódico, lógico e racional foi substituído por personagens

    comuns, funcionários da polícia, especialistas em crimes.

    Os primeiros detetives dos romances policiais eram considerados pelo narrador,

     pelo leitor ou por outros personagens como sujeitos extraordinários, dotados de uma

    inteligência e capacidade lógica fora do comum por serem capazes de ver o que

    ninguém mais via. Esses foram trocados por detetives que possuem um mínimo talento para a investigação, o acaso os acompanha. São amadores no que fazem e isso em

    alguns momentos vai coloca-los em situações desagradáveis.

    Além das alterações na construção do protagonista, outras também ocorrem na

    romance policial contemporâneo. Todorov (1970: 101) no artigo “Tipologia do romance

     policial” elenca, resumidamente oito, as principais características que o escritor deve

    respeitar ao criar uma obra do gênero, baseado nas vinte premissas que Van Dine

    elencou em 1828; eis as três primeiras:

  • 8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA

    45/86

     

    1. O romance deve ter no máximo um detetive e um culpado, e nomínimo uma vítima (um cadáver).2. O culpado não deve ser um criminoso profissional; não deve ser o

    detetive; deve matar por razões pessoais.3. O amor não tem lugar no romance policial (...).

    O terceiro item já se torna obsoleto para Rubem Fonseca. Diversos personagens

    seus apaixonam-se, como o caso de detetive Mattos, que ao final de  Agosto larga tudo

     para ficar com sua amante Salete. Outro caso que comprova a afirmação está no

    romance O seminarista (2009: 45), em que o protagonista, matador por aluguel se torna

    detetive para descobrir o assassino de sua amada, é um galanteador e apaixonado porsua namorada:

    O rosto era bonito, esqueci de dizer que Kirsten tinha uma dentadura perfeita.“Por que você está me olhando assim?”“Assim como?”“Desse jeito, fixamente...”“Oculi sunt in amore duces, os olhos são o guia do amor, como dissePropércio.”

     Nas primeiras páginas de O Seminarista (2009), José narra seus últimos

    trabalhos como matador profissional para, no quinto capítulo, anunciar que desistiria do

    mundo do crime. O motivo: numa certa manhã, ao tomar café em uma padaria,

    deparara-se com uma mulher solitária e forçara uma aproximação. José apaixonou-se

     por Kirsten. Mais tarde, descobriu que ela era filha de seu antigo patrão, o Despachante.

    Contudo, a grande marca do livro é a paixão do protagonista: 

    Fiquei apaixonado por Kirsten. [...] Muitas pessoas devem acharestapafúrdio um sujeito que matou por encomenda uma porção de

     pessoas ser dominado por sentimentos desta natureza. Para falar averdade eu também me considerava incapaz de uma emoção tão

     profunda, sentia tesão pelas mulheres, e admiração, mas paixão nuncasentira antes. Na verdade, amor est vitae essentia, o amor é a essênciada vida (p. 56).

    Toda a semana eu ia ao cemitério onde Kirsten estava enterrada e

    colocava flores em sua sepultura. [...] Na parede da sala do meu

  • 8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA

    46/86

    apartamento eu olhava um quadro com uma foto ampliada de Kirsten.Eu a amaria para sempre. Amor aeternu (p.177).

    É por causa do amor que José decide mudar de vida e tornar-se um homemcomum. Nesta narrativa, o amor, ao contrário do que Todorov teorizou, respaldado por

    Van Dine, tem vez.

    Segundo Pellegrini (2009: 93), Rubem Fonseca “é muito mais sofisticado no

    tratamento das motivações para o crime, a ponto de se poder questionar se o rótulo de

    ‘policial’ é realmente adequado para suas narrativas.” Rubem Fonseca inaugura uma

    nova maneira de se fazer romance policial. Seu Mandrake não é nenhum Sherlock

    Holmes, ele possui características detetivescas próprias. Fonseca apropria-se de

    características do gênero e as aplica em suas narrativas sem que o leitor tenha a

    impressão de já ter lido o que está escrito. Romeo Tello Garrido (1998: 15), na

    introdução de Los mejores relatos de Rubem Fonseca, diz que:

    Sólo echa mano de algunos elementos estructurales del género (elcrimen, la intriga, la investigación judicial), todos ellos manejadoscom maestría. Sin embargo, no aspira a hacer uma novela dedetectives tradicional (...) el fin de la narración no es devolver el ordenmoral y jurídico, no; cuando Fonseca acude a los recursos de laliteratura policial. Ésta es sólo um pretexto, el mejor molde narrativo

     para presentear la compleja y ambigua contienda entre el bien y elmal, porque ‘criminales somos todos’ como afirma uno de sus

     personagens.

    Baseados na crítica, vemos que o autor não se adapta rigorosamente aos

    tradicionais códigos do gênero policial. Em suas publicações percebemos o uso da

    linguagem midiática, como a imprensa escrita, a televisão, o cinema.

    2.3 ENTRECRUZAMENTOS/AMÁLGAMAS DE LINGUAGENS

  • 8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA

    47/86

      As artes em geral são permeadas pelo cotidiano veloz. Muitos artistas optaram

     por retratar a construção de um vazio entre a imagem e o seu referencial. Os surrealistas

    trouxeram para sua produção esse modelo de arte. Outros, porém, pretendem resgatar o

    máximo da realidade em que participam para representá-las. Sabemos que Rubem

    Fonseca pertence ao segundo grupo de artistas comprometidos com sua obra e com o

    leitor.